Arquitetura & urbanidade em revista resenha de luiz amorim Arquitetura & urbanidade, livro organizado pelo professor Frederico de Holanda, reúne um conjunto de estudos desenvolvidos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília por professores, estudantes e pesquisadores e aborda problemas relativos ao edifício e à cidade observados de um ponto de vista particular, como o próprio título sugere: urbanidade como uma propriedade essencial à arquitetura da cidade. Aqueles que conhecem o trabalho de Holanda sabem do rigor científico que o preside, mas também reconhecem a matriz que o sustém – a morfologia da arquitetura, campo de investigação relativamente recente que tem por interesse a identificação de propriedades estruturantes do ambiente construído e suas relações com o comportamento humano. A vertente investigativa abraçada por Holanda e seus colegas e colaboradores, fundamenta-se no pressuposto que sociedade e espaço são conceitos inseparáveis, porque ao falarmos de sociedade, necessariamente falamos na forma de sua realização, e quando falamos em espaço, tratamos de como ele é moldado para atender às demandas sociais. Portanto, ao estudarmos o espaço da arquitetura e da cidade, podemos entender suas dimensões. Para tanto, instrumentos específicos de representação e análise da arquitetura são utilizados, visando capturar os elementos estruturantes da cadeia de espaços que abrigam as diversas atividades humanas. Estes instrumentos, alguns de grande apelo visual – entendido aqui como capazes de serem apreendidos com precisão pelo olho humano e não no sentido de sedução pelo olhar – utilizam a matemática, particularmente a teoria dos grafos, para medir as relações entre as diversas unidades componentes dos sistemas espaciais. O resultado é um conjunto de informações quantitativas, expressas graficamente, que retratam as propriedades de acessibilidade, adjacência e visibilidade de cidades – sistemas públicos, contínuos e abertos; e de edifícios – sistemas privados, descontínuos e fechados. Os autores, no entanto, optaram por uma redação argumentativa que prescinde de longas discussões sobre fatores quantitativos, permitindo que o leitor pouco afeito aos jargões da tribo dos sintáticos (sim, ainda somos identificados como tal) transite pelo livro sem maiores dificuldades. Assim, Arquitetura & urbanidade é uma bela introdução para aqueles interessados no campo da morfologia da arquitetura, e da sintaxe espacial em particular, mas sempre tiveram receio de enfrentar nossos enfadonhos documentos analíticos. Caro leitor, é possível transitar em todos os capítulos sem se sentir encurralado por equações matemáticas, análises estatísticas maçantes e gráficos ininteligíveis (claro que equações, gráficos e tabelas estão presentes ao longo do livro mas, por favor, não se sintam traídos). A importância do livro também reside na abrangência do seu conteúdo. Alguns estudos são puramente analíticos, mas outros tratam de projetos urbanos e arquitetônicos fundamentados em estudos analíticos previamente desenvolvidos e em alguns princípios fundantes da sintaxe espacial, como a relação entre acessibilidade e movimento de pedestres (teoricamente formulada como “a lei do movimento natural”), entre configuração espacial e localização de atividades humanas (aquelas dependentes de movimento e aquelas que podem prescindir dele) e a utilização de tipos de arranjos urbanos historicamente constituídos como fonte para o desenho urbano. Dos primeiros, os de natureza analítica, deve-se destacar “A determinação negativa do movimento moderno”, onde Holanda apresenta uma das mais lúcidas análises dos efeitos das proposições urbanísticas modernas em nossas cidades, tomando como objeto central de discussão o tema do determinismo arquitetônico. Da face propositiva, deve-se ler com acuidade o capítulo escrito por Holanda e Barcellos sobre o projeto da super quadra SQN-109, em Brasília, de sua autoria. Aqui fica evidente como o conhecimento das propriedades configuracionais típicas das superquadras de Brasília e do padrão de comportamento dos que as habitam e visitam, revelado em capítulos anteriores do livro, são fundamentais para a construção de outro tipo espacial que subverte propriedades genotípicas brasilienses, para superar algumas daquelas determinações negativas do movimento moderno. No entanto, talvez o mais intrigante capítulo do livro é aquele em que o cientista Holanda observa o arquiteto Holanda na concepção de sua própria residência. Aqui emergem, naturalmente, diversos temas recorrentes na literatura, como a relação entre autor e obra; entre concepção e materialização de idéias; sobre a existência de padrões espaciais genotípicos em edifícios concebidos por arquitetos em oposição aos robustos padrões encontrados na
arquitetura vernácula, ou seja, a discussão sobre a relação entre padrões espaciais e funcionais culturalmente estabelecidos e aqueles gerados idiossincraticamente. Emerge, também, a pergunta se o arquiteto e o cliente não interfiririam para evitar um isento escrutínio do investigador. E esta questão parece-me importante discutir. Tive a oportunidade de visitar o advogado, filósofo e professor Evaldo Coutinho em companhia de Holanda, em Recife, novembro passado. Evaldo Coutinho, autor de importante estudo filosófico sobre a natureza ontológica da arquitetura, sintetizado em O espaço da arquitetura, foi professor de Holanda na antiga Faculdade de Arquitetura da atual Universidade Federal de Pernambuco. A nossa visita tinha o objetivo de reencontrar o mestre e um amigo de nossas famílias (Gastão de Holanda e Delfim Amorim tiveram uma rica convivência com Coutinho e Dona Giselda, sua esposa), mas também encontrar a raiz da sua (talvez minha, também) obsessiva investigação sobre a natureza espacial dos fenômenos arquitetônicos, e, naquela oportunidade, agradecer ao querido amigo por ter impregnado sua jovem mente com um problema tão instigante quanto este: o da própria natureza da arquitetura. Após a nossa visita, pareceu-me mais evidente o percurso do Holanda cientista e, mais ainda, aquele do arquiteto Holanda que encontrou em sua residência o domínio ideal para expressar suas dimensões analíticas e propositivas, e procurou demonstrar que, na realidade, eles – o arquiteto e o cientista – são um só, porquanto o criador e o perscrutador são faces daquele que compreende os limítes intrínsecos e exclusivos de um campo autônomo do conhecimento denominado arquitetura.