4. O BEIJO EU NÃO ESTAVA EM CONDIÇÕES SUFICIENTES PARA UMA FESTA,
mas obviamente eu não tinha condição social alguma para recusar um convite desesperado como aquele. Eu ainda não havia entendido o motivo do convite, que apesar de minha intromissão ao assunto, ela já conhecia toda uma rede social, faturada demasiada de pessoas. Por que eu teria qualquer que fosse, um interesse por ela? Seria o fato de ela justificar uma nova companhia? Viria eu a ser seu novo melhor amigo? Ou ela queria impressionar alguém com uma pessoa a qual não conhecesse, então não seria tão previsível. Não seria tão fácil dizer – ela não tem nada com aquele cara – não, ela não se atreveria a tanto. Já não sabia mais o que pensar de uma pessoa que eu nem conhecia ainda, e esperava saber suas reações, que relacionadas às minhas não eram simples assim de compreender. Ela realmente parecia se interessar por minha aceitação ao convite. E com todos esses pensamentos flutuando como balões sobre mim, talvez eu tornasse tudo muito transparente, e isso me dava medo. Mesmo assim eu já estava em minha casa escolhendo o melhor para ocasião – esvaziei o guarda-roupa inteiro em cima da minha cama – tentando não parecer desesperado. Mas era tarde. Minha mãe já estava na porta do quarto se preparando para as questões – que de fato poderiam levá-la a um cargo alto no ramo da reportagem – perguntas e mais perguntas. – Aonde você vai filho? Algum amigo novo, ou amiga... Você conseguiu fazer alguma amizade lá? – eu podia sentir seu entusiasmo crescendo freneticamente, como uma mutação transformando algo centímetro em um ser gigantesco.
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– É mãe, um amigo. – menti – Vou a uma festa. – Festa? – Não entendi muito bem, mas repentinamente eu vi seu sorriso voar pelo quarto extravasando pela fresta que se continha a janela semi-aberta, no momento seguinte ao que saltou do seu rosto. – Como assim festa? Assim rápido você conheceu um amigo que te chamou para uma festa, ou você acha que ele é seu amigo porque te chamou para essa tal festa? Onde fica esse lugar, quem é ele? – bravejou ela. Não respondi. O choque de sua repentina alteração de opinião sobre as pessoas com quem eu deveria sair, fez com que as palavras quebrassem, acomodando-as entre a garganta e a língua. Eu podia sentei-las em meu pescoço. Ainda estava em duvida a uma camisa preta engodada, com estampa azul e cinza, e uma babylook branca que parecia não combinar muito com a calça a qual eu vestia. – Você acha que visto essa, ou essa? – finalmente perguntei, tentando vitaliciamente mudar de assunto. – Você não respondeu a minha pergunta! – bufou ela. – E você não está me ajudando a fazer de um conhecido um amigo. Essa ou essa? – levantei novamente as duas camisas, ainda penduradas em cabides únicos de madeira. – A preta é mais bonita. – respondeu ela sem olhar para as camisas, como se já estivesse com uma resposta preparada sobre o assunto. Meu irmão que assistia tudo de camarote sem entender nada do que estava acontecendo de fato ali, disparou-se como uma bala de canhão porta afora, como se disso lhe dependesse a vida, e vazou pela casa até o portão. Então o mesmo ruído que lhe chamou a atenção me fez esquecer-se de tudo o que eu havia concentrado em toda uma vida, principalmente do caminho que levava aos meus pulmões. Então o único ar que me restara fugiu a força, quando um som de buzina de carro soou mais alto, depois de meu irmão ter deixado a porta aberta. – Deve ser para você – tentei convencer-me mais do que a ela mesma – você não vai atender e me deixar trocar de roupa em paz?
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– Claro – bufou ela – mas essa conversa ainda não está terminada, mocinho. Então olhei para o relógio acima de minha mesa de cabeceira e vi que ainda não havia passado o prazo combinado com Ana. Por um leve momento lembrei como se respirava e tentei guiar o ar a fazer o mesmo que eu – por um minúsculo momento. Ela não sabia onde eu morava. Mesmo assim eu estava histérico, não queria admitir que fosse uma garota que eu viria a encontrar, para não passar o mesmo que os senadores perante a mídia parlamentar. Então a porta abriu-se novamente e o meu ar fugira junto com o restante do ambiente. – Será que eu não posso ter um pouco de priva... ci... – não consegui terminar a palavra depois de ver minha mãe atravancando a porta com o sorriso que fugiu pela janela momentos antes, como se ele a esperara lá fora –... Dade... Ela nada disse, me fitando com um largo sorriso no rosto. E o silencio misteriosamente me abateu fisicamente, até ser quebrado pelos urros de meu irmão arrebatando porta adentro novamente. – O Thom ta namorando, o Thom ta namorando! – caçoava ele repetidamente. – Não é verdade – retruquei automaticamente. E por um instante senti a violência que essa palavra aterrava sobre mim. – Ela é só uma amiga que vai me fazer um favor. – continuei. Mas antes que eu pudesse pensar em qualquer resposta, meu irmão me flechou em uma só frase. – Ela me falou que foi ela quem te convidou – recordou-me Jullior. – Um favor. Um amigo, uma amiga. Afinal, essa tal... – Ana – sustentou meu irmão. Fazendo uma careta para mim ao ver minha expressão mudar, ameaçando a sua resposta. – Isso, Ana. Você e ela, bom, você sabe. Você gosta dela...? Quer dizer... – a repórter plantão havia voltado das férias, e eu não estava preparado para isso. – Mãe! – Eu só quero saber o que você e ela são.
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– Amigos. Por hora é só o que eu posso te dizer. – retruquei, tentando não transparecer meu interesse mutuo nela. Então Jullior, que para uma enorme surpresa – tanto minha quanto de minha mãe, que zanzava os olhos pelo quarto ao ver que ele não estava mais lá – havia chegado ao interfone, e estava conversando com ela, sem que notássemos. Eu tive medo de tentar descobrir o tempo que isso havia. – Thom, ela disse que os trinta minutos já se acabaram. Isso me soou como um alarme de treinamento de incêndio – que eram muito comuns no colégio – fazendo-me escorregar do quarto a porta, terminando de sibilar a palavra “tchau” quando eu já estava próximo ao portão. – Não sei que horas eu chego, então não me esperem – gritei, sentindo os dois olharem pesarem a minhas costas durante todo o percurso até o carro. – Atrasado. – cantarolou Ana por entre a janela aberta. – Como você...? – eu estava pasmo, fora pelo encontro inesperado, ou pelo Corvette Sport que estava estacionado em frente ao meu portão. – Achei sua casa? Fácil. – ela parecia se divertir com isso. – Você... Eu...! – eu ainda não havia encontrado as palavras. – Um Corvette? – soltei surpreso, pra diversão maior dela. – Se você entrar, talvez eu possa explicar no caminho, do contrario disso...! – começou ela e eu me perdi no seu familiar sorriso torto, que me derreteu toda a atenção, e nada respondi. – Estou falando com você Thom. Você está me ouvindo? – sussurrou ela curvando para o banco carona abrindo a porta – Terra chamando. – caçoou. – Ah, claro. – Acordei finalmente, entrando o mais rápido e desajeitado - que pude. Então seguimos silenciosamente para a festa. Aquele silêncio estava me massacrando, e eu estava curioso para saber como ela encontrara minha casa. Mas não queria ser eu a quebrá-lo. Então tentei questionar, falar algo, mas as palavras se agarraram em meio a minha língua e minha garganta – eu podia senti-las em meu pescoço – presa como se disso lhe
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dependesse a vida. Mas então logo me perdi entre as curvas que o azul fazia entre a estrada de cascalho polido, passando sob um túnel de galhos e folhas. O céu lá fora pontilhava entre as copas, e manchava um velho tom verde escuro de um negrume ponteado de estrelas. A lua flutuava no céu, branda e límpida, cheia e estonteante. Então senti o silencio me atingir novamente, sendo quebrado apenas pelo som do cascalho aterrado estalando sob o metal reciclado do carro, mas o silencio abrangia mais forte e o deixava quase inotável ali dentro. Ainda não havia passado por minha cabeça alguém que pudesse te dito-a meu endereço, nunca imaginara ninguém que a duas ruas acima me conhecesse alem do Garoto Calton, como havia dito James no bar. Não conhecia ninguém alem da rua, e nunca a havia visto antes. Por fim abri a boca e um sussurro saiu tentando chamar uma breve atenção. – Então... – disse por fim num sussurro que falhou o som da voz. – Monique – logo interrompeu automaticamente. – Eu... – hesitei. Seu sorriso desajeitado e levemente aconchegado me desprendia de qualquer atenção ao assunto que eu tentava levar ali. Era como se ela já esperara por minha pergunta com uma resposta já preparada para todo o assunto, ou assim como eu ela esperava por um fio fino e quebradiço de coragem e motivação para começar a falar – Quem? – Monique, sua vizinha. Eu a conheço. – Ah, quase explicado. – assenti perplexo, ainda olhando para fora da janela. Seu sorriso fugiu por um momento, dando espaço a um desamparo, enquanto ela aumentava sensivelmente a velocidade do veiculo. – Como assim quase explicado? – disse cirando o rosto para mim e no outro instante fitando a rua demasiada escura. – Como sabia onde eu morava por conhecer ela, se eu nunca te vi na minha vida fora daquele bar? – pelo menos eu saberia se já a tivesse visto antes. Disso eu tinha toda a certeza que nunca tive.
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– Eu já te vi algumas vezes, sempre sozinho, distante – seu sorriso se escondendo cada vez mais de seu rosto – passava por mim de cabeça baixa, e nunca me notava. E quando você finalmente olhou para parecia que tinha acabado de ver um fantasma, ou – baixou levemente a cabeça fechando firmemente os olhos – que eu era o fantasma. – Eu sei – foi só o que consegui responder. Pus as mãos ao rosto tentando imaginar o que falar. Eu não podia dizer a ela o que acontecia comigo, e podia muito bem ser verdade o que ela passou. Como eu poderia saber se ela era real quando eu supostamente olhei para ela? Como saberia se procurava não olhar, quando vários outros que por ali passavam não eram nada alem de frutos da minha mente, ou seres atordoados, Nos quais me aterrorizavam dia a dia? Então um lampejo do outro lado da rua me fez perceber que estávamos parados. Não fazia idéia de quanto tempo estávamos ali. Parecia instantes, que podiam ser vários minutos. Um carro atravessara ao nosso lado me fazendo perder o fio da conversa. Olhando pela janela pude ver algumas luzes no meio da negritude noturna – como se a lua não estivesse tão viva assim, era uma escura noite de lua cheia. – Desculpa, eu... Não pense que estou louca, eu... – gaguejou ela com seus olhos umedecendo aos poucos – Eu só queria entender. – Não precisa perder seu tempo, eu estou tentando fazer isso desde que nasci, e ainda não tive sucesso. – Você parecia tão triste e assustado aquele dia, mas parecia que tinha se assustado comigo, eu... – ela ainda não olhava para mim – parecia muito comigo em vários momentos da minha vida. – Vou entender se você não quiser entrar – disse tateando o vidro, apontado para as luzes que se entendia ao longo da escuridão – Eu acho que chegamos! – Ah sim, chegamos, mas... Importa-se se não entrarmos agora? – eu preciso de um tempinho para me acertar. Não quero que me vejam nesse estado. – seus olhos estavam ainda mais úmidos.
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– Claro. Mas você não parece estar tão contente de estar aqui – aquele não era eu, com certeza não – por que você não gosta de ficar com essas pessoas? – as palavras saíram automaticamente da minha boca, como se não fosse eu que as tivesse falado. Mas por algum motivo eu me sentia bem com ela. Diferente de outras pessoas, que me faziam sentir insignificante perto delas. Eu me sentia no seu mesmo nível. Meus dedos involuntavelmente foram até seu rosto e tiraram alguns fios de cabelos perdoados. – Você parece se relacionar tão bem com eles? – disse olhando-a. sua expressão agora era de deboche, ao mesmo tempo de consolo. – O que você sabe sobre meus relacionamentos? Não, eu não me relaciono bem com eles. – ela parecia bravia e insegura – Eu só tenho dois amigos, e uma multidão que me persegue. Mas ninguém alem dos meus amigos conseguem fazer com que eu fique bem. Não acho que você saiba o que é ter problemas de relacionamento, você fala tão bem com as pessoas. – No bar é profissional, é diferente. Pensei que poderia tentar compartilhar a sua situação, mas acho que é você que não sabe o que é ter problemas com todos os tipos de pessoas. – enfatizei – Eu é que tenho problemas de relacionamento. Não chega muito perto que pode ser contagioso – brinquei. Seu rosto ficou alegre e o sorriso torto que me encantava voltou, agora bem maior e mais alimentado que antes. – Eu achei que eu quem iria te contagiar. – brincou – E contagiou, mas com um pouco do seu antídoto ao meu problema. Ela nada respondeu agora, seus olhos indecifráveis tomavam todo o ar do carro em um calor fraternal. Eu poderia ficar assim o resto da noite, talvez dias. Se não fosse um pergunte que saltou de minha boca antes que eu pudesse perceber e aprisioná-la novamente. – Por que eu? Por que insistiu tanto que eu viesse? – Por que está perguntando isso? – Não sei, parecia tão importante para você que eu estivesse aqui. E eu me sinto tão diferente perto de você.
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– Eu não sei, eu queria estar com alguém diferente ao menos uma vez, mesmo assim parecia que eu já te conhecia há tanto tempo – ela parou e me fitou pensativa, e fiquei imaginando se o que passara na cabeça dela era o mesmo que na minha. – Eu sei me senti assim no momento em que entrei no carro. Era como se eu tivesse passado toda a minha vida entrando dentro desse carro, sabendo que você estaria dentro. Ela sorriu e fez-se silencio. – Mas não pense que sou assim com as outras pessoas. Na verdade eu não consigo, elas me fazem sentir inferior. Todos andam por ai, conversam sobre feitos que passaram juntos, conhecem pessoas novas, e eu passo a vida inteira com as mesmas pessoas a qual cresci, e quando finalmente conheço alguém, parece que já faz parte da família. – Seu irmãozinho é um amorzinho, falando nisso. – É, tenho que concordar. – disse meio constrangido. Novo silencio. O carro agora estava mais quente que antes, mas não um calor insuportável, um ambiente aconchegante, calmo e sereno. Podia passar o resto da vida ali, era para mim o verdadeiro paraíso. – Você tem certeza que nunca me viu antes? – perguntou Ana, interrompendo o silencio, agora como o corpo posto de lado, frente a mim. – Nunca reparou? – seu sorriso era malicioso e auto-ativo. – Não, não tenho. E juro que desejaria ter visto antes, se soubesse que seria tão bom assim. – as respostas do meu segundo eu vinham automáticas novamente, mas eu não fazia o menor esforço para tomar meu corpo de volta. Então ela encontrou os meus olhos, ergueu a mão e acariciou céu rosto. Perdi o fôlego e meu coração batucou dentro do peito. – Não vai se importar se eu tentar uma coisa vai? Eu sempre estive muito curiosa para saber como isso aconteceria. – seu rosto calmo se aproximando milimetricamente do meu.
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– Não – tentei responder, mas falhou e imagino que ela nem deva ter ouvido, então assenti. Seu rosto cada vez mais perto. Tremi, fechei os olhos e esperei. Acompanhei o calor que se aproximava de meu rosto, com medo de que aquilo não fosse real, de que se esvairasse a qualquer momento. Então seus lábios tocaram os meus, quentes, úmidos, trêmulos e tão nervosos e insaciáveis quanto os meus. Novamente meus pulmões pareciam ter saído de férias e a temperatura oscilou, meu coração desesperado tentava saltar fora do meu corpo. Senti novamente seus lábios e nada mais.
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