Marília de Dirceu – Tomás Antônio Gonzaga
Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela!
Lira I Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, d’ expressões grosseiro, Dos frios gelos, e dos sóis queimado. Tenho próprio casal, e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela!
Irás a divertir-te na floresta, Sustentada, Marília, no meu braço; Ali descansarei a quente sesta, Dormindo um leve sono em teu regaço: Enquanto a luta jogam os Pastores, E emparelhados correm nas campinas, Toucarei teus cabelos de boninas, Nos troncos gravarei os teus louvores. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte, Dos anos inda não está cortado: Os pastores, que habitam este monte, Com tal destreza toco a sanfoninha, Que inveja até me tem o próprio Alceste: Ao som dela concerto a voz celeste; Nem canto letra, que não seja minha, Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela!
Depois de nos ferir a mão da morte, Ou seja neste monte, ou noutra serra, Nossos corpos terão, terão a sorte De consumir os dois a mesma terra. Na campa, rodeada de ciprestes, Lerão estas palavras os Pastores: “Quem quiser ser feliz nos seus amores, Siga os exemplos, que nos deram estes.” Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura, Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Depois que teu afeto me segura, Que queres do que tenho ser senhora. É bom, minha Marília, é bom ser dono De um rebanho, que cubra monte, e prado; Porém, gentil Pastora, o teu agrado Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Os teus olhos espalham luz divina, A quem a luz do Sol em vão se atreve: Papoula, ou rosa delicada, e fina, Te cobre as faces, que são cor de neve. Os teus cabelos são uns fios d’ouro; Teu lindo corpo bálsamos vapora. Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, Para glória de Amor igual tesouro. Graças, Marília bela, Graças à minha Estrela! Leve-me a sementeira muito embora O rio sobre os campos levantado: Acabe, acabe a peste matadora, Sem deixar uma rês, o nédio gado. Já destes bens, Marília, não preciso: Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta; Para viver feliz, Marília, basta Que os olhos movas, e me dês um riso.
_______________________________________ Lira V Acaso são estes Os sítios formosos. Aonde passava Os anos gostosos? São estes os prados, Aonde brincava, Enquanto passava O gordo rebanho, Que Alceu me deixou? São estes os sítios? São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. Daquele penhasco Um rio caía; Ao som do sussurro Que vezes dormia! Agora não cobrem Espumas nevadas As pedras quebradas; Parece que o rio O curso voltou São estes os sítios?
São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. Meus versos alegre Aqui repetia: O eco as palavras Três vezes dizia, Se chamo por ele, Já não me responde; Parece se esconde, Casado de dar-me Os ais, que lhe dou. São estes os sítios? São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. Aqui um regato Corria sereno Por margens cobertas De flores, e feno: À esquerda se erguia Um bosque fechado, E o tempo apressado, Que nada respeita, Já tudo mudou. São estes os sítios? São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. Mas como discorro? Acaso podia Já tudo mudar-se No espaço de um dia? Existem as fontes, E os freixos copados; Dão flores os prados, E corre a cascata, Que nunca secou. São estes os sítios? São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. Minha alma, que tinha Liberta a vontade, Agora já sente Amor, e saudade, Os sítios formosos me agradaram, Ah! Não se mudaram;
Mudaram-se os olhos, De triste que estou. São estes os sítios? São estes; mas eu O mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera, que eu vou. _______________________________________ Lira XIV Minha bela Marília, tudo passa; A sorte deste mundo é mal segura; Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraça. Estão os mesmos Deuses Sujeitos ao poder impio Fado: Apolo já fugiu do Céu brilhante, Já foi Pastor de gado. A devorante mão da negra Morte Acaba de roubar o bem, que temos; Até na triste campa não podemos Zombar do braço da inconstante sorte. Qual fica no sepulcro, Que seus avós ergueram, descansado; Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos Ferro do torto arado. Ah! enquanto os Destinos impiedosos Não voltam contra nós a face irada, Façamos, sim façamos, doce amada, Os nossos breves dias mais ditosos. Um coração, que frouxo A grata posse de seu bem difere, A si, Marília, a si próprio rouba, E a si próprio fere. Ornemos nossas testas com as flores. E façamos de feno um brando leito, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, Gozemos do prazer de sãos Amores. Sobre as nossas cabeças, Sem que o possam deter, o tempo corre; E para nós o tempo, que se passa, Também, Marília, morre. Com os anos, Marília, o gosto falta, E se entorpece o corpo já cansado; triste o velho cordeiro está deitado, e o leve filho sempre alegre salta. A mesma formosura É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja, Mal chega a longa idade. Que havemos de esperar, Marília bela? Que vão passando os florescentes dias? As glórias, que vêm tarde, já vêm frias; E pode enfim mudar-se a nossa estrela. Ah! Não, minha Marília, Aproveite-se o tempo, antes que faça O estrago de roubar ao corpo as forças E ao semblante a graça. ______________________________________ Lira XXI Que diversas que são, Marília, as horas, Que passo na masmorra imunda, e feia, Dessas horas felizes, já passadas Na tua pátria aldeia! Então eu me ajuntava com Glauceste; E à sombra de alto Cedro na campina Eu versos te compunha, e ele os compunha À sua cara Eulina. Cada qual o seu canto aos Astros leva; De exceder um ao outro qualquer trata; O eco agora diz: “Marília terna”; E logo: “Eulina ingrata”. Deixam os mesmos Sátiros as grutas. Um para nós ligeiro move os passos; Ouve-nos de mais perto, e faz flauta C’os pés em mil pedaços. “Dirceu, clama um Pastor, ah! bem merece “Da cândida Marília a formosura. “E aonde, clama o outro, quer Eulina “Achar maior ventura?” Nenhum Pastor cuidava do rebanho, Enquanto em nós durava esta porfia. E ela, ó minha Amada, só findava Depois de acabar-se o dia. À noite te escrevia na cabana Os versos, que de tarde havia feito; Mal tos dava, e os lia, os guardavas No casto e branco peito. Beijando os dedos dessa mão formosa, Banhados com as lágrimas do gosto, Jurava não cantar mais outras graças,
Que as graças do teu rosto. Ainda não quebrei o juramento, Eu agora, Marília, não as canto; Mas inda vale mais que os doces versos A voz do triste pranto. _______________________________________ Cartas Chilenas são poemas satíricos, em versos decassílabos brancos, que circularam em Vila Rica poucos anos antes da Inconfidência Mineira, em 1789. Revelando seu lado satírico, num tom mordaz, agressivo, jocoso, pleno de alusões e máscaras, o poeta satiriza ferinamente a mediocridade administrativa, os desmandos dos componentes do governo, o governador de Minas e a Independência do Brasil. São uma coleção de treze cartas, assinadas por Critilo e endereçadas a Doroteu, residente em Madri. Critilo é um habitante de Santiago do Chile (na verdade Vila Rica), narra os desmandos despóticos e narcisistas do governador chileno Fanfarrão Minésio (na realidade, Luís da Cunha Menezes, governador de Minas até a Inconfidência Mineira). Por muito tempo discutiu-se a autoria das Cartas Chilenas. A dúvida só acabou após estudos de Afonso Arinos e, principalmente, de Rodrigues Lapa, comparando a obra com cada um dos elementos do "Grupo Mineiro", possíveis autores, quando se concluiu que o verdadeiro autor é Tomás Antônio Gonzaga e que Critilo é ele mesmo e Doroteu, Cláudio Manuel da Costa. Tem pesado semblante, a cor é baça, O corpo de estatura um tanto esbelta, Feições compridas e olhadura feia; Tem grossas sobrancelhas, testa curta, Nariz direito e grande, fala pouco Em rouco, baixo som de mau falsete; Sem ser velho, já tem cabelo ruço, E cobre este defeito e fria calva À força de polvilho, que lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo No gordo rocinante escarranchado! As longas calças pelo umbigo atadas, Amarelo colete e sobre tudo Vestida uma vermelha e justa farda. De cada bolso da fardeta pendem Listadas pontas de dois brancos lenços; Na cabeça vazia se atravessa Um chapéu desmarcado, nem sei como Sustenta o pobre só do laço o peso.
____________________________________ O Uraguai, poema épico de 1769, critica drasticamente os jesuítas, antigos mestres do autor Basílio da Gama. Ele alega que os jesuítas apenas defendiam os direitos dos índios para ser eles mesmos seus senhores. O enredo situa-se todo em torno dos eventos expedicionários e de um caso de amor e morte no reduto missioneiro. O Uraguai – Basílio da Gama Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. MUSA, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! ... Ao teu rei quer dar terras com mão larga Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes E outras, que tem por estes vastos climas; Porém não pode dar-lhes os nossos povos. E inda no caso que pudesse dá-los, Eu não sei se o teu rei sabe o que troca Porém tenho receio que o não saiba. Eu já vi a Colônia portuguesa Na tenra idade dos primeiros anos, Quando o meu velho pai cos nossos arcos Às sitiadoras tropas castelhanas Deu socorro, e mediu convosco as armas. E quererão deixar os portugueses A praça, que avassala e que domina O gigante das águas, e com ela Toda a navegação do largo rio, Que parece que pôs a natureza Para servir-vos de limite e raia? Será; mas não o creio. E depois disto As campinas que vês e a nossa terra Sem o nosso suor e os nossos braços, De que serve ao teu rei? Aqui não temos Nem altas minas, nem caudalosos Rios de areias de ouro. Essa riqueza Que cobre os templos dos benditos padres, Fruto da sua indústria e do comércio Da folha e peles, é riqueza sua. Com o arbítrio dos corpos e das almas O céu lha deu em sorte. A nós somente Nos toca arar e cultivar a terra, Sem outra paga mais que o repartido Por mãos escassas mísero sustento.
... Quando o ilustre espanhol que governava Montevidio, alegre, airoso e pronto As rédeas volta ao rápido cavalo E por cima de mortos e feridos, Que lutavam co’a morte, o índio afronta. Sepé, que o viu, tinha tomado a lança E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço A despediu. Por entre o braço e o corpo Ao ligeiro espanhol o ferro passa: Rompe, sem fazer dano, a terra dura E treme fora muito tempo a hástea. Mas de um golpe a Sepé na testa e peito Fere o governador, e as rédeas corta Ao cavalo feroz. Foge o cavalo, E leva involuntário e ardendo em ira Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse Que regada de sangue aos pés cedia A terra, ou que pusesse as mãos em falso, Rodou sobre si mesmo, e na caída Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre, Grita o governador; e o tape altivo, Sem responder, encurva o arco, e a seta Despede, e nela lhe prepara a morte. Enganou-se esta vez. A seta um pouco Declina, e açouta o rosto a leve pluma. Não quis deixar o vencimento incerto Por mais tempo o espanhol, e arrebatado Com a pistola lhe fez tiro aos peitos. Era pequeno o espaço, e fez o tiro No corpo desarmado estrago horrendo. Viam-se dentro pelas rotas costas Palpitar as entranhas. Quis três vezes Levantar-se do chão: caiu três vezes, E os olhos já nadando em fria morte Lhe cobriu sombra escura e férreo sono. Morto o grande Sepé, já não resistem As tímidas esquadras. Não conhece Leis o temor. Debalde está diante, E anima os seus o rápido Cacambo. ... O bom padre Balda Queria dar Lindóia por esposa Ao seu Baldetta, e segurar-lhe o posto E a régia autoridade de Cacambo. Estão patentes as douradas portas Do grande templo, e na vizinha praça Se vão dispondo de uma e de outra banda As vistosas esquadras diferentes. Co’a chata frente de urucu tingida, Vinha o índio Cobé disforme e feio, Que sustenta nas mãos pesada maça, Com que abate no campo os inimigos
Como abate a seara o rijo vento. Traz consigo os salvages da montanha, Que comem os seus mortos; nem consentem Que jamais lhes esconda a dura terra No seu avaro seio o frio corpo Do doce pai, ou suspirado amigo. ...
Co’a peregrina mão bárbaras flores. E busca o sucessor, que te encaminhe Ao teu lugar, que há muito que te espera.
Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindóia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim, sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e apresse no fugir a morte. Porém o destro Caitutu, que treme Do perigo da irmã, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Soltar o tiro, e vacilou três vezes Entre a ira e o temor. Enfim sacode O arco e faz voar a aguda seta, Que toca o peito de Lindóia, e fere A serpente na testa, e a boca e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. ...
Este é o rio, a montanha é esta, Estes os troncos, estes os rochedos; São estes inda os mesmos arvoredos; Esta é a mesma rústica floresta.
As vis astúcias de Tedeu e Balda, Cai a infame República por terra. Aos pés do General as toscas armas Já tem deposto o rude Americano, Que reconhece as ordens e se humilha, E a imagem do seu rei prostrado adora. Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive e goza a luz serena e pura. Vai aos bosques de Arcádia: e não receies Chegar desconhecido àquela areia. Ali de fresco entre as sombrias murtas Urna triste a Mireo não todo encerra. Leva de estranho céu, sobre ela espalha
Amor, que vence os tigre por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra o meu coração guerra tão rara, Que não me foi bastante a fortaleza.
______________________________________ Sonetos – Cláudio Manoel da Costa
Tudo cheio de horror se manifesta, Rio, montanha, troncos, e penedos; Que de amor nos suavíssimos enredos Foi cena alegre, e urna é já funesta. Oh quão lembrado estou de haver subido Aquele monte, e as vezes, que baixando Deixei do pranto o vale umedecido! Tudo me está a memória retratando; Que da mesma saudade o infame ruído Vem as mortas espécies despertando. ____________________________________ XCVIII Destes penhascos fez a natureza O berço, em que nasci! oh quem cuidara, Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza!
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano, A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano: Vós, que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei; que Amor tirano, Onde há mais resistência, mais se apura.