Arthur Grupillo Ufmg

  • October 2019
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1 DUAS COISAS SOBRE A FORMAÇÃO DO HOMEM MODERNO Arthur Grupillo* [email protected]

 A primeira coisa que seria preciso dizer sobre a formação do homem moderno diz respeito à própria idéia de formação e pode ser assim enunciada: seja da perspectiva do gênero, seja da do indivíduo, a formação depende da perda do respeito pela linguagem. Gostaríamos de elucidar essa proposição com uma digressão em torno da ética antiga. Ao buscar compreender a célebre e polêmica Ética a Nicômacos, alguns comentadores perspicazes foram levados, pelas dificuldades da matéria, a um primeiro contexto da ética, protagonizado pelos poemas homéricos, que tentaremos resumir. Fundamentalmente, o comportamento humano desenhado por Homero tem a marca da moral do guerreiro. Numa sociedade promotora de eventos agonísticos, ao lado das tão festejadas olimpíadas se impõem os gládios dos heróis. Sob o auspício das infindáveis tensões bélicas, destaca-se o herói como indivíduo capaz de dominar as circunstâncias, aquele que dá conteúdo à moral com seus próprios atos de proeza e coragem. Aquilo que podemos compreender por Virtude, ou Excelência, encontra-se personificado pelo guerreiro; Aquiles é o verdadeiro virtuoso e é o herói quem define os valores. Se quisermos utilizar a metáfora nietzscheana do espelho, diremos que o impulso apolíneo da perfeição, do modelo, ao qual se contrapõe um espírito mimético do grego, se faz aqui presente como o ideal a que o homem estava destinado unicamente a admirar. E isso será, em sua consciência, os significados da submissão. A ética homérica representa uma Grécia aristocrática. O modelo deve seu valor exclusivamente à fama, à bem-aventurança, *

Doutorando/UFMG

2 não a um aprendizado, a um esforço. Não se adquire o espírito heróico. Ou se é áristos, ou se renuncia à ética homérica. Impedida de toda possibilidade – impedido Narciso de pelo menos mergulhar para o afogamento, apaixonado pela imagem – a ética do guerreiro sucumbe às necessidades de uma Atenas corriqueira. E se a linguagem é condição de possibilidade da nossa experiência do mundo, eleva-se ao estatuto do transcendental a atitude sofística de desrespeito pelo significado das palavras. Mais precisamente, pelo significado homérico do vocabulário moral. O privilégio da opinião se deve ao direito de opinar; é a energia transformadora do dêmos. A ética homérica evolui, portanto, através de dois estágios essenciais: a desconstrução pelos sofistas, admirada por Sócrates e transmitida a Platão, que por sua vez se apropria desse espírito para elevar a Razão ao antigo estatuto do guerreiro, abrindo caminho à reconstrução da ética aristocrática, continuada por Aristóteles. O tí estín, o “que é” que se fecha num conceito, põe nele uma insegurança. Dela parte um ulterior perguntar na busca de outra forma de assentimento que não consistia na inércia e na autoridade da tradição. Conseqüência deste incessante diálogo com a linguagem mesma, os velhos conceitos éticos começam também a perder seu poder. (ÍÑIGO, 1998, p.42)

De acordo com o espírito sofista, toda definição pode ser questionada, toda resposta pode ser ironizada. Dessa possibilidade se alimenta a ironia socrática; mas é claro que diante da destruição do vocabulário mítico, Sócrates e Platão assumiram a reestabilizar, perseguidas

através nos

dos

diálogos

conceitos platônicos,

e

das a

tarefa de

definições

linguagem

sempre

destruída,

superando a arbitrariedade e o relativismo sofistas. “É preciso outra engrenagem social que não seja a da admiração e, sobretudo, o do acatamento. A aprendizagem, a teoria da paideía, será, efetivamente,

3 o motor que permita à sociedade seu imprescindível dinamismo.” (Íñigo, 1998, p.43) Um dos mais interessantes filósofos morais do séc. XX, R. M. Hare chamou atenção para a importância da história da Grécia contada por Tucídides na boa compreensão do pensamento de Platão. Até sua derrota em 405 a.C., Atenas dividia com Esparta os lados opostos de um combate constante. Hare nos lembra de que, na República, Platão fala do bom desempenho de seus irmãos na guerra, embora não haja registro suficiente para falarmos de um Platão soldado. Platão era um aristocrata e poderia ter servido na cavalaria ateniense; mas afora as especulações, já basta saber de sua posição social. Entre outras mudanças que provocou na Atenas derrotada, Esparta nomeou “Trinta Tiranos” para o novo governo oligárquico, entre os quais dois parentes de Platão: Crítias, primo de segundo grau, e Cármides, tio materno. Os democratas passam a demagogos, e o desrespeito sofista pela linguagem moral sofre um duro golpe: Esses fatores – o conflito político inescrupuloso e a expansão do relativismo moral – se reforçavam mutuamente. Tucídides, numa passagem filosoficamente penetrante, assinala que isso afetava até a linguagem em que se tinha de pensar. Em sua discussão dos efeitos da violência política, ele diz: “Ao justificar suas ações, eles [os políticos] revertiam os sentidos descritivos costumeiros das palavras”. Ele dá exemplos: o que teria sido chamado “uma negociata irresponsável” passou a ser chamado de “um empreendimento corajoso e amigável”. Esse processo, referido em termos similares na República (560d), é o mesmo que recebeu em tempos recentes o nome de “definição persuasiva”. Seu resultado imediato foi revirar a moralidade; porém, indiretamente, teve o efeito de estimular Sócrates e Platão a procurarem, em contrapartida, uma maneira de descobrir definições seguras das palavras morais ou das coisas que estas conotam. É por isso que os vemos perguntar: “O que então é a coragem?”; “O que é a retidão?”; e, de modo geral, “O que é o bem?” (Hare, 2000, p.14)

Nessa tensão – e na busca de uma solução dialética – entre uma ética do guerreiro presenteada pelos deuses e um relativismo

4 moral que fez da Atenas democrática uma cidade indefesa, não surpreende que um dos principais problemas da ética platônica seja aquela tão conhecida pergunta de Sócrates a Mênon: “Pode a Excelência ser ensinada?” (Platão, 2001, p.19). O que está em tensão aqui é, de um lado, a excelência moral do guerreiro, bendito pelas divindades, e, de outro, a excelência moral buscada por Platão, que não poderia depender de um arbítrio dos deuses. Para que a paideía pudesse existir e o homem grego pudesse ser formado, pelo esforço, pela aprendizagem, é preciso pedir licença aos deuses. A virilidade da ética aristocrática do indivíduo não pode ficar sem reformulações numa sociedade que descobriu a força transformadora do dêmos, as coisas da coletividade. Um problema filosófico vem à tona: aquilo que deve ser formado não pode ser do domínio da phýsis. Para Gregory Vlastos, phýsis é o termo chave na transição do mundo de Homero, Hesíodo, Arquíloco, Safo, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Heródoto e dos oradores para o mundo de Tucídides e, acrescentaríamos, de Platão. (Vlastos, 1987, p.21) Para o primeiro grupo, phýsis é um conjunto de características fixas e estáveis de uma coisa que estabelece os limites dentro do qual ela pode agir. Assim, em seu capítulo sobre o Egito, Heródoto apresenta a seus leitores gregos dois animais desconhecidos, através de descrições que começam: “A phýsis do crocodilo é deste tipo...”; “o hipopótamo tem uma phýsis desta forma...”. Ora, a partir do fato de que uma dada coisa tem uma phýsis, Heródoto não nos permite inferir que sempre a veremos na posse total dessa phýsis. Assim, é da phýsis de um crocodilo ter um rabo, mas não se segue daí que este crocodilo o terá: ele pode tê-lo perdido em uma briga ou de qualquer outra maneira. A única coisa certa para Heródoto é que, exceto pela intervenção do sobrenatural, sempre que as coisas interagem, as suas phýseis estabelecem os limites do que pode acontecer. (Vlastos, 1987, p.21-2)

Ora, é justamente esse determinismo garantido pela phýsis, que só pode ser vencido “pela intervenção do sobrenatural”, que

5 permite a valorização da ética do guerreiro e a interpretação de suas façanhas como intervenções divinas. Assim, quando ele ouve a história de que Hércules, quando veio ao Egito, foi agarrado por uma multidão e erguido a um altar para ser sacrificado, e então “mostrou sua força e matou a todos”, Heródoto pergunta: “Se Hércules era um homem, como eles admitem, como seria natural (κως φύσιν έχει) para ele [um só homem] matar muitos milhares?” Observe-se a força do condicional. Se Hércules não fosse homem, mas o semideus que se tornou depois de sua morte, essa pergunta não teria sido feita. Nisto Heródoto permanece dentro da visão tradicional, em que a phýsis estabelece os limites do possível para tudo, exceto para o sobrenatural. (Vlastos, 1987, p.22)

Em Platão, essa imanência da phýsis dá lugar ao kosmos. É preciso garantir que não haverá nenhuma intervenção divina na natureza,

senão

a

regularidade

do

universo

não

pode

ser

experimentada. Quando se fala, nas aulas de introdução à filosofia, da passagem do mito ao logos, se esquece de que por trás do kosmos platônico está o artista metafísico, o Demiurgo. A diferença, aqui, é simplesmente a garantia de que o Demiurgo já realizou o que deveria ser realizado, e não intervém arbitrariamente no mundo. Ora, por um momento poderíamos pensar estar falando de Leibniz. Além disso, ouvi do meu nobre colega, Prof. Fábio Tenório, que este estado de coisas explica melhor o espanto grego ao qual se atribui o nascimento da filosofia. Se um deus pode intervir arbitrariamente no mundo, não há razão para espantos. Portanto, está dado o primeiro passo na reconstrução da ética desconstruída pelos sofistas: mesmo que haja deuses, e eles realmente existem, não ocorre que eles intervenham no mundo, na phýsis de cada coisa nem na regularidade do kosmos. Mas, se

exclusivamente

a

intervenção

sobrenatural pode

explicar a perturbação da imanência da phýsis, para reconstruir a ética e afiançar a formação do homem grego, não basta que a moral seja sonegada das mãos dos deuses, como bem-aventurança, é

6 preciso ainda postular uma instância que escape ao enclave regular e austero da phýsis. Noutras palavras, para que a ética possa ser ensinada e adquirida por esforço e aprendizagem, pela formação, é necessário não apenas interpretá-la como assunto humano, mas também como algo não encerrado nos limites do preestabelecido pela natureza. O homem deve ser mais que phýsis. Deve ser natureza e mais alguma coisa capaz de desenvolvimento e aprendizado. Esse segundo componente será a alma. Como narra o mito da expiação de Perséfone, uma alma ainda maculada por um velho erro, regressava à Terra no nono ano, condenada a passar novamente pelo desafio de viver de modo correto. Nasce, então, o dualismo essencial do platonismo. Com a alma aparece a solução daquela aporia da impossibilidade de conhecer o Ser a partir do nada. O conhecimento é possível mediante a retrovisão da verdade que a alma experimentou no Hades. A ciência é rememoração dessa passagem. A psiché é imortal e, tendo nascido muitas vezes, não há nada que ela não tenha aprendido, tanto das coisas da Terra quanto das coisas do Hades. Como bem sentenciou Pe. Vaz, no tema da psiché socrática, vemos lançado o pressuposto antropológico que acompanhará doravante, num sem-número de concepções do homem, a história da Ética. (Vaz, 1999, p.96). Entra em cena, neste momento, o escravo de Mênon; e é em diálogo com o escravo que Sócrates consegue convencer Mênon de que o conhecimento é rememoração, somente pelo método da inquirição contínua

e direcionada, pela qual o escravo acaba

chegando à verdade “por si mesmo”. Nesse ponto, a virtude é identificada com a alma, quer dizer, pertence às questões da alma, cuja verdade está nela. O problema colocado por Sócrates é aceito de bom grado por Mênon, a saber, o de poder a virtude ser ensinada caso pertença àquelas coisas da alma que se possa chamar de ciência. A natureza não aprende, a psiché aprende. O determinismo

7 da phýsis dá lugar à liberdade da alma. Não há nada de novo debaixo do sol, apenas na mente do homem. Aparece, pois, na intimidade do homem, um espaço não preenchido pela phýsis, um amplo domínio de possibilidade que temos que quebrar, abonar e construir. O termo eleuthería (liberdade) encontra aqui seu adequado contexto. Provavelmente, se deve à sofística o descobrimento da maleabilidade da psiché. (Íñigo, 1998, p.43)

 A primeira coisa sobre a formação moderna diz respeito, portanto, à própria idéia de formação em geral. A segunda coisa que seria preciso dizer sobre a formação do homem moderno, esta sim, estritamente moderna, é que a arte tornou-se o melhor modo de desrespeitar a linguagem. Para bem compreender esta segunda formulação é preciso aceitar a inevitável mudança que provocou, na nossa relação com a linguagem moral, a queda da visão de mundo tradicional durante o Renascimento. Tornaram-se bem conhecidas as análises de Weber sobre o processo de “desencantamento do mundo”, pelo qual as imagens religiosas dão lugar a domínios axiológicos distintos racionalmente motivados. Consolidam-se, no mundo moderno, a ciência de cunho objetivista, a moral universalista e a arte autônoma. Cada uma dessas

esferas

enfrenta

um

processo

de

autonomização

e

especialização crescentes. Filosoficamente, o principal problema desse processo são as crises sistemáticas de legitimidade tanto na justificação da objetividade do conhecimento científico, quanto na justificação das ações morais e das normas jurídicas e, ainda, na justificação da pretensão de autenticidade das obras de arte e do discurso da crítica estética. A gênese dessa situação é interpretada, pela filosofia do discurso, como dupla: de um lado, o distanciamento do vocabulário e do jogo de linguagem de cada uma destas esferas

8 em relação ao pano de fundo normativo da comunicação cotidiana, o mundo da vida. Trata-se de uma cultura de experts ; de outro lado, a necessidade de mecanismos de integração sócio-lingüística falhos, como o dinheiro e o poder. Jürgen Habermas, por exemplo, acolhe o acontecimento moderno como irreversível, mas isso não quer dizer que o desenvolvimento das esferas autônomas, seja no nível individual

(ontogenético),

seja

no

nível

do

gênero

humano

(filogenético), obedeça a uma lógica austera, como no modelo da dialética hegeliana. O conceito hegeliano de formação (Bildung) não seduz

uma

modernidade

fragilizada

por

processos

de

desaprendizagem, uma modernidade que sofreu intensos golpes tanto da dialética imanente do esclarecimento quanto da crítica desconstrucionista. Pelo contrário, Habermas rejeita uma lógica estritamente organizada do aprendizado, mas não pode deixar de estabelecer uma perspectiva genética da formação do moderno espírito científico, da moderna consciência moral e da arte moderna, sob o preço de recair em problemas de auto-fundamentação ou fundamentação última. É então que ele se apropria das pesquisas psico-empíricas de Piaget sobre a formação da consciência teórica, e de Kohlberg, sobre a formação da consciência moral. As pesquisas de Piaget com crianças, ao identificar etapas e esquemas na transição de formas elementares da inteligência até as mais maduras, apóia uma certa hierarquia dos estágios cognitivos que sustenta o interesse de Habermas pela reconstrução de uma ciência objetiva. Da mesma forma, os estágios descritos por Kohlberg na formação da consciência moral apontam para uma consolidação, tanto em nível ontogenético quanto filogenético, da perspectiva universalista da moral. Aqui relativismo

poderiam-se neo-sofístico

encontrar de

um

fundamentos

para

Rorty,

exemplo.

por

rejeitar

o

Nossa

perspectiva é a de que o desrespeito pela linguagem esbarra nos limites de um mundo da vida intersubjetivamente compartilhado e na

9 imposição fática de um télos imanente ao uso lingüístico, o consenso. Consideramos, porém, a abordagem genética suficiente para estes problemas

filosóficos,

uma

vez

verificadas

as

etapas

de

desenvolvimento no interior qual não podemos regredir. Isso significa que o desrespeito pela linguagem deixou de ser possível? Não. Tentarei demonstrar que este migrou para a esfera estética. Farei conduzir o leitor, a partir daqui, a uma etapa na história do

aprendizado

estético.

Isso

não

significa

uma

reconstrução

genética, no modelo de Piaget e Kohlberg. O próprio Habermas viu-se cético em relação a esta possibilidade. Parece-me realmente difícil falar de estruturas formais do aprendizado estético, seria muito mais adequado chamar as reflexões que farei a seguir de “história das idéias”, pois se trata, não de um aprendizado estético, mas de uma história do vocabulário que a filosofia dedicou a este domínio de valor. Resumidamente, no período da Restauração inglesa (16601685), iniciou-se uma reação contundente às regras estéticas acadêmicas herdadas da antiguidade. Isto aconteceu, principalmente, porque os poetas da época exerciam também a árdua tarefa, não menos impetuosa, da crítica literária. É o caso de John Dryden (16311700), Sir Willian Temple (1628-1699), Willian Wotton (1666-1727), Alexander Pope (1688-1744), por exemplo, todos expoentes da famosa querelle des anciens et des modernes. Neste ambiente, pois, tem origem a idéia de que a beleza e a qualidade literárias não se baseavam nas rígidas regras acadêmicas. No entanto, contra a paupérrima alternativa de reduzir a crítica literária às preferências pessoais, continuavam a acreditar que uma avaliação objetiva era possível. Neste contexto, Anthony Ashley Cooper, conhecido como Conde de Shaftesbury (1671-1713), aparece com uma poderosa solução ao problema (cf. Brett, 1951). A descoberta do conceito de sensus communis pela estética foi, na verdade, um reaproveitamento de sua influente função na filosofia

10 moral através do conceito de “moral sense”. Algum conteúdo semântico deste conceito já se encontrava na característica de sociabilidade contida na idéia de urbanitas de Cícero, que significava um espírito urbano cheio de espirituosidade, inventividade e bom senso (cf. Schaeffer, 1990). Com efeito, em sua história, o sensus communis mostrou-se tão bem apropriado à constituição de um princípio estético que foi perdendo, pouco a pouco, a importância que representava, inicialmente, nas questões morais. Esta passagem decorre da instabilidade genérica do problema da prática, que inclui não somente a moralidade, mas tudo o que escapa ao horizonte teórico. Diante das circunstâncias concretas, que nem sempre estavam pressionadas por decisões morais, necessitava-se mais de sensibilidade do que de regras gerais. É assim que o conceito de sensus communis imiscui-se à noção integral de gosto, que inclui a idéia de um são entendimento capaz de julgar com bom senso o que é bom ou mau para o homem. Outro fenômeno que começa a perturbar o vocabulário moral é o aparecimento da moda (modus), referindo-se a um produto do gosto que rapidamente alcança uniformidade no comportamento da maioria

ávida

por

distinções

sociais

(Gadamer,

2004,

p.77),

sobretudo aquele que é o mais recente produto da vida industrial: a classe média. (Eagleton, 1993, p.33) O gosto entendido como armazém de saber tradicional pleno de conteúdo, crítico em relação ao vocabulário teórico, passa a ser compreendido em termos de uma faculdade de distinção estética, crítica em relação ao gosto vulgar. Para desempenhar esta versatilidade, o gosto mistura-se à idéia de gênio, e a esfera estética se autonomiza como domínio de uma racionalidade cujo conteúdo normativo pode ser verificado no conceito kantiano de uma conformidade a regras sem regra. (Kant, 1995) Entende-se assim a beleza como autenticidade, como o que está arranjado conforme a regras, mas cuja regra não pode ser explicitada num conceito, numa definição segura, como queria

11 Sócrates nos diálogos platônicos. Resume-se assim a passagem da arte tradicional à arte moderna, que é ao mesmo tempo uma passagem da perfeição à autenticidade. Da segurança à perturbação. Da fixidez à flexibilidade. Isso significa que só podemos desrespeitar a linguagem estética? Não, podemos desrespeitar qualquer vocabulário, em termos semânticos, mas traduzidos numa sintaxe estética. Isto é, a obra de arte entendida como abertura semântica ao mundo, como abertura lingüística de mundos possíveis, força as portas do sentido usual e tradicional do vocabulário tanto cognitivo quanto moral, na medida em que joga com ele numa sintaxe estética, nos arranjos de um jogo não completamente racionalizado, mas que mantém um namoro secreto com a natureza interna e os interesses mais íntimos do homem. Se a insujeição sofística contra o vocabulário moral está intimamente relacionada aos significados da submissão que a ética do guerreiro representava, não surpreende que o aprendizado estético, que representa hoje a abertura da linguagem e o espaço-tempo onde ela admite ser desrespeitada, seja tão obstruído em nossa cultura. O empobrecimento crescente da população engabelada com produtos culturais é digno de nota. Maior impedimento, ainda, representa nossa estrutura pedagógica e nossa relação com a capacidade estética das crianças, que impressionou Piaget: Dois fatos paradoxais surpreendem todos que estão acostumados a estudar o desenvolvimento das funções mentais e aptidões da criança. O primeiro é que muito freqüentemente a criança pequena parece mais talentosa do que a criança mais velha nos campos do desenho, da expressão simbólica como a representação plástica, participação em atividades coletivas espontaneamente organizadas e assim por diante, e, às vezes, no domínio da música. Se estudamos as funções intelectuais ou os sentimentos sociais da criança, o desenvolvimento parece ser mais ou menos uma progressão contínua, ao passo que, na esfera da expressão artística, pelo contrário, freqüentemente ficamos com a impressão de retrocesso (...). O segundo desses fatos, que em parte pode ser igualado ao primeiro, é que é muito mais difícil

12 estabelecer estágios regulares de desenvolvimento no caso das tendências artísticas do que no caso das outras funções mentais (...) Sem uma educação artística adequada que consiga cultivar esses meios de expressão e encorajar essas primeiras manifestações de criação estética, as ações dos adultos e as restrições da escola e da vida familiar muitas vezes conseguem refrear ou impedir essas tendências, ao invés de enriquecê-las. (Piaget, apud Gardner, 1997, p.43-4)

O psicólogo estadunidense Howard Gardner, que aqui cita Piaget, preocupado em reconstruir, no modelo do mestre francês, as etapas do aprendizado estético, aproveitou para apontar um fator imprescindível: a integração entre afeto e cognição. Julgo sintomática a crítica dos freudianos a Piaget, de ter negligenciado o elemento afetivo nas etapas do aprendizado cognitivo, para compreender as dificuldades apontadas por este no estudo do desenvolvimento da competência estética. De acordo com Gardner, “é mais provável conseguirmos a integração do afeto e da cognição se buscarmos as atividades em que o sentir e o saber são reconhecidos como estando entrelaçados, como as artes” (Gardner, 1997, p.34). Lembro ter ouvido uma vez de um antropólogo respeitado que as raízes etimológicas de “saber” e de “sabor” remetem no latim a uma origem muito aproximada. Mas, então, falta apenas definir o que é uma “educação artística adequada”. Precisamos voltar, acredito eu, a Kant. Com ele, descobrimos na definição do prazer na beleza como livre jogo entre imaginação e entendimento o elemento lúdico que precisamos para pensar a ligação entre saber e sabor. Para Kant, o homem é a única criatura que precisa ser educada e “por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação”. (Kant, 2002, p.11) Duas considerações antropológicas devem ser feitas. A primeira diz respeito ao fato de a beleza compartilhar com a educação a peculiar característica de ser um assunto exclusivamente humano. Do ponto de vista do animal,

13 tudo é sensação sem forma, objeto do mero agradável dos sentidos. Do ponto de vista de Deus, tudo é conhecido. Ora, a beleza necessita de uma certa “ignorância”, de um certo vazio que reside na impossibilidade de explicitar a regra que produziu a beleza que ajuizamos conforme a regras em geral. A beleza e a educação dependem da finitude humana. A segunda consideração é que elas compartilham a propriedade de ser uma capacidade do homem mobilizadora de todo seu ânimo (Gemüt). “Gemüt” em Kant significa o que entendemos por psiché, isto é, “alma”, “espírito”, “mente”, do latim animus. Em resumo, uma capacidade disposta em nós pela natureza para ser desenvolvida, aperfeiçoada, exercida e cultivada. Em suma, a alma é aquilo que em nós é capaz de cultura, é o que deve

ser

formado.

Todas

as

faculdades

transcendentais



sensibilidade, imaginação, entendimento, razão – estão reunidas no ânimo. Curiosamente, a definição kantiana da beleza como jogo livre entre as faculdades, contém justamente a idéia de uma atividade exercida conforme a regras, mas cuja regra não pode ser explicitada. Como já disse, trata-se do domínio da autenticidade. Na experiência da beleza, tanto natural quanto artística, nenhuma faculdade do ânimo sobrepõe as outras, pois ocorre um jogo livre entre elas, donde a possibilidade abertura semântica de mundos possíveis. É o oposto da cognição efetiva, que só acontece na presença de um conceito do objeto, caso em que o entendimento exerce domínio sobre a totalidade do ânimo, limitando a sensibilidade e a completa capacidade de síntese da imaginação. No gosto, a validade universal não é garantida pela objetividade do conceito, mas pelo caráter comunitário, isto é, comunicativo de um sentimento conseguido livremente, pois, assim como não há coerção do entendimento, também não há coerção da sensibilidade e, portanto, a experiência da beleza não tem fundamento apenas privado. A relação do gosto com o aprendizado em Kant é impressionante. O ajuizamento da beleza só é possível na medida em que o ânimo joga livremente, sem

14 coerção do gosto meramente sensível, que é justamente aquele de que são capazes os outros animais. A capacidade de experimentar beleza distingue o homem do animal, assim como o distingue de Deus. É uma compensação pela finitude humana, uma freie Gunst, como apontou Heidegger, uma dádiva, uma graça. Vejamos o que diz Kant em suas lições de pedagogia: “A parte positiva da educação física é a cultura. Por ela o homem se distingue do animal. A cultura consiste notadamente no exercício das forças do ânimo (Gemüt)”. (Kant, 2002, p.53) Portanto, o cultivo das forças da alma não diz respeito apenas ao aprendizado teórico ou à formação da consciência moral. Se não queremos que nossos jovens sejam formados por estruturas conceituais estanques, urge a investigação do que seja uma “educação artística adequada”, pois, tendo em vista o estado de coisas descrito acima, apenas pela capacidade de jogar livremente com as representações científicas e morais, argumentativamente seguras, podemos torná-las maleáveis e prontas para a novidade e para uma abertura semântica. Isso dependerá do desenvolvimento de uma competência estética que estamos até agora acostumados a desestimular nos mais jovens.1

Bibliografia BARBOSA, R. J. C. Competência estética, consciência moral e linguagem. In: Ricardo José Corrêa Barbosa; Luiz Bernardo Leite Araújo. (Org.). Filosofia prática e modernidade. Rio de Janeiro, 2003, v. 1, p. 27-52. BRETT, R. L. La filosofía de Shaftesbury y la estética literaria del siglo XVIII, Buenos Aires: Universidad Nacional de Córdoba, 1951.

1

Julgo apropriado assumir aqui a minha dívida para com o texto profundo e instigante do Prof. Ricardo Barbosa acerca da possibilidade de reconstrução de um aprendizado estético. (BARBOSA, 2003). Aproveito para remeter o leitor às publicações do Prof. Barbosa sobre Schiller e sua contribuição a uma “educação artística adequada”. Gostaria de mencionar também o meu amigo Pablo Holmes, cujo manuscrito de um artigo sobre a aplicação da epistemologia genética ao discurso jurídico me foi muito valioso.

15 EAGLETON, T. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. GADAMER, H-G. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 2004. GARDNER, H. As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. HABERMAS, J. La Modernidad: un proyecto inacabado. In: Ensayos Políticos. Barcelona: Península, 1988. HARE, R. M. Platão. São Paulo: Loyola, 2000. ÍÑIGO, Emilio Lledó. Introducción a las éticas. In: ARISTÓTELES, Ética Nicomáquea. Madrid: Editorial Gredos, 1998. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. _______. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 2002. PLATÃO. Mênon. Trad. por Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. PUCRio-Loyola, 2001. SCHAEFFER, J. D. Sensus Communis. In: Vico, Rhetoric, and the Limits of Relativism. Durham/London: Duke University Press, 1990. VAZ, H. C. L. Escritos de filosofia IV – Introdução à ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. VLASTOS, G. O Universo de Platão. Brasília: UNB, 1987.

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