Título original em inglês: The Magician’s Land. Copyright © 2014 by Lev Grossman. Todos os direitos reservados. Publicado nos Estados Unidos pela Viking Penguin, um membro do Penguin Group (EUA) LLC, 2014. Sem edição oficial para a língua portuguesa. Capa Cristian Florescu & Ana Nicolau (Publicado pela ©Nemira, 2016 “Tărâmul magicianului” versão do livro na Romênia) Ilustração da Capa Tudor Popa (Publicado pela ©Nemira, 2016 “Tărâmul magicianului” versão do livro na Romênia) Revisão Iure Assunção Sarah Salvador Mapa Roland Chambers Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos são produtos da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é inteiramente coincidente. Esta é uma tradução não-oficial feita de fã para fã, disponibilizada com o objetivo de fornecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou qualquer uso comercial do presente conteúdo.
PARA HALCYON.
Para cima e avante! — C. S. Lewis, A Última Batalha
SUMÁRIO
Capa Folha de rosto Copyright Dedicatória Epígrafe Mapa Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Sobre o autor
CAPÍTULO 1
A carta dizia sobre uma reunião em uma livraria. Não era a melhor noite para isso: no início de março, chuva e frio, mas não o bastante frio para nevar. Nem era uma grande livraria. Quentin gastou quinze minutos observando-a de uma parada de ônibus à beira do estacionamento vazio, chuva batendo no telhado de plástico e fazendo o asfalto brilhar sob as luzes da rua. Não era uma daquelas livrarias extravagantes e peculiares, tinha um gato com pelos laranja no peitoril da janela e uma prateleira de raras primeiras edições autografadas e um excêntrico proprietário barbudo atrás do balcão. Era apenas uma filial de rede de livrarias de um shopping center, espremido entre um salão de beleza e uma loja de fantasias Party City, a vinte minutos de Hackensack, na rodovia de pedágio de Nova-Jersey. Satisfeito, Quentin atravessou o estacionamento. O enorme caixa barbudo não olhou para cima do telefone quando o sino tocou quando a porta se abriu. Dentro, você ainda podia ouvir o ruído dos carros na estrada molhada, como longas tiras de papel rasgando, uma após a outra. O único toque inesperado era uma gaiola em um canto, mas onde você esperava ver um papagaio ou uma cacatua lá dentro, tinha um pássaro gordo, de um azul quase preto. Tão pouco encanto havia essa livraria: tinha um corvo em uma gaiola. Quentin não se importou. Ainda era uma livraria, e ele se sentia em casa em livrarias, e não havia saboreado muito essa sensação ultimamente. Ele iria desfrutar. Ele passou pela exibição de cartões e calendários de gatos para a área onde os livros estavam, enquanto seus óculos estavam embaçando e seu casaco pingava no tapete fino. Não importava onde estivesse, se você estivesse em uma sala cheia de livros, você estava pelo menos a meio caminho de casa. A loja deveria estar vazia, sendo quase as nove em ponto de uma noite fria e chuvosa de quinta-feira, mas em vez disso estava meio cheia. Os clientes apreciavam o conteúdo das prateleiras em silêncio, cada um por conta própria, vagando lentamente através dos corredores como sonâmbulos. Uma menina de cara longa com um corte de cabelo estilo pixie estava lendo Dante em italiano. Um garoto alto com olhos grandes e curiosos que não tinha mais de dezesseis anos foi absorvido em uma peça de teatro de Tom Stoppard. Um homem negro de meia idade com pequenas e delicadas maçãs do rosto estava olhando as biografias através de óculos grossos e iridescentes. Alguém quase pensaria que tinham vindo comprar livros. Mas Quentin sabia que não era assim. Ele se perguntou se o assunto seria óbvio, se ele saberia no momento, ou se haveria algum truque para ele. Se ele teria que adivinhar. Ele estava se acostumando a ser um cão velho – completaria trinta este ano – mas esse jogo particular era novo para ele.
Pelo menos estava quente por dentro. Ele tirou os óculos e limpou-os com um pano. Ele os havia comprado alguns meses antes. Eles eram o preço de uma vida de leitura de letras pequenas, e eles ainda eram uma presença estranha em seu rosto: um para-brisa entre ele e o mundo, sempre escorregando pelo nariz e manchando de quando ele os empurrava de novo. Quando ele os colocou de novo, ele notou uma garota sardenta de uma beleza simples, estava parada em um canto, folheando um volume que parecia grande e caro, como livros de arquitetura. Desenhos de Piranesi: grandes câmaras, porões e prisões misteriosas com grandes moinhos de madeira. Quentin a conhecia. Chamava-se Plum. Ela sentiu que ele a observava e ergueu a cabeça, levantando as sobrancelhas com uma expressão surpresa, como se dissesse: “Você está brincando? – Você também está metido nisso?”. Quentin sacudiu a cabeça, muito ligeiramente, e desviou o olhar, fazendo questão de permanecer inexpressivo. Ele não quis dizer: “Não, não estou nisso, só acabei de chegar por às xicaras de café e os comentários mordazes sobre as poucas ironias da vida cotidiana”. O que ele queria dizer foi: “Vamos fingir que não nos conhecemos”. Dava a impressão de que ele iria ter um tempo livre, então ele se juntou às pessoas que estavam folheando, examinando as lombadas em busca de algo para ler. Os livros de Fillory estavam lá, é claro, nas prateleiras da seção para jovens adultos, com uma nova apresentação e uma nova imagem, com novas capas muito bem sucedidas que lhes deram a aparência de romances sobrenaturais. Mas Quentin não podia enfrentá-los naquele momento. Não está noite, não ali. Ele preferiu tirar uma cópia do O Espião Que Saiu do Frio e passou dez minutos satisfeito em um ponto de controle na cinza Berlim dos anos cinquenta do século XX. — Atenção, clientes do Bookbumblers! — disse o caixa no megafone, embora a livraria fosse pequena o suficiente para que Quentin pudesse ouvir perfeitamente sua voz sem amplificar. — Atenção! Bookbumblers irá fechar em cinco minutos! Por favor, façam suas seleções finais! Quentin devolveu o livro ao seu lugar. Uma mulher mais velha com um gorro que parecia que ela mesma havia tecido comprou uma cópia de A Primavera da Srta. Jean Brodie e saiu para a escuridão da noite. Um menos. O menino magro que tinha acampado com as pernas cruzadas na seção de romances gráficos, devorando-os, saiu sem comprar nada. Então ele também não. Um homem alto e de aparência rude, com cabelos Cro-Magnon e um rosto inexpressivo, analisava escrupulosamente os cartões de saudação, claramente meditando demais em sua decisão, no final ele comprou um. Mas ele não saiu. As nove em ponto, o caixeiro fechou a porta com a chave com um toque final e fatídico, e de repente Quentin tornou-se um monte de nervos. Estava em uma roda gigante e a barra de segurança havia caído, e era muito tarde para sair. Ele respirou fundo e fez um gesto, mas os nervos não desapareceram. O pássaro deslocou os pés nas sementes e excrementos do chão de sua gaiola e gritou uma vez. Foi um grito solitário, do qual você ouviria se você estivesse em uma zona de enchentes na chuva, perdido, enquanto escurecia rapidamente. O caixeiro caminhou até a parte de trás da loja – ele tinha que pedir permissão para passar ao lado do cara com os óculos iridescentes – e abriu uma porta de metal em que um letreiro avisava SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO.
— Por aqui. Parecia aborrecido, como se fizesse todas as noites, de modo que Quentin sabia que poderia ser o caso. Ao vê-lo de pé, Quentin se deu conta que era realmente enorme: cerca de dois metros de altura e um peitoral muito largo. Não super musculoso, mas de ombros largos e com aquela aura de lenta inexorabilidade que os homens grandes possuem naturalmente. Seu rosto era sensivelmente assimétrico: ele sobressaia de um lado, como se tivessem passado um pouco enquanto o enchia. Parecia uma abóbora Quentin ocupou o último lugar na fila. Ele contou mais oito, todos examinando ao seu redor com cautela e prestando atenção exagerada para não se empurrar, como se pudessem explodir por contato. Ele usou um pequeno feitiço de revelação para se certificar de que não havia nada de errado com a porta; ele colocou o polegar e o indicador juntos e colocou a mão na frente do olho como se fosse um monóculo. — Sem magia — disse o caixa. Ele estalou os dedos olhando para Quentin. — Ei, cara. Sem feitiços. Sem magia. Vários dos presentes viraram a cabeça. — Desculpe? Quentin se fez de tolo. Ninguém mais o chamou de “Sua Majestade”, mas não achou que ele estava pronto para responder “cara”. Ele terminou sua inspeção. Era uma porta e nada mais. — Pare com isso. Sem magia. Tentando sua sorte, Quentin virou-se e examinou o caixa. Através da lente, viu algo pequeno brilhando no bolso, um talismã que poderia ter sido relacionado ao desempenho sexual. O resto do homem também brilhava como se estivesse coberto de algas fosforescentes. Estranho. — Claro — Ele abaixou as mãos e a lente desapareceu. — Nenhum problema. Alguém bateu na janela com os dedos. Apareceu um rosto, indistinguível através do vidro molhado. O caixa balançou a cabeça, mas quem quer que fosse ele voltou a falar, mais alto. O caixa suspirou. — Que diabos… Ele abriu a porta da livraria e, depois de uma discussão sussurrada, deixou um homem de vinte e poucos anos, encharcado, seu rosto vermelho, mas, de outra forma, atraente ao estilo de um comentarista esportivo, vestindo uma jaqueta quebra-vento que era muito leve para o tempo. Quentin se perguntou onde ele tinha ficado vermelho em março. Todos entraram no quarto dos fundos. Era mais escuro do que Quentin esperava, e também maior; o setor imobiliário devia ser mais barato ali na rodovia. Havia prateleiras de aço cheias de livros com etiquetas de cores fluorescentes; duas mesas em um canto, as paredes em frente a eles estavam cobertas em horários de turnos e quadrinhos de Nova York; pilhas de caixas de papelão; um sofá quebrado; uma poltrona quebrada; um mini refrigerador – provavelmente também usado como uma mesa de descanso. Metade do espaço foi desperdiçada. A parede dos fundos era uma persiana de aço que se abria para uma doca de carga. Por outra porta na parede à esquerda estava chegando outro pequeno grupo de pessoas, com um aspecto igualmente cauteloso. Quentin viu outra livraria atrás delas, uma mais linda,
com lâmpadas antigas e tapetes orientais. Talvez ela também tivesse um gato com pelos laranja. Ele não precisava de magia para saber que não era uma porta, mas um portal para outro lugar, localizado a uma distância arbitrária. Lá ele encontrou uma junção reveladora de luz verde, fina como um cabelo, ao longo de uma borda. Na realidade, a única coisa atrás dessa parede era a Party City. Quem eram todos eles? Quentin tinha ouvido falar de números como esses antes, testes de mercado cinza de magia, prestação de serviços, mas nunca tinha visto nada igual. Claro, ele nunca pensou em assistir a algo assim, nem mesmo em um milhão de anos. Ele nunca pensou que chegaria a isso. Esse tipo de coisa era para as pessoas na periferia do mundo mágico, as pessoas que procuravam entrar, ou aqueles que, de uma forma ou de outra, tinham perdido o equilíbrio e escorregado do brilhante e acolhedor centro das coisas para as frias margens do mundo real. Até uma livraria em Hackensack em um dia chuvoso. Nada disso era para pessoas como ele. Exceto que agora ele estava ali. Havia chegado a isso. Era um deles, esse era o seu povo. Seis meses antes, ele era rei em uma terra mágica, em outro mundo, mas tudo acabou. Ele tinha sido expulso de Fillory, e tinha sido chutado muito desde então, e agora ele era apenas outro esforçado lutador, tentando subir de novo na encosta escorregadia, de volta para a luz e calor. Plum e o homem com óculos iridescentes se sentaram no sofá. Rosto vermelho escolheu a poltrona quebrada. Penteado Pixie e o leitor adolescente de Stoppard estavam sentados em caixas. O resto permaneceu em pé – havia doze, treze, catorze ao todo. O caixa fechou a porta cinza atrás deles, eliminando o último barulho do mundo exterior e fechou o portal. Ele tinha levado a gaiola com ele; colocou-a em cima da caixa de papelão e a abriu para deixar sair o corvo. O animal olhou ao redor, balançando primeira uma perna e depois a outra, como costumam fazer os pássaros. — Obrigado a todos pela vinda — disse ele. — Serei breve. Isso não era esperado por ninguém. A julgar pela onda de estupefação que atravessava a sala, Quentin não foi o único surpreso. Não se encontravam muitos pássaros que falavam na Terra, isso era mais uma coisa de Fillory. — Estou procurando um objeto — disse o pássaro. — Preciso de ajuda para obtê-lo de seus donos atuais. As penas do corvo brilharam levemente sob a luz do teto. Sua voz ecoou no armazém meio vazio. Era uma voz suave e afável, não absolutamente rouca como se poderia esperar de um corvo. Parecia incongruentemente humano; embora fosse uma fala sintetizada, que não tinha nada a ver com seu aparelho de fala real. Mas isso era magia. — Então, temos que roubar — disse um cara indiano. Ele não disse isso como se o incomodasse, ele só queria um esclarecimento. Ele era mais velho do que Quentin, talvez com quarenta anos de idade, calvo e vestindo um suéter de lã espantosamente multicolorido. — Roubar — disse o pássaro. — Sim — Recuperar ou roubar? — Qual a diferença? — Só gostaria de saber se somos os maus ou os bons. Quem de vocês tem um direito
legítimo sobre o objeto? O pássaro inclinou a cabeça, pensativo. — Nenhuma das partes tem um direito completamente válido — disse ele. — Mas se isso muda alguma coisa, nosso direito é superior ao deles. Isso pareceu satisfazer o indiano, embora Quentin se perguntasse se teria algum problema de outra forma. — Quem é você? — disse alguém em voz alta. O pássaro ignorou isso. — Qual é o objeto? — perguntou Plum. — Vou contar depois que aceitar o trabalho. — Onde está? — perguntou Quentin. O pássaro mudou o peso do corpo de trás para frente. — Está no nordeste dos Estados Unidos. — Meio que estendeu as asas no que poderia ser um encolher de ombros de um pássaro. — Então você não sabe — disse Quentin. — Então, encontrá-lo é a parte do trabalho. O pássaro não negou. Penteado Pixie inclinou-se para frente, o que não era fácil no sofá quebrado e menos com uma saia curta. Ela tinha cabelos pretos com destaques violetas, e Quentin notou um par de tatuagens de estrelas azuis saindo das mangas, o tipo que você faz em um esconderijo de bruxos marginais. Ele se perguntou quantas mais ela teria por baixo. Também se perguntou o que ela havia feito para terminar ali. — Então, vamos procurar e roubar e imagino que provavelmente vamos lutar no meio disso. Que tipo de resistência você espera? — Você pode ser mais específica? — Segurança, quantas pessoas, quem são, se são perigosos. Isso é bastante específico? — Sim. Estamos esperando dois. — Dois magos? — Dois magos, além de alguns membros da equipe civil. Nada extraordinário que eu conheça. — Que você conhece! — O cara de rosto vermelho deu uma grande risada. Em um exame posterior ele parecia um pouco louco. — Eu sei que eles foram capazes de colocar um vínculo incorporado no objeto. O vínculo terá que ser quebrado, obviamente. A essa afirmação seguiu um silêncio atônito, então alguém soltou um suspiro de exasperação. O homem alto que estava comprando cartões de saudação resmungou como se quisesse dizer “dá pra acreditar nessa merda?”. — Eles devem ser inquebráveis — disse Plum com frieza. — Está nos fazendo perder tempo! — exclamou óculos iridescentes. — Nunca foi quebrado um vínculo incorporado — disse o pássaro, sem a mínima preocupação, ou as suas penas estavam um pouco irritadas? — Mas acreditamos que, em teoria, é possível com as habilidades adequadas e os recursos certos. Temos todas as habilidades que precisamos nesta sala. — E quanto aos recursos? — perguntou penteado Pixie.
— Os recursos podem ser obtidos. — Então, isso também faz parte do trabalho — disse Quentin. Contou com os dedos. — Obter os recursos, encontrar o objeto, quebrar o vínculo, pegar o objeto, lidar com os donos atuais. Correto? — Sim. O pagamento é de dois milhões de dólares pra cada um, em dinheiro ou em ouro. Cem mil dólares esta noite, o resto somente quando tiverem o objeto. Tome suas decisões agora. Tenha em mente que, se você rejeitar o trabalho, não pode falar sobre a reunião de hoje com ninguém. Satisfeito por ter deixado claro, o pássaro voou para pousar em cima de sua gaiola. Era mais do que Quentin esperava. Provavelmente neste mundo, um mago tinha maneiras mais fáceis e seguras de ganhar dois milhões de dólares, mas não havia tantos que eram tão rápidos ou estavam bem na sua frente. O dinheiro não era tudo no mundo mágico, mas havia momentos em que você precisava de dinheiro e esse era um deles. Ele tinha que voltar para a crista da onda. Ele tinha trabalho a fazer. — Quem não estiver interessado, por favor, saia agora — disse o caixa. Não havia dúvida de que se tratava do tenente do pássaro. O Cro-Magnon se levantou. — Boa sorte — Ele revelou ter um forte sotaque alemão. — Você vai precisar disso, hein? Ele jogou o cartão no meio da sala e saiu. O cartão pousou virado para cima: FIQUE BEM LOGO. Ninguém o pegou. Cerca de um terço dos ocupantes da sala foi com ele, em busca de outras oportunidades e ofertas melhores. Talvez essa não fosse à única convocatória que havia na cidade naquela noite. Mas ela era a única que Quentin sabia, e ele não partiu. Ele observou Plum e Plum observou-o. Ela também não saiu. Eles estavam no mesmo barco, ela também estava desesperada. O cara de rosto vermelho estava de pé contra a parede, perto da porta. — Até logo! — disse a cada pessoa que passava ao seu lado. — Adeus. Quando todos os que decidiram ir saíram, o caixa fechou a porta novamente. O grupo foi reduzido para oito: Quentin, Plum, Pixie, Rosto Vermelho, Óculos Iridescentes, o adolescente, o indiano e uma mulher de rosto longo com um vestido solto e uma mecha de cabelos brancos sobre a testa; os dois últimos entraram pela outra porta. A atmosfera era ainda mais tranquila do que antes, e a sala transmitia uma estranha sensação de vazio. — Você é de Fillory? — perguntou Quentin ao pássaro. Isso teve algumas risadas apreciativas, embora ele não estivesse brincando e o pássaro não ria. Também não respondeu. Quentin não conseguiu interpretar seu rosto; como todos os pássaros, ele tinha apenas uma expressão. — Antes de avançar, cada um de vocês deve passar por um simples teste de força e habilidade mágica — Anunciou o pássaro. — Lionel aqui — Acrescentou, referindo-se ao caixa. — Ele é um especialista em magia de probabilidade. Cada um de vocês jogará um jogo de cartas com ele. Se você ganhar, você passou no teste. Houve alguns ruídos descontentes ante esta nova revelação, seguida de outra rodada de olhares mútuos discretos. Da reação, Quentin supôs que não se tratava de uma prática padrão.
— Qual é o jogo? — perguntou Plum — O jogo é Push. — Você está brincando — disse Óculos Iridescentes, indignado. — Você realmente não sabe nada de nada? Lionel tinha tirado um baralho de cartas e estava embaralhando e cortando com fluidez, sem olhar, seu rosto inexpressivo. — Eu sei o que eu preciso — disse o pássaro friamente. — Se estou oferecendo muito dinheiro pra isso. — Bom, eu não vim aqui para jogar. O homem se levantou. — Bom, por que diabos você veio aqui? — perguntou Pixie com confiança. — Você pode sair a qualquer momento — disse o pássaro. — Talvez eu vá. Ele caminhou até a porta e colocou a mão na maçaneta, como se esperasse que alguém fosse detê-lo. Ninguém fez isso. Ele saiu e a porta se fechou atrás dele. Quentin observou Lionel embaralhar. Era óbvio que o homem sabia como manejar um baralho; as cartas saltavam ao seu redor em suas mãos compridas, de maneira limpa e clara. Ele tinha a habilidade de um profissional. Quentin pensou sobre o exame de admissão para Brakebills, quando foi? Há treze anos? Não estava demasiado orgulhoso para enfrentar um exame naquela vez. E, claro, ele não estava agora. E ele havia quase sido um profissional nisso. As cartas eram magia de palco, magia de proximidade. Foi aí que ele começou. — Muito bem — disse Quentin. Ele se levantou e flexionou os dedos. — Vamos fazer isso. Arrastou ruidosamente uma cadeira de uma escrivaninha e sentou-se na frente de Lionel. Como uma cortesia, Lionel ofereceu-lhe o baralho. Quentin aceitou. Ele se limitou a embaralhar de uma forma básica, tentando não parecer muito habilidoso. As cartas eram rígidas, mas não completamente novas. Elas tinham as habituais proteções industriais anti-manipulação, nada que ele não tivesse visto antes. Ele estava de volta ao terreno familiar. Sem ser óbvio sobre isso, ele olhou para algumas poucas cartas e colocou-as aonde elas não iriam para a pilha de descarte. Fazia muito tempo, mas era um jogo com o qual sabia algumas coisas. Desde os dias em que o Push era um passatempo fundamental entre os Caras da Física. Era um jogo infantilmente simples. O Push era parecido com War – a carta mais alta ganha – com algumas reviravoltas estúpidas adicionadas para desempatar (você joga as cartas para um chapéu, quando você tem cinco, você marca como uma mão de pôquer, etc.). Mas a questão não era as regras; o Push era uma questão de trapaça. Havia muita magia estranha nas cartas; o baralho embaralhado não era uma coisa fixa, mas uma nuvem obscura de possibilidades, e nada era tão certo até que as cartas fossem realmente jogadas. Era como uma caixa cheia de gatos de Schrödinger dentro. Com um pouco de conhecimento mágico, você poderia alterar a ordem de saída das cartas; com um pouco mais, você poderia adivinhar o que seu oponente iria jogar antes dele jogar; com um pouco mais, você poderia jogar cartas
que de acordo com todas as leis de probabilidade pertenciam ao seu adversário, ou à pilha de descarte ou a outro baralho diferente. Quentin devolveu o baralho e começou o jogo. Começaram devagar, trocando cartas de baixo valor, trunfo simples, ambos mantendo suas mãos. Quentin contava as cartas de maneira automática, embora houvesse um limite para a utilidade que isso poderia ter; quando os magos jogavam, as cartas tinham formas de mudar de lado, e algumas que você pensou que foram usadas e estavam fora de jogo concebiam uma forma de voltar à vida. Quentin sentia curiosidade para saber que tamanho de talento era necessário neste tipo de operações, e ele estava revisando seus cálculos muito para o alto. Era óbvio que ele não iria dominar Lionel com força bruta. Quentin se perguntou onde ele se formou. Em Brakebills, provavelmente, assim como ele; havia uma qualidade precisa e formal em sua magia que não era vista em pessoas que saiam de esconderijos. Embora ainda houvesse algo diferente: tinha um gosto frio, acre e estranho que Quentin quase podia provar. Ele se perguntou se Lionel era tão humano quanto aparentava. Havia vinte e seis trunfos em um jogo de Push e, na metade, nenhum dos lados havia estabelecido uma vantagem. No entanto, no quatorze trunfo, Quentin passou: ele queimou parte de sua força para obrigar o rei a aparecer no topo do baralho, apenas para ser desperdiçado em um empate com Lionel. A jogada o deixou desequilibrado e perdeu os próximos três trunfos seguidos. Ele recuperou mais dois roubando cartas da pilha de descarte, mas as preliminares tinham acabado. A partir desse momento, seria uma briga de cães. O quarto se estreitou até que foi reduzido apenas à mesa. Fazia muito tempo que Quentin tinha visto seu espírito competitivo, mas ele estava acordando de um longo sono. Não iria perder esse jogo, isso não iria acontecer. Pressionado. Ele notou Lionel suando, tentando jogar cartas do baralho de não jogadas, e ele devolveu o golpe. Eles terminaram com os quatro ases em tantas outras mãos, todos descobertos, com unhas e dentes. Para se divertir, Quentin dividiu sua concentração e usou um feitiço simples para derrubar o amuleto sexual que estava no bolso do adversário. Mas se aquilo distraiu Lionel, ele não demostrou. Os campos da probabilidade começaram a flutuar de maneira perigosa em torno deles – invisíveis, mas você poderia perceber seus efeitos colaterais sob a forma de coincidências menores, mas muito improváveis. Brisas sutis agitaram os cabelos e roupas de ambos. Uma carta jogada para um lado pode pousar do lado e manter o equilíbrio ou girar sobre um canto. Uma nuvem se formou sobre a mesa, e um único floco de neve caiu. Os observadores recuaram alguns passos. Quentin ganhou um valete de copas com o rei e depois perdeu o próximo trunfo exatamente com as mesmas cartas invertidas. Ele jogou um dois, e Lionel jurou entre os dentes ao se dar conta de que alguma maneira tinha na mão uma carta extra que continha às regras do pôquer. A realidade estava se dissolvendo e derretendo no calor da partida. No penúltimo trunfo, Lionel jogou a dama de espadas, e Quentin franziu a testa: seu rosto tinha certa semelhança com o de Julia? Em qualquer caso, não havia uma dama de um olho só, menos ainda com um passarinho no ombro. Ele jogou seu último rei contra ela, ou pensou que fez isso: quando saiu se tornou em um valete, um valete suicida de fato, embora mais uma vez não existisse essa carta, e muito menos com cabelos brancos. Igual os seus.
Mesmo Lionel parecia surpreso. Algo tinha que estar alterando as cartas, era como se houvesse algum terceiro jogador invisível na mesa zombando dos dois. Com sua próxima e última carta, ficou claro que Lionel perdeu todo o controle de sua mão porque ela transformou-se em uma dama de nenhum termo conhecido, uma Dama de Vidro. O rosto da dama era celofane translúcido, azul safira. Era Alice ganhando vida. — Que merda! — exclamou Lionel, balançando a cabeça. Que merda, ele tinha razão. Quentin controlou seus nervos. A visão do rosto de Alice o abalou, congelou suas tripas, mas também lembrou o que ele estava fazendo ali. Não iria entrar em pânico. Não iria perder. Na verdade, ele iria tirar proveito disso: Alice iria ajudá-lo. A essência da magia de proximidade é um engano e, com Lionel distraído, Quentin tirou um rei de paus com dedos entorpecidos e colocou-o sobre a mesa. Ele tentou ignorar o terno cinza que o rei usava ou o ramo saindo do rosto. Havia terminado. Jogo e a partida. Quentin recostou-se e soltou um longo suspiro trêmulo. — Bom — disse o pássaro simplesmente. — Próximo. Lionel não pareceu contente, mas também não falou nada, apenas se agachou e pegou seu amuleto debaixo da mesa. Quentin se levantou e foi ficar de pé contra a parede com os outros, os joelhos fracos, o coração ainda correndo, acelerando além da linha vermelha. Ele estava feliz de sair vitorioso do jogo, mas ele já tinha pensado que seria. O que não pensou era que ele veria sua ex-namorada perdida há muito tempo aparecendo em uma carta. O que acabou de acontecer? Talvez alguém na sala soubesse mais sobre ele do que deveria. Talvez estivessem tentando expulsá-lo do jogo. Mas quem? Quem se importaria? Ninguém se importava se ele ganhava ou perdia, não mais. A única pessoa que se importava com Quentin naquele momento era Quentin. Talvez estivesse fazendo isso ele mesmo, talvez seu próprio inconsciente estivesse se afastando do chão e distorcendo seu feitiço. Ou era a própria Alice, onde quer que ela estivesse, fosse o que fosse, observando-o e se divertindo um pouco? Bom, assim seja. Ele estava focado no presente, era o que importava. Ele tinha trabalho para fazer. Estava recuperando sua vida. O passado não tinha jurisdição ali. Nem mesmo Alice. O cara de rosto vermelho ganhou seu jogo sem sinais de nada extraordinário. O mesmo fez o indiano. A mulher com a mecha de cabelo branco perdeu imediatamente, mordendo o lábio quando jogou uns evidentemente impossíveis cinco duques em uma fileira, e depois um coringa, então um cartão “Vá para a cadeia!” do Monopoly. O menino foi dispensado por algum motivo; o pássaro nem se quer o fez jogar. Plum também foi dispensada. Pixie passou o teste mais rápido do que qualquer um deles, porque ela era muito forte ou porque Lionel estava ficando cansado. Quando terminou, Lionel entregou a mulher que perdeu um punhado de notas de cem dólares pelo inconveniente. Ele entregou outro ao homem de rosto vermelho. — Obrigado pelo seu tempo — disse o pássaro. — Eu? — O homem olhou para o dinheiro na mão. — Mas eu ganhei. — Sim — disse Lionel — Mas você chegou tarde. E você parece ser um idiota. O rosto do homem ficou mais vermelho do que ele já estava. — Vá em frente — disse Lionel. Ele estendeu os braços. — Faça um movimento.
O rosto do homem se contorceu, mas ele não estava tão irritado ou tão louco para não poder calcular suas opções. — Foda-se! — disse ele. Esse foi o movimento dele. Ele bateu a porta. Quentin caiu na cadeira que o homem acabou de deixar vazia, embora estivesse molhada pela sua jaqueta quebra-vento. Ele sentiu-se solto e exausto. Ele esperava que tivesse acabado os testes, porque não confiava em si mesmo para lançar feitiços naquele momento. Faltava apenas cinco: Quentin, Plum, Pixie, o indiano e o menino. Isso pareceu muito mais real do que meia hora antes. Não era tarde demais, ele ainda podia ir embora. Ele ainda não tinha visto nada que decidisse quebrar o acordo, mas ele também não tinha visto nada para inspirar confiança. Poderia ser seu caminho de volta, ou poderia ser o caminho para algum lugar ainda pior. Ele passou muito tempo em coisas que não o levou a nenhum lugar e o deixou com as mãos vazias. Ele poderia sair voltar para a noite chuvosa, voltar ao frio e a água. Mas ele não fez isso. Era hora de mudar a situação. Ele ia fazer esse trabalho. Não que tivesse muitas ofertas melhores. — Você acha que vai ser suficiente? — perguntou Quentin ao pássaro. — Apenas cinco. — Seis com Lionel. E sim. Na verdade, eu diria que é o número exato. — Bom, não nos mantenha em suspense — disse Pixie. — Qual é o objeto? O pássaro não os manteve em suspense. — O objeto que estamos procurando é uma mala. Couro marrom, de tamanho médio, fabricada em 1937, com monograma RCJ. A marca é Louis Vuitton. A verdade era que ele tinha um sotaque francês bastante credível. — Engraçado — disse ela. — O que tem dentro? — Não sei. — Você não sabe? — Foi a primeira vez que o adolescente falou. — Então, por que diabos você quer isso? — Para descobrir — disse o pássaro. — Hã. O que significam as iniciais? — Rupert John Chatwin — disse ele resolutamente. O garoto parecia confuso. Seus lábios se moveram. — Não entendo — disse ele. — O C não deveria ir ao final? — É um monograma, idiota — disse Pixie. — O último nome vai ao meio. O indiano estava esfregando o queixo. — Chatwin — Ele tentou situar o nome. — Chatwin. Mas não é…? Claro que sim, pensou Quentin, embora não tenha dito nada. Ele não moveu um músculo. Com certeza que sim. Chatwin: esse nome lhe deu mais arrepios do que a noite, a chuva, o pássaro e as cartas lhe deram. Para ser justo, ele deveria ter passado o resto de sua vida sem ouvi-lo novamente. Ele não tinha mais direitos sobre ele, e vice-versa. Ele e os Chatwins tinham acabado. Mas, ao mesmo tempo, ouvir esse nome o encheu de uma espécie de alívio macabro, porque significava que não tinha acabado – Fillory, Plover, Whitespire, os Chatwin – ainda
deve haver algum último fio invisível e ininterrupto, conectando-os a ele. Algo mais profundo do que o luto. A ferida havia cicatrizado, mas a cicatriz não desapareceu, não completamente. Quentin sentiu-se como um viciado que acabou de captar o mais leve vislumbre de sua droga favorita, a substância pura, após um longo período de abstinência, e já estava saboreando sua recaída iminente com uma mistura de desespero e antecipação. O nome era uma mensagem, um tiro disparado na noite, enviada especificamente para buscá-lo através do tempo e do espaço, da escuridão e da chuva, do centro brilhante e acolhedor do mundo.
CAPÍTULO 2
Não deveria acontecer assim. Quentin tentou seguir em frente. Começou na Terra Nula, a cidade silenciosa de fontes italianas, e bibliotecas fechadas que ficam de alguma forma atrás e entre qualquer outro lugar. As fontes eram, na verdade, portas para outros mundos, e Quentin estava de pé encostado a que levava a Fillory. Eles acabaram de expulsá-lo daquele mundo. Ele permaneceu ali por um longo tempo, sentindo a aspereza fria da borda da pedra. Era tranquilamente sólido. A fonte era sua última conexão com sua vida antiga, aquela em que ele havia sido um rei em uma terra mágica. Ele não queria que acabasse; não teria acabado até que ele cedeu e se afastou. Ele ainda poderia tê-la um pouco mais. Mas não, ele não podia. Havia acabado. Ele deu um tapinha na fonte uma última vez e saiu pela cidade de sonhos vazia. Ele se sentiu sem peso e vazio. Ele deixou de ser quem ele era, mas não tinha certeza de como seria o próximo. Sua cabeça estava cheia do Fim do Mundo: o pôr do sol, a praia fina que se curvava infinitamente, as duas cadeiras de madeira desiguais, a fabulosa lua crescente, os cometas crepitantes. A última visão de Julia, saltando de cabeça desde o limite de Fillory, diretamente para o Outro Lado do Mundo, em seu futuro. Foi um novo começo para ela, mas ele chegou a um beco sem saída. Não havia mais Fillory. Não mais. Embora ele não estivesse tão longe que não percebeu o quanto a Terra Nula havia mudado. Antes sempre havia sido um lugar silencioso e sereno, preso sob uma redoma de calma e sossego sob um céu crepúsculo nublado. Mas algo aconteceu: os deuses voltaram para consertar a falha no universo que era a magia, e na crise que se seguiu o frasco da redoma se quebrou e o tempo e o clima a havia inundado. Agora o ar cheirava a chuva. Nuvens rasgadas deslizavam por cima e pedaços de céu azul eram refletidos tremidos em poças de neve derretida. O som da queda de água estava em toda parte. Relutantemente, com ressentimento, a Terra Nula estava tendo sua primeira primavera. Era uma estação de naufrágio e ruína. Ao redor de Quentin havia prédios sem telhado, à mercê dos elementos, com as prateleiras viradas para dentro como filas de dominó, expostas como as costelas de carcaças apodrecendo. As páginas perdidas rasgadas das bibliotecas da Terra Nula flutuavam e rodavam muito alto no vento. Ao cruzar uma ponte sobre um canal, Quentin viu que a água estava quase no nível das margens de cada lado. Ele se perguntou o que aconteceria se tivesse transbordado. Provavelmente nada. Provavelmente ele se molharia. Quando chegou à fonte que levava à Terra, ela também tinha mudado. A escultura em seu
centro era um grande lótus de bronze, mas na luta pela magia, um bando de dragões a usou para entrar na Terra Nula, e quando eles atravessaram a flor abriu as pétalas. Quentin pensou que talvez alguém já tivesse vindo consertá-la, mas, em vez disso, era a fonte que estava se consertando. A velha flor tinha murchado e caído de um lado, e uma nova flor de lótus de bronze estava se abrindo em seu lugar. Quentin estava analisando o novo broto da fonte, perguntando se os seus quadris estreitos e ossudos eram estreitos e ossudos o suficiente para passar por ela, quando algo tocou seu ombro. Em um ato de reflexo, ele o pegou no ar: era um pedaço de papel, uma página arrancada de um livro. A página era densa com escrituras e diagramas em ambos os lados. Ele estava prestes a soltá-la novamente, para devolvê-la ao vento, mas ele não fez isso. Dobrou-a em quatro e guardou-a no bolso de trás. Então ele caiu na Terra. ••• Estava chovendo na Terra, ou pelo menos estava chovendo em Chesterton: chovendo a cântaros, e fazia frio, uma monção de novembro na Nova Inglaterra. Por razões que só ele conhecia, o botão mágico tinha escolhido colocá-lo no exuberante subúrbio de Massachusetts, onde seus pais viviam, no amplo e plano jardim da frente da casa muito grande. A chuva martelava o telhado e escorria pelas janelas enquanto era vomitada pelos canos da calha. Suas roupas se encharcaram quase que imediatamente; na Terra Nula, ele ainda conseguiu cheirar o sal do mar de Fillory em suas roupas, mas naquele momento a chuva o dissolveu e o lavou para sempre. Em vez disso, Quentin sentiu o cheiro da chuva de outono do subúrbio: palha podre, terraços de madeira inchados, cachorros molhados, sebes respirando. Ele tirou o relógio de prata do bolso, o que Eliot o havia dado antes de deixar Fillory. Ele quase não olhou para ele antes – ele estava muito atordoado e zangado quando lhe disseram que ele tinha que sair – mas naquele momento ele viu que seu mostrador estava cheio de gloriosa profusão de detalhes: dois mostradores extras, um planisfério celestial em movimento; fases da lua. Era um lindo relógio. Ele pensou em como Eliot o havia colhido, de uma arvorezinha-relógio em Queenswood, e então ele o carregou e o manteve seguro durante todos os meses que ele passou no mar. Era um ótimo presente. Ele desejou ter apreciado mais na época. Embora tenha parado de funcionar. Estar na Terra não o fazia sentir-se bem. Talvez tenha sido o tempo. Quentin olhou para a casa escura de seus pais por um longo tempo, esperando sentir um impulso para entrar, mas esse impulso nunca chegou. Por mais escura e imensa que fosse a casa, não exercia nenhuma atração gravitacional nele. Quando pensava em seus pais era quase como se fossem velhos amantes, tão distantes agora que ele nem conseguia se lembrar de porque sua conexão com eles parecia tão real e urgente. Eles conseguiram a proeza de criar uma criança com o qual eles não tinham absolutamente nada em comum, ou se havia algo em comum, nenhum deles havia enfrentado o desafio de descobrir. Então eles se separaram tanto que o fio de prata que os conectava simplesmente havia sido quebrado. Se ele tinha uma casa em qualquer lugar, não era aqui.
Ele respirou fundo, fechou os olhos e entoou quatro longas e baixas sílabas enquanto descrevia um círculo longo com a mão esquerda. A chuva começou a deslizar através de uma lente invisível sobre sua cabeça e, se ele não se sentiu mais seco, pelo menos sentiu que ele havia dado o primeiro passo no longo e árduo caminho até a secura. Então, ele caminhou pela ampla calçada suburbana molhada. Ele não estava mais em Fillory e não era mais rei. Era hora de começar a viver sua maldita vida como todos os outros. Antes tarde do que nunca. Quentin caminhou meia hora até o centro de Chesterton, pegou um ônibus de lá para Alewife, pegou um metrô para a Estação do Sul e entrou em um ônibus de Greyhound para Newburgh, Nova York, ao norte de Manhattan, no rio Hudson, que era o mais próximo que poderia chegar a Brakebills de transporte público. Voltar foi mais fácil desta vez. Da última vez tinha ido com Julia, e entrou em pânico e desespero. Desta vez, ele não teve nenhuma pressa e sabia exatamente o que precisava: estar em algum lugar seguro e familiar, onde ele tinha algo a fazer, onde as pessoas conheciam a magia e o conheciam. O que ele precisava era de um trabalho. Ele ficou no mesmo motel que a última vez, depois pegou um táxi até a mesma curva na estrada e procurou o caminho pela floresta úmida. Havia chovido ali também, e cada galho e ramo que tocava molhava ele de novo com água fria. Ele não se incomodou em fazer nenhum feitiço visual. Ele supôs que o veria, e que, quando o visse, o reconheceria pelo que era. Tinha razão. Quentin viu um longo caminho pelas árvores: apenas um pedaço de luz solar perdida em um dia nublado. Quando ele se aproximou, a luz se quebrou em um oval de um ar mais claro e brilhante que pendia entre os ramos molhados. O oval moldou a cabeça e os ombros desencarnados de uma mulher, como um camafeu em um medalhão. Ela tinha quarenta e poucos anos, com olhos em forma de amêndoa, e embora Quentin não a reconhecesse, ela tinha o ar inconfundível alerta de um companheiro da magia. — Olá — disse ele, quando estava perto o suficiente para não ter que gritar. — Eu sou Quentin. — Eu sei — disse a mulher. — Você vai entrar? — Obrigado. Ela fez algo, um pequeno gesto em algum lugar fora do campo de visão, e o retrato assumiu a dimensão total. A mulher estava parada em um arco de luz de verão e grama cortada da sombria floresta do outono. Ela se afastou para deixá-lo passar. — Obrigado — disse ele novamente. Quando notou o ar do verão, as lágrimas de alívio inundaram inesperadamente os cantos dos olhos. Ele piscou e se virou, mas a mulher o pegou. — Você nunca se acostumou com isso, não é? — Não — disse ele. — Na verdade não. ••• Quentin foi pelo longo caminho, rodeando o labirinto - havia sido remodelado dez vezes desde a última vez que ele o conheceu - e caminhou até a Casa. Os corredores estavam em silêncio: era agosto, e não havia estudantes para falar, embora, se não tivessem completado a nova classe, eles ainda poderiam estar fazendo exames de admissão. O sol do início da tarde
caiu silenciosamente sobre os tapetes mais gastos das salas comuns. Todo o edifício dava a impressão de estar descansando e se recuperando após a catástrofe do ano letivo. Ele não sabia o que esperar de Fogg: a última vez que eles falaram não haviam se despedido nos melhores termos possíveis. No entanto, Quentin estava ali e apresentaria seu ponto de vista. Ele encontrou o reitor em seu escritório examinando relatórios de admissão. — Bom! — Ainda elegante e com cavanhaque, o homem mais velho fingiu surpresa. — Entre. Eu não te esperava ver tão cedo. Fogg sorriu, embora não se levantou. Quentin sentou-se cautelosamente. — Eu também não esperava — disse ele. — Mas é bom estar aqui. — É sempre bom ouvir isso. A última vez que te vi estava sendo seguido por uma bruxa marginal. Me diga, ela chegou aonde quer que ela estivesse indo? Ela chegou, embora por uma rota longa e tortuosa, e Quentin evitou entrar em detalhes sobre isso. Em vez disso, ele perguntou sobre o destino da equipe de balbúrdia de Brakebills, e Fogg informou-o com todos os detalhes que ele poderia desejar e muito mais. Quentin perguntou sobre o pequeno pássaro de metal que costumava habitar seu escritório, e Fogg explicou que alguém tinha feito sua tese de doutorado para transformá-lo em um ser de carne e penas de novo. Fogg tirou um cigarro e ofereceu outro para Quentin; Quentin aceitou; eles fumaram. Tudo estava sobre rodas, melhor do que Quentin esperava. Ele formou uma ideia de Fogg como um tirano insignificante e malicioso, mas de repente ele começou a se perguntar se o reitor tinha mudado ou se era ele quem havia se equivocado em primeiro lugar. Talvez Fogg não fosse tão mau. Talvez ele, Quentin, sempre foi um pouco sensível e defensivo ao seu redor. Quando Fogg perguntou a Quentin em quê poderia ajuda-lo. Quentin disse a ele. E assim, sem mais qualquer dúvida, Fogg o ajudou. Por sorte havia uma vaga na faculdade − uma semana antes, um adjunto teve que ser demitido depois de concluírem que ele havia plagiado a maior parte de sua tese de doutorado de Francis Bacon. Quentin poderia cuidar de suas aulas, se quisesse. Na verdade, ele estaria fazendo um favor à Fogg. Se havia algo de Schadenfreude ali, se Fogg sentiu prazer em ver o recém-castigado e humilhado Quentin, o filho pródigo que voou alto e viveu aventuras e fez alguma maldade, rastejando para pedir uma esmola, ele escondeu bem. — Não faça cara de surpresa, Quentin! — disse ele. — Você sempre foi um dos mais inteligentes. Todos viram isso, menos você. Se você não estivesse tão ocupado tentando se convencer de que esse não era o seu lugar, você também teria visto isso. Assim como fez anos atrás, Brakebills abriu suas portas para ele, o acolheu e ofereceu-lhe um lugar em seu pequeno e secreto mundo escondido. Fogg pegou algumas chaves de um quadro e as entregou para ele. Elas eram de um quarto tão pequeno com um teto tão alto que era como viver no fundo de um eixo de ventilação. Tinha uma escrivaninha, uma janela, um banheiro e uma cama, uma cama estreita de solteiro que havia perdido sua irmã gêmea. Os lençóis tinham o cheiro inconfundível da lavanderia de Brakebills e o cheiro imediatamente fez Quentin cair como uma pedra em um poço de memória, até os anos que ele passou dormindo confortavelmente envolvido nas roupas de cama de Brakebills, sonhando com um futuro muito diferente do que ele habitava agora. Não era exatamente nostálgico; Quentin não sentia falta dos velhos tempos. Mas ele sentia falta de Fillory. Foi só quando finalmente estava sozinho em seu quarto – não de um rei, mas
um professor, o quarto de um professor muito novato – com a porta fechada que Quentin se deixou realmente ansiar por isso. Ele ansiava por Fillory. Ele sentiu toda a força que havia perdido. Ele se deitou e olhou para o teto distante e pensou em tudo o que estava acontecendo lá sem ele, às viagens, aventuras, festas e todas as várias maravilhas mágicas, todo o comprimento e a largura de Fillory, rios e oceanos e árvores e prados, ele queria tanto estar lá que sentiu que seu desejo seria suficiente para empurrá-lo fisicamente da cama dura em seu quarto, deixando esse mundo para alcançar aquele outro a quem ele pertencia. Mas não foi o suficiente e isso não aconteceu. Eles lhe deram um horário de aula. Eles lhe deram um assento na sala de jantar e a autoridade para impor ordem aos alunos. Eles também lhe deram algo que deveriam ter dado há algum tempo, algo que ele quase tinha esquecido: uma disciplina. Todos os magos tinham uma predisposição natural para certo tipo específico de magia. Às vezes, era trivial, às vezes era realmente útil, mas todos tinham uma: era uma espécie de impressão digital mágica. Mas eles nunca conseguiram encontrar a de Quentin. Como parte de sua iniciação na faculdade de Brakebills, Quentin foi convidado a declarar sua disciplina, e naquele momento ocorreu-lhe que ele ainda não sabia o que era. Assim como fizeram uma dúzia de anos antes, eles o enviaram para a professora Sunderland, uma mulher que ele tinha caído no amor furioso e vulcanicamente antes de se formar. Ela o recebeu no mesmo laboratório inundado com o sol em que ela havia trabalhado naquela época; era estranho pensar que ela estava ali todo esse tempo enquanto ele estava correndo desastrosamente pelo multiverso, e que agora eram, para a maioria dos propósitos práticos, colegas. Em todo caso, ela era ainda mais bonita do que aos vinte e cinco. Seu rosto amadureceu e suavizou. Ela parecia mais ela mesma, embora o que ele vira naquele momento como uma qualidade serena e sobrenatural de repente parecia mais uma ligeira falta de afeto; ele não tinha notado como retraída e reservada ela era. Ele sentiu-se tão inferior que não achava que ela se lembraria dele. Mas ela lembrou. — Claro, sim. Você não era tão invisível quanto pensava. Quentin pensou isso? Provavelmente, sim. — Isso significa que minha paixão secreta por você não era tão secreta quanto eu pensava? Ela sorriu, mas sem crueldade. — Ocultar o amor provavelmente não é a sua disciplina — disse ela. — Levante as mangas acima dos cotovelos. Me deixe ver as costas das suas mãos. Ele mostrou a ela. Ela fez uma massagem rápida com um pó fino e um padrão irregular de pequenas faíscas frias apareceu em sua pele, como um campo escassamente povoado visto de cima à noite. Ele também pensou que sentiu uma teia de espinhos gelados, embora pudesse ter sido sua imaginação. — Hum. Ela mordeu o lábio, o analisou e bateu as mãos, um, dois, como no jogo infantil, e as faíscas desapareceram. Não havia nada ali que interessasse a professora Sunderland. Ou Pearl – agora que eram colegas, Quentin deveria se acostumar a chamá-la pelo seu primeiro nome. Pearl cortou um fio de cabelo de Quentin e queimou-o em um braseiro. Cheirava a cabelo queimado. Ela examinou a fumaça. — Não.
Agora que havia superado a fase das brincadeiras, a professora Sunderland foi para o trabalho. Quentin parecia um arranjo de flores complicado que ela não conseguia entender. Ela o analisou através de uma série de óculos graduados defumados enquanto caminhava para trás ao redor da sala. — Por que você acha que isso é tão difícil? — perguntou Quentin, tentando não bater em nada. — Hum? Não olhe por cima do ombro. — Minha disciplina? Por que você acha que é tão difícil de descobrir? — Podem acontecer várias coisas — Ela alisou o cabelo loiro e liso atrás de suas orelhas e mudou os óculos — Poderia ser ocluído. Algumas disciplinas apenas por suas naturezas não querem ser encontradas. Algumas são realmente menores, sem sentido, de fato, e é difícil distingui-las do ruído de fundo. — Certo. Mas também poderia ser... — Tropeçou em um banquinho. — Porque é algo interessante? Que ninguém tenha visto antes? — Claro. Porque não. Quentin sempre invejou Penny por sua curiosa e aparentemente única disciplina, que era a viagem interdimensional. Mas pelo tom de Pearl ele suspeitava que ela poderia ter listado alguns motivos por que não. — Você se lembra de quando eu fiz as faíscas? — Lembro. — Aha. Não posso acreditar que não pensei nisso antes. Fique quieto. Ele parou e Pearl revirou em uma gaveta e tirou uma régua pesada com uma borda de bronze marcada em unidades irregulares que Quentin não reconheceu. — Feche seus olhos. Quentin obedeceu, e imediatamente sentiu um choque elétrico de dor no dorso da mão direita. Ele a apertou entre as pernas; foram dez segundos antes de se recuperar o suficiente para dizer: “ah”. Quando ele abriu os olhos, ele meio que esperava ver seus dedos cortados na segunda falange. Eles ainda estavam lá, embora estivessem ficando vermelhos. Sunderland os atingiu com a ponta afiada da régua. — Desculpe — disse ela. — A resposta à dor geralmente é muito reveladora. — Escute, se isso não funciona não me importo de não saber. — Não, isso funciona. Você é muito sensível, devo dizer. Quentin não pensou que o fato de não querer ser empurrado nos nódulos com uma régua o faria incomumente sensível, mas ele não disse nada e Pearl já estava consultando um enorme volume de referência impresso em letras minúsculas. Quentin sentiu o súbito desejo de detêla. Ele viveu assim durante muito tempo, era parte de quem ele era – era o homem sem disciplina. Ele estava disposto a desistir disso? Se ela lhe dissesse, seria como todos os outros... Mas ele não a impediu. — Eu tenho uma teoria pessoal sobre você — Pearl correu um dedo por uma coluna. — Acho que não consegui encontrar sua disciplina na última vez, porque você ainda não tinha nenhuma. Eu sempre achei que você era um pouco imaturo pra sua idade. A personalidade, a
maturidade é um fator. Você era velho o suficiente pra ter uma disciplina, mas, de um ponto de vista emocional, você ainda não estava pronto. Você não tinha entrado em foco. Isso foi bastante embaraçoso. E, como sua paixão, provavelmente era óbvio para mais pessoas do que ele acreditava. — Suponho que eu esteja atrasado — disse Quentin. — Aqui está — Ela bateu na página. — Reparo de pequenos objetos, é você. — Reparo de pequenos objetos. — Aham! Quentin não podia dizer honestamente que era tudo o que ele esperava. — Pequeno como uma cadeira? — Pense menor — disse ela. — Como, eu não sei uma xícara de café. — Sunderland colocou as mãos em torno de um copo invisível. — Você já teve algum sucesso com isso? Pequenos reparos, reconstituições, esse tipo de coisa. — Talvez. Eu não sei. — Ele não podia realmente dizer que ele já havia notado. Talvez ele simplesmente não estivesse prestando atenção. Foi um pouco anticlímax. Não poderiam chamá-lo de sexy. Não estaria desbravando novos caminhos. Não andaria entre as dimensões, nem faria raios, ou manifestaria patronos, não com a força para reparar pequenos objetos. A vida era rápida e eficiente, despojava Quentin de seus últimos delírios sobre si mesmo, um a um, arrancando-os em pedaços como se estivesse com roupas molhadas, deixando-o nu e tremendo. Mas não ia matá-lo. Não era sexy, mas real, e isso era o que importava naquele momento. Não havia mais fantasias: era a vida após Fillory. Talvez quando você abandona seus sonhos, descobre que há mais vida do que sonhos. Ele iria viver no mundo real a partir de agora, e aprenderia a apreciar sua solidez áspera e mundana. Ele tinha aprendido muito sobre si mesmo ultimamente, e ele pensou que seria doloroso, e era, mas também era um alívio. Tratava-se de coisas que ele tinha medo de enfrentar toda a sua vida, e agora que ele estava olhando para seus olhos, elas não eram tão assustadoras quanto ele pensava. Ou talvez ele fosse mais difícil do que pensava. Em qualquer caso, ele não seria expulso retroativamente dos Caras da Física. O reparo de pequenos objetos passaria no teste. — Você pode ir — disse Pearl. — Fogg provavelmente fará você se encarregar das classes do primeiro ano de Pequenos Reparos. — Espero que ele faça — disse Quentin. E ele fez isso.
CAPÍTULO 3
Quentin pensava que acharia satisfatório o ensino, mas na verdade não esperava gostar realmente. Isso parecia esperar demais. No entanto, ele descobriu que estava errado. Cinco dias por semana às nove horas da manhã, ele estava de pé diante dos alunos de Pequenos Reparos, giz na mão, escrevendo notas da aula e olhando os alunos – seus alunos agora – e eles o olhavam. A maioria dos seus rostos estava em branco: em branco com terror, em branco de confusão total, em branco com tédio, mas em branco. Quentin percebeu agora que era assim que ele costumava olhar. Quando você é apenas só mais um na aula, você tende a esquecer de que o professor pode vê-lo. Sua primeira aula não foi um sucesso. Ele gaguejou; repetiu-se; ele perdeu o controle e parou com o ar frio e morto, em um silêncio constrangedor, enquanto tentava descobrir onde ele pretendia chegar a um segundo atrás. Ele preparou dez pontos com os quais ele queria ensinar, mas estava com tanto medo de ficar sem material que arrastou o primeiro ponto por meia hora e então teve que se precipitar nos outros nove na velocidade máxima para encaixalos. Ele descobriu que o ensino era uma habilidade que você tinha que aprender, como todo o resto. Mas, pouco a pouco, percebeu que, pelo menos, ele sabia do que estava falando. Suas experiências na vida e no amor não eram impecáveis, mas ele possuía uma grande quantidade de informações práticas sobre o cuidado e a alimentação de forças sobrenaturais, e o ensino era apenas uma questão de tirar essa informação da sua cabeça e colocar nas cabeças de seus alunos, inteligentes e receptivos em cotas metódicas. Era muito diferente de dirigir um reino mágico secreto, embora, claro, Fillory não necessitava dele. Fillory funcionava melhor sozinha. Enquanto essas crianças, debatendo-se como se estivessem nas águas frias e agitadas da introdução à magia, estariam perdidas sem ele. Elas precisavam dele, e era bom ser necessário. Conhecer sua disciplina também ajudava. Ele sempre se considerou decente em magia, mas nunca teve um forte senso de quem ele era exatamente como um mago. Mas agora: era alguém que consertava as coisas. Agora ele via isso. Você dava a Quentin um objeto quebrado e em suas mãos ele despertava como de um sonho infeliz, e se lembrava de que uma vez havia sido inteiro. Uma xícara de café quebrada, tão completamente sem esperanças e sem poder, se recompunha e reconquistava parte de sua antiga determinação. Ela nem sempre foi assim. Não − havia tido uma asa muito útil. Ela já havia tido o poder de segurar um líquido em vez de deixá-lo escorrer por suas entranhas destruídas e caísse no chão. E com um pouco de encorajamento de Quentin, ela seria como antes de novo. Deus, mas ele gostava de fazer magia. Ele quase havia esquecido o quão satisfatório era, mesmo as
coisas pequenas. Fazer magia era como finalmente encontrar as palavras que você estava procurando por toda a sua vida. Você sempre soube o que queria dizer, estava na ponta da sua língua, você quase a teve, você conheceu ela há um tempo atrás, mas de alguma forma esqueceu-a − e ali estava. Lançar um feitiço era finalmente encontrar as palavras: é isso que eu quis dizer, é o que venho tentando dizer o tempo todo. Tudo o que ele tinha que fazer era explicar isso aos alunos. Como membro do corpo docente também deveria realizar uma investigação independente, mas até encontrar um problema que merecia ser investigado, o que ele fez foi ensinar. Ele fazia isso cinco dias por semana, uma aula as nove e depois Teoria Aplicada as duas. Ao mesmo tempo, ele se adaptou ao ritmo da vida de Brakebills, que não era tão diferente como professor do que era como estudante. Ele não tinha mais lição de casa, mas ele tinha que passar as noites preparando às aulas, o que estava bom porque não tinha mais nada para fazer de qualquer maneira. Ele se manteve apropriadamente distante de seus alunos, e até agora o resto do corpo docente, apropriadamente ou não, deixaram o novo peixe por sua conta própria. Pequenas coisas mudaram. Havia rumores de que Brakebills havia adquirido um fantasma, e embora Fogg não o tivesse visto ele mesmo – não estava claro quem tinha visto isso – ele estava orgulhoso por isso. Aparentemente, todas as velhas instituições europeias tinham, e nesses círculos uma escola de magia não tinha atingido a plenitude de ser assombrada. A biblioteca ainda era um problema: alguns livros dos cantos mais sombrios das pilhas mantiveram certa autonomia que remonta a uma infame experiência inicial com livros voadores e, ultimamente, eles começaram a se reproduzir. Alguns alunos ficaram atordoados ao encontrar com os livros no ato da procriação. Isso soou interessante, mas, até agora, a descendência resultante foi ou previsivelmente derivada (na ficção) ou surpreendentemente chata (não ficção); as combinações híbridas entre ficção e não ficção foram as mais vitais. O bibliotecário pensava que o problema se resumia aos livros adequados não estavam se reproduzindo entre si e propuseram um programa de acasalamento forçado. O comitê da biblioteca realizou uma épica reunião secreta sobre a ética da eugenia literária que terminou em um impasse furioso. Quentin podia sentir-se deslizando de volta para a atmosfera espessa, rica e confortável de Brakebills, como uma abelha se afogando em mel. Às vezes, ele se achava pensando sobre o que seria ficar ali para sempre. E ele poderia ter feito isso se algo não o tivesse interrompido: seu pai morreu. Isso pegou Quentin desprevenido. Fazia muito tempo ele não se sentia tão perto de seu pai. Não pensava muito sobre ele ou sua mãe. Nunca lhe ocorreu que seu pai pudesse morrer. O pai de Quentin havia vivido uma vida pouco espetacular, e ele se despediu do mundo aos sessenta e sete com a discrição que o caracterizava: ele morreu de um derrame cerebral enquanto dormia. Ele mesmo conseguiu poupar a mãe de Quentin do choque de acordar ao lado de um cadáver frio: ela estava fazendo uma residência artística em Provincetown, e o corpo foi descoberto pela mulher encarregada da limpeza, uma ucraniana imperturbável e rigorosamente católica que, no plano espiritual e em todos os sentidos, estava mais preparada para a experiência do que teria sido a mãe de Quentin. Aconteceu em meados de outubro, cerca de seis semanas depois que Quentin voltou para Brakebills. O reitor Fogg deu a notícia, que lhe foi transmitida através do único e antigo
telefone de disco da escola. Quando Quentin entendeu o que Fogg estava dizendo, ele ficou muito frio e muito quieto. Era impossível. Não fazia sentido. Era como se seu pai tivesse anunciado que ele estava indo assumir a percussão mariachi e marchar no desfile de Cinco de Maio. Seu pai não estava morto – não tinha como estar. Não era do feitio dele. Fogg parecia desconcertado por essa reação, quase desapontado, como se esperasse um pouco mais de drama. Quentin teria sido mais dramático se soubesse como fazer, mas não saiu. Ele não soluçou, nem puxou o cabelo ou amaldiçoou as regras que cortaram o fio de seu pai muito cedo. Ele não poderia, mas ele não conseguia entender. Os sentimentos estavam faltando; era como se estivessem perdidos no trânsito desde o lugar que vem os sentimentos. Só depois que Fogg lhe ofereceu uma semana de licença compassiva e, em seguida, se retirou discretamente, Quentin começou a reagir e sentiu algo além do choque e da confusão, e quando descobriu o que sentia não era tristeza, mas raiva. Isso fez ainda menos sentido. Ele nem sequer sabia com quem ele estava com raiva ou por quê. Ele estava bravo porque seu pai estava morto? Com Fogg por ter contado? Em si mesmo por não sofrer como deveria? Quando pensava nisso, Quentin não se lembrava de ter se sentido muito próximo de seu pai, nem mesmo quando criança. Ele tinha visto fotografias de sua infância mostrando o menino Quentin em cenas de felicidade familiar comum com seus pais, cenas que poderiam ter sido apresentadas em um tribunal de família como prova convincente de que a casa dos Coldwaters era calorosa e cheia de amor. Mas Quentin não reconheceu o menino que olhava para ele nesses retratos. Não conseguia se lembrar de ser essa pessoa. Ele se sentiu como um filho trocado no nascimento. Quentin aceitou aquela semana de licença compassiva oferecida por Fogg, não tanto porque sentiu que precisava dela, mas porque achava que sua mãe talvez precisasse de sua ajuda. Quando ele arrumou as malas para a viagem a Chesterton, Quentin percebeu que ele estava rangendo os dentes contra o verdadeiro pânico. Ele se preocupou por não poder sentir as emoções que as pessoas queriam que ele sentisse. Ele fez uma promessa de que seja lá o que aconteça, seja o que for que alguém lhe perguntasse, ele não fingiria sentir nada que ele realmente não sentia. Se ele pudesse ficar com isso, não seria muito mau. E assim que ele a viu, Quentin se lembrou disso, embora ele e sua mãe não tivessem uma relação muito próxima, eles se davam bem. Ele a encontrou de pé junto à ilha da cozinha, com uma mão na bancada de granito e uma caneta ao lado dela – parecia que sua mente havia se desviado no meio quando estava fazendo uma lista. Ela estava chorando, mas naquele momento seus olhos estavam secos. Quentin deixou a bolsa no chão e eles se abraçaram. Ela havia engordado. Quentin teve a sensação de que sua mãe não havia falado com muitas pessoas desde que aconteceu. Ele sentou ao lado dela em um banquinho. — As garotas do tênis estarão aqui em um minuto — disse ela. — Está bem. É bom vê-las. As meninas do tênis — Kitsy, Mollie, Roslyn — eram as melhores amigas de sua mãe. Fazia muito tempo que nenhuma delas tinha jogado tênis, se é que elas já tivessem jogado alguma vez, mas Quentin sabia que sua mãe poderia contar com elas. — Não terminei de consertar a parede do banheiro — A mãe de Quentin suspirou. Um pedaço de gelo pesado como o dente de um gigante pendia do beiral do lado de fora da janela
da cozinha – era janeiro no mundo real. — Eu sabia que ele odiaria. Continuo pensando que se ele não tivesse morrido, essa parede o teria matado. — Mãe. A parede não o teria matado. — Estava plantando mini palmeiras. Escondi elas atrás dessa velha tela japonesa. Não queria que ele as visse até que fosse tarde demais para ele fazer qualquer coisa. — Ela tirou os óculos enormes e esfregou o rosto com as duas mãos, como um mergulhador tirando a máscara depois de um mergulho profundo. — E agora é tarde demais! Não conheço nenhuma das senhas dele. Você acredita nisso? Eu nem consigo encontrar as chaves dele! Não consigo entrar no porão! Ele fez uma nota mental para localizar essas chaves mais tarde com um feitiço. Ele pode até conseguir as senhas também, embora isso seja um pouco mais complicado. Quentin sabia que parte do problema entre ele e seus pais era que eles não tinham ideia de quem ele realmente era, o que não era culpa deles porque ele nunca havia contado a eles. A mãe de Quentin achava que seu filho era um rico banqueiro de investimentos, mas não um sucesso espetacular, especializado em transações imobiliárias. Ela não sabia que a magia era real. O pai de Quentin também não sabia. Quentin poderia ter dito a eles − a informação era fortemente controlada por magos, e as transgressões eram punidas severamente, mas exceções poderiam ser obtidas para pais e cônjuges (crianças com mais de catorze anos). Mas ele nunca quis, porque parecia uma ideia terrível. Ele não podia imaginar os dois mundos se tocando: o sedutor e ordenado idílio conjugal de seus pais e o mundo selvagem, confuso e arcano da magia. Era impossível. Eles iriam explodir em contato, como matéria e antimatéria. Ou ele sempre supôs que seria assim. Agora, ele se perguntava se esse segredo, a ausência dessa confiança, era o que havia ocorrido entre eles. Talvez ele os tenha subestimado. Quentin passou a semana de licença colidindo com sua mãe como dois dados em um copo dentro da McMansion de Chesterton – era uma casa enorme para uma pintora de médio sucesso e um editor de livros didáticos, comprada com dinheiro de um tríplex do Brooklyn que venderam no momento certo. Havia muito que fazer. A morte era uma catástrofe existencial, uma fissura no suave estofamento com que a humanidade cobria um universo duro e indiferente, mas descobriu-se que havia um grande número de pessoas cujo trabalho era lidar com ela para você, e tudo o que eles pediam em troca eram grandes quantidades de tempo e dinheiro. Quentin passou o dia inteiro no telefone com os cartões de crédito de sua mãe espalhados à sua frente no balcão da cozinha. Ela o observou com uma surpresa cautelosa. Eles tinham se visto tão pouco nos últimos anos que ela ainda pensava nele como o adolescente que ele havia sido quando partiu para Brakebills. Ela ficou desconcertada por aquele homem alto e firme e agora não era um adolescente que lhe apresentava listas de urnas para escolher, menus de lanches para a recepção, horários em que os carros podiam buscá-la e deixá-la. À noite, eles pediram comida para viagem e jogaram palavras cruzadas e assistiram filmes no sofá, enquanto bebiam o Chardonnay de Sonoma que ela tinha pedido para a ocasião. Na parte de trás de sua mente, Quentin continuou observando e reproduzindo cenas de sua infância. Seu pai o ensinou a navegar em um lago de fundo arenoso e águas marrons em New Hampshire. Seu pai o pegou da escola depois que ele ficou tonto na aula de ginástica. Quando tinha doze anos, eles tiveram uma gritaria quando seu pai se recusou a assinar
permissão para que Quentin participasse de um torneio de xadrez; era a primeira vez que ele foi qualificado na categoria de menos de quinze anos e estava desesperado para viajar para Tarrytown. Era estranho: seu pai nunca parecia se sentir confortável com os esforços de Quentin para se destacar academicamente. Você teria pensado que ele ficaria orgulhoso. Naquela primeira noite, depois que sua mãe foi para a cama, Quentin foi se sentar no escritório de seu pai. Era uma sala como uma caixa de paredes brancas que ainda cheirava a construção nova. O assoalho parecia novo, exceto pelo círculo fosco onde as rodas da cadeira de seu pai haviam desgastado o acabamento. Ele estava meio bêbado do Chardonnay. Ele sabia o que estava procurando: estava procurando uma maneira de parar de se sentir bravo. Ele ainda carregava a raiva e queria encontrar um lugar para colocá-la com segurança. Sentou-se na cadeira de seu pai e girou lentamente no local, como um farol. Ele olhou os livros, os arquivos, a janela, a tela apagada do computador. Livros, arquivos, janela, tela. Partículas de luz tênue laranjas das lâmpadas da rua estavam sobre tudo como poeira. Foi quando ocorreu a Quentin pela primeira vez que talvez seu pai não tenha sido seu verdadeiro pai. Talvez ele não fosse quem ele parecia ser. Talvez o pai de Quentin tenha sido um mago. ••• Na manhã seguinte, depois que sua mãe foi às compras na Whole Foods, Quentin voltou ao escritório de seu pai. Ele retomou seu posto na cadeira de seu pai. Quentin sabia que ele era muito velho para lidar com perguntas como essa – ele provavelmente deveria ter resolvido isso em torno da puberdade – mas ele sempre prestava mais atenção aos problemas mágicos do que os do tipo pessoal. Talvez isso tenha sido um erro. Seu pai deveria amar você, transmitir seu poder para você, mostrar-lhe o que era ser um homem, e seu pai não tinha feito isso. Ele tinha sido uma boa pessoa, ou bom o suficiente, mas o que ele fez de melhor foi mostrar a Quentin como se mover através do universo criando as menores perturbações possíveis e como compilar a maior coleção do mundo de filmes de Jeff Goldblum em Blu-ray, exceto, presumivelmente, a do próprio Jeff Goldblum. Quentin também não teve muita sorte com figuras paternas. Nem reitor Fogg, nem Mayakovsky, nem Ember, o deus carneiro. Eles não lhe deram muita sabedoria paternal ao longo dos anos. Seja qual for o poder e a sabedoria que tiveram, eles não estavam ansiosos para compartilhar isso com ele. Talvez não quisessem ser as figuras paternas. Talvez ele não tenha feito uma figura de filho bastante atraente. Ele tentou imaginar o que seu pai deveria ter sido, o pai que desejou ter sido seu pai. Brilhante. Divertido. Intenso. Um pouco desonesto – excêntrico às vezes – mas firme em uma crise. Um homem de coragem e energia, um homem que enfrentava o mundo que o cercava e o fazia entrar no caminho de acordo com seus próprios termos. O pai de um mago. Um pai que teria visto o que Quentin se tornou e que diria que estava orgulhoso do seu filho. Mas o pai de Quentin não parecia ter nenhum poder, muito menos para compartilhar. O pai real de Quentin tinha tido uma mulher, um filho, sem hobbies e provavelmente uma leve depressão clínica que ele se automedicava com o trabalho. Nem todos levavam uma vida dupla, mas o pai de Quentin mal levava uma vida única. Como alguém que parecia tão determinado a ser impotente poderia ter um mago como filho?
A menos que não tenha sido alguém tão impotente, pensou Quentin. A menos que não fosse toda a história. Começava a parecer um disfarce – exatamente o tipo de disfarce que um mago usaria. Quentin examinou metodicamente o escritório em busca de evidências de que seu pai não era o que ele parecia ser − que ele havia deixado algum legado para seu filho, que por algum motivo, não poderia compartilhar com ele enquanto estivesse vivo. Ele examinou os armários de arquivos de seu pai – havia feitiços para procurar por palavras-chaves em documentos de papel, da mesma forma que os computadores procuram arquivos digitais. Procurou códigos ou scripts ocultos. Não obteve resultados significativos. Ele não esperava nenhum. Isso foi apenas uma devida diligência. Agora, a caça poderia começar com seriedade. Ele examinou as luminárias. Ele apertou as almofadas do sofá e puxou os tapetes. Ele usou um feitiço para olhar as paredes e debaixo das tábuas do chão. Ele olhou por trás das fotos. Examinou o quarto em busca de qualquer vestígio de magia escondida, mas tudo o que ele encontrou foi um livro antigo de biblioteca com um fraco feitiço anti-roubo que alguém havia colocado, que em qualquer caso, não pareceu ter funcionado. Pelo menos as chaves perdidas estavam no sofá. Procurou pernas ocas na mobília. Ele examinou livro por livro das prateleiras no caso de um estar sublinhado ou oco. De vez em quando, ele achava que estava encontrando algo, um padrão secreto ou um código, mas toda vez que ele fazia isso se dissolvia novamente como ouro de fada, de volta ao barulho aleatório. Que magia negra seu pai poderia ter traficado, e porque mantê-la tão bem escondida? E por que tentou impedir que seu filho se interessasse por ele? Que destino sinistro havia evitado Quentin em Tarrytown? O que significou para o pai manter um banjo velho sem cordas em um canto? O que houve com sua estranha obsessão com Jeff Goldblum? Quanto mais ele trabalhava sem resultado, mais claramente ele sentia a presença fantasmagórica de seu pai, seu pai real, seu verdadeiro pai, como se ele estivesse no quarto com ele mesmo naquele momento. Quentin ligou o computador e depois de meia hora de criptomância de palmas suadas e adivinhações, ele descobriu a senha (“omundoperdido”, estrelado por Jeff Goldblum) e começou a olhar através das pastas, uma após a outra. Elas estavam quase sinistramente limpas. Nem diários, nem poesia, nem amantes, nem operações fraudulenta, nada diferente do que parecia ser. Nem mesmo pornografia. Bom, não muita pornografia. Quentin não era um hacker – ele passou muito tempo no buraco negro tecnológico de Brakebills para ter sérias habilidades informáticas – mas ele conhecia os feitiços eletromagnéticos. Ele abriu a caixa e foi direto para o silício, palpando com dedos mágicos qualquer coisa incomum, qualquer esconderijo escondido de elétrons com significado. A única coisa em que ele poderia pensar era que não poderia ser. Isso não poderia ser tudo. Ele deveria ter deixado alguma coisa. “Vamos. Me ajude, papai”. Era uma palavra que ele não havia dito nem pensado em vinte anos. Ele parou e sentou-se por um minuto, com as mãos trêmulas, na casa vazia, no frio profundo do silêncio de inverno de um bairro suburbano. “Onde está pai? Tem que estar aqui. Não posso estar sozinho. Você deve ter me deixado alguma coisa”. Isso sempre funcionava
assim: o pai distante e retido sempre guardava um segredo terrível, sempre manteve seu filho protegido dele, capaz de passar seu legado de poder somente após a morte. E então ele encontrou. Estava na parte de trás de um armário: uma caixa de plástico vermelho com um emaranhado de cartas escritas por caneta, atrás de uma caixa de eletrônicos obsoletos e cabos misteriosos que eram muito importantes para jogar fora. Ele colocou a caixa na mesa e passou as cartas, uma a uma. Nomes estranhos, colunas de números, sinais de mais e menos. Continuou e continuou. Havia muitos dados. Um código como esse poderia conter palavras de poder completo, se ele pudesse quebrá-lo. E ele conseguiria isso. Foi deixado aqui para ele. Ele olhou as cartas durante o que poderia ter sido dez minutos antes do padrão se resolver repentinamente. Não era um código. Elas eram estatísticas da liga de golfe, velha fantasia de seu pai. Quentin afastou a caixa de plástico violentamente e convulsivamente. As cartas ficaram espalhadas por todo o tapete. Ele as deixou lá. Não havia mistério para resolver. O que aconteceu entre seu pai e ele não era magia. A terrível verdade sobre o pai de Quentin era que ele era exatamente a pessoa que ele parecia ser. Ele não era um mago. Ele nem era uma boa pessoa. Ele era um homem comum que nem tinha amado seu único filho. A dura verdade era que Quentin realmente nunca tinha tido um pai. E agora ele nunca teria. Quentin apoiou a cabeça na velha mesa de seu pai e bateu o punho até que o antigo teclado de plástico de seu pai pulou. — Papai! — ele soluçou, com uma voz que ele mal reconheceu. — Papai, papai, papai! ••• Quentin voltou a Brakebills no dia seguinte ao funeral. Ele não gostava de deixar sua mãe, mas ela estava mais confortável com suas amigas do que com seu filho, e era hora delas assumirem o controle. Quentin fez sua parte. Sua mãe o levou para o aeroporto; Quentin esperou até que ela estivesse fora de vista antes de deixar a área de partida para o estacionamento que ainda estava em construção. Ele pegou o elevador até o andar superior vazio. Ao meio-dia, debaixo de um céu branco e plano, um portal abriu para ele, um anel de pontos brancos conectados por linhas brancas que chispavam e acendiam no ar frio e seco. Quentin o atravessou e voltou para o campus de Brakebills. De volta a casa. Quando subiu as escadas até o quarto, sentiu-se estranho. Era como se tivesse passado uma semana de febre alta que finalmente havia superado, deixando vazio, frio e tremor, mas também limpo, depois de suar as toxinas, queimado as impurezas. A morte de seu pai o havia mudado, e era o tipo de mudança que você não queria voltar. Papai tinha ido embora. Nunca mais iria para casa. Era hora de seguir em frente. Quando ele entrou em seu quarto, Quentin fez um pequeno feitiço incendiário para acender uma vela, um feitiço que ele fez mil vezes, mas desta vez o súbito clarão repentino o surpreendeu. Foi mais brilhante e mais quente do que ele se lembrava. Quentin apagou a vela e a acendeu novamente. Não havia dúvida: sua magia era diferente. A luz que apareceu ao redor de suas mãos quando ele trabalhava era mais intensa do que era uma semana antes. Na escuridão, as cores mudaram um pouco para um extremo violeta
violento de espectro. O poder veio mais facilmente e zumbiu com mais força e mais alto entre os dedos. Ele analisou suas mãos. Algo havia sido liberado nele. Agora ele estava realmente sozinho no mundo, ninguém iria ajudá-lo. Ele teria que se ajudar. Em algum lugar no fundo de seu inconsciente estava esperando, contendo a última fração de poder. Mas não mais. No final daquela noite, algo despertou Quentin para fora de um sono profundo e sem sonhos. Um barulho seco e de arranhões – parecia que um pequeno roedor estava preso em seu quarto. Ele acendeu uma lâmpada. Estava vindo de sua mesa. Não era um roedor, mas um pedaço de papel. Ele quase se esqueceu disso: era a página que ele havia pegado no voo quando ele saiu da Terra Nula. Ele a colocou no bolso e depois a colocou no fundo da gaveta da mesa. Algo a despertou e ela estava se desamassando sozinha. Quando Quentin abriu a gaveta, a folha tentou encontrar a liberdade. A página tinha sido dobrada em três horizontalmente, como uma carta de negócios, e naquele momento se desdobrou de repente, lançando–se a meio metro no ar. Chegando tão longe, ela foi redobrada apressadamente para o lado comprido e começou a voar freneticamente na luz fraca, circulando e circulando a cabeça dele como uma mariposa em torno de uma lâmpada. Ou como uma lembrança de outra vida, outro mundo, que não ficaria enterrado.
CAPÍTULO 4
Quentin não olhou a página da Terra Nula naquela noite. Naquela noite, ele colocou um peso no papel, trancou a gaveta da escrivaninha e colocou uma cadeira contra ela para se certificar de que permaneceria fechada. Ele tinha que ensinar pela manhã. Ele voltou para a cama e colocou um travesseiro sobre a cabeça. Até a última hora da tarde seguinte, após a T.A., ele não separou a cadeira e destrancou a gaveta. Ele abriu muito devagar. A página permaneceu quieta, mas, evidentemente, estava se preparando para esse momento, porque assim que Quentin levantou o peso do papel, ela decolou novamente. Quentin a viu tremendo no ar e sentiu um pouco de pena por ela. Ele se perguntou onde ela pretendia ir. Provavelmente queria voltar para a Terra Nula. Voltar para casa. Ele a agarrou suavemente e a levou para o assento da janela para que pudesse examiná-la ao sol. Segurando-a com a palma da mão, colocou nos quatro cantos um candelabro, um despertador, um copo de vinho vazio e uma amonite fossilizada que ele tinha em sua escrivaninha. A página sabia quando o jogo estava perdido. Rendeu-se e ficou imóvel. Agora ele podia ver o que estava lidando. Era um texto manuscrito, em ambos os lados, cuidadosamente e meticulosamente escrito em tinta preta com alguma palavra importante ocasional destacada em vermelho. Era uma página séria, com uma grande densidade de informações. O papel era antigo, não um papel moderno – que gradualmente se consumia pelo ácido em sua própria polpa de celulose – mas papel de pano, feito de pedaços de algodão, que dura praticamente para sempre. Foi rasgado ao longo de uma borda, onde tinha sido arrancado de seu livro hospedeiro. Poucas letras foram perdidas no processo, mas apenas algumas. A inclinação urgente e regular para frente da escrita negra deu às palavras um aspecto de um olhar proposital, como se fossem restos de pólvora levando a alguma revelação explosiva. Quem escreveu isso tinha algo a dizer. Em alguns lugares, os blocos de texto foram interrompidos para abrir espaço para gráficos e diagramas: uma tabela de números com muitos pontos decimais; um esboço botânico pequeno, mas preciso de uma planta sem flores com fileiras de folhas arrumadas e uma vagem de semente vazia; um elegante diagrama de círculos concêntricos e sobrepostos que poderiam ser, com a mesma facilidade, um átomo ou um sistema solar. A página começava no meio de uma frase e terminava no meio de outra. Quando ele olhou mais de perto, viu que as folhas da planta oscilavam muito ligeiramente na brisa e os planetas (ou elétrons) dos diagramas estavam progredindo muito devagar em
suas órbitas, descrevendo um movimento de precessão em uma dança ordenada uns em torno nos outros. Os valores na tabela mudaram em sincronia com eles. No início, Quentin pensou que não podia ler o texto, e soltou um alto suspiro de alívio quando começou a reconhecer uma palavra aqui e outra ali. Era uma forma tardia e bastante corrupta do alto-alemão antigo, escrita em alguma variação excêntrica da letra gótica. Ele poderia cantarolar a melodia, embora não conhecesse bem a letra. Isso, no entanto, foi o último suspiro que ele teve. Os conteúdos eram altamente teóricos e abstratos – seriamente material de alta altitude, onde o oxigênio conceitual era perigosamente fino. Havia muitas questões sobre magia, matéria e trocas de alto nível entre os dois em condições extremas, no nível quântico. Às vezes, era difícil saber qual parte era literal e qual parte era metáfora: ao falar sobre um galo, o galo era algum símbolo alquímico? Ou era um galo real, penas e cocoricó? Não havia muito contexto para continuar. E essa planta. Ele iria ter que levá-la ao professor Bax na estufa. Depois de olhar para a página por três horas, durante as quais ele nem chegou ao outro lado, Quentin sentou-se e apertou os olhos doloridos com as palmas das mãos. Ele havia perdido o almoço, mas ele ainda podia comer com o pessoal da cozinha. Uma coisa estava clara: era um fragmento rasgado do banco de dados da grande magia arcana dos seguidores da Terra Nula, a gangue de Penny. Era como um meteorito ultradenso de algum reino intelectual extra-solar, e ele tinha colidido com a Terra, e não havia como saber quais elementos exóticos e sobrenaturais podia conter. Pelo menos ele havia encontrado um assunto para o seu projeto de investigação independente. Reitor Fogg deixaria de incomodá-lo com isso. E de certa forma, ele havia encontrado uma nova aventura. Era uma aventura de um tipo diferente daquelas que ele vivia em Fillory, uma aventura pequena e nerd, mas não havia dúvida de que era uma aventura. — Obrigado — disse ele à página. — Obrigado por estar aqui. Seja o que for que tem dentro de você, eu cuidarei bem disso. Eu prometo. Era sua imaginação? Será se a página se desdobra por conta própria? Será se ficou um pouco quieta, curtindo a atenção do seu leitor? Quentin levantou o candelabro pesado de um canto. Então, com muito cuidado, o copo de vinho e o despertador. Assim que ele moveu a amonite, a página virou o lado e disparou, procurando uma fenda sob a janela. — Ainda não — Ele bateu sua mão sobre ela e voltou a colocar o candelabro, ruidosamente. — Me desculpe, sinto muito. Mas ainda não. ••• Havia um aspecto na vida de Quentin em Brakebills que estava longe de ser ideal, e essa era sua vida social. Ele não tinha uma. Embora ele tivesse quase trinta anos, ele era muito mais jovem do que a maioria dos professores, e ele estava tendo dificuldade em se conectar com eles. Talvez fosse a questão da idade, ou que ele ainda não pagou adequadamente suas dívidas, o que era verdade. Talvez os outros achassem que ele não ficaria lá por muito tempo, então não havia motivo para se relacionar com ele. A política da sala dos professores era fútil e envolvia muitas lutas de poder pelas quais ele, como homem da parte inferior do totem, não era muito relevante.
Também era possível que eles simplesmente não gostassem muito dele. Ele sabia que isso estava acontecendo. Seja qual for o motivo, ele desempenhou sozinho muitas obrigações indesejáveis, como arbitrar frias e úmidas partidas de balbúrdia e consertar a rede de feitiços desajeitada, mas sobrecarregada que devia deter os alunos que quebravam o toque de recolher. (Agora que ele via de perto, ele não acreditava no quanto se preocupava em ser pego. Os feitiços eram tão esdrúxulos e ativavam tantos alarmes falsos que a faculdade simplesmente os ignorava). No dia seguinte, após T.A., Quentin foi para a estufa. Ele não tinha grandes expectativas. Ele nunca falou com Hamish Bax, e ele não sabia o conceito a ter dele. Do lado positivo, ele era jovem, pelo menos de acordo com os padrões de Brakebills, talvez cerca de trinta e cinco anos. Do lado negativo, ele era inacreditavelmente afetado: ele era negro e de Cleveland, mas vestia tweed escocês e fumava um gordo cachimbo turco. Ele também foi a primeira pessoa que Quentin tinha visto na vida real vestindo calças de golfe. Todo o conjunto o transformou em alguém difícil de interpretar. Embora talvez fosse esse o ponto. Pelo menos, Quentin tinha uma desculpa para visitar a estufa, que era uma encantadora traceria vitoriana de ferro e vidro que parecia muito delicada para suportar o inverno do estado de Nova York. O interior era uma bolha verde de calor e ar úmido, cheio de mesas e vasos de todas as formas e tamanhos imagináveis. O chão de cimento estava molhado, o professor Bax, baixo e forte, cumprimentou-o com a mesma falta de interesse que o resto da faculdade. Ele não parecia particularmente satisfeito por ter sido interrompido de fazer o que estava fazendo com os braços até os cotovelos em um enorme vaso de cerâmica cheio de terra negra. No entanto, seu rosto se iluminou quando Quentin abriu uma pasta coberta de veludo e a página imediatamente se sacudiu e se contorceu livremente, como um peixe prateado que escapa de uma rede. — Ela está viva — disse Bax, os dentes apertados em torno de seu cachimbo. Ele limpou as mãos com um pano. Usando um feitiço rápido que escapou completamente do entendimento de Quentin, ele manteve a página plana no ar na frente dele, como se estivesse entre duas vidraças. Era o tipo de magia fluente e bastante técnica que você não esperaria de um botânico. — Hum. Você está muito longe de casa. — Então ele se virou para Quentin. — Onde você conseguiu isso? — Eu poderia te dizer, mas você não acreditaria em mim. Você reconhece a planta? — Não. Você acha que é uma planta real? Tirada da natureza? — Não tenho ideia — admitiu Quentin. — E você? O professor Bax analisou a página por cinco minutos, primeiro de tão perto que seu rosto quase tocou o papel, depois de um metro, então – ele teve que mover uma mesa cheia de mudas em caixas de papelão de ovos – do outro lado da sala. Ele tirou o cachimbo de sua boca. — Eu vou te falar uma palavra que você não conhece. — Tudo bem — disse Quentin. — Filotaxia. — Não conheço. — É a forma como as folhas são distribuídas em torno do caule central — explicou o
professor Bax. — Parece caótico, mas não é, seguem uma sequência matemática. Geralmente, a de Fibonacci, às vezes a de Lucas. Mas as folhas nesta planta não seguem nenhuma delas. O que sugere que sua origem é excepcionalmente exótica. — Ou que é apenas um desenho inventado. — Exato. E a Navalha da Occam diz que provavelmente é. E ainda. — Hamish franziu a testa. — Tem algo. As plantas têm uma certa integridade, sabe? É difícil falsificar isso. Você tem certeza que não pode me dizer de onde é? — Não deveria. — Pois então não faça isso — Ele gesticulou para o texto. — Você pode ler essa merda? — Estou trabalhando nisso. O professor Bax deixou cair à página de sua armadilha. Ele a pegou no ar antes de cair. A folha permaneceu lânguida e obediente em suas mãos – ela parecia mais submissa à sua autoridade do que a de Quentin. — Ótimo — disse ele. — Você bebe? Sim, era a única resposta possível. Bax puxou uma garrafa de uísque de centeio entre os vasos, onde ele aparentemente havia escondido com toda pressa antes que Quentin chegasse. Assim tão fácil Quentin havia quebrado qualquer barreira invisível entre ele e o resto da faculdade, ou pelo menos um membro da faculdade – ao longo da tarde ficou claro que Hamish não era muito mais popular do que Quentin entre o grupo de professores. Seja qual for o pecado sem nome que Quentin cometeu, Hamish também havia cometido. Eles eram igualmente radioativos. Quentin começou a passar pela estufa regularmente, depois da aula de Teoria Aplicada, e ele e Hamish beberam alguns uísques antes do jantar. Hamish iniciou em alguns dos mistérios mais profundos do campus de Brakebills. O mais surpreendente era que grande parte das coisas que os alunos sussurravam depois de horas eram realmente verdadeiras. Essa extensão de parede branca, por exemplo, onde deveria haver uma sala e o gesso tinha um tom mais leve, não era realmente um eixo de ventilação. Na década de 1950, alguns alunos estabeleceram um campo térmico cúbico em sua sala, possivelmente para manter a cerveja fria, mas depois de consumir parte da cerveja eles inverteram alguns glifos, o que teve o efeito inesperado de que a temperatura interna desceria para zero quase absoluto. O campo resultante era tão estável que ninguém havia encontrado uma maneira de dissolvê-lo. Era completamente inofensivo a menos que você entrasse, em qualquer caso você morreria antes que percebesse. Um dos caras que a criou perdeu uma mão assim, ou assim foi dito. No final, a faculdade simplesmente encolheu os ombros e a isolou. Supostamente, a mão perdida congelada ainda estava lá. Do mesmo modo, também era verdade: que um dos pequenos mecanismos que alimentava o relógio era feito de metal recuperado do corpo do Golem de prata de Bialystok. Também era verdade que havia um anagrama infantilmente humorístico de Brakebills que era Biker Balls, e que os quadros-negros rangeriam dolorosamente se você tentasse escrever isso sobre eles. Era verdade que hera não crescia naquele pedaço de parede nua atrás das cozinhas, porque uma das pedras tinha sido objeto de uma violenta maldição em um incidente muito desagradável envolvendo um estudante que havia burlado protocolos de admissão visando destruir sociópatas e outras pessoas mentalmente incapazes de praticar magia. Nos dias úmidos, a pedra transpirava ácido.
Havia também uma sétima fonte secreta, subterrânea, que era acessada através de uma porta instalada no chão de tábuas empoeiradas de um galpão de jardim; foi mantida isolada porque a água estava cheia de peixes famintos e com dentes afiados. E Quentin nunca soube como remodelavam o labirinto ao longo do verão, mas, aparentemente, todos os anos, em junho, o jardineiro incitava os animais de topiaria a uma festa tão frenética que se precipitavam e se devoravam entre si em um sinistro tipo de holocausto vegetariano em câmera lenta. O Labirinto era reconstruído novamente com cortes dos sobreviventes. Somente os mais fortes sobreviviam. Eles devem ser alguns dos animais de topiarias mais evoluídos da Terra. Esse era o mundo de Quentin agora, e foi surpreendente para ele o quão rápido ele chegou a aceitá-lo, até mesmo abraçá-lo. Ele passou de um rei para professor de escola, foi transplantado pela força do fabuloso cosmo mágico de Fillory para aquele buraco na parede que ele pensou ter escapado para sempre, e eis que ele estava se adaptando. Acontece que você pode voltar para casa novamente, sempre que precisar. Seu futuro estava ali; os anos que ele passou em Fillory desapareceram como se nunca tivessem existido. Ele os lamentava sozinhos, a única pessoa na Terra que sabia que ele usava uma coroa e sentava-se num trono. Mas você não pode se lamentar para sempre. Ou você poderia, mas havia coisas melhores para fazer. Atravessando os corredores de uma sala de aula silenciosa, observando os pescoços expostos de filas e filas de alunos curvados sobre os exames de outono, ele percebeu que perdeu sua visão dupla antiga, que sempre procurava algo mais, algum outro lugar, o mundo atrás do mundo. Era seu bem mais antigo, e ele deixou escorregar sem nem notar que tinha se perdido. Ele estava se tornando outro alguém, alguém novo. Era loucura pensar que os outros ainda estavam lá, cavalgando em uma caçada, recebendo pessoas em suas salas de recepção, reunidos todas as tardes na torre mais alta do Castelo de Whitespire. E Julia estava no Outro Lado do Mundo, fazendo Deus sabe o que. Mas isso não tinha nada a ver com ele. Afinal, descobriu que não era sua história. Tudo havia sido uma aberração temporária que havia sido corrigida no devido tempo. Apesar disso, de vez em quando ele ainda olhava para a lua, esperando encontrar a crescente, limpa e nítida de Fillory. Em comparação, a lua da Terra era tão pálida, desgastada e usada como uma moeda velha. ••• Eles estavam a apenas cem quilômetros ao norte de Manhattan, mas os invernos em Brakebills tinham uma qualidade diferente dos invernos na cidade: mais profundo, mais pesado, mais firme, mais decisivo. Era como se, por ter chegado três meses atrasado, o inverno de Brakebills estava determinado a levá-lo a sério. Era fevereiro do lado de fora, e os pássaros e as plantas começavam a mostrar vislumbres de um otimismo cauteloso, mas Brakebills ainda estava chafurdado em um pé e meio de neve silenciosa de novembro. Agora que ele estava ensinando, Quentin podia ver por que a faculdade não se preocupava em melhorar o clima. Isso mantinha as pessoas incrivelmente focadas. Você via os alunos tentando atravessar a neve, levantando nuvens de neve para desistir imediatamente e apenas avançar com muito esforço. Você observava como eles perderam a determinação de
aproveitar o momento e viver a vida ao máximo e se resignaram a um estudo solitário, silencioso e interior. Havia uma proposta perene sobre a mesa, nunca adotada, para manter o inverno em Brakebills durante todo o ano. Quentin também estava estudando muito. Ele transcreveu a página inteira, quatrocentos e duas palavras dispostas em vinte frases, uma incompleta no início e uma no final e ele havia enrolado suas paredes com elas. Cada palavra tinha sua própria folha separada, que ele preenchia com anotações e estava relacionada com outras palavras relacionadas por longos traços curvos de giz que indicavam conceitos relacionados. Ele estava literalmente morando dentro da página. Ele se mantinha em dia com suas aulas, mas, além disso, decodificar a página tornou-se sua única ocupação em tempo integral. Ao se aprofundar nisso, ele começou a encontrar muitos problemas matemáticos, que ele tinha que trabalhar com lápis e papel – você não podia fazer equações mágicas com computadores, porque eles simplesmente cuspiam respostas inconsistentes antes de desligar completamente. A matemática mágica tinha que ser pensada com um cérebro. Mesmo assim, a página estava começando a se abrir, florescer e revelar as ideias que ela manteve trancadas em suas palavras como botões bem fechados. Os conceitos estavam se desdobrando para ele, mostrando dimensões ocultas e interagindo uns com os outros de maneiras inesperadas. À medida que tomaram forma, eles também deram pistas sobre o maior e mais sombrio conjunto do qual eram apenas um pequeno fragmento: o livro do qual a página veio. Parecia ser um tratado sobre as interações entre magia e matéria. Na Terra, a magia e a matéria eram coisas diferentes: você poderia lançar um feitiço em um objeto, e ele ficava encantado, mas o objeto e o feitiço permaneceriam entidades separadas – o objeto era como um pedaço de metal em que você colocaria uma carga magnética. Em vez disso, em Fillory, Quentin sabia, ou pelo menos ele suspeitava em grande parte, a magia e o objeto eram de alguma forma um e o mesmo. A magia existia na Terra, é claro, mas Fillory era mágica. Era uma diferença fundamental. Tudo isso era muito teórico, e Quentin não era tão metido em teoria. Ele ainda era um dos Caras da Física, e ele jogava mais na prática. Sob as condições corretas, com energia suficiente, você poderia fazer algo mágico na Terra? Infundir algo com magia, misturar até que as costuras desapareçam, como em Fillory? Sentia-se como uma ideia proibida, um limite que você não deveria cruzar, mas era muito delicioso para não tentar pelo menos. Ele requisitou um laboratório vazio em um porão, mas mesmo com as habilidades mágicas recém-aprimoradas, era difícil obter as delicadas abstrações da página para o mundo real e cru. Ou ele viria com nada nas mãos, ou um dos feitiços liberaria uma enorme onda de energia que iluminaria a sala com uma luz azul gelada que explodiria todas as barreiras que ele tinha colocado para evitar ser vaporizado. Por precaução, ele trabalhou os feitiços dentro de globos de força cada vez maiores, mais pesados e pegajosos, como bolhas de um líquido viscoso e translúcido, o que dificultava determinar exatamente o que estava acontecendo dentro. E de qualquer jeito, o que ele faria com ele, mesmo que funcionasse? O que tinha de bom em algo mágico? Era um encantamento poderoso, mas precisava de um propósito. Era uma resposta em busca de uma pergunta. Ele estava envelhecendo, e já era hora de pensar em
fazer algo, construir algo que duraria. Mas o quê? Ele não conseguia ver em que suas investigações estavam se aproximando. Uma tarde, de pé sozinho na sala dos professores, bebendo sua primeira taça de vinho da noite e desenhando diagramas em sua cabeça, ele pegou no bolso de sua jaqueta seu relógio filloriano – que ainda não funcionava, mas que gostava de ter com ele de qualquer maneira – e encontrou um envelope com ele. Dentro, havia uma carta datilografada que o convidava educadamente, mesmo que de forma decorosa, a aparecer em tal e qual livraria em tal e qual noite de março se ele estivesse interessado em um trabalho. A assinatura era ilegível – arranhões de aves. Eh. Era intrigante, e Quentin sentiu um pouco da velha inquietação. Havia outro mistério para resolver. Um passaporte clássico para a aventura, como nos velhos tempos. Mas isso era o que acontecia com os velhos tempos: eles eram velhos. Esta era a vida dele agora. Estava satisfeito, e se ele não era feliz pelo menos se sentia mais feliz do que pensou que seria novamente. Ele tinha trabalho para fazer. Ele amassou a carta e a atirou no fogo. Ela acendeu, e um tronco pesado se moveu, liberando faíscas. O passado era o que era, sua casa estava ali, e todo o resto era fantasia.
CAPÍTULO 5
Eliot franziu a testa. O campeão loriano era um homem rechonchudo, quase tão largo quanto alto e com origem étnica ligeiramente diferente da maioria de seus compatriotas. Os Lorianos eram Vikings, basicamente, no estilo de Thor: altos, com longos cabelos loiros, grandes queixos, grandes peitorais, grandes barbas. Mas esse personagem chegava a um metro e meio, tinha a cabeça raspada e tinha uma grande cara redonda de Buda como uma almôndega e uma adição significativa de DNA asiático. Ele estava nu da cintura para cima, embora a temperatura não alcançasse cinco graus, e sua pele de café com leite estava oleada por toda parte. Ou talvez ele estivesse realmente suado. A enorme barriga redonda do campeão pendia sobre o cinto, mas o desgraçado ainda transmitia uma imagem temível. Ele tinha um enorme pedaço de músculo, como uma sela, na parte superior de suas costas, e seus bíceps eram como coxas, e tinha que haver algum músculo lá, a julgar pelo volume, embora parecesse um pouco gordinho. Sua arma parecia estranha – uma arma de eixo com uma grande cruz curva feita de metal afiado na ponta – para lhe dar a impressão de que ele poderia fazer algo realmente excepcional e perigoso com ela. Quando ele deu um passo à frente, o exército loriano enlouqueceu por ele. Eles golpearam as espadas e os escudos e olharam uns para os outros como se dissessem: sim, pode parecer engraçado, mas é claro que nosso homem vai matar o homem dos outros homens, então três hurras para ele, por Crom ou quem quer que adoremos! Quase fez você gostar dele, os lorianos. Eles eram mais multiculturais do que você teria imaginado. Embora não houvesse opções para que seu campeão fosse realmente matar o campeão de Fillory, o campeão de Eliot. Porque o campeão de Eliot era Eliot. Houve algum debate quando a ideia foi discutida pela primeira vez, sobre se fazia sentido enviar o Grande Rei de Fillory a um combate individual com o atacante designado escolhido a dedo do exército invasor de Loria. Mas logo ficou claro que Eliot estava decidido, embora seus motivos fossem um tanto pessoais quanto táticos. Ele começou seu período como Grande Rei de uma maneira bastante decadente, algo turvo pode-se dizer. No entanto, à medida que seu reinado prolongava, ele se adaptou ao seu papel e tornou-se mais sério sobre isso, e era hora de mostrar a todos – incluindo ele – o quão sério ele era. A realeza não era uma afeição, mas a essência de seu ser. De uma maneira muito pública e muito literal, ele iria deixar sua pele em jogo. Ele deu um passo à frente da linha de vanguarda do seu exército, que, de uma maneira previsível, mas também gratificante, ficou enlouquecido. Eliot sorriu – ele tinha um sorriso
torto por causa da sua mandíbula irregular, mas sua felicidade era verdadeira. Seu coração estava naquele sorriso. O som da torcida do regimento real do exército de Fillory era diferente de qualquer outra coisa conhecida no universo. Havia homens e mulheres gritando e colidindo suas armas, bom o suficiente, mas também tinha uma orquestra completa de sons não humanos ao redor. No topo, havia fadas que gritavam em tons supersônicos; as fadas pensavam que toda essa parafernália militar era bastante estúpida, mas aceitaram pelo mesmo motivo que faziam as coisas de fada, isto é, por diversão. Então havia morcegos farfalhando, pássaros grasnando, ursos rugindo, lobos uivando, e qualquer coisa com cabeça de cavalo que relinchava: pegasus, unicórnios e cavalos normais que falavam. Os grifos e os hipogrifos também estavam grasnando, mas inferior − grunhidos dos barítonos, um som horrível. Os minotauros bramavam. As coisas com cabeças humanas gritavam. De todas as criaturas míticas de Fillory, eram as únicas que ainda aterrorizavam Eliot. Os sátiros e as dríades e tais eram legais, mas havia um par de manticoras e esfinges que eram diabolicamente estranhas. E então você ia descendo ao longo da escala tonal até encontrar as notas graves, fornecidas pelos gigantes que grunhiam e pisavam com força. Era estupidez, na verdade: ele poderia ter escolhido um gigante como seu campeão, e essa luta terminaria em dez segundos. Mas isso não teria enviado a mesma mensagem. Receber a notícia de que os lorianos estavam invadindo foi emocionante para Eliot. Reúnam às bandeiras, Fillory está em guerra! Formulários e protocolos antigos foram invocados. Foram tiradas dos armazéns muitas armaduras e armas de aspecto sério e não cerimonial, assim como bandeiras e arreios, e tudo foi polido, afiado e lubrificado. Trouxeram com eles muita poeira também, e um cheiro emocionante de grandes feitos e tempos lendários. Um cheiro épico. Eliot o respirou profundamente. A invasão não foi uma completa surpresa. Os lorianos sempre tramavam algum tipo de comportamento ruim de livros: raptando princesas, forçando cavalos falantes a arar os campos, obrigando todos a acreditar em sua lista de deuses quase nórdicos. Mesmo assim, fazia séculos que haviam atravessado a fronteira pela força. Normalmente, eles estavam muito ocupados lutando entre si para ser tão organizados. O que foi mais direto ao ponto, os picos da Cordilheira da Barreira do Norte supostamente tinham um encantamento para manter os lorianos à distância. Por isso se chamava de Barreira. Eliot não tinha certeza do que aconteceu lá. Quando tudo isso acabasse, ele teria que se lembrar de descobrir as causas exatas por que esses feitiços tinham ido por água a baixo. Eliot agiu rapidamente para expulsar os lorianos, embora ele fosse relutante em ser a causa direta de qualquer morte. Isso não era Tolkien; não se tratava de orcs e trolls e aranhas gigantes ou outras criaturas malignas com quem você poderia cometer livremente genocídio, sem que implicasse complicadas ramificações morais. Os orcs não tinham mulheres ou filhos ou uma história por trás deles. Em vez disso, Eliot estava convencido de que os lorianos eram humanos, e matá-los seria basicamente um assassinato, e isso não aconteceria. Alguns deles pareciam muito bons. E em qualquer caso, os livros de Tolkien eram ficção, e Eliot, como Grande Rei de Fillory, não lidava com ficção. Ele se ocupava com o complexo assunto de escrever fatos.
Era um assunto complicado e delicado. Não havia nada – na reconhecidamente experiência limitada de Eliot – mais tedioso do que a virtude. Felizmente, os fillorianos tinham uma vantagem, que era que eles tinham todas as vantagens possíveis. Eles eram superiores aos lorianos em qualquer estatística. Os lorianos eram um grupo de caras com espadas. Os fillorianos tinham todas as bestas do Manual dos Monstros, liderado por grupo de reis e rainhas feiticeiros, e Eliot lamentava muito, mas eles tinham que saber quando os invadiram. Mesmo assim, eles eram muitos, e eles sabiam como fazer danos – fazer danos era a melhor virtude daqueles caras. Foi no final da primavera, quando os lorianos chegaram através da Fenda do Rancor e pisaram no solo filloriano. Eles usavam capacetes de aço e cotas de malha, e carregavam velhas espadas e machados de guerra cheios de entalhes. Alguns montavam grandes cavalos peludos. Um pesadelo os aguardava. Veja, os lorianos haviam cometido um erro. Em seu caminho desde a Cordilheira da Barreira do Norte queimaram várias árvores e uma fazenda distante e mataram um eremita. Até Janet ficou surpresa com a raiva de Eliot. Digo, ela estava furiosa, mas era Janet. Ela estava chateada o tempo todo. Poppy e Josh pareciam mal-humorados, que era a maneira como eles ficavam com raiva. Mas a fúria de Eliot era insana, transbordante. Eles queimaram árvores? Suas árvores? Eles mataram um eremita? Eles mataram um eremita? Quando se tratava de Fillory e aos fillorianos, Eliot esquecia a ironia. Seu coração se identificou com aquele homem estranho e solitário em sua cabana desconfortável. Ele nunca o conheceu. Eles não teriam tido muito a dizer um ao outro se eles tivessem se conhecido. No entanto, quem quer que fosse o eremita, obviamente, desprezava seu companheiro humano e isso significava que ele estava OK na visão de Elliot, e agora ele estava morto. Eliot iria destruir os lorianos, ele iria aniquilá-los, ele os mataria! Não assassiná-los, assassiná-los. Mas ele iria dar uma boa lição neles. Ele ficou tentado a deixá-los tentar atravessar o Grande Pântano do Norte, onde os horrores submersos que habitavam ali tratariam com eles com extrema crueldade, mas ele não queria dar a eles nem mais um dia de marcha em sua grama. Além disso, havia algumas outras fazendas ao longo do caminho. Então ele deixou os lorianos marcharem parte de um dia, até o meio-dia, até que eles estivessem quentes e cobertos de poeira e prontos para se deitar para comer. Provavelmente alucinados pelo quão fácil tudo estava acontecendo. Eles iam conseguir amigos, eles eram os escolhidos, eles iam tomar Fillory, amigos! Eliot os deixou percorrer o Grande Rio Salgado. Ele esperou por eles do outro lado. Eliot foi sozinho, disfarçado de camponês. Ele os esperou no meio da estrada. Ele não se moveu. Deixou que eles o notassem gradualmente. Primeiro, os caras da linha de frente, que quando perceberam que ele não iria sair do caminho, pararam. Ele esperou enquanto os caras de atrás deles se aglomeravam neles, ao estilo de um campo de futebol e pararam, e assim por diante até a última linha em um efeito de onda. Deveriam ser, ele não sabia bem, talvez mil deles. O homem que liderava a linha de frente se afastou para convidá-lo – não muito educadamente – a sair do caminho gentilmente, se ele não saísse mil guerreiros lorianos arrancariam suas tripas e o estrangulariam com elas. Eliot sorriu, moveu os pés humildemente por um segundo e depois deu um soco no cara. Ele o pegou de surpresa.
— Saia do meu país, idiota — disse Eliot. Isso foi limpo, sem magia. Ele havia tido aulas de boxe, e ficou à frente do cara com um soco imprevisto. Provavelmente, o loriano não esperava o que significava um ataque suicida de um camponês qualquer. Eliot sabia que não tinha causado muito dano, e que ele não teria outra oportunidade, então ergueu a mão esquerda e empurrou o homem com tanta força que derrubou seis filas de lorianos com ele. Sentiu-se bem. Eliot não tinha filhos, mas isso tinha que ser a sensação de proteger seus próprios filhos. Ele só queria que Quentin pudesse ter visto isso. Ele deixou cair o manto e ficou muito rígido em suas vestes reais, de modo que ficou claro que ele era um rei e não um camponês. Um par de flechas veio por cima deles, por detrás das tropas, e ele as incendiou em pleno voo: pouf, pouf, pouf. Era fácil quando você estava com raiva, e isso era bom e Deus ele estava com raiva. E se sentia bem. Ele bateu a ponta de sua bengala no chão: terremoto. Os mil lorianos estúpidos caíram de seus jumentos, em uma sincronia magnífica. Ele não podia simplesmente fazer isso à vontade. Ele tinha passado a noite toda anterior preparando os feitiços, mas teve um grande efeito, especialmente porque os lorianos não sabiam disso. Eliot deixou que eles entendessem. Então ele desfez o feitiço: ele fez com que o exército que tinha atrás dele se fizesse visível, ou a maior parte deles. Deem uma olhada, cavalheiros. Aqueles que têm um corpo de cavalo são hipogrifos. Os grifos têm o corpo de um leão. É fácil confundir. Então – e aqui ele se entregou – ele tornou os gigantes visíveis. Em contos de fadas, você não aprecia o quanto é incrivelmente terrível um gigante. Estes eram gigantes de sete andares, e eles não eram tolos. Na vida real, os humanos não matavam os gigantes, porque era impossível. Seria como matar um edifício de apartamentos com suas próprias mãos. Eles eram ainda mais fortes do que aparentavam – eles tinham que ser para superar a lei quadrático-cúbica que impedia que tais organismos terrestres tão grandes fossem fisicamente impossíveis no mundo real – e suas peles tinham quinze centímetros de espessura. Havia apenas uma dúzia de gigantes em Fillory, porque nem mesmo o ecossistema superabundante de Fillory poderia alimentar mais. Seis deles foram à batalha. Ninguém se moveu. Em vez disso, o Grande Rio Salgado se moveu. Estava bem atrás deles, eles acabaram de atravessá-lo, e as ninfas tiraram água de suas margens e jogaram contra a massa do exército loriano como um tsunami decidido. Muitos soldados foram arrastados; ele fez as ninfas prometerem afogar o mínimo possível, mas deu a elas a liberdade para abusar de qualquer outra forma que escolhessem. Alguns dos que não foram varridos queriam lutar de qualquer maneira, porque eram tão corajosos. Eliot supôs que eles tiveram uma infância difícil ou algo parecido. Bem-vindo ao clube pensou ele, não é nada tão exclusivo. Ele e seus amigos lhes dariam uma idade adulta complicada para lidar. ••• Demorou quatro dias para fazer com que os lorianos voltassem para Fenda do Rancor – você poderia chutá-los na bunda tão rápido, mas não mais. Foi quando Eliot parou e chamou seu campeão. Já estava no amanhecer, e o desfiladeiro fazia um cenário adequadamente
desolado, com encostas vertiginosas e íngremes subindo em ambos os lados, com tiras de rochas soltas e rios de desgelo. Acima deles estavam os picos bloqueados por gelo que até onde ele sabia, nunca haviam sido escalados, exceto pelos raios do amanhecer que, naquele momento, os beijavam para tingi-los de rosa. Único combate, homem a homem. Se Eliot ganhasse, os lorianos iriam para casa e nunca mais voltariam. Esse era o trato. Se o campeão loriano ganhasse – seu nome era por alguma razão era Padre Ville – bom, não importava. Estava claro que ele não iria ganhar. As linhas estavam a cinquenta metros de distância, e havia um maravilhoso silêncio entre elas. O desfiladeiro poderia ter sido projetado para o combate; as paredes formavam um anfiteatro natural. O chão estava perfeitamente nivelado – areia cinzenta grossa, bem esmagada, da qual durante a noite haviam tirado todas as rochas maiores do que um cascalho. Eliot deu uns chutes, como um batedor que se prepara na zona de strike. O Padre Ville não parecia ser alguém a ponto de começar a maior luta de sua vida. Parecia mais alguém que esperava um ônibus. Ele não adotou nada semelhante a uma posição de combate. Ele simplesmente estava lá, com seus ombros macios inclinados e sua barriga proeminente. Esquisito. Suas mãos eram enormes, como dois caranguejos-rei. Claro que Eliot supôs que ele não parecia muito menos estranho. Ele também não usava armadura, apenas uma camisa de seda branca e uma calça de couro. Quanto às armas, ele carregava uma longa faca na mão direita e um pequeno bastão de metal à esquerda. Ele achou que era muito claro que ele não tinha ideia de como usar qualquer um deles, além do óbvio. Ele fez um sinal para o Padre Ville. Sem resposta. Passou o tempo. Um vento frio soprava; a atmosfera estava congelando a essa altitude, mesmo em maio. Os mamilos marrons do Padre Ville, no final de seu peitoral caído, eram como figos secos. Ele não tinha nenhuma cicatriz na sua pele macia, que de alguma forma era mais assustador do que se tudo estivesse marcado. Então o Padre Ville não estava mais lá. Não era magia, ele possuía um estilo de movimento meio louco que era como patinação de velocidade em terra firme. Em um piscar de olhos, ele estava a meio caminho da distância entre eles e jogando a lâmina, seja lá o que for diretamente no pomo-de-adão de Eliot. Eliot mal teve tempo de se afastar. Ele não deveria ter conseguido tempo de sair do caminho. Como um idiota, ele imaginou que o P.V. iria empunhar a lâmina como uma espada, no final daquele longo bastão e, portanto, dar-lhe muito tempo para vê-lo chegar. O que teria sido estúpido, mas tudo bem, já entendi, é uma arma de arremesso. Por direito, aquilo deveria estar saindo da nuca de Eliot, escorregadio e brilhante com fluido da espinha. Mas isso não aconteceu, porque Eliot contava com uma enorme quantidade de proteção mágica invisível na forma do Arsenal Espectral de Fergus, que por sua vez teria salvado sua vida, mesmo que a lâmina o tivesse atravessado, mas, além disso, contava com um montão de outros feitiços de combate realmente úteis de Fergus, que expandiram sua força várias vezes e, o mais importante, aumentaram seus reflexos por um fator de dez e reduziram sua percepção de tempo pelo mesmo fator. O quê? Olhe, o Padre Ville passou toda a vida aprendendo a matar pessoas com uma faca em um bastão. Isso era trapaça? Bom, enquanto ele estava fazendo seus agachamentos e o seja lá o que quer que fosse Eliot passou toda a vida aprendendo magia.
Quando ele e Janet terminaram os feitiços, algumas horas antes, no ambiente congelado antes do amanhecer, Eliot estava tão coberto de truques mágicos que brilhava como um sinal de néon de tamanho real de si mesmo. Depois, eles conseguiram conter esse brilho, de modo que aquela armadura só era visível ocasionalmente, talvez uma vez a cada dois minutos e apenas por um instante por vez, um flash de algo translúcido e perolado. O gatilho para a parte do tempo/reflexo do sistema de encantamento era Eliot enrugar o nariz. Ele fez isso naquele momento, e tudo no mundo parou de repente. Ele se inclinou para trás e se afastou da lâmina lenta e graciosa, perdeu o equilíbrio e pôs uma mão sobre a areia, rolou, depois voltou a ficar de pé enquanto o Padre Ville completava o movimento. Embora você não consiga ser tão grande e gordo como o Padre Ville sem aprender uma coisa ou duas ao longo do caminho. O loriano não parecia impressionado, nem sequer surpreendido, ele só converteu seu impulso em um movimento de giro com o qual ele pretendia atacar Eliot no estômago com a outra extremidade do bastão. Acho que no campo de batalha não vale a pena ficar olhando ao seu redor parecendo impressionado. Embora Eliot tenha ficado impressionado. Ao vê-lo assim em câmera lenta, você tinha que admirar as qualidades atléticas do homem. Era quase um passo de balé, era isso. Eliot observou a arma de madeira aproximando-se lentamente do seu diafragma, levantou-se e, no seu devido tempo, bateu com a força máxima possível com seu bastão de metal. A madeira se rompeu limpamente a um metro do final. Fergus, quem quer que você fosse eu te amo. O Padre Ville corrigiu outra vez a direção, lançando a mão livre para agarrar a peça quebrada enquanto girava no ar. Eliot atingiu esse fragmento antes que seu oponente pudesse agarrá-lo e observou que estava se afastando do alcance do Padre Ville, movendo-se a uma velocidade lunar majestosa. Então, vendo que ele tinha muito tempo, soltou o bastão e bateu no rosto do Padre Ville com uma mão aberta. A violência pessoal não era algo que saia de modo natural de Eliot; na verdade, era desagradável. O que ele poderia dizer, ele era um indivíduo sensível, o destino o abençoou e o amaldiçoou com um coração terno; além disso, a bochecha do Padre Ville era realmente oleosa ou suada. Ele se arrependeu de não usar luvas ou manopla. Ele pensou naquele eremita morto e naquelas árvores queimadas, mas ainda assim ele conteve o golpe. Com sua força e velocidade aumentadas dessa maneira, ele não tinha ideia de como calibrar o ataque. Por tudo o que sabia, ele ia arrancar o rosto do cara. Ele não, graças a Deus, mas o Padre Ville definitivamente sentiu isso. Em câmera lenta se via suas bochechas envolvendo metade do seu rosto. Isso deixaria uma marca. Encorajado, Eliot também soltou a faca, aproximou-se e atingiu um par de socos rápidos ao corpo na caixa torácica do Padre Ville – o instrutor lhe disse que seu melhor golpe era o gancho. O Padre Ville os absorveu e se afastou dançando a uma distância segura para fazer uma respiração pesada e reconsiderar suas escolhas de vida. Eliot o seguiu, batendo e dando bofetadas, em ambos os lados, esquerda à direita. Minha irmã, minha filha, minha irmã, minha filha. Ele tinha o sangue quente. Essa era em todos os sentidos sua luta. Ele não tinha ido buscá-la, mas por Deus ele iria terminar. Tendo essa velocidade proporcionava uma incrível calma. Isso lhe deu tempo para pensar sobre as coisas, para considerar suas próprias decisões de vida. Sobretudo Eliot estava satisfeito com as que ele havia feito. Ele estava no lugar certo. Ele estava vivendo o melhor da sua vida. Quantas pessoas mais em todo o multiverso poderiam dizer isso? Ele acordava
todas as manhãs sabendo o que ele queria fazer, e então ele ia e fazia isso, e quando terminava se sentia orgulhoso. Ele acreditava que era um bom Grande Rei, e ele tinha muitas evidências para apoiá-lo. As pessoas estavam felizes. Quando não estava caindo aos pedaços, Fillory era um bom lugar, um ótimo lugar. Requeria uma quantidade substancial de má administração para fazer de Fillory um lugar desagradável para viver e ninguém iria sair com essa debaixo da supervisão de Eliot, nunca mais. Ninguém a menos do que todos os lorianos. Se ele tinha uma ambição fundamental incompleta, nesse momento, estava relacionado com Quentin. Fazia um ano desde que Quentin foi destronado e expulso de Fillory e Julia havia ido para o Outro Lado. Isso foi um impacto para todos, mas para Eliot mais do que ninguém, ou pelo menos depois de Quentin. O ano desde então havia sido pacífico e próspero, e de certa forma o clima era mais leve no castelo com Josh e Poppy instalados como rei e rainha em vez de Quentin e Julia, os principais pensadores de Fillory. Mas Eliot perdeu Quentin. Ele queria Quentin ao seu lado. Apesar de todas as suas falhas, Quentin havia sido seu melhor amigo ali, e realmente havia sido muito útil. A última aventura foi boa para ele. Tinha acabado com o resto de suas inibições adolescentes, deixando mostrar sua melhor natureza – sua curiosidade, sua inteligência, sua lealdade fanática, seu coração ferido. Fillory não era o mesmo sem ele. Ninguém amava Fillory da maneira que Quentin amava, nem mesmo seu Grande Rei. Ninguém a compreendia como ele. Ninguém gostava como ele, e ninguém poderia consertá-la como ele quando as coisas davam errado. E Quentin estava perdendo muito. A morte de Martin Chatwin e a subsequente crise da magia deram lugar a um período glorioso na história de Fillory, uma nova era de ouro que era diferente de qualquer outra desde o tempo dos Chatwins. Era uma era de lendas, de ações nobres, de grandes maravilhas e altas aventuras que se desenrolavam em um verão dourado que continuava e continuava. Nesse ultimo ano, Eliot e os outros já haviam expulsado um grande dragão barbudo de um cânion nos Dentes de Galo e recuperaram duas Espadas Nomeadas de seu esconderijo. Eles haviam caçado um par de trolls de cinquenta cabeças através do Bosque Sombrio e os forçaram a sair ao ar livre e ouviram um barulho crepitante, como gelo estalando em uma boa vodca tônica, quando se transformaram em pedra sob a luz do sol. Eliot tinha trazido como animal de estimação um gato gnomo preto que se arrepiava e bufava. Quentin teria adorado isso. Francamente, Eliot se preocupava com ele. Quentin era perfeitamente capaz de cuidar de si mesmo, exceto quando ele não era. Ele estava bem quando estava em equilíbrio, mas a última vez que Eliot o viu seu equilíbrio parecia claramente instável. Eliot estava planejando uma maneira de Quentin voltar a Fillory desde o dia em que ele foi expulso, mas ele não chegou muito longe. No fundo de sua mente, estava a ideia de que talvez, se ele vencesse o Padre Ville, e, portanto, salvado o reino, Ember poderia lhe conceder uma recompensa. Pediria a Ember que perdoasse Quentin. Essa era metade da razão pela qual ele tinha estabelecido este duelo. Falando sobre isso, o Padre Ville estava se aproximando novamente, ainda sem muita expressão na sua cara impassível de porco. Eliot sentiu que deveria estar inspirando um pouco mais de terror em seu adversário, mas não importava. Ele mudou o tempo à velocidade normal apenas por um segundo, procurando ar; o Padre Ville estava girando seu bastão quebrado em um delicado padrão de trevo, como se fosse ajudá-lo. Eliot voltou à velocidade
lenta, agachando-se para esquivar do golpe, rodeando o Padre Ville, golpeando o corpo do homem como um saco de pancadas, tentando deixá-lo sem fôlego. Ele deveria ter sido mais cuidadoso. Eliot tinha subestimado o castigo que o Padre Ville era capaz de suportar, ou talvez ele tivesse superestimado o castigo que ele estava dando. Ele definitivamente subestimou a rapidez com que o Padre Ville poderia se mover, mesmo em relação ao período de tempo modificado de Eliot e até que ponto o campeão loriano tinha valorizado perfeitamente seu oponente excessivamente confiante e inexperiente. Ao mesmo tempo em que encaixava uma explosão de golpes no corpo, o Padre Ville invadiu Eliot e conseguiu cercá-lo com os braços. Não importava, Eliot iria se esgueirar – hum. Você pensaria que você poderia apenas – mas não. Era mais difícil do que ele pensava. Custou um momento de hesitação. Notou ao seu lado o rosto suave de bebê do Padre Ville, os dentes amarelos, a respiração ofegante e os braços de presunto estavam começando a espremer e esmagar. O Padre Ville, evidentemente, avaliou a situação e decidiu que não importava a rapidez com que seu oponente se movesse se não pudesse mover um músculo, então ele teve que encaixar todos os socos que foram necessários para agarrar Eliot em um abraço de urso. Ele tinha conseguido, e naquele momento ele estava tentando, lentamente, mas estranhamente imparável, esmagar Eliot até a morte e também afundar os dentes na orelha do seu oponente. Chega. Esse cara era forte e tinha toda a vantagem nessa posição, mas ele não era sobrehumano. Eliot sentiu que ele estava praticamente envolto no Padre Ville naquele ponto, e não tinha respirado adequadamente em cerca de trinta segundos. Ele começou a se libertar. Ainda era muito mais difícil do que se poderia pensar – ele não tinha um ponto de apoio – e o Padre Ville não estava brincando com sua vileza pessoal, mas Eliot escorregou dos braços enormes e tropeçou a alguns metros de distância. Ele ainda estava recuperando o equilíbrio quando sentiu algo dolorosamente golpear seu ombro. Ele arqueou as costas para fugir desse ponto de dor ardente e gritou: — Ah! Nada que os lorianos carregassem deveria ter conseguido penetrar a Armadura Espectral. Eliot se virou, ainda longe do Padre Ville, mas não tão longe como ele esperava; na vida real, os movimentos de ambos teriam sido vistos como um borrão. Esse cara estava usando armas mágicas; Eliot deveria ter examinado com mais atenção essa lâmina. Tinha que ser o metal filloriano. Metal mágico. Aposto que ele pegou do eremita, pensou Eliot. Certamente, essa coisa é feita a partir de uma lâmina de arado de Fillory. Ah, é isso. Estalou Eliot. Em pé novamente, ele girou ao redor da lâmina e agarrou o que restava do eixo da arma, arrancando-a das mãos do Padre Ville. Isso levou alguma pele com ele, pensou ele. Boa. Ele o jogou com todas as suas forças, tão forte quanto Fergus poderia. Ainda estava subindo quando desapareceu na nuvem que pendia ao redor do pico da montanha. Eliot saltou para trás e adotou a posição que seu instrutor de boxe lhe ensinou, depois avançou arrastando os pés. A questão do boxe era, sobretudo para fazer exercícios, além de ser, uma desculpa para aproveitar a companhia do instrutor de boxe, cuja a incrível parte superior do corpo era suficiente para fazer Eliot não sentir falta da pornografia na Internet, mas também tinha
algum valor prático. Soco, soco, cruzado. Gancho, gancho. Ele estava soltando golpes nítidos e firmes. Foi o suficiente para conter-se. Ele estava balançando Padre Ville de volta em seus calcanhares agora. Eliot percebeu que estava mostrando seus dentes e cuspindo palavras a cada golpe. — Você. Matou. Um. Eremita. Seu. Desgraçado. Suado. Não caia idiota. Não caia, eu quero te dar um pouco mais. Eles estavam praticamente contra a linha de frente loriana quando Eliot chutou as bolas do Padre Ville e então em seguida, permitindo-se uma fantasia pessoal, ele fez um movimento arrebatador com a perna e viu o Padre Ville girar no sentido horário ao mesmo tempo, que descia até cair de uma maneira majestosa na areia compacta com um movimento em câmera lenta em que via sua carne flácida vibrar. Mesmo assim, o Padre Ville começou a se levantar. Eliot o chutou no rosto. Havia terminado com essas pessoas de merda. Meu reino, meu país. Meu. Ele largou toda a magia ao mesmo tempo. A força, a velocidade, a armadura, tudo. — Vão embora. Bom, nem tudo isso. Sua voz amplificada ressoou nas paredes de pedra do desfiladeiro como trovão. Ele pegou a ponta quebrada da arma Padre Ville e jogou-a na areia. Felizmente para seu senso teatral ela ficou presa lá em pé. — Vão embora, deixo essa lança quebrada marcando a fronteira entre nossas terras. Se algum homem ou mulher a cruzar, não lhe garanto sua segurança. A misericórdia de Fillory é grande, mas sua memória é imensa e sua vingança é terrível. Hum. Não era exatamente Shakespeare. — Se você mexer com um carneiro, você pode ser atingido pelo chifre — disse ele. É melhor deixá-lo assim. Eliot fez uma cara realmente assustadora ao oponente loriano e se virou para ir embora, sussurrando um feitiço em voz baixa. Ele foi recompensado com um sussurro suave e um som rangendo quando o pequeno toco de madeira que jogou estava crescendo para se tornar um enorme freixo atrás das suas costas. Um pouco clichê. Mas se existem os clichês é por uma boa razão. Eliot continuou caminhando. Sua respiração estava voltando ao normal. Ele tinha feito isso, ele havia mostrado ao mundo que quando se tratava do Grande Rei, ele colocaria tudo em jogo. O desfiladeiro correu de norte a sul e o sol finalmente espreitava por fora da parede leste, tendo estado ocupado iluminando o resto de Fillory por pelo menos uma hora antes. As fileiras de seu exército se separaram para deixá-lo passar. Deus, às vezes ele adorava ser rei. Não havia muitas coisas melhores na vida do que ver suas próprias fileiras fazer o seu caminho, especialmente depois de publicamente dar um verdadeiro chute no traseiro a alguém que merecia isso. Ele evitou o contato visual com as tropas, embora ele apontasse com dois dedos para o mais velho dos gigantes, reconhecendo que ele havia feito um favor pessoal ao Grande Rei ao aparecer. Eu te devo uma, cara. O gigante inclinou sua enorme cabeça em direção a Eliot, com seriedade. Essas criaturas não conheciam piadas. Era uma sensação curiosa, retornar ao tempo real depois de observar o mundo em câmera lenta durante meia hora. Tudo parecia vividamente acelerado: as plantas dançando no vento,
as nuvens se movendo, as pessoas falando. Era uma manhã clara e linda, e o ar funcionava como um refrigerante gelado para o cérebro superaquecido. Ele decidiu que simplesmente continuaria andando – caminharia mais de um quilômetro até o acampamento filloriano sozinho. Por que diabos não? Muitas pessoas insistiam em tratar seu ombro ferido, que provavelmente ainda estava escorrendo sangue, e agora que a excitação estava acabando, começava a doer muito. Mas ele não queria que eles se preocupassem com ele. Ainda não. Tudo em seu devido tempo. A guerra com Loria terminou. A vida era boa. Era engraçado que justo quando você pensava que se conhecia completamente, você se depara com um novo tipo de força, um novo reservatório de poder dentro de você, que você nunca soube que tinha, e de repente você se vê queimando um pouco mais brilhante e mais quente do que você já esteve antes. Eliot pensou que Quentin teria entendido. ••• — Querida! Cheguei! Ele abriu a aba da tenda. — Continue dizendo isso — Janet não olhou para cima. — Talvez algum dia vai ter graça. Janet estava dobrada sobre uma grande mesa de cavalete coberta pelos enormes mapas da terra de Fillory que costumavam seguir o curso de sua breve, mas gloriosa campanha contra Loria. Estavam repletos de figurinhas em miniatura – Eliot os havia feito especialmente para representar ambos os lados da ação. Não era estritamente necessário, porque havia apenas dois exércitos e uma única frente – estavam longe de ser as potencias do Eixo contra os Aliados – mas eles passaram um bom tempo empurrando-os através dos mapas com longas pás de madeira. A tenda estava inundada de luz rosa que atravessava as paredes de seda vermelha. Eliot caiu em uma poltrona. Estava quente na tenda, mesmo a essa altitude: as estações fillorianas eram irregulares e imprevisíveis, e eles estavam em uma série ininterrupta de meses de verão, desde quando, ele não sabia. Era fantástico no início, mas estava começando a ser excessivo. — Você cuidou dos problemas paternais? — Cuidei — disse Eliot. — Meu herói — Ela virou a mesa e o beijou na bochecha. — Você o matou? — Não o matei. Mas chutei sua bunda. — Eu o teria matado. — Bom, da próxima vez você pode ir. — Eu vou. — Mas não haverá uma próxima vez. — Que pena — Janet sentou-se na outra poltrona. — Em antecipação à sua inevitável vitória, convoquei dois pegasus para nos levar de volta ao Whitespire. Eles estarão aqui em alguns minutos. — Quer ver minha ferida de guerra? — Me mostra.
Eliot moveu o máximo que podia sem se levantar, o suficiente para que ela pudesse ver a cratera que o Padre Ville havia arrancado de seu deltoide ou trapézio ou qualquer coisa que esse músculo fosse chamado. — Bonito — disse ela. — Está estragando o estofamento da poltrona. — Isso é tudo? Estragando o estofamento? — Eu perguntaria se você quer uma medalha, mas eu sei que você quer uma medalha. — E eu terei uma — Eliot fechou os olhos, de repente cansado, apesar de ser apenas nove e meia da manhã. A adrenalina tinha desaparecido e ele estava tremendo um pouco. Ele continuou lembrando-se do Padre Ville abraçando ele, esmagando sua caixa torácica. — Vou dar uma para mim mesmo. Talvez eu funde uma ordem, a Ordem da Lança Quebrada. Será para pessoas excepcionalmente corajosas. Como eu. — Parabéns. Você está pronto para voar? — Sim. Estou pronto para voar. Ele e Janet conversavam assim o tempo todo. Os fillorianos não entendiam, achavam que o Grande Rei Eliot e a Rainha Janet se odiavam, mas a verdade era que, na ausência de Quentin, Janet se tornou sua principal confidente. Eliot supôs que isso era em parte porque ambos achavam a verdadeira intimidade romântica indescritível e desinteressante, então, normalmente, nenhum deles tinha um namorado sério, e eles tiveram que recorrer um ao outro por companheirismo inteligente. Eliot costumava se preocupar que a falta de um parceiro estável significava que ele não era psicologicamente saudável – atrofia emocional, talvez, ou fobia de compromisso ou algo assim. Mas isso o preocupava cada vez menos. Ele não se sentia atrofiado ou fóbico. Ele se sentia simplesmente solteiro. Não como Josh e Poppy. Seis semanas depois de ocupar seus tronos, eles eram um casal e depois de mais seis semanas estavam noivos. Ninguém viu isso chegar, mas agora, olhando para trás, era difícil imaginar que alguma vez eles haviam estado separados. Eliot se perguntou se eram as próprias coroas, se havia alguma magia antiga em operação, que causava que qualquer realeza que não estivessem realmente relacionados a se juntar e produzir herdeiros aos tronos. Depois de estar exausto tentando sem sucesso unir Eliot e Janet, o feitiço voltou sua atenção para Josh e Poppy e teve mais sorte. Talvez fosse verdade. Mas Josh e Poppy pareciam realmente apaixonados. Eliot pensou que era uma boa prova de Poppy, pois ela podia ver algum ponto em Josh, que ninguém mais podia ver. Ele não era atraente e, embora ele fosse tão inteligente quanto qualquer um deles, ele não andava por aí para garantir que todos soubessem o tempo todo. Não, o ponto de Josh era que ele tinha um coração grande e nobre. Eliot literalmente levou anos para descobrir isso. Poppy estava aprendendo mais rápido. Agora, os dois tinham feito seu ninho e, uma semana antes, disseram que Poppy estava grávida. Ainda não era público, mas estava começando a mostrar. As pessoas adorariam isso. Não havia um príncipe ou uma princesa em Fillory em séculos. Isso fez Eliot se sentir um pouco solitário e um pouco vazio, mas apenas um pouco. A vida era longa. Havia muito tempo para ele descobrir o que queria. Ele era o Grande Rei em uma Grande Época. Seu trabalho no momento era registrar alguns Grandes Atos. Ele ouviu a batida dos cascos na grama e a ponta rígida de uma asa escovou a parede de seda áspera da tenda ao lado de sua cabeça. Os pegasus haviam chegado. Ele abriu os olhos e levantou-se com dificuldade; ele estava convencido de que a ferida havia deixado de sangrar,
embora pudesse sentir o lugar onde sua camisa estava presa a ela. Quentin tinha sido atingido por uma flecha uma vez. Ele seria curado quando estivesse de volta ao Whitespire. Ele faria com que deixassem uma boa cicatriz. Sem esperar por Janet, ele adotou uma expressão de rei e saiu para fora. Os pegasus trotavam pela grama fria, circulando entre si sem descanso, com suas tremendas asas brancas de águia ainda meio estendidas. Os pegasus odiavam ficar quieto. Eles eram criaturas maravilhosas, brancos e leves como o ar, embora parecessem tão sólidos como qualquer cavalo normal, com músculos espessos e veias azuis sinuosas que se destacavam sob a pele como cabos debaixo de um tapete. Os seus cascos prata – platina? Brilhantes de qualquer jeito – brilhavam no sol da manhã. Pararam de andar e olharam para ele com olhos esperançosos. Eles podiam falar, mas dificilmente se dignaram, nem aos humanos, nem mesmo ao Grande Rei. — Janet! — chamou ele. — Estou indo! — Deixe suas coisas aqui. Eles vão embalá-las para você. — Verdade. Ela saiu da tenda depois de um momento, com as mãos vazias; ela colocou calças de montaria. — Sabe, pensei em uma coisa — disse ela. — Com todo o exército mobilizado assim, por que não aproveitamos o impulso? Seguimos em frente e tomamos Loria. — Tomar Loria? — Exato. Então nós levamos todo o exército para a Terra Nula e marchamos pela fonte e tomamos a Terra. Certo? Isso seria tão fácil! — Às vezes — disse Eliot. — Eu acho tão difícil saber quando você está brincando. — Eu tenho o mesmo problema. Os pegasus pareciam ainda mais relutantes do que o habitual em permanecer na terra. Eles só ficaram quietos tempo suficiente para que Eliot e Janet montassem. O pegasus não usavam selas, então você tinha que agarrar sua crina ou pescoço ou penas ou onde você pudesse agarrar. Eliot sentiu fortes músculos sob a pele enquanto a criatura se elevava ao ar. Subiram em espiral cada vez mais alto, e seus ouvidos apitaram e o acampamento encolheu abaixo deles. Ele viu o desfiladeiro onde lutou contra o Padre Ville, com o exército filloriano ainda formado em fileiras estreitas e os lorianos voltando lentamente para casa. Quando eles estavam talvez a trezentos metros de altitude, os pegasus se endireitaram e viraram a sudeste em direção ao Whitespire. Eliot adorava Fillory em todos os momentos, mas nunca tanto quanto ele via do ar, quando a terra se estendia abaixo como um mapa em um livro amado que você passou toda a sua infância olhando, analisando, desejando que você pudesse cair nele, sentindo que você poderia. E Eliot havia caído. Dali, ele podia ver as antigas paredes de pedra que cruzavam Fillory, construídas por mãos desconhecidas, sem nenhum motivo aparente. Isso fazia com que a paisagem verde parecesse acolchoada. Em alguns lugares, as paredes tinham sido quebradas, haviam sido desmontadas pelo tempo ou animais ou pessoas que precisavam das pedras para fins mais imediatos e práticos. As sebes de cor verde escuro seguiram as estradas principais por quilômetros, linhas
duplas arrumadas a partir dali, mas tão espessas e assustadoras quanto às sebes da Normandia quando você se aproximava delas. Ele fez algumas notas mentais de onde elas estavam ficando um pouco rebeldes. Ele notificaria o Senhor das Sebes. Continuaram subindo até uma nuvem branca, e Fillory desapareceu. As nuvens em Fillory não eram úmidas e decepcionantes como no mundo real em vez disso elas eram quentes, suaves e macias como algodão, sólidas o bastante para serem reconfortantes. Foda-se o amor, foda-se o casamento, foda-se os filhos, foda-se o sexo: este era o romance dele, sua terra de fantasia em cujo leme ele estava sentando, conduzindo-o para o futuro, um mundo sem fim, até que ele morresse e estátuas idealizadas de bom gosto fossem feitas dele. Era tudo que ele precisava. Era tudo o que ele jamais desejaria. Quando saíram das nuvens, estavam no Grande Pântano Norte. Era um lugar ruim lá embaixo, ele sabia disso. Na verdade, a água estava perturbada em uma vasta superfície quando a parte de trás de uma enorme massa vivente se afundou nos pântanos negros. Talvez um dia, se ele estivesse tão entediado, ele lideraria uma expedição lá e veria o que era isso. Embora talvez ele não faria isso. Ele olhou para o pântano por um longo tempo, perdeu o pensamento e, quando olhou para cima, descobriu que não eram dois, mas três. Ember se juntou a eles, entre ele e Janet, voando em formação. Já fazia algum tempo desde que ele havia tido uma audiência com o deus. — Grande Rei — disse o carneiro. — Desejo ter algumas palavras com você. A voz profunda e baixa de Ember era ouvida claramente mesmo sobre o ruído do vento. Ele não tinha asas, e nem sequer se incomodou em galopar, embora ocasionalmente o ar arruinasse seus cachos de lã. Ele simplesmente voou entre eles, suas pernas rígidas de carneiro dobradas debaixo Dele como se estivesse sentado em um tapete voador invisível. — Olá! — disse Eliot em voz alta. — Estou escutando! — Você obteve uma grande vitória pra Fillory hoje. — Eu sei! Obrigado! Talvez fosse hora de falar sobre Quentin. Mas Ember continuou. — No entanto, isso foi apenas uma batalha. Uma guerra está começando, Eliot, uma guerra que não podemos ganhar. A última guerra. — O quê? Espere, não estou entendendo. O que significa isso? Esse não era o discurso que Eliot estava esperando. Ele estava esperando por aquele em que Ember o exaltasse aos céus, que o banhasse de aprovação paterna, que lhe concedesse um desejo. — De que guerra você está falando? — gritou Janet. — Acabamos de esmagar esses caras! Eliot os massacrou! Acabou! — Você não se perguntou como os lorianos conseguiram atravessar a Barreira do Norte pra chegar à Fillory? — Bom, sim — admitiu Eliot. — Um pouco. — Os velhos feitiços se enfraqueceram. Esta invasão foi apenas um sinal que já havia sido anunciado há muito tempo. A guerra que estamos perdendo é contra o tempo. — Ah — disse Eliot. — Tudo bem. Era isso? Uma guerra contra o tempo. Vagamente, ele se lembrou de algo semelhante nos livros, mas fazia muitos anos que ele os havia lido. E mesmo assim ele não os havia lido com
muita atenção. Mais uma vez, lamentou que Quentin não estivesse ali. — O fim está próximo, Eliot — disse Ember. — O fim do quê? — De tudo — disse Ember. — Desta terra. Deste mundo. Fillory está morrendo. — O quê? Ah pare de brincar. Isso é ridículo. Um golpe baixo, na melhor das hipóteses. Fillory não está morrendo. Fillory estava chutando bundas nesse momento. Estes são tempos lendários! Um mundo sem fim. Do que você está falando? Ember não respondeu. Em vez disso, o pégaso falou pela primeira vez. Eliot nunca tinha ouvido um falar. — Ah, não — disse ele. Soltou um suspiro de cavalo. — Outra vez não.
CAPÍTULO 6
Eles deixaram a livraria em dois carros. Um Lexus SUV preto aproximou-se da doca de carga e Lionel colocou cuidadosamente a gaiola no banco traseiro; então ele a prendeu com um cinto de segurança e entrou pelo outro lado. Quando carro se foi, uma limusine branca estacionou no seu lugar. Ainda estava chovendo. — Se eu soubesse que era uma noite de festa — disse Pixie. — Eu teria usado um vestido. Eles entraram na limusine. A disposição dava uma sensação involuntariamente íntima, como se fossem estranhos que de alguma forma acabaram compartilhando uma longa viagem de táxi do aeroporto. Mas eles não eram mais estranhos, agora eram camaradas de armas. Quentin se perguntou se as histórias dos outros eram tão complicadas quanto às dele. Ele se perguntou principalmente sobre a Plum. Pelo que sabia de sua história, ela não deveria ter terminado ali. A limusine tinha o teto espelhado, e o interior era de veludo preto com tiras de LEDs. Havia um teto solar no caso de alguém sentir o desejo de abri-lo e colocar a cabeça para fora. Não era um veículo perfeitamente majestoso, mas havia muito espaço, e os cinco se espalharam nos bancos para manter uma distância máxima entre eles. Ninguém falou enquanto a limusine rodava suavemente através da noite de Nova Jersey, deixaram o estacionamento em direção à rodovia e passaram por uma usina elétrica aparentemente sem fim iluminada com uma grade de luzes laranja pálidas. Por um segundo, Quentin lembrou as noites no Muntjac: deslizando de uma ilha para outra em uma neblina oleosa, no oceano Oriental de Fillory, com a água do mar atingindo a madeira e deixando para trás uma trilha fosforescente. Agora ele estava voltando para o desconhecido novamente. Então, os LEDs acenderam – o adolescente havia encontrado os controles. Ele escolheu uma iluminação de arco-íris estilo discoteca. — O que posso dizer — disse ele. — Eu amo a vida noturna. — Então — disse Plum, ao grupo em geral. — Eu sou Plum. — Eu sou Betsy — disse Pixie. — Quentin. — Meu nome é Pushkar — disse o homem indiano mais velho. Ele tinha uma barba grisalha e parecia muito satisfeito e burguês para se envolver em algo assim. Todos se voltaram para o adolescente. Quentin calculou que ele tinha cerca de quinze anos de idade. — Vocês estão brincando, certo? — disse o adolescente. — Vocês vão usar seus nomes
verdadeiros? — Não — disse Quentin. — Não estamos brincando. E sim. — Bom, eu não. Vocês podem me chamar de Artful Dodger. Pixie – Betsy – soltou uma gargalhada. — Tente de novo. — O que tem de errado com Artful Dodger? Como o personagem em Oliver Twist! — Eu sei de onde é, apenas não vou te chamar assim. — Bom, eu não vou ser Fagin. — Talvez devêssemos chamá-lo de Stoppard — disse Quentin. O garoto parecia confuso. — Não entendi — disse ele. — Isso é de Oliver Twist? — É o nome do homem que escreveu o livro que você estava lendo antes — disse Pushkar. — Na livraria. Rosencratz and Guildenstern Are Dead. — Caramba, eu pensei que aquela merda era de Shakespeare. — Bom — disse Pushkar com complacência. — Você estava enganado. — De acordo. Eu sou Stoppard. Tanto faz. — Stoppard, por favor, coloque o sistema de iluminação em branco neutro. Stoppard bufou alto, mas ele fez. Na luz branca, Quentin podia ver melhor, e o que ele viu eram cinco pessoas que não pareciam uma equipe de ladrões de classe mundial. Em vez disso, eles davam mais a impressão de ter se juntado à Legião Estrangeira Francesa: eram a escória do mundo mágico, as almas perdidas, que estavam ali porque não as queriam em nenhum outro lugar. Quando ele se recostou, Quentin percebeu o cheiro de cerveja fedida e fumaça de cigarro, os fantasmas das últimas festas de despedida de solteiro. — Alguém sabe pra onde estamos indo? — perguntou Betsy, estudando seu reflexo no teto. — Se eu tivesse que adivinhar — disse Plum. — Eu diria Newark. — Você não precisa adivinhar — disse Stoppard. — Nós estamos indo pro Hotel Marriott no Aeroporto Internacional de Newark. — Como você sabe disso? — Eu vi o cara colocá-lo no GPS. — Isso é o que eu chamo de um truque de mágica — disse Betsy. — Merda, eu esperava que fosse pelo menos um hotel DoubleTree. De todos eles, Betsy era a única que realmente se encaixava no perfil. Muita atitude, muita agressividade. E algo mais. Ela levava tudo no tom de brincadeira, mas ela tinha o ar de alguém que havia sobrevivido a algumas dificuldades ao longo do caminho. — Então, vocês já fizeram coisas assim antes? — perguntou Plum. Ela estava mostrando muita persistência ao manter a conversa em andamento. — Como o quê? — disse Stoppard. — Como roubar algo? — Sim, como roubar algo. — Baixar pornografia no Torrent não conta — disse Betsy. — Eu já — disse Quentin.
— Sério. Você já? — Betsy tinha sobrancelhas muito expressivas. Ela as uniu em um gesto cético. — O que você roubou? — Uma coroa. Algumas chaves. Betsy não pareceu impressionada, nem de má vontade ou de outra forma. — Alguém mais? — Eu roubei coisas — disse Stoppard. — Por exemplo? — Como eu vou te contar! — ele abriu o minibar, mas estava vazio. Ele fechou-o. — Corvo mesquinho. — Como se você fosse um grande bebedor. Quantos anos você tem, doze? — Não é um corvo, é um melro — disse Plum. — Os corvos têm bicos pretos. Este é marrom. A atmosfera na limusine era ligeiramente cômica – poderia ter sido um grupo de turistas no mesmo teleférico, passando um frasco de schnapps logo antes de chegarem ao topo da montanha e esquiarem em direções diferentes para sempre. Exceto que eles não fariam isso. Quentin achou estranho pensar que ele poderia ter que confiar sua vida a essas pessoas. — Me digam — disse Pushkar. — Quem daqui foi pra Brakebills? — O que é Brakebills? — perguntou Stoppard alegremente. — Ah, meu Deus — Betsy parecia que estava pensando em saltar do carro. — Isso é como uma porra de o Clube dos Cinco de quatro rodas. — Eu fui — Quentin não conseguiu pensar em nenhum motivo para manter isso em segredo. — Eu também — Plum encolheu os ombros. — Mais ou menos. A limusine desacelerou e passou por um quebra-molas. Já estavam quase no aeroporto. — Então, imagino que devemos ter especialidades, ou algo assim? — disse Plum. — É assim que isso funciona? Eu tive a impressão de que deveríamos ter habilidades especiais ou algo do tipo. — Você está dizendo que não tem nenhum talento especial — disse Betsy. — Foi isso o que eu disse? Provavelmente estou aqui porque querem alguém que cria ilusões. — Eu sou especialista em transporte — disse Pushkar resolutamente. — E também um pouco de precognição. — Stoppard? — Artefatos — disse ele com orgulho. Quentin o classificou provisoriamente como um tipo de prodígio ou um talento precoce. Isso explicaria sua juventude e o tratamento especial do pássaro. — Muito bem — disse Betsy. — Acho que o meu é a ofensiva. Penetração. Dano. O que você faz, Quentin? Ela falou como se não estivesse completamente convencida de que este era seu nome verdadeiro. — Pouca coisa — disse Quentin. — Minha disciplina é o reparo. — Reparo? — disse Stoppard. — Por que diabos precisamos de alguém que conserta coisas?
— Não faço ideia. Você terá que perguntar ao pássaro. Quentin duvidava muito que esse fosse o motivo da sua presença. Ele duvidava cada vez mais. Felizmente, foi uma viagem curta: a limusine parou sob o toldo iluminado do Marriott do aeroporto e os carregadores com librés baratos foram encontrá-los, provavelmente esperando que contivesse um par de bêbados recém-casados que davam grandes gorjetas. Eles ficariam decepcionados. — Estou ansiosa pra sair daqui — disse Betsy. — Fale por você mesmo — disse Plum. — Eu nunca fui a um baile. ••• Lionel e o pássaro haviam reservado três suítes. Os cinco estavam sentados em um enorme sofá bege em uma das salas, esperando receber instruções. Betsy olhava o cardápio do serviço de quarto. O pássaro bicava alguns amendoins do minibar. Havia algumas Heinekens na mesa de café, mas apenas Stoppard estava bebendo. A julgar pela sua expressão, não parecia impossível que essa fosse sua primeira vez bebendo uma cerveja. — Muito bem — disse Lionel. — Aqui está tudo o que sabemos e o que não sabemos. — Ele tinha a uma atitude tediosa de um cara do suporte técnico explicando sobre um aparelho para um cliente. Ele estava parado ao lado da TV de tela plana, que ele havia retirado da tomada. Ele tocou a tela e uma imagem apareceu – aparentemente ele era capaz de projetar o que tinha em mente, um truque que Quentin nunca tinha visto antes. — Esta é a mala. Não é a real, mas da mesma marca e modelo. Era uma mala de couro bonita, mas modesta, marrom clara, agradavelmente amassada, muito inglesa, com muitas correias e fivelas bonitas. Parecia pronta para passar um fim de semana no campo. — Então estamos à procura de Bertie Wooster — disse Quentin. Ninguém riu. — Temos certeza de que está na costa leste — Um mapa apareceu na TV apagada, mostrando os estados orientais com possíveis locais marcados e anotados. — Também estamos convencidos de que as pessoas que a têm não sabem o que têm dentro. Até onde sabemos, eles não conseguiram abri-la. — Por que você não a compra diretamente? — disse Plum. — Se eles não sabem o que têm dentro. É óbvio que você tem muito dinheiro. — Nós tentamos — disse Lionel. — Eles não sabem o que têm, mas estão convencidos de que é algo grande, e eles não querem desistir até que saibam o que é. Eles o adquiriram como parte de um tesouro de artefatos de um revendedor que presumimos que eles mataram. Infelizmente, nossas tentativas de compra apenas confirmaram suas estimativas de valor. — Espera — disse Stoppard. — Eles o mataram? — Ela. Sim. Os olhos de Stoppard se arregalaram. Ele parecia mais animado do que horrorizado. Ele tomou outro gole apressado. — Uma coisa com a qual vocês não precisam se preocupar é a respeito da sua consciência
— disse Lionel. — Eles são idiotas de marca maior. Eles se chamam de Casal. — Duas fotos apareceram lado a lado na tela, um homem e uma mulher, com trinta e poucos anos, de boa aparência, evidentemente tiradas de alguma distância com uma lente de longo alcance. — Eles são manipuladores. Eles trabalham nos bastidores, misturando-se com os civis. É assim que eles se divertem; é um grande jogo para eles. Quentin franziu a testa. Ele tinha ouvido falar de magos que faziam isso: eles competiam entre si para agitar o mercado de ações, manipulavam eleições, começavam guerras, elegiam papas. O mundo mundano era um excelente tabuleiro de xadrez para eles. Supostamente, todo o caos eleitoral de 2000 foi devido a dois magos que haviam feito uma aposta. — Como vamos encontrá-los? — perguntou ele. — Não se preocupe com isso. — Ainda não entendo por que você quer a mala — disse Plum. — Você não precisa entender — disse o pássaro. — Nós não pagamos você por isso. — Bom não. Acho que não. Mas tudo isso parece bastante vago. Betsy gargalhou. — Vago! Eu amo isso. Você está falando com um pássaro em um hotel Marriott no aeroporto. Betsy estava certa. Quentin estava ansioso para ficar com Plum sozinho e perguntar por que ela estava fazendo isso e o que ela sabia a respeito disso e se ela estava bem. Ele estava preocupado com ela, e, além do mais, ele precisava de um aliado, e ela era a candidata mais provável. Betsy pegou o telefone e começou a sussurrar confidencialmente para o serviço de quarto. — Tem certeza de que não precisamos de mais pessoas? — perguntou Quentin. — Que tal um vidente? Um curandeiro? — Tenho certeza. — Quando você espera que isso aconteça? — perguntou Pushkar. — Em quanto tempo? — De todos eles, ele era o que menos parecia um ladrão profissional. Ele nem sequer parecia um mago. Talvez fosse uma camuflagem; ele certamente parecia ser o mais confortável com toda a situação. — Nós não sabemos — disse Lionel. — Sim, mas é uma questão de semanas? Meses? Devo avisar minha família. — Ele era o único deles que usava um anel de casamento. — Eu não vou morar no Marriott do aeroporto por meses — disse Betsy interrompendo sua conversa por telefone. — Pra sua informação. Ou semanas. Nem mesmo uma única semana. As únicas fibras naturais do meu quarto são meus próprios cabelos na banheira. — Assim que soubermos, vamos avisá-los. — Então, vamos recapitular — interveio Quentin. — Duas pessoas ruins – assassinos conhecidos, que, com todo o devido respeito, dão muito mais medo do que nós – possuem uma mala em algum lugar da costa leste, localização precisa desconhecida, conteúdo desconhecido, sob um vínculo incorporado. E nós vamos roubar isso deles. — Nós temos uma vantagem numérica — disse o pássaro. — E temos um elemento de surpresa. — Se isso funcionar, eu ficarei muito surpreso — disse Pushkar alegremente. — Há algo
que você não está nos contando? — E sobre o vínculo incorporado? — disse Plum. — Como vamos quebrar isso? Afinal, é teoricamente impossível. — Teremos que fazer o impossível — disse o pássaro. — É por isso que contratei magos e não contadores. Eu mencionei os recursos antes. Discutiremos as necessidades de cada um individualmente. A reunião estava se desintegrando pouco a pouco. Quentin levantou-se. Eles poderiam conversar sobre suas necessidades mais tarde, seja lá o que fossem. Por enquanto, ele precisava de um pouco de ar fresco e alguma comida, e talvez uma bebida para comemorar o início de sua nova vida no crime. Mas antes de chegar à porta, algo macio escovou sua orelha e beliscou seu ombro e ele teve que resistir ao impulso instintivo de dar uma bofetada. Era o pássaro. — Cristo! — disse ele. — Não faça isso. Talvez você tenha que se acostumar com isso. Julia se acostumou. — Você sabe por que eu te escolhi para vir? — O pássaro sussurrou, colocando o bico no ouvido dele. — Tenho um bom palpite. — Não é por causa de sua habilidade com reparos. — Eu não ia dizer isso. O pássaro voou de novo, de volta ao ombro do paletó de Lionel, que Quentin percebeu estar gasto e manchado pelo uso. ••• Plum concordou em encontrá-lo no bar do hotel. As luzes eram muito claras, e havia televisores demais, mas era um bar, e era outro lugar onde Quentin se sentia em casa, como as livrarias. As bebidas pareciam muito com livros na realidade: não importava onde você estivesse o conteúdo de uma vodca tônica era sempre mais ou menos o mesmo, e você podia contar com isso para levá-lo a algum lugar melhor ou, pelo menos para fazer o presente mais interessante. Os outros clientes pareciam viajantes de negócios e turistas que haviam ficado presos por voos cancelados; olhando em volta, Quentin estava convencido de que não havia uma única pessoa no bar que estivesse ali por escolha. Não havia tempo para meias-medidas. Ele se sentou ao lado de Plum e pediu um martini de gin seco, misturado. — Eu pensei que você fosse uma pessoa que preferisse vinho — disse Plum. Ela pediu água mineral. — Ultimamente eu tive que aumentar a minha dose. Eu que pensei que você fosse uma pessoa que preferisse vinho. — Acho que agora é melhor manter minhas ideias claras. Eles assistiram televisão por alguns instantes, um jogo de futebol. O campo verde parecia fresco e convidativo; era quase uma pena que estivesse coberto de jogadores de futebol. Plum não parecia ansiosa para começar a conversa, então ele quebrou o silêncio. — Então, como eles entraram em contato com você?
— Por carta — disse ela. — Quando voltei para o meu quarto naquela noite, ela já estava na minha cama. Ainda estou tentando entender como eles fizeram isso. Até agora é a coisa mais impressionante desta operação. — Você tem certeza que quer estar aqui? — Claro que não quero estar aqui — disse Plum. — Eu quero estar no meu maldito dormitório, terminando meu maldito ultimo ano como uma pessoa normal. Mas isso não vai acontecer. Então… — Estou apenas preocupado com os riscos. — Bom, eu também. Mas eu não tenho muitas outras opções agora. Não que seja da sua conta. Eu não sou mais sua responsabilidade. — Eu sei disso. — E isso não te da chance de flertar comigo. — Jesus Cristo — disse ele. — Me dê um pouco de consideração. Ele tinha certeza de que não era com ele que ela estava chateada. Quentin queria ajudá-la. Sua própria transição de Brakebills para o mundo real também não foi exatamente digna. Quando se formou, achou que a vida seria como um romance, com ele como protagonista de sua jornada heroica pessoal, e o mundo lhe proporcionaria uma série infinita de males para triunfar e lições da vida para aprender. Demorou um pouco para perceber que não era assim que funcionava. Seu martini chegou. Uma grossa camada de casca dourada de limão estava submersa em suas profundezas prateadas; se espalhou uma fina camada oleosa brilhosa na superfície. Ele bebeu rapidamente antes que a bebida começasse a aquecer. — Olha, desculpa — disse ela. — Eu não queria machucar você. Deus sabe que não é sua culpa. É só que... estou com problemas. — Ela balançou a cabeça, impotente. — Não sei o que estou fazendo. Eu ainda não contei aos meus pais o que aconteceu. Não sei como fazer isso. Brakebills era muito importante pra eles. Eu acredito que eles investiram demais em mim. Sou filha única. — Você quer que eu fale com eles? — Hum — Ela o avaliou com os olhos. — Não, não acho que isso vai ajudar. — Eu também sou filho único. Embora meus pais tenham investido pouco em mim. — Bom, eu entendo, mas no meu caso vai estragar tudo. — Mas é bom que eles se preocupem — disse Quentin. — Eu não quero soar como Pollyanna, mas se eles realmente amam você, eles vão continuar a te amar, aconteça o que acontecer. — Ah, eles me amam — A voz de Plum subiu novamente. — Eles vão me amar, é claro! Eles só vão passar o resto da vida olhando pra mim como se eu fosse um pássaro doente com uma asa quebrada que nunca vai melhorar. Ela sugou com força a sua água mineral através de um canudo. Então continuou: — Eu não sei. Enfim, isso surgiu e eu não sabia o que fazer, e pensei em dar uma olhada, e aqui estou eu. Pelo menos é diferente. E você? — Similar — disse Quentin. — Recebi uma carta. Eu ia ignorar, mas depois me vi subitamente sem emprego. Eu estava curioso. E aqui estamos nós. — Não me entenda mal — disse ela. — Sinto alguma responsabilidade por isso.
— Esqueça isso. — Eu só... — Sério, esqueça isso. Fiz minhas próprias escolhas. Ele disse sem hesitação. Era verdade. — Então você acha que teremos sucesso nessa missão? — Não tenho ideia — disse Quentin. — Esse pássaro está gastando muito dinheiro. Ele tem que estar razoavelmente convencido de que podemos fazer isso. — Ou razoavelmente desesperado. Quentin podia sentir o martini fazendo seu trabalho de inverno, congelando sua mente, dando um banho de prata em seus lobos frontais, preparando o terreno para um congelamento completo. Ele não jantou, e o efeito veio mais rápido. Talvez ele fosse pedir outro. — Você sente falta de Brakebills? — Plum não olhou para ele. Na TV, com uma cabeçada a bola bateu na trave. — Claro que sim — disse ela. — Todo o tempo. Mas estou me acostumando com isso. Não é o pior sentimento do mundo. E há muito mais vida fora da escola. Estou tentando aproveitar ao máximo. — Agora você soou como Pollyanna. Quentin sorriu. Estava claro que Plum ia superar, ela era jovem e muito pouco materialista, mas também era muito dura. E muito inteligente. Talvez eles pudessem ajudar um ao outro. Ele chamou a atenção do garçom e deu um tapinha no copo. — Vou te dizer o que eu estou querendo saber — disse ele. — Eu estou querendo saber como vamos abrir essa mala, se o Casal não pôde. — Eu tenho uma teoria sobre isso. Embora eu não ache que você vai gostar. — Porque não? — Porque eu não gosto — disse Plum. — Há algo que você provavelmente deveria saber sobre mim, é... — Muchachos — Alguém acertou os dois no ombro ao mesmo tempo. Era o Stoppard. — O que estamos bebendo? Ele parecia feliz pelo jeito que apenas alguém bêbado pela primeira vez em sua vida pode ser feliz. Era inacreditável que eles estavam lhe dando álcool, considerando que ele era menor de idade e já estava excessivamente bêbado. Ele franziu a testa para eles com os olhos turvos. — Esperem — disse ele. — Vocês dois se conhecem ou algo assim? De antes? — Pode-se dizer que sim — disse Quentin. — Não é o que você pensa — disse Plum. — Aham — Stoppard sorriu como se quisesse dizer que ele sabia mais. — Realmente não — disse Quentin. — Acabei de arruinar a vida dele, nada mais — disse Plum. — E a minha. E eu acho que talvez seja melhor tomar uma bebida afinal de contas.
CAPÍTULO 7
Pode-se dizer que tudo começou como um trote inocente, mas isso não seria realmente verdade. Até mesmo Plum teve que admitir que não foi totalmente inocente. E, talvez, no fundo, foi por isso que ela fez isso. Plum era a presidente e fundadora da Liga, embora não foi oficialmente eleita, mas ninguém questionou seus status. Ao recrutar os outros, ela havia apresentado a Liga como uma antiga e gloriosa tradição de Brakebills, algo que realmente não era, embora Brakebills estivesse presente há cerca de quatrocentos anos, parecia pouco provável a Plum que outra Liga existisse em algum momento do passado, ou pelo menos outro grupo com os mesmos princípios gerais. A possibilidade não poderia ser descartada. Embora, na verdade, ela tenha tirado a ideia de uma história de P. G. Wodehouse. A questão era a seguinte: Wharton estava se comportando mal, e no julgamento da Liga ele teria que passar por um trote por isso. Então talvez parasse Wharton, ou ele começaria a se comportar um pouco menos mal, ou pelo menos a Liga teria a satisfação de ter o feito sofrer por seus crimes. Isso não poderia ser chamado de inocente, mas você tinha que admitir que era bastante compreensível. E de qualquer forma, já houve trotes inocentes? Plum adorava Brakebills. Era novembro de seu último ano e ela ainda não estava cansada nem um pouco. Ela amava as suas muitas e variadas e complexas tradições, os rituais e as mitologias com um amor sincero e entusiasta pelo qual ela se recusava a sentir vergonha. Em qualquer caso, ela acreditava que escola deveria lhe oferecer ainda mais motivos para amá-la, e essa foi uma das razões pelas quais ela criou a Liga. Elas se reuniam à noite em uma pequena sala de estudo trapezoidal perto da Torre Oeste, que, pelo que Plum sabia, havia escapado da rede de vigilância magica da faculdade, então era seguro violar o toque de recolher lá. Ela estava deitada de costas no chão, que era a posição em que normalmente dirigia as reuniões da Liga. O resto das garotas estavam espalhadas pela sala em sofás e cadeiras, murchas e exaustas, como confetes de uma festa bem-sucedida, mas cansativa, que todo mundo ficava aliviado ao ver que estava quase acabando. Plum fez a sala ficar silenciosa – era um pequeno feitiço que devorava todo som em um raio de cerca de dez metros. Quando Plum fez o truque de mágica, todo mundo percebeu. — Vamos colocar isso em votação — disse ela gravemente. — Todos aqueles a favor de pregar um trote em Wharton, digam sim.
Os sins vieram em uma variedade de tons: com entusiasmo, ironicamente e aquiescência sonolenta. Da posição privilegiada de Plum no chão, com os olhos fechados e o cabelo castanho desdobrado como um leque no carpete, que outrora fora macio e peludo, mas que pela força de pisá-lo fora transformado em uma superfície fina de um tom cinza claro, a aprovação foi mais ou menos unânime. Plum teatralmente ignorou os nãos. Elas iriam fazer isso. O crime de Wharton não era uma questão de vida ou morte, mas a Liga jurou impedi-lo. Darcy, esparramada no sofá, analisou seu reflexo em um longo espelho com uma moldura dourada listrada. Ela usava um penteado afro volumoso dos anos setenta; Ela ainda tinha um pente afro saindo do cabelo. Ela brincou com sua imagem no espelho – com suas duas longas e elegantes mãos morenas, ela fez um feitiço que as esticou e depois as achatou, esticou e depois se achatou, esticou, achatou. Sua cabeça inchou até o tamanho de uma bola de praia e depois um balão em forma de salsicha. Plum não entendia os detalhes técnicos do feitiço, afinal a magia dos espelhos era a disciplina de Darcy. Foi um pouco exibicionista, mas não se podia dizer que Darcy tivesse muitas oportunidades de usá-la. Os fatos do caso Wharton eram os seguintes. Em Brakebills, a maioria dos deveres de serviço no jantar era feita por calouros, que então comiam separadamente. Mas, por tradição, um estudante do quarto ano era eleito todos os anos como um sommelier, encarregado de selecionar os vinhos, de servir e outras coisas, e a quem era confiada à chave da adega. Wharton recebeu essa honra e não sem razão. Ele sabia muito sobre vinho; ou pelo menos ele podia lembrar os nomes de várias regiões vinícolas, apelos e qualquer outra coisa. No entanto, de acordo com a Liga, Wharton havia pecado contra a honra de sua posição. Ele havia pecado do modo mais sério ao sistematicamente racionar o vinho, especialmente para o quinto ano (os “Finns” na gíria de Brakebills), que recebiam dois copos de vinho no jantar. Sério, ele servia cerca de dois terços do que deveria. Todos concordaram. Plum não bebia muito pessoalmente, mas a Liga levou muito a sério todas as ameaças ao fornecimento de vinho. Para esse crime não poderia haver perdão. — O que você acha que ele faz com tudo isso? — disse Emma. — Faz com o quê? — Com todo o vinho extra. Deve estar pegando pra ele. Aposto que ele desvia uma garrafa todas as noites. Havia oito meninas na Liga, das quais seis estavam presentes. Emma era a única do segundo ano. — Não sei — disse Plum. — Acho que ele bebe. — Ele não pode conseguir beber uma garrafa todas as noites — disse Darcy. — Ele e seu namorado então. Qual é o nome dele, é grego? — Epifanio — disse Darcy e Chelsea juntas. Chelsea estava deitada no mesmo sofá que Darcy, mas na outra ponta, os joelhos levantados, tentando preguiçosamente estragar os truques de espelho de Darcy. Sempre era mais fácil estragar o feitiço de alguém do que conjurar você mesmo. Essa era uma das pequenas injustiças da magia. Darcy franziu a testa e se concentrou mais, contrariando a pressão. A interferência causou
um zumbido audível e, sob o efeito do estresse, o reflexo de Darcy girou em espiral sobre si mesmo. — Pare — disse ela. — Você vai quebrá-lo. — Provavelmente tem algum feitiço permanente que o consome — disse Emma. — Ele tem que alimentar com vinho uma vez por dia. Por uma questão de virilidade. — Espere — disse Plum. — Você está insinuando que Wharton tem um feitiço movido a vinho que age vinte e quarto horas em seu pênis? — Bom — Emma corou. Ela se excedeu na presença de alunas mais velhas e melhores. — Você sabe. Ele é tão gostoso. Enquanto todos se distraíam com a questão da virilidade de Wharton, Chelsea conseguiu fazer com que o reflexo de Darcy colapsasse em si mesmo, terrivelmente, como se tivesse sido sugado para um buraco negro, até que desapareceu por completo. No espelho, parecia que ela nem estava lá, exceto que a almofada do sofá estava levemente afundada. — Ha — disse Chelsea. — Gostoso não significa virilidade — Essa era Lucy, uma Finn pálida e intensamente filosófica; seu tom traía um toque do que poderia ter sido a amargura de sua experiência pessoal. — Enfim, eu aposto que ele dá pro fantasma. — Não tem fantasma — disse Darcy. Alguém sempre dizia que havia um fantasma em Brakebills. Foi o assunto daquele ano – havia praticamente um culto em torno disso. Emma afirmou que o viu uma vez, observando-a através de uma janela; Wharton disse que também o tinha visto. Plum secretamente também queria ver um fantasma, mas você nunca pode encontrá-lo quando você está procurando por ele. Ela não estava totalmente convencida de que existia. Era como dizer que havia uma Liga, ninguém poderia provar isso de qualquer maneira. — Esse é outro assunto — disse Chelsea. — O que significa virilidade? — Isso significa que a ferramenta dele está funcionando — disse Darcy. — Meninas, por favor — disse Plum. — A ferramenta de Wharton não tem nada a ver aqui. A questão é o que fazer com o vinho desparecido. Quem tem um plano? — Você tem um plano — disseram Darcy e Chelsea ao mesmo tempo, novamente. As duas eram como gêmeas. Era verdade, Plum sempre teve um plano. Seu cérebro simplesmente parecia segregá-los naturalmente, deixando-a sem escolha a não ser compartilhá-los com o mundo ao seu redor. Tinha um traço um tanto maníaca. O plano de Plum era aproveitar o que ela percebia como o calcanhar de Aquiles de Wharton, que eram seus lápis. Ele não usava os fornecidos pela escola, que, no que diz respeito à Plum, eram mais que funcionais e suficientes até agora: a cor azul-escuro de Brakebills com o nome da escola escrita em letras douradas na lateral. Mas Wharton não gostou deles – ele disse que eles eram muito gordos, que ele não gostou da sensação em suas mãos. A ponta era macia. Então ele trouxe os seus próprios lápis de casa, muito caros. Na verdade, os lápis pessoais de Wharton eram notórios: verde-oliva e feitos de madeira nobre, oleosa e aromática, que liberavam uma fragrância cerosa que lembrava árvores exóticas da floresta tropical. As borrachas estavam contidas em anéis de aço cinzento opaco que pareciam industriais e ricos demais em carbono para a simples tarefa de conter as
borrachas, que eram, em vez das habituais rosas carnudas, um preto que devorava a luz. Ele os mantinha em uma caixa plana prata como uma cigarreira que também continha (em seu próprio ninho de veludo amassado) uma pequena faca afiada que ele usava para manter uma ponta quase sinistra. Além disso, ele provavelmente havia participado de algum debate ou do decatlo acadêmico ou algo similar em alguma fase anterior de sua vida, porque ele sempre fazia esses truques com lápis, do tipo que costumava ser usado para intimidar um rival. Ele fazia constantemente, de maneira inconsciente e aparentemente sem querer. Era irritante. O plano de Plum era que a Liga roubasse os lápis e os mantivesse em troca de resgate, com o resgate sendo a explicação o que diabos Wharton estava fazendo com todo aquele vinho, junto com a promessa de parar de fazer o mesmo. Às onze e meia daquela noite, a Liga toda já estava bocejando, e Darcy e Chelsea haviam conseguido restaurar o reflexo de Darcy e então começaram a discutir tudo de novo, mas o trabalho preliminar estava concluído. O plano foi totalmente explicado, desenvolvido, aprovado, melhorado e logo depois complicado desnecessariamente. Alguns refinamentos de crueldade foram adicionados, e todos os papéis foram divididos. Era uma justiça muito severa, mas alguém tinha que impor uma ordem em Brakebills e, se a faculdade não iria fazer nada, as muitas mãos da Liga eram obrigadas a fazê-la. A administração poderia fechar os olhos se quisessem, mas os muitos olhos da Liga estavam bem abertos e não piscavam. O reflexo de Darcy estremeceu e ficou turvo, preso entre feitiços e contra-ataques como uma xícara de chá em um torno. — Pare com isso — disse Darcy, realmente irritada dessa vez. — Eu te disse… Ela disse a ela e, naquele momento, aconteceu: o espelho quebrou com um tique alto e agudo, como um movimento para frente de um mecanismo de relógio. Uma estrela estilhaçada apareceu no canto inferior direito do vidro, cercada por anéis concêntricos e finas linhas de fratura que se estendiam. Por alguma razão, deixou Plum desconfortável – por um momento ela sentiu que o pequeno espaço era uma batisfera que havia atingido uma profundidade tremenda, as janelas estavam quebrando e o oceano frio, pesado e selvagem estava prestes a entrar... — Ah, merda! — disse Chelsea. Ela colocou as mãos na boca. — Espero que essa coisa não tenha sido muito cara. ••• Plum se levantou às oito horas da manhã seguinte, o que não era seu habitual, mas o sono extra, em vez de descansar seu cérebro, tinha deixado tudo mais confuso. Ele havia apagado todos aqueles pensamentos claros que ela teoricamente tinha dentro de seu crânio. Sua tendência depressiva, o outro lado de seu temperamento maníaco, estava se agitando. Por que eles estavam fazendo isso? Ela queria saber. Que perda de tempo, de esforço. De lápis. Plum precisava se mexer, mas ela estava tendo problemas para atribuir significados as coisas; os significados ficavam descascando como adesivos antigos. Como uma Finn que havia terminado seu curso obrigatório, Plum estava participando de todos os seminários daquele semestre, e sua primeira aula foi um colóquio sobre um período
mágico, a magia continental do século 15 para ser mais específica – muito material elementar e estranhas técnicas de adivinhação e Johannes Hartlieb. Holly – uma garota da Liga com um rosto bonito, exceto por uma marca de nascença cor de vinho que cobria uma orelha – estava sentada na frente dela na mesa, e tal era o estado de confusão de Plum que Holly teve que tocar seu pequeno nariz pontudo significativamente, duas vezes, antes que Plum lembrasse que aquele era o sinal de que as fases um e dois do plano haviam sido completadas com sucesso. Fase Um: “Selvagem, mas eficaz”. Poucas horas antes o namorado de Chelsea a trouxe para a Torre dos Meninos, sob o pretexto de um encontro sexual antes do amanhecer. Depois que a natureza seguisse seu curso, Chelsea teria ido até a porta de Wharton, encostou suas costas contra ela, tocou seus dedos nas têmporas num gesto tão habitual que nem sabia que o fazia, revirou os olhos para trás e entrou em seu quarto em um estado astral tênue e prateado. Chelsea fazia isso o tempo todo – a projeção astral era sua disciplina – mas seguia sendo uma das ações mágicas mais radicalmente belas que Plum já viu. Chelsea virou o quarto de cabeça para baixo em busca do estojo de lápis, encontrou e o pegou com suas duas mãos quase substanciais. Ela não conseguiria tirar o estojo do quarto daquele jeito, mas não precisava. Tudo o que ela tinha que fazer era levá-lo para um lugar onde pudesse ser visto da janela. O próprio Wharton poderia ter visto isso ou não, dependendo se ele estava dormindo ou não, mas isso não importava. Que o visse. Porque, uma vez que Chelsea colocou o estojo sobre a janela, a séria Lucy tinha uma linha de visão de uma janela em uma sala de aula vazia na ala em frente ao quarto de Wharton, o que significava que ela poderia teletransportar o estojo de lápis naquela direção, de dentro do quarto de Wharton através do ar. Um metro era o máximo que ela podia movê-lo, mas isso era o bastante. Graças a Deus havia pessoas com disciplinas realmente úteis. O estojo de lápis cairia então mais de dez metros onde Emma esperava tremendo nos arbustos no frio de madrugada de um dia de novembro para pegá-lo com um cobertor. Nenhuma magia era necessária. Eficaz? Inegavelmente. Desnecessariamente complexo? Talvez. Mas a complexidade desnecessária era a marca da Liga. Assim funcionava a Liga. Depois foi para a Fase Dois: “Café da manhã dos Campeões”. Wharton chegaria tarde, depois de ter passado a manhã procurando freneticamente em seu quarto. Através de uma névoa de ansiedade, ele mal notaria que seus flocos de aveia de manhã não haviam sido colocados diante dele por um aluno anônimo do primeiro ano, mas por Holly, aquela com a orelha violeta disfarçada como tal. A primeira mordida não passaria despercebida. Ele parou de comer e examinou seus flocos de aveia matinal com maior atenção. Eles não seriam polvilhados com as generosas pitadas de açúcar mascavo, mas com uma leve camada de lascas de lápis aromáticas verde-oliva. Cortesia da Liga. ••• Com o passar do dia, Plum entrou no espírito do trote. Ela sabia que seria assim. Na maior parte apenas suas manhãs que eram ruins. Era preciso muita energia para ser Plum. Alguns dias, ela só precisava de algumas horas para acelerar.
Sua agenda continuou: Cinética Avançada Acelerada; Gramática Quântica; Magia de Tandem de Mãos Unidas; Manipulação de Plantas Lenhosas. A carga horária de Plum teria sido assustadora para um candidato a doutorado, provavelmente para vários candidatos a doutorado, mas Plum chegou a Brakebills com uma cabeça cheia de mais teorias e práticas de magia do que a maioria dos alunos tinha quando saíam. Ela não era uma dessas pessoas que passaram pelo primeiro ano com mãos doloridas e olhos cheios de estrelas. Plum era inteligente, e Plum tinha vindo a Brakebills preparada. Como era a única faculdade credenciada a ensinar magia no continente norte-americano, Brakebills tinha um número gigante de candidatos e esse número precisava encolher. Tecnicamente, ninguém aparecia lá por iniciativa própria; Reitor Fogg simplesmente escolhia os melhores alunos do ensino médio. A nata da sociedade, aqueles que se destacavam os casos extremos de gênio precoce e motivação obsessiva, as anomalias estatísticas que o cérebro apresentava e a grande tolerância à dor que o estudo da magia exigia. Fogg os separou e fez uma oferta que não podiam recusar; e em qualquer caso, se eles rejeitassem, eles não se lembrariam. Particularmente, Plum achava que no processo de seleção eles poderiam colocar um pouco mais de ênfase na inteligência emocional, junto com os de outro tipo. O corpo estudantil de Brakebills era um pouco de zoológico psicológico. Esse poder excessivo do processamento cognitivo pode distorcer sua personalidade e para querer trabalhar tão duro pelo menos você tinha que ser um pouco louco. A disciplina de Plum era magia de camuflagem, a magia da ocultação, e ela era considerada uma ilusionista, com a qual ela estava muito feliz. Ser ilusionista em Brakebills era, se Plum tivesse que defini-lo, um perita em doces. Você tinha que ficar em um pequeno castelo absurdamente invisível na borda da floresta, que era muito difícil de encontrar a menos que sua disciplina fosse ilusionista. O castelo era delicado e sutil e muito no estilo de Neuschwanstein, em outras palavras – embora Plum não o tenha dito – como os da Disney. Para subir em uma das torres, você subia a escadaria interna, como se estivesse avançando por um tubo Jefferies, e no topo havia espaço suficiente para uma pequena cadeira e uma escrivaninha dentro da sala redonda. Ela não queria ofender ninguém, mas era melhor do que a pequena Cabana onde os Caras da Física ficavam. Quando faziam festas, podiam fazer todo o lugar brilhar e flutuar um pouco no ar, como um castelo de um conto de fadas, ligado ao chão apenas por uma escadaria precária, sem um corrimão do qual as pessoas bêbadas sempre caíam sobre a relva macia lá embaixo. Lembrava o castelo que flutuava no final do livro The Phantom Tollbooth. Sim! Era a Disney, porra! De vez em quando, as pessoas perguntavam a Plum que tipo de adolescência ela teve para chegar a Brakebills, tão bem preparada. Ela lhes contou a verdade, que ela havia crescido em uma ilha perto de Seattle, em um ambiente confortável, a filha de um casamento misto: o pai era um mago e a mãe não era. Ela era filha única e seus pais tinham padrões altos para Plum, especialmente seu pai. Como a única cesta que haviam conseguido tecer, ela teve que aguentar todos os seus ovos, então ela foi educada em casa e uma vez que seu talento para a magia foi revelado, eles se certificaram de que ela seria boa nisso. Seu pai se sentava com ela e fazia com que ela praticasse idiomas e exercícios, e de fato ela se saiu muito bem. Certamente, ela nunca tinha
ido a um baile, nem participado de um esporte competitivo que você não pudesse jogar sentado em completo silêncio, mas você não faz uma omelete mágica sem quebrar alguns ovos mágicos. Essa era a verdade. E se ela gostasse e confiasse na pessoa que perguntava, ela acrescentaria que sim, era um fardo pesado para suportar: seu afeto externo era brilhante, transbordante, e isso não era nenhuma ilusão, mas igualmente real era o buraco de exaustão dentro dela. Ela se sentia muito cansada às vezes. E por causa de tudo o que sua família pedia dela, estava envergonhada de estar cansada. Ela não podia deixar o buraco devorá-la, ela não podia, embora às vezes desejasse isso. Ela poderia ter continuado a dizer ainda mais, que a magia se transmitia em sua família, mais ou menos, que era uma espécie de tradição, mas ela geralmente evita essa confissão. As pessoas tinham uma reação um pouco estranha com isso, e de fato Plum se sentia um pouco estranha sobre isso também, então ela guardava para si mesma. Não era difícil, porque ela viveu a maior parte de sua vida nos Estados Unidos e nem sequer tinha um vislumbre de um sotaque britânico, e essa história pertencia ao lado materno, com o qual Chatwin nem sequer era seu sobrenome. Mas era o sobrenome de sua mãe: sua mãe era filha do único filho de Rupert Chatwin, e isso fez de Plum, até onde ela sabia a última descendente direta dos famosos Chatwins dos livros de Fillory. Ninguém mais naquela geração jamais conseguiu se reproduzir, de modo que ela era herdeira daquilo que os Chatwins eram herdeiros (embora não demorava muito para enfatizar que ela não era um Chatwin, mas uma Purchas, Plum Polson Purchas, Chatwin não era nem sequer seu nome do meio). E, de fato, havia uma soma em dinheiro, royalties que Plover gentilmente reservara para as crianças que haviam criado sua fortuna. (Sua segunda fortuna, ele já era rico quando começou a escrever sobre Fillory). Rupert usou sua parte para comprar uma casa grande no campo perto de Penzance, da qual ele mal saia, até que o exército o convocou para morrer na Segunda Guerra Mundial. Plum tinha visto fotos da casa, uma daquelas construções que são sempre referidas como uma mansão, uma grande mansão georgiana. Ela tinha um nome, mas ela havia esquecido. Sua mãe cresceu lá, mas ela não falava muito sobre sua infância – uma casa com correntes de ar e ecos, como ela descrevia. Não era um ambiente perfeito para uma criança. O chão estava coberto de pedaços de gesso das molduras arruinadas, e a mãe de Plum passava as tardes de inverno encolhida nas escadas ao lado de um enorme duto de aquecimento – grande o suficiente para ela entrar se a entrada não tivesse sido coberta por uma grade de ferro forjado – e deixando o ar morno fluir suavemente sobre ela. A mãe de Plum deixou sua herança para trás assim que ela cresceu. Seus antepassados Chatwin lhe pareciam perigosamente melancólicos e fantasiosos, ela vendeu a casa e todo o seu conteúdo e se mudou para os Estados Unidos para ser uma publicitária da Microsoft. Ela conheceu o pai de Plum em um baile de caridade, e foi só quando eles estavam namorando que ele revelou realmente o que fazia em seu tempo livre. Assim que a sua mãe superou o impacto brutal, eles seguiram em frente, se casaram, tiveram Plum, e se tornaram uma família nuclear mágica feliz. Ela não podia falar sobre coisas de Fillory em Brakebills. Todos amavam Fillory. Era a mais preciosa fantasia de infância, todos passaram o tempo correndo em volta de seus quintais ou as salas de jogos no porão ou onde quer que corressem fingindo ser Martin
Chatwin, um herói infantil de um mundo mágico de campos verdes e animais falantes onde eles alcançariam a autorrealização total e completa. E Plum entendeu isso, total e completamente. Era uma fantasia, era perfeita, inocente e verdadeira, pelo menos no sentido que tais coisas eram verdadeiras. Ela nunca tentaria tirar isso deles. E literalmente todos em Brakebills cresceram em Fillory. O local foi uma grande convenção de Fillory que durou cinco anos. Mas Plum, por cujas veias corriam o poderoso sangue dos Chatwins, não cresceu em Fillory. Em casa eles nem sequer tinham os livros; Plum havia lido apenas o primeiro, O mundo por trás das paredes, e isso foi às escondidas, na biblioteca pública. Os pais de Plum não fumavam, não bebiam e não liam Christopher Plover. Plum não se importou. Uma vez que você descobre que a magia era real, os mundos fictícios eram pequenos em comparação. Então silenciosamente ela optou por renunciar uma vida pública como a última descendente da linhagem dos Chatwins. Ela estava bem sem o alvoroço: ser a encarnação viva das mais inocentes e ardentes fantasias da infância de quase todo mundo que conhecia não era realmente nenhum presente dos deuses. Mas havia outra coisa, sempre havia mais. Debaixo do desprezo e a indiferença de sua mãe havia algo mais, e Plum não sabia ao certo, mas achava que poderia ser medo. Fillory tornou famosa a família Chatwin, mas a maioria das pessoas não sabia – ou eles sabiam, mas preferiam não pensar sobre isso – que também a arruinou. Martin, tio-avô de Plum, Grande Rei e herói dos livros de Fillory, havia desaparecido quando tinha treze anos. Ele nunca foi encontrado. Jane, a mais nova, a criancinha, desapareceu quando tinha a mesma idade. Os outros sobreviveram, mais ou menos, mas ninguém saiu ileso. Helen mudou seu nome e terminou sua vida como cristã evangélica no Texas. Fiona Chatwin se deu bem por nunca mencionar Fillory em sua vida adulta; quando pressionada sobre o assunto, ela demonstrava uma leve surpresa e alegava que nunca tinha ouvido falar disso. Quanto a Rupert, o bisavô de Plum, ele era, em todos os casos, um destroço de um homem que passou sua vida adulta em reclusão neurótica até que o marechal de campo Erwin Rommel apareceu para pôr fim à sua miséria. Algo havia acontecido com essa família. Havia uma maldição sobre eles, e seu nome era Fillory – a mãe de Plum falava de Fillory como se fosse quase real. Talvez fossem os livros, talvez fosse Plover, talvez fossem os pais, a guerra ou o destino, mas quando Fillory e a Terra se tocavam, a colisão causava estragos e os Chatwins eram o ponto de contato. Eles estavam bem ali no marco zero e foram reduzidos a vapor, como as sombras humanas em Hiroshima. Plum estava convencida de que nenhum deles alcançou a autorrealização total ou parcial. A mãe de Plum não queria fazer parte disso. E era uma coisa boa, no que diz respeito à Plum, porque no fundo ela também sentia medo. Quando Plum descobriu a magia foi a surpresa mais magnífica, o tipo de surpresa que nunca fica menos surpreendente. O mundo era ainda mais interessante do que ela pensava. Mas isso também a deixou desconfortável. Porque, falando de um ponto de vista estritamente lógico, se a magia era real, então, você ainda poderia ter absolutamente cem por cento de certeza de que Fillory não era? E se Fillory fosse real – o que quase certamente não era – então seja lá o que tivesse destroçado toda uma geração de sua família como um leão através de um bando de gazelas preguiçosas também era real, e ainda podia estar lá fora. Plum cavou a magia com as duas mãos, mas no fundo de sua mente sempre havia um pensamento de que ela poderia ir longe demais, cavar
muito fundo e desenterrar algo que ela desejaria que tivesse ficado enterrado. Ela especialmente pensava sobre isso quando aqueles fluidos anedônicos depressivos cantavam em sua corrente sanguínea, porque então ela meio que queria desenterrá-la. Ela queria olhá-la no rosto. Ela podia ouvir Fillory chamando-a, ou se não fosse Fillory, então alguma coisa; algum lugar bonito e distante de onde as sirenes cantavam, onde ela nunca esteve, mas que também era de algum modo uma casa. E ela sabia de que lado da família vinha essa veia depressiva. Era sua herança dos Chatwins, bem ali presente. Então ela manteve sua identidade como Chatwin para si mesma. Ela não queria que as pessoas insistissem, mexessem com ela, para que suas bordas desgastadas e instáveis começassem a se desfazer. Às vezes, Plum se perguntava se havia uma maneira de usar sua disciplina para esconder não apenas coisas, mas palavras, fatos, nomes, sentimentos, para escondê-los tão bem que nem ela os encontraria. O que ela queria na verdade era se esconder de si mesma. Mas ela não podia. Que estupidez. Você era quem você era. Estava vivendo sua vida. Você não podia passar a vida pensando duas vezes: pensamento ruminante chamava sua psiquiatra. Seguimos em frente fazendo coisas. Ela fundou a Liga. Ela pregou um trote em Wharton. Plum acabou tendo um dia muito bom; de qualquer forma, era muito melhor que o de Wharton. No primeiro período, ele encontrou mais cascas de lápis no assento da cadeira. Quando ele foi almoçar, encontrou seus bolsos cheios de resto de borracha preta. Era como um filme de terror – seus preciosos lápis estavam sendo torturados até a morte, minuto a minuto, em um lugar indeterminado, e ele não podia fazer nada para salvá-los. Ele iria se arrepender de seu racionamento de vinho, ele iria. Ao passar por Wharton por acaso em um pátio, Plum olhou para ele por um momento nos olhos com um sorriso lento sobre o qual ela se sentiu um pouco mal. Será que era a imaginação de Plum ou Wharton parecia um pouco assombrado? Talvez em Brakebills houvesse um fantasma afinal. Talvez o fantasma fosse Plum. Finalmente – e essa foi a ideia de Plum e ela particularmente pensava que era a mais brilhante de todas – em sua aula do quarto período, uma prática de diagramação de energia mágica, Wharton descobriu que o lápis de Brakebills que ele estava usando, além de seu toque desagradável e qualquer outra coisa, não desenhava o que ele queria. Qualquer que fosse o feitiço que ele tentasse diagramar, quaisquer que fossem os pontos, traços e vetores que tentasse esboçar, eles formavam inevitavelmente uma série de letras. As letras formavam as seguintes palavras: CORTESIA DA LIGA.
CAPÍTULO 8
Os
jantares em Brakebills tinham uma boa pompa formal. Quando alguém era encurralado por graduados tristes e nostálgicos de Brakebills que haviam se destacado na escola e estavam de volta revivendo seus dias de glória, mais cedo ou tarde sempre ficavam rememorando as noites no antigo refeitório. Era comprido, estreito, sombrio, revestido de madeira escura cobertos de pinturas a óleo escuras de decanos do passado com várias vestimentas de época. A luz vinha de medonhos candelabros de prata, localizados ao longo das mesas a cada três metros, e as chamas das velas sempre acendiam ou apagavam ou mudavam de cor sob a influência de algum feitiço perdido ou outros. Todos usavam uniformes idênticos de Brakebills. Os nomes dos alunos eram escritos na mesa em seus lugares designados, que mudavam todas as noites, aparentemente de acordo com os caprichos da mesa. Naquela noite, Plum comeu seu primeiro prato, como de costume, dois bolos de caranguejo um pouco sem graça, pulou o vinho, como costumava fazer, então pediu licença para ir ao banheiro feminino. Quando Plum passou por trás de Darcy, ela discretamente lhe entregou o estojo prateado por de atrás de suas costas e Plum colocou no bolso. Ela não foi ao banheiro, é claro. Bom, ela estava indo, mas só porque tinha que ir. Ela não voltaria à mesa depois. Plum caminhou rapidamente pela Casa vazia em direção à sala dos professores, que a faculdade raramente se dava ao trabalho de trancar, tão confiantes de que nenhum aluno se atreveria a cruzar sua soleira sem companhia. Mas Plum ousou. A sala dos professores era escura, silenciosa, em forma de L, forrada de estantes de livros e cheia de pequenos sofás e poltronas de couro vermelho brilhante. Estava vazia ou quase. A única pessoa presente era o professor Coldwater, o que não era motivo para se preocupar. Ela imaginou que ele poderia estar ali. A maioria dos professores estava jantando, mas, de acordo com o cronograma de turnos, era a vez de Coldwater comer mais tarde, junto com os alunos do primeiro ano. O professor Coldwater era estranho. Muito jovem para ser professor. Um homem fechado – raramente ele era visto fora de uma sala de aula. Era novo, e as opiniões sobre ele eram divididas entre se ele era um gênio ou um pouco louco ou ambos. Alguns alunos o adoravam: suas aulas eram salpicadas com magia exótica e demonstrações de bravura, ou assim diziam as lendas. Plum nunca havia assistido nenhuma – ela já havia sido aprovada há tempos em Pequenos Reparos. Os outros professores não pareciam gostar dele. Ele estava constantemente recebendo trabalhos de merda que ninguém mais queria como comer com os alunos do primeiro ano.
Ele não parecia se importar, ou talvez ele não percebesse isso. Ela tinha a impressão de que ele tinha algo mais em sua cabeça, algo mais importante do que o imutável e fugaz mundo de Brakebills. Ele sempre entrava e saía da biblioteca com livros grossos debaixo do braço, resmungando para si mesmo como se estivesse resolvendo mentalmente problemas matemáticos. Essa era uma das razões pelas quais ela não estava preocupada com a presença dele na sala dos professores. Mesmo que ele a notasse, provavelmente não se importaria o suficiente para denunciá-la; o mais provável seria que ele apenas a expulsasse. Em todo caso: vale a tentativa. Naquele momento, o professor Coldwater estava no fundo da sala, de costas para ela. Ele era alto e magro e estava de pé, com seu estranho cabelo branco, olhando para o fogo com um copo de vinho esquecido na mão. Plum sussurrava uma oração silenciosa ao santo padroeiro dos professores distraídos para se certificar de que permanecesse distraído. Ela caminhou rapidamente para o lado mais curto do L, onde ele não podia vê-la. Porque era hora da grande revelação. Perto do final do jantar, quando ele estava pronto para servir os vinhos que acompanhava a sobremesa, Wharton se retirava para adega, que era do tamanho de um quarto de um pequeno apartamento. Para sua surpresa, ele encontraria Plum na posse da mesma, depois que ela entrou furtivamente através de uma passagem secreta da sala dos professores. Fatos consumados. Então ela apresentaria as exigências da Liga e ele teria que capitular cada uma delas. Essa era a parte mais arriscada do plano, porque a existência daquela passagem secreta era uma questão de especulação, mas de qualquer maneira, se não funcionasse, ela encontraria uma maneira normal e menos dramática de encurralá-lo. Ela olhou por cima do ombro por um momento – Coldwater ainda estava fora de vista ou ocupado – e então se ajoelhou ao lado do revestimento de madeira na parede. Ela respirou profundamente. O terceiro painel à esquerda. Hum, o do final era metade de um painel, não tinha certeza se tinha que contar ou não. Bom, ela tentaria duas vezes. Ela traçou uma palavra em inglês antigo com o dedo, escrevendo no alfabeto rúnico, em Futhark antigo, e nesse meio tempo limpou a cabeça de tudo menos do sabor de um Chardonnay com um sabor autêntico envelhecido em barril de carvalho, combinado com uma torrada com manteiga quente. Tranquila. Ela sentiu o feitiço de fechamento dissipar antes mesmo de acontecer: o painel abriu para fora em um conjunto de dobradiças até então invisíveis. No entanto, para seu aborrecimento, a passagem havia sido selada. A três metros de distância, terminava em uma parede de tijolos, e os tijolos haviam sido colocados de modo que formavam um padrão que Plum reconheceu como um feitiço de endurecimento absolutamente brutal – apenas um feitiço, sim, mas um feitiço extremamente poderoso. Não era coisa de estudante. Algum professor se deu ao trabalho de colocá-lo ali e também passou muito tempo nessa tarefa. Plum mordeu os lábios e bufou pelo nariz. Agachando-se, ela entrou na passagem e fechou a pequena porta atrás dela. Ela lançou um feitiço simples, um fogo-fátuo amigável que a seguiria em todos os lugares. Então ela olhou para a parede de tijolos por cinco minutos, na escuridão da pequena passagem, perdida do mundo em uma espécie de transe analítico. Em sua mente, o padrão dos tijolos flutuava livremente e pairava diante dela sozinho, com clareza, abstrato e de forma brilhante. Mentalmente ela entrou no padrão, habitou-o, empurrou-o de dentro com dedos cognitivos,
procurando alguma união defeituosa ou desequilíbrios sutis. Tinha que haver alguma coisa. “Vamos, Plum: é mais fácil quebrar um feitiço do que fazer um, você sabe disso.” Quem quer que tenha selado essa passagem era esperto. Mas ele era mais esperto que ela? Havia algo estranho com os ângulos. A essência de um glifo como esse não eram os ângulos, mas a topologia subjacente – ele poderia ser deformado bastante e não perder poder, desde que suas propriedades geométricas essenciais permanecessem intactas. Os ângulos das junções eram, até certo ponto, arbitrários. Mas a coisa estranha sobre esses ângulos dessas junções era que eles eram estranhos. Eles eram mais aguçados do que o necessário. Eles não eram arbitrários. Havia um padrão para eles, um padrão dentro do padrão: 17 graus, 3 graus. Dezessete e três. Dois deles aqui, dois deles ali, os únicos ângulos que apareceram duas vezes. Quando ela viu, bufou novamente. Era um código. Um código alfabético estúpido. Dezessete e três. Q e C. Quentin Coldwater. Era uma espécie de assinatura, uma marca d'água. O professor Coldwater havia colocado esse selo, e entendendo isso, ela entendeu todo o resto. Ele havia colocado um ponto fraco, uma porta dos fundos para o caso de precisar desfazê-lo mais tarde. Sua assinatura era a falha no padrão. Plum tirou a pequena faca do estojo de lápis de Wharton e a enfiou na argamassa quebradiça ao redor de um tijolo em particular. Passou por toda a borda, depois bateu no tijolo com os nós dos dedos: toc-toc. Uma vez solto, ela o empurrou sem dificuldade e caiu no chão: clunk. Privado daquele único tijolo e, portanto, da integridade de seu padrão, o resto do muro cedeu rapidamente e entrou em colapso. Por que ele teria selado isso? E por que ele em particular? – todos sabiam que Coldwater era um amante de vinhos. Ela sempre poderia perguntar a ele, ele estava a cerca de vinte metros de distância. Ou poderia continuar com a sua missão. Estava muito frio na passagem, muito mais frio do que a acolhedora sala dos professores. As paredes eram de pedras antigas, cobertas por tábuas mal colocadas. Calculando às cegas, havia cerca de uns cem metros da sala dos professores até o fundo da adega, mas ela só tinha percorrido metade da distância antes de chegar a uma porta. Felizmente, destrancada e nem selada. Mais passagem, depois outra porta. Como se ela estivesse passando por uma série de dutos de ar. Estranho. Ninguém sabia o que encontraria neste lugar, mesmo depois de morar aqui por quatro anos e meio. A quinta porta abriu-se ao ar livre. Isso foi muito estranho. Era um belo pequeno pátio muito quadrado que ela nunca tinha visto antes, talvez vinte metros de cada lado. Sobre tudo havia grama, com uma árvore, uma pereira, em uma treliça contra um alto muro de pedra. Ela sempre achou as treliças um pouco assustadoras. Era como se alguém tivesse crucificado aquela pobre árvore. Além disso, Plum estava quase convencida de que não deveria haver lua no céu naquela noite. — Que loucura — murmurou Plum suavemente. Ela franziu o cenho. A lua olhou para ela sem expressão, como se não se importasse. Ela correu pelo pátio até a próxima porta. Levava diretamente a um dos andares superiores da biblioteca. Isso definidamente não estava certo; estava atravessando magicamente alguns espaços não contíguos. A biblioteca de Brakebills estava instalada ao redor das paredes internas de uma torre que se estreitava no
alto, e esse deveria ser um dos minúsculos andares superiores, que Plum tinha apenas vislumbrado de muito abaixo e que, para ser honesta, ela sempre supôs que estava lá só para decoração. Ela nunca pensou que houvesse livros de verdade lá em cima. De fato ela percebeu agora que esses andares superiores deviam ser construídos com falsa perspectiva, para fazer a torre parecer mais alta do que era, porque na verdade era muito pequena, quase uma varanda, como uma daquelas casas minúsculas que os reis loucos construíam para seus anões reais. Ela teve que avançar de quatro; ela se sentia como Alice no País das Maravilhas, quando cresceu demais. Os livros pareciam bastante reais, com os lombos de couro marrom descascando como camadas de massa folhada, com letras estampadas em ouro neles. Havia algumas obras de referência sobre fantasmas de intermináveis volumes. A outra coisa estranha era que eles não eram muito inanimados: eles saíam sozinhos de suas prateleiras, batiam nela enquanto ela se arrastava, como se a estivessem convidando para abri-los e ler, desafiando-a, ou implorando. Alguns deles bateram com muita força nas costelas. Eles não devem receber muitos visitantes, pensou ela. Provavelmente é como quando você visita os filhotes de canil e todos saltam querendo que você os acaricie. Não, obrigada. Se quisesse consultá-los, seria pelos modos habituais. Foi um alívio rastejar pela porta em miniatura no final da varanda – era praticamente uma porta de gato – e voltar a um corredor normal. Isso estava demorando mais do que ela pensava. Mas não era tarde demais. Eles estariam na metade do prato principal, mas ainda havia a sobremesa e ela acreditava que naquela noite também tinha queijo. Se ela se apressasse, ainda poderia chegar a tempo. Este corredor era estreito, com espaço para pouco mais que engatinhar. De fato, de acordo com seus cálculos, estava dentro de uma das paredes de Brakebills. Do outro lado estava a sala de jantar: ela podia ouvir o zumbido de conversas e o tilintar de talheres, e ainda podia olhar através de algumas das pinturas – havia buracos para olhar nos olhos, como em filmes antigos de casas assombradas. Na verdade, eles estavam servindo apenas o prato principal, um cordeiro excepcional perfurado com ramos de alecrim, e a visão dele a deixou faminta. Ela sentia como se estivesse a um milhão de milhas de distância de todos e de tudo que ela conhecia. Ela era como um fantasma, o esqueleto da festa, o mundo por trás das paredes. Ela já sentia nostalgia, como um daqueles estudantes chorosos, quando ela estava sentada à mesa com seu bolo de caranguejo, meia hora antes, quando sabia exatamente onde estava. E ali estava Wharton, servindo extravagantemente seus pequenos copos de vinho tinto, sem o menor traço de arrependimento. A visão a encorajou. É por isso que ela estava ali. Ela iria até o fim. Pela Liga. Embora, por Deus, quanto tempo demoraria? A porta ao lado levava ao telhado. O ar da noite estava frio. Ela não havia voltado ali desde a época em que a professora Sunderland os transformou em gansos e eles haviam voado para a Antártida para estudar em Brakebills do Sul. Após o tumulto da sala de jantar, o telhado era um lugar solitário e tranquilo – ela estava bem no alto, mais alto que as copas sem folhas de quase todas as árvores. O telhado era tão inclinado que ela teve que engatinhar novamente, e as telhas estavam ásperas sob as palmas das mãos. Ela podia ver o rio Hudson ao longe, como um longo e sinuoso rabisco. Ela estremeceu só de olhar para ele. E, a propósito: não havia lua. Ela havia ido embora, de volta ao seu devido lugar.
Para onde ir agora? Estava começando a ficar desorientada. Depois de uma longa reflexão não chegou a nenhuma conclusão definitiva, então forçou a fechadura da janela mais próxima e entrou. Ela estava em um quarto de um estudante. Na verdade, se tivesse que adivinhar diria que era o quarto de Wharton, embora nunca o tivesse visto antes. — Ah meu Deus — disse ela em voz alta. — Que ironia. Quais eram as possibilidades? Esses espaços estavam além de não contíguos. Alguém em Brakebills, possivelmente a própria Brakebills, estava brincando com ela. O quarto estava uma bagunça, o que era meio tocante, porque ela achava que Wharton era um maníaco por organização. E tinha um cheiro agradável. Meio que suspeitava que havia tropeçado em um duelo mágico com o próprio Wharton, exceto que de maneira nenhuma ele poderia fazer algo assim. Talvez ele tenha ajuda – talvez ele fosse parte de uma enigmática Anti-Liga, dedicada a frustrar os objetivos da Liga. Isso seria realmente legal. Esse teria sido um momento razoável para desacelerar, sair do veículo e voltar sorrateiramente para a sala de jantar. Mas não: isso significaria desistir, voltar atrás, e isso não era do feitio de Plum. Ela continuou, sempre para frente, sem olhar para trás. O olhar do tigre. Ela tinha um trabalho a fazer, uma missão para a Liga, da qual ela era a maldita diretora executiva. Então, ela decidiu que não lutaria contra a lógica dos sonhos, ela iria descer ladeira abaixo e ver aonde isso a levaria. Para frente e para baixo. Sabia instintivamente que ao sair pela porta da frente quebraria o feitiço do sonho, então em vez disso, abriu a porta do armário de Wharton, de alguma forma confiante de que... sim, olhe, havia uma pequena porta atrás dele. Virando-se para dar uma última olhada não pôde deixar de notar, a propósito, havia uma nova caixa de lápis na mesa. Ele já os havia substituído. Por que pensaram que aqueles eram os únicos? Ele provavelmente tinha caminhões deles. Plum abriu a porta na parte de trás do armário e se agachou para passar. ••• A partir dali, suas viagens correram completamente em trilhos de sonho. A porta levava a outro pátio, mas lá estava durante o dia. Os espaços estavam perdendo a contiguidade temporal, bem como espacial. Na verdade, era mais cedo naquele dia, porque lá estava ela, Plum, atravessando a grama ligeiramente congelada e passando por Wharton, e lá estava ela olhando-o fugazmente nos olhos. Foi uma visão estranha. Mas a tolerância de Plum para o estranho aumentou bastante na última meia hora. Ela se viu saindo do pátio. Ela se perguntou se, no caso de ela gritar e balançar os braços, ela iria se ouvir e se virar, e a linha do tempo seria permanentemente quebrada e alterada, ou se isso era mais como uma questão de um espelho de duas vias. Talvez ela pudesse trocar o bolo de caranguejo por camarão ao molho fra diavolo. Ela franziu a testa. A causalidade do assunto estava emaranhada. Embora pelo menos uma coisa estivesse clara: aquelas botas tiveram uma boa corrida, mas era hora de jogá-las fora. No lado positivo, se era assim que a bunda dela era por trás, bom, não era nada mal. Ela aceitaria isso.
A porta seguinte era ainda mais temporalmente não contígua, porque ela a deixou em uma Brakebills completamente diferente, embora no começo fosse difícil determinar a diferença. Era uma Brakebills menor, mais escura e um pouco mais densa. Os tetos eram mais baixos, os corredores mais estreitos e o ar cheirava a fumaça de lenha. A luz vinha do fogo e das velas. Ela passou por uma porta aberta e viu um grupo de garotas amontoadas em uma enorme cama com dossel. Elas usavam camisolas brancas e tinham longos cabelos lisos e dentes feios. Plum entendeu o que estava vendo. Esta era Brakebills de muito tempo atrás, uma Brakebills de uma era revolucionária. O fantasma do passado de Brakebills. Quando Plum passou, as meninas olharam para cima, mas apenas por um momento, sem curiosidade, e depois continuaram conversando. Não havia dúvidas sobre o que elas estavam fazendo. — Outra Liga — disse Plum para si mesma. — Eu sabia que tinha que haver uma. Ela ainda estava saboreando essa satisfação quando abriu a porta ao lado de uma sala que não reconhecia. Até que ela fez isso. Ela tentou sair, mas a porta se fechou atrás dela. Não era nem uma sala, mas uma caverna redonda de paredes de pedra, onde um grupo de estranhos representavam o último ato de alguma tragédia bizantina do Renascimento. Dois garotos estavam no chão, de bruços, tremendo enquanto o precioso sangue deles transformava a areia ao redor deles em uma lama escura. — Ah, foda-se — sussurrou Plum. — Foda-se, foda-se, foda-se, foda-se. Ela recostou-se contra a parede. Ela nunca tinha visto feridas reais. Mais cinco garotas e garotos estavam ao redor em diferentes estados de choque, angústia e raiva. Uma garota tinha uma arma; os outros concentravam toda a sua força mágica em um homem de terno cinza. Energias encantadas e violentas saíam deles, crepitavam no ar e agrediam o homem com quase nenhum efeito além de sacudir suas lapelas. Ele parecia vagamente familiar. E havia algo errado com suas mãos. No canto, em uma pilha, havia uma enorme carcaça de lã com um grosso e ondulado chifre visível. Ah, Deus. A cena começava a ficar clara para ela, assumia um significado horrível mesmo além do óbvio. O carneiro tinha que ser Ember, um dos deuses gêmeos de Fillory. E o homem de terno, ela o reconheceu − não literalmente, mas sim. Seu rosto redondo e pálido exibia a marca inconfundível de um Chatwin. Este era algum ancestral dela, e ela estava em Fillory, e era tudo real, tudo isso. Mas não era Fillory, não como nos livros. Era um pesadelo mórbido de Fillory. A caverna brilhou e ardeu com uma luz perigosa. Pedras choveram sobre o homem de terno. O ar cheirava a cordite. Plum não poderia estar ali. Ela ia enlouquecer. Seja lá o que tenha mastigado seus ancestrais e cuspido fora, a encontrou. Estava ali naquela caverna com ela. Era a caverna. — Não — disse ela ofegante. — Ah Deus, não! Deus não! Plum tentou a porta novamente porque ela tinha que abrir, tinha que abrir, ela não podia ficar ali. E a porta se abriu. Teve piedade dela. Sem esforço, sem resistência – inclusive se abriu não para dentro, mas para fora. Plum correu para a porta, quase caiu e bateu a porta atrás dela, e tudo ficou calmo de novo. Ela estava em uma sala silenciosa, uma sala segura: a conhecida sala de estudo trapezoidal onde as reuniões da Liga eram realizadas. Ah, Deus. Ah, Graças a Deus. Tinha acabado.
Ela estava ofegante e soluçou uma vez. Um soluço seco. Não foi real. Não foi real. Nada disso. Ou era real, mas tinha acabado. Ela quase riu. Ela não se importava se era real ou não, desde que estivesse segura. Talvez ela tivesse adormecido aqui depois da reunião da noite passada e tudo tivesse sido um sonho. Seja como for, toda essa maldita e misteriosa turnê mágica tinha terminado. Ela não ia voltar e também não iria para frente. Se necessário, ficaria naquela sala estúpida sem janelas com seu tapete de merda para sempre. Ela adorava aquela sala. Era a sala mais linda que ela já tinha visto. Ela estava à beira da toca do coelho, agitando os braços como lâminas de moinho de vento para não perder o equilíbrio, mas no final não havia caído. Ela não havia. Ela havia ficado no mundo seguro de grama e céu ensolarado pelo sol, e nunca mais o deixaria. Ela estava tão errada só de pensar sobre isso. Tentaram levá-la embora, mas ela não seria levada. Plum se afundou no sofá. Seus joelhos eram duas bolsas de água. Ela se forçou a pensar sobre o que isso significava. Alguém havia descoberto que ela era uma Chatwin, ou algo havia descoberto e eles estavam tentando assustá-la. Ou talvez tenha sido uma daquelas coisas em que você automaticamente vê seu maior medo ou algo assim. A sensação que teve foi que a própria Fillory estendia o braço e puxava levemente o fio invisível amarrado a um gancho firmemente preso em suas costas, e sussurrava: não se esqueça. Você pertence a mim. Mas ela aprendeu a lição. Ou pelo menos uma lição: nunca tentaria entrar na adega de uma forma que não fosse direta e convencional. O sofá estava tão flácido e corcunda que quase a engoliu. Ela parou de pensar. Ela olhou para seu reflexo no longo espelho que Darcy e Chelsea tinham quebrado na noite anterior. Mas ela não estava no espelho. Havia outra garota lá em vez dela. Ou pelo menos tinha a forma de uma garota. Era azul e nua, sua pele emitia uma leve luz sobrenatural. Até seus dentes eram azuis. Sorriu para ela. Seus olhos eram da mesma cor que sua pele. Pendia imóvel no ar, a um metro acima do chão, um pouco menor do que o tamanho natural. A silhueta da garota era estranha: às vezes ela parecia um pouco embaçada, outras vezes nítida e clara. Plum sentou-se. Levantou-se devagar, e depois disso ela não se moveu, porque percebeu que seria inútil. Ela sabia quem estava a sua frente. Era o fantasma de Brakebills. Era o fantasma o tempo todo. Não era um fantasma amigável. Não era um poltergeist travesso. Isso era uma coisa morta que odiava os vivos. Uma vez, quando criança, após uma tempestade, Plum viu um cabo de alta tensão caído contorcendo-se como uma serpente letal em uma estrada, arqueando repetidas vezes no asfalto molhado, brilhante como o sol. Aquela garota azul era assim. O mundo perdera o isolamento e Plum estava exposta a corrente pura. As duas garotas se entreolharam: a que sobreviveu e a que não tinha. A outra estendeu seu sorriso, como se estivessem tomando chá entre amigos. — Não — disse Plum. — Não sou eu. Não sou eu quem você quer. Mas Plum estava mentindo. Ela entendeu. O fantasma a queria. Sempre quis ela. Ela era uma Chatwin e os Chatwins viviam em tempo emprestado. Plum se perguntou se isso doeria. Bum. O som veio da parede à sua esquerda – algo a atingiu do outro lado. Uma chuva de gesso caiu. A voz de um homem disse algo como “Ufa”. Plum olhou nessa direção; o fantasma no espelho não.
Boom! A parede explodiu para dentro, atirando pedaços de madeira, gesso e pedra em todas as direções, e Plum se abaixou e um homem atravessou a parede coberta de poeira branca. Era o professor Coldwater. Ele se sacudiu como um cachorro molhado para tirar um pouco de poeira, embora ainda parecesse ter sido atingido com um saco de farinha. Um feitiço branco saía de suas duas mãos como faíscas, tão brilhantes que causaram flashes roxos em sua visão. Quando ele viu o que estava no espelho, ele congelou. — Ah — disse ele em voz baixa. — Ah, meu Deus. É você. Plum não achou que ele estivesse falando com ela. Ele reconheceu essa coisa? Era quase como se ele a conhecesse pessoalmente, o que seria muito estranho até para ele. Ele respirou fundo e se recompôs. — Não se mova até que eu diga — disse ele. Isso foi dirigido a Plum. Ela não se moveu, mas não se atreveu a acreditar que ele poderia realmente salvá-la. Tudo o que ela fez foi arrastá-lo para a catástrofe também. Protegendo seu rosto com um braço, o professor Coldwater recuou uma das suas longas pernas e chutou o espelho. Ele teve que chutá-lo três vezes – as duas primeiras vezes o espelho só rachou e cedeu, mas na terceira vez seu pé o atravessou. Ficou um pouco preso quando tentou tirá-lo. Plum estava tão chocada que seu primeiro pensamento foi: devo dizer a Chelsea que ela não terá que pagar pelo espelho. A quebra do espelho não dissipou o fantasma, mas definitivamente o incomodou. Ainda os observava suspenso no ar, mas agora ele tinha que espiar pela borda do buraco. O professor Coldwater virou as costas para ele – o fantasma jogou alguma coisa neles, Plum não conseguiu ver o que era, e o professor desviou com uma mão sem olhar. Então ele juntou as palmas das mãos. — Abaixe — disse ele. — No chão. Plum se abaixou. O ar tremeu e ficou tenso, e seu cabelo estalava com tanta eletricidade estática que fazia seu couro cabeludo doer. O mundo inteiro foi atravessado por luz. Atrás dela, ouviu o estrondo da porta explodindo para fora de sua moldura. — Agora, levante-se e corra — disse o professor Coldwater. — Corra! Vá em frente, estou bem atrás de você. Plum correu. Ela poderia ter ficado e tentado ajudar, mas isso teria acrescentado mais estupidez a sua estupidez. Ela fez o mais complicado e confiou nele: ela pulou sobre sofá como um campeão e sentiu uma onda de choque quando o professor Coldwater detonou algum feitiço final. A força do feitiço levantou Plum no ar por um segundo e a fez cambalear, mas ela recuperou o equilíbrio e continuou correndo. A volta foi mais rápido que a ida. Ela estava pulando para frente no estilo de botas de sete léguas, que, a princípio pensou que era por causa da adrenalina até perceber que não, era magia. Um passo foi o suficiente para passar pela caverna infernal, com outro e ela chegou a Brakebills colonial, depois ao quarto de Wharton, ao telhado, ao estreito espaço ao lado da sala de jantar, a biblioteca, abruptamente, virou à esquerda para o pátio da sinistra pereira, a passagem. O som das portas se fechando atrás dela era como uma série de fogos de artifício sendo disparados. Ela não parou até estar de volta em segurança na sala dos professores, ofegante. Coldwater estava bem atrás dela, como ele havia dito. Ele tinha conseguido, ele conseguiu tirá-los de lá.
Nunca nada havia sido mais claro para Plum do que o fato de que ela morreria naquele quarto, mas agora estava acabado. O mal, o horror, tinha saído de onde estivera se escondendo durante toda a sua vida, mas o professor tinha conseguido empurrá-lo de volta para lá. Por enquanto. Sem dizer uma palavra, o professor Coldwater começou a selar de novo a passagem atrás deles. Plum o observou trabalhar, enquanto sua respiração retornava ao ritmo normal, atordoada, mas não tão atordoada para não se interessar pelos aspectos técnicos: o professor Coldwater, movendo-se a uma velocidade rápida, agitando os braços freneticamente como um filme de lapso temporal, montou uma parede de tijolos intrincadamente padronizada em cerca de cinco segundos. Plum se perguntou onde ele aprendeu a fazer isso. Não em Brakebills. Desta vez ele não colocou os ângulos de sua assinatura codificada. Algo que poderia dizer sobre ele: aprendeu com seus erros. Então ele saiu e fechou o painel. Eles estavam sozinhos. Poderia ter sido um sonho, exceto pelo pó de gesso nos ombros do blazer do professor Coldwater. — Como você sabia? — disse ela. — Como você sabia onde eu estava? Onde estava o fantasma? — Não é um fantasma. É um nifo. Péssimas notícias. — O que ele queria? — Ela. Ela era humana. E eu não sei. Ela disse alguma coisa pra você? — Não. Eles podem falar? — Não sei — disse ele. Um de seus dedos ainda estava crepitando com um pouco de fogo branco; ele sacudiu o dedo e o fogo se apagou. — Ninguém sabe muito sobre eles. Eu nem tenho certeza se afetei ela. Só acabei de distraí-la para nos dar tempo pra fugir de lá. — Mas você pareceu surpreso quando o viu. Parecia que reconhecia aquilo. Digo, ela. — Eu sei — O professor Coldwater parecia mais triste e menos triunfante do que ela teria pensado. — Eu sei. Eu gostaria que ela tivesse dito alguma coisa. — Não me importaria se ela tivesse recitado a porra da Bíblia King James. Reitor Fogg virou a esquina do L a toda velocidade. Ele não parecia feliz. — Vocês tem alguma ideia de quantos alarmes vocês dois ativaram, entrando assim nos subespaços? O professor Coldwater contou com os dedos em silêncio. — Onze? — Sim. Onze. — Fogg parecia perversamente infeliz por Coldwater ter dado a resposta certa. — O que diabos você estava fazendo lá? Purchas? Plum corou. O trote – ela tinha esquecido completamente disso. Ela ainda tinha o estojo estúpido de Wharton em seu bolso idiota. Foi completamente inútil. Talvez fosse a lição que o fantasma queria ensinar: tudo era inútil. O destino irá mais cedo ou mais tarde te pegar, então pare de se contorcer, isso só faz você parecer mais ridícula do que você já é. Somos todos fantasmas aqui, você ainda não se parece com um. Mas ela não estava entendendo. Se isso fosse verdade, então qual era o objetivo de qualquer coisa? Ela ia se contorcer um pouco mais de qualquer forma. Quem diabos se importava com o quão ridículo ela parecia?
Plum endireitou os ombros e levantou o queixo. — Eu estava procurando por uma passagem secreta pra adega — disse ela em voz alta e clara. — Pra que eu pudesse fazer um trote em Wharton. — Um trote — Fogg não ficou impressionado com sua coragem existencial. — Eu entendo. Coldwater? — Reitor Fogg. — Você não executou os protocolos de incursão, nenhum deles. — Não — disse Coldwater. — Eu não fiz. Não houve muito tempo. A situação era muito urgente. — Pelo menos você tentou acabar com essa maldita coisa ou fazê-la desaparecer? — Eu... — Ele engoliu as palavras. — Não. — Por que não? Um músculo se moveu na mandíbula do professor Coldwater. — Eu não pude fazer isso. — O professor Coldwater salvou minha vida — interveio Plum. — Obrigado, Purchas — disse Fogg. — E ele também colocou em risco a vida de todo mundo nesta escola. Eu te dei uma chance, Quentin, e foi um erro. Você está despedido. Saia do seu quarto até o final de amanhã. O professor Liu pode encarregar-se do resto de suas aulas. Coldwater não vacilou, nem sequer piscou, mas Plum estremeceu por ele, do jeito que você faz quando vê alguém dando um soco. — Tudo bem, eu entendo. — Você? — Fogg estava tão zangado que cuspiu enquanto falava. — Você? Bom, você sempre foi rápido em aprender. Eu pensei que você melhor do que ninguém entenderia um pouco mais rápido, levando em conta que você foi testemunha em primeira mão da razão pela qual esses protocolos foram criados. Purchas? — Sim, senhor. — Você pode terminar as últimas três semanas do semestre. Então você será expulsa. Fogg olhou para os dois, um após o outro, depois saiu da sala. Plum desejou muito poder manter a calma com a situação. Ela não achava que fosse chorar, só precisava se sentar em um dos sofás de couro vermelho e colocar a cabeça entre os joelhos por um minuto enquanto sua visão esmaecia nas bordas. Ela realmente amava Brakebills. Ela amava tanto. Realmente. De verdade. Ela notou o sofá afundar quando o professor Coldwater se sentou do outro lado. Ele suspirou profundamente. — Bom... — Eu sinto muito, professor Coldwater. Eu sinto muito! Eu não queria colocá-lo em perigo! Eu não queria que você fosse demitido! E agora ela soluçou: uma, duas, três vezes. Eles iriam mandá-la para o mundo frio e aterrorizante. Ela não estava pronta. Não era seguro. O que ela ia fazer? Como ela viveria agora? — Eu sei. Por favor, não se preocupe com isso — disse ele em voz baixa. — Já fui expulso de lugares melhores do que este. E você pode me chamar de Quentin.
— Mas o que você vai fazer? O que eu vou fazer? — Você vai encontrar alguma coisa. É um mundo grande. Provavelmente maior do que você imagina. — Mas eu sou uma fracassada! Eu sou uma aberração! Eu fui expulsa de Brakebills, pelo amor de Deus! As palavras quase não tinham algum significado. Ela sabia que logo teriam, mas agora faziam seus lábios ficarem entorpecidos, só por dizê-las, como se as palavras estivessem envenenadas. Ela foi expulsa. Ela pensou em ter que contar para seus pais e sua visão ficou turva novamente. — Algo vai surgir, eu prometo. Muitas pessoas têm diplomas de Brakebills, mas quantas pessoas podem dizer que foram expulsas? É um clube muito exclusivo. Ela não estava tão abatida ao ponto de não rir com isso. — Mas se você não se importar se eu te perguntar — continuou Quentin. — O que você estava fazendo exatamente lá? Eu selei o corredor por um motivo. Mesmo eu não conseguiria adivinhar onde ele levava. — Ah, eu disse a verdade a Fogg. Eu realmente estava fazendo um trote em Wharton. — Mas por quê? — Bom, ele tem sido muito mesquinho com vinho ultimamente. Além disso, me parecia que deveria haver algo mais, eu não sei, uma trama de chicanice. Malícia. Agora parece estúpido, mas você sabe o que quero dizer? Pra relaxar um pouco. Porque basicamente, quem sabe, todos nós podemos morrer a qualquer momento. — Isso é verdade. — Ou ser expulso. Quentin pareceu aceitar o raciocínio de Plum pelo seu valor aparente. As pessoas mais velhas: você nunca sabe como eles vão reagir. — Você ainda quer saber onde está a passagem secreta? Pra adega? — Claro — disse Plum, embora não sem tremer a voz. Ela conseguiu dar uma risada amarga. — Por que diabos não? Mas ela quis dizer isso. Foda-se. Eles poderiam tirar Brakebills dela – aparentemente – mas pelo menos a honra da Liga viveria eternamente. Ela sempre teria isso. — Você tem que abrir o próximo painel — disse Quentin. — O meio painel não conta. Aha. Ela desenhou a mesma palavra rúnica de antes, e a porta se abriu e ela olhou para dentro. Era exatamente o que ela pensava: uma moleza. Nem sequer tinha cem metros, e sim setenta e cinco. Depois de tudo isso, o cálculo do tempo foi quase perfeito. Plum tinha acabado de fechar a porta secreta da adega atrás dela – estava escondida atrás de uma prateleira de vinhos – quando Wharton entrou apressadamente pela porta da frente, acompanhado pelo barulho dos comensais saboreando o queijo atrás dele. O cabelo de Plum estava desgrenhado, mas isso era apenas parte do efeito. Era tudo muito típico da Liga. Wharton congelou, com uma garrafa na qual ele acabou de colocar a rolha em uma das mãos e dois copos de vinho invertidos pendurados nos dedos na outra. Plum olhou para ele com calma. Parte do charme do rosto de Wharton veio de sua assimetria: ele tinha um lábio leporino que havia sido corrigido em algum momento, e a cirurgia correu bem, tanto que tudo
o que restou foi uma pequena cicatriz de um cara durão, como se ele tivesse levado um soco no rosto em algum momento, mas sobrevivido. Além disso, tinha um bico de viúva absolutamente precioso. Alguns caras tinham toda a sorte. — Você tem reduzido às doses dos Finns — disse ela. — Sim — disse ele. — Você tem meus lápis. — Sim. — Não são os lápis que me interessam — disse Wharton. — Mas o estojo. E a faca. Eles são de prata antiga, Smith and Sharp. Você não pode mais encontrá-los em qualquer lugar. Ela tirou o estojo do bolso. Ela não pretendia ceder nem um centímetro, mesmo depois de todo o resto. Menos ainda. Para o inferno o fantasma, para o inferno Brakebills e para o mais profundo e escuro dos infernos os Chatwins. O mundo se abriu sob seus pés e nada mais seria o mesmo, mas continuaria desempenhando seu papel independentemente do que acontecesse. Até o fim. Eles não podiam tirar isso dela. — Por que você está racionando as doses dos Finns? — Porque preciso de vinho extra. Deus, ele era realmente um alcoólatra? Nada deveria surpreendê-la naquele momento, mas ainda assim. Ele não parecia esse tipo. Epifanio, talvez, mas não Wharton. E Wharton não era do tipo que encorajava um amigo a beber. — Mas para o que você precisa disso? — disse Plum. Ela segurou o estojo fora do alcance. — Vou devolver os lápis e tudo mais. Eu só quero saber. — O que você acha? — disse Wharton. — Eu deixo para o maldito fantasma. Eu pensei que o vinho poderia mantê-lo feliz. Essa coisa me apavora. Wharton tinha muito a aprender sobre fantasmas. Plum suspirou e sentou-se em uma caixa. Toda a força dela se foi. — Eu também — Ela entregou-lhe o estojo. Wharton sentou-se ao lado dela e puxou uma pequena mesa. Ele colocou os dois copos nela. — Vinho? — Obrigada — disse Plum. — Eu adoraria beber um pouco. Se não for agora, quando? Ele serviu desta vez corretamente, até um pouco generoso. O líquido escuro parecia preto no vidro, e ela teve que se conter para não beber de uma só vez. Tabaco fresco. Groselha preta. Deus, era tão bom. Ela manteve na boca contando até dez antes de engolir. Se havia alguma magia neste mundo que não fosse magia, era vinho. Cheirava feno úmido de um campo em ruínas da Toscana no início da manhã, depois que o céu clareou, mas antes que o sol secasse o orvalho. Isso a lembrava de outro lugar também, um lugar que ela nunca tinha visto, e muito menos cheirado – um lugar verde, intocado e distante, que ela conhecia bem, embora nunca tivesse estado lá, assim como o lugar a conhecia bem. Ela sentiu a atração que ele exercia sobre ela, como sempre sentiu. Mas no momento o seu nome escapou dela.
CAPÍTULO 9
Eles só estavam no Marriott do Aeroporto de Newark há uma semana e Quentin já não sabia quanto tempo mais aguentaria. Não era um lugar onde os humanos deviam ficar mais de uma noite seguidas. Não parecia uma residência de longo ou médio prazo. As paredes eram finas, a comida era péssima e a decoração interior era pior. Esse lugar era prejudicial para a sua alma. Ele mal viu os outros, exceto Plum. Pushkar estava ocupado sobrevoando a Costa Leste a grande altitude com Lionel e o pássaro, procurando por qualquer sinal da mala ou do Casal. Stoppard estava construindo algo grande e complicado com pequenas peças de metal em seu quarto, do qual ele saía apenas uma ou duas vezes por dia, em horas estranhas, vestido com um avental manchado de óleo. O pássaro havia enviado Betsy com um cartão de crédito para comprar suprimentos. Enquanto isso, Quentin e Plum foram encarregados de tentar descobrir uma maneira de quebrar o famoso vínculo incorporado. Era um enorme problema, desagradável e complicado, um verdadeiro atoleiro. Quentin ouviu falar de vínculos incorporados, embora ele não tivesse visto nenhum na vida real. A teoria era a seguinte: imagine um mundo bidimensional, um plano infinito, cheio de objetos bidimensionais infinitamente planos. Você, um ser tridimensional, poderia teoricamente inclinar-se de cima para baixo e segurar um desses objetos no lugar, ancorando-o permanentemente em seu plano de cima; se você fizesse isso com cuidado, poderia até não danificá-lo muito. No caso de um vínculo incorporado, a mesma operação era realizada em um espaço tridimensional, usando uma âncora quadridimensional para fixar o objeto de maneira inamovível com respeito ao tecido do espaço-tempo tridimensional. Era tão difícil quanto soava, e era complicado e caro para começar. Os pesos de papel quadridimensionais não crescem em árvores, ou pelo menos não neste plano de existência. Os vínculos incorporados eram a última palavra em segurança mágica, e o Casal deve ter passado por uma série de problemas para lançar o feitiço, mas ao fazê-lo eles fizeram a mala impossível de roubar. Só que o pássaro não achou que fosse impossível. Segundo a experiência de Quentin, criaturas mágicas como o pássaro não costumam saber muito sobre magia do ponto de vista técnico. Eles não faziam magia, simplesmente eram mágicas, então a teoria disso não importava. Além disso, muitos deles não eram terrivelmente brilhantes. Mas o pássaro tinha algumas ideias sobre isso, ou alguém lhe deu essas ideias, e aparentemente não eram absurdas. Contudo, executá-las apresentavam uma série de questões práticas espinhosas, e o pássaro tinha generosamente deixado a elaboração de tais problemas para Quentin e Plum.
No começo foi divertido: era um problema denso, rico e autenticamente difícil, e eles o abordaram com vontade. A questão da conexão da mala e os Chatwins desvaneceu-se na mente de Quentin enquanto escreviam fluxogramas no papel do hotel, depois em resmas de papel de impressora roubados do centro financeiro e finalmente em um grosso rolo de papel de embrulho de açougue de uma loja de artigos de arte. O feitiço continuava se ramificando em mais e mais feitiços secundários, terciários e quaternários, até o ponto de terem que codificá-los por cores, e a codificação por cores finalmente chegou a um pacote completo de cento e vinte Crayolas. Quentin e Plum argumentavam com mais veemência do que o estritamente necessário sobre quais cores deveriam ser usadas para cada feitiço. Isso provavelmente deveria ter sido um sinal de alerta. Depois de uma semana, eles haviam investigado o suficiente para encontrar alguns problemas, questões que pareciam ter respostas, mas que devolviam tudo o que era jogado nelas. Quentin poderia ter desistiddo se não fosse por Alice. Durante sete anos ele pensou em Alice como alguém que pertencia ao passado. Ela não estava morta, mas ela se foi. Ele estava conformado a viver sua vida sem ela. Mas quando ele a viu naquela noite no espelho em Brakebills, tudo aquilo terminou e ela voltou rapidamente ao seu presente. Ele não a via desde a Tumba de Ember, e sua reunião foi tão caótica e inesperada que no momento ele não sabia o que pensar, sentir ou fazer – Fogg estava certo, ele não havia seguido o protocolo, porque o protocolo foi projetado para banir ou matar qualquer coisa que entrasse no cordão de segurança de Brakebills, e ele não faria isso. E ele não queria dizer por quê. Assim como Alice estava lá, perto o suficiente para conversar, perto o suficiente para matá-lo. Ou matar Plum, que até aquela noite Quentin só conhecia como um rosto na multidão. Mas ela não tinha feito isso. Havia uma parte dele que desejava não ter visto Alice, que não estivesse na sala dos professores naquela noite, que não fosse sua vez de comer com os alunos do primeiro ano. Não era suficiente que ele a tivesse perdido uma vez e passado sete anos superando isso – agora Alice tinha que persegui-lo, cruzar mundos para encontrá-lo e tirá-lo da única casa que ele tinha? Quando ele chutou no espelho, uma parte dele realmente queria fazer isso: ele queria mandá-la de volta para o lugar de onde ela veio. Ele sabia que Brakebills havia acabado para ele antes mesmo de Fogg demiti-lo. Ele sabia disso assim que a viu. Porque ele sentiu a presença dela. Ele tinha certeza disso. Ela não havia ido embora: seu corpo queimou, mas a essência de Alice ainda estava em algum lugar, a Alice que ele conhecia, presa dentro daquela chama azul tóxica como uma mosca no âmbar. Ele a reconheceu, a velha Alice, a que ele costumava amar, deturpada e distorcida, mas real, e ele não podia deixá-la lá. Se houvesse alguma maneira de tirá-la, ele a encontraria. Esse era o seu trabalho agora. O ensino teria que esperar. Ele estava pronto. Ser expulso de Fillory havia lhe feito bem. Isso o tornou mais duro, mais fundamentado na realidade, a tal ponto que ele poderia lidar com a expulsão de Brakebills. Ele era basicamente um sem-teto, e ficando cada vez menos respeitável, mas ele sabia quem ele era e o que ele tinha que fazer. Tudo o que ele precisava era de um plano. Ele precisava se recompor – precisava de recursos, precisava de um lugar para morar. Ele precisava descobrir tudo o que pudesse sobre nifos. Para isso, ele precisava de dinheiro e, para conseguir dinheiro, teria que quebrar aquele
maldito vínculo. Eles não fariam isso sem ajuda. Infelizmente, o único mago que Quentin conseguia pensar que era inteligente o suficiente para ajudá-los estava muito distante, em outro continente, de fato. Era um lugar que ele e Alice conheciam bem. Quando Quentin sugeriu pela primeira vez uma viagem de campo à Antártida, Plum não estava entusiasmada. Fazia muito frio lá, e era um incômodo para chegar, e também o professor Mayakovsky era meio que um idiota. Mas Plum era uma criatura que vivia por novas sensações e não demorou muito tempo para se convencer da ideia. Seria uma aventura! Ela poderia ser um ganso de novo! Ela amava ser um ganso. — Exceto — disse ela ainda mais animada. — Por que ser um ganso? Nós já fomos gansos. Nós poderíamos ir como outra coisa. Qualquer outra coisa. — Eu estava pensando em ir como um ser humano — disse Quentin. — Como em um avião. Plum já estava em seu laptop pesquisando no Google. — OK, olhe isso. Qual é a ave migratória mais rápida na Terra? — Um avião. — Seja como for, você é o mago mais trapaceiro da história. Olhe para isto, chama-se narceja-real. — Tem certeza de que é um pássaro de verdade? Parece algo de Lewis Carroll. — “Alguns foram registrados por voarem sem parar durante quarenta e oito horas por mais de seis mil setecentos e sessenta quilômetros”. Isto é uma citação. — Da Wikipédia. Mas ainda assim. Quentin olhou por cima do ombro. A narceja-real era um pequeno pássaro rechonchudo, com forma quase de ovo, com um grande bico comprido e listras marrons em zigue-zague, como uma concha do mar não particularmente exótica. Não parecia um demônio da velocidade. — As narcejas-real fêmeas são, em média, significativamente maiores que os machos — disse Plum. — Nós precisaríamos de algo pra basear o feitiço, como um pouco de DNA da narcejareal. Pelo menos foi assim a primeira vez que fizemos isso. Eu não acho que podemos fazer a transformação com base em uma imagem da Wikipédia. — Tem certeza? Eles têm a imagem em alta resolução. — Mesmo assim. Além disso, estou bastante preocupado com o frio. Esse pássaro não parece ter evoluído para viver na Antártida. — Exceto que ainda será verão — disse Plum. — Estações alteradas. — Mesmo assim. — Pare de dizer isso — Plum franziu a testa, depois se iluminou novamente. — Ok, esqueça os pássaros. Eu nem sei por que eu estava pensando em pássaros. Nós poderíamos ser peixes! Ou baleias – baleias azuis! — Nós ainda teríamos que andar o último trecho da estrada. Quando chegarmos à Antártida. — Nós só temos que nadar debaixo do gelo! — Isso é o Polo Norte. A Antártida é um continente. Sob o gelo tudo é pedra.
Plum bufou com raiva. — O que você disser, Nanook. Mas é claro que ela estava certa: seria legal ser uma baleia azul. A ideia cresceu nele. Não havia nenhum motivo específico para fazê-lo, além de que seria mais interessante, mas isso parecia suficiente. Se não, por que ser um mago? Era seguro: elas eram legalmente protegidas e, além dos ataques ocasionais de orcas, as baleias não tinham predadores naturais. A única desvantagem era que, apesar de serem nadadoras velozes pelos padrões dos cetáceos, elas eram dolorosamente lentas em comparação com a maioria das aves, sem mencionar a narceja-real; 30 km/h era a velocidade máxima de uma baleia azul, pelo menos em longas distâncias. Nesse ritmo, levaria alguns meses para chegar à Antártida. — Eu duvido que possamos atrasar o trabalho por tanto tempo — disse Quentin. — Sim — Concordou Plum com tristeza. — Mas teria sido legal. Ah bom, outro sonho morre. Mas no final eles encontraram uma maneira de salvá-lo. Eles voaram em um avião comercial a maior parte do caminho, para Ushuaia, um porto pequeno mas inesperadamente charmoso na Terra do Fogo que reivindicou a distinção de ser a cidade mais austral do mundo. Estava envolta em uma pequena faixa de terra entre o Canal de Beagle e os picos cobertos de neve da montanha Glaciar Martial por atrás, como se estivesse apoiada contra eles, tentando não cair na água gelada. Dali, eles poderiam cruzar a Passagem de Drake até a costa da Antártida, na forma de baleias azuis. Do aeroporto, pegaram um táxi até a beira-mar. Eles não trouxeram nenhuma bagagem. Olhando de um píer de concreto, o Canal de Beagle parecia realmente frio, uma faixa de mar cinzenta e plana banhada por geleiras dos dois lados. Mas eles não podiam fazer nada da terra seca. Para realizar a transformação real, eles precisariam estar em águas profundas. Alugar um barco seria a coisa mais sensata a fazer, se fossem turistas, pescadores esportivos ou contrabandistas. Mas Quentin e Plum eram magos, então esperaram até a meianoite, depois lançaram feitiços nos sapatos e caminharam pelo canal a pé. Foi complicado no início, até que se acostumaram ao ritmo das ondas, felizmente não muito altas. Apenas seus sapatos flutuavam, então, se eles caíssem, ficariam molhados como qualquer outra pessoa. Uma vez que estavam a algumas centenas de metros da costa, além do brilho das luzes ao longo da praia, o mar estava calmo, muito escuro e muito frio. — Tenho a impressão de cometer uma blasfêmia ao fazer isso — disse Plum. — Tipo, só Jesus tem permissão pra fazer isso. — Eu realmente não acho que ele se importaria. — Como você sabe o que Jesus se importaria? — Ela ficou em silêncio por um minuto, concentrando-se na caminhada. Não era completamente diferente de tentar andar em um castelo inflável preto, frio e excepcionalmente violento. — Você gostou de Brakebills do Sul? — Eu não acho que alguém goste. Mas foi bom pra mim. Aprendi muito. — Sim. Eu gostei quando éramos animais. — Isso foi bom. Eles te transformaram em raposas? Plum balançou a cabeça. — Ursos e focas. Por alguma razão, eles não fazem mais raposas.
Quando chegaram ao avião naquela manhã, Brakebills do Sul parecia muito distante, mas só estavam a apenas alguns respingos da Passagem de Drake para a Antártida, e de repente estavam muito perto, e Quentin sentiu suas memórias muito frescas. Eles tinham sido tão inocentes, ele e Alice, mesmo depois do que aconteceu quando eles eram raposas. Os sentimentos deles eram tão grandes, selvagens e urgentes, e eles não tinham absolutamente nenhuma ideia do que fazer com eles. Ele desejou poder fazer tudo de novo. Ele tentaria ser uma pessoa melhor e mais forte. Exceto que não era exatamente isso. O que ele realmente desejava era que tivesse a Alice de volta agora, no presente. — Você também teve que andar até o Polo no final? — perguntou Plum. — Eu aposto sim. — Sim. Você acertou. Plum parecia animada em voltar. — Aposto que você chegou lá primeiro. — Desta vez você errou. — Ha! — Sua risada se perdeu entre as ondas. — Eu não posso acreditar que o grande professor Coldwater foi derrotado no polo. Quem te derrotou? — Um mago melhor que eu. Você ganhou no seu ano? — Claro que sim — disse ela. — Por um quilômetro. A lua surgiu, uma bolacha branca de fósforo anormalmente brilhante, mas a água negra parecia devorar a luz em vez de refleti-la. Uma pequena onda poderia derrubá-los, então eles acabaram dando largos passos exagerados. Mais longe da praia, a superfície da água estava suave, mas as ondas se tornaram maiores. As poucas janelas iluminadas de Ushuaia, que fechavam depois das dez horas, pareciam inefavelmente acolhedoras. Felizmente eles usavam roupas quentes, parkas e roupas íntimas compridas, que se tudo acontecesse de acordo com o planejado eles nunca mais veriam. Eles andaram quase um quilômetro, indo profundamente na baía. De acordo com as cartas náuticas que Quentin havia consultado isso bastava. Eles pararam e começaram a balançar na água, não em sincronia, mas comicamente. Eles haviam preparado com antecedência o máximo possível do feitiço. Quentin respirou fundo e revirou os ombros. Era raro que os magos se matassem com sua própria magia, mas as histórias que terminavam dessa maneira geralmente começavam assim. — Tudo bem? Plum mordeu o lábio e acenou a cabeça. — Tudo bem. Quentin abriu um recipiente de Tupperware cheio com uma pasta repulsiva que ele havia feito em Nova York a partir de pó de barbatana raspado de alguns scrimshaw que comprou em uma loja de antiguidades. Cada um deles mergulharam dois dedos na pasta e ungiram suas testas. — Talvez devêssemos ficar mais distantes — disse Plum. — Se isso funcionar, vamos ficar muito grandes. — Correto.
Eles deram alguns passos para trás, como se estivessem se preparando para um duelo, então ambos olharam na mesma direção. Quentin se preparou. Baseando-se em sua memória da transformação em ganso em Brakebills, ele tinha certeza de que isso seria realmente desagradável. Respirou fundo, levantou as mãos e marcou um suave compasso, como se esperasse o início de uma sinfonia de Mahler. Começou. Surpreendentemente, não foi tão ruim assim. Encolher, sentindo como se estivessem tirando a massa do seu corpo como pasta de um tubo de pasta de dente, deve ter sido a parte difícil de se tornar um ganso, porque naquele momento o oposto estava acontecendo, Quentin estava se expandindo e não parecia tão mau. Estava inflando como um balão, especialmente sua cabeça, que estava ficando absolutamente enorme. Sua parka ficou tensa, se esticou e depois explodiu em uma nuvem de algodão. Seu pescoço e ombros se fundiram em seu corpo enquanto o balão de Quentin crescia e crescia, seus olhos dispararam em direções opostas de cada lado de sua cabeça gigantesca. Seus braços e mãos cresciam mais devagar, tornando-se proporcionalmente menores, depois achatados e desarticulados em nadadeiras – era como usar luvas – e deslizavam suavemente em direção à cintura. Suas pernas se fundiram e algo muito curioso estava acontecendo com seus pés, mas ele só notou o fato de passagem – não o alarmou particularmente. A parte mais hilária era a boca dele: os cantos recuaram para as orelhas, de modo que a cabeça estava praticamente partida ao meio por um sorriso recurvado de cinco metros. Seus dentes inferiores derreteram completamente. Seus dentes superiores esticaram e multiplicaram loucamente em uma má oclusão cabeluda, mais como um bigode do que dentes. O único momento real de pânico veio quando ele caiu na água e afundou. Seus instintos humanos lhe disseram que ele estava prestes a congelar ou se afogar, ou ambos, mas nada disso aconteceu. A água não era nem quente nem fria, não lhe dava nenhuma sensação. Era como o ar. Quentin proferiu alguns espirros de baleia realmente épicos antes de seu sistema respiratório baseado em espiráculos ser colocado em operação. Mas mesmo isso foi agradável. E então tudo ficou calmo. Ele estava pendurado no vazio, flutuando suavemente, seis metros abaixo da superfície. O zepelim Quentin foi lançado. Era uma baleia azul. Ele era mais ou menos do tamanho de uma quadra de basquete. Estava realmente de bom humor. Por alguns minutos, ele e Plum flutuaram lado a lado, globo ocular com globo ocular. Então, ao mesmo tempo – de alguma forma eles se coordenaram – foram à superfície, arquearam as costas, sugaram litros de ar pelas partes superiores de suas cabeças e submergiram. Quentin não sabia quando se sentiu tão calmo. Juntamente com Plum, ele bateu com sua cauda plana e poderosa e começou a ondular através da água. Isso dificilmente exigia esforço; teria exigido esforço para permanecer imóvel. Ele tomou um gole enorme de água – sua boca e garganta distenderam comicamente para tomar mais e mais e mais – e em seguida esguichou novamente através de seus estranhos dentes da frente (barbas de baleia, esse era o termo) como se estivesse cuspindo tabaco. Ele deixou para trás um saboroso resíduo de krill que ele provou e depois engoliu. Ele imaginou que teria algum tipo de visão de luxo do oceano como parte de seu pacote de novos sentidos de baleia, mas na verdade ele não via muito melhor do que como humano.
Com os olhos nos lados diferentes da cabeça, sua percepção da profundidade binocular não funcionava e, sem um pescoço, a única coisa que ele podia fazer para mudar a visão era tentar revirar os olhos ou orientar todo o seu corpo enorme. Além disso, irritantemente, ele não parecia ter pálpebras. Ele não podia piscar. O desejo diminuiu com o tempo, mas nunca desapareceu completamente. Uma vez que saíram da Terra do Fogo, as capacidades sensoriais de Quentin expandiramse imensamente. Seu mundo ficou enorme. Sua visão poderia ser ruim, mas sua audição era algo completamente diferente. Para uma baleia azul, o oceano inteiro era uma imensa câmara de ressonância, um grande tímpano aquoso estendido sobre a terra, com vibrações fugazes e fugitivas que constantemente oscilavam de um lado para outro e através dele. Com base nisso, Quentin podia sentir a forma e as proporções do mundo ao seu redor o tempo todo, como se estivesse passando as pontas dos dedos auditivos invisíveis através dele. Se ele tivesse mãos, poderia ter desenhado a costa sul do Chile e da Antártida e um mapa de relevo do oceano que os separava. E se a grande câmara azul ficasse em silêncio em algum momento, ela fazia algum barulho por conta própria. Ele poderia cantar. Sua garganta era como um didgeridoo, ou uma sirene de nevoeiro, emitindo pulsações e gemidos profundos e ressonantes. O oceano estava cheio de vozes, como uma central telefônica ou uma câmera de eco ou a própria internet, viva com informações codificadas que passavam por ela na forma de chamadas e respostas. As baleias estavam sempre enviando mensagens umas para as outras, e Quentin também fez isso, em uma língua que ele conhecia sem precisar aprender. Não era uma simples questão social. Havia um grande segredo: as baleias transmitiam feitiços. Jesus, todo o oceano estava entrecruzado em uma treliça de magia subaquática. A maioria dos feitiços exigia várias baleias e eles eram projetados para dobrar e arrastar grandes nuvens de krill e, ocasionalmente, para reforçar a integridade de grandes placas de gelo. Quentin se perguntou se lembraria de tudo aquilo quando fosse humano novamente. Ele se perguntou, mas ele não se importava muito. E havia algo mais – algo lá embaixo nas trincheiras negras e abissais do oceano. Algo que queria subir. As baleias o mantiveram lá embaixo. O que era isso? Um exército de lula gigante? Cthulhu? Algum último sobrevivente do megalodonte? Quentin nunca descobriu. Ele esperava nunca fazer isso. Quentin se sentia muito mais na pele de uma baleia do que quando era um ganso, uma raposa ou um urso polar. Ele tinha um cérebro grande e gordo que era capaz de executar a maior parte de seu software de personalidade na mesma velocidade com a qual estava acostumado. Mas ele não era o mesmo Quentin, não exatamente. A baleia Quentin era um Quentin calmo, sábio e contente. Ele era colossal, planetário, movendo-se através da escuridão azul sem qualquer ameaça e sem necessitar de nada além de ar através de seu orifício respiratório e do krill através da boca. A Passagem de Drake tinha cerca de setecentos quilômetros de largura e levaria dois ou três dias para nadar, mas o tempo era uma ideia que ele estava tendo cada vez mais dificuldade em se interessar. O tempo era definido pela mudança e houve poucas mudanças para uma baleia azul.
Quentin notou tudo, mas não se preocupou com nada. A Passagem de Drake tinha o pior clima do mundo, literalmente, mas tudo que isso significava era que, quando chegava à superfície para respirar, uma vez a cada quinze minutos, as ondas batiam com um pouco mais de força contra as costas largas e escorregadias. Ele e Plum eram grandes deuses azuis que voavam asa contra asa, e tudo ao redor deles prestavam homenagem. Peixe, água-viva, camarão, tubarões; uma vez, ele avistou um grande tubarão branco, vagando sozinho pelas profundezas com seu maldito sorriso permanente. Tinha tantos dentes que parecia estar usando aparelho dental. Uma grande e perfeita maquina de matar da natureza! Claro super fofo. E então o fundo do oceano começou a inclinar para encontrá-los. Ele quase se esqueceu o que estavam fazendo ali, se atrapalhou e permitindo que sua mente desaparecesse para sempre na interminável baleinitude azul de tudo isso. Mas não: eles estavam ali por um motivo. O pior ainda estava por vir. Eles teriam que se encalhar deliberadamente, com sorte na areia macia e agradável, mas era mais provável em algum xisto rochoso ou pior. Eles só tinham que esperar que suas peles fossem grossas o bastante e que o chão estivesse macio o suficiente para que seus estômagos delicados não acabassem rasgados. Eles gemeram um pouco um ao outro, o que era normal, então eles se dirigiram para a costa da Antártida. À medida que se aproximavam, chegaram chamadas de emergência de algum grupo distante, alertando-os para não se aproximarem, insistindo para que voltassem para águas mais profundas. Cuidado! Não façam isso! Era surpreendentemente difícil de ignorá-los – Quentin se sentiu como se fosse o piloto de um 747 em queda e os controladores de tráfego aéreo imploravam a ele que pelo o amor de Deus, puxe para cima, puxe para cima! Mas eles mantiveram o curso, agitando suas caudas, aumentando a velocidade, batendo na água com seus corpos enormes. Se eles tivessem dentes teria feito com que eles rangessem. De repente, Quentin estava de bruços sobre pedras negras sob um céu branco, nu, com as ondas fracas do Oceano Antártico, lavando com um frio ardente suas pernas, que já estavam ficando dormentes. Parecia ter sido o efeito de nascer, sendo cuspido do mar quente, envolvente e sustentador para um mundo frio e hostil. Em suma, era uma merda. Quentin fez a única coisa que sabia que o faria se sentir bem: fechou os olhos pela primeira vez em três dias e manteve-os fechados por um bom minuto. Ele havia perdido as pálpebras. Plum estava deitada ao lado dele. Um minuto atrás, ele não precisaria virar a cabeça para olhá-la, mas naquele momento ele virou sua pequena, pálida e humana cabeça em sua direção. Ela olhou para ele, pálida e trêmula. — Última parte — disse ele com a voz grave. Huh: lábios e dentes. Que conceito. Ele pressionou desajeitadamente com a língua. — Última parte — disse ela. Quentin se levantou do xisto e imediatamente caiu. Gravidade, meu velho inimigo. Que maneira estúpida de se mexer. Permanecer em pé era como tentar equilibrar um poste telefônico. Eles estavam em uma praia estreita e curva, com seixos pretos e areia cinza; era apenas a praia menos tropical do mundo. Ambos estavam nus, e poderia ter havido um tempo em que, como homem humano, ele pelo menos estaria em teoria, interessado na visão de Plum sem suas roupas, mas mentalmente ele ainda era um cetáceo em mais de cinquenta por cento, e a
relativa nudez ou não de um humano de qualquer sexo realmente não poderia fazer menos sentido para ele. Ele mal conseguia lembrar o que eles estavam fazendo ali. Felizmente, eles conversaram sobre o que aconteceria a seguir, e perfuraram em seus cérebros, que eles sabiam que não estariam funcionando em plena capacidade. De cabeças baixas, os dois começaram a procurar através das pedras e as marcas das marés. Isso tinha que ser feito rapidamente, antes que a hipotermia se estabelecesse. Quentin cambaleou como um bêbado, cortando seus estranhos, insuportavelmente suaves pés de tons amarelo rosado nas rochas antipáticas até... ali. Uma pena. Branca salpicada de cinza. Pegou-a de uma pilha de lixo marinho pegajoso e fedorento. Não havia tempo para ser exigente. Basicamente qualquer coisa menos um pinguim serviria. Estava se lembrando do propósito de todo o processo. Ele esperou, pulando na ponta dos pés, as mãos sob as axilas para manter os dedos quentes, sentindo-se cada vez mais tímido por estar nu, até que Plum encontrou a dela. Então ele apertou a pena entre os dentes, que não paravam de ranger, e fizeram os feitiços ao mesmo tempo. Desta vez, a mudança foi ruim, e Quentin vomitou quando terminou, embora, é claro, para um pássaro vomitar não é tão desagradável como para um ser humano. O pássaro fez um trabalho limpo e higiênico, nada de outro mundo. Após seu breve contato com a humanidade, o cérebro de Quentin tornou-se animal novamente, desta vez tendo que suportar o insulto de ser espremido no volume, como uma colher de sopa, de um crânio de ave marinha. Ele se orientou a tempo de ver Plum encolhendo-se na forma de outra ave marinha a vinte metros de distância, seu corpo pálido se cobrindo com penas e encolhendo para se tornar um... ele não sabia que tipo de pássaro era. Nem mesmo sabia que pássaro ele era. Ele era qualquer tipo de pássaro que essa pena pertencia. Um breve contato com o olho amarelo açafrão e perfeitamente circular de Plum, e ambos levantaram voo. Para frente e para cima.
CAPÍTULO 10
Quentin nunca ouviu falar de ninguém que tivesse ido a Brakebills do Sul no intervalo entre os semestres do outono e da primavera, como era o caso, e ele não estava cem por cento certo que pudessem entrar. Podiam encontrar o prédio fechado, Mayakovsky poderia ter ido embora ou estar escondido, e todo o complexo estaria isolado. Se isso acontecesse, eles teriam que reavaliar muito depressa e procurar por uma das estações de pesquisa não-mágicas da costa, onde sua chegada seria pelo menos difícil de explicar. Desceram em espiral, equilibrando-se nas asas doloridas, preparando-se para o momento em que seus pés de pássaros marinhos pastavam na superfície de uma cúpula rígida e invisível; mas o momento nunca ocorreu. Aparentemente Mayakovsky acreditava que os setecentos quilômetros da Antártida a terra de ninguém já era uma defesa suficiente contra a invasão. Eles pousaram no telhado plano de uma das torres e se tornaram humanos novamente. Quentin achou que era melhor deixar Mayakovsky encontrá-los do que o contrário – ele não queria assustar o velho mago e obrigá-lo a fazer uma exibição letal de magia defensiva – então eles fizeram o maior barulho possível descendo as escadas. A primeira parada foi na lavanderia, onde eles conseguiram algumas roupas de Brakebills do Sul: a questão da nudez estava começando a parecer urgente novamente. O edifício parecia uma área proibida, uma zona de exclusão. Era como se estivessem caçando um minotauro em seu labirinto. Quentin passou a mão despreocupadamente ao longo de uma parede, e a pedra lisa estava fria e pegajosa com umidade condensada, algo relacionado a feitiços de aquecimento – exalava um cheiro de porão úmido que trouxe de volta memórias da última vez em que ele esteve ali, quando todos estudavam dezoito horas por dia sob o domínio do silêncio de Mayakovsky. Havia algo que ele não precisava se preocupar em Brakebills do Sul: nostalgia. De qualquer forma, ele estava com muita fome para sentir alguma coisa. Eles acabaram na cozinha, onde se encheram de qualquer coisa que pudessem encontrar que pudesse tirar o gosto do bico do pássaro de suas bocas. Quentin estava bem ciente de que Mayakovsky não tinha nenhuma razão real para ajudá-los, mesmo supondo que ele pudesse. Ele sempre soube que não teria muito a oferecer como compensação, além de um problema intelectualmente interessante e de alguma bajulação descarada e, supunha a presença estritamente – estritamente – platônica de uma jovem bonita e inteligente. Mas de alguma forma tudo tinha sido mais convincente quando eles planejaram. Eles não ouviram Mayakovsky chegando, ele simplesmente apareceu na porta, silencioso como um fantasma, com um aspecto sinistro, de ressaca e sem tomar banho. Sua barba estava
um pouco mais branca, sua barriga mais proeminente, suas unhas mais amarelas, mas por outro lado ele estava perfeitamente preservado. Era como se a Antártida o tivesse congelado. Mayakovsky não os matou. — Vi vocês chegando — rosnou ele. — A quilômetros de distância. Ele usava um roupão, sem abotoar, uma camisa branca de botões que precisava urgentemente de água sanitária e um short muito curto, muito pouco profissional. — Professor Mayakovsky — Quentin levantou-se bruscamente. — Peço desculpas por invadir sua privacidade desse jeito, mas estamos trabalhando em um problema interessante e poderíamos usar sua ajuda com isso. Mayakovsky cortou um pedaço de pão velho com uma faca suja, espalhou aproximadamente um dedo de manteiga não refrigerada e começou a comer em pé. Estava bem claro que ele não ia jogar a bola de volta, então Quentin continuou: ele falou sobre os vínculos incorporados e o que eles estavam tentando fazer e por que ele, Mayakovsky, apenas ele entre todos os praticantes de artes invisíveis, poderia dar-lhes a assistência que eles tanto precisavam. Mayakovsky mastigava constantemente e ruidosamente, olhando para a distância com olhos lacrimejantes que piscavam rapidamente. Quando Quentin terminou, Mayakovsky engoliu em seco, suspirou, erguendo os ombros largos e depois caindo sob o roupão, e saiu do quarto. Ele voltou com um pedaço de papel e um lápis pouco afilado. Ele varreu algumas migalhas do chão e colocou o papel e o lápis na frente de Quentin. — Escreva aqui — disse ele. Ele apontou para Plum. — Você, faça café. Plum fez uma careta para Mayakovsky atrás dele. Quentin levantou as palmas das mãos como se dissesse: o que você quer? Ela fez uma careta para ele também. — Tudo bem — disse Quentin. — Você desenha. Eu faço o café. Enquanto Plum fazia uma aproximação grosseira de seu fluxograma original, Quentin fazia café em uma cafeteira expressa da época soviética. Mayakovsky voltou para a cozinha quando o desenho e o café estavam prontos – ele não se deu o trabalho de servir na xícara, apenas pegou toda jarra – e saiu de novo. Talvez fosse melhor assim, Quentin estava ficando cansado. Ele não dormiu por quatro dias; não houve pausas durante o voo da costa e as baleias realmente não dormiam. Ele encontrou o caminho para a ala do dormitório de memória, deitou-se em uma cama em uma das celas vazias e adormeceu sob a luz branca leitosa da Antártida. Não fazia ideia de quanto tempo dormiu, mas quando voltou para o refeitório às coisas progrediram. Mayakovsky havia retornado, agora usando óculos de grossos aros pretos, sentando a uma mesa conversando acaloradamente com Plum e agitando os braços. O fluxograma estava na mesa à frente deles; parecia que tinha sido repetidamente dobrado em quadrados de duas polegadas e desdobrado novamente. A maior parte dos espaços em branco agora estava cheia de anotações e cálculos na minúscula caligrafia de Mayakovsky, uma confusão de números e letras, latim e cirílico, e símbolos mais obscuros. Quentin puxou uma cadeira. O odor corporal de Mayakovsky era tão intenso quanto o do queijo. — É uma loucura o que vocês estão fazendo — Mayakovsky sacudiu a cabeça com melancolia eslava, como se a pura incompetência de Plum e Quentin o entristecesse. — Uma exploração válida, sim. Muito bem. Em resumo: isto aqui é totalmente desnecessário.
Totalmente. — Ele deu alguns golpes pesados no papel. — E isso, vocês transpõem, está trabalhando contra seus efeitos secundários, aqui e aqui. O feitiço está lutando contra si mesmo. Vocês entendem? Mas o resto não é tão terrível. Era melhor do que Quentin esperava. Ao ouvi-lo analisar detalhadamente seu trabalho emaranhado e tangencial, ele percebeu que eles estavam certos em procurá-lo, por mais que isso lhes custasse e ainda pudesse custar-lhes. — Isso, por outro lado, não — Era um não russo, redondo, ressonante e definitivo. Mayakovsky indicava para uma das últimas fases do feitiço com as costas da mão, como se nem quisesse tocá-lo, de tanto desprezo. — É impossível. Perda de tempo. Vocês precisam de mais poder, muito mais. É simples questão de escala. Vocês são... eu não sei. Vocês estão tentando cavar através de uma montanha com palito de dente. O professor Mayakovsky balançou a cabeça novamente. Seu humor estava escurecendo visivelmente, indo para o preto. — Vocês estão precisando de mais poder, muito mais. Veem? Aqui e aqui. — Ele indicou dois pontos em seu fluxograma. — Entre aqui e aqui. — Eu disse isso! — exclamou Plum. — Você se lembra? Basicamente, isso é exatamente o que eu disse. — Eu me lembro — Quentin olhou para o diagrama. Sua confiança estava diminuindo. Tudo parecia muito inadequado agora. — Quanto mais poder? — Muito. Ordens de magnitude. — Megnitude. — Você quer quebrar o vínculo com isso? — Ele agarrou os dedos de Quentin em uma das mãos como uma garra e sacudiu-os na frente do rosto de Quentin. — Com esses dedinhos? Perda de tempo. Levaria cem anos! Ou cem Quentins! — Ou cem Plums — disse Plum. — Cinquenta Plums — disse Mayakovsky , com um rápido sorriso amarelo. — Mas você não está nem perto disso. Nada perto. Perda de tempo. Ele amassou o diagrama e jogou-o na parede. Quentin observou rolar até parar debaixo de uma mesa. Ele teria gostado de levar alguns minutos para examinar o feitiço de maneira paciente, civilizada e acadêmica, procurando áreas de flexibilidade, lugares onde os multiplicadores poderiam ser ajustados, talvez, para compensar a diferença. Mas Mayakovsky rolou sobre ele, saltando como um sapo através da matemática, multiplicando brutalmente três e quatro dígitos em sua cabeça enquanto andava. Isso foi tudo que Quentin pôde fazer para acompanhar. Não havia nada que Mayakovsky não soubesse sobre vínculos incorporados, aparentemente; era como se ele os tivesse estudado antes de sua chegada. Ele entendeu o feitiço muito melhor do que eles. Quentin se perguntou como seria o trabalho pessoal de Mayakovsky, se é que fizesse. Ele ficava sozinho ali metade do ano, ano após ano. O que diabos ele estava fazendo com o seu tempo? Com uma mente como a dele, não havia limite para o que ele poderia conseguir se ele quisesse. Mas Quentin não fazia ideia do que Mayakovsky queria. Quentin fechou os olhos e pôs os dedos nas têmporas. Ele podia visualizar todo o feitiço em sua cabeça, e ele podia seguir o que Mayakovsky estava dizendo, apenas, mas ele não conseguia ver uma resposta. Tinha que haver um caminho. Ele estava condenado se tiver que voltar de mãos vazias. — Talvez eu possa armazená-lo — disse ele. — Construir o poder ao longo do tempo.
Construir um tipo de dispositivo de contenção; eu poderia lançar o feitiço cem vezes, armazená-lo, liberar tudo de uma vez. — E como você estabiliza? “Armazenar” como? Qual é a matriz de armazenamento? — Não sei. Uma joia, uma moeda, algo assim. Mayakovsky fez um barulho rude. — Magia má. Magia perigosa. — Ou — disse Quentin. — Eu poderia reunir cem magos. Nós poderíamos lançar o feitiço todos de uma vez. — Eu acho que você não vai contar sobre esse pequeno projeto a cem magos. Bom argumento. — Provavelmente não. — Seria muito arriscado. — Verdade. — Eu não sei por que você quer quebrar um vínculo incorporado, mas seja lá o que for não é legal, eu não acho. Nem sequer deveria ter me contado. Mayakovsky observava-o do outro lado da mesa. Quentin também olhou para ele de volta. Seu rosto imperturbável era impossível de interpretar. Plum assistia ao duelo com muita atenção. Se ele está blefando, pegue ele. Se não, o que diabos você vai fazer a respeito disso? — Talvez você devesse nos denunciar — disse Quentin. — Digo, se descobrirem que estávamos aqui, você pode perder seu emprego. — Talvez eu deva. Mayakovsky levantou-se, foi até um armário e vasculhou-o. Ele pegou uma garrafa com um líquido claro, sem rótulo. — Eu quero que vocês saiam da minha casa — disse ele. — Eu farei um portal. ••• Mas então, em vez de jogá-los fora, Mayakovsky permaneceu absorto. Ele sentou em uma mesa no canto e começou a beber. Depois de alguns minutos, ele ofereceu a garrafa para Plum. — Beba. Plum fungou, tomou um gole, tossiu, enxugou a boca e entregou a garrafa a Quentin. — Beba — disse Plum. Tinha o cheiro de líquido de radiador. — Cristo — disse Quentin. — O que é isso? Isso produziu uma risada estranha em Mayakovsky. — Conhaque antártico. Não foi uma resposta muito tranquilizadora. O que poderia crescer ali e até mesmo fermentar? Líquens? Ele esperava que fossem líquens. As alternativas pareciam piores. Mayakovsky voltou ao silêncio. Não parecia sequer sentir a necessidade de reconhecer a presença de Plum e Quentin, embora Quentin tenha notado que ele também não os deixou
sozinhos. Ele e Plum trocaram olhares desconcertados. Mayakovsky não parecia querer falar sobre vínculos incorporados. Eles tentaram envolvê-lo em pequenas conversas sobre a vida em Brakebills do Sul, mas ele era imune a conversas inconsequentes. — Você é parente do poeta? — perguntou Plum a ele. — Niet. Mayakovsky acrescentou algo em um grunhido em russo, provavelmente sobre os poetas. Então, Quentin e Plum compararam notas sobre suas experiências como baleias azuis, fofocando sobre os vários bandos que podiam se lembrar, enquanto Mayakovsky olhava para a parede e bebia de forma constante e mecanicamente. Ele pegou um pedaço de pão escuro e alguns picles, mas não comeu, apenas levantava o pão poucos minutos, cheirava e colocava de volta na mesa. Quanto tempo ele iria deixar isso continuar? Bom, Quentin não iria ajudálo. Ele ia arrastar isso para fora o tempo que fosse necessário, até o amargo fim. Ele não iria desistir, não até que Mayakovsky desistisse. A luz da Antártida do lado de fora era como uma lâmpada de um interrogatório, firme e inclemente. Parecia que eles eram os últimos três seres humanos na terra. Por mais que os desprezasse, Mayakovsky não pareceu convencido a fazê-los desaparecer. Talvez ele estivesse mais solitário do que ele deixava transparecer. Por fim, ele pegou um tabuleiro de xadrez, com um peão sendo substituído por uma maçaneta de um armário. Primeiro ele destruiu Quentin, depois venceu Plum duas vezes, a primeira com alguma dificuldade, a segunda depois de três quartos de hora e por uma margem estreita. Quentin suspeitava que Plum se deixou ganhar. Talvez Mayakovsky também suspeitasse disso. No meio do terceiro jogo, Mayakovsky se levantou de repente. — Venham — Ele saiu da sala com um passo firme e determinado. — Tragam a garrafa. Quentin olhou para Plum. — Depois de você — disse ela. — As damas primeiro. — A idade antes da beleza. — O P vem antes do Q. Estava começando a parecer divertido. Eles eram um casal de supranumerários de comédia, Rosencrantz e Guildenstern, para o sombrio Hamlet de Mayakovsky. Colher o que te aflige. Quentin encontrou alguns copos – estava cansado de dividir uma garrafa com Mayakovsky, embora sem dúvida o conhaque antártico possuísse poderosas propriedades esterilizadoras – e eles o seguiram. Ele os conduziu através de uma porta que Quentin nunca tinha visto destrancada antes e através de seu apartamento privado. Quentin desviou o olhar da multidão de roupas íntimas sujas espalhadas pelo chão. — Beba! — rugiu Mayakovsky enquanto caminhavam. — Obrigado — disse Quentin. — Mas eu... — Beba! Este é seu professor falando, skraelings. — Sabe — disse Quentin. — Agora sou professor também. Tecnicamente falando. Ou era. — Eu vou te mostrar uma coisa, professor Skraeling. Algo que você não verá em nenhum outro lugar.
Aparentemente, a bebida assassina era o preço de admissão ao santuário interno de Mayakovsky, mas Quentin estava disposto a seguir qualquer pista, por mais tênue que fosse. Ainda estava tonto da viagem, mas o conhaque reavivou as brasas em seu estômago, um fogo acre, um fogo lento de turfa. O próprio Mayakovsky não parecia particularmente bêbado, exceto que seu humor havia mudado de depressivo para maníaco. Ele os conduziu por dois lances de escada, esculpida na própria rocha da Antártida. Talvez fosse o anti-Papai Noel, do Polo Sul, e ele ia mostrar a eles onde os elfos preparavam carvão para o anti-natal. Quentin orou a todos os deuses que vieram à mente, vivos e mortos, que isso não fosse uma questão sexual. Não era. Era o laboratório de Mayakovsky: um conjunto de salas de trabalho, quadradas e sem janelas, cada uma das salas mobiliada com bancos e mesas bem gastas e cravejada de máquinas silenciosas e pesadas: uma coluna de perfuração, uma serra de fita, uma pequena forja e um torno. Em contraste com o resto dos domínios de Mayakovsky, tudo estava magnificamente limpo e arrumado. As ferramentas e instrumentos estavam polidos e colocados em fileiras retas em panos como se estivessem à venda. A maquinaria brilhava em um azul escuro mate. A sala permanecia calma, exceto por um movimento muito regular silencioso nas sombras: um pêndulo que oscilava suavemente; um pião que por algum motivo não parava; um mostrador armilar que girava lentamente. Os três estavam parados olhando ao redor na luz fraca e esqueceram momentaneamente a vodca de líquens ou seja lá o que fosse. O silêncio alcançou outro nível abaixo do silêncio ambiente regular da Antártida: um vácuo sonoro absoluto. — Isso é lindo — disse Plum. Era verdade. — Bonito. — Eu sei por que você faz isso — disse Mayakovsky. Não era uma pergunta para eles, mas como uma continuação de um monólogo que se desdobrava em sua mente. — Você... — Ele olhou para Plum. — Você, eu não sei. Talvez você esteja entediada. Talvez você esteja apaixonada por ele? — Plum descartou a ideia com um gesto frenético com o braço todo: não, cale a boca, cale a boca. — Mas você, Quentin , eu te entendo. Você é como eu. Você tem ambição. Você quer ser um grande mago. Gandalf talvez. Merlim. Dumbledore. Ele falou em voz baixa e até gentilmente. Ele bebeu, depois limpou a garganta e cuspiu em um lenço, que colocou no bolso do roupão. Ele morava sozinho há muito tempo. Sim? Quentin pensou. Ele queria ser um grande mago? Essa era a verdade? Talvez costumasse ser. Naquele momento tudo que queria era ser um mago e ponto final. Ele queria quebrar o vínculo incorporado. Ele queria Alice de volta. Mas a verdade parecia muito relativa naquele momento. A verdade era uma substância solúvel em vodca de líquen. — Claro — disse ele. — Porque não? — Mas você não será grande. Você é esperto, sim, você tem uma boa cabeça. Ele estendeu a mão e bateu na cabeça de Quentin com os nós dos dedos. — Não faça isso.
Mas Mayakovsky era incontrolável, um padrinho bêbado empenhado em fazer um brinde inadequado. — Boa cabeça. Melhor que a maioria. Mas infelizmente para você há muitas cabeças assim. Uma centena. Talvez mil. — Tenho certeza de que você está certo — Não havia sentido em negar isso. Quentin encostou-se ao metal frio e oleoso da coluna de perfuração. Parecia tranquilizadoramente estável, um aliado às suas costas. — Quinhentos — disse Plum generosamente. Ela se impulsionou para cima de uma mesa. — Seja justo. — Você nunca será grande. Você não sabe nada sobre grandeza. Você quer ver? Eu vou te mostrar a grandeza. Ele moveu sua mão expansivamente para os bancos de trabalho escuros, e por toda a sala o metal e o vidro se agitaram, brilharam e ganharam vida. Os motores zumbiam, as engrenagens giraram e as luzes se acenderam. — Este é meu museu. O museu de Mayakovsky. E mostrou a eles o que ele construiu nos longos invernos da Antártida. A oficina de Mayakovsky não era apenas uma maravilha, era uma biblioteca de maravilhas. Eram um catálogo de orações respondidas, sonhos impossíveis e o Santo Graal. De repente, Mayakovsky era um showman, conduzindo-os grandiosamente de mesa em mesa: havia uma máquina de movimento perpétuo e um par de botas de sete léguas. Ele mostrou a eles uma gota de solvente universal, que nenhum recipiente poderia conter e, portanto, tinha que ser mantida magicamente suspensa no ar. Mostrou a eles feijões mágicos, uma caneta que escrevia apenas a verdade, um rato que rejuvenescia e uma gansa que colocava ovos de ouro, prata, platina e irídio. Ele transformou palha em ouro e transformou ouro em chumbo. Era o fim de todos os contos de fadas, todos os prêmios pelos quais cavaleiros e príncipes haviam lutado e morrido e para os quais as princesas mais inteligentes haviam adivinhado enigmas e beijado sapos. Mayakovsky estava certo, isso era magia magnífica, era o resultado de uma vida de prática solitária e trabalho duro. Mais tarde, Quentin teve dificuldade em lembrar detalhes – o conhaque os apagou de suas células cerebrais como um detergente industrial – mas se lembrou de um piano que improvisava de acordo com seu humor, nunca se repetindo, aperfeiçoando a música de acordo com a forma como você respondia, tornandoa cada vez mais e mais bonita até se tornar o som de tudo que você sempre quis ouvir. Depois de alguns minutos, foi doloroso – ele teve que dizer a Mayakovsky para pará-lo antes que ele começasse a soluçar. Depois não poderia cantarolar aquela melodia, mesmo que sua vida dependesse disso. — Isso, Quentin. Isso é grandeza. Estas são coisas que você nunca fará. Que você nunca entenderá. Era verdade. Mesmo com a força que ele ganhou depois que seu pai morreu, ele nunca estaria no nível de Mayakovsky. Não lhe custou nada admitir isso. Ele apenas desejou que, com todo o seu gênio, Mayakovsky quisesse ajudá-los. Mas Plum estava franzindo a testa. — Mas então porque você ainda está aqui? — perguntou ela. — Na Antártica? Se você é um grande mago? Eu não entendo. Digo, veja tudo isso! Você poderia ser famoso!
— Eu poderia ser — disse Mayakovsky amargamente; o showman havia desaparecido. — Mas por quê? Por que eu deveria me importar se as pessoas sabem meu nome? As pessoas não merecem Mayakovsky! — Então você gosta de ficar aqui? Sozinho assim? Não entendo. — Por que eu não gostaria? — Ele esticou o lábio. Não se incomodava muito em ser psicanalisado. — Aqui eu tenho tudo. Lá fora não há nada pra mim. Aqui eu posso fazer o meu trabalho. — Mas ela está certa, não faz sentido — Quentin encontrou sua voz. — Você provavelmente resolveu problemas com os quais as pessoas vêm batendo suas cabeças há anos. Você tem que voltar e contar a todos. — Não tenho que fazer nada! — E depois em voz baixa: — Chega. Eu nunca voltarei. Eu terminei com isso. Mesmo com seu cérebro comum, medianamente brilhante, Quentin estava começando a entender. Ele sabia algumas coisas sobre a história pessoal de Mayakovsky: como ele teve um caso com uma estudante chamada Emily Greenstreet que terminou tão desastrosamente que ele teve que fugir para Brakebills do Sul. E Quentin também sabia alguma coisa sobre se esconder do mundo. Ele também teve uma boa parte disso. Ele ficou tão deprimido e traumatizado depois do que aconteceu com Alice que se retirou do mundo da magia e jurou que nunca mais lançaria um feitiço. Se nunca arriscasse mais nada – ele raciocinou – nunca poderia perder mais nada. Ele nunca poderia machucar mais ninguém. Mas isso não durou. Não funcionaria. Quem não arrisca não tem nada, não faz nada e não se torna nada. A vida é um risco. Eliot, Janet e Julia vieram buscá-lo e ele voltou a Fillory depois de tudo. Ele se arriscou novamente, ganhou, perdeu e doeu, mas ele não se arrependeu, nada mesmo. — Você está errado — disse Quentin. — Tudo bem, você é um gênio, mas está errado sobre isso. Você poderia voltar. Não seria tão ruim quanto você pensa. — Não me diga o que posso fazer. Não me diga quem eu sou. Quando você puder fazer tudo o que eu faço, homenzinho, então você pode me julgar. — Eu não estou te julgando. Só estou dizendo... — Você... você não é um mistério — Mayakovsky cutucou Quentin no peito com um dedo como uma salsicha seca. — Você acha que eu não te conheço? Eles te expulsaram daquele lugar, daquele outro mundo que você estava. Sim? E você voltou pra Brakebills. Mas eles também não queriam você lá! Então você sai de novo. Jesus, ele deve saber sobre Fillory, ou pelo menos a Terra Nula. Ele avançou em Quentin, que cedeu terreno. — Bom, sim — disse Quentin. — Mas você vai perceber que eu não fico andando no meu castelo de gelo pensando nisso. — Não! Não! Agora você quer ser um criminoso! Mas até isso é demais pra você! Você tem que correr pro papai pra pedir ajuda! — Meu pai está morto. Quentin parou de recuar. — Eu posso ser um mago de segunda categoria — disse ele. — Mas pelo menos eu não sou um estranho recluso que grita com as pessoas. Eu estou no mundo tentando fazer alguma
coisa. E eu vou te dizer outra coisa, eu acho que você sabe como quebrar o vínculo incorporado. De fato, – ah, meu Deus, talvez ele realmente fosse um gênio – na verdade, acho que você está sujeito a um. Isso é o que está te mantendo aqui. Não é? Mayakovsky estava muito bem preparado para a visita. Bem demais, mesmo para ele. Era um tiro longo, mas Mayakovsky hesitou e Quentin sabia que ele estava perto. — Me diga como quebrá-lo — Ele aproveitou sua vantagem. — Você deve ter descoberto isso, mesmo que você esteja com muito medo de fazer isso sozinho. Me diga como. Ajude alguém pra variar. Ele havia tocado um nervo, porque algo ficou frio atrás dos olhos de Mayakovsky, e ele deu um tapa no rosto de Quentin. Quentin esqueceu como ele gostava de fazer isso. Queimava como o inferno, embora não tanto quanto se ele já não estivesse bêbado com vodca de líquen. Seus ouvidos estavam zumbindo, mas seu rosto já estava dois terços dormente. Ele estava bêbado o suficiente para fazer algo que sempre quis fazer, que era dar um tapa em Mayakovsky de volta. Com sua pele de urso pardo, era como bater em um crocodilo. Mayakovsky eclodiu com seu sorriso amarelo sulfuroso. — É isso! — ele gritou. — Outra vez! Quentin bateu nele novamente. Sem aviso, Mayakovsky jogou seus braços grossos ao redor de Quentin em um grande abraço de urso russo. Era difícil seguir a mudança radical da postura emocional, mas Quentin continuou. Por que não? Por cima do ombro de Mayakovsky, viu Plum observando-os com os olhos arregalados – parecia que ela estava tentando se teletransportar para fora do quarto por pura força de vontade. Mas porra, por que dois homens não podiam se abraçar no meio da Antártida? Ele deu um tapinha nas costas de Mayakovsky com a mão livre. Pobre coitado. E o pai de Quentin estava morto. Quem mais ele abraçaria? Essa seria a sensação de ter uma família, pensou ele. Deve ser assim que as pessoas abraçam seus pais. O bom e velho Mayakovsky. Eles não eram tão diferentes afinal. — Eu sou um homem morto, Quentin. Esta é a minha sepultura. Eu me enterro aqui. — Isso é ridículo — disse Quentin. — É estúpido. Você pode quebrar o vínculo. Você pode voltar a qualquer momento. Venha com a gente! Mayakovsky se afastou. Ele manteve Quentin a um braço de distância. — Mantenha seu mundo de merda! Você está me ouvindo? Mantenha isso! Eu ficarei aqui. Eu terminei! Ele deu um tapinha na bochecha de Quentin. — Acabou pra mim. Você é um patético medíocre, mas você é mais corajoso do que eu. Você não vai acabar como Mayakovsky. Não acabou pra você. Ele estendeu a garrafa. Cristo, Quentin pensou que eles finalmente haviam terminado, mas ali estava praticamente cheia de novo. Deve estar reabastecendo com magia. Quentin não se lembrava de muito depois disso. Mais tarde, ele teria uma lembrança nebulosa de Mayakovsky cantando, rindo e chorando, mas tudo se misturava com os sonhos de líquen que tinha depois de desmaiar, e nunca conseguia separar a realidade das alucinações. Em seus sonhos, pelo menos, eles se sentaram no chão da sala de trabalho, passando a garrafa ao redor, e Mayakovsky disse a eles que também esteve na Terra Nula,
quando os grandes deuses azuis retornaram e tentaram recuperar sua magia. Ele explicou como havia lutado contra eles, ao lado dos dragões, como ele havia montado sem sela no grande dragão branco do lago Vostok. Como ele havia quebrado a redoma de vidro que cobria a Terra Nula com relâmpagos e trovões criados por suas próprias mãos. ••• Na manhã seguinte, Quentin acordou em sua própria cama. Não em Brakebills do Sul, mas em sua própria cama do Marriott do Aeroporto de Newark. Ele não se lembrava de como chegou ali. Mayakovsky deve tê-los mandado de volta através de um portal, da mesma forma que mandou Quentin de volta a Brakebills depois da corrida para o Polo Sul. Embora, porra, isso o fez estremecer ao pensar em Mayakovsky abrindo portais no estado em que estavam. Álcool e portal mágico não era uma boa combinação. Quando Quentin endireitou-se, ele imediatamente se arrependeu de não ter morrido em um acidente catastrófico de teletransporte. Toda ressaca parece a pior ressaca que você já teve, mas esta foi definitivamente um clássico. Uma em mil anos. Ele se sentiu como se tivesse sugado à força toda a água de seu corpo, como um abricó em uma câmara de desidratação, e substituída por veneno de uma víbora furiosa. Devagar e com cuidado, Quentin ficou de quatro. Ele enterrou o rosto no travesseiro, inclinando-se diante do deus raivoso que fez aquilo com ele. Talvez houvesse algum sangue não contaminado em seu corpo, e que desceria correndo até seu cérebro dolorido. Seus dedos sentiram algo sob o travesseiro, algo duro, redondo e frio ao toque. Um presente da fada dos dentes. Ele puxou para fora. Ele estava certo, era um presente. Era uma moeda, brilhante e dourada, do tamanho de um dólar de prata, mas um pouco mais grossa. Havia três delas. Ele virou uma na mão. Brilhava como se estivesse à luz do sol, mas as cortinas estavam fechadas. Ele soube imediatamente o que era. Quentin sorriu e seus lábios ressecados estalaram. Mayakovsky fez exatamente o que Quentin havia dito: ele armazenou poder nessas moedas, o poder que precisaria para quebrar o vínculo. Mayakovsky deve tê-las preparado para quebrar seu próprio vínculo, mas ele nunca as usou. Deus abençoe o velho desgraçado. Talvez o pai de Quentin não tivesse tido nenhum poder, mas Mayakovsky o possuía, e mais do que isso ele teve a coragem de passá-lo para outra pessoa. Ele estava errado sobre si mesmo: afinal, ele era um homem corajoso. Ajoelhando-se na cama, com a dor de cabeça começando a diminuir, Quentin segurou uma das moedas entre dois dedos e a fez desaparecer – um truque de uma mão, mágica de palco – e depois a fez aparecer novamente. Parecia ser o presente que ele estava esperando por toda a sua vida. Ele não iria desperdiçar. O plano iria funcionar, eles iriam quebrar o vínculo e roubar a mala, e então ele poderia começar de novo. Poderia começar seu verdadeiro trabalho. Pela primeira vez desde que ele deixou Brakebills, sua vida estava começando a fazer sentido novamente. As bordas das moedas eram afiadas, como se fossem recém-cunhadas. De um lado estava a imagem de um ganso selvagem em voo. Do outro lado estava uma jovem de perfil: ela era Emily Greenstreet.
CAPÍTULO 11
C
— ara — disse Josh. — Não posso acreditar que o mundo está acabando. — Pare de dizer isso — disse Janet. — Ordem no tribunal — disse Eliot, não pela primeira vez. Poppy não disse nada. Ela estava pensando, com sua boca torcida para o lado. Estavam na grande sala quadrada do Castelo de Whitespire, onde os reis e rainhas se encontravam todos os dias às cinco horas. As ruínas flamejantes de um pôr do sol quente ardiam na janela atrás dela, que naquele momento apontava para o oeste. — Não pode ser que tudo esteja acabando — disse ela finalmente. — E ainda assim — essa era Janet. — Tenho a impressão de que acabei de chegar aqui. Acabei de chegar aqui! Temos mais alguma evidência de que está acabando? Digo, além da palavra de Ember? — Querida, ele é nosso deus — disse Josh. — Provavelmente ele sabe do que está falando. — Ele não é infalível. — Como você sabe? — Porque se ele fosse infalível — disse Janet. — Ele não seria um idiota o tempo todo. Janet nunca se absteve de apoiar os dois lados de uma discussão ao mesmo tempo. — Sabe — disse Josh. — Aposto que é por causa do sacrilégio que o mundo está acabando. Seu senso de humor terrestre e irreverente nos condenou a todos. — Poppy tem certa razão — disse Eliot. — Não se esqueçam de que a primeira vez que nós encontramos Ember ele era um prisioneiro. Martin Chatwin o trancou na Tumba de Ember. — Então ele não é onipotente — disse Josh, agarrando-se à sua tese. — Ele ainda pode ser infalível. — Em todo caso, ele nunca nos conta tudo o que sabe — Eliot ajustou sua coroa que tinha ficado torta. — Não até que seja tarde demais. Eu não ficaria surpreso se é isso que está acontecendo agora. Tudo o que Ember está dizendo até agora é que, se continuar no seu curso atual, o mundo vai acabar. Isso não significa que Fillory não possa ser salva. Não necessariamente. Ele esperou alguém intervir. Ninguém fez isso. — O que estou sugerindo é que talvez nós, seus reis e rainhas, possamos salvá-la. — Claro — disse Janet. — Nós poderíamos fazer um show! Nós poderíamos usar o antigo celeiro! — Estou falando sério.
— Sim, e estou tirando sarro da sua seriedade mostrando o quão ridículo é. — Olhem, Ember é um deus — disse Eliot. — Mas ele é um deus apenas em Fillory. Ele é limitado. Ele não sabe tudo o que há pra saber sobre o universo mais amplo. Acho que deveríamos dar uma olhada nós mesmos, caso ele tenha perdido alguma coisa. Ver até onde nosso poder real pode se estender. Ver se podemos dar uma olhada antecipada nesse chamado apocalipse. Talvez possamos tentar evitar o desastre. Isso foi recebido com mais silêncio, enquanto todos tentavam pensar em uma razão pela qual o que Eliot estava propondo poderia ser plausível ou alcançável. — Sim, não, é claro — disse Josh. — Digo, nós vamos cair lutando, certo? — Claro! — A leal Poppy acenou a cabeça com um movimento rápido de seu queixo pontudo. — Então, o quê? — disse Janet. — Nós apenas voltamos ao deserto? Em busca de aventura? Seja o que for que apareça em nosso caminho? — Isso mesmo — disse Eliot. — É o que faremos. Janet pesou sua sugestão. — Está bem. Mas desta vez eu irei. A última vez fui eu quem cuidou do país e vocês ficaram fora por um ano e meio. Quando nós vamos? — O mais cedo possível. — E se não pudermos? — disse Poppy. — E se não pudermos evitar? Janet deu de ombros. — Acho que voltamos pra casa. Digo, pra nossa outra casa. Nossa velha casa. — É pra isso que serve a Terra Nula — disse Josh. — Pessoal, escutem. Eliot se inclinou para frente. Ele adotou a expressão de Grande Rei e a voz de Grande Rei. Em momentos como este, ele queria olhar o máximo possível como Elrond, Senhor de Rivendell, de O Senhor dos Anéis, e ele não achava que estivesse longe de ser bem-sucedido. Ele fez contato visual com cada um deles. — Eu sei que não falo por todos vocês. Não nisso. Mas se Ember estiver certo, se Fillory estiver realmente acabando, vou ficar e vê-la acabar. Esta terra é o lugar onde eu me tornei quem eu sou, quem eu estava destinado a ser. Quem eu sou é quem eu sou em Fillory, e se Fillory morrer, então eu morrerei com ela. — Ele examinou suas unhas reais. — Acho que tomei essa decisão há muito tempo. Eu não espero que vocês façam isso comigo, mas quero que vocês saibam que não há como voltar atrás. Não pra mim. A lua crescente já era visível, cedo naquele dia, em frente ao pôr do sol, pendurada como um chifre pálido sobre a borda do mundo. Eliot podia imaginá-la, a borda do mundo, agora que ele esteve lá, com sua infinita parede de tijolos, sua estreita faixa de praia de areia cinzenta e sua única porta para o Outro Lado. A torre era alta o suficiente para que às vezes você pudesse se enganar dizendo que em um dia claro como esse, você poderia vê-la. Josh inclinou a cabeça, franziu o rosto e analisou Eliot com um olho. Ele apontou para ele, hesitante. — Vá se ferrar. Eliot abriu um sorriso torto. Todos relaxaram. — Olhem, é uma droga — disse ele. — Eu odeio isso. Mas vamos ficar o máximo que
pudermos, depois vamos embora. Voltaremos à Terra e tomaremos uma bebida decente pra variar. Vamos ver o que Quentin está fazendo. — Ah, Deus — disse Janet. — Acho que a morte poderia ser preferível. Todos riram, exceto Poppy, que ainda estava pensando. — Eu só queria... Ela parou e soltou um suspiro trêmulo para tentar se acalmar. Funcionou bastante bem. Josh pegou a mão dela debaixo da mesa. — O que foi, querida? — É só que se tudo acabar, o bebê nunca verá Fillory. Eu sei que é bobo, mas eu queria que o bebê nascesse aqui. Eu queria que ele visse tudo isso. Ou ela. Eu queria que tivéssemos um principezinho ou princesa! — Ainda será — disse Josh. — Aconteça o que acontecer. Nós seremos realeza no exílio. Ainda conta. — Não — disse Janet. — Não conta. ••• No final, apenas Janet e Eliot partiram, pela simples razão de que Josh ainda não sabia montar um cavalo, nem mesmo um falante que pudesse guiá-lo, e mesmo assim Poppy não queria sair grávida e Josh não queria deixá-la. Então foram apenas os dois sozinhos. A sensação era muito diferente de quando eles partiram para lutar contra os lorianos, ou até mesmo de quando eles tinham ido caçar nos velhos tempos. Era mais silencioso. Mais sombrio. Eles saíram pouco depois do amanhecer através de um pequeno arco de pedra na parte de trás do castelo que levava a uma estrada estreita, pouco mais que uma trilha de cabras que corria ao longo dos topos das falésias com vista para a baía. Sem fanfarra, sem confetes, sem servos leais. Eles foram sozinhos. — Pra onde? — disse Janet. Eliot apontou para o norte. Sem nenhuma razão em particular, mas era bom ser decisivo nessas situações. A grama ainda estava molhada. O novo sol rosa flutuava sobre a baía de Whitespire. Eliot sentia-se muito pequeno e, por outro lado, Fillory parecia muito grande e muito selvagem à sua volta. Fazia muito tempo desde que ele sentiu isso. Esta era uma jornada séria, talvez a última. O que acontecia agora realmente importava. Eliot havia lutado antes de encontrar Fillory, ele sabia disso: ele bebia demais, achava maneiras inteligentes de ser desagradável com as pessoas, ele nunca parecia ter qualquer emoção que não fosse irônica ou gerada quimicamente. Ele havia mudado em Fillory, e o pensamento de voltar a isso, de se tornar aquela pessoa novamente, o aterrorizou. Ele não morreria com Fillory, ao contrário do que ele disse, mas se Fillory morresse, Eliot sabia que algo nele, algo pequeno, mas essencial, também não sobreviveria. Embora não perderia esse verão interminável. Tinha certa majestade feroz, e ele não podia deixar de apreciar, mas naquele momento ele estava desejando que o calor acabasse. Um vento quente da manhã soprava através das árvores, denso e forte como um rio que corria, penteando as folhas, que eram verdes, mas agora amarelas por causa da seca. As árvores
devem saber o que estava por vir, pensou ele. Se Julia estivesse aqui, ela poderia ter perguntado a elas. Whitespire – a cidade em oposição ao castelo ou a baía – era de tamanho modesto, e não demoraram muito para alcançarem seus arredores. Era cercada por uma parede de composição e altura irregular, uma colcha de retalhos de materiais de construção, tijolos, pedras, argamassa, madeiras e barro, que havia sido demolida, reconstruída e depois reforçada para impedir que tudo desmoronasse à medida que a cidade se expandia e contraía ao longo dos séculos. Além da muralha havia campos cheios de pessoas entre os grãos dourados que chegavam aos ombros, com enormes cestos nas costas, como em uma pintura de Brueghel. Elas ficaram em silêncio quando Eliot e Janet passaram; a maioria delas também se ajoelhou e abaixou a cabeça. Eliot e Janet saudaram – há muito tempo, Eliot compreendeu que era melhor aceitar a fidelidade; em um rei, modéstia e autodepreciação eram qualidades que geravam confusão. Meia hora depois, eles atravessaram os campos e se dirigiram a Queenswood, ao norte da cidade. Eles pararam um pouco antes. Não havia arbustos na borda; a fronteira com os campos ao redor estava limpa e clara. Não era uma floresta natural. Eliot tinha uma sensação de formalidade, como se estivessem se apresentando em um baile. Boa noite, meu velho amigo. Podemos dançar mais uma vez? — Você primeiro — disse Janet. — Ah, vai à merda. Se você monta com uma rainha, a rainha deve entrar primeiro em Queenswood. Essa era a regra. As árvores – enormes carvalhos de casca negra cobertos de nós torcidos que sempre pareciam estar prestes a formar um rosto, mas nunca formavam – se separaram deslizando suavemente como uma cortina de palco. Janet fez seu cavalo avançar. — Alguma ideia de pra onde estamos indo? — Já falamos sobre isso. Não é assim que as jornadas funcionam. Não vamos pensar sobre isso, só vamos apenas viajar. — Não posso não pensar nisso. — Bom, não pense demais. — Não posso evitar! — disse Janet. — Seja como for, você não pode fazer isso sem pensar em ambos. Eles deixaram a manhã brilhante para trás para entrar no crepúsculo permanente da floresta profunda. O clop-clop dos cascos dos cavalos tornou-se um tom mais profundo quando a estrada passou dos paralelepípedos ao velho barro esmagado. — E se nada acontecer? — perguntou Janet. — Não vai acontecer nada. Pelo menos no começo. Nós temos que ser pacientes. Isso faz parte da jornada. — Bom, só para você saber, vou fazer isso durante uma semana — disse Janet. — Nada mais. Sete dias. — Eu sei o que é uma semana. — A maneira como penso nisso — continuou ela. — É como se estivéssemos medindo o pulso de Fillory. Esta é uma jornada de diagnóstico. Estamos dizendo: Você ainda está
funcionando, você, maravilhosa terra mágica? Você vai nos dar uma aventura, e esta aventura vai ser a sua maneira de nos dizer o que está errado com você e como consertar isso? Se for assim, ótimo. Mas se em uma semana não chegamos à merda nenhuma, eu desisto. Hora da morte. Fillory sem atividade cardíaca. — Uma semana não é muito tempo — apontou Eliot. — Pra decidir o destino de um mundo inteiro. — Eliot, eu te amo como o irmão que eu nunca tive ou quis — disse Janet. — Mas na verdade uma semana é realmente muito longa. Depois de uma semana, você e eu estaremos mais do que fartos um do outro. Seu caminho se dobrava e se enroscava através de Queenswood, aparentemente traçada no calor do momento arbóreo. Eles poderiam tentar se orientar nela, mas desta vez eles colocaram no piloto automático e se limitaram a cavalgar. O silêncio era assustador: as árvores de Queenswood tendiam a eliminar a vida selvagem que não lhes importavam – galhos caíam, raízes estrangulavam – o qual deixavam apenas alguns cervos e alguns pássaros decorativos. O chão da floresta estava coberto de enormes samambaias e tiras de luz que penetravam através de fendas no alto das árvores. Não havia troncos caídos. Queenswood enterrava seus mortos. As árvores se separaram e se separaram diante deles – era vagamente erótico, pensou Eliot, como pares intermináveis de pernas se abrindo, conduzindo-os para espaços mais e mais íntimos. Eles entravam cada vez mais fundo. De vez em quando, o caminho bifurcava e Eliot escolhia um lado ou outro sem razão, mas sempre sem hesitação. Como um mago puxando um pombo de um bolso escondido, a floresta levou-os abruptamente a clareira circular onde se encontrava a gigantesca árvore-relógio, aquela em que encontraram a Lebre Vidente e onde Jollyby havia morrido. A árvore tinha uma cicatriz profunda onde o relógio esteve, como um ciclope cego, mas pelo menos não estava mais se debatendo. Estava em paz. A jovem árvore da qual Eliot extraiu o relógio para entregar a Quentin havia morrido. Ele se arrependeu disso, mas não se arrependeu de seu ato. Vale a pena saber que, onde quer que ele esteja, Quentin pelo menos o tinha com ele. Eles decidiram passar a noite ali. Se a história servia de algum guia, era um bom lugar para esperar algo fantástico e extraordinário. Janet desceu da sela. — Vou pegar algo pra jantar. — Eles cozinharam o jantar pra nós no castelo — disse Eliot. — Eu comi no almoço. Com um aspecto sério, Janet puxou um bastão curto de um par que ela usava cruzados nas costas e correu para as árvores. Eliot nunca a viu empunhar um bastão antes, mas ela o segurou como se soubesse o que fazer com ele. — Hum — disse ele. Era um lugar assustador para ficar sozinho, especialmente sem a rainha. A grama estava salpicada de flores silvestres; ele sempre quis nomear algumas das flores de Fillory, mas ele nunca chegou a fazer, e agora provavelmente nunca faria. Era tarde demais. Ele ouviu um som farfalhante e vários rangidos de todos os lados, que o alarmou até perceber que as árvores que cercavam a clareira estavam ajudando soltando galhos mortos para fazer lenha. Elas devem ter aceitado sua presença, pensou ele. Era estranhamente tocante.
De um alforje, Eliot puxou a tenda, um belo pedaço de lona e a jogou na grama macia. A tenda desdobrou-se e ergueu-se no profundo crepúsculo, soando como uma vela sendo içada no meio de um forte vento. ••• De manhã, uma fina névoa flutuava sobre a clareira, como se uma intensa canhoneira tivesse cessado o fogo momentos antes, deixando para trás sopros de fumaça branca e silenciosa no ar. Cavalgaram o dia todo sem incidentes – menos dois, faltam cinco, disse Janet – e ao pôr do sol chegaram ao fim do esplendor verde de Queenswood e entraram no labirinto adjacente de abetos cinzentos, chamado Bosque dos Vermes. No terceiro dia eles atravessaram o Rio Queimado, o qual nunca foi uma experiência agradável, embora raramente fosse realmente perigoso. Sua água negra estava sempre cheia de cinzas, ninguém sabia por que, e a ninfa que vivia ali era da cor preta brilhante de um besouro – uma criatura aterrorizante com olhos prateados que subia e descia o rio à noite, gritando. Eliot propôs tentar falar com ela, mas Janet estremeceu. — Esse é um último recurso — disse ele. — Como pro sexto dia. — Tanto faz. Não é o fim do mundo. — Pra sua informação, você só vai fazer essa piada uma vez, então espero que tenha gostado. Eliot teria preferido ir para o oeste dali, em direção aos lagos chamado Lágrimas de Umber, ou talvez pro Barion, uma pacata cidade murada onde faziam um incrível e claro licor com algum grão nativo. Eliot tinha uma confortável casa real que ele quase nunca visitava. Mas Janet queria cavalgar para o norte. — Isso seria ótimo — disse Eliot. — Exceto que há aquela coisa horrível chamada Pântano do Norte. É ao norte daqui, daí o nome. — É por isso que quero ir pro norte. Eu quero ir lá. Estou sentindo o pântano. — Eu não. Odeio aquele lugar. — Nossa, eu pensei que você deveria ser o Johnny Quest. Tudo bem, eu vou te encontrar no Barion. — Mas eu não quero ir pro Barion sozinho! — disse Eliot. — Seu choramingar é tudo menos atraente. Venha comigo pro pântano e depois vamos juntos pro Barion. — E se eu morrer no Pântano do Norte? As pessoas estão morrendo lá, você sabe. — Então vou ao Barion sozinha. Eu gosto de viajar sozinha. Se você morrer, posso ficar com sua casa? Eliot não disse nada. Em particular, e muito a despeito de si mesmo, Eliot entendeu que Janet estava tendo um palpite sobre o pântano, e ele não podia ignorá-la. Não no contexto de uma jornada. — Tudo bem — disse ele. — Eu estava apenas testando sua determinação. Gloriosamente, você passou. Vamos pro pântano. O Pântano do Norte não estava tão ao norte, na verdade. No final da tarde, o chão
começava a ficar lamacento e eles acamparam aos arredores do pântano naquela mesma noite. O dia seguinte amanheceu cinzento e fresco, e eles abriram caminho entre juncos e capim espesso e poças de água gelada até os cavalos se recusarem a ir mais longe. O de Janet era um cavalo falante, e educadamente explicou que estava falando tanto dele quanto de seu companheiro mudo quando disse que aquele não era um lugar para atravessar em cascos, especialmente porque as pernas dos cavalos se quebravam com muita facilidade. Eliot graciosamente aceitou sua renúncia. Os reis continuaram a pé. O ar estava impregnado com o cheiro de lama quente e coisas podres. Eles circulavam em volta de grandes extensões de água parada, cheias de ervas daninhas, e ocasionalmente passavam por elas quando não podiam fazer o contrário. O Grande Pântano do Norte era um lugar solitário e silencioso. Alguém poderia pensar que estaria cheio de sapos, insetos e aves aquáticas, mas nada parecia viver ali. Apenas um monte de plantas e micróbios fedorentos. À medida que iam mais longe, o chão se transformava em poças de lama e água pontuadas por ocasionais tufos de capim teimoso. Suas botas estavam sujas de maneira irremediável, e Eliot sentiu que a proporção entre o chão sólido em relação à água mudando lentamente e inevitável a favor da água. O caminho estava quase intransitável quando encontraram uma passarela estreita que Janet procurava sem dizer a Eliot. Não eram mais do que duas finas tábuas cinzentas resistidas pelo mau tempo, dispostas sobre as poças de sucção, em alguns pontos, elevadas a poucos metros do chão por estacas, suportes e tocos de árvores oportunistas. Eliot demorou um minuto para limpar as botas, embora estivesse convencido de que eram irrecuperáveis, então partiram novamente. Não havia grades, e eles tinham que se equilibrar como em um maldito número de circo. Eliot tentou lembrar se a areia movediça era algo real ou um mito urbano. — Me pergunto onde estão todos os pássaros — disse ele para tirar isso de sua mente. — Eu só vi dois pássaros. Este lugar deveria estar coberto deles. — Isso faz desejar que Julia ainda estivesse aqui — disse Janet. — Ela era boa com os pássaros. — Hum. Sério? Você queria que ela estivesse aqui? — Claro. Sempre gostei da Julia. — Você não demonstrou isso com muita frequência — disse Eliot. — Se você realmente conhecesse Julia — disse Janet. — Você deveria ter entendido que ela não gostava de pessoas que demonstravam demais suas afeições. Isso fez com que Eliot avaliasse retrospectivamente muitas das interações que ele lembrava entre Janet e Julia. Seus passos soavam ocos nas tábuas entre o sussurro do pântano. — É incrível que essa coisa ainda esteja de pé — continuou Janet. — Não posso imaginar quem a conserva. — Como você conheceu esse lugar? — Eu vim aqui uma vez, quando todos estavam no mar. Eu pensei que alguém deveria inspecioná-lo. Parecia estranho e interessante. Eu encontrei algumas coisas terríveis e recuei, mas não antes de conhecer pessoas estranhas e interessantes. Eliot se perguntou, não pela primeira vez, o que exatamente Janet havia feito enquanto o resto deles estava navegando no oceano azul. Ele havia recebido a versão oficial, é claro, que
ela estava viajando pelo país e fazendo um excelente trabalho. Mas de vez em quando Janet dizia coisas que o fazia se perguntar se era toda a história. — Alguma vez você quis ir com ela? Com a Julia, digo. Para o outro lado, ou o quer que seja chamado? — Eu penso nisso às vezes — disse Eliot. — Mas não. De jeito nenhum eu poderia ter ido. Ser rei aqui é quem eu sou. Eu não estava brincando sobre essa parte antes. — Ele cambaleou por um momento em uma tábua instável. — Mas eu gostaria de saber como é. — Provavelmente não é tão pantanoso. Você sabe a parte engraçada? — Me diga. — Eu sei como Poppy se sente — disse Janet. — Sobre o bebê. Eu também quero que aquele pequenino veja Fillory. Eu quero que governe quando formos embora. Eliot não tinha certeza se uma pessoa nascida em Fillory poderia governar Fillory, mas ele estava mais focado neste exato momento em sua própria morte iminente nas mãos ou em outras extremidades deste pântano horrível e o quer que vivesse nele. Ele achava que, se afundasse até o fundo, seu corpo poderia ser perfeitamente preservado para as gerações posteriores, como aqueles corpos que foram retirados dos pântanos irlandeses. Isso teria certa grandeza. Mas provavelmente ele seria comido antes disso acontecer. E depois o mundo acabaria de qualquer maneira. Então. — A propósito, isso é o que acontece com os pássaros. Janet apontou. Ela não estava tendo problemas em manter o equilíbrio; nem sequer olhava para os pés enquanto andava. À distância, algo rosa pálido e translúcido flutuava à deriva, dez metros acima dos juncos. Parecia uma água-viva, com longos tentáculos florais pendurados. Era uma visão indescritivelmente sinistra: um parasita aéreo alienígena. Um pardal agonizante tremulou em um dos tentáculos, preso a ele como uma mosca presa a um papel pega moscas. — Nossa — disse ele. — Não toque em nenhum, o veneno é muito perigoso. Paralisa seu coração. — Eu não ia fazer isso. Como eles voam? Hélio, hidrogênio, ar quente ou algo assim? — Não. Só magia. Eles deviam estar se aproximando do centro do pântano, porque as poças estavam ficando mais largas, mais profundas, mais escuras e mais quietas, e estavam se conectando umas com as outras, até o ponto em que o pântano estava prestes a ser um lago normal. Uma névoa fumegante estava se formando ao redor deles. Aqui e ali, uma flor de lótus surgia acima da superfície, um bulbo rosa-esbranquiçado do tamanho de uma bola de tênis sobre um caule verde grosso. Estranho que algo tão puro e amável pudesse surgir de toda aquela lama: uma coisa perfeitamente limpa destilada da terra. Eliot teve dificuldade em evitar pensar na imensa forma que viu na última vez em que sobrevoou o Pântano do Norte. Ele esperava que ela ficasse em águas mais profundas. Embora parecesse que eles estavam indo para lá. A passarela erguia-se bem acima do pântano, agora em longas e finas estacas, mais ou menos como um píer estreito, e os levava diretamente para o centro do lago. Os bancos desapareceram no nevoeiro. Eliot se sentiu
desorientado, abandonado pelos deuses. Ele pensou que, se esta aventura estivesse funcionando da maneira que deveria ter sido eles já deveriam ter aprendido alguma coisa. Eles teriam visto algo ou sentido algo. Em vez disso, eles não estavam em parte alguma, sem nada à frente e nada atrás deles, suspensos no ar, sobre a madeira morta, sobre um espelho negro de água morta. — Até onde nós... — Até aqui. A passarela terminou de repente. Se Janet não tivesse colocado a mão em seu ombro, ele poderia ter caído dela. Havia uma escadaria bamba que levava para baixo, para o caso dele ser dominado pelo desejo de tomar um banho de prazer. — Tenho uma pergunta para um velho amigo — disse Janet. — Ei! Ela gritou olhando para a água. — Ei! Não houve eco. Ela olhou em volta. — Deveria ter trazido uma pedra pra atirar. Ei! Eles esperaram. Algo saltou na quietude, um sapo ou um peixe, mas Eliot virou a cabeça devagar para agarrá-lo. Quando ele voltou, as águas não estavam mais quietas. O primeiro sinal revelador foi uma ampla e suave onda de proa que se movia silenciosamente na direção deles, molhando os pilares até a metade de sua altura. Eliot instintivamente ficou na ponta dos pés quando a onda passou. Então uma enorme protuberância de uma casca verrugosa de cor verde-oliva quebrou a superfície, como um submarino emergindo das profundezas. Era uma tartaruga, uma tartaruga-mordedora a julgar por sua boca em forma de bico, que era curvo como de um falcão. Meu Deus. A coisa era um leviatã. Não é de admirar que não houvesse nada vivo ali. As águas-vivas comiam os pássaros do ar, e essa coisa devia vasculhar a água para devorar qualquer coisa que tivesse mais de duas células. Enormes bolhas de metano estavam subindo à superfície ao seu redor, saindo da lama em que havia estado enterrada a criatura. O cheiro era indescritível. Ou na verdade não, não era indescritível. Cheirava a merda. — Quem chama o Príncipe da Lama? A tartaruga-mordedora falou devagar. Sua voz era rouca como de um fumante compulsivo. Sua cabeça era rude, quadrada e um pouco cômica, como um polegar falante. Seus olhos enrugados de porco estavam profundamente enfiados nas cavidades da córnea, o que fazia com que parecesse bravo, o que Eliot achava que fosse até que provasse o contrário. — Ah — disse a tartaruga. — Você. — Sim, eu. Eca, você cheira. — O cheiro da vida. — O cheiro de peidos. Tenho uma pergunta pra você. — O que mais você tem pra mim? Eu não posso comer perguntas. A caça tem sido fraca. Seu rosto enorme era todo pele e bico. Seu pescoço era tão grosso quanto sua cabeça. — Ah, eu não sei — Às vezes Eliot se perguntava se Janet era um pouco sociopata. De que outra forma ela poderia parecer entediada e despreocupada nessa situação? Embora Eliot soubesse que ela tinha sentimentos, ela apenas os mantinha em lugares diferentes da maioria
das pessoas. — Temos um par de cavalos. Responda a minha pergunta e vamos conversar. Eliot manteve o rosto inexpressivo. Ela tinha que estar blefando. De jeito nenhum Janet daria os cavalos para aquela coisa. — Eu sou o Grande Rei Eliot — disse ele. — Ele é dono desse pântano de merda — disse Janet. — Eu sou o Príncipe... — Príncipe da Lama — Ela o cortou. — Da qual Eliot é o proprietário. Nós sabemos. Você é uma tartaruga gigante. — Seu reino pode ser amplo, mas é muito fino. O meu é profundo. A tartaruga movia lentamente a cabeça de um lado para o outro, analisando primeiro com um olho de aspecto fosco e depois com o outro. Uma água-viva passou e seus tentáculos escovaram a testa da tartaruga, mas o leviatã não pareceu notar. — Ember diz que Fillory está morrendo — disse Eliot. — O que você acha? É verdade? — Morte. Vida. Um peixe morre. Um milhão de ácaros comem e vivem. No pântano não há diferença. — Há para o peixe — disse Janet. — Você é um filósofo de merda, então não tente. Fillory está morrendo? Se a tartaruga tivesse ombros, teria encolhido os ombros. — Nesse caso, sim. Fillory está morrendo. Me dê os cavalos. — Espere, você está falando sério? — Janet ficou chateada agora. Ela parecia não ter acreditado até o momento. — Está realmente acabando? Bom, podemos parar isso? — Não podem. — Nós não podemos — disse Eliot. — Mas talvez haja alguém que possa? — Não posso dizer isso. Pergunte a rainha. — Eu sou a rainha — disse Janet. — Ou eu sou uma rainha. Eu sou a rainha principal. Estou te perguntando. — A rainha dos anões. No deserto. Chega. Me dê os cavalos ou me deixe em paz. A tartaruga começou a afundar lentamente, retraindo a cabeça sob a proteção de seu casco, mal movendo a água negra até que seu queixo descansasse na superfície. — Eu não conheço nenhuma rainha anã — disse Janet. — Você conhece alguma rainha anã, Eliot? — Diabos, não. Porque não há anões do sexo feminino. Não existem. — Ela não existe — disse Janet à tartaruga. — Tente de novo. — Escute com mais atenção. A tartaruga-mordedora atacou. Seu pescoço se esticou até a extensão máxima – Eliot nunca teria pensado que algo tão grande pudesse se mover tão rápido. Era como um caminhão de dezesseis rodas estivesse vindo direto para eles. Ao morder, a tartaruga virou a cabeça para um lado, para levá-los em um só movimento. Eliot reagiu rapidamente. Sua reação foi se abaixar e cobrir o rosto com os braços. Da relativa segurança de sua posição, ele sentiu o dia ficar mais frio ao seu redor, então ouviu um rangido, que a princípio pensou ser o píer, se estilhaçando na mandíbula da tartaruga. Mas o fim não veio.
— Como você se atreve? — disse Janet. Ela levantou a voz dessa vez – tanto que as tábuas vibravam em resposta sob seus pés. Eliot olhou para ela. Ela estava voando, flutuando meio metro sobre o píer e suas roupas estavam cobertas de gelo. Ela irradiava frio; a névoa cobria sua pele como se fosse gelo seco. Seus braços estavam bem abertos e ela segurava um machado em cada mão. Eles eram aquele par de bastões que ela carregava nas costas, cada um agora coberto com uma cabeça de machado de gelo claro. A tartaruga havia parado no meio de seu ataque. Janet a impediu com o frio; em volta dela o pântano estava congelado. Janet invocou o inverno e a água do Pântano do Norte era gelo sólido até onde os olhos podiam ver, rachados e ondulados com ondas. A tartaruga estava presa nela. Ele lutou, sua cabeça batendo para trás e para frente impotente. — Meu Deus — disse Eliot. Ele se levantou da sua posição defensiva. — Muito bom. — Como você se atreve? — disse Janet novamente, transmitindo todo o seu poder imperioso. — Maravilhe-se por estar vivo, Príncipe da Merda. A tartaruga não pareceu surpresa, apenas irritada. — Eu vou te pegar — sussurrou ele, e se inclinou e forçou. O gelo rangeu e começou a se separar. Janet insistiu no feitiço que lançou e congelou o pântano com mais força e dureza. — Vou congelar seus olhos — disse ela. — E vou despedaçá-los. Vou quebrar seu casco e vou tirar a carne! Meu Deus, onde ela conseguiu essas ideias? A tartaruga forçou mais uma vez e depois ficou imóvel, como um grande navio congelado no gelo do Ártico. Ela olhou para eles com uma fúria assassina ardendo em seus olhos. Janet desceu flutuando até as tábuas de madeira. — Vá se ferrar — disse Janet. — Você já sabe. Da próxima vez vou te matar. Ela cuspiu e a saliva congelou no ar e deslizou pelo gelo. Com isso, ela se virou e foi embora. Eliot praticamente quase caiu da passarela saindo do caminho dela. Ele não queria tocar nesses machados. Ele sentiu que também deveria dizer alguma coisa antes de partir, e então ele fez. — Idiota. — Verme — respondeu a tartaruga com voz rouca. Sua respiração subiu no súbito frio. — Você verá. São tartarugas até lá embaixo. — Sim, claro — disse ele. — Eu já ouvi isso antes. Ele saiu correndo atrás de Janet. Ela deixou pegadas de gelo em seu rastro.
CAPÍTULO 12
Até que se passaram duas horas depois, quando estavam de volta em seus cavalos e indo para o sudoeste, pisando em um chão abençoadamente sólido e seco, e finalmente em direção para o Barion e seu claro bálsamo de álcool, Janet limpou a garganta e disse: — Então, acho que você provavelmente está se perguntando como eu de repente me tornei uma incrível deusa do gelo com machados mágicos agora. Eliot estava, na verdade. Mas ele estava tentando descobrir quanto tempo eles poderiam continuar sem mencionar isso. Não era que ele não quisesse saber, ambos sabiam que sim. Era um jogo que eles jogavam. Ambos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, Eliot cederia. — Com o que agora? — disse ele com desdém. — Ah. Claro. Eu acho que sim. — Eu chamo o machado direito de Tristeza — disse ela. — Você sabe como eu chamo o esquerdo? — Felicidade? — Tristeza. Eu não consigo distingui-los. — Hum. Hum-hum. Eles cavalgaram juntos em silêncio por mais cinco minutos. Ambos eram jogadores experientes. Eliot ficou olhando por cima do ombro – ele estava paranoico de que uma daquelas águas-vivas cor-de-rosa surgisse por trás dele e envolvesse seus tentáculos em cima dele. Depois que ela parasse seu coração, provavelmente o levaria para dentro de suas entranhas e você seria capaz de vê-lo sendo digerido através de sua carne translúcida. Tudo seria muito público. Embora claro: o que importava se o mundo estava acabando? Mas isso importava. Ele sabia disso. Tudo ainda importava. Agora mais do que nunca. Ele decidiu reconhecer a derrota. — Tudo bem, então, como é que de repente você se tornou etcetera e assim por diante? — Estou muito feliz por você ter me perguntado! Se lembra daquela vez em que vocês foram para o mar e me deixaram encarregada de Fillory por um ano e meio? — E salvamos a magia e por extensão o mundo inteiro? Eu lembro. — Bom, foi divertido executar tudo e tomar todas as decisões e implementar reformas muito atrasadas, mas depois de um mês, as coisas desaceleraram um pouco e eu precisei de um projeto. Então você conhece aquele deserto que fica ao sul de Fillory, do outro lado das Montanhas de Cobre? — Conheço.
— Eu o anexei. — Espere — Eliot puxou as rédeas do cavalo e os dois pararam. — Você invadiu o deserto? — Eu o anexei. Eu estava pensando que nos livros, outros países sempre vêm de trás de Fillory e ameaçam e assim por diante. Então eu pensei porque não mudar isso? Vamos ser expansionistas! Um ataque preventivo! Digo, nós temos todos os monstros mágicos e esquisitos do mundo. Apenas os gigantes sozinhos são basicamente o equivalente a um arsenal nuclear. Ah e mais nós temos nosso próprio deus, que é realmente real. É quase um imperativo moral. Destino manifesto. Eliot esporeou o cavalo e retomou a marcha. Ele amava Janet, mas ela era realmente inacreditável. Ele esperou pelo que considerou um intervalo adequado. — Não pense que, porque não estou dizendo nada, não esteja aflito com o choque e arrependido — disse o Grande Rei. — Porque eu estou. É por isso que não estou dizendo nada. — Bom, se você não quisesse que eu invadisse o deserto, você não deveria ter saído pra salvar o mundo — disse Janet. — Foi uma iniciativa muito popular internamente. As pessoas adoraram. E nosso exército permanente estava ocioso e a baixa nobreza atormentava seus cérebros em busca de uma forma de ascensão social. Ganhar algumas honras e títulos e outras coisas. Você tem que usar essas coisas ou acabam se virando contra, como com os Fenwicks. Eliot bufou. — Bom, é por isso que você não entende de política — disse Janet. — A política que não me entende! — E pense nos recursos minerais que estão por aí. As matérias-primas do nosso país são uma merda. — Por favor, pare de insultar os minerais do Grande Rei. — Eles são uma merda. Então eu peguei um regimento e um punhado de elefantes falantes e aquela dama ninja Aral – sabe aquela que o Bingle venceu no torneio, a qual não me deu nenhuma lição sobre essa farsa de justiça – e nós cruzamos as Montanhas de Cobre. A propósito, você já a viu? É incrível. Ela é praticamente quase toda de cobre, e se tornou aquela cor verde enferrujada. Existe até uma palavra especial para isso: eruginoso. Aral me ensinou isso. Acontece que ela é uma fera nas palavras cruzadas. — O cobre é um mineral. E nós os chamamos de brigadas, não de regimentos. — E eu nunca tive certeza se tínhamos ou não as Montanhas de Cobre, sabia? Não está claro nos mapas. — Era como se Janet não pudesse ouvi-lo. — Então agora elas são nossas, porque as anexei no caminho pro deserto. Levou apenas alguns dias. Um elefante caiu de um penhasco, um penhasco de cobre, e isso quase partiu meu coração. Elefantes e gravidade não é uma ótima combinação. Mas você sabe o que aconteceu? Os outros elefantes pararam imediatamente, desceram e encontraram o que restou dele e formaram um círculo ao redor dele. Eu não pude ver o que eles fizeram, mas quando eles terminaram – demorou um dia – o que caiu estava de volta e correndo. Eles o ressuscitaram. Eu nunca vi nada assim. Os elefantes sabem de alguma merda. Não sei por que nós os governamos, eles deveriam nos governar. — Isso é traição — disse Eliot levemente. — Mas é verdade. Como era o deserto?
— O deserto? O deserto é a coisa mais linda que eu já vi. Tendo passado muito tempo com Janet, Eliot estava acostumado com a maneira como ela mudava suavemente e sem aviso de ironia e agressão para expressões sinceras de emoções verdadeiramente humanas. — Você tem que ir, Eliot. Vá ao inverno. O Deserto Errante é como um oceano de areia, eu sei que é um pouco clichê, mas literalmente é como um oceano. As dunas se movem como grandes ondas no mar aberto. Lentamente, mas você pode ver isso. Passamos um dia, sentados nas encostas das Montanhas de Cobre, observando as dunas que avançavam até se chocarem no sopé das montanhas, tudo em silêncio, como ondas monumentais. — E então — disse Eliot. — Percebendo que você estava prestes a invadir um deserto bonito, mas completamente inútil e completamente inocente, você fez um balanço de seus erros táticos e éticos e fez a curva... — Mas eu não fiz isso. Eu não me virei. Na verdade, foi quando eu soube por que tinha vindo. Mandei os elefantes de volta. Elefantes... Deus, eu não sei o que eu estava pensando, trazendo uma manada de elefantes para as montanhas. Em Hannibal, eu acho. Eles não protestaram, mas não era um lugar pra eles. Eu disse a eles que poderiam ir pastar no Pomar do Sul. Isso resolveu a questão. Também mandei de volta o regimento. Brigada ou o quer que seja. Eles eram caras bons, muito valentes, e eles não queriam voltar, mas eu os ordenei e eles tiveram que obedecer. Acho que eles esperavam uma batalha, mas não havia ninguém com quem lutar. Depois que eles foram embora, fui andando sozinha no deserto. — Por que diabos você fez isso? — perguntou Eliot. Enquanto cavalgavam, a paisagem ao redor deles voltava dos pântanos para os campos abertos, de suave para firme, com a terra seca se separando da umidade como se despertasse de um pesadelo. Mas Janet continuava distante e contemplava uma paisagem completamente diferente. — Olha, eu não acho que vou ser capaz de explicar isso. Foi tão puro! De repente, toda essa vida, toda essa vegetação, parecia tão desnecessariamente elaborada, úmida e confusa. O deserto era honesto e real: apenas areia seca fazendo curvas suaves contra um céu vazio. Era como se eu estivesse lutando pra sair da lama durante toda a minha vida e ali estava a saída. Acho que estava levando minha vida em minhas mãos, mas não senti nada disso. Me senti segura lá. Mais segura do que eu já havia sentido em qualquer lugar. Eu não precisava mais parecer, eu simplesmente podia ser. — Janet suspirou frustrada. — Tenho dificuldade em explicar isso corretamente. Deus sabe que eu não sou uma pessoa espiritual nem nada. Eu apenas senti que poderia respirar lá fora. — Não, eu entendo. Continue. Durante muito tempo, Eliot teve a teoria de que, na mente de Janet, todos os outros tendiam a julgá-la enquanto ela os julgava, e se isso era verdade, o mundo devia ser um lugar terrível para ela. Não é de admirar que ela gostasse de ficar sozinha lá fora. — Naquela noite, a coisa mais incrível aconteceu: as estrelas desceram do céu. Elas não estavam acostumadas a ver seres humanos, então elas não estavam com medo. Elas eram como pássaros dóceis – elas estavam ao meu redor, a poucos metros do chão, cada uma do tamanho de uma bola de tênis. Pontiagudas e um pouco quente, e elas meio que chiavam. Você poderia segurá-las em suas mãos. — Ela suspirou novamente. — Eu sei que soa estranho até mesmo pra Fillory. Às vezes me pergunto se sonhei. Caminhei por três dias, até
que meus suprimentos acabaram, mas nunca me passou pela cabeça voltar atrás. Nem uma vez. Fiquei esperando perder meus nervos, mas isso nunca aconteceu. Continuei indo para o sul. As dunas eram maiores lá, no meio do deserto profundo, grandes como colinas. No topo você poderia ver um longo caminho, mas eu nunca vi a borda. Talvez o deserto fosse infinito. Bom, você pode adivinhar o que aconteceu em seguida. Eu desmaiei de fome e exaustão e acordei no barco de areia de algum cara, navegando pelo deserto. — Sério? — disse Eliot. — Eu ia falar que você percebeu que ia morrer e voltou pelo caminho que veio. Ou isso ou aquele elefante que caiu do penhasco antes e voltou à vida apareceu, se movendo majestosamente pelas dunas, e resgatou você. Com Aral montando-o talvez. Imaginei que você estava preparando isso como uma reviravolta surpresa. — Bom, não. Eu acordei no barco desse cara. Não era um barco grande – basicamente era uma prancha com um poste preso nela e um lençol amarrado ao poste como uma vela. Era mais como um windsurfer. Ele sentava com as pernas cruzadas, com uma das mãos no leme e outra segurando a vela – seus antebraços eram como pinos de boliche – e todo o negócio voava pela areia a uma velocidade incrível. Ele não disse nada, mas era incrivelmente bonito. Alto, magro, nariz grande, pele morena. Me levou pra sua casa, que estava em uma enorme rocha que sobressaia da areia. No topo havia uma grande cratera cheia de terra preta com coisas crescendo nela. Uma tribo inteira vivia em pequenas cavernas escavadas em um círculo na rocha. — Onde eles encontraram água? — perguntou Eliot. — Eu também me perguntei. Eu descobri. Mas vou chegar a isso. Era um grupo de caras durões. O cara que me salvou era o líder, eles o chamavam de Primeiro. Tentei explicar a ele que estávamos invadindo ou que eu estava, e que este deserto a partir daquele momento era parte de Fillory. Pensei em deixar tudo, já que ele salvou minha vida e tudo mais, mas vamos lá: uma invasão é uma invasão. Ou uma anexação. Em todo caso, achei que era melhor apresentar que, a partir daquele momento, eles estavam livres para desfrutar dos benefícios de ser um território semiautônomo quase nacional dentro da proteção do império filloriano. Mas o Primeiro não queria saber de nada disso! Ele era muito firme. Segundo ele, nunca tinha ouvido falar de Fillory. Dá pra acreditar nisso? Isso me irritou, mas me impressionou ao mesmo tempo. Então decidi ficar. Eu gostei de estar lá. Para ser um grupo de pessoas sem inimigos óbvios, tinham esse estilo de luta: todos carregavam uma arma pessoal feita de seu perverso metal preto. Leve e forte, e quando atingia algo, faíscas azuis voavam – muito misterioso, não consegui descobrir de onde veio. O Primeiro tinha uma lança inteira feita disso. Ele fez um grande discurso sobre como era fantástica. Forjada no deserto, ele matou um deus, esse tipo de conversa. Ele disse que atuava como um foco para a magia – ampliava sua disciplina – mas nunca o vi usar sua arma assim. Decidi que ia conquistá-los. O charme ofensivo. Comecei a ajudar em todos os lugares, tentando entrar no ritmo da tribo. Você não teria acreditado uma rainha de Fillory de quatro pegando pastinacas do chão, comendo aquelas larvas repugnantes que coletavam peneirando a areia – tentei pensar que eram lagostas, mas eram larvas. E sabe de uma coisa? Eu nem me importei. Isso não me deixou com raiva. Não me lembro de quando me senti menos zangada do que lá. E eu dormi com o Primeiro. Não o amava, mas gostava muito dele e amava o mundo dele. Eu queria fazer parte desse lugar. E Deus sabe que o cara era muito bonito. O sexo com ele foi incrível. Como ir para a cama com o deserto. Depois de cerca de três meses...
— Espera — disse Eliot. — Você estava em Rockville por três meses nesse momento? O que estava acontecendo em Fillory? — Em Fillory tudo estava se desenvolvendo de acordo com o protocolo. O que você pensou que ia acontecer? Se você prepara bem um país, ele funciona por conta própria. Eu tinha todas essas pessoas pensando que eu podia ouvir seus pensamentos, pelo amor de Deus. Eles estavam com medo de fazer xixi no chuveiro. De jeito nenhum eles iriam tentar alguma coisa. Enfim, depois de cerca de três meses, o Primeiro me disse que, se eu quisesse ficar mais tempo, teria que passar pelos ritos de iniciação. Era algo transcendental, todo ano duas pessoas morriam. Mas eu não me importei. Eu não estava pronta pra sair. E se você passasse no teste, você recebia uma daquelas armas de metal preto. Nunca diga que faço as coisas pela metade. — Eu nunca vou dizer isso — prometeu Eliot. — Janet, isso é muito intenso. — Eu sei. E você ainda nem ouviu a parte intensa. Então eu vou quebrar um juramento sagrado dizendo a você, mas que diabos, isso é o que aconteceu. O Primero me levou para fora da cidade, de volta ao deserto, e então ele se ajoelhou comigo, pegou um punhado de areia e me disse que o que eu procurava estava lá. Bom, que diabos? Mas então olhei para a maldita areia. Depois de algum tempo, comecei a notar que havia pequenos pedaços brilhantes nela. Não muitos, mas de vez em quando você encontrava um grão preto com um brilho especial. Eu comecei a entender. Esse era o metal preto do qual as armas foram feitas. Estava tudo ao nosso redor, na areia. Um grão em mil, disse o Primeiro. Ele me deu um saco de lona e me disse que eu tinha que ficar sentada sozinha no deserto até encher o saco inteiro com apenas grãos de metal, um por um. Eu perguntei a ele: Completamente cheio? Até a borda? Ou apenas, você sabe, uma boa quantia? Ele disse que saberia por que quando eu terminasse, quando o saco estivesse cheio, viria algo chamado Forjador. Ele transformaria o minério que eu havia coletado em metal puro e faria uma arma pra mim. — Sério? — disse Eliot. — É muito gentil da parte dele. — Bom, eu sei. Muito conveniente. Você pensaria que eu teria suspeitado. Mas eu tinha que ter uma dessas coisas. Tinha que ter. Então eu fiquei lá. Pegava um punhado de areia, colocava uma pequena pilha na palma da mão, pegava os grãos pretos e os colocava no saco. Sem magia, era só eu, meu saco e minhas próprias mãos. Depois de algumas horas meus olhos estavam vermelhos, estava chorando e comecei a apertar os olhos. Quando o sol apareceu no dia seguinte eu estava tendo alucinações. O saco estava enchendo, eu podia pesar na minha mão, mas ia ser uma corrida entre encher ou me deixar louca antes. Foi muito ruim. Aconteceram todas as coisas habituais que acontecem em um teste de iniciação. Eu fiz xixi. Eu quase fiquei cega. Eu vomitei em um momento. Foi muito, muito desagradável. Mas ao mesmo tempo pude sentir o teste me refazendo. Sabe? Como se o próprio deserto estivesse me fundindo, fundindo as fraquezas e impurezas e extraindo o que era difícil e verdadeiro. Eu pensei muito sobre esse tipo de baboseira enquanto estava coletando meus grãos. — Janet — Eliot não sabia o que dizer. Ele nunca a ouviu falar tão abertamente sobre seus sentimentos. O que aconteceu lá, realmente mudou algo nela. Ele não tinha visto até aquele momento. — Janet, como você pôde fazer isso com você mesma? — Eu não sei, eu só sabia que tinha que fazer. Eu escolhia, escolhia e escolhia. Minhas mãos tremiam como loucas. O sol estava se pondo no terceiro dia quando comecei a sentir
que talvez estivesse bem perto de terminar. Não era um saco enorme – mais como uma bolsa, na verdade – mas parecia bastante cheio. Se alguém me pedisse um saco de minério, eu não teria vergonha de entregá-lo. Supostamente se houvesse um grão normal de areia lá dentro, o Forjador não viria, e eu não sabia se acreditava nisso ou não, mas eu continuei sacudindo o saco e olhando para ele para ver se de alguma forma um grão de areia tinha entrado. Realmente amei meu saco de metal preto. Parecia frio, oleoso e muito denso. Tinha um cheiro especial. Estava orgulhosa dele. Mal podia esperar pra ver que tipo de arma viria dele. Eu sabia que seja lá o que fosse, seria como a expressão afiada e inquebrável da minha vontade mais profunda. Seria o que eu estava esperando por toda a minha vida. Acho que minhas defesas estavam baixas, porque me lembrei de muitas coisas que eu estava evitando pensar por um longo tempo. Por exemplo, pensei em Alice chegando a Brakebills pela primeira vez, atravessando pela floresta, sem nem saber se a deixariam entrar. Pensei sobre o quão ruim eu era com ela antes que ela morresse ou seja lá o que fosse. Pensei em Julia esperando que Brakebills viesse buscá-la, esperando e esperando sozinha em seu quarto, e Brakebills nunca veio. Pensei em você e em como me sentia em relação a você e como isso era ruim. Pensei sobre o quão longe você veio. Você realmente se recompôs quando chegou aqui, Eliot, e eu respeito isso. Acho que nunca te contei. Todo mundo respeita isso. — Obrigado — Ela não havia contado a ele. Foi bom ouvir isso. — Eu pensei na época em que estava no internato. Eu nunca penso na minha infância, mas naquela noite tudo saiu escorrendo. Você sabia que meus pais me mandaram para o internato quando eu tinha oito anos? Agora acho que era muito cedo, mas na época achei que era normal. Acho que hoje não aceitam estudantes tão jovens. E no fim das contas, foi um ano difícil pra minha família – eu tive um irmão mais novo que morreu de síndrome de morte súbita infantil – e acho que eles meio que se esqueceram de mim por um tempo. Com toda a dor e tal. Eles apenas acharam que eu cuidaria de mim mesma. O que eu acho que devo ter feito. Mas foi um ano muito ruim. — Por que você nunca me contou isso? — Ah, não sei. Acho que nunca me deixei sentir o quanto doía. Mas eu meio que revivi toda a experiência naquela quarta noite, esperando que esta coisa de Forjador viesse. Literalmente tive uma regressão aos oito anos. A questão é que era junho e o ano letivo havia acabado. Hora de ir para casa. Mas no último dia houve algum tipo de confusão. Meu pai pensou que ele havia mandado um carro pra me pegar, eu acho, mas seu assistente esqueceu ou o motorista nunca apareceu, o caso é que ninguém veio me buscar. Me sentei na mala no saguão o dia inteiro, enquanto as outras crianças eram pegas uma a uma, balançava minhas pernas e lia um daqueles grandes livros macios de Peanuts repetidas vezes, e ninguém apareceu. Isso foi antes dos celulares, e eles não conseguiram localizar meus pais. O pessoal estava sussurrando nas minhas costas. Eles sentiram pena de mim, mas eu sabia que eles meio que queriam que eu saísse pra que pudessem ir pra casa. Ainda me lembro da vista do saguão: a linha de palmeiras através das portas de vidro, as luzes do entardecer nos ladrilhos trêmulos do linóleo, o cheiro de verniz nos bancos de madeira. Nunca vou esquecer isso. Olhei para as sombras e pensei: tenho certeza de que alguém vai chegar antes que a sombra da soleira da janela chegue ao canto do banco, mas não veio ninguém e escolhi um novo local. Eu estava percebendo pela primeira vez que eu era uma parte muito pequena do mundo dos meus pais. Eles eram tudo pra mim, mas eu não era tudo pra eles. O pessoal me deixou jantar com eles, o que os estudantes normalmente nunca faziam isso. Eles pediram comida do
Popeye’s. Eu me senti tão animada e especial. Eliot desejou poder voltar no tempo e pegar aquela mini Janet, buscá-la e levá-la para casa. Mas ele não podia. — Então, depois do jantar, meu pai finalmente apareceu. Ele veio caminhando pela porta, abrindo-a com o braço sem interromper o passo, com a gravata solta, andando rápido demais. Ele provavelmente estava chateado consigo mesmo, sobre a confusão, mas parecia como se ele de alguma forma estivesse chateado comigo. Como se fosse minha culpa. Ele foi um idiota com toda essa coisa. Acho que você pode ver onde isso vai dar. Eu estava seriamente fraca nesse ponto. Tudo estava girando. Eu estava dormindo a cada cinco minutos. Acordei de madrugada no quinto dia e soube que o Forjador não viria. E eu desisti. Tinha acabado. Alguém mais forte teria ficado até a morte. Julia poderia. Alice, talvez. Se alguém realmente quer me quebrar, agora sei que é possível. Aí está. Eu não sabia. Agora eu sei. Voltei para a rocha. Eu ainda tinha meu saco de metal. Não poderia deixá-lo – talvez eles pudessem usá-lo pra outra coisa, não sei. Não estava em boas condições, estou te dizendo. Eu estava tão desidratada que nem conseguia chorar. Era uma cena de loucura, como a Ofélia em Hamlet. Exceto, sabe, muito mais seca. E então eu estava de volta à cidade, e eles estavam cuidando de mim, me ajudando a sentar em uma mesa onde havia toda aquela comida e bebida. Eles estavam dando uma festa. A tribo inteira estava lá. Todo mundo estava sorrindo. O Forjador não tinha vindo, mas de alguma forma estava tudo bem. Eu falhei, mas é assim que as coisas eram. O deserto era eterno e eu havia lutado contra ele, fiz o meu melhor e perdido, e isso era tudo que eu podia fazer. Todo mundo estava sentado lá sorrindo para mim e depois de um tempo eu também estava sorrindo. O Primeiro pediu eu fosse até onde ele, na cabeceira da mesa, na frente de todos. Ele me disse pra me ajoelhar, ele pegou o saco de metal e o levantou. — Você é uma estrangeira — disse ele. — Mas você veio até nós e se curvou diante do deserto, e vasculhou suas areias com os dedos. — Pausa dramática. — Você pensou que o deserto lhe concederia seus tesouros. Os tesouros do nosso povo. Você pensou que iria desvendar nossos segredos. Nosso metal. Nossa força. Você pensou que nos tiraria nosso deserto e nos governaria. Aqui está o que o deserto lhe deu: um saco de areia sem valor. — E despejou meu saco no chão. — Você nunca encontrará o nosso metal. O deserto guarda seus segredos. Ele só os compartilha com seus filhos e filhas. Você pode levar esta areia de volta ao seu Grande Rei de Fillory e diga a ele que eu te deixei viver. Diga a ele que ele que pode nos mandar mais prostitutas, se ele quiser, esta foi adequada. Janet seguiu em silêncio por um minuto. De costas para Eliot. Ele não sabia se ela estava se recompondo ou apenas perdida em seus pensamentos. Ele a viu tocar seu rosto uma vez, isso foi tudo. — Janet — disse ele. — O Primero riu muito com isso, acredite em mim. — Quando Janet continuou sua voz não mudou. — Ele conhecia seu público. Toda aquela areia preta estava na minha frente no chão em uma pequena pilha. Parecia muito maior no deserto. Ainda não conseguia acreditar que não era metal. Quase morri por causa disso. Mas ainda não terminei a história de quando estava no internato. Sabe o que eu fiz naquele dia quando meu pai veio me buscar? Eu cuspi nele. Disse a ele que nunca mais voltaria pra casa. Rasguei sua camisa cara. Ele me deu um tapa e me arrastou para o carro, chutando e gritando. Mas eu não tenho mais oito anos. Não sou uma garotinha. E o Primeiro não era metade do homem que meu pai era. Eu sussurrei
algo pra ele. Ele teve que se inclinar pra me ouvir. Sussurrei: Não preciso dos seus segredos, Primeiro. Mas eu vou pegar suas armas. E seu deserto também. Então joguei um punhado de areia preta bem em seus olhos. E me levantei. E parei de sussurrar. — E você pode dizer ao seu Deus quando você o vir que eu não deixei você viver. Mas acho que isso será meio óbvio. — Veja, ele cometeu um grande erro. Ele pensou quando me mandou lá que ia me quebrar, mas ele estava errado. Ele me fez mais forte. O deserto me fez olhar para meus próprios segredos, os que eu guardava de mim mesma e fiz isso. Quando voltei não tinha arma, eu era uma arma. Posso lançar uma Força Tecida bem rápido quando preciso. Eu estava exausta pelo teste, acredite em mim, mas nada iria me impedir. Antes que ele entendesse o que estava acontecendo, soquei o Primeiro contra a porra da parede. Minhas mãos eram basicamente como pedra. Foi uma sensação legal. Por um minuto todos os outros apenas assistiram. Acho que eles estavam pensando, tudo bem, luta justa, vamos ver se o Primeiro pode sair disso sozinho. Não queriam desrespeitá-lo, tentando ajudar, esse tipo de coisa. Quando eles mudaram de ideia, era tarde demais pra ele. E pra eles. Bom, olhe, eu estava com raiva. Não acho que eu tenha cometido muitos atos de violência gratuita, mas era uma guerra, ele era um idiota e o deixei feito pó. O joguei através de duas portas e ele chorou como um bebê fodido. Você sabe o que costumavam escrever em canhões? O último argumento dos reis. Acho que podemos dizer que a magia é o último argumento das rainhas. Eliot não disse nada. Durante todos os anos de sua vida que passou com Janet, nunca a havia conhecido, não de maneira tão profunda. Às vezes ele olhava para ela e pensava, caramba, me pergunto o que há por baixo de toda aquela raiva, toda aquela armadura dura e brilhante. Talvez haja apenas uma garotinha inocente e ferida que queria sair, brincar, ser amada e ser feliz. Mas agora ele se perguntava se talvez aquela garotinha estivesse muito longe ou se ela nunca tivesse estado lá. O que estava sob toda aquela armadura, toda aquela raiva? Mais raiva e mais armadura. Raiva e armadura até o final. Janet estava pálida, mas sua voz permaneceu calma. — Quando o Primeiro terminou de chorar, fiz com que ele me mostrasse tudo. Todos os seus segredos. Eu não me importava mais, só queria que ele entendesse o quanto ele estava derrotado. Aquela rocha afundou profundamente no deserto – haviam aberto poços através dela – e no subterrâneo eram tudo cavernas de gelo. De lá saía à água. Mas não o metal. Não havia metal. Dá pra acreditar nisso? Essas armas eram tudo o que tinham – acho que vieram de um meteorito, há muito tempo. Forjadas a partir de metal estelar, algo assim. Eles simplesmente passavam de pai pra filho, de mãe pra filha. Tranquei o Primeiro em uma caverna de gelo e o deixei lá. Imaginei que seus colegas o encontrariam mais cedo ou mais tarde. Talvez ele morresse talvez ele ficasse bem, eu não sei. O que eu sou, uma maldita médica? Eliot impulsionou o cavalo um pouco para frente, bem ao lado do de Janet e, até onde sua habilidade com equitação lhe permitia, inclinou-se, pôs o braço em volta de Janet e beijou-a no rosto. Ele sentiu o sorriso dela. — Antes de sair, peguei a lança dele. Eu ainda tinha forças, então a parti ao meio com as mãos nuas, bem na frente dele, e formei uma cabeça de machado no final de cada uma delas, com gelo. Nada mal, né? Eu ia dizer: considere-se anexado, idiota! Ou algo parecido, mas às vezes uma frase final é demais, sabe? — Sim — disse Eliot calmamente. — Eu sei. Eu sei.
— Enfim — disse Janet. — Foi assim que consegui meus novos machados. Ela esporeou seu cavalo pelo caminho que conduzia ao Barion.
CAPÍTULO 13
Um dia, cerca de uma semana depois de Quentin voltar da Antártida, Lionel bateu à sua porta. Eram duas e meia da tarde. — Dez minutos — Lionel não esperou que ele abrisse. — No saguão. Traga seu equipamento. Quando Quentin chegou lá, Lionel já estava na outra suíte, no final do corredor. O meio da tarde se tornou um tempo morto no ciclo diário de sua pequena cela criminosa. Eles já haviam repassado suas partes do plano mais uma vez, da melhor maneira possível nos confins de um quarto de hotel, que não se parecia em nada com as prováveis condições de campo, sobre as quais eles ainda sabiam muito pouco. Stoppard não parecia se importar em passar dezoito horas por dia fazendo pequenos ajustes em seus instrumentos, mas o resto deles estava lentamente perdendo a razão. Eles passaram a manhã ajustando algumas coisas que não precisavam de ajuste. Quentin havia chegado o mais longe que pôde e estava impaciente. Alice estava lá fora em algum lugar. Fazia muito frio para ir lá fora e, se saíssem, estavam no Aeroporto Internacional de Newark, então jogavam cartas, assistiam TV, faziam exercícios com os dedos ou corriam nas esteiras na academia. Betsy escrevia em um diário volumoso. Às vezes, nadavam na piscina rasa do hotel, que ficava em uma gruta de vidro molhada e gotejante no ultimo andar, que tinha tanto cloro que eles se sentiam levemente envenenados por meia hora depois de saírem. Quentin estava feliz por ter uma pausa na rotina. Talvez eles saíssem do hotel para fazer uma simulação de toda a operação. Eles se encontraram no saguão, todos exceto Pushkar, que não estava à vista. Stoppard chegou com duas malas de plástico duro, uma das quais era obviamente muito pesada. Quentin trouxe uma mochila com tudo o que achava que precisaria para quebrar o vínculo, se pudesse ser quebrado, o que seguia sendo uma incógnita. Eles não tinham um para praticar. O que ele tinha eram as moedas de Mayakovsky no bolso. Betsy chegou de mãos vazias. — Viagem de campo! — disse ela. — Graças a Deus. Agora posso dizer isso. Vocês estão prontos? Pronto, disse isso. — Estou feliz por finalmente sair — disse Plum. — Você acha que é isso? — disse Stoppard. — Digo, se isso é o trabalho? — Não — Betsy sacudiu a cabeça com desdém. — Ensaio geral. Saída de teste. — Vamos encontrar os outros no local — disse Lionel, e os levou para fora. Era a limusine branca novamente. Desta vez o motorista saiu e Lionel ficou atrás do volante. O resto foi
para os fundos. Era uma boa ideia. Quentin era a favor da improvisação quando não havia absolutamente outra escolha, mas seria bom estar o mais preparado possível. Talvez o pássaro tivesse preparado um vínculo incorporado para eles brincarem? A limusine acelerou na estrada, indo para o norte. O interfone estava conectado. — Caixa de papelão — disse Lionel. Havia uma no chão, em um canto. Quentin cortou a fita com uma chave. Estava cheia de roupas: parkas pretas brilhantes, jeans pretos e gorros pretos. — Encontre as do seu tamanho. E se troquem. Era tudo de operação muito secreta. Stoppard se atrapalhou na caixa animadamente até encontrar uma parka que lhe servisse. Ele colocou no colo e a tocou carinhosamente. — Estou apaixonado — disse ele. — Estou apaixonado por este casaco. Betsy já havia retirado às calças, revelando uma roupa íntima branca prática e um par de pernas muito claras, e começou a vestir o jeans. — Esta merda estreita é muito Jersey — disse ela. — Acho que vou esperar — disse Plum. A limusine atravessou o rio Hudson e até Manhattan, depois avançou mais para o norte, atravessou Yonkers e depois seguiu para o leste em direção a Connecticut. Quentin observou o mundo passar pela janela: enormes viadutos, complexos habitacionais de tijolos densos com janelas muito pequenas, shoppings com letreiros gigantes gritando com o tráfego, mais complexos habitacionais e, finalmente, como um suspiro de alívio, árvores. No crepúsculo permanente das janelas escurecidas, tudo parecia tão distante e estranho como o conteúdo de um aquário. Pararam duas vezes, uma vez para colocar gasolina e uma vez em um grande prédio de tijolos com uma placa do lado de fora que o identificava orgulhosamente como um centro de reabilitação, onde Lionel recebeu um grande pacote de papel marrom de alguém que mal abria a porta. Stoppard se mexia em seu casaco preto, o qual ele já vestia mesmo que estivesse quente demais para ele na limusine, e havia acrescentado um par de óculos de aviador. Suas mãos continuaram se desviando para os controles das luzes de discoteca. — Não — disse Plum, em tom de advertência. Havia muita energia reprimida no carro. — Então — disse Betsy. — Stoppard, o que diabos você está fazendo aqui? Digo, por que você aceitou esse trabalho? — Pelo mesmo motivo que todos os outros — disse ele. — Estou aqui pelo dinheiro. Com uma velocidade surpreendente, Betsy tirou os óculos de sol do rosto. Stoppard tentou recuperá-los, mas ela os fez desaparecer; ela tinha um estilo de lançar feitiços rápido e fluido que lembrava Quentin poderosamente de outra pessoa que ele não conseguia lembrar até que ele conseguiu: o de Julia. Sem os óculos, Stoppard parecia muito mais jovem. — Sem papo furado, Maverick — disse ela. — Você tem nove anos. Recuperará os óculos quando nos contar como chegou aqui. — Eu tenho dezessete anos! Pra sua informação. E, a propósito, como você chegou aqui? — Bom, vamos ver... — Ela colocou um dedo no queixo e olhou para cima e para o lado, fingindo pensar. — Eu sou a melhor no que faço. Tenho algumas coisas com as quais preciso
lidar e será muito mais fácil fazer isso com dois milhões de dólares. E eu gosto de violência e viajar em limusines com nerds. Fim! — Ela sorriu. — Agora você. Se Stoppard já não tivesse uma queda furiosa por Betsy, ele certamente teria uma no final daquele discurso. De qualquer forma, ele perdeu parte do mau humor. — Eu só gosto de construir coisas, eu acho? — Ele queria jogar como ela, mas ele não contava com as reservas necessárias de sarcasmo e sangue frio, então ele acabou sendo sincero. — Eu estive metido com computadores por um tempo, mas era difícil conseguir o que eu precisava, sabe? Mesmo quando você constrói seu próprio equipamento, as peças ainda são muito caras. E eu estive em algumas famílias adotivas – você não tem privacidade. Você nunca pode se dedicar às suas coisas. Especialmente se tiverem valor. Não havia magos em nenhuma das minhas famílias. Dois caras da Best Buy me colocaram nisso, mas logo os deixei pra trás. Quando me concentro em algo, não paro até entender, sabe? Não paro. Não fui muito à escola naquela época, e onde eu moro você não pode sair muito... Tinha muito tempo livre. E com a minha última família, tinha meu próprio quarto. Dê bastante tempo a um nerd e uma porta que ele pode fechar e ele pode descobrir praticamente qualquer coisa. Mas de qualquer maneira, mágica e computadores não é uma boa combinação, então achei que teria que escolher uma coisa ou outra. E então eu descobri a horologia. Ou melhor, horomancia. — Por favor, me diga que essa palavra não significa o que parece que significa — disse Plum. — Magia do relógio. É a melhor dos dois mundos, realmente. Sempre gostei da parte de hardware, e é mais fácil de encontrar peças de relógio do que computadores – vocês não acreditariam no que as pessoas jogam fora. Além disso, você também pode roubar coisas às vezes, se for preciso. Depois de um tempo consegui alguns aparelhos bem sofisticados. E entendi que sobre esse tipo de magia poderia agir – efeitos temporários, obviamente, mas isso é apenas o ponto de partida. Você vai de dentro pra fora. Clima. Ótica. Probabilidade. Efeitos de campo. Acima de tudo, estava imaginando esse equipamento sozinho. Tem uma sensação diferente da qual se sente com essas coisas que vocês fazem. — Ele balançou os dedos como se estivesse lançando um feitiço. — Isso é mais lento e constante. Tic-toc, tictoc. Stoppard estava ganhando o respeito de Quentin. Os solitários genuínos eram raros no mundo mágico, mas esse cara era autêntico. Um valor atípico: auto motivado, autodidata, mesmo à margem da cena dos esconderijos. Ele era sua própria Brakebills de um cômodo para um único aluno. Não era nada de outro mundo, mas Quentin nunca teria chegado perto da magia sozinho no Brooklyn. — Enfim, não devo ter mantido em segredo como pensei, porque uma manhã eu acordei e havia uma carta na minha cama, sobre a reunião na livraria. Depois disso, não precisava pensar em nada mais. Digo, esqueça o dinheiro, o equipamento que o pássaro conseguiu pra mim – ele deve ter dinheiro infinito. Equipamentos sobre o qual apenas tinha lido. A realização de quase todas minhas fantasias. — Quase — admitiu Betsy. Betsy poderia ter feito uma brincadeira, mas em algum momento ela perdeu seu desejo por sangue – Stoppard não era o alvo suculento que ela estava esperando. Muito inocente. Muito fácil.
— Se você gosta de relógios — disse Quentin. — Dê uma olhada nisso. Ele tirou do casaco o relógio de bolso que pendia na ponta da corrente de prata e entregou a ele. Mesmo com seu novo talento para consertar as coisas, ele não havia feito nenhum progresso com o relógio. Stoppard o pegou como um veterinário cuidaria de um pardal machucado. Ele olhou para ele de diferentes ângulos, segurou-o perto do ouvido. Sua atitude tornou-se rápida e profissional. — Não funciona? — Não no momento — disse Quentin. — Você acha que poderia consertar? — Não sei. Provavelmente. Stoppard colocou em seu colo e abriu uma das malas de plástico duro, que foi evidentemente construída para conter um conjunto de pequenas ferramentas de aço brilhantes. Tirou uma lupa de joalheiro, selecionou uma pinça e colocou outra na boca, depois abriu a parte de trás do relógio para ver o mecanismo – algo que Quentin nunca conseguiu fazer. Uma luz pálida foi filtrada do mecanismo. Stoppard ficou atordoado. — Ah, meu Deus — sussurrou ele. — Ah, meu Deus. Onde você conseguiu isso? — De muito longe. — O que é isso? — Plum se inclinou. — Ah, muitas engrenagens pequenas. — Esses mecanismos não existem. Ninguém faz isso. Olha, tem um segundo mostrador. Stoppard removeu o mostrador externo para revelar outro por baixo. Sua expressão transmitia o fato de que ele de alguma forma havia subestimado Quentin e que, ele se arrependia, pelo menos na medida em que podia. Depois voltou ao relógio, ignorando as tentativas de Plum de olhar por cima do ombro. Ele não disse nada durante a hora seguinte, até que a limusine parou. Lionel saiu e deu a volta no carro para abrir a porta para eles. O ar frio entrou. — É isso aí, pessoal — disse ele. — Fiquem quietos. Nenhuma magia até que eu diga a vocês. Ainda estamos a alguns quilômetros da casa, mas não sabemos muito sobre a segurança. — Espera, o quê? — disse Plum. — Mas essa não é a operação real, é? — Sim, é — disse Lionel, impaciente. Ele parecia ainda mais pálido do que o normal e deixou sua barba ficar ainda mais desordenada. — Pelo amor de Deus — disse Quentin. — Você sabe que não estamos prontos. — Então, se preparem. Não temos mais tempo. Vocês são profissionais, certo? A resposta para isso foi um coro crescente de silêncio. — Olhem, apenas façam seus trabalhos. Ele desapareceu, deixando para trás uma limusine cheia de silêncio de choque. Plum virouse para Quentin. — O que você acha? — Eu não sei — disse Quentin. — Nós poderíamos ir embora. Desistir naquele momento seria difícil. Ele perderia meses e isso machucaria. Mas o risco era maior do que ele assumiu quando aceitou. — Ah, vamos lá – disse Betsy. — É só um trabalho.
— Esse é meu argumento. De jeito nenhum vale a pena ser morto. — Só quebrando o vínculo, colocaremos nossas chances em meio a meio — disse Plum. — Vamos pensar sobre isso por um segundo. — Vamos pensar sobre isso — Betsy se inclinou para frente do assento oposto. Ela sorriu como se estivesse confiando um segredo maravilhoso e íntimo. — Se você sair agora. Vou te caçar e te matar. Nunca vou parar até te encontrar. Eu desisti muito e estou muito perto. Você entendeu? Ela olhou para Quentin sem piscar. — Nem mesmo remotamente — Quentin também não piscou. Ele não gostou de ser ameaçado. — Por que você se preocupa? Você está perto de quê? É só dinheiro. — Você sabe o que tem na mala? — Não. Nem mesmo o pássaro sabe o que tem na mala. — Eu sei o que tem na mala — disse Betsy. — E eu vou te dar uma pista do caralho: isso não é uma questão de dinheiro. — Talvez você possa ser um pouco mais específica. — Você quer saber o que tem dentro da mala? Liberdade. — Ela ficou olhando para ele por outro longo segundo, depois se recostou no banco. Quentin olhou para Plum, depois para Stoppard, que voltou a mexer no interior do relógio. A perspectiva de começar de novo do começo, encontrando alguma nova maneira de entrar, não era atraente. Se eles pudessem acertar e acabar com isso, ele poderia seguir em frente com sua vida. E havia a conexão com os Chatwins, ele não podia esquecer isso. E havia Alice. Quem ele estava tentando enganar? Não iria embora. Já estava metido até o pescoço. Ele abriu os olhos. Betsy ainda estava olhando para ele. — É melhor você acreditar — disse ele. — Que se isso começar a ficar feio, eu serei o primeiro a fugir. Então talvez eu vá te caçar. Pense sobre isso. — Quentin colocou sua mão no ombro de Stoppard, que olhou para ele como se estivesse acordando de um sonho. — Melhor você me devolver isso agora. Você pode ver isso depois. Stoppard acenou a cabeça, fechou o relógio e silenciosamente o entregou, embora não tenha desviado o olhar do relógio até que Quentin o colocou de volta em sua jaqueta. Eles saíram da limusine. Era o final de março, por volta das quatro da tarde, e a temperatura estava em torno de zero grau. Eles estavam em uma estrada secundária, na realidade apenas uma pista de cascalho, em algum lugar na zona rural de Connecticut, com uma fileira de árvores correndo ao longo de um lado e arbustos de amoras pretas do outro. Os campos de feno os cercavam por toda parte. Não havia casas à vista. Plum ficou para trás no carro para trocar de roupa e, quando saiu, todos estavam vestidos de preto. Quentin usava o casaco em vez de uma parka, porque parecia mais de um mago, e era preto de qualquer maneira, e ele não fazia ideia de quando veriam a limusine de novo, se a vissem novamente. Ele tinha a página da Terra Nula dobrada em um bolso interno, junto com o relógio. — Bom — disse Plum. — Isso não parece suspeito. A brisa estava congelando e, mesmo que não devessem usar magia, Quentin lançou discretamente alguns feitiços para se manter aquecido. Em uma clareira, Pushkar estava acenando para eles, e eles caminharam em sua direção através da grama seca e sem cortes.
Lionel estava de pé atrás dele parecendo tão grande quanto um monte de feno, e o melro veio voando das árvores que escureciam para pousar em seu ombro. Ali no campo parecia muito mais com um animal selvagem. Quentin se perguntou o que os outros pássaros pensavam dele. Pushkar tinha um enorme tapete oriental retangular desenrolado na grama, um esplêndido exemplar com um desenho floral de cor creme, dourado e azul claro. Pushkar analisava o tapete, balançando a cabeça lentamente, às vezes curvando-se e alisando as dobras e fazendo pequenos ajustes nas bordas e no próprio desenho – parecia ser tecido de lã, mas se alterava ao toque dele. Um tapete voador. Quentin nunca tinha visto um antes. Sob sua parka, Pushkar usava um suéter multicolorido de dia de caça, extremamente feio. — Belo tapete — disse Quentin, porque ele era. — Adivinha quanto custou? — ele não esperou Quentin adivinhar. — Setenta mil dólares. O pássaro pagou em dinheiro, eu vi. Eles ficaram em torno da borda do tapete. A reunião parecia um piquenique frio, formal e mal planejado. O pássaro se dirigiu a eles do topo da cabeça de Lionel. — Encontramos o Casal há uma semana. Eles estão em uma casa a três quilômetros ao noroeste daqui. Uma grande propriedade, sem nada mais perto. Nós estamos os observando, aprendendo suas rotinas. Esta manhã, algo os agitou. Estamos preocupados porque achamos que eles estão se preparando para algo – talvez eles estejam indo embora, talvez vão aumentar a segurança, não sabemos. Mas não há mais tempo. Nós faremos nossa tentativa hoje à noite. Perguntas? Quentin não conseguiu pensar em nenhuma. Plum fungou no frio. Stoppard pegou suas malas. — Tudo bem se eu...? — Claro — Pushkar acenou com a cabeça, e Stoppard pisou com cuidado no tapete, como se temesse que ele deslizasse sob seus pés ou saísse voando com ele em cima. Ele se agachou e abriu as duas maletas; uma estava cheia de ferramentas, a outra, a mais pesada, continha um cilindro de prata com cerca de trinta centímetros de diâmetro e sessenta centímetros de comprimento. Aparentemente, isso que ele estava trabalhando em seu quarto – Quentin tinha visto em pedaços, mas nunca montada. Tinha um mostrador de relógio de esmalte branco de um lado e um grupo de engrenagens pequenas e discadores de telefone do outro. Stoppard desdobrou um suporte alongado e colocou o cilindro sobre ele, depois abriu a caixa de aço e começou a ajustá-la. Lionel se afastou; vestia apenas uma camiseta preta, a mesma que usou naquela noite na livraria, mas ele não parecia sentir o frio. Pelo menos eles tinham um grande desgraçado do lado deles. Betsy começou uma rotina de alongamento. — Sinto que deveríamos estar fazendo algo — disse Plum. — Eu gostaria de fumar. Você quer repassar os feitiços de novo? — Na verdade, não. E você? — Eu faria, mas acho que minha cabeça iria explodir. Então se sentaram de pernas cruzadas no tapete no frio e esperaram. Quentin podia sentir as moedas de Mayakovsky no bolso da calça. Elas davam uma sensação agradável. Elas lhe
davam confiança. Stoppard tirou uma pequena manivela de metal, encaixou em uma extremidade na cavidade na parte de trás da máquina e começou a girá-la furiosamente. — Mola principal — disse ele alegremente sobre o som da catraca. O hálito de sua respiração era branco. — Liga metálica branca. Fonte constante de energia cinética. É difícil que a manipulem com magia. — O que essa coisa faz? — Segurança acima de tudo. Ela coloca uma bolha ao nosso redor, nos torna muito difíceis de ver, ouvir ou detectar magicamente. Também deve nos manter aquecidos, o que eu pessoalmente mal posso esperar. Quentin percebeu que Stoppard nem conhecia os feitiços básicos para se aquecer, então lançou alguns nele enquanto girava a mola principal. O pássaro observou tudo. Se ele estava ansioso ou impaciente, não havia como saber. Uma vez que a máquina foi ligada por alguns minutos, Stoppard soltou a manivela e a guardou. Ele fez alguns ajustes e houve um zumbido suave, como as asas de um beija-flor contra uma janela, as mãos de Stoppard começaram a se mover nos mostradores. O mecanismo soou duas vezes, clara e musicalmente, e a luz brilhou nas profundezas reluzentes como raios dentro de uma nuvem de tempestade. O vento morreu ao redor deles. Não houve outros efeitos perceptíveis, mas Stoppard parecia satisfeito. Ele fechou a maleta. Lionel se aproximou, franziu a testa e acenou a cabeça. — Bom — disse Lionel. — Todos prontos. Pushkar nos fará decolar. A uma palavra de Pushkar, o tapete endureceu embaixo deles e se esticou, como se a grama sobre a qual estavam descansando tivesse sido substituída por uma pista de dança suave. Todos instintivamente se aglomeravam no meio, o mais longe possível das bordas, e o tapete se elevou rapidamente e silenciosamente para céu: quinze, trinta, sessenta metros, alto o suficiente para limpar as árvores mais altas. Era uma sensação repousante, como em um sonho – não tanto quanto voar, mas como estar em um elevador de vidro sem nenhum prédio ao redor. Agora Quentin podia ver que eles estavam em uma área pouco povoada, um pouco arborizada, de casas grandes e distantes umas das outras, algumas escuras, outras brilhando com uma luz amarela agradável. Ninguém falou. O tapete parou de subir, fez uma pausa e começou a flutuar suavemente para frente, com facilidade, como uma jangada à deriva em um rio calmo. As borlas do tapete pendiam languidamente no ar calmo. Quando perderam medo das bordas, todos foram se separaram pouco a pouco. A partir dessa altura, podiam apreciar o trabalho meticuloso de quem quer que tenha sido a última pessoa a colher esses campos: deixou um padrão, metódico e uniforme, de listras mais escuras e mais claras. Depois de cinco minutos, o pássaro disse: — Lá. Lionel apontou para ele. Era uma grande mansão de telhado cinza a cerca de um quilômetro e meio de distância. Não era ostentosa, apenas uma grande casa de campo de pedra, com ornamentos brancos, no estilo georgiano, embora em uma escala mega-georgiana. — Bom gosto — disse Betsy.
— Há muito dinheiro aqui — disse Lionel. — Banqueiros. Ouvi dizer que a casa da juíza Judy está em algum lugar por aqui. Era difícil imaginar um universo em que Lionel assistisse a juíza Judy. As sombras das árvores nas bordas dos campos estendiam-se cada vez mais, fundindo-se umas com as outras e dando a sensação de correr enquanto o sol se punha. Quando estavam a um quilômetro da casa, Pushkar parou o tapete, e houve uma rápida conversa entre ele, Stoppard e o pássaro enquanto abriam caminho através de algum tipo de perímetro de segurança invisível, mas complicado, que exigia muitos ajustes cuidadosos da máquina de Stoppard. A velocidade e o tom do zumbido aumentaram e diminuíram novamente assim que passaram. Enquanto isso, Betsy puxava um cabo de cobre de três metros da bolsa de Lionel. Ela marcou a cada poucos centímetros com a lâmina de um canivete suíço, então dobrou as extremidades com a pinça e as juntou para formar um anel irregular de meio metro de diâmetro. Quando ela entoou um par de palavras-chave – sua voz era incongruentemente alta e doce – a área dentro do aro se iluminou com uma visão artificialmente brilhante da paisagem. Levantando-a, Betsy começou a se mover em um círculo ao redor do horizonte, muito lentamente. Parou de frente para o leste. — Olha — disse ela. — Lionel. Tem um grande portal lá. As oito, dez quilômetros. Um portal estranho. Lionel também olhou para ele. Ele franziu a testa. — É a festa de outra pessoa — ele decidiu. — Vamos nos preocupar com a nossa. Betsy se virou para a casa. Os terrenos estavam tão bem definidos que pareciam ter sido desenhados diretamente sobre a grama cinza-esverdeada por um arquiteto que trabalhava com bússola e régua. No crepúsculo, parecia imóvel, mas, através do aro, permitia distinguir seis ou sete guardas na forma de silhuetas fosforescentes. — Isso deve ser como se sente um drone Predator — disse Quentin. — Mantenha isso firme — Betsy entregou-lhe o aro. — Plum, você está pronta? Como nós conversamos. — Você pode fazer isso daqui? — Eu posso fazer isso daqui. Quando você estiver pronta. Betsy não parecia nem um pouco preocupada; no máximo, seu tom se tornou mais suave e mais relaxado do que Quentin jamais ouviu antes. Devia estar em seu elemento. O tapete começou a descer. — Está bem. Aquele primeiro. — Plum indicou o guarda mais próximo, o mais longe da casa, que estava sozinho perto de uma porta na parede. Betsy cerrou o punho, colocou-o sobre a imagem do guarda no aro e soprou suavemente. O homem desabou no chão; era como se ela tivesse apagado sua luz piloto. — Ele está dormindo? — perguntou Quentin. — Dormindo, em coma. Como você quiser chamar. Plum estava concentrada, sussurrando em algum idioma árabe. — Mais rápido — disse Lionel. — Vamos. Plum aumentou o ritmo. Alguns segundos depois, um guarda, ou a sombra de um deles,
pareceu se levantar do chão e tomar o lugar onde o homem estava. Não brilhava no aro como o homem, mas, por outro lado, parecia-se muito com ele. Plum soltou um profundo suspiro. — Está bom? – disse ela. Lionel o analisou, depois franziu os lábios, mas acenou a cabeça com relutância. — Do que você fez isso? — De folhas. Não havia outra coisa. Parece bom à distância. — Tudo bem. Faça mais rápido da próxima vez. O tapete movia-se silenciosamente para frente em sua bolha invisível, agora com apenas quinze metros de altura, passando sobre a parede externa da propriedade, depois sobre um jardim externo, uma quadra de tênis de barro, uma piscina seca e coberta para o inverno. Era difícil acreditar que ninguém pudesse vê-los – Quentin não se sentia invisível – mas não havia gritos nem alarmes. Eles não projetavam nenhuma sombra. Quando falavam, faziam em sussurros, mesmo que Stoppard insistisse que eles poderiam ter feito um show de rock dentro daquela coisa e ninguém os teria ouvido. Betsy e Plum derrubaram e recriaram quatro, cinco, seis guardas. Os doppelgängers de Plum eram convincentes, pelo menos vistos à distância. Eles eram feitos do que ela podia encontrar nas imediações – grama cortada, palha, argila da quadra de tênis ou sombras próximas – mas usavam as mesmas roupas das vítimas e, embora não andassem, podiam trocar o peso de um pé para o outro e virar a cabeça de forma alerta, como um guarda de verdade faria, como pequenos inimigos em um videogame. — Lá — disse Lionel. — É aquela janela. A ala à direita, no andar de cima, na janela do meio. — A mala está lá? — perguntou Quentin. — É onde entramos. Por um segundo, Quentin não sabia o que estava faltando, então ele entendeu: a máquina de Stoppard tinha parado de funcionar. Stoppard reagiu mais rapidamente do que ele – ele pulou pelo tapete do lugar onde estava tentando falar com Betsy, colocou a manivela no buraco e começou a girar como um louco. O dispositivo foi reiniciado imediatamente. — Seu idiota de merda! — sussurrou Lionel. — Por quanto tempo ficamos visíveis? — Eu não sei! — Stoppard não parou de girar a manivela. — Talvez uns dois segundos! Desculpa, não sei o que aconteceu! Todos estavam esperando o alarme soar. Todos ficaram quietos. Não era diferente de estar em um submarino e esperar que as cargas de profundidade começassem a cair. O tapete continuou seu voo, sem vacilar. Quentin deu um passo rápido em um escudo mágico muito difícil que pararia uma bala, provavelmente, se ele estivesse olhando na direção certa. Mas as cargas de profundidade não caíram, e eles continuaram em frente. Quando Stoppard se cansou, Quentin deixou cair o feitiço e girou em seu lugar, até que a mola principal protestou. Isso é ridículo, Quentin pensou, mas friamente – ele não iria se deixar entrar em pânico. Estamos improvisando. Pushkar diminuiu a velocidade e começou a fazer pequenos ajustes, movendo-se um pouco para a esquerda, depois para a direita, para cima e para baixo, sussurrando pacientemente para seu corcel, como um piloto conduzindo um avião-tanque através de uma abertura estreita. Agora eles estavam perto da casa, passando por um terraço de azulejos cheio de
cadeiras de madeira de teca desgastadas, e avistaram algumas salas onde as luzes estavam acesas. Quentin viu uma mulher em pé em frente a um balcão, tomando café e lendo uma revista. Dois homens fumavam no pátio externo; eles seguravam seus cigarros no estilo da Europa Oriental, como se fossem dardos. Eles poderiam ter sido qualquer pessoa, em qualquer casa, em qualquer lugar. O tapete ia passar apenas três metros acima de suas cabeças. O campo da invisibilidade roçou um galho de árvore. Em vez de apenas passar por ele, o galho ficou preso, como se o campo fosse uma bolha de cola, depois curvou e dobrou. Todos observaram com impotência até que o galho finalmente cedeu e arrancou várias folhas de carvalho. Quentin curvou os dedos em um ato reflexo, mas, quando o galho de carvalho quebrou, algo caiu dentro da casa – uma xícara de café, a julgar pelo som – e quebrou no chão. Os dois homens se viraram. Alguém resmungou, uma mulher. Eles estavam distraídos. O momento passou. Isso não foi sorte; sorte não chega tão longe. Alguém deve – sim, Lionel estava terminando algum complicado feitiço de deformação de probabilidade, ofegante pelo esforço. — Legal — disse Quentin. — Não deveríamos ter precisado. — Não é culpa dele — disse Quentin. — Ele nunca teve a oportunidade de experimentar. Tivemos sorte de termos chegado tão longe. Lionel olhou para ele mais surpreso do que zangado – como se ele não tivesse percebido que Quentin tinha a capacidade de falar. — Cale a boca – disse ele, e se voltou para a casa. Eles pararam na frente da janela e pairaram ali, a borda do carpete roçando as ripas brancas da casa. Não havia luz lá dentro. Stoppard tirou um pequeno escaravelho de bronze de uma de suas maletas e colocou-o na janela. O besouro rastejou por um longo quadrado e, onde quer que fosse, cortava o vidro. Quando terminou, Stoppard colocou o corte quadrado no tapete com cuidado e devolveu o escaravelho à sua maleta. — Quentin, sua vez — disse Lionel. — Minha vez do quê? — Isso — Ele apontou para o buraco na janela. — É hora de fazer a sua parte. Na verdade, ocorreu-lhe que ele era o único que não tinha feito nada até agora. Quentin olhou para o buraco. Era assustador, mas ele estava feliz que a espera tivesse acabado, ele precisava de algo para fazer. Quentin pensou em sua breve e ingloriosa história de suas operações assassinas: invadir a Tumba de Ember com Dint e Fen; atacar o castelo na Ilha de Benedict. Ele estava menos aterrorizado do que a primeira vez, e menos maníaco do que a segunda. Talvez isso tenha sido experiência. — Me dê um minuto. Posso fazer os feitiços? Lionel olhou para Stoppard antes de dar sua aprovação, depois acenou a cabeça. Quentin fechou os olhos, colocou dois dedos em cada pálpebra – mãos opostas, de modo que seus pulsos estavam cruzados na frente do rosto – e pronunciou as palavras de um feitiço indiano de visão noturna. Quando os abriu, foi como se o brilho e o contraste do mundo tivessem aumentado e todas as cores tivessem desvanecido. Pushkar sacudiu a cabeça com
desdém. — Depois vamos discutir o seu hindi. Stoppard estava mexendo com seus mecanismos. — Ela está ficando quente — disse ele. — Eu diria que ela tem mais ou menos quinze minutos. Ele calou gentilmente, como se ele fosse uma criança com febre. — Quinze minutos? — disse Plum. — Vai levar pelo menos isso pra quebrar o vínculo. No mínimo. — Então mexa-se — disse Lionel. Quentin passou a cabeça pelo buraco e viu com perfeita clareza, embora em cores pastel falsas, um enorme quarto de hóspedes vazio, luxuosamente mobiliado. Era muito mais bonito que os do Marriott. Ele arrastou para passar o resto do corpo. O pássaro voou e pousou sobre seu ombro. Quentin estremeceu, mas não tanto quanto a primeira vez. — Saia pro corredor, vire à direita, depois à esquerda na esquina, à esquerda novamente e depois à primeira porta à sua direita. Não há mais ninguém neste andar. Nós seguiremos você com o dispositivo. Você só tem que ficar dentro do alcance. Descobriu-se que o dispositivo o seguiu-o por si só: o suporte sobre o qual ele descansava deslizou graciosamente pela janela com suas seis pernas articuladas, como uma formiga gigante com um mostrador branco de relógio como olho. O grosso tapete branco abafou o barulho de seus passos. Quentin olhou para o corredor, à esquerda e à direita, sentindo-se como uma criança que ficou para dormir na casa de um amigo à procura do banheiro. O pássaro estava certo: não havia ninguém ali. Não havia fotos nas paredes; a casa parecia uma luxuosa residência de férias, o que provavelmente era. Por apenas um minuto, Quentin se permitiu pensar no que faria se a operação fosse bem-sucedida. Ele compraria uma casa. Ele estudaria os nifos. Ele poderia convocar Alice? Vinculá-la? Ela era um demônio agora? Ele retornaria a Brakebills se precisasse; talvez Hamish o deixasse entrar. Voltaria a Mayakovsky se precisasse. Virou à esquerda na esquina e, em seguida, o corredor girava em torno dele como uma atração de um parque de diversões. Ele caiu e bateu no carpete com força. Ele o agarrou, tentou cavar os dedos nele, sentindo a gravidade se mover ao redor dele. Porra – o que ele esperava, invadindo a casa de um mago? Ele olhou por cima do ombro, mas ele estava sozinho, todos os outros se foram, e o corredor que estava girando se estendia até o infinito. E de repente não mais. Os outros estavam ali o observando com expressões de leve preocupação enquanto ele estava deitado no chão, procurando desesperadamente por um lugar para se segurar, e Plum dissipou os últimos fragmentos da ilusão. — Se levante — disse Lionel. — Uma armadilha — disse Plum. — Você está bem. Quentin levantou-se com cautela. Sua frequência cardíaca já estava se acalmando. Ela estava certa. Ele estava bem. Novamente à esquerda, e havia a porta à direita. Quentin não conseguiu encontrar um sussurro de magia nela, mas Betsy passou por ele e começou a desligar uma série de armadilhas – estranhas armadilhas psíquicas desagradáveis. Eles não esperavam que alguém fosse tão longe. Ele ouviu o estrondo abafado de um trovão distante: uma tempestade, deve
ter se formado rapidamente. Ele olhou de volta para os outros, enfileirados atrás dele no corredor. Pushkar e Lionel enrolaram o tapete e o carregavam em seus ombros. Quando Betsy terminou, ele abriu a porta. Não estava nem trancada. Era uma sala de bilhar, comprida e bem equipada, com uma fileira de janelas ao longo de uma parede e sofás na outra. A impressão geral era de um clube de cavalheiros, ligeiramente artificial. Havia poltronas de couro marrom nos cantos e uma lareira de pedra escura em uma extremidade que não mostrava nenhum sinal de ter sido usada. Havia caixas e caixotes de todos os tamanhos possíveis em todos os lugares, o que arruinou a atmosfera luxuosa, junto com alguns itens muito grandes ou difíceis de serem colocados em caixas ou caixotes: um cervo empalhado, uma bicicleta com uma roda enorme e outra pequena, uma jukebox antiga, um contrabaixo de madeira escura. Um homem mais velho com cabelos loiros e escassos, não o homem do Casal, estava sentado em um sofá brincando com seu celular. Ele olhou para cima, surpreso, mas antes que ele pudesse falar Betsy calmamente o congelou no lugar com um feitiço que ela obviamente tinha preparado, depois o nocauteou com outro. O homem permaneceu sentado, mas agora seus olhos estavam fechados. A mesa de bilhar em si era uma besta de oito patas de madeira esculpida e com mais incrustações do que cabiam, com uma prateleira contra a parede que continha os tacos, um placar para a contagem e outras coisas. Ela parecia pesar uma tonelada; parecia o tipo de coisa que não deveria estar no segundo andar de uma casa. Uma de suas extremidades desapareceu sob as caixas e pilhas de livros cambaleantes. A mesa também continha, à vista de todos, uma velha mala de couro marrom. Estava muito desgastada, mas, por outro lado, era idêntica a que Lionel mostrou a eles no hotel. Tinha uma etiqueta oval da Cunard-White Star Line de um lado. — Tudo bem — disse Quentin em voz baixa. — Feche a porta. Ninguém toca nela. Agora havia chegado a hora dele e de Plum. Stoppard se agachou e analisou um dos pequenos mostradores de sua máquina. — Nove minutos — disse ele. Trabalhando rapidamente, eles moveram tudo ao redor da mala até que ela fosse deixada sozinha na mesa de bilhar. Quentin varreu o feltro que a rodeava com uma pequena escova e depois a cobriu com finas cinzas brancas. Plum colocou uma toalha molhada enrolada na fenda inferior da porta e acendeu um pequeno fogo em um braseiro que colocou na lareira. A sala começou a se encher de fumaça aromática. No fundo, Quentin podia ouvir Betsy montando barreiras e armadilhas, preparando-se para o momento em que a bolha de Stoppard explodiria e os donos da casa, de repente e calamitosamente, tomariam consciência da presença deles. Ela estava selando o quarto como um cofre por todos os lados, incluindo o chão e teto. Plum desenhava ângulos no feltro ao redor da mala, usando uma régua, fazendo cálculos mentalmente. Quentin montou uma estrutura de metal em torno dela e então eles amarravam fios de alta tensão em um padrão assimétrico. Usavam cordas de violino – cordas de mi, as mais altas. — Dois minutos — disse Stoppard. — Não está pronto! — disse Quentin, Plum e Betsy em uníssono. Deus, eles não terminariam a tempo. Uma fina fumaça branca subia dos mecanismos do dispositivo de
Stoppard e agora havia um brilho de calor acima da máquina. Estava soando mais devagar. Parecia prestes a derreter. — É melhor vocês acreditarem que o Casal estará pronto — disse Lionel. — Droga — Betsy apressadamente introduziu uma cera vermelha macia na fechadura, em seguida fez um selo na cera. Pushkar pegou um taco de bilhar da prateleira e praticou alguns golpes como se fosse um bö. Parecia que ele sabia como usá-lo, mas se chegassem ao ponto de lutarem com tacos de bilhar, eles estariam praticamente ferrados. Pushkar interrompeu sua rotina. — Algo está chegando — Ele deu um golpezinho na têmpora. — Precognição. — Prepare o tapete pra decolar — disse Lionel. — Quentin e Plum, quanto tempo mais? Ainda recitando baixinho, Plum levantou quatro dedos. Quentin tirou um afinador do bolso e começou a tocar as cordas no cubo – quintas perfeitas, e elas precisavam ter uma margem de precisão menor que dois hertz. Betsy se dirigiu formalmente a cada parede, depois o chão, depois o teto, com as mãos unidas, movendo os lábios. Cada parede brilhou prateada quando ela fez isso. A poeira de gesso descia dos cantos. O dispositivo de Stoppard suspirou baixinho quando algo quebrou ou derreteu fatalmente dentro dele, e o tique-taque parou. Ninguém se mexeu. Por um longo momento, o único som na sala foi Plum sussurrando sobre a mala. Quentin apertou uma das moedas de Mayakovsky em uma das mãos. Gritos roucos vieram de algum lugar do primeiro andar, depois houve silêncio. Uma porta bateu. Pushkar olhou pela janela e sacudiu a cabeça: nada ainda. Betsy estava subindo e descendo na ponta dos pés, flexionando os dedos, quase zumbindo de excitação. Lionel olhou sombriamente para a porta, rangendo os dentes. Ele ergueu as mãos na frente dele na altura do peito, os dedos bem separados, os polegares se tocando. O chão estremeceu uma vez abaixo deles, com força, e depois uma segunda vez – Quentin teve que colocar a mão na mesa de bilhar para não cair, e duas pilhas de caixas desabaram. Eles estavam tentando entrar por baixo. Quentin continuou se concentrando no feitiço, por pouco. Passos ecoaram no corredor, então pararam do lado de fora da porta. Alguma das armadilhas que Betsy havia deixado de fora soou com um estrondo alto, mas era difícil saber o quão eficaz havia sido. Já estava quase na hora. Quentin e Plum mantiveram seus olhares presos para garantir que estivessem em perfeita sincronia. A porta começou a vibrar em seu quadro, com força, num tom que gradualmente se tornou mais agudo. Houve um baque e um buraco apareceu na parede na altura da cabeça, depois outro e um terceiro. Mas eles tinham. Tempo. As cordas estavam soando de uma só vez, sem precisar ser tocadas. Se ia funcionar, tinha que ser naquele momento. Quentin agarrou a moeda; ele podia sentir que estava ficando quente, preparando-se para liberar sua carga. Ele respirou fundo. As luzes se apagaram silenciosamente e todas de uma vez. Ele fez isso? Não, ele ainda não havia dito a palavra-chave. Plum inclinou a cabeça na semiescuridão, confusa. De repente, todas as janelas explodiram para dentro. Torrentes de vidro quebrado caíram no chão. A onda de choque jogou Quentin impiedosamente contra a base da parede oposta. Não foi o suficiente para derrubá-lo, não exatamente, mas seu cérebro ficou paralisado por alguns segundos, e ele esqueceu onde estava. Quando ele se recuperou o suficiente para se
ajoelhar e afastar as mãos de seu rosto, a sala parecia cheia de figuras que lutavam vestidas de robes. — Que diabos? — sussurrou ele. Algo ruim estava acontecendo. Por um segundo, ele pensou ter perdido a preciosa moeda de Mayakovsky, mas não, lá estava ela, a poucos metros de distância no carpete, ainda brilhando com poder inexprimível, e ele tinha apenas a presença de espírito suficiente para pegá-la e guardá-la no bolso. Pessoas estranhas se agitavam na escuridão – duas delas seguravam Betsy contra a parede, e ela as amaldiçoava em voz alta. Havia algo de estranho nelas: suas mãos. Elas não eram de carne. Brilhavam como um ouro pálido, e elas eram ligeiramente translúcidas – você podia ver as coisas através delas. Quentin começou a se levantar, mas um deles estava ao seu lado. Ela colocou um pé no peito dele e o empurrou para trás, quase sem dificuldade. Quentin olhou para o pé. Era um pé comum, um pé de mulher, uma sandália de couro, definitivamente humana. Havia sete ou oito deles – era difícil ter certeza na escuridão. Outra mulher se aproximou da mala. Do nada, Pushkar apareceu atrás dela e agarrou-a na parte de trás da cabeça com um taco de bilhar, ou ele tentou: porque o taco quebrou como madeira de balsa, como se ele tivesse batido em uma estátua de mármore, e a que estava com o pé em Quentin soltou um feitiço com uma mão que o congelou e o deixou deitado, rígido como uma tábua. Ignorando a ação em torno dela, a mulher analisou a jaula que Quentin havia montado; na luz dourada de suas mãos, seu rosto parecia ligeiramente divertido. Ela ergueu a jaula e jogou-a de lado, depois falou algumas palavras sobre a mala em um tom prático – ela poderia estar pedindo uma pizza. Havia algo estranhamente familiar na maneira como ela falava. Ela puxou a mala simplesmente, desse jeito – houve um som de rasgão, exatamente como se tivesse sido mantida apenas por nada mais do que velcro e depois se soltou. A mulher a colocou debaixo do braço. Essas pessoas eram ladrões, como eles. Eles deixaram que Quentin e seus colegas fossem à frente e eliminassem a segurança, depois entraram e roubaram o ladrão. Em seu estado de choque e confusão, Quentin sentia mais do que qualquer coisa admiração pela competência e calma daquele grupo. Eles estavam fazendo um bom trabalho. Movendo-se em sincronia, eles recuaram em direção às janelas em uma retirada coordenada, cada qual mantendo um de seus oponentes bem coberto. Quentin pôs os cotovelos debaixo de seu corpo e levantou-se para observar, tentando não representar uma ameaça a ninguém. Eles estavam organizados com perfeição, seja lá o que eles fossem. Dois deles estavam confiscando o tapete de Pushkar, desenrolando-o no ar do lado de fora. — Não! — disse Betsy. — Vocês não podem fazer isso! Ela estava lidando com a situação melhor do que Quentin. Ela já estava em pé e caminhava na direção deles, lançando ataques selvagens com as duas mãos, relâmpagos e depois fogo saindo de seus dedos, inundando a sala com luz. Mas três das pessoas vestidas com robes tinham juntado as mãos para criar uma barreira defensiva, e sua magia morreu contra ela. Quentin se endireitou por completo. Sua cabeça estava clareando. Betsy estava certa: esse era o trabalho deles. Aquela mala era deles. Essas pessoas não tinham nenhum direito sobre ela. Ele se apoiou em um joelho. Agora ele sabia por que a magia daquele grupo parecia tão familiar: eles estavam falando de um tipo distorcido de alemão arcaico, que Quentin conhecia bem, porque era a mesma
língua em que a página da Terra Nula foi escrita. O último subiu no tapete roubado. — Pare! — gritou Betsy. Ela correu para a janela enquanto eles se afastavam. O pássaro saltou debaixo da mesa de bilhar. — Eles não podem abri-la — disse ele, talvez para si mesmo. — Eles ainda não podem abrir a mala. Quentin cambaleou em direção as janelas, mas só pôde disparar um raio inútil de calor fugitivo atrás deles, que ricocheteou em seu escudo e deixou uma queimadura na parede da casa ao lado dele. Plum estava ajoelhada ao lado de Pushkar, que estava se recuperando do feitiço que o derrubou. Lionel ainda estava de quatro, olhando distraidamente para o chão. As batidas na porta recomeçaram mais urgentes desta vez. A madeira estava se despedaçando. Até mesmo o cara loiro no sofá, que Betsy mantinha em silêncio, estava se mexendo. Mas Quentin só se sentiu apenas calmo. O medo e a confusão desapareceram, ele havia perdido o controle deles na luta. E eles ainda não tinham terminado de lutar. Eles iam terminar com isso, mesmo que ele tivesse que fazer isso sozinho. — Pushkar — Sua voz soava estranha e distante em seus ouvidos feridos. Ele tossiu para remover a poeira de sua garganta. — Pushkar. Tem alguma coisa aqui que possa voar? Ainda apoiado pesadamente na mesa de bilhar, Pushkar olhou ao redor da sala. — Sim — disse ele.
CAPÍTULO 14
Eles saíram através das janelas vazias como um enxame de abelhas zangadas de uma colmeia. Plum e Stoppard montavam poltronas de couro; Betsy havia pegado um pequeno tapete de orações em frente à lareira, que ela manejava em pé, como uma prancha de surfe; Quentin pegou a bicicleta de roda grande. Pushkar, junto com Lionel e o pássaro, assumiram o comando da enorme mesa de bilhar, que, apesar de seu tamanho e peso, era surpreendentemente suscetível aos feitiços de voo. Era um pouco mais larga do que o caixilho da janela, mas de qualquer forma, abriu seu caminho em uma explosão de tijolos e poeira de gesso, jogando uma chuva de bolas de bilhar multicoloridas de suas entranhas. O sol estava se pondo, e o crepúsculo estava no nível do solo, mas quando eles subiram acima das copas das árvores, o pôr do sol lançou uma fina luz dourada sobre eles. Subiram a toda velocidade no ar azul gelado, no céu do começo da noite, acelerando enquanto subiam em direção ao oeste, perseguindo a mancha cada vez menor do tapete em fuga. O feitiço de Pushkar era magistral e a velocidade era entusiasmante – Quentin já tinha voado um pouco sozinho, mas isso era completamente diferente. A casa já estava ficando menor atrás deles. A sela de couro da bicicleta era dura como uma pedra, mas ele não estava em posição de reclamar. Pelo menos não foi o contrabaixo. Ele se perguntou se iria mais rápido se estivesse pedalando. Quentin ficou junto da mesa de bilhar, aproveitando seu para-brisa. No meio de todo o caos, Lionel conseguiu manter o longo pacote de papel marrom preso debaixo do braço. Ninguém falou, eles apenas se inclinaram sobre suas aeronaves improvisadas tentando obter a máxima velocidade enquanto seus olhos lagrimejavam. Betsy já tinha uma vantagem sobre eles em seu tapete, com o cabelo curto voando para trás de seu rosto, inclinando-se para frente nos dedos dos pés, olhando ferozmente à frente, como um saltador de esqui em pleno salto. Pouco a pouco começaram a encurtar a distância com o tapete voador. Os ladrões – os outros ladrões – também estavam usando os feitiços de Pushkar, mas ele não havia preparado o tapete para a velocidade. Seja lá o que diabos contivesse na mala, eles iriam recuperar. Quilômetro após quilômetro, as florestas de Connecticut se estendiam abaixo deles; talvez eles já estivessem fora do estado, Quentin não sabia dizer. O tapete desceu, passou raspando pelas copas das árvores, rolou e girou, depois recuperou a altitude. Quentin o seguia de perto. Depois de dez minutos eles reduziram a distância para cem metros. As pessoas no tapete lançaram neles um par de bolas de fogo, e algo mais que brilhou e estalou, mas nada que eles não pudessem ver chegando a tempo. Stoppard estava montado sentado; Plum havia virado a cadeira para trás e estava ajoelhada no assento. Não havia dúvida de que eles poderiam
ultrapassar. Mas o que fariam quando chegassem a eles? Embarcar no tapete? Quentin estava em alta velocidade e risco agora – ele tinha que ficar lembrando a si mesmo que isso não era um videogame, ele só tinha uma vida e a magia não ia fazer crescer os membros que ele pudesse perder ao longo do caminho. Talvez Pushkar pudesse desfazer o feitiço do tapete, pará-lo em pleno voo. Quentin virou a bicicleta na direção da mesa de bilhar para tentar falar sobre estratégia, mas, ao fazer isso um estrondo profundo veio de trás dele, ficando mais alto, e ele arriscou olhar por cima do ombro. Dois cometas em chamas rasgavam o ar calmo da noite, deixando para trás um rastro de fumaça e faíscas. Cruzaram a formação, ultrapassando-os por trás como meteoros; um deles passou a menos de um metro e meio dele e a onda de choque quase o derrubou da bicicleta. Mas eles não estavam atrás dele. Os cometas gêmeos bateram com força no tapete, um-dois. Era o Casal. Eles vieram pegar sua mala de volta. O tapete afundou com a força do impacto duplo. Betsy foi atrás dele e Quentin a seguiu. Gritos flutuaram de volta a Quentin ao vento, fragmentos de gritos, obscenidades, ordens, feitiços, tudo removido instantaneamente pelo vento. Era difícil dizer exatamente o que estava acontecendo, mas algum tipo de combate corpo-a-corpo desesperado estava em andamento. Um membro do Casal, a mulher, estava em pé envolta em luz no centro do tapete, cercada por formas encapuzadas. O homem havia retirado o escudo defensivo que estava no tapete, mas recuou de volta imediatamente, como uma mariposa saltando de uma lâmpada acesa, e agarrou-se à parte de baixo do tapete, onde começou a abrir caminho com ambas às mãos. No momento, Quentin apenas observou e manteve o ritmo. Ele esperaria, então eles poderiam atacar quem sobreviveu, aproveitando seu estado enfraquecido, ou assim esperava. Ele olhou em volta e viu os outros no crepúsculo mais profundo. Eles estavam fazendo o mesmo – todos, exceto Betsy, de quem ele havia perdido o rastro. Um lago brilhava muito abaixo, seguido por mais árvores. Eles atravessaram finas camadas de nuvens que flutuavam baixo. A quantidade de energia mágica que estava sendo gasta na luta no tapete era realmente impressionante; o Casal devia estar carregando artefatos, porque suas energias estavam radicalmente elevadas. Eles podem ser pessoas más, mas eram terrivelmente fortes em lançar feitiços e aparentemente desconheciam o medo. Graças a Deus ele não teve que enfrentá-los cara a cara. Quentin viu o homem – um grande sorriso no rosto – atravessou o tapete com um soco e agarrou o tornozelo de um dos monges com as mãos douradas, arrastou-o pelo buraco que havia acabado de abrir no tapete e jogou-o no vazio; ele caiu girando e se afastou para a paisagem escura. A mulher já estava se aproximando da mala, mas estava lutando abrindo o caminho em meio uma tempestade de magia defensiva. Um monge adiantou-se e preparou-se para lutar corpo a corpo. Os dois se aproximaram e então veio o caos, um borrão de luzes e movimentos acelerados. No meio da briga, algo veio de cima para baixo em um ângulo íngreme como um cormorão mergulhando e atingiu o tapete com um baque sólido que sacudiu a poeira dele. Era Betsy. — Droga! — disse Quentin. Ela deveria ter esperado, mas aparentemente o interesse pessoal que ela tinha na mala, junto com sua ansiedade congênita de se matar, tinha levado a melhor sobre ela. Droga,
droga, droga. Descartado, o tapete de Betsy passou por ele na esteira da luta. Quentin insistiu para que sua ridícula bicicleta acelerasse, reduzindo gradualmente a distância que o separava do tapete. Ela estava fora de si, mas uma equipe era uma equipe. Ele reconheceu o sentimento de inevitabilidade fria que se sentia pouco antes de uma briga. Esta seria uma ação corpo a corpo, e ele rapidamente endureceu as mãos e o rosto. Ele tentou se concentrar em uma sensação de raiva justificada: era a mala deles, eles haviam se apoderado dela e ele iria recuperá-la. Por Alice. Ele se agachou quando uma forma escura veio até ele de ponta-cabeça e quase colidiu com a mesa de bilhar. Era o homem do Casal. Parecia flácido quase inconsciente, mas não estava caindo e Quentin o deixou passar. As borlas trêmulas do tapete estavam apenas a alguns metros de distância. Viu Betsy bater na mulher do Casal com as costas da mão – um clarão de luz e um barulho de comoção acompanharam o golpe, que fez a cabeça da mulher girar um quarto de volta – então agarrou com uma mão a alça da mala. A mulher se recuperou e também se lançou para ela, enquanto os monges restantes as cercavam, esperando saber quem eles tinham que atacar. Mas antes que isso acontecesse, Betsy se agachou e colocou a mão livre no tapete. Quentin viu que ela estava mexendo a boca, mas não conseguiu reconhecer o feitiço. Deve ter sido alguma poderosa antimagia porque o tapete imediatamente perdeu toda a sua coesão interna e se dissolveu em uma nuvem de fios. Um grupo inteiro de corpos passou por Quentin e eles ficaram para trás e caindo. Quentin lutou para não perder de vista Betsy: ela estava caindo como uma pedra, ainda segurando a mala com uma das mãos. Embora parecesse incrível, a mulher do Casal também não a deixaria ir. Elas giraram uma ao redor da outra, suas roupas tremulando e freneticamente borradas ao vento. Quentin virou o guidão para elas e desceu o mais verticalmente possível. Entrou em queda livre e continuou acelerando, perdendo com a velocidade o que havia sobrado do pensamento consciente. A terra se erguia em direção a elas, verde-escuro e enrugada com montanhas baixas. Quentin cerrou os dentes e pedalou na bicicleta antiga mais depressa e com mais força, com o vento a assobiando nos raios e o esforço a arrancando seu peito por dentro. Elas estavam entrando em foco: nenhuma mulher poderia interromper sua queda sem soltar a mala antes, e nenhuma delas estava disposta a soltá-la, então atacaram uma à outra com seus dentes e mãos livres e com quaisquer feitiços que podiam lançar com uma mão, naquelas circunstâncias. Com o tempo ele poderia ter impedido uma delas de cair com magia, mas elas eram duas e ele não tinha tempo. Os detalhes da paisagem começaram a ficarem definidos, ampliando e ampliando, um riacho, um campo, árvores. Quentin seguiu seu rumo até o delas, oscilou sobre elas, bateu nelas – a mulher o agarrou, mas o soltou novamente. Ele não seria capaz de fazer isso com dignidade. Ele não tinha certeza se poderia fazer isso. O chão já estava perto, muito perto. Os joelhos de Quentin tremiam e a roda da frente cedeu e se soltou. Ele voltou para elas, sentiu as duas se agarrarem a ele com as mãos livres. Ouviu a mulher gritando sem palavras e notou que estava agarrando seus cabelos. Ela não estava gritando, estava rindo. Ele ia desacelerar gradualmente, mas quando verificou a distância até o chão, sentiu pânico e freou forte. Debaixo deles, um pinheiro que um momento antes parecia um brinquedo se transformou em um monstro que agarrava e espetava, e os três atingiram o que sobrou da bicicleta, que colidiu com os galhos. Quentin teve tempo para pensar: foda-se todos se ele
morresse assim! Por uma mala cujo conteúdo ele nem sequer conhecia! Agulhas de pinheiro bateram nele e, em seguida, eles caíram no chão e sua visão ficou branca. Algo estava tocando como um sino. Era sua cabeça. Seu peito estava vazio e ele se contorcia no chão como uma larva. Tentou respirar um pouco, mesmo que fosse um pouco, e sons estranhos como grunhidos e gemidos saíram de sua boca. Ou sua caixa torácica desmoronou e esmagou seus pulmões e ele estava morrendo, ou ele ficou sem ar e ficaria bem em um minuto. Endireitou-se. O mundo girava em torno dele como um carrossel. Quando ele estabilizou, viu que Betsy já estava de pé e cambaleando em círculos. Quentin começou a dizer alguma coisa, mas ele só podia tossir e cuspir. — Onde está? — disse ela com voz rouca. — Onde está? Você a viu? A mulher ainda estava no chão, a três metros de distância, mas ela estava se movendo. Quentin olhou para ela pela primeira vez: alta e magra como uma modelo, parecendo mais velha do que na foto, com cabelo preto encaracolado e um corte feio na testa que precisaria de pontos. Quentin localizou a mala descansando em algumas samambaias, tão limpa como se tivesse acabado de sair de uma esteira de bagagem, a poucos metros de distância da mulher. A mulher viu onde Quentin estava olhando. Ela fez um barulho com a garganta e começou a rastejar em direção a ela, mas Betsy se adiantou. Ao passar pela mulher, Betsy se inclinou e pôs a mão no pescoço dela. A mulher se contorceu, arqueando a coluna como um gato. Betsy tocou-a com a outra mão, em seguida, montou-a como um cavalo, liberando energia nela – seus dedos soltavam faíscas. O corpo da mulher tremeu embaixo dela como se ela estivesse aplicando um desfibrilador. — Pare! — resmungou Quentin. Mas já era tarde demais. Ela a soltou e a mulher caiu de cara na terra negra, ainda se contorcendo. Quentin sentiu um cheiro de carne queimada. — Eu parei — disse Betsy. Ela continuou andando. Pegou a mala, examinou-a com ceticismo em busca de danos, ergueu-a para pesá-la. Dava a impressão de que não pesava nada. Quentin se arrastou até a mulher que estava morrendo, mas evitou tocá-la. Não havia como saber que tipo de néctar mágico fatal ainda estava em seu corpo. Fumaça subia de seus cabelos pretos. De qualquer jeito, já era tarde demais. Betsy ficou olhando para ele. Ela cuspiu no chão. — Eu vou te matar também se você tentar me impedir. A floresta estava quieta. Era o início da primavera, a vegetação ainda estava se recuperando do brusco impacto do inverno, e apenas alguns grilos chirriavam. A mulher era uma assassina. Três minutos atrás, ela teria matado qualquer um deles. Betsy se agachou, largou a mala e se atrapalhou com as travas. — Merda — Ela se esforçou diante delas, se preparou e forçou novamente. — Merda. Isso que eu temia. Onde diabos está Plum quando se precisa dela? — O que você quer da Plum? Mais ou menos na deixa disso, Stoppard e Plum vieram agachados através dos galhos, protegendo seus rostos. Os dois estavam juntos na mesma poltrona; algo deve ter acontecido
à outra. A aterrissagem foi difícil, mas controlada, até que a poltrona atingiu uma rocha e uma de suas pernas quebrou, o que os fez cair no chão macio. Plum se levantou, esfregando as mãos nas coxas. — Deus — disse ela. — O que aconteceu? — Ela caiu morta — disse Betsy. — Abra a mala. — O que, agora? Não deveríamos…? — Abra! — É melhor fazer isso — disse Quentin. — Ela matou a mulher. Quentin pensou que Betsy já devia estar exausta, mas ainda não havia como saber do que ela era capaz. — Deus — disse Stoppard. — Por que você fez isso? Parecia que ele realmente queria saber, mas Betsy ignorou. Seu rosto estava sombrio e sério. — Abra. Faça isso agora. — O que faz você pensar que eu posso abri-la? — Você sabe como. Plum suspirou, resignada. — Acho que sim. Sentou-se de pernas cruzadas na frente da mala e abriu as travas como se nunca tivessem sido trancadas. Assim que ela fez, Betsy a chutou para o lado com força. — Ei! Betsy vasculhou o conteúdo. Pegou um livro, jogou-o de lado, então ela ergueu uma longa faca feita do que parecia ser de prata polida. Era uma arma simples, sem ornamentos. Parecia muito funcional e muito antiga. — Sim — Ela sussurrou para a faca. Sua voz falhou. — Ah, sim. Olá! Com uma rajada de ar e um estrondo ensurdecedor, a mesa de bilhar bateu direto no dossel e aterrissou solidamente em suas pernas grossas no chão da floresta. Lionel a montava de pé com o pássaro em seu ombro. Não havia sinal de Pushkar. — Onde está a mala? — Lionel observou o cadáver, Quentin, Plum, Stoppard, Betsy e a faca. — Você abriu. Lionel desembrulhou o pacote: era uma arma, um fuzil de assalto com um grande canhão que cabia debaixo do braço. A culatra e o cano estavam profundamente gravados, espirais e arabescos – era obviamente uma arma híbrida, alta tecnologia, mas reforçada por magia. — Claro que sim – disse Betsy. — Onde está o Pushkar? — perguntou Stoppard. Em vez de responder, Lionel colocou o fuzil no ombro, mirou e disparou duas rajadas controladas de maneira brusca e eficiente no peito de Stoppard. Ele deveria ter morrido logo em seguida. Mas mesmo antes de Lionel atirar, Betsy se colocou entre eles, segurando a lâmina – ela se moveu mais rápido do que Quentin podia ver. As balas brilharam e ricochetearam na faca de prata, dois rápidos tinidos metálicos e voaram para os arbustos. Seja lá o que essa faca fosse ela trazia muitos benefícios, e um deles era que não permitia que quem a empunhasse fosse ferido.
Quentin olhou para Lionel. — Que porra é essa? Seu merda! Cinco minutos atrás, ele se sentia tão vazio que teve a sensação de que nunca teria sido capaz de lançar um feitiço novamente, mas havia poder no medo e na raiva, e ele se pôs de pé. Ele sentiu que poderia obter um feitiço daquela raiva, mas antes que pudesse tentar, Betsy deu três passos correndo e se lançou em Lionel como um grande felino – a faca deve ter lhe dado todo um conjunto de poderes, força, velocidade e proteção. Lionel virou-se rapidamente e disparou outra rajada, mas a faca devorou as balas sem esforço e então ela ficou muito perto para um ataque. Eles dançaram uma valsa como bêbados ao redor da mesa de bilhar, Lionel grunhiu quando ela o cravou com a faca. Curiosamente, não havia sangue. A faca encontrou muita pouca resistência – escorregou do torso de Lionel e desceu pela clavícula, depois Betsy mergulhou-o no peito. Atravessou por ele como um cabo em barro molhado. O próximo corte arrancou sua cabeça. Caiu e rolou pelas folhas. Não falou, mas seus olhos piscaram. O coto do pescoço parecia uma pedra cinzenta. — Ah — disse Betsy, de pé sobre o cadáver decapitado. — Golem. Imagino. Ah. Embora parecesse um fato notável, ela não sabia que ele não era humano antes de começar a matá-lo. Só então Betsy começou a respirar com dificuldade, como se tudo estivesse vindo ao mesmo tempo: o trabalho, o voo, a queda, o assassinato, a mala, o completo e absoluto fiasco. — Onde está o dinheiro? — perguntou Stoppard. — Não tem dinheiro — disse Quentin. Ele também estava entendendo. Eles tinham sido pegos de surpresa pelos monges e então traídos duas vezes: primeiro por Betsy e depois pelo pássaro. O pássaro planejava matá-los desde o começo, em vez de pagá-los. Nunca houve dinheiro. Quentin estava mais para trás do que quando ele começou. Mais longe de casa. Mais longe de Alice. Embora eles tivessem a mala, ou o que sobrou dela, a menos que o pássaro voltasse para buscá-la. No momento ele se foi; Quentin nem o viu sair. Betsy pulou da mesa de bilhar e seus joelhos quase dobraram quando ela aterrissou. Toda a força havia saído dela. — Eu pensei que eles tentariam isso — Ela parecia cansada e, pela primeira vez desde que ele a conheceu, muito jovem. Ela não poderia ter mais do que vinte ou vinte e dois anos. — Eu imaginei isso. Nunca confie em nada que não tenha mãos. E se tiver mãos também. — Obrigado — disse Stoppard. — Você salvou minha vida — Os meus olhos estão aqui em cima — disse Betsy. Ela apontou. — Mas de nada. — O que é isso? — disse Quentin. — Isso? — Betsy levantou a faca, examinando a borda. — É por isso que estou aqui. Isso é o que eu sempre quis. Esta é uma arma para matar deuses. — Por que você quer fazer isso? — Você já conheceu um deus maldito? — Acho que te entendi. Plum pegou o livro que Betsy havia deixado de lado. Tinha uma capa de couro branco, parecia um caderno ou um diário.
— Você tem certeza de que os deuses podem morrer? — disse ela. — Vou matar um e descobrir e então talvez eu te conte — Betsy empurrou a faca pelo cinto. — Vejo vocês por aí. Não me procurem. — Não sonharia em fazer isso — disse Quentin. — Cuidado, Betsy. — Sim — interveio Stoppard. — Tome cuidado! — Meu nome é Asmodeus, vadias — disse ela. — E se você vir a Julia, diga a ela que eu fui caçar raposas. Ela se virou e foi embora em plena noite.
CAPÍTULO 15
Depois de uma parada restauradora no Barion, Eliot e Janet cruzaram o Grande Rio Salgado, com oitocentos metros de largura e quinze centímetros de profundidade, uma grande fita cinza-amarronzada que se derramava através do campo verde como se alguém tivesse deixado uma mangueira em algum lugar. Passaram por uma colina baixa e coberta de grama, na qual uma enorme figura branca estava gravada; a grama e o chão haviam sido removidos em linhas, de modo que o solo branco de calcário por baixo aparecesse. Era um simples desenho cômico de um homem segurando um bastão horizontalmente acima de sua cabeça. Geralmente estava ali, ou nos arredores – às vezes ele passeava, mas naquele dia ele estava ali. Era bom vê-lo ainda em seu posto. Trotaram através de um campo aberto, seguindo caminhos na grama que lembrava a um velho tapete gasto. Cruzaram campos abençoados pelo sol com paredes de pedra que os cruzavam, verdadeiros clássicos, quase intocados. Onde quer que olhasse, a paisagem de Fillory era composta de linhas uniformes, cordilheiras e fileiras de árvores, próximas, meio caminho e distantes, cada uma com um tom mais pálido que a anterior, inclinando-se suavemente para a esquerda, para a direita e para a esquerda. Um longo e pesado pedaço de nuvem jazia acima do horizonte, completamente imóvel, com seu contorno finamente gravado contra o céu, como a silhueta da crista de uma onda recortada no papel. — Olhe pra tudo isso — disse Janet. — Apenas olhe pra isso. É quase como se o mundo não estivesse acabando. — Quase. Mesmo agora, ainda parecia irreal. Com tanta beleza em todos os lugares, era muito fácil esquecer que Fillory era uma terra que estava morrendo. Talvez este fosse o brilho intenso de Fillory. Então eles mergulharam da luz do sol para a escuridão do Bosque Sombrio, onde apareceram na primeira vez que chegaram a Fillory. Essa era uma cena mais caótica do que em Queenswood; nem todas as árvores eram sencientes, e as que eram tendiam a ser solitárias e não muito cívicas. Passaram uma manhã procurando o lugar exato em que chegaram – havia uma árvore-relógio lá, lembraram-se, e uma espécie de barranco – porque teriam uma boa circularidade, prestariam seus respeitos ao lugar onde tudo havia começado. Mas eles discutiram sobre onde era o lugar, e no final, descobriu-se que nenhum deles estava certo, altura em que ambos já estavam de mau humor. Eles não conseguiam nem encontrar a Estalagem Duas Luas, onde esperavam parar para almoçar e tomar uma cerveja. Na manhã seguinte, eles saíram da floresta novamente e entraram no Deserto do Relógio, que era uma vasta planície coberta de pequenas árvores retorcidas, a maior das quais só
chegava a altura da cintura. Era uma floresta de bonsai. O Deserto começou mais ou menos de repente, como as coisas tendiam a fazer em Fillory: uma das peculiaridades de Fillory era que ele tinha uma estranha semelhança com um mapa de si mesmo. Eliot nunca tinha visto antes o Deserto do Relógio. Nunca houve nenhum motivo especial para ir até lá, e ele imaginou que nunca teriam. Seria bom dar uma olhada antes que fosse tarde demais. — Então isso é tudo — disse ele. As palavras lhe faltaram. Às vezes era assim. Eliot se perguntou se também o estava vendo pela última vez, e o que mais ele não tinha visto e não veria. — Eu pensei que seria... — disse Janet. — Eu não sei. Mais cheio de relógios. Ela cutucou uma das árvores raquíticas com um machado sem cabeça. — Eu também. — Talvez seja e só estamos olhando errado pra isso. Talvez de cima pareça um relógio gigante ou algo assim. — Não se parece com um relógio gigante de cima. Não havia estradas, mas não precisavam de nenhuma. As pequenas árvores estavam longe o suficiente para que os cavalos pudessem passar entre elas. Eliot teve que lutar contra uma sensação de pânico, uma necessidade urgente de ação decisiva. Era o sexto dia do cronograma de Janet, e embora ela tenha feito isso no calor do momento, sua decisão parecia autoritária. Eles tinham uma pista, muito pequena, mas chamar isso de aventura era um exagero. Não havia muito em o que basear uma jornada. Eles estavam trotando em busca de algo que eles nem sabiam o quê, e não havia como acelerar o processo, se houvesse mesmo um processo. Era quixotesco, era isso o que era. Nem mesmo isso, era subquixotesco. Meu reino por um moinho de vento antes que inclinar-me. — Eu tive uma ideia na noite passada — disse Janet. — Pra salvar o mundo. Eu acordei com ela no meio da noite, mas depois esqueci tudo sobre ela até agora. Está pronto? — Pronto. — Nós caçamos o cervo branco, como Quentin fez. Nós o caçamos ou atiramos nele ou o quer que precise ser feito. Conseguimos três desejos. Desejamos que Fillory dure pra sempre e não morra. Feito. Problema resolvido. Eliot ficou em silêncio. — Você tem que admitir... — Não, é uma boa ideia — disse ele. — É definitivamente boa. Você acha que o cervo poderia fazer isso? — Não faço ideia. Mas vale a pena tentar, certo? — Definitivamente vale a pena tentar. De acordo. Se esta jornada for um fracasso, faremos isso. — Além disso, ainda teríamos dois desejos depois que salvássemos o mundo — disse Janet. — Um pra cada um. O que mais você desejaria? — Acho que desejaria que Quentin voltasse. Janet riu. — Então eu poderia usar meu desejo pra que ele fosse embora de novo.
Dormiram naquela noite no deserto; tiveram que queimar um pedaço de terra circular para abrir espaço para a tenda. As árvores eram surpreendentemente à prova de fogo – a madeira era fantasticamente dura e densa – mas quando pegaram, elas queimaram como combustível de foguete, quente em seus rostos, soltando faíscas e lanças de luz para o céu noturno que deixava fontes de pós-imagens em sua visão. Proporcionava uma atmosfera de quatro de julho, um carnaval de verão em um terreno baldio, e eles abriram as últimas garrafas de vinho. Depois de duas garrafas, Janet propôs que eles iniciassem um enorme incêndio florestal, porque seria genial; Eliot pensou que seria mais prudente não fazê-lo, mas concordou que, se não pudessem salvar o mundo, poderiam voltar aqui e queimar o Deserto do Relógio antes do fim de tudo. No meio da manhã do dia seguinte, no sétimo dia, puderam ver para onde estavam indo: um único amontoado de árvores se distinguia no horizonte, de tamanho normal, não bonsai. Quando se aproximaram, descobriram que as árvores estavam em círculo, um anel fino de uma árvore de profundidade, e que havia uma casa no meio. Eles se aproximaram a uns cem metros do anel. Eram árvores-relógio, todas elas. Formavam um retábulo estranho e bonito. Eliot nunca tinha visto mais de uma árvore-relógio ao mesmo tempo; Quentin costumava brincar dizendo que provavelmente havia apenas uma árvore-relógio em Fillory, que apenas se movia muito rápido quando não estavam olhando para ela. Mas havia doze delas, e todas eram de tipos diferentes: havia um carvalho retorcido, uma bétula fina com um mostrador retangular; um pinheiro de agulhas retas; um baobá com obesidade mórbida que parecia derretido. A casa no meio era perfeitamente quadrada, com um telhado de telhas planas. Foi feita de uma pedra pálida que parecia ter sido trazida de muito longe. — Muito João e Maria — disse Janet. — Não é uma casa de doces. — Você sabe o que quero dizer. Era verdade, tudo dava uma sensação de conto de fadas. Ninguém respondeu quando eles bateram, então andaram até os fundos, onde encontraram uma velha de joelhos trabalhando em um jardim. A bruxa residente, obviamente. Seus cabelos eram grisalhos, mas puxados para trás em um rabo de cavalo de menina. Uma mulher pequena, ela usava um longo vestido marrom, comum e prático. Quando se levantou para cumprimentá-los seu rosto estava agradável e calmo, embora também houvesse algo malicioso nele. — Saudações — disse ela. — Ao Grande Rei de Fillory. E para a Rainha Janet, claro. — Olá — disse Eliot. — Desculpe por aparecermos assim. — De modo algum. Eu sabia que vocês estavam chegando. — Ela se agachou novamente e voltou para o que estava fazendo, que nada mais era do que consertando um sino de vime que cobria algumas ervilhas doces. — Eu imagino que vocês não estavam tentando serem furtivos quando incendiaram as árvores. Vocês estão se perguntando como eu sei seus nomes? — Porque somos famosos? — disse Janet. — Porque nós somos seu rei e sua rainha? — Eu sei seus nomes — disse a mulher. — Porque eu sou uma bruxa. Também sou um pouco famosa. Jane Chatwin. Ou como eu costumava ser conhecida, a Relojoeira. — Jane Chatwin — disse Eliot. Ele sentiu algo muito próximo de admiração. — Bom. Finalmente nos encontramos.
Ela estava certa, ela era famosa: ela foi uma das primeiras crianças a chegar a Fillory, décadas atrás, e ela assombrou Fillory por décadas como a Relojoeira. Foi ela quem, com a ajuda de um relógio mágico que controlava o tempo, ajudou a orquestrar a jornada de todos eles para Fillory para começar, e seu desastroso confronto com a Besta, que fora seu irmão, Martin Chatwin. — Ou você ainda é a Relojoeira? Como devemos te chamar? — Ah, Jane está bem. Há anos que eu não sou a Relojoeira. — De alguma forma pensava que seria mais jovem — disse Janet. — Você tem conversado com o Quentin. Por que vocês não entram e tomam um chá? A cabana estava bem preservada, varrida e limpa como um apito. A decoração era uma aproximação filloriana grosseira das salas de costura do período entre as guerras inglesas que Jane provavelmente se lembrava de sua infância. Engraçado que depois de todo o esforço que ela colocou em escapar do mundo real, ela acabou recriando isso ali. Jane invocou uma chama azulada em seu fogão e colocou uma chaleira nele. Difícil dizer onde ela conseguiu uma conexão de gás natural ali. — Pode-se ferver a água com magia — disse ela. — Mas nunca tem o mesmo gosto. Enquanto esperavam sentaram-se em volta de uma mesa de madeira tão amarela quanto o sol, com copo de água cheio de flores silvestres no centro. Agora que estavam ali, Eliot pensou em esperar um pouco antes de fazer a grande pergunta. — Há quanto tempo você está vivendo aqui? — perguntou ele. — Nós nem sabíamos que você ainda estava em Fillory. — Ah, eu nunca fui embora. Eu estou aqui há anos, desde aquele assunto com vocês, Quentin e Martin. Desde que quebrei meu relógio. — Eu sempre me perguntei sobre isso — disse Janet. — Isso realmente não existe mais? — Não existe. Não sobrou nada. Eu quebrei e pulei nos pedaços. — Droga. Eliot nem pensou nisso. Poderia ter sido útil, se eles pudessem montá-lo novamente. Embora ele não tivesse certeza do que eles fariam diferente se voltassem atrás. Talvez pudessem reviver o mesmo par de anos para sempre. Era assim que funcionava? Era confuso. E irrelevante naquele momento. — Não que eu não sinta falta — disse Jane. — Acontece que era ele que me mantinha jovem. Quando o quebrei, fui de vinte e cinco a setenta e cinco anos de um dia para o outro, ou mais ou menos – com todas essas idas e vindas, perdi a noção de quantos anos eu realmente tinha. Agora eu sei. — Ela olhou para as costas de suas mãos, que estavam nodosas e manchadas. — Eu queria que os anões tivessem me avisado. Eles deveriam saber. — Sinto muito — disse Eliot. Provou seu chá; era amargo e sentiu um formigamento em seus lábios. — Fillory está em dívida com você. — Todos estamos em dívida entre uns aos outros. Sempre pensei que vocês me odiariam por causa do jeito que eu usei vocês. Janet deu de ombros. — Você fez o que você tinha que fazer. Não é como se você saísse fácil – seu irmão morreu. E sem você nunca teríamos encontrado nosso caminho pra Fillory. Vamos dizer que estamos quites. Embora eu tenha me perguntado o que aconteceu com você. O que diabos
você está fazendo aqui? — Agora estudo com os anões. Eles estão me ensinando mecanismos de relojoaria. — Eu não sabia que havia anões aqui — disse Eliot. — Pensava que eles só viviam nas montanhas. — Há anões por toda parte. Eles são como formigas – pois cada um que você vê, há mais cinquenta que passam despercebidos. Esses são subterrâneos. — Ela bateu o pé no chão. — Existem túneis por todo o caminho abaixo do deserto. Você está sentado em uma das entradas. Hmm. Janet estava errada sobre o conto de fadas, ela deveria ter dito Branca de Neve. Ele segurou a vontade de olhar debaixo de sua cadeira. Isso o fez se sentir um pouco desconfortável ao pensar que Fillory pudesse estar cheia de túneis de anões. Eles nunca fizeram mal a ninguém, mas Deus. Eram como cupins. Embora isso explicasse quem colocou um cano de gás em sua casa. — Tem uma cidade inteira lá embaixo. Eu mostraria a vocês, mas os anões são ciumentos sobre seus segredos. Eles são muito educados, mas encontrariam uma razão pra não deixar vocês passarem. — Por que eles deixaram você passar? — perguntou Janet. — Eu paguei minhas dívidas. Além disso, fiz alguns favores pra eles. — Como o quê? — Como salvar Fillory. Havia um tipo engraçado de competitividade na sala, uma rivalidade: a primeira geração da realeza filloriana versus a segunda. Jane Chatwin não parecia muito incomodada com a franqueza de Janet. A julgar pelas evidências, era difícil imaginar Jane Chatwin perturbada por qualquer coisa. — Nós salvamos Fillory — disse Janet. — Duas vezes – acrescentou Eliot. — Mas quem está contando. — É um começo — disse Jane. Quando terminaram o chá, Jane os levou para a sala ao lado, que tinha um cheiro agradável de metal e óleo mineral muito puro. As paredes estavam cobertas de ganchos e em cada gancho pendia um relógio de bolso. Havia relógios de bronze, relógios de aço, prata, ouro e platina. Eles tinham mostradores brancos com números pretos e mostradores pretos com números brancos, bem como mostradores de vidro transparente que mostravam o movimento por trás deles. Alguns apenas diziam a hora, outros estavam cheios de pequenos submostradores que mostravam a temperatura, a estação e as posições dos corpos celestes. Alguns deles eram gordos como bolas de tênis; outros do tamanho de abotoaduras. — Você realmente fez tudo isso? — disse Janet. — Eles são formidáveis. Qualquer um perceberia que ela realmente pensava que eles eram. Eliot também teve a impressão de que Janet queria um, mas não se atreveu pedir. — A maioria deles — disse Jane Chatwin. — Isso me mantém longe de problemas. — Ah, meu Deus — disse Janet. — Você está tentando reconstruir o relógio, não é? Um de viajar no tempo! Não é? Você vai usar engenharia reversa ou qualquer outra coisa! Jane balançou a cabeça solenemente.
— Ah. Bom, eu queria que fosse. — Se não controlam o tempo, o que eles fazem? — perguntou Eliot. — Dizem a hora — respondeu Jane. — Isso é o suficiente. Quando terminaram a visita, voltaram e admiraram o jardim novamente. Atrás dele, enferrujado e meio afogado na grama, estavam os restos quebrados do que Eliot considerou ser o famoso relógio de carruagem folheado a ouro da Relojoeira, por fim danificado. Ele queria perguntar sobre isso, mas percebeu que, do ponto de vista de Jane, a visita estava chegando ao fim e ele não iria embora sem receber a informações para as quais eles tinham vindo. — O que os anões estão fazendo por aqui, a propósito? — perguntou Janet. — Por que construir um monte de túneis no meio do nada? Ou abaixo do meio do nada? — Vou te mostrar — Jane pegou uma pá que estava encostada na casa e a enfiou no chão com um baque surdo. Quando ela virou a pá, havia algo brilhando nela. — Você nunca se perguntou por que aqui foi chamado de Deserto do Relógio? — Acho que sim. Jane se abaixou com um gemido e pegou algumas das coisas brilhantes do solo, três ou quatro delas, e estendeu o braço. Na palma da mão, havia duas engrenagens perfeitas e minúsculas, uma roda de bronze fina como papel e uma delicada mola enrolada. — Mecanismos de relógio — disse ela. — Isso acontece naturalmente aqui. Vocês deveriam ver os grandes materiais que eles extraem das profundezas. Poderia fazer o Big Ben com isso. Não tenho certeza absoluta de que eles não o fizeram. Ela os jogou na grama. Eliot teve que conter o impulso de pegá-los. Esse tipo de coisa, coisas estranhas e aleatórias e completamente inexplicáveis como essa fez com que ele quisesse salvar Fillory mais do que nunca. — Além disso, eles gostam do nanismo das árvores — acrescentou ela. — Jane — disse Eliot. — Chegamos aqui por um motivo. Ember disse que Fillory está morrendo. O fim do mundo está chegando. Ela acenou a cabeça, mas a princípio não respondeu. O pôr do sol foi projetado no mostrador de uma árvore-relógio e refletiu nele uma luz laranja sobre a prata. — Suspeitava de algo assim — disse ela. — Você notou os relógios? Eles não concordam mais. Antes, eles costumavam marcar a hora perfeita, mas olhe pra eles agora. Os ponteiros estão indo pra qualquer parte. É como se eles estivessem em pânico. Pequenos idiotas. Ela franziu a testa para o circulo encantado de árvores-relógio como se fossem crianças desobedientes. Eliot supôs que eram todas as crianças que ela tinha ou teria. — O que você acha que isso significa? — É difícil dizer — Perdida em seus pensamentos por um momento, Jane parecia mais jovem, bonita e intensamente curiosa, com a mesma aparência que deveria ter quando recrutou Quentin no Brooklyn, disfarçada de paramédica, há muitos anos atrás. — Sabe, estas foram as últimas árvores-relógio que eu fiz. Sempre pensei que conseguiria um nome melhor pra elas. Suas raízes penetram profundamente em Fillory. Sem chegar a atravessar o Outro Lado, não acho que elas tenham chegado tão longe, mas estão mais do que na metade do caminho. Elas são como um sistema nervoso que registra muito rapidamente uma mudança sistêmica. São úteis nesse sentido. Mas elas não deveriam poder discordar umas das
outras. Não deveria ser possível. Elas todas são como uma grande árvore debaixo da superfície – elas se estendem umas as outras e crescem juntas suas raízes. Os anões às vezes as cortam, mas voltam a crescer em seguida. Exceto que desta vez elas não podem fazer isso. Nas profundezas da terra, algo deve estar as destruindo. Rasgando Fillory à parte. Jane se aproximou de uma das árvores, a menor, nodosa e tortuosa como uma oliveira – estava tão torta que Jane teve que apoiá-la com uma tábua. Ela bateu duas vezes no vidro do mostrador do relógio; estava em uma seção do tronco que corria paralela ao chão, e seu mostrador olhava para o céu. Ele se abriu, primeiro o vidro, depois o mostrador, para revelar o mecanismo interno, engrenagens girando uma com a outra em silêncio. Ela mordeu o lábio. — O que devemos fazer? — perguntou Eliot. — Seria amaldiçoada se eu soubesse — Ela bateu o mostrador do relógio como se fosse a porta de uma máquina de lavar roupa. — Escute, Eliot. — Sua alteza — corrigiu Janet. Sentia-se livre para desrespeitar Eliot – muito livre de fato – mas não gostava de outras pessoas fazendo isso. Jane a ignorou. — Olhe pra mim: é assim que parece uma história acabada. Eu estava dando minha vida pra este país, este mundo, antes de você nascer. Todos que eu já amei estão mortos. Tive meu próprio irmão morto. Não tenho parceiro nem filhos. Fiz minha grande ação, e isso levou tudo o que tinha. Não vou ser arrastada de volta pra outra aventura. Assinei um tratado de paz. — Bom, e nós preferimos não arrastar você — disse Janet. — Mas, veja, é o apocalipse. — Já lhes ocorreu que talvez vocês devessem apenas aceitá-lo? — disse ela com veemência. Era uma mulher pequena, mas ela se levantou, e havia alguma dignidade eduardiana em seus modos. — Já passou pelas suas cabeças que vocês não precisam sair em uma cruzada santa toda vez que as coisas não saem como vocês querem? Vocês crianças e suas aventuras. Histórias têm fins! Por que vocês não deixam que Fillory morra com dignidade, em seu próprio tempo e à sua maneira? Talvez queira desistir. Eu nunca fui uma paramédica de verdade, mas uma frase volta pra mim: não ressuscite. Deixe ir. Deixe que Fillory morra em paz. — Não. — Não estamos pedindo pra você vir conosco — disse Eliot. — Apenas nos diga o que você sabe. Tem que haver alguma coisa. Por favor. O Grande Rei de Fillory se ajoelhou diante da Relojoeira. — Por favor. Nossas histórias ainda não acabaram. A sua talvez, mas a nossa não. Se for a hora, então é a hora, mas eu não sou o último Grande Rei de Fillory. Não acredito nisso. Essa terra não está pronta pra morrer. Jane olhou para ele por um longo tempo. Então ela fez um ruído desagradável em sua garganta, se virou e subiu no tronco torcido da árvore-relógio. — Muito bem — disse ela. — Muito bem. Vou te contar o que eu sei, mas não é muito. Eu sinto que conheço cada vez menos todos os dias. Talvez seja a viagem no tempo – alguns dias eu me pergunto se estou começando a viver ao contrário como Merlin. Deus, acho que me mataria. Ou eu já cometi suicídio? Meu irmão poderia ter ajudado vocês, mas ele está morto. Há muito tempo. — Quem, Martin? Não acredito.
— Ele não, o outro. Rupert. Ele passou muito tempo em Fillory. Ele tinha um relacionamento muito próximo com Martin. — Isso não é realmente uma grande vantagem do nosso ponto de vista — disse Janet. — Deveria ser. Martin era um idiota, mas ele era esperto. Ele descobriu coisas sobre Fillory que você e eu nunca saberemos, e ele tinha apenas treze anos quando descobriu. Alguma vez vocês já se perguntaram onde ele conseguiu todo o poder? Como ele se tornou o que ele era? — Acho que me perguntei isso — disse Eliot. — Eu também. Nunca soube. Mas acho que o Rupert sabia disso. Ele estava com Martin no dia em que ele desapareceu. Sempre disse que não viu nada, mas acho que ele viu. Era um livro aberto, nosso Rupes, não era bom em guardar segredos, embora achasse que sim. Se estivesse procurando por peças perdidas, começaria por lá. Volte pra Terra. Encontre as coisas dele, veja o que ele deixou pra trás. Talvez ele tenha escrito alguma coisa. E eu acho que ele roubou algo – mesmo que não devesse levar coisas de Fillory para a Terra, ou pelo menos não tão grandes, mas acho que o Rupert fez isso. Acho que ele roubou alguma coisa. Pelo menos, quando ele saiu daqui, foi montado um grande escândalo aqui. Ninguém o culpou, e a essa altura Martin já estava ocupado semeando sua merda, então ele se perdeu na confusão, mas eu acho que Rupert tinha algo que ele não deveria ter. Isso é o que eu faria: voltar pra onde todo esse desastre começou. Você não estava lá, nem sequer eu estava lá. Mas Rupert estava. Isso foi tudo o que eles conseguiram dela. Eliot fez algumas perguntas educadas sobre o jardim, enquanto Janet caminhava de uma árvore-relógio para outra, batendo nos mostradores, tentando fazê-los abrir para ela do jeito que faziam para Jane; Jane alegou não saber por que eles não fizeram isso. Depois de mais dez minutos, Eliot disse que eles deveriam estar a caminho, e Jane não tentou impedi-los. Ela os acompanhou até os cavalos. Eles não queriam entrar no círculo de árvores-relógio. — Boa sorte — disse a Relojoeira. — E eu digo sinceramente. — Obrigado — disse Eliot. — Boa sorte com suas aulas de mecanismos de relojoaria. — Obrigada. — Aposto que você desejaria não ter quebrado o relógio — disse Janet. Ela não iria deixar isso em paz. — Os desejos são pra crianças — disse Jane Chatwin. — Eu cresci.
CAPÍTULO 16
Foi como uma festa realmente terrível, onde acima de todo o resto, no final, acontece que sua carona se foi e você tem que voltar caminhando para casa. Fazia frio, e Plum não parava de se preocupar com a possibilidade do pássaro voltar a qualquer momento com reforços para reivindicar seus bens roubados. Ou o homem do Casal, se ele tivesse sobrevivido. Isso a preocupou a ponto dela continuar perdendo os nervos toda vez que alguma coisa grasnava, piava ou quando um deles pisava em um galho. Tinha que ir atrás deles. Não havia como o pássaro desistir, não depois que chegasse tão longe. A única questão era quando ele agiria. Depois que Betsy partiu ou Amadeus, ou qualquer que fosse o nome dela, Stoppard também havia deixado a cena a toda velocidade na poltrona quebrada, com promessas de retomar o contato com eles em Nova York assim que as coisas ficassem limpas. Plum e Quentin iriam usar a mesa de bilhar, mas quando tentaram movê-la descobriram que não tinham o poder motriz necessário. Toda a força mágica deles estava esgotada. Então foram a pé. Talvez eles devessem ter pegado a arma de Lionel, para ter uma proteção adicional, mas não pegaram. Simplesmente não a queriam. Foi uma longa noite e uma longa caminhada, mas eles tinham muito a explicar e também muito para refletir. Quentin contou a ela o que sabia sobre o motivo pelo qual Asmodeus (era isso) queria a faca e, depois de ouvir a história de Reynard, o deus-raposa assassino e estuprador, ela pensou que era muito compreensível. Ela deve ter planejado roubá-lo desde o começo, essa era a verdadeira razão pela qual ela estava lá. Considerando tudo, Plum lhe desejou sorte. Mas como ela sabia que estava na mala? Plum não tinha a menor ideia. Quentin também não, ou se tinha não a expressou. Mais inquietante era o fato de que Asmodeus obviamente conhecia a família de Plum. Ela percebeu há muito tempo que o pássaro devia saber; agora estava claro que sua identidade secreta não era tão secreta quanto ela pensava, e que ser um Chatwin significava que ela já fazia parte de muitas histórias de outras pessoas de uma forma que ela só agora estava percebendo. Ela imaginou que poderia contar a Quentin a essa altura; se sentia segura com ele. Ela quase lhe disse uma vez, no bar do hotel, e em todo caso ele perguntou por que ela podia abrir a mala quando ninguém mais podia, porque é claro que ele não deixaria isso passar, e essa tinha que ser a resposta. Seu bisavô havia trancado e garantido que apenas um membro da família pudesse abri-la. Ela poderia ter inventado alguma coisa, mas estava tão cansada que não conseguia pensar em uma mentira e, além disso, para quê?
Só para constar, Plum achou muito engraçado que Quentin se mostrasse conectado a uma pessoa tão dura como Betsy, mesmo que indiretamente. Mas ele também estava se tornando muito duro, à sua maneira, ou pelo menos mais duro do que ela pensava, com base nas primeiras impressões. E em todos os lugares que ela olhava, as coisas estavam se conectando, ou melhor, estava ficando claro que elas já estavam conectadas de uma maneira que ela estava só começando a notar. Era uma tendência preocupante. Todos os outros estavam profundamente envolvidos em suas próprias histórias, e todas as histórias foram reunidas logo abaixo da superfície em uma teia que incluía Plum. Mas qual era a história de Plum? Ao amanhecer, haviam recuperado força suficiente após a orgia de feitiços do dia anterior, para poderem arriscar um voo baixo, logo acima das árvores. Eles não tinham ideia de onde estavam. Uma vez que o sol estava alto, encontraram uma estrada e começaram a caminhar ao longo dela, eles pareciam tão patéticos e inofensivos, que um cara que saía para uma viagem matinal em seu Honda Element deu a eles uma carona até a cidade mais próxima. A cidade era chamada Amenia, como a Armênia, mas sem o r. Ficava no condado de Dutchess, em Nova York, e acabou por sendo a última parada do trem para Manhattan, a duas horas e meia de distância. Então roubaram alguns dólares de um caixa eletrônico e compraram bilhetes, além de um café ruim e croissants borrachudos na lanchonete no saguão da estação de trem. Depois se sentaram em um velho banco vermelho do saguão. Eram nove da amanhã e o próximo trem não partia até o meio-dia. Tinha sido uma longa noite e antes um longo dia, e Plum precisava ir dormir e talvez sonhar – talvez sonhando ela pudesse começar a processar e entender a visão de um quarto cheio de figuras com robes e mãos douradas, e Betsy em pé sobre um cadáver eletrocutado, e Lionel abrindo fogo contra Stoppard, e Asmodeus, também conhecida como Betsy, despedaçando de repente o desumano Lionel com uma faca... Só de pensar nisso novamente, ela começou a tremer. As coisas tinham ido longe demais, e seu cérebro estava machucado por tudo isso. Não era como ela imaginou passar o que deveria ter sido seu último semestre em Brakebills. Nem mesmo como ela imaginou passar sua vida de crime depois de Brakebills. Assim que leu a carta que encontrou em sua cama na noite do fantasma, ela sabia que aceitaria o trabalho. Continue em movimento, mantenha-se ocupada, essa era a regra número um de ser Plum. E sim, parte dela teve uma emoção ilícita com isso. Ela nunca teve uma fase rebelde, e não tinha certeza se queria uma, mas com certeza tinha conseguido uma. Era louco, estranho e um pouco sórdido, mas ela aceitou. Pelo menos ela aprendeu alguns novos feitiços de Quentin e Pushkar. Talvez ela pudesse vender para seus pais como um estágio. O que ela realmente queria era algo pelo qual pudesse se apaixonar do jeito que amava Brakebills, mas no momento não tinha certeza se encontraria algum dia. Mesmo depois de sua revelação dramática, ela e Quentin acabaram ficando sem conversa e agora eles estavam lá sentados no banco da sala de espera vazia da estação de trem de Amenia, olhando para a plataforma de concreto, e trilhos vazios, sob o céu branco vazio, sentindo o peso da noite sem dormir pressionando seus ombros como uma milha de oceano, no fundo da qual eles teriam afundado. Plum deixou sua mente girar até sair de seu eixo. Seu cérebro não estava disposto a pensar no futuro agora ou o passado. Não estava funcionando nesse nível. Então ela se agarrou ao presente, segundo a segundo.
Era uma estação de trem surpreendentemente substancial para uma cidade tão pequena e tão distante de Nova York. Uma TV de tela plana embutida em um dos cantos do saguão mostrava notícias locais, incluindo uma gravação instável com um iPhone de objetos estranhos avistados cruzando o céu na noite anterior. Plum se perguntou se as pessoas realmente iam para Manhattan a partir dali. Ela se perguntou como seria ser um cidadão normal que morava em Amenia, Nova York. Pensou que poderia ser bem legal. Quentin continuava tirando seu relógio do bolso e olhando para ele. Plum queria achar isso irritante – era uma afetação hipster, aquele relógio, como uma barba mal feita, especialmente porque não parecia funcionar apesar das atenções de Stoppard – mas era um objeto muito estranho e lindo. Ele atraia seu olhar, magneticamente. Deve ter sido um presente, achou ela, de alguém que o amava. Aquela Julia, talvez. Mais histórias. — Você quer ler o livro? — perguntou Quentin. Ah, aquilo. O livro encadernado em couro que estava na mala. Trouxeram isso com eles, é claro, haviam carregado através da floresta, mas naquele momento a ideia de abri-lo a encheu de pavor. — Talvez devêssemos queimá-lo — disse ela. — Mais cedo ou mais tarde o pássaro vai vir atrás dele. Então talvez quando isso acontecer, nós vamos nos arrepender de ainda ter ele. — O pássaro terá que contratar uma nova equipe antes. Reunir mais fantoches como nós. Isso levará tempo. Nesse meio tempo, talvez ajudasse se soubéssemos por que o pássaro pensava que isso era tão importante. — Eu acho que você está certo. Nós sempre podemos queimá-lo mais tarde. — Assim que se fala. — Me deixe ver isso. Era um caderno velho com capas de couro, ou talvez um livro contábil fosse uma palavra que o definisse melhor. O tipo de coisa que um contador com viseira verde poderia ter escrito em um banco nos velhos tempos. A capa tinha o mesmo monograma da mala: RCJ. A lombada estava estranhamente manchada, azul e verde. — Era do meu bisavô. — Eu imaginei. — O que você acha que tem dentro? — Um diário? — disse Quentin. — E se tiver partes sujas. Como confissões íntimas, esse tipo de coisa. — Só podemos descobrir de uma maneira. Plum acenou a cabeça, resignada, mas ainda assim deixou o livro no colo. Parecia pesado, pesado demais para levantar. Ela estava em uma encruzilhada, mas do tipo que não tinha sinais. Se perguntou o que poderia estar dentro do livro que as pessoas deveriam morrer por isso; estava achando que Lionel também havia eliminado Pushkar. Ela se perguntou se mais tarde desejaria não ter olhado. Isso era uma coisa sobre os livros: uma vez lidos, você não pode voltar atrás. Mas podia sentir Quentin quase ofegante de excitação em seu cotovelo: que idiota. Sempre entusiasmado e trabalhador. De repente, uma onda de exaustão física e emocional a dominou, e Plum queria estar lendo alguma coisa, qualquer coisa, em vez de ficar sentada no saguão vazio da estação de trem, encarando as paredes de blocos de concreto. Estava cansada demais
para sentir qualquer outra coisa, queria que um livro fizesse a ela o que os livros faziam: tirála do mundo, deixá-lo de lado por um tempo, e deixar ela, por favor, simplesmente estar em outro lugar e ser outra pessoa. Ela estava pronta para afundar, para realmente afundar nas profundezas escuras e abafadas de onde tudo isso começou. — Tudo bem — disse ela. — Vamos brindar. — Skoal. Isso a fez desejar ter uma bebida de verdade em vez desse café nojento. Ela abriu o livro. Desde a primeira página, ficou evidente que o bisavô Rupert tinha aspirações literárias, e que ele havia assumido aquele projeto com certa seriedade de propósito, porque ele organizou a página como uma página de titulo formal. Escreveu com uma caneta-tinteiro, tinta azul já desbotada da meia-noite ao meio-dia, mas ainda elegante, uma caligrafia de estudante diligente. As páginas não eram regidas para prosa, mas para colunas de números, mas Rupert as encheu de letras. Plum se compadeceu do cara. Provavelmente estava tendo uma crise de meia-idade, e esse era o romance ou livro de memórias ou o quer que ele tivesse para expressar. Era assim que ele ia deixar sua marca, ter sua opinião, mostrar ao mundo que ele não era como os outros. (Mas se isso fosse verdade, por que trancá-lo em uma mala?). Com grande cerimônia, com a mão reflexiva de um homem que genuinamente acreditava estar fazendo um novo começo para si mesmo, que ia deixar as coisas claras, Rupert escreveu e depois riscou dois possíveis títulos: OS AMIGOS DE FILLORY e depois: DE RELÓGIOS E REIS antes de se decidir de uma vez e continuar: A PORTA NA PÁGINA Minha Vida em Dois Mundos De Rupert Chatwin — Boa decisão — disse Quentin. — Acho que ele acertou. — A terceira vez é da sorte. Ela virou a página. A próxima começou assim: Todos nós pensamos que Martin iria ter problemas um dia e no final ele teve. Apenas não era o tipo de problema que esperávamos.
Evidentemente Rupert estava satisfeito com a primeira linha, mas depois não ficou com a próxima, porque o resto da página foi arrancado, deixando essa frase sozinha em sua própria tira de papel órfã, como um único dedo acusador. A próxima página também estava faltando – na verdade, havia uma parte grossa de canhoto onde alguém, presumivelmente Rupert, arrancou quatro ou cinco páginas de uma só vez. Plum percebeu que não estava tão ansiosa para continuar como ela pensava que seria. Ela quase esqueceu que seu bisavô tinha sido uma pessoa real e seus irmãos e irmãs também. Viveram vidas reais. Tiveram esperanças, sonhos e segredos reais, e nada disso funcionou do jeito que eles queriam. Se sentiram como heróis de suas próprias histórias, assim como ela se sentia como a heroína da sua, mas isso não era garantia de que tudo daria certo. Ou nada. Depois do falso começo, Rupert escreveu rapidamente, com fluidez, com pontuação mínima e apenas correções ocasionais. Plum teve a impressão de que ele nunca o releu depois de começar a escrever. Foi em uma das festas da Tia Maude quando aconteceu pela primeira vez. Ela costumava divertir-se naqueles dias, em um estilo esplêndido que algumas pessoas achavam que não estava inteiramente de acordo com os sacrifícios que todos nós, como súditos leais do rei, devíamos fazer em nome do esforço de guerra. Imagino que a vida dela fosse glamorosa, mas nunca pareceu assim para nós. Todos nós sabemos o que é ser criança, ser inocente, não entender nada. Não entendíamos nada, nenhum dos cinco. Nada. Mas nós observamos tudo. Vimos os músicos contratados fazendo uma bagunça com seus instrumentos, esfregando a cordas de seus arcos e o esvaziando suas válvulas de cuspe em taças de vinho. Vimos às senhoras fazendo caretas de dor por causa de seus sapatos desconfortáveis e os homens puxando seus colarinhos desconfortáveis. Vimos os rostos dos criados assumirem uma inexpressividade ensaiada um momento antes de entrar em uma sala lotada. Roubamos canapés das bandejas e moedas dos casacos dos convidados. Mas o conversa sobre a guerra nos entediava, e os flertes nos entediava da mesma maneira, e nenhum dos convidados se importava com mais nada. A cena poderia ser ou não deslumbrante, como essas festas são sempre descritas, mas em todo caso não éramos capazes de valorizála. Os únicos que nos atraíam alguma atenção eram os homens jovens intercambiáveis que passavam pela casa em um desfile interminável, e só faziam isso para ganhar o favor da tia Maude. Seus esforços eram equivocados – o interesse pelas crianças não era uma qualidade que a tia Maude apreciava. Aos seus olhos, isso apenas os tornava fracos e sentimentais. Cerca de uma hora depois que os primeiros convidados chegaram à dança começou, e a tia esticou suas longas pernas e finalmente todo o seu torso na parte de trás do piano, para a consternação ou a alegria do
pianista, dependendo de quem estivesse tocando. Chegavam e passavam nossas várias horas de dormir, mas ninguém nos levou para a cama. No final, nós crianças Chatwin nos retiramos, bocejando e reclamando, para os quartos dos fundos e para os andares superiores da Dockery House, como era chamada, embora tia Maude não gostasse do nome – ela pensava que soava pomposo e vitoriano. O que era, e foi precisamente por isso que nós, crianças, gostamos. Foi em uma dessas ocasiões em que Martin começou a brincar com um velho relógio de pêndulo que encontrou sozinho em um corredor dos fundos. Ele tinha uma mentalidade mecânica e não podia resistir a uma oportunidade de brincar com algo complicado e valioso. Como o outro menino da família, acho que se poderia esperar que eu compartilhasse seu entusiasmo, mas não o fazia. Eu não era uma daquelas crianças entusiastas com interesses bem definidos e claramente articulados; tinha muito poucos interesses além de livros. Não era bom em esportes, música, desenho ou números. Não me surpreende que Martin, como descobri mais tarde, achasse que eu era fraco, como aqueles homens jovens que sempre estavam cortejando a tia Maude. Mas foi na natureza da calamidade que se seguiu que levou o forte e poupou o fraco. Me lembro de Fiona pedindo a Martin para parar, dizendo que ele iria quebrá-lo, e Helen o defendendo – Helen nunca se cansava de repreender o resto de seus irmãos, mas adorava Martin, e aos olhos dela ele não podia fazer nada de errado. Eu não achava que isso importasse de qualquer forma, já que Maude raramente visitava essa parte da casa. Se o relógio parasse de funcionar, demoraria anos até que ela descobrisse, e nesse momento decidiria que sempre havia estado parado. Ela era uma mulher descuidada. Jane não disse nada. Ela raramente falava a menos que alguém lhe perguntasse diretamente, e às vezes nem assim. Uma vez que ele abriu a vitrine, Martin começou a repetir “porra” entre os dentes. Até Helen o fazer calar quando ele resmungou, o que ele vinha fazendo desde que nosso pai foi para a França – era 1915, se eu não mencionei, e o pai era um tenente dos Artists Rifles, um regimento que, apesar de seu nome pitoresco, estava prestes a embarcar em uma excursão pelos campos de batalha mais brutais que a Grande Guerra tinha a oferecer. Eu tinha andado um pouco pelo corredor para examinar uma teia de aranha interessante em um canto do teto, mas depois de ouvir Martin, voltei. Acredito que esperava que ele e Helen estivessem brigando. O relógio era um monstro, seu mostrador de bronze era tão ricamente cravejado de círculos, ponteiros e símbolos curiosos que pareciam um rosto zangado. Martin arrastou um banquinho, que era a melhor maneira de analisá-lo no mesmo nível. Um ar frio e úmido soprava de dentro de
suas entranhas, como se fosse a boca de uma caverna. Enquanto observávamos, o relógio recobrou a vida e tocou: nove horas da noite. A pequena Jane bocejou. Martin olhou furioso para o relógio, mantendo os olhos tortos, bagunçando o próprio cabelo sem perceber, como fazia quando algo lhe incomodava. Ele desceu do banquinho. — Porra — disse ele. — Rupes, olhe pra dentro. O que você vê? Eu obedientemente inclinei minha cabeça para olhar dentro do relógio e Martin agarrou meus braços e tentou me empurrar para dentro. Era a ideia dele de pegadinha. Ele sempre estava me trancando em armários e me empurrando de escadas. Não havia nada de sinistro nisso, estávamos entediados até a morte. — Pare com isso, Martin — disse Fiona, mas sem muita convicção. Nós brigamos; o relógio cambaleou perigosamente; ele era mais forte, mas eu tinha um ponto de apoio melhor e, no final, meus ombros se encaixaram na abertura de uma maneira que impossibilitava mais progresso. Às vezes me pergunto se as coisas teriam sido diferentes se ele tivesse conseguido. Mas assim que aconteceu, ele viu que não havia mais graça e me deixou em paz. Meu rosto estava vermelho e estava ofegante, meu colarinho da camisa subiu de um lado. Martin se afastou em um círculo para mostrar que ele estava realmente falando sério. — Realmente, dê uma olhada — disse ele. — Não há mecanismos dentro. Não há pêndulo. Como isso funciona? Ninguém ficou muito intrigado com esse mistério. Jane estava puxando um pedaço de papel de parede que estava descascando. Fiona encostou-se a uma parede e revirou os olhos para os meninos. — Muito Bem — disse Martin. — Eu vou entrar. Martin estava determinado a tirar algum material cômico desse relógio vazio, de um jeito ou de outro. Sendo o mais velho, acho que ele se sentiu responsável por nos entreter. Ele começou a entrar no corpo de madeira do relógio. Eu não acho que ele esperava conseguir ter sucesso – seus ombros já estavam largos, mesmo assim – e me lembro de sua careta curiosa quando ele esticou o braço e não conseguiu encontrar a parte de trás. Colocou a cabeça e os ombros para dentro. Parecia um número mágico, uma das caixas de alçapão de Houdini. O vi hesitar, mas só por um momento. Ele colocou um pé dentro, depois o outro, depois desapareceu. Olhamos uns para os outros. Fiona, irritada com a ideia de que um truque estava sendo jogado nela, enfiou a cabeça no corpo do relógio. Com apenas sete anos e pequena para a idade, ela mal teve que se abaixar. Também desapareceu dentro. Helen e eu olhamos. — Jane — Eu chamei ela, porque ela ainda estava ocupada brincando com o papel de parede. Agora parece impossível, mas ela não tinha mais que cinco anos. — Jane.
Ela veio trotando, sem curiosidade. — Onde está Fi? — perguntou ela. Isso já era um longo solilóquio de acordo com seus padrões. Naquele momento, primeiro Martin e depois Fiona saíram do relógio, Martin muito irritado e Fiona em algo como atordoada de felicidade. A primeira coisa que notei, mesmo antes de suas roupas, foi que ambos pareciam bronzeados e saudáveis, e seus cabelos tinham crescido um dedo. Eles cheiravam a grama fresca. O tempo corre de maneira diferente em Fillory. Para eles, um mês se passou. Em um piscar de olhos, Martin e Fiona tiveram sua primeira aventura lá, sobre a qual Christopher Plover escreveria mais tarde em O mundo por trás das paredes. Esse foi o começo de tudo para nós, crianças Chatwin, e também foi o fim de tudo.
CAPÍTULO 17
Muito do que se segue já foi narrado por Christopher Plover em Fillory e além, sua encantadora série de romances infantis e com bastante precisão dentro do que se encaixa. Não discordo do seu trabalho. Eu fiz as pazes com isso. Mas, como você verá, a história dele não é a história completa. Uma diferença em que devo insistir, antes e acima de tudo, é que o que Plover ingenuamente apresentava como ficção era, exceto alguns detalhes, completamente verdadeiro. Fillory não era uma invenção da nossa imaginação, ou da dele ou de qualquer outra pessoa. Era outro mundo e viajávamos para lá e para cá, e passamos boa parte de nossa infância lá. Era muito real. Rupert havia parado e traçado e retraçado essas ultimas palavras – muito real – repetidas vezes, até que o papel começou a soltar pequenos pedaços de si mesmo, como se não pudesse suportar todo o peso do significado que ele queria expressar, o fardo que Rupert queria descarregar nele. E em Plum. No começo, Plum não conseguia entender exatamente o que a deixava louca por essa história. Mas era isso: esperava que as memórias de Rupert fossem um típico relato de uma infância inglesa com uma crosta de alta classe e jovialidade de bastões de hóquei, animada por um olhar nos bastidores sobre a criação da série de Fillory. Mas estava começando a perceber que Rupert insistiria na piada. Ele ia continuar com sua história, e a história era que Fillory era real. Talvez esse fosse o legado de Chatwin: a loucura. Havia muitas pessoas loucas na família. Plum pôs um dedo no papel ferido e sentiu sua aspereza. Ela queria curá-lo. Mas ela não podia. Ela só podia continuar lendo. É difícil escrever essas palavras, sabendo que elas não serão acreditadas. Se eu estivesse no seu lugar, não acreditaria nelas. Pararia de ler. Mas elas são a verdade e eu não posso escrever mais nada. Eu não sou louco e não sou mentiroso. Juro por tudo o que considero sagrado. Acho que deveria dizer que é a verdade de Deus, e é. Mas talvez não seja o deus que você está pensando. Depois que Martin e Fiona entraram em Fillory através do relógio de pêndulo, eu entrei com Helen, e foi assim que aconteceram todos os
eventos descritos em A garota que dizia as horas, mais ou menos – uma vida inteira cheia de aventuras, tudo ocorrido no espaço de cinco minutos em um corredor empoeirado de uma casa antiga durante a primeira guerra. A essa altura Jane já estava bem acordada e alerta de novo, então nós cinco passamos juntos. Já posso ver você negando com a cabeça: não, você está errado, eles sempre passavam de dois em dois. Bom, maldito seja você e Plover também. Muitas vezes todos nós fomos juntos. Por que não? A verdade é que houve muitas aventuras sobre as quais nunca dissemos a Christopher Plover, e muitas mais que, por suas próprias razões, ele não julgou adequado para incluí-las nos livros. Eu acho que elas não devem ter se encaixado perfeitamente no enredo. Não posso deixar de sentir que eu mesmo fui um pouco desprezado em Fillory e além. É insignificante de minha parte dizer isso, mas eu digo isso. Fiquei de vigília nas portas do Whitespire durante a Longa Tarde. Eu reivindiquei a Espada dos Seis, e então a quebrei no pico do Monte Merriweather. Mas você não saberia nada disso lendo Plover. Talvez eu não fosse um homem jovem bonito. Não era tão atraente como Martin. Não era um bom material, como dizem no ramo literário. Mas acho que se ele não escreveu de mim na minha melhor versão, ele também não escreveria sobre mim na pior. Ele nunca soube a pior. Nenhum deles conhecia, exceto Martin. Independentemente disso, todas as nossas vidas se separaram naquela noite. Elas se tornaram duplas. Um guardião mais alerta do que tia Maude teria notado a mudança: as conversas sussurradas, os rostos bronzeados e os cabelos sem cortes, o meio centímetro ou mais de altura que crescíamos durante uma viagem especialmente longa para Fillory. Mas ela não percebeu. As pessoas estão muito determinadas a ver apenas o que podem explicar. Qualquer um que tenha uma vida secreta – espiões, criminosos, fugitivos, adúlteros – sabe que uma fachada não é uma coisa fácil de manter, e algumas pessoas são melhores nisso do que outras. Descobri que eu tinha um dom para mentir para adultos; às vezes me pergunto se fui deixado de fora de certas expedições simplesmente porque podiam confiar em mim para cobrir os outros. Não sei quantas vezes me vi forçado a inventar histórias – bizarras, mas muito mais mundanas do que a realidade – para explicar por que um irmão ou outro não apareceu para ir à missa, aulas ou na hora do chá. Nós sempre estávamos ocupados disfarçando os assuntos fillorianos antes que pudessem ser descobertos. Nossos feitos de armas muitas vezes nos deixavam cobertos de arranhões e hematomas que também precisavam ser explicados. Certa vez, uma flecha abriu a canela de Martin quando ele estava perseguindo bandidos perto da Terra de Corian, e ele passou um mês convalescente em Fillory.
Talvez a maior indignidade tenha sido fingir que não sabíamos das coisas que aprendemos em Fillory. Ainda me lembro de que eu comecei a rir vendo Fiona, a grande caçadora de Queenswood, fingindo não saber segurar um arco, ficando enroscada e acabando caindo de bunda enquanto tentava esticar a corda de um pequeno arco de escola. Nós desistimos disso no final. Jane simplesmente não se importava o suficiente para se esconder, e um dia ela galopou para longe de sua aula de equitação, gritando como um centauro enquanto pulava sobre a parede de pedra no final do campo para desaparecer na floresta. Depois disso todos nós paramos de nos importar. Que as pessoas ficassem maravilhadas se fosse necessário. Muitas vezes, quando o caminho para Fillory estava fechado para nós, e tínhamos esgotado as possibilidades limitadas de tia Maude, sua casa, sua biblioteca, seus empregados e seus terrenos, atravessávamos a estrada e procurávamos um caminho através das árvores e através de uma abertura na cerca da casa do Sr. Plover. Agora eu sei que ele não poderia ter mais de quarenta anos, mas achávamos que ele era muito velho porque já tinha cabelos grisalhos. Acho que no começo ele estava com muito medo de nós – ele não tinha filhos e não estava muito acostumado com a nossa companhia. E no que diz respeito às crianças, éramos de fato muito infantis. Naquele momento em nossas vidas, Martin era a coisa mais próxima que tínhamos de um pai e, embora fizesse o melhor que podia, ele ainda tinha apenas doze anos. Nós éramos barulhentos, escandalosos e muito selvagens. Já no primeiro dia em que invadimos a casa de Plover, sentimos a encruzilhada que os americanos enfrentam na Inglaterra: eles têm medo demais dos ingleses para serem grosseiros com eles e ignorantes demais para saberem como se comportar educadamente. Nós exploramos isso. Sem querer nos expulsar, incapaz de nos entreter adequadamente, incapaz de pensar em qualquer coisa para fazer, ele nos ofereceu chá, embora ainda não fossem três da tarde. Não foi um bom começo. Nós jogamos crostas de pão, fizemos duelos com nossas colheres, rimos, sussurramos e fizemos perguntas rudes enquanto comíamos – mas comemos, porque era um chá muito bom, com biscoitos saborosos e marmelada caseira. Não acho que Plover realmente tenha gostado, mas ele era rico, não era casado e já tinha se aposentado dos negócios, devia estar quase tão entediado no país quanto nós. Então continuamos com nosso relacionamento. Na maioria dos sentidos, a ocasião foi muito mal sucedida, e não poderíamos ter adivinhado na época que seria a primeira de muitas. Agora percebo que nós, os cinco, devemos ter sido crianças muito zangadas: zangadas com a ausência de nossos pais, zangadas com a presença da negligente e de duvidosa reputação tia Maude e seus numerosos pretendentes, zangados com a guerra, zangados com Deus,
zangados com a nossa própria estranheza e aparente irrelevância. Mas as pessoas demoram a reconhecer a raiva nas crianças, e as crianças nunca a reconhecem em si mesmas, por isso se manifesta de outras maneiras. Seja qual for a razão, competimos para ver quem poderia ultrapassar os limites da propriedade o mais longe possível. Foi Fiona quem venceu a competição – e me lembro de que ela fez isso triunfalmente, com um prazer quase sensual – mencionando Fillory. Foi uma transgressão não só das regras terrestres, mas também das fillorianas. A falta de respeito não foi para com o Sr. Plover, que estava simplesmente perplexo, mas em relação à Ember e Umber, que nos fizeram jurar que manteríamos segredo. Até aquele momento, nenhum dos cinco havia dito a palavra “Fillory” perto de um adulto. Nós nem estávamos convencidos de que poderíamos fazer isso. A magia dos carneiros alcançaria o vazio entre os mundos e selaria nossos lábios? A resposta era não. Houve um silêncio ao redor da mesa. Fiona congelou, animada e tremendo de prazer com sua vitória, mas aterrorizada pelo seu pecado. Ela foi longe demais? Ninguém sabia. Esperamos pelo trovão da retribuição. — Fillory? — perguntou Sr. Plover inocentemente, em seus baixos tons de Chicago. Ele parecia feliz em encontrar uma pergunta a nos fazer. — O que na Terra é isso? — Ah — disse Martin sem dar importância, como se a admissão não lhe custasse nada. — Não fica na Terra. É um lugar que vamos às vezes. Encontramos dentro de um relógio. E depois disso a fronteira quebrou, e as paredes desabaram, e todos nós corremos adiante, as histórias caindo uma após as outras, nenhum de nós querendo ficar para trás. ••• Era realmente muito divertido, Plover escutando e depois de um tempo, fazendo anotações em algum papel solto. Seus olhos estavam arregalados com o tesouro de fantasia infantil com o qual ele havia tropeçado – ele deve ter se imaginado como um atual Charles Kingsley, o Charles Dodgson dos nossos dias. Ele nunca nos perguntou sobre isso diretamente, em vez disso, ele trabalhou em direção a isso de forma tortuosa – ele conversava, assentia e observava as sutilezas, mas sempre chegava o momento em que ele pegava um caderno, que nunca parecia ficar sem, cruzava uma perna sobre a outra, inclinava-se para frente e dizia, com seu sotaque estranho, nem americano nem inglês. “E quais são as últimas novidades de Fillory?” Mas isso fez diferença para nós, sermos capazes de contar a alguém, quem quer que fosse, até mesmo ninguém como Plover. Isso tornou
Fillory mais real para nós e menos um jogo. Pelo menos tínhamos público. A verdade é que às vezes inventávamos, rindo como histéricos quando pensamos no que Sir Hotspots ou o Rei Toco teriam pensado de nossos contos de pássaros feitos de folhas e gigantes que comiam nuvens. Que absurdo! Helen era particularmente ruim nesse jogo: só conseguia pensar em histórias sobre ouriços. Ouriços-do-mar, ouriços-terrestre, um ouriçode-fogo. Os ouriços eram a única extravagância da qual sua imaginação era capaz. Mas Plover engoliu tudo, indiscriminadamente. As únicas histórias que ele evitou foram as do enorme Cavalo Carinho de veludo, e essas eram verdadeiras. No final, nós o convencemos a escrevê-las também, mesmo porque não pudemos suportar a ideia de ferir os sentimentos do pobre animal. Olhando para trás agora, posso ver com mais clareza a tensão em que estávamos sujeitos, negociando continuamente entre duas realidades, uma em que éramos tratados como reis e rainhas, outra em que éramos crianças invisíveis e inconvenientes. O impacto dessa montanha-russa emocional teria causado um ataque a qualquer um. Plover tem as histórias divididas de maneira muito ordenada em cinco volumes diferentes, mas a realidade não era nada tão arrumada ou simples. Convenientemente, nas histórias de Plover só íamos a Fillory durante as férias de verão – exceto uma vez em A garota que dizia as horas – mas na verdade íamos lá o ano todo. Nunca era nossa decisão, não depois daquela primeira noite, fomos sempre que convinha a Fillory nos convocar. Nós nunca sabíamos quando a porta se abriria, verão ou inverno, dia ou noite. Às vezes passavam meses sem abrir um portal, e começávamos a nos perguntar se tudo estava acabado, essa grande alucinação, e era como se um dos nossos sentidos tivesse morrido. Ficamos cada vez mais irritados, discutindo uns com os outros, todos culpando alguém por ter arruinado, por ter ofendido Ember ou Umber ou infringido uma ou outra de Suas leis, arruinando assim a oportunidade para os outros. Às vezes, durante esses longos períodos, eu comecei a suspeitar que os outros estivessem se esgueirando para Fillory pelas minhas costas sem me avisar. Eu os imaginei me deixando fora do jogo. E então, sem aviso, tudo começou de novo como se nunca tivesse parado. Em alguma tarde indefinida, sem esperança ou interesse de qualquer tipo, Fiona ou Helen veio correndo para o quarto das crianças em um vestido formal que nunca tínhamos visto antes, com as bochechas coradas, cabelo em tranças extravagantes, gritando: “Adivinhem onde eu estava!” E então soubemos que ainda não havia acabado. Era tudo ou nada. Um ano, acho que deve ter sido em 1918, tivemos a sensação de passar metade do verão em Fillory. Tornou-se até enervante.
Você ia até o armário para encontrar uma camisa limpa e se via olhando para um daqueles belos campos ondulados fillorianos, ou uma de suas praias curvadas na forma de uma concha, ou no coração calmo de uma floresta à noite. Que eu saiba nenhum de nós jamais a rejeitou; nem sei se nós poderíamos ter feito isso. Uma ou duas vezes foi um incômodo – você estava prestes a ir para a cidade com a babá, te deram um xelim para doces, e o cocheiro lhe prometeu que depois te deixaria dar uma volta na grande égua cinza e você se abaixa para procurar a outra bota debaixo da cama e, antes que percebesse, estava se levantando do chão do Castelo de Whitespire. E quando voltava – três semanas se passaram para você, e apenas cinco minutos para todos os outros deste lado – você teria perdido o dinheiro e esquecido o que estava fazendo e todo mundo estaria zangado com você por fazê-los esperar. Naquele verão era como se Fillory estivesse com fome por nós, estendendo a mão e nos pegando com ganância sempre que podia. Era como um amante insaciável. Me lembro de ir à cidade em nossas bicicletas e ver um pequeno redemoinho de folhas voando em nossa direção. A única coisa que Martin teve tempo de dizer foi “porra...” antes de chegar a ele. O redemoinho o levou e também Helen para o outro lado. Essa foi a aventura do Cavaleiro Porco, mas não sei se Plover registrou isso ou não. Agora eu esqueci, tudo está misturado, e aqui na África não tenho os livros comigo. Lembro que as bicicletas nunca voltaram. Até a tia Maude ficou chateada com isso. ••• De certa forma, Fillory nos uniu, mas em muitos outros aspectos também nos separou. Entramos em discussões terríveis por estupidez. Fiona nos disse uma vez que Umber a levou em uma viagem especial, só para ela, para o Outro Lado do Mundo. Ele mostrou a ela um jardim maravilhoso, onde todos os pensamentos e sentimentos que já haviam sido pensados e sentidos existiam na forma de plantas florescendo e verdes enquanto passavam pela mente das pessoas e viviam em seus corações e depois murchavam, ficavam marrons e secas quando saíam de suas mentes, às vezes para florescer novamente em outra estação, às vezes perdidas para sempre. Era uma história adorável, e tinha que ser verdade, porque Fiona não poderia ter inventado. Ela não tinha esse tipo de imaginação. Mas isso deixou um gosto amargo na minha boca. Por que ela e não nós? Por que ela e não eu? Particularmente discutimos sobre Ember e Umber. Se acreditássemos neles, e nós certamente acreditávamos, então não seria uma blasfêmia ir à igreja no mundo real, e fazer orações a Deus, que afinal nunca nos mostrou um jardim mágico secreto, ou um castelo apenas nosso, nem
mesmo um único pégaso? Ou cada mundo tem seu próprio Deus ou deuses, e simplesmente tinha que adorar o Deus do mundo em que ele se encontrava? Ou todos os deuses eram realmente um deus na realidade? Diferentes aspectos de cada um? Bobagem, disse Jane, ela nunca tinha ouvido esse absurdo. Nós tivemos discussões furiosas e sibilantes sobre isso, e no final nós nos dividimos entre os carnerianos, como nós chamávamos aqueles que só adoravam os carneiros Ember e Umber, ou seja, Martin, Helen e Jane, e os deístas mais pragmáticos, ou seja, eu e Fiona, que rezávamos aos carneiros gêmeos em Fillory e a Deus no mundo real. Depois disso, Helen sempre estava encontrando razões para não ir à igreja. Jane, que tinha o zelo do mártir, iria de propósito e causava as cenas mais assustadoras com suas risadas e tinham que expulsá-la. Martin era simplesmente incondicional e insociável, onde quer que estivéssemos. De todos nós, acho que ele mais amava Fillory, mas era um amor feroz, zangado e vigilante, sempre alerta para a possibilidade de traição. Não quero defender Martin, mas acho que o entendo. Quando nossos pais nos abandonaram, foi Martin, mais do que ninguém, que preencheu o vazio em nossas vidas. Foi ele quem nos pegou quando caímos e aquele que nos cantava canções de ninar à noite. Mas quem preencheu o vazio para Martin? Só pode ter sido Fillory. E Fillory era uma mãe volúvel e caprichosa. Uma coisa sobre a qual não discutimos foi por que, entre todas as crianças do mundo, recebemos o presente de Fillory. Por que nós e não outras? Por que Ember e Umber e todo o resto dos fillorianos nos mostraram esse favor especial, quando em nosso próprio mundo éramos apenas pessoas comuns? Acredito que dos cinco, só eu estava preocupado com isso. Na medida em que eu, com dez anos, possuía uma alma, a questão me atormentava. Com certeza eu tinha cometido um erro, porque sabia que não era forte, esperto ou nem mesmo particularmente bom. Eu sabia que não merecia Fillory. E quando a verdade finalmente caísse, a punição seria realmente terrível, e nosso sofrimento seria assustador em proporção às bênçãos que nos haviam sido concedida. ••• Nem sequer notei nada até Martin me dizer. Estávamos na escola, St. Austol em Fowey, e ele me levou com ele em uma longa caminhada congelante ao redor do Prado Superior, um campo de rugby lamacento e congelado onde trocávamos confidências e discutíamos assuntos importantes. Fiquei grato por ter me levado com ele. Martin era mais velho do que eu por dois anos e os meninos mais velhos geralmente não reconheciam
irmãos mais novos em St. Austol. Estávamos a meio caminho da pista antes dele falar. — Você sabia, Rupes — disse ele. — Que faz três meses desde a última vez que eu passei por lá? Nós chamávamos de passar. Não havia necessidade de dizer onde. Ele falou com uma casualidade elaborada que eu aprendi a reconhecer como um sinal de advertência da parte dele. — Tanto tempo? — Sim, tanto tempo. Foi você e Fiona em agosto, depois Helen e Fiona, depois Jane e Fiona, depois Helen e porra você de novo duas semanas atrás. Onde isso me deixa? — Na Terra, acho. Não pretendia ser engraçado. — Isso mesmo, na porra da Terra! Estou bem preso aqui! Você sabia que eu tenho me metido em cubículos e armários e eu não sei onde mais, apenas no caso de acidentalmente encontrar uma maneira de entrar? Toda vez que vejo um esquilo, saio correndo atrás dele, para o caso de ser um esquilo mágico a caminho de Fillory. Os outros meninos acham que estou louco, mas não me importo. Eu faria qualquer coisa pra sair daqui. — Vamos, Mart — disse. — Você sabe como são as coisas. Sua vez voltará novamente. — Os carneiros disseram alguma coisa sobre mim? Estou em desuso, não estou? — Sério, eles não disseram nada. Enfim, metade do tempo eu não consigo entender o que eles dizem, mas tenho certeza que eles não disseram nada sobre você. Eu teria dito a você. — Mas você vai perguntar a eles, não vai? Quando você os vir da próxima vez? — Claro que vou, Mart. Claro que vou. — Tenho que fazer alguma coisa. Ele chutou um caroço preto e pesado como uma cabeça encolhida que poderia ter sido uma bola de críquete. — Mas olhe — disse. — Eu sei como você se sente, eu odeio quando não sou chamado. Mas aqui não é tão ruim assim, é? Digo, Fillory não é tudo. — Claro que é — Ele parou de andar e me olhou nos olhos. — É tudo. O que mais há? Isso? A Terra? — Ele pegou a bola de críquete e a jogou o mais forte que pôde. — Escute: você vai vir e me pegar? Ele agarrou meu braço – ele estava me implorando. — Você sabe que às vezes é tudo muito lento. Como daquela vez que estava você e Jane, e foi apenas os desenhos no papel de parede no início, você disse. Levou dez minutos pra irem. Você poderia vir me buscar quando começar. Nós iríamos juntos, como nos velhos tempos.
— Vou tentar, Mart. De verdade. — Mas nós dois sabíamos que não era assim que funcionava. Ember e Umber decidiam quem iria e isso era tudo. — Você foi o primeiro. Você começou tudo. Você encontrou o caminho. Nós dois sabemos que você irá de novo, a questão é apenas quando. Você é o Grande Rei. — Eu sou o Grande Rei — repetiu ele infeliz. Naquele momento eu acreditei, quase. Eu tinha dez anos e ele tinha doze anos, mas a diferença de idade entre nós sempre parecia maior. Olhei para Martin. Eu literalmente não conseguia me imaginar tendo algo que ele não tivesse, fazendo algo que ele não podia fazer. Mas no verão seguinte ficou claro que algo havia mudado entre Martin e Fillory. O romance acabou. Em todo aquele ano letivo ele só tinha ido uma vez, e então os carneiros o deixaram ficar apenas dois mesquinhos, relutantes e entediantes dias. Ele passou os dois dias de mau humor, arruinando-os com ressentimento, embora soubesse que provavelmente seriam os últimos. Ele mal saiu da biblioteca do palácio. Os carneiros evitavam sua companhia. Ele estava a caminho da saída, e todos nós sabíamos disso. Não teria sido tão ruim, exceto que, de todos nós, era Martin quem mais precisava de Fillory. Honestamente, naquele momento, acho que Fiona poderia ter recebido o mesmo. Fillory já estava ficando pequena para ela. Para Jane, que tinha cinco anos quando começou, era apenas normal. Ela não podia imaginar a vida sem Fillory – quase não a sentia como algo especial. Se os carneiros tivessem expulsado Helen, ela teria aceitado, sem fazer perguntas, sua vontade será feita. Ela teria desfrutado de um prazer perverso em seu martírio. Quanto a mim, nunca acreditei que duraria de qualquer maneira. Todos os dias, a cada segundo, eu esperava que acabasse. De certa forma eu teria ficado aliviado. Talvez fosse apenas que Martin era mais velho, ele tinha vivido mais tempo sem Fillory. Ele se lembrava de como era a vida sem isso, e entendia melhor do que o resto de nós como era estranha e preciosa. O resto de nós tinha amigos fora da família, no mundo real, mas Martin tinha cada vez menos. Ele evitou suas lições e encheu seus cadernos de exercícios com ursos alados – eles foram vistos circulando sobre os Dentes de Galinha – e brasões das armas fillorianas. Um atleta nato que mal tinha que se esforçar em esportes, mas ele parou de tentar em tudo. Ele desprezou tudo neste mundo, amontoou desprezo nisso. Ele até comia cada vez menos, como se uma mordida de torta de carne o prendesse na escuridão, como Perséfone. Ele vivia por Fillory. Mas Fillory não vivia por ele. Na minha vida posterior, conheci alcoólatras, mas do que alguns, e reconheci em seus rostos algo do que vi em Martin. Os profetas leais de um deus indiferente. Martin poderia ter caído em desgraça com Fillory, mas nunca com o
Plover – seja lá o que tenha acontecido no Whitespire, na Casa de Darras ele sempre foi o favorito. A afeição de Plover por ele parecia crescer em proporção inversa à dos carneiros, ou talvez fosse o contrário. Seja qual fosse o motivo, Martin foi o único de nós que o Sr. Plover havia convidado para visitá-lo sozinho. O que eles discutiram em seus almoços e chás privados, Martin nunca me contou, mas até onde sei esses encontros não lhe deram nenhum prazer especial. Ele frequentemente retornava deles em um estado de melancolia, e às vezes inventava desculpas para evitá-los completamente. Agora, é claro, como um homem adulto com algum conhecimento do mundo, não posso deixar de me perguntar se o interesse de Plover em meu irmão era inteiramente apropriado. Tal especulação é inevitável, mas agora que ambas as partes estão mortas, ou como se estivessem mortas, acho que devemos ser caridosos, e presumir que Plover simplesmente tinha um interesse paternal por esse menino brilhante, sensível e sem pai. O interesse de um mentor. No entanto, Martin e eu só falamos sobre isso uma vez, e a lembrança não é agradável. Perguntei a ele sobre o que eles falavam, os dois, em suas visitas, e ele soltou: “Se Plover pedir para você ir sozinho, não vá. Nunca vá para aquela casa sozinho.” Ele me fez prometer e eu fiz. Embora Plover nunca tenha me pedido. Na época, pensei que se tratava de seu orgulho – pensei que ele estava protegendo seu status de favorito. Mas agora acho que é possível que ele estivesse tentando me avisar, até me proteger. Eu gostaria de saber. Não vejo meu irmão há vinte e cinco anos. Mas às vezes, refletindo sobre o passado, acho que isso tinha que ser parte da necessidade de Martin por Fillory, seu vício em Fillory. Ele foi lá para escapar do nosso santo benfeitor Christopher Plover, e para encontrar mentores melhores, mais sábios, ou pelo menos mais seguros, na forma de carneiros. E se esse era o caso, não posso deixar de me perguntar também se, em uma terrível ironia, era precisamente por isso que os carneiros pararam de levar Martin para Fillory. Martin estava fugindo de Plover, mas Fillory não o queria mais. Porque Plover o tinha contaminado. ••• Naquela época, essas preocupações e dúvidas não me incomodavam, ou não muito. Não o suficiente. Nos anos desde então, as sombras se tornaram profundas e longas, mas na época o sol de Fillory estava em seu zênite, e eu era criança, e quaisquer sombras eram pouco visíveis. Naquele verão, o assunto do misterioso exílio de Martin foi muito sussurrado na relativa privacidade de nossos grandes e ruinosos quartos de Dockery, especialmente quando ele não estava lá. Qual era a causa? E o que poderíamos fazer a respeito?
Todos nós tentamos levantar o assunto com os carneiros, mas sem sucesso. “Este não é o seu tempo” diziam Eles. “Quando chegar, ele virá.” Etcetera. Houve uma grande quantidade desse tipo de conversa, e era tudo lixo. A devota Helen pensou que era uma pena, mas era a vontade dos carneiros, e não era assunto nosso questionar a sabedoria Deles. Jane ficou do lado de Helen, algo que eu acredito que ela se arrependeu quando ficou mais velha. Fiona não queria se opor contra Ember e Umber, mas ela pensou que, se lhes perguntássemos formalmente, como um grupo, Eles poderiam concordar em trazer Martin de volta, ou pelo menos nos dizer qual era o seu pecado e lhe dar uma chance de se redimir. Todos nós tínhamos feito um grande serviço para os carneiros, lutando por Eles, arriscando nossas vidas por Eles. Eles nos deviam muito. Com Martin fizemos um grande espetáculo de preocupação compassiva, e estávamos realmente compassivos e preocupados, mas algumas das preocupações também eram por nós mesmos. Martin estava ficando mais velho. Ele estava à beira da puberdade, que era algo sobre o qual sabíamos muito pouco, mas sabíamos que a idade adulta viria a seguir, e nunca ouvimos falar de nenhum adulto fazendo a viagem de nosso mundo para Fillory. Entendemos instintivamente que Fillory era um mundo que trabalhava com inocência, que a exigia como um motor exige gasolina, e Martin estava ficando sem ela. Mais cedo ou mais tarde todos nós ficaríamos sem inocência. A idade adulta viria a seguir para Helen e depois para mim. Como todas as crianças, éramos pequenas criaturas egoístas. Espero que isso de alguma forma explique, se não desculpar, o que fizemos em seguida. Martin fez o que fez, mas nós o ajudamos. Nós queríamos que ele fizesse isso, porque estávamos com medo. Fizemos um pacto: na próxima vez que algum de nós fosse convocado, faríamos o que pudéssemos para manter a porta aberta e tentaríamos fazer Martin passar. Deixaríamos a porta presa, assumiríamos o controle da ponte que ligava a Terra e Fillory, e ajudaríamos Martin a atravessá-la. Provavelmente não funcionaria, mas quem poderia saber se não tentássemos? Isso iria contra o espírito do encantamento, mas com encantamentos nunca se sabe. Às vezes o espírito era o que importava. Mas às vezes eram apenas letras em uma página, palavras no ar, e era apenas uma questão, como disse Humpty Dumpty, de quem vai mandar.
CAPÍTULO 18
Esta é uma história que nunca contamos a Christopher Plover. Alguns dias você pode sentir o chegada de um portal. Para todos os outros, o dia podia ser ensolarado e claro, mas para nós cinco, o ar parecia pegajoso e carregado como antes de uma tempestade. Você poderia sentir o mundo se preparando para algo, aproximando-se de um ponto de desacordo. Então nos olharíamos com conspiração e puxaríamos nossas orelhas – esse era o sinal combinado – e a partir daí não serviríamos para mais nada. A loucura tomou conta de nós, e nós não parávamos quietos, incapazes de sentar, ler ou seguir o fio de nossas lições. Nada mais importava até que alguém desaparecesse e a tensão finalmente se quebrasse. Outros dias Fillory pegava a todos de surpresa. Você nem via nada vindo. Você pode até não estar com disposição para isso, mas de repente lá estaria, e tudo o que você podia fazer era ceder ao seu feitiço enquanto ele nos separava deste mundo. Foi um daqueles dias, de segunda classe, quando aconteceu: um sábado preguiçoso em que o sol de verão parecia estar consumindo toda a energia do mundo, nos deixando apáticos e imóveis. Nós não podíamos brincar, não podíamos estudar, não podíamos parar de bocejar. Até mesmo o esforço para sair e visitar o gigante peixinho dourado com olhos esbugalhados no lago cercado de pedra nos fundos da casa teria sido inimaginável. Fiona e eu estávamos na biblioteca, que era uma sala agradável, de dois andares, com duas escadas de correr que, quando enroscadas uma na outra em alta velocidade, produziam um estrondo muito satisfatório. Mas, como biblioteca, era em grande parte inútil. Os livros estavam trancados em armários – era possível ver suas lombadas através de grades de metal, como uma cidade proibida escondida na selva, mas você não podia chegar até eles. Até onde eu sabia ninguém podia: as chaves estavam perdidas. Havia apenas um livro na biblioteca que você podia ler – de alguma forma ele escapou de ser encarcerado com o resto deles. Era um catálogo de conchas marinhas, um volume enorme que eu mal conseguia levantar, e sua lombada soava como uma pistola quando você o abria. As fotografias eram em preto e branco, mas cerca de uma em cada cinquenta
páginas haviam sido coloridas à mão, e essas conchas tinham uma sensação de intensidade especial. Uma sensação filloriana. Naquela amanhã, Fiona e eu estávamos folheando o livro. As páginas eram grossas e pegajosas no calor; elas eram feitas de um papel especial brilhante que era quase emborrachado, como as folhas de uma enorme planta tropical. Como de costume, debatíamos os méritos estéticos das várias conchas e as possíveis propriedades venenosas de seus vários moradores, até que Fiona parou de repente. Ela tinha deslizado a mão sob a próxima página, esperando que fosse colorida, mas seus dedos só encontraram ar vazio. Era como se o livro tivesse subitamente se tornado oco. Fiona olhou para mim e puxou sua orelha. A página virou sozinha, virada por uma rajada de vento por baixo dela. De Fillory. O portal foi criado diretamente na enorme página do livro. Apropriadamente, abriu-se para o litoral – reconheci imediatamente como a costa norte de Whitespire, onde havia uma longa e elegante ponte de rocha viva que levava a uma ilha próxima. Estávamos olhando diretamente para a areia branca e fina como pó de cima, e o desejo de pular imediatamente era quase insuportável. Enquanto observava, Fiona não pôde resistir a esse impulso – esquecendo Martin, esquecendo nosso pacto, ela subiu na cadeira, então na mesa e pulou pela página como se estivesse pulando de uma pedra alta em uma lagoa. Eu não fiz isso. Com um esforço titânico, me afastei, sentindo como se estivesse deixando minha pele para trás e corri para encontrar meu irmão. Ele estava sozinho em um quarto de hóspedes desocupado. Ele deveria estar trabalhando em um esboço de um vaso para uma aula de desenho, mas quando cheguei ele estava simplesmente observando indiferente enquanto o vento empurrava uma cortina e depois a sugava novamente. Levantou-se assim que eu entrei. Nenhuma palavra foi necessária. Ele sabia por que eu tinha vindo. Eu tinha certeza que o portal seria fechado, mas quando entramos juntos correndo na biblioteca, ele ainda estava lá, esperando por nós, ou pelo menos esperando por mim. De longe, a visão da praia através do livro aberto era uma impossibilidade de perspectiva, um trompe l’oeil. Fez coisas estranhas à minha percepção de profundidade. Quando Martin se aproximou, o livro se moveu sobre a mesa e tentou se fechar sozinho – parecia ofendido, como se o tivéssemos surpreendido em um estado de nudez. Mas Martin estava preparado para isso. Ele apontou para ele com três dedos e gritou uma frase que eu não entendi – poderia ter sido a linguagem dos anões, tinha aquelas fricativas estridentes que os anões usam. Até então, eu não entendia que ele estava estudando magia. Talvez ele não estivesse estado apenas de mau humor na biblioteca de Whitespire, afinal.
O livro tremeu, esforçando-se agora para se fechar. Martin e o livro, Martin e Fillory, estavam lutando, e era uma visão assustadora, porque eu amava os dois. Martin o agarrou com as duas mãos e puxou, grunhindo, tentando rasgá-lo ao meio – acho que ele pensou que não conseguiria ser fechado assim. Mas era muito grosso e a encadernação era muito forte, então, em vez disso, ele forçou suas mandíbulas para trás como um homem lutando com um jacaré e o segurando. Ele subiu na mesa e lentamente, desajeitadamente, conseguiu colocar seus pés e depois suas pernas e os quadris através da porta na página. Ao fazer isso, o livro começou a grunhir horrivelmente, como se o erro, a violação, o machucasse fisicamente. Quando Martin já tinha passado completamente, achei que o livro se fecharia, mas em vez disso ele se abriu de novo, flácido e infeliz por ter sido forçado a comer uma refeição que ele não queria. Envergonhado, eu subi rapidamente e caí na praia. Olhando para trás, vi Jane aparecer na porta da biblioteca e nossos olhos se encontraram no espaço entre os mundos, mas já era tarde demais para ela. O livro teve Chatwins suficientes por um dia e se fechou sobre minha cabeça. O portal desapareceu. A maré estava baixa e o vento estava fraco. O mar era plano como uma cama feita. Parecia que eram onze horas da manhã. Martin já estava na metade das dunas. Ele teve muito tempo para pensar no que faria em Fillory, se alguma vez tivesse a chance. Ele estava lá no tempo emprestado, e ele não iria desperdiçá-lo. — Ei! — Chamei atrás dele. — Espere por nós! Fiona também estava observando ele, mas ela não o estava seguindo. A piada tinha ido longe o suficiente para ela. — Ele não vai pro Whitespire — disse ela baixinho. — Não? Martin! — gritei. — O que você está fazendo? — Acho que você deveria ir com ele — disse Fiona. — Alguém deveria. Martin havia parado no topo e estava nos considerando. — Bom, venha, então — disse ele. — Se você quiser vir. Foi o que eu fiz. Fiona ficou onde estava. ••• Nada aconteceu do jeito que Plover disse depois. Todo esse negócio com o Sir Hotspots em A floresta voadora é sua invenção, pura ficção. Na verdade, havia apenas Martin e eu. Eu fui a única testemunha. O passo de Martin era imperturbável, uma caminhada determinada, e eu tive que pular a cada poucos passos para acompanhá-lo.
— Pra onde estamos indo? — Eu não vou voltar — disse ele. — O quê? — Eu não vou voltar pra Inglaterra, Rupes. Eu odeio, odeio a Inglaterra, e todo mundo lá me odeia. Você sabe disso. E se eu voltar pra casa nunca mais voltarei aqui outra vez, nós dois sabemos disso. Você viu o livro, quase cortou minhas pernas. Se os carneiros quiserem que eu vá embora Eles terão que me expulsar e quando Eles tentarem, eu juro que Eles terão que lutar. Não havia sentido em discutir com ele. Havia um pouco de nosso pai em Martin, e naquele momento ele parecia nosso pai amaldiçoando os alemães, algo que costumava fazer com frequência e por muito tempo. — O que você vai fazer? — Qualquer coisa — respondeu ele. — Tudo. O que precisar ser feito. — Mas o quê? — Tem algo que quero tentar. Eu tive uma ideia sobre uma troca. — Uma troca. Com quem? O que você tem pra trocar? — Eu mesmo! — rosnou ele. — Pelo o que eu valho. — E então, com menos raiva, na voz de Martin, o garotinho, que existiria por apenas uma hora ou mais. — Você vem comigo? — Tudo bem. Pra onde estamos indo? — Vamos ver alguém. Quem sabe, pode ser que você possa fazer uma troca com ele também. Ele olhou por cima do ombro para se certificar de que Fiona não havia nos seguido, então rapidamente desenhou um quadrado no ar com os dedos. A forma tornou-se uma janela, com vista para uma paisagem pantanosa, e ele passou por cima do peitoril e atravessou a janela. A velocidade com que ele fez isso me surpreendeu profundamente. Nós vimos magia praticada por feiticeiros fillorianos, mas nenhum de nós a havia estudado, ou não tanto quanto eu sabia. Martin devia ter praticado secretamente por meses, levando uma vida inteira que ele havia escondido de nós. Uma vida secreta dentro de uma vida secreta. Eu o segui. — Onde estamos? — Pântano do Norte — disse ele. — Vamos. O chão estava lamacento, mas Martin abriu caminho com confiança, sempre o intrépido explorador. Tentei pisar onde ele pisava, mas perdi o equilíbrio e apoiei uma mão no chão, ela ficou coberta de lama preta. Logo nossos sapatos estavam cheios de água, e o pântano os sugava como se gostasse do sabor. Eu não estava vestido para isso; tive a sorte de ter pelo menos sapatos. Depois de um quarto de hora, subi em uma pedra redonda, um oásis de
solidez, e parei. Na frente, havia apenas poças pretas, junco, mais poças pretas e depois água aberta. — Mart! Pare! Ele se virou e acenou para mim. Então deu uma última olhada ao redor dele no horizonte, juntou as mãos na frente dele, como uma oração, e mergulhou de cabeça em uma poça. A água mal parecia profunda o suficiente para alcançar seus tornozelos, mas o engoliu completamente e tão facilmente como se fosse um oceano. Eu observei a superfície assentar, se fechar atrás dele e ficar lisa novamente. Só então fiquei realmente com medo. — Mart! Martin! Deixei meus sapatos na pedra – até onde sei ainda estão lá – me arrastei até onde ele havia desaparecido e empurrei meu braço na poça até o ombro. Não tinha fundo. Respirei fundo e mergulhei minha cabeça. Meu ouvido interno começou a zumbir. Tentei me equilibrar e em vez disso, caí para frente. Houve um momento de náusea e confusão sem peso, então eu estava deitado de costas no chão molhado, ofegando como um peixe. Aos poucos, tudo começou a se endireitar. Estava deitado na parte de baixo do pântano – o lado oposto da planície lamacenta que eu tinha acabado de atravessar. A gravidade virou de cabeça para baixo. Se olhasse para baixo, estava olhando para cima através das poças, o céu azul de Fillory. Se eu olhasse para cima, só havia escuridão acima. Era noite no mundo sob o Pântano do Norte, e diante de mim, através de uma planície de lama preta e poças cheias de sol, havia um castelo de fadas feito de pedra negra. Suas torres apontavam para baixo em vez de para cima, mas o mesmo acontecia com tudo, incluindo eu. Isso era novo. Martin nos levou a algum lugar completamente estranho. Fillory era uma terra de maravilhas, mas esse lugar tinha uma qualidade estranha que só posso descrever como incorreta. Era um lugar que não deveria ter existido, em algum lugar fora da borda do tabuleiro onde você não poderia colocar uma peça de jogo. Está não era uma aventura comum, de outra lenda em progresso. Eu já sabia que Plover nunca ouviria falar disso. Isso estava acontecendo fora dos livros. Poderia ter voltado, mas sabia que, se fizesse isso, nunca mais teria um irmão. Também sabia que o que estava acontecendo com ele também aconteceria comigo. Eu teria mais dois anos, três no máximo. Não queria que o jogo terminasse ainda. Seguiria Martin a uma distância segura, pensei, e observaria o que ele estava fazendo. Talvez ele tivesse encontrado uma forma de sair do labirinto. Me levantei, lutando contra a tontura. Martin estava me esperando na frente da grande porta do castelo. Ele estava encharcado e sorridente,
embora parecesse um pouco triste. Andei na direção dele, evitando as poças. — É isso — disse ele. — Assim como eles disseram nos livros, mas é diferente quando você realmente vê. — Quem disse isso? Martin, o que é isso? — O que parece? — disse ele, presunçosamente. — Bem-vindo ao Castelo de Blackspire. — Blackspire. Claro que era. Era exatamente o mesmo que Whitespire, pedra sobre pedra, mas as pedras eram pretas e as janelas estavam vazias e escuras. Era Whitespire de cabeça para baixo, de costas e no meio da noite, o jeito que devia parecer quando estávamos todos dormindo e sonhando. Martin tirou o suéter encharcado e o soltou com um baque na pedra lisa. — Mas quem mora aqui? — Não tenho certeza. No começo eu pensei que poderia ser versões invertidas de nós. Sabe – Nitram, Trepur, esse tipo de coisa. Como é Fiona invertido? Não consigo fazer isso na minha cabeça. E nós teríamos que lutar contra nossos números opostos até a morte. Mas estou começando a pensar que não é nada disso. — Bom e graças a Deus por isso. E como é? — Não sei — disse ele. — Vamos descobrir! Puxou uma das grandes portas e abriu silenciosamente em dobradiças lubrificadas. O grande salão dentro era iluminado por tochas. Lacaios pálidos e silenciosos, com libré preta, estavam encostados nas paredes. — Certo — Martin não parecia nem um pouco envergonhado. Acho que ele já havia superado o medo. Ele levantou a voz – estava cheio de uma espécie de coragem desesperada. — Seu mestre está em casa? Os lacaios inclinaram a cabeça, silenciosos como peças de xadrez. — Bom. Diga a ele que o Grande Rei chegou e seu irmão. Nós vamos esperar por ele em sua sala do trono. E acenda alguns malditos fogos, está frio aqui. Dois deles se retiraram, para trás, mostrando a devida deferência. Ou talvez todos andassem de costas no Castelo de Blackspire. Nós estávamos muito longe do caminho, fora do roteiro e tivemos que improvisar. Tudo o que havíamos feito até agora em Fillory era como um jogo, um ensaio, uma boa diversão e depois rir todo o caminho até o berçário. Mas Martin estava entrando em um tipo de jogo mais obscuro. Era um jogo duplo: ele estava tentando salvar sua infância, preservá-la e aprisioná-la em âmbar, mas para fazer isso, estava recorrendo a coisas que faziam parte do mundo além da infância, cujo contato o deixaria ainda menos inocente do que ele já era. O que isso faria com ele? Ele não seria nem uma criança nem um adulto, nem inocente nem sábio. Talvez essa seja a definição de um monstro.
Não queria segui-lo. Eu queria ficar para trás e ser criança por mais algum tempo. Mas eu não suportaria perdê-lo também. Ele me levou para as profundezas do castelo – nós dois sabíamos o caminho. Arrastei meus pés, mas ele continuou caminhando como se estivesse indo para a sua própria festa de aniversário. Ele ia acabar com isso, de um jeito ou de outro, e ele não podia esperar. Ele estava tão aliviado que estava quase brilhando. — Não gosto disso, Mart. Quero voltar. — Então vá — disse ele. — Mas não há como voltar atrás pra mim. Esta é minha última posição. Estou quebrando as regras, Rupe. Ou eu as quebro ou elas me quebram. Não me importo mais, desde que Ember e Umber decidiram me punir por nada. — Que regras? — Eu estava à beira das lágrimas. — Não entendo! Ele nos conduziu a um vestiário ao lado da sala do trono, uma câmara onde, no Castelo de Whitespire, no mundo da luz e do ar, dignitários estrangeiros que visitavam Fillory estariam à nossa disposição. Havia fogo lá e fiquei grato pelo calor. Havia também roupas secas, nas cores de Blackspire, e Martin começou a se despir. Eu mantive minhas roupas molhadas. — Vou te contar como cheguei a isso — disse ele. — Eu estava pensando, não é engraçado que nós somos reis e rainhas aqui? Somos crianças. Nós não somos nem daqui. Não há nada de especial em nós, não que eu possa ver. Mas devemos ter algo especial, não devemos? Algo que não conseguem em Fillory. — Eu acho. Completamente nu, sem vergonha, ele aqueceu a pele nua e pálida na frente do fogo. Ele estava mais feliz do que eu o tinha visto em meses. — O que é? Não tenho nem ideia. Minha humanidade, eu acho. Mas seja o que for isso não significa nada pra mim, então vou ver o quanto vale pra eles. Eu coloquei à venda, no mercado aberto, e agora encontrei um comprador. Estamos aqui pra ver o quanto posso conseguir por isso. — Não entendo. Você vai comprar o caminho de volta pra Fillory? — Ah, não estou fazendo assim. Não estou pedindo favores. O que eu quero é poder, poder suficiente que nem mesmo Ember e Umber possam me mandar pra casa. — Mas Ember e Umber são deuses. — Então talvez eu me torne um pouco deus também. — Mas e se...? — Engoli em seco, uma criança simples que eu era. — Se você vender parte de si mesmo, você não será mais Martin? — E se eu não for? — disse ele sem se importar. — O que há de bom em Martin? Todo mundo odeia ele, incluindo eu. Eu preferiria ser outra pessoa. Qualquer outra. Mesmo que não seja ninguém.
Ele pegou uma camisa seca de uma pilha de roupas arrumadas em uma cadeira. — Eu acho que sou como um daqueles convidados nas festas da tia Maude, aqueles que não vão pra casa quando acaba, nem mesmo depois que ela apaga as luzes. Mas eu não tenho outra casa pra ir, não mais. Quando olho pra Inglaterra agora, vejo um lugar morto, Rupert. Um terreno baldio. Eu não quero viver em um terreno baldio. Preferiria morrer no paraíso. As roupas pareciam luxuosas e combinavam perfeitamente com ele, como eu sabia que iriam: cores frias e sombrias, veludos pretos e pequenas pérolas prateadas como bolinhas de açúcar usadas para decorar bolos. Ele parecia muito com um rei. — Mart, vamos — disse, embora soubesse por experiência que implorar a ele só o deixaria mais irritado. — Deixe isso em paz. Deixe ser como era antes. — Não. Ele apontou um dedo para mim. Eu me senti mais de dois anos mais jovem do que ele – em algum momento, ele aprendeu o segredo de uma raiva adulta mais rica e poderosa. — Não é como era antes! Nunca mais será! Eles mudaram as regras pra nós, então, no que me diz respeito, a sorte está lançada. — Ele apertou o cinto com força. — Se Eles pedissem desculpas, se mostrassem algum arrependimento, então talvez. Talvez. Se pelo menos Eles explicassem o porquê. Mas Eles não irão. Não Eles. Então eu estou indo pra guerra, como papai. Eles não podem nos dar Fillory e depois tirá-la novamente. Os carneiros caíram baixo, mas eu cairei mais baixo. Eles são ruins, mas eu serei pior. Ele abriu as duas portas da sala do trono. — Mart, quem mora aqui? — perguntei. — De quem é essa casa? Ele entrou; eu fiquei na porta. As paredes da sala do trono estavam alinhadas com mais lacaios, imóveis e com as pálpebras pesadas como rãs. As tochas queimavam estranhamente, não quentes e amarelas, mas faiscando e crepitando como fogos de artificio de fim de ano. — Aqui estou! — gritou Martin. Eu não pude ver seu rosto, mas eu podia ouvir a alegria em sua voz – estava saboreando a raiva e a vergonha. Eu acho que ele estava contendo-as por um longo tempo, tentando não sentir nada, e depois de tanta dormência, qualquer coisa parecia doce, até mesmo dor. — Bom, vamos! — Ele abriu bem os braços. — Eu tenho o que você quer. Venha e pegue! Eu acho que sabia então porque Eles fizeram isso – porque Ember e Umber não nos deixariam ficar em Fillory. Não é porque éramos velhos demais ou pecadores demais. Não era para que pudéssemos espalhar a sabedoria Deles em outro mundo, nosso mundo. Não era porque estar em
Fillory te fizesse feliz, e dessa forma um excesso de felicidade era tão perigosa quanto um excesso de tristeza. Isso é uma mentira, que nem mesmo Ember e Umber nos disseram. Não, era que Fillory era cruel, tão cruel quanto o mundo real. Não havia diferença, apesar de todos fingirmos que havia. Não havia nada justo em Fillory, assim como não havia nada justo sobre os pais das pessoas irem à guerra, e suas mães enlouquecessem, e a maneira como nós entre todos os animais, sofríamos a maldição de desejar um lugar melhor, algum lugar que nunca existiu e nunca existiria. Fillory não era melhor que o nosso mundo. Apenas era mais bonito. Até então não pensava nessas coisas, mas senti todas elas quando olhei além de Martin, para os olhos dourados do grande carneiro Umber, o carneiro da sombra. O Castelo de Blackspire era sua casa. Umber era o comprador de Martin. Para seu crédito, Martin não ficou nada chocado. — Ah, é você, não é? — disse ele. — Bom, vamos lá, seu velho falso. Está tudo aqui e só um pouco sujo. Está pronto? — Sim — Veio à resposta retumbante. Não era como a voz de Ember: mais alta, calma e civilizada, até mesmo urbana. — Estou pronto. — Então vá em frente. Pegue. Tome tudo, seu maldito covarde e me dê o que eu quero! Então eu desisti. Poderia ter tentado uma última vez mudar a mente de Martin. Poderia ter tentado arrastá-lo para fora daquela sala. Poderia ter tentado tomar o lugar dele, ou lutar contra um deus, mas não fiz isso. Eu estava com medo e fugi. Corri pelos corredores vazios do palácio em sombras e não parei até que eu estava deitado, meu rosto na lama fria na beira do Pântano do Norte. Nunca mais vi meu irmão novamente. ••• O desaparecimento de Martin fez manchetes em toda a Inglaterra, relegando até mesmo a notícia da guerra ao segundo plano. Os ingleses adoram uma boa tragédia, especialmente quando se envolve uma criança, e isso os fascinou brevemente. Detetives foram enviados para Fowey de Penzance, Londres e de mais longe. A Dockery House estava de cabeça para baixo, do sótão ao porão, e a casa de Plover também. Notícias circuladas. Cães foram soltos. Jardins foram escavados. Lagoas e fontes foram drenadas. Homens de constituição magra desciam a poços abandonados. Um incrível número de coisas perdidas foi recuperado: bicicletas, animais de estimação, chaves, estranhos objetos de prata, um ou dois pequenos criminosos, até mesmo um fagote que havia sido roubado e depois aparentemente abandonado em uma escarpa quando viram que era impossível vender. Como o fagotista que tanto ansiou por sua perda já
havia morrido, a polícia depositou o instrumento temporariamente e depois permanentemente na Dockery House, como se fosse um pedido de desculpas – uma espécie de substituto para a criança que eles nunca conseguiram encontrar. Jane, de um jeito inescrutável, aprendeu a tocá-lo razoavelmente bem. Uma nuvem de suspeita se assentou em Christopher Plover, mas com o tempo ela se dispersou como acontece com as nuvens, parando em seu caminho para sombrear alguns dos indivíduos menos limpos da localidade, mas nunca conclusivamente. Verdade seja dita, Plover estava um pouco aflito quando Martin desapareceu. Não houve provas e nenhuma prisão foi feita. Nós, crianças, sabíamos onde Martin havia ido, é claro, mais ou menos, embora eu nunca tivesse contado as outras tudo o que eu sabia. Nunca disse a elas que foi Umber quem aceitou a oferta de Martin. Não tive coragem de fazer isso. Acho que os adultos sabiam que estávamos escondendo algo, mas eles nunca poderiam colocar seus dedos grandes, desajeitados, tateando sobre o que era. Era o nosso segredo compartilhado. Mas não nos sentimos da mesma forma sobre o que ele fez. Helen em particular – sempre a arqui-carneriana – foi contundente sobre isso, difamando Martin porque em seu julgamento ele havia desafiado a vontade de Ember e Umber. Mas acredito que todos nós entendemos isso e até, de certa forma, o admiramos. Eu sei que fiz isso. Deve ter exigido grande vontade e desenvoltura para procurar Umber, fechar o negócio e depois executar seu plano. Martin era muitas coisas, e só Deus sabe o que ele é agora, mas Martin não era estúpido e não era um covarde. Mesmo assim, era difícil conciliar a fuga de Martin para Fillory com o dano que ele causou ao mundo real. Um dos segredos que Martin deve ter aprendido abaixo do Pântano do Norte era como não se preocupar com algumas coisas, e havia poder nisso, o poder de viver como se suas ações não tivessem consequências. Coube a nós testemunhar as consequências e elas eram horríveis. Os nervos de nossa mãe eram sempre frágeis e o desaparecimento de Martin finalmente e permanentemente a aniquilou. Nós a víamos mais e mais raramente, e quando a víamos, era em um ou outro ambiente institucional desanimador, ela nunca deixou de nos acusar de manter Martin longe dela. Seus próprios filhos pareciam sinistros e estranhos para ela. Ela sabia de alguma forma, que nós sabíamos. E ela estava certa. Mas nunca mais voltei a ver o Martin. Sempre o procurava, embora com o passar do tempo eu ficasse cada vez mais preocupado com o que aconteceria se o encontrasse. Ele poderia ou não se mostrar para mim. Nunca entendi porque não. Ele certamente teve a chance. Tivemos mais aventuras para viver em Fillory, a maioria das quais terminou em O mar secreto e A duna errante.
Eu não a abandonei. Mesmo depois do que tinha visto naquele dia, mesmo com meu coração meio quebrado, ainda não podia dizer não a Fillory. E então Fillory disse não para nós. No final de O mar secreto, eu tinha doze anos e, depois disso, nunca me convidaram para voltar. Um por um, nos tornamos velhos demais. Helen teve uma aventura final, na companhia de Jane, e as duas garotas retornaram com uma caixa de botões mágicos que Jane alegou que podiam dar entrada livre para Fillory para sempre. Mas Helen considerou os botões uma perversão mágica, ela pensou que usá-los seria uma blasfêmia contra os carneiros, e ela se livrou deles imediatamente e não conseguimos convencê-la a divulgar seu esconderijo. Seus argumentos eram muito carnerianos, e todos nós nos posicionamos contra ela, incluindo Jane. Houve um cisma e depois disso, nós, as crianças Chatwin, nunca nos tornamos tão próximas novamente, e nossa integridade como tribo diminuiu ainda mais. Talvez a consequência mais estranha do desaparecimento de Martin tenha sido que Plover começou a escrever. Seja lá o que tenha acontecido entre ele e Martin, quando isso acabou, a escrita começou e um dia Plover nos surpreendeu com um livro. Ele havia imprimido secretamente. Ele chamou de O mundo por trás das paredes. A capa era seu próprio desenho encantadoramente amador de Martin e do relógio de pêndulo. Vai parecer estranho, mas depois da surpresa inicial, o livro nunca nos interessou muito. Demos uma olhada rápida, tiramos sarro das ilustrações – Plover tinha as ideias mais ignorantes e sentimentais da aparência de um anão – mas nós já sabíamos de tudo o que contava. As pessoas gostam de chamar os livros de Fillory de mágicos, mas nunca pareceram assim para nós. Se você já viu magia, então os livros de Fillory são, na verdade, imitações muito pálidas. As palavras de Plover eram como flores secas, duras e enrugadas, esmagadas entre as páginas, quando tínhamos as flores vivas e desabrochando à nossa volta. Agora tudo o que posso ver é o quão simples ele fez tudo soar. Lendo os livros de Fillory, você pensaria que tudo que você tinha que fazer era se comportar com honra e coragem e tudo ficaria bem. Que lição para ensinar as crianças. Que maneira de prepará-los para o resto de suas vidas. Cada um de nós encontrou maneiras de continuar sem Fillory. O mundo real não era tão fantástico e de cores brilhantes como Fillory, mas tinha algo para nos ocupar, e se não continha pegasus ou gigantes, estava repleto de garotas que pareciam quase tão mágicas e perigosas. Fillory era doce, mas este mundo era muito saboroso. Era fácil ignorar Fillory quando todos os jogos de futebol, exames de bolsa de estudos e beijos furtivos lhe diziam para parar de lutar, esquecer, deixar para trás. Conversamos sobre Fillory cada vez menos entre nós, e fomos cada vez menos à casa de Plover, e tudo começou a parecer cada vez menos real.
A essa altura, os livros também começaram a vender e uma chuva milagrosa de dinheiro começou a cair sobre nós. Não teríamos dito em voz alta, nem para nós mesmos, mas era como se tivéssemos vendido a própria Fillory – ou melhor, tínhamos vendido sua realidade, reduzimos ao status de fantasia infantil, em troca de pagamentos regulares e incrivelmente altos em contas que ficariam sob nosso controle quando tivéssemos vinte e um anos. Quando eu tinha dezessete anos e estava fazendo um exame de admissão para o Merton College de Oxford, não tinha certeza se acreditava em Fillory. Jane acreditava. Ela nunca parou de procurar os botões que Helen escondeu, e quando desapareceu aos treze anos, acredito que ela os encontrou. Mas ela sabia que era melhor não tentar me levar com ela, e nenhum de nós tentou segui-la. Quando ela não retornou, eu só podia imaginar que ela seguiu o mesmo caminho que Martin. Já faz muitos anos desde que Helen, Fiona ou eu mencionamos Fillory um ao outro, exceto em relação às nossas finanças. Nós não falamos sobre Martin ou Jane – de certa forma, eles se tornaram tão fantásticos para nós quanto o Cavalo Carinho. Sem essas coisas, tivemos muito pouco a conversar e pagaria qualquer preço por não ter que sofrer mais com a tagarelice de Helen, com sotaque americano e olhos brilhantes, sobre Jesus. É como se nós três fossemos sobreviventes de um grande desastre – como o bombardeio de uma cidade, assim como Londres está sendo bombardeada em pedaços agora – e até mesmo mencionar o que aconteceu seria arriscar de chamar de volta os aviões para nos explodir em pedaços de novo. ••• Eu nem teria escrito isso se não fosse pelos eventos que ocorreram na Grã-Bretanha e no mundo nos últimos três anos. Eles me levaram aos extremos de desespero que eu nunca teria pensado ser possível. Não há como dizer agora quem triunfará no atual conflito, e há toda chance de que os alemães invadam a Inglaterra antes que tudo acabe. Talvez a ajuda venha. Talvez Martin seja capaz de perceber eventos deste mundo, de onde quer que ele esteja e ele voltará; se ele não se importasse, espero que pelo menos Jane se importe. Se eles forem incapazes de intervir nos assuntos deste mundo, talvez Ember ou Umber possam. Essa seria uma visão bem-vinda: meu irmão e minha irmã há muito tempo perdidos e os dois grandes carneiros de Fillory, cheios de poder, marchando em Berlim para forçar Hitler a sair de seu bunker como um arminho. Mas eles não vieram. E estou começando a pensar que eles não virão. E é por isso que estou escrevendo estas palavras. Este livro é um livro de memórias, uma história secreta, mas também é um ato de provocação
calculada. Neste momento estou com a Sétima Divisão Blindada em Tobruque, na Líbia, preparando-se para uma batalha amanhã contra Rommel e seus Panzers. Eu, Rupert Chatwin, rei de Fillory, que montou um grifo contra os exércitos do Rei Sussurrante, que derrotou a Criatura do Oeste em um único combate e quebrou suas costas, lutará contra os alemães em um tanque cruzador obsoleto cheio de piolhos e do meu fedor e dos meus companheiros de armas, que já vazou óleo em metade do norte da África. Se eu sobreviver, enviarei isto para minha casa com instruções para que seja publicada daqui a seis meses, a menos que cheguem notícias minhas. A notícia de que Fillory é real será espalhada por todos os jornais da Grã-Bretanha, a menos que aceitem me levar e minha família de volta. Sim, estou me dirigindo diretamente a vocês: Ember e Umber, Martin e Jane. Se não eu, pelo menos salve minha esposa e meu filho, o único sobrinho de vocês, isso é tudo que eu peço. Certamente está em suas mãos. Certamente vocês encontrarão compaixão em seus corações. Mas se isso ainda não for suficiente, ofereço a vocês bens em troca. Antes não fui completamente honesto: quando saí do Castelo de Blackspire naquele dia, não saí de mãos vazias. O Blackspire é gêmeo do Whitespire, e eu sabia onde ficava a sala do tesouro, e eu sabia como abri-la. Apesar do meu medo e dor, eu ainda era egoísta e rancoroso o suficiente para roubar o que eu pudesse carregar. Eu não era um adepto como Martin, mas até eu reconhecia o poder quando o via. Eu peguei uma lâmina e um feitiço, e acredito que eles sejam muito poderosos. Eles são dos antigos mecanismos. O material mais forte. Vocês podem vir e tentar tirá-los de mim, mas acho que vocês não vão. Minha proposta: os ofereço livremente se vocês fizerem o que eu pedi. Pelo amor de Deus, Ember e Umber, Martin e Jane, ou pelo amor de tudo o que vocês considerem sagrado, se estiverem lendo essas palavras, leve-nos de volta a Fillory. Por todas as maneiras em que os traí, imploro seus perdões. Eu vou pagar pelos meus pecados do jeito que vocês quiserem, se vocês abrirem a porta novamente, uma última vez, para mim e minha família. Eu já fui rei de Fillory, mas voltarei como seu servo mais humilde se vocês abrirem a porta. Agora estou implorando a vocês. Quando eu virar esta página, quero que vocês abram a porta. ••• O livro acabou aí. Plum deixou aberto em seu colo. Parecia que pesava aproximadamente uma tonelada. Não conseguia olhar para Quentin. Não queria compartilhar esse momento com ele. Talvez ela fizesse em um momento, mas ainda não. Eles não vieram. Não o salvaram, e os bens roubados por Rupert foram roubados e ele morreu no deserto. Embora sua esposa e filho – o avô de Plum – tivessem sobrevivido de
qualquer jeito. A lâmina: foi o que Betsy pegou. A princípio, Plum se perguntou sobre o feitiço, mas também estava ali, recortado e dobrado dentro, no final do caderno, em um pergaminho irregular, um pouco menor do que as páginas ao redor: uma dúzia de folhas de escrita quase junta em uma caligrafia estrangeira. Então tudo ficou embaçado, porque os olhos de Plum estavam cheios de lágrimas. Ela havia negado toda a sua vida, que nada disso era real, mas ela não podia fazer mais isso. Não depois disso, e não depois do que a garota no espelho mostrou a ela. Isso realmente aconteceu. Não foi apenas uma história, foi uma história real. Havia encontrado ela, e havia arrastado para as suas páginas e agora era hora dela fazer seu papel nela. Fillory engoliu seus ancestrais e os cuspiu. Agora estava com fome de novo e estava vindo atrás dela, e ela teria que encontrar uma maneira de enfrentá-la. Plum pôs a cabeça entre as mãos e mais algumas lágrimas lhe escaparam, no saguão da estação de trem de Amenia. Depois de cinco minutos, ela se levantou e foi até lanchonete para pegar alguns guardanapos para assoar o nariz. — Quentin — disse ela quando voltou. — Acho que Fillory era real. — Ela teve dificuldade em dizer essas palavras. Elas não queriam ser pronunciadas. — Eu sei que parece loucura, mas acho que ele estava dizendo a verdade. Acho que foi tudo real. Quentin apenas acenou a cabeça. Ele não pareceu surpreso. Além disso, Plum suspeitava que ele tivesse secado uma lágrima ou duas quando ela não estava olhando. — É real, Plum — disse ele. — Eu estive lá.
CAPÍTULO 19
A casa ficava em uma rua dos fundos do West Village, uma das quais se estende por um ângulo estranho, onde a grade ordenada de Manhattan começa a desmoronar sob a 14th Street. Não havia muito tráfego, o que fazia parte de suas vantagens: era um endereço discreto. Plum disse que a comprou com o dinheiro de seus avós, sua parcela dos royalties de Fillory que eles depositaram em confiança, pretendendo usá-la como um lugar para dormir durante seu glorioso futuro de pós-graduação em Nova York. Agora ela e Quentin iriam usar aquele lugar um pouco mais cedo. Do lado de fora, a casa parecia escura e desabitada, e eles tiveram o cuidado de manter essa aparência. Muitas pessoas queriam aquela mala e Quentin não sabia de quem viriam atrás primeiro, ele e Plum ou Asmodeus, mas viriam mais cedo ou mais tarde, e provavelmente procurariam o alvo mais fraco, e não era Asmodeus. Por enquanto, Quentin e Plum se perderiam na cidade grande. Ninguém tocou na casa desde que seu dono anterior se mudou. Não havia nem mobília, então eles estavam sentados no chão de madeira empoeirado da sala de estar. Estavam sem energia, exaustos pelo desastre do roubo, e depois exaustos de novo de uma maneira diferente, lendo o diário de Rupert, mas Quentin se forçou a montar um fino perímetro de defesa mágica antes de dormirem. Nada extravagante magia padrão de espionagem e em seu estado mínimo, mas era o suficiente para tirar a casa da grade e torná-la opaca para qualquer um que estivesse bisbilhotando, embora não tão opaca a ponto de parecer suspeito. Ele não se incomodou com os andares superiores. Eles só ficariam longe deles por enquanto. Então eles desabaram no chão da sala de estar, sem sequer tirarem seus casacos e bonés. Eles teriam que colocar alguns sofás ali, ou pelo menos alguns sacos de dormir. E um pouco de comida. E algum aquecimento. Mas ainda não. Quentin não havia dormido na noite anterior e ele bateu de costas durante a queda e estava começando a sentir dores sérias. Isso aconteceu umas duas vezes antes. Até vinte e cinco anos ele nunca tinha pensado nas suas costas: era um sistema equilibrado, sem atrito, autorregulado. Agora ele a sentia como uma caixa de câmbio bloqueada na qual alguém havia jogado um punhado de areia. Deitado no chão duro doía menos. Quentin pensou em como as coisas estavam erradas. As coisas muitas vezes davam errado. Era culpa dele? Ele estava cometendo o mesmo erro de novo e de novo? Ou erros diferentes? Ele gostaria de pensar que estava, pelo menos, cometendo erros diferentes. Plum adormeceu, bem ali mesmo no chão, com sua parka preta da limusine como um travesseiro. Mas Quentin não, ainda não.
O diário os afetou de diferentes formas. Para Plum, foi o momento da verdade, uma correção maciça, que finalmente a forçou a ver que Fillory era real e que, de alguma forma inevitável, ela era parte disso. No trem, Quentin contou a ela a história completa de sua vida, do começo ao fim, enquanto pontes e estações e outros trens passavam pela janela, e muitos limpa-neves municipais ociosos e quintais cheios de estruturas de brincar derrubadas. Ele contou a ela sobre tudo, Alice e Julia e todo o resto. Mas para Quentin era diferente, e enquanto Plum dormia, se sentou encostado na parede e leu de novo o diário. Havia algumas novidades: se Rupert estava dizendo a verdade, então Umber era aquele que havia transformado Martin na Besta, em troca de algum sacrifício obscuro e grotesco. Isso intrigou Quentin mais do que qualquer outra coisa. Havia algo muito errado com um dos deuses de Fillory, ou pelo menos havia acontecido. E se Umber ajudou Martin, por que Martin o mataria como Jane Chatwin disse que aconteceu? Não fazia sentido. Nada disso o deixou mais perto de Alice, ou não que ele pudesse ver. Eles precisavam de um novo plano, um caminho a seguir, talvez até outro trabalho. Estariam prontos da próxima vez: o pássaro os traiu, não tinha cumprido as regras, mas agora Quentin entendeu que nunca houve regras. Mas primeiro tinham que descansar e se recuperar. Quentin tinha que curar suas costas. Também tinha alguns pensamentos difíceis de fazer. Plum acordou ao amanhecer, transbordando de energia novamente – ela era incansável dessa forma. Ela sempre tinha que estar fazendo alguma coisa. Sair parecia uma má ideia, considerando que eles ainda não sabiam o paradeiro e as intenções do pássaro, então permaneceram na casa. Eles pediram um monte de comida e alguns móveis baratos, e Plum começou a arrumar sua casa. Alguém a havia transformado em discoteca da década de 1970 e depois a desarrumou, em grande parte, mas ainda havia vestígios de carpete de abacate e as formas de ladrilhos espelhados que tinham sido colados nas paredes. Um candelabro da era espacial que parecia um Sputnik também escapou do expurgo. Mesmo assim, a casa tinha um bom esqueleto: ainda conservava seus pisos de largas tábuas de madeira e suas janelas elegantes de muitos painéis, ineficientes do ponto de vista energético, mas com belas venezianas antigas. Havia um monte de ornamentos bonitos no gesso em torno do teto. Essa casa tinha alguma integridade. Plum sabia mais do que Quentin sobre esse tipo de magia, e Quentin estava prejudicado por suas dores nas costas, por isso ele agia como consultor-operário semiqualificado para seu empreiteiro geral supercompetente. Sob a direção de Plum, eles pararam o colapso progressivo da parede do fundo, que estava enfraquecendo da água da chuva porque o cano estava quebrado e o dreno no quintal estava entupido. Ninguém havia atualizado a instalação elétrica e o encanamento desde aproximadamente a década de 1930, e as paredes estavam cheias de fios envoltos em tecidos e tubos de chumbo que estavam prestes a se dissolver. Eles reforçaram tudo o que puderam. Era uma sensação agradável fazer algo simples, concreto e realizável. Lançaram todos os feitiços de limpeza que conseguiram pensar, até que removeram tanta poeira, sujeira, fuligem e resíduos de nicotina das paredes, pisos, pias e banheiras para fazer outra casa inteira emergir. Colocaram forno, gás e água. Mas enquanto Quentin estava trabalhando com as mãos, sua mente estava trabalhando em outras coisas. Todos os seus projetos estavam em ruínas. Ele deveria ter sido esmagado por isso, achatado, mas em vez
disso... com tudo isso acabado, seu pai morto e moedas de Mayakovsky no bolso, ele se sentiu estranhamente livre. Era hora de fazer um balanço. Em algum momento alguém havia demolido todas as paredes internas do andar superior da casa, deixando apenas quatro solitárias colunas de sustentação de tijolos com pedaços de gesso ainda presos a eles, criando assim uma única câmara longa, de ponta a ponta. Plum continuava a vagar pela casa vestida com um macacão e luvas de trabalho, consertando alvos acessíveis; ela não queria a ajuda dele e, além disso, suas costas ainda o estavam matando. Então Quentin subiu para limpar a cabeça. Usando um pedaço de giz que encontrou em um armário embaixo da escada, Quentin traçou um padrão de labirinto clássico no chão. Ele fez isso de memória, baseado no antigo padrão lêmnia grego, e precisou de algumas tentativas para fazer a geometria funcionar, mas isso em si era um sólido exercício de meditação. O caminho se curvava e retorcia em torno dos quatro pilares. Os labirintos eram feitiços antigos e sutis: bons para recarregar os recursos mágicos quando eles estavam acabando. Quando terminou, Quentin pendurou lençóis nas janelas, que pareciam baratos e gastos, mas produziam uma luz fraca, difusa e imaterial. Ele começou no início e lentamente mancou com dificuldade pelo labirinto, de novo e de novo. A caminhada libertou seus pensamentos; também fez suas costas parecerem um pouco melhores. Sua mente vagou de volta para o diário de Rupert e ao feitiço guardado na parte de trás dele. Rupert nunca o havia lançado, até onde Quentin sabia, nem tinha sido capaz de descobrir o que ele fazia. Agora Quentin se perguntou. Era um tesouro roubado do ventre negro de Fillory. Tinha que ser algo valioso. E havia algo de profético no modo como o encontraram. Como Rupert chamou isso? Um dos antigos mecanismos? Talvez fosse magia de guerra, algo que poderia ajudá-los se o pássaro viesse atrás deles. Talvez fosse algo profundo, estranho e forte o suficiente para ajudar Alice. Ele foi pegar o feitiço e leu enquanto caminhava. Não demorou muito para ser capaz de andar pelo labirinto sem sequer olhar para cima. Seu trabalho na página da Terra Nula não seria em vão, com certeza, pelo menos em termos de ter afiado sua capacidade de construir magia retórica em idiomas sobre os quais ele tinha uma compreensão muito fraca. Fazia muito tempo desde que tentou ler arcaico filloriano, sem falar suas anotações associadas a gestos mágicos. Quanto mais ele lia, menos parecia o que ele esperava. Estava esperando algo militar: ou um escudo muito poderoso ou uma arma muito letal ou ambos. Talvez ocultação, talvez algum tipo de efeito climático cataclísmico. Mas não parecia nada disso. De alguma forma não estava bem formulado. Para começar, o feitiço era infernalmente longo – você poderia transcrever a maioria dos feitiços em um par de páginas, no máximo, porque simplesmente não era muito para eles, mas esse continuava por mais de vinte. Havia muitos assuntos formais na parte inicial do feitiço que pareciam puramente cerimoniais, mas você nunca sabia ao certo o que poderia deixar de fora, então tinha que fazer tudo. Além disso, exigia muitos materiais, incluindo alguns itens bastante exóticos. Ao todo era monumental e custaria muito tempo, esforço e dinheiro para lançá-lo. Era pior do que o feitiço de quebrar o vínculo (que eles nunca conseguiram lançar, droga).
Mesmo assim, também havia algo elegante nele. Era uma bagunça, um caos, mas sob todos aqueles elementos complicados e ornamentação havia uma estrutura, uma estrutura complexa. Estágios posteriores do encantamento se formavam em elementos dos anteriores, empilhando efeito sobre efeito, cada um multiplicando o seguinte – de certa forma, era uma coisa de verdadeira beleza. Por um momento, ele se perguntou se poderia ser uma invocação, algo como aquela que Fogg usou para reunir seus cacodemônios ou o feitiço que Julia e seus amigos haviam tentado em Murs com resultados tão desastrosos. Mas ele não acreditava nisso. Isto não era como qualquer magia que ele já tivesse visto antes. Algo sobre o feitiço fez seus dedos se retorcerem – era como se quisesse ser lançado. Ele saiu do labirinto e levou para Plum. — Tenho lido esse feitiço — disse ele. — Aquele que seu bisavô deixou pra você. — Aham. Plum estava no porão, de pé em um degrau e fazendo algo relacionado com as vigas, Quentin não sabia exatamente o quê. — É interessante — disse ele. — Imagino. — Realmente nunca vi nada assim. — Aham. Plum colocou a palma da mão em um enorme feixe e apertou, e ele rangeu e gemeu, e toda a casa pareceu se mover ligeiramente. Ela analisou os resultados. — Material estrutural — explicou ela. — Então você não se importa se eu verificar um pouco mais? — Te dou minha bênção. — Você não quer dar uma olhada? Ela balançou a cabeça, sem olhar para ele. Estava completamente absorta. — Pelo que vi, não consegui ler as letras. Você conseguiu? — Mais ou menos. — Bom, me mantenha informada. — Eu vou. Começando pequeno, Quentin começou a fazer os preparativos. O feitiço exigiria o equivalente mágico de uma sala limpa em uma fábrica de semicondutores, por isso Quentin limpou e protegeu o último andar de todas e quaisquer maneiras possíveis. Ele agitou as paredes, madeiras e vigas e tudo mais com tanta força que a poeira saltou das rachaduras e depois sacudiu a poeira. Relutantemente, ele passou um pano úmido pelo seu labirinto de giz, mas já havia servido ao seu propósito. Ele flutuou um par de grandes mesas de trabalho, batendo-as contra as paredes das escadas e tirando alguns pedaços de gesso no caminho, que Plum franziu a testa. Teve que desmontá-las no pouso porque tinha calculado mal o tamanho e elas não passariam pela porta. Ao reduzir o feitiço aos seus componentes mais básicos, ele viu que não era realmente um feitiço, mas quinze ou vinte feitiços diferentes entrelaçados, para serem executados em uma sequência sobreposta e, em alguns casos, simultaneamente. Alguns deles poderiam ser lançados com antecedência, alguns no dia anterior, mas a maioria, os mais importantes, tinha
que ser feito na hora, no momento. Quentin teve dificuldade em manter tudo em sua cabeça ao mesmo tempo. Mas o que foi que Stoppard disse? Dê a um nerd uma porta que ele pode fechar. Foi um desvio de sua busca por Alice, mas eles estavam efetivamente sob prisão domiciliar de qualquer forma, e algo instintivo continuava o incitando. Ele fez incursões cautelosas na cidade em busca de suprimentos, se escondendo sobre cúpulas de camuflagem mágica. As paredes da oficina no último andar começaram a se encher de fileiras de livros velhos – livros de referência, botânicos, atlas, enormes grimórios de lombadas quebradas, o couro todo rachado como terra do deserto, em pilhas altas e trêmulas que oscilavam de modo preocupante se você roçasse contra elas. As mesas começaram a se encher por um estranho zoológico de ferramentas de aço, instrumentos de metal e estranhos recipientes de vidro assimétricos. Mesmo quando ele abandonou os detalhes técnicos, algumas das funcionalidades maiores do encantamento estavam começando a se tornar mais claras, seus contornos se destacavam entre milhares de detalhes triviais práticos. Uma grande parte parecia relacionada ao espaço. Havia feitiços projetados para fazer isso: literalmente para criar espaço, tecer um novo espaço-tempo a partir do nada. Havia um feitiço que estendia o espaço, o inflava como um balão. Outro dava forma a ele. Outro estabilizava as bordas e fazia com que elas não desmoronassem novamente ao nada de onde veio. Mas depois disso tudo se tornou muito misterioso e difícil de seguir. Havia feitiços para invocar matéria. Essa parte sugava a entropia do sistema, obrigando a matéria a se organizar; essas outras a empurravam através de uma série de transformações muito obscuras, algumas das quais pareciam não fazer nada, ou cancelavam as anteriores. Havia muitas coisas complicadas que o teria intrigado se ele não tivesse cruzado com a página da Terra Nula. Havia uma lista completa de feitiços botânicos, magia do tempo, água e vento, feitiços para moldar rochas vivas. Havia coisas que eram para quebrar a cabeça que pareciam tentativas de redefinir os parâmetros físicos básicos do universo: carga elementar, velocidade da luz, constante gravitacional. Apesar de toda a sua complexidade elegante, o feitiço mantinha uma sensação primitiva e primordial. Era um antigo mecanismo, um estranho, uma relíquia de era, de outro mundo. Dava a impressão de que não havia sido lançado em mil anos. Uma coisa era clara: isso era uma magia esplêndida. Era feitiçaria em uma escala que Quentin nunca havia tentado antes, e ele iria ser posto à prova severamente. Até agora ele havia sido um mago trabalhador e competente, mas se ele pudesse executar esse feitiço ele se tornaria um mestre. Isso o forçaria a se tornar um. O feitiço não aceitaria nada menos. Certa manhã, uma tempestade o acordou, e enquanto estava deitado, imaginando se conseguiria voltar a dormir, uma imagem de todo o feitiço apareceu de repente em sua mente. Ela se criou espontaneamente, por vontade própria, como se esperasse que ele saísse de seu caminho e a deixasse se formar. Ali estava tênue e trêmula, mas completa, com todas as suas partes trabalhando em conjunto. Não era magia de guerra. O feitiço não fazia de você um escudo e também não o escondia. Não matava, e não convocava algo para matar por você. Ele também não ia restaurar Alice. Mas fazia algo maravilhoso. Este era um feitiço que criava algo. Era um feitiço para criar uma terra. Quentin realmente riu alto quando pensou nisso. Foi muito engraçado – muito insano. Mas
agora que ele tinha visto, não conseguia parar de vê-lo. Ele podia segui-lo como uma história que retorcia através de várias seções, parágrafos e cláusulas subordinadas do feitiço como um fio de DNA. O feitiço foi projetado para fazer um pequeno mundo. Era implacavelmente engenhoso. Não se tratava de um ato de criação cósmica, de um raio do Olimpo, era muito mais sutil do que isso. Era mais como uma semente, a semente seca em forma de lágrima de um pequeno mundo – minúscula, o tipo de coisa que poderia cair através de uma rachadura na calçada, mas cheia de areia, chuva, estrelas, física e vida, todas achatadas, secas e comprimidas em palavras em uma página. Se o lançasse corretamente, ele se expandirá e desdobrará em um lugar, em algum lugar escondido do mundo real. Um jardim secreto. Quentin já podia ver isso na sua mente, fresco, novo e ainda a ser descoberto. Campos verdes de grama emaranhada, lagos profundos e silenciosos, sombras das nuvens, tudo espalhado por baixo dele como uma gravura de Escher, como à Terra parecia quando ele era um ganso. Pássaros voavam entre arbustos, cervos espreitando com pernas rígidas através da floresta. Você não seria o dono, nem o governaria, mas você poderia cuidar dele. Você poderia ser seu responsável. Deitado na cama à meia-luz, a chuva respingando na janela, ele esqueceu tudo sobre o pássaro, o Casal e o dinheiro. Tudo isso parecia irrelevante agora. Ele esqueceu sobre Brakebills. Ele até se esqueceu de Alice por um minuto. Esta era uma nova magia: metade encantamento, metade obra de arte. Ele passou muito tempo procurando por novos reinos. Ele queria criar um para si mesmo, um lugar mágico, um lugar como Fillory. Mas não em Fillory. Ele iria construí-lo ali na Terra. ••• — Não quero fazer você soar como um louco — disse Plum. — Mas me pareceu que você disse que iria fazer uma terra. — Eu farei isso. Ou nós faremos. Nós poderíamos. Isso é o que o feitiço de Rupert faz. Plum franziu a testa. — Não entendo — disse ela. — Você não pode simplesmente criar uma terra. — Ajudaria se você não dissesse assim. — Você quer dizer com pedras, árvores e outras coisas? — Isso é exatamente o que eu quero dizer. — Uau — Ela se esticou e depois colocou o queixo nas mãos. Eles estavam tomando café da manhã em sua nova mesa de jantar da Ikea. — Uau. Bom, isso seria um inferno de um feitiço. Meu bisavô não era um grande escritor, mas você tem que admitir que ele era um bom ladrão. Você acha que isso é realmente possível? — Acho que deveríamos descobrir. — Mas eu não entendo isso. Por quê? Digo, é legal e tudo, mas soa como um incômodo gigante. Era difícil colocar em palavras. A terra seria um bom lugar para se esconder do pássaro, se eles precisassem se esconder, mas esse não era o ponto. Isso significava algo para ele. Seria como a ilha de Prospero, mas de uma boa maneira: não uma terra de exílio, um mundo
modelo, seguro, pacífico e privado. A terra de um mago. Plum, uma pessoa altamente perceptiva, percebeu que Quentin não iria mudar de ideia. Ela suspirou. — Então, se fizermos uma terra, o que isso nos torna? Seremos como os deuses daquela terra? — Não penso assim — disse Quentin. — Não acho que esta terra teria deuses. Ou talvez sim. Mas também teríamos que fazê-los. Com Plum a bordo, ou pelo menos não resistindo ativamente, as coisas progrediram mais rápido. Quentin fez contato com um bruxo muito complicado e pouco atraente no Sul do Bronx, que lhe vendeu uma caixa de metal fumegante e que emitia um leve zumbido que ele jurou e perjurou que continha uma amostra de ununênio, um elemento sintético de número atômico 119, a última entrada na tabela periódica. Sua existência continuava eminentemente teórica – os laboratórios só reuniam alguns átomos do elemento de cada vez e, em geral, se desintegravam em um milissegundo. Mas os átomos dessa amostra estavam cronologicamente congelados, ou pelo menos, muito mais lentos. Ou pelo menos eles deveriam ser. Custou-lhe uma boa parte do dinheiro que restava do pagamento do primeiro dia do pássaro. — Você acha que está realmente aqui? — Plum analisou a caixa com ceticismo. — Não sei — disse Quentin. — Nós vamos descobrir. — Como? — Pela maneira mais difícil, eu acho. Quentin tinha um bastão muito caro de aparência elegante e construído especialmente para o projeto. Era feito de pernambuco – a madeira tropical densa, preta, quase sem grãos, com a qual eram feitos os arcos de violoncelo – e a ponta e as gravuras em prata. Quentin normalmente não fazia magia com varinhas e bastões, mas neste caso ele achava que poderia precisar dele como último recurso, como um botão de pânico no caso se as coisas estivessem completamente em colapso. Ele tinha que esconder tudo, para evitar atrair a atenção do pássaro, mas iria, além disso: Quentin tinha certeza de que o feitiço seria altamente ilegal do ponto de vista da sociedade mágica. Não havia muitas leis entre os magos, mas sintetizar uma terra inteira e escondê-la dentro de uma casa em Manhattan violaria uma boa parte delas, então, no que diz respeito à energia mágica, a casa tinha que ser impermeável. Os níveis de potência necessários também seriam enormes e ele só poderia ser grato por eles não terem usados as moedas de Mayakovsky no vínculo incorporado. Ele teria que usá-las agora. Não foi com esse propósito que ele tinha feito, mas Quentin achava que Mayakovsky gostaria da ideia. Quentin gravou sete longas linhas de caligrafia filloriana no piso de madeira da oficina com uma goiva e um macete. Ele também usou o teto, encrustando longos cachos de arame de platina no gesso. Em alguns lugares, ele retirou o papel das paredes e pregou mais arames. A única peça do quebra-cabeça que desapareceu completamente em ação era aquela maldita planta, a da página da Terra Nula. Incrivelmente, ela também aparecia no feitiço de Rupert. Quentin não tinha certeza de que fosse absolutamente crucial, mas, de qualquer jeito, ele ainda não conseguia identificá-la, então precisariam se virar sem ela. Uma noite, depois de trabalharem até se esgotarem, Quentin e Plum estavam deitados nos sofás da ex-sala de discoteca, como se tivessem caído lá como resultado de uma explosão.
Estavam cansados demais para ir para a cama. — Então, qual será o tamanho da sua terra? — disse Plum. — Ainda não sei. Não gigante, eu não penso assim. Dez acres, talvez. Como o Bosque dos Cem Acres em Ursinho Pooh. — Exceto com dez. — Sim. Estou tentando especificá-lo em alguns lugares — disse Quentin. — Mas é difícil saber exatamente o que vai aonde. — Mas não ocupará nenhum espaço no mundo real. — Espero que não. — Quentin, por que você está fazendo isso? Ele reconheceu a importância da pergunta. Estava pronto para dormir no sofá, sentiu que estava se fundindo nele. Mas ele tentou responder antes que isso acontecesse. — O que você acha que é magia? — Não sei. Não responda a uma pergunta com outra pergunta. — Eu costumava pensar muito sobre isso — disse Quentin. — Digo, não é óbvio como nos livros. É mais complicado. Nos livros há sempre alguém pronto para dizer: Ei, o mundo está em perigo, o mal está em ascensão, mas se você for realmente rápido e pegar este anel e colocá-lo naquele vulcão, tudo ficará bem. Mas na vida real esse cara nunca aparece. Ele nunca está lá. Ele está ocupado dando conselhos no próximo universo. Em nosso mundo ninguém sabe o que fazer, e todos são tão perdidos e cheios de besteiras quanto todos os outros, e você têm que descobrir tudo sozinho. E mesmo depois de descobrir e fazer isso, você nunca sabe se estava certo ou errado. Você nunca saberá se vai colocar o anel no vulcão certo, ou se as coisas poderiam ter sido melhores se você não tivesse. Não há respostas no final do livro. Plum ficou em silêncio por tanto tempo que Quentin se perguntou se ela havia cochilado enquanto ele falava. Mas então ela disse: — Então o quê? Então você descobriu, e magia é para fazer terras? — Não — Quentin fechou os olhos. — Eu ainda não tenho ideia do que é magia. Talvez você tenha que decidir por si mesmo. Mas você definidamente tem que decidir. A magia não é para ficar sem fazer nada, sei disso porque eu tentei. Está fazendo algum sentido? — Você não faz sentido há algum tempo. — Eu estava com medo disso. Bom, isso significará algo quando você tiver a minha idade. Você tem o quê, vinte e dois anos? — Vinte e um. — Tudo bem, bom, eu tenho trinta anos. — Isso não é tão velho — disse Plum. — Não seja condescendente. — Então tá. Então, como você acha que a terra vai se parecer? — Também não sei — disse Quentin. — Eu tento imaginar isso às vezes, mas é sempre diferente. Às vezes são campos. Outras vezes é um pomar, apenas filas e fileiras de macieiras. Talvez se pareça do jeito que você quiser. — Espero que se pareça o Bosque dos Cem Acres — disse Plum. — Acho que você deveria se concentrar nisso.
CAPÍTULO 20
Plum precisava de uma noite de folga. Era o começo de abril em Manhattan, e as férias de inverno estavam quase no fim em Brakebills, mas alguns de seus antigos colegas ainda estavam na cidade. Sabendo que eles estavam tão perto, ela foi dominada por um ataque de desejo por sua antiga vida. Ela decidiu ceder. Ela não tinha certeza se ainda era recebida na boa sociedade depois de sua saída dramática de Brakebills, então Plum ficou aliviada quando eles apareceram. O local do encontro era um bar no subsolo da Houston Street, com um teto baixo, muitos sofás quebrados e um jukebox decente; ela sobreviveu intocada a febre de coquetéis artesanais perfeitamente trabalhados. A maioria dos componentes da antiga Liga estava ali, além de algumas adições, incluindo o Wharton – a entrada iminente no mundo parecia ter unido de novo ele e as componentes da Liga, a ponto de estarem todos mais ou menos do mesmo lado. Plum teve a impressão de que a Liga estava praticamente adormecida em sua ausência de qualquer maneira. Bom, hora de acabar com as coisas de criança, como diz na Bíblia. Pelo menos eles saíram por cima. Eles beberam litros de cerveja e tentaram fazer observações engraçadas sobre civis, trouxas, mundanos ou como você quisesse chamar todos ao seu redor. Eles fizeram apostas sobre o que as pessoas estavam sentindo, e então Holly, que tinha uma habilidade especial para fazer isso, fazia uma leitura mental para ver quem estava certo. Ela não conseguia nada muito específico, nem palavras, nem imagens, apenas o tom emocional, mas isso geralmente era o suficiente. Os bares eram um bom lugar para isso. O álcool tinha uma maneira de tornar as mentes das pessoas mais transparentes, como o óleo sobre papel. Plum sabia que eles iam falar sobre Brakebills, e ela sabia que ia doer. Era em parte a razão pela qual ela veio, à dor. Ela ia testar sua nova percepção de si mesma como alguém que superou isso, que apreciava a vida no mundo real, mesmo que estivesse se transformando em algo de um gosto adquirido. Felizmente a dor, quando veio, veio em quantidades suportáveis. Ouvir notícias do mundo de bolha iluminado por luzes de velas de Brakebills a ajudou a lamentar pela Plum comparativamente mais simples e esperançosa que costumava habitar naquele mundo. Esta noite seria uma vigília para aquela outra Plum, a Plum que nunca experimentou aquele trote estúpido. Descanse em paz. Ela os interrogou metodicamente para descobrir sobre as fofocas. Havia uma infinidade de fofocas: com a formatura chegando, o quinto ano estava voltando ao estado natural. Todo mundo que estava prendendo a respiração nos últimos cinco anos estava deixando sair. Até
mesmo os estudantes socialmente ansiosos e respeitosos com a autoridade começaram a realizar experimentos arriscados com imprudência. O mundo de bolha iluminado por luzes de velas estava em rota de colisão com o planeta rochoso e instável da realidade e, quando colidissem, a bolha estouraria. E tudo estava acontecendo sem Plum. Ela sentiu como se tivesse nascido cedo demais – era um bebê prematuro doente e raquítico, ao lado de um bando de bebês rosados saudáveis, nascidos a termo. A maioria deles já possuía planos de pós-graduação. Darcy iria trabalhar para alguém que estava trabalhando para um juiz na Corte dos Bruxos (essa palavra, bruxo, era um anacronismo que aparecia com mais frequência em contextos legais). Lucy iria ajudar algum artista possivelmente fraudulento, mas indiscutivelmente famoso, que construía enormes esculturas mágicas invisíveis no céu sobre a cidade. Wharton se ocuparia com questões ambientais. Holly fazia parte do núcleo duro do grupo de vigilância responsável por antecipar e prevenir crimes violentos entre civis. Os outros estavam ocupados planejando se entregar ao prazer, ou se não o prazer, pelo menos à preguiça. A vida já estava começando a classificá-los em categorias, quer gostassem ou não. Tudo o que podiam fazer era olhar um para o outro, estupidamente, através das amplas lacunas. Plum se encontrou classificada em uma subcategoria ad hoc extra de uma única pessoa. Ninguém se sentiu à vontade para perguntar a ela sobre sua vida após o desastre que encerrou sua carreira e, do ponto de vista deles, praticamente também com sua vida. Então ela mesma explicou que nesse momento estava trabalhando com o ex-professor Quentin Coldwater em um Projeto de Pesquisa Absolutamente Fascinante, cuja natureza exata ela não podia revelar. As cabeças se viraram. Isso era fofoca de primeira e de genuína qualidade. — Ah, meu Deus — disse Darcy, cobrindo a boca com a mão. — Ah, meu Deus. Me diga que você não está dormindo com ele. Minta pra mim se for preciso, só quero ouvir as palavras. — Eu não estou dormindo com ele! Deus, que ideia. — Felizmente, Plum não teve que fingir estar chocada com a ideia. Quentin era mais como um irmão mais velho sabe-tudo. — Quem você acha que eu sou? — Então você só está... vivendo e trabalhando com esse misterioso e inquietante homem mais velho, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana — disse Chelsea. — Eu tenho a frase “braço direito” na minha mente por algum motivo — disse Wharton. — Pessoal. Não é nada tão íntimo que vocês estejam imaginando. Nós moramos na mesma casa. Estou ajudando ele em um projeto. — Porque, veja, qualquer quantidade de intimidade, sabe... — Chelsea torceu as mãos freneticamente. — Repulsivo. — Não sei — disse Lucy lealmente, erguendo a bandeira branca. — Digo, vamos pessoal. Ele só tem o que... quarenta anos? — Ele tem trinta anos — disse Plum. — Desculpa. É difícil dizer com o, sabe, o cabelo. Eu só quis dizer que não estamos no território de Humbert Humbert aqui. Não é bem assim. — Nós não estamos em nenhum território! Deus! Não há território!
— Muito bem, muito bem — Darcy levantou as mãos: nos rendemos. Por enquanto. — Eu só gostaria que você nos desse uma pista sobre o que vocês estão fazendo. Plum fez isso. Ela teve o suficiente. Algo nela queria enfrentar o desafio de se defender e também defender Quentin. Em algum momento, ela não sabia quando, o assunto passou do estranho projeto impulsivo de Quentin para algo que ela se importava também. Ela queria que funcionasse. — Olhem — disse ela. — Eu sei que soa estranho. E eu tenho respeito absoluto por tudo o que vocês estão fazendo. Eu tenho. Mesmo se você fique pendurado o tempo todo fazendo shows de luzes no teto. Chelsea fez o V da vitória com as duas mãos. — Estes são seus caminhos, e eles são incríveis. Eu estou apenas em um diferente, e é definidamente um caminho, mas é diferente porque eu não sei pra onde está indo. O que Quentin está fazendo – olhem, não quero entrar em detalhes, mas é muito brilhante, e ele está atrás de algo real. Ele está correndo um grande risco. Eu gosto disso. Acho que um dia eu possa querer fazer algo assim também. Plum terminou sua cerveja em silêncio. Todo mundo ficou um pouco envergonhado por ela ter feito um discurso que não era autodepreciativo ou engraçado. Bom, assim seja, pensou ela. — Então... — Darcy quebrou o silêncio. — Então vocês querem saber o que estamos fazendo? Estamos fazendo magia. E se tudo correr bem será uma obra-prima da porra. Isso foi mágico para você, certo? A coisa sobre magia, o tipo real: ela não precisava de desculpas e ela nunca era divertida. ••• Não era completamente verdade. Eles ainda não haviam feito nenhuma magia. Mas eles iriam em breve. Os preparativos elaborados na sala do quarto andar estavam começando a surtir efeito. Certa manhã, Plum entrou e notou algo engraçado em uma das janelas, uma pequena janela quadrada na parede dos fundos. Parecia escura, como se algo a estivesse cobrindo do lado de fora, enquanto as outras estavam cheias de luz do sol de Manhattan. A janela não estava bloqueada, mas a vista mudou. Agora, através dela, mostrava outro lugar ou talvez outro tempo: um silencioso pântano de cor de aço no início do entardecer. Hectares de relva ondulada e afogadas que se estendiam até o horizonte sob uma luz fraca. Plum tocou no vidro. Enquanto as outras janelas estavam frias, aquela estava anormalmente quente para o tempo. — Estranho. Onde diabos é isso? — Não tenho absolutamente nenhuma ideia — disse Quentin. Plum estava curtindo seu período como aprendiz de feiticeiro mais do que ela teria imaginado. A sua moral estava alta. Depois que ela descobriu que Fillory realmente era real, ela se preparou para um ataque de sua veia depressiva. A revelação parecia o tipo de coisa que daria à depressão um poder e substâncias assustadoras. Mas, em vez disso, ela descobriu que a notícia a deixava inesperadamente leve e livre, como se talvez não fosse sua qualidade
de Chatwin, mas sim sua defesa contra ela, que lhe causou tantos problemas ao longo dos anos. Eles passaram um dia longo e frio no telhado da casa, instalando lona impermeável para concluir a segurança mágica. Se algum satélite que passasse tirasse uma foto, alguma coisa realmente estranha apareceria no Google Earth. — Então me fale sobre Alice — disse Plum. Ela estava pintando sigilos, tinta preta no telhado preto. — Digo, mais sobre ela. Isso causou uma longa pausa em Quentin, e Plum se perguntou se ela havia cruzado a linha. Ela sabia dos fatos básicos, mas ele não se mostrou muito comunicativo dando detalhes, provavelmente porque não queria falar sobre eles. Mas Plum fez. Ela imaginou que, uma vez que Alice quase a matou, provavelmente, ela tinha o direito de submeter Quentin a um pequeno interrogatório exploratório. Obviamente, ele não tinha desistido de todo o seu projeto Alice. Estava descansando no momento, mas Plum não foi enganada. — O que você quer saber? — Como ela era, o que a interessava, esse tipo de coisa. Digo, eu conheci seu fantasma ou nifo ou o quer que seja, mas eu não tive uma boa noção dos seus interesses diários. Quentin parou de trabalhar e se levantou para massagear a parte inferior das costas. — Alice era ótima. Ela era gentil, divertida, estranha. Ela era inteligente – mais inteligente do que eu e melhor maga também. Ela fazia coisas que eu ainda não entendo. Era uma espécie de parte de quem ela era – havia uma força nela, um poder, que eu nunca vi em mais ninguém. — Você estava apaixonado por ela? Digo, eu sei que vocês estavam namorando, mas... — Completamente — Ele sorriu. — Completamente apaixonado. Mas eu não estava pronto pra ela. Ela era mais adulta do que eu e eu tinha muitos problemas pra resolver. Eu cometi alguns erros. Achei que algumas coisas eram importantes quando na realidade não eram. Plum também se levantou. Ela estava queimada pelo sol e cansada, e o tecido da parte inferior de sua calça se despregou do teto de um modo que sugeria que a lona impermeável às havia destruído. — Sinto que você está escondendo alguma coisa. — Sim. Provavelmente o fato de eu ter dormido com outra pessoa. — Ah. Plum sentiu pena de perguntar, mas Quentin continuou. — Então ela dormiu com outra pessoa. Isso foi ruim, eu quase arruinei tudo. Então, quando comecei a entender as coisas, foi quando ela morreu. — Isso é uma merda. Eu realmente sinto muito. — Demorei muito tempo pra superar isso. A história romântica de Plum até agora tinha sido muito limitada, com um mínimo de drama. Era uma área onde ela se sentia confortável ficando atrás de seus colegas. Mas ela se orgulhava de seus poderosos conhecimentos filosóficos sobre os relacionamentos de outras pessoas. — Então se você de alguma forma acabar, sabe, trazendo ela de volta, você acha que ficariam juntos? Digo você ainda está apaixonado por ela? — Na verdade, eu não a conheço mais, Plum. Foi há muito tempo. Agora sou uma pessoa
diferente, ou pelo menos espero ser uma. Nós teríamos que ver. — Então vocês poderiam começar novamente. — Se ela quisesse. Embora eu sinta que estávamos prestes a começar. Nós não começaríamos de novo, apenas começaríamos. Projetaram-se raios de sol de uma cor laranja profunda, desacelerados pelo ar urbano viscoso por onde passavam cheios de partículas flutuantes e emissões tóxicas. Bolhas apareceram nos joelhos de Plum. — Aqui está o que eu não entendo. Se você não estava pronto, se tinha todos esses problemas, por que acha que ela amava você? Quentin voltou a misturar o reagente malcheiroso em que estava preparando antes. — Não sei — disse ele. — Nunca soube. — Seria bom descobrir isso. Talvez antes de trazê-la de volta? ••• Na manhã seguinte, foi o ensaio geral. Eles decompuseram o encantamento em seus feitiços componentes, lançando cada um deles individualmente, depois em pequenos grupos, sendo cuidadosos o tempo todo para não deixá-los combinar em algo que fosse ao mesmo tempo vivo e volátil. Nos casos em que o feitiço envolvia algum componente excepcionalmente caro ou era fisicamente perigoso, eles apenas simulavam. Embora uma vez Plum tenha esquecido e falado algo que deveria ser pulado, e de repente a sala ficou inundada de luz brilhante e calor. Por um instante, foi insuportável, como quando há um feedback ruim em uma plateia. — Merda! — Quentin começou a correr. Plum ouviu a água correndo no banheiro. Quando ele voltou suas unhas ainda estavam fumegando levemente. — Desculpe! — disse Plum. — Sinto muito! — Não se preocupe com isso — Embora ela percebesse que ele estava com raiva. — Vamos começar de novo. Desde o início. O engraçado sobre magia era como ela era bagunçada e imperfeita. Quando as pessoas diziam que algo funcionava como mágica, isso significava que não custava nada e fazia exatamente o que você queria. Mas havia muitas coisas que a magia não podia fazer. Não poderia ressuscitar os mortos. Não poderia te fazer feliz. Não poderia te fazer atraente. E mesmo com as coisas que ela podia fazer, nem sempre as fazia corretamente. E sempre, sempre custava algo. E era ineficiente. O sistema nunca era hermético, sempre vazava. A magia estava sempre jogando fora energia extra, desperdiçando-a na forma de som, calor, luz e vento. Sempre estava zumbindo e cantando, brilhando e faiscando sem nenhum propósito particular. A magia era decididamente imperfeita. Mas o mais engraçado pensou Plum, era que se ela fosse perfeita, não seria tão bonita. No grande dia, eles concordaram que começariam ao meio-dia, mas como qualquer coisa envolvendo mais de uma pessoa e muitas partes móveis – ensaios de bandas, jogos de beisebol, lançamentos de foguetes – demorou cerca de cinco vezes mais tempo para ficar pronto do que o planejado. Eles limparam os livros e os empilharam nos cantos, organizaram
todas as ferramentas e materiais nas bandejas, bem rotulados e alinhados na ordem em que seriam necessários. Quentin pregou uma lista de feitiços na parede, como o setlist para um show. Havia muitas coisas que, por consentimento mútuo, haviam pulado no ensaio geral, mas que acabaram consumindo muito tempo, como ler o texto completo de um desses antigos cantos de culto, dez vezes. Eles começaram com o mais fácil, certificando-se de que as condições na sala eram ótimas e que elas permaneceriam assim. Temperatura constante; um pouco de oxigênio extra; pouca luz do candelabro; sem incursões mágicas estranhas. Lançaram feitiços uns contra os outros para se proteger de quaisquer cargas ou energias estranhas e para acelerar um pouco a velocidade de reação deles; parte desse material não poderia ser lançada na velocidade humana normal. A cafeína também ajudava com isso, então eles deixaram uma cafeteira por perto. O ar da oficina ficou quieto e frio, e começou a cheirar levemente adocicado – jasmim, pensou Plum, embora não tivesse muita certeza. Ela não conseguia se lembrar de quando eles organizaram isso. Por volta das cinco da tarde, eles perceberam que estavam se abstendo de lançar qualquer coisa que os levasse além do ponto de inflexão – isso os forçaria a fazer isso ali e agora, esta noite e não no dia seguinte ou em qualquer outro dia. O trem continuava na estação, ainda poderia ser adiado. Mas eles ficaram sem trabalho preparatório. Era a hora da verdade. Só então Plum percebeu o quanto ela estava nervosa. — Vou fazer — disse Quentin. — Se temos que fazer isso, vamos fazer. — Muito bem. — Vá em frente e lance Esplendor Clarificador. — Tudo bem. — Vou começar a preparar o Sonho Cita. — Verifique. — Tudo bem, vamos. — Indo. Plum começou. Ela se virou para o primeiro conjunto de materiais na prateleira: quatro pós-pretos em pires e um sino de prata. Esplendor Clarificador. Enquanto isso, Quentin disse uma palavra de poder, e a luz na sala adquiriu um tom mais sépia, como a luz do sol momentos antes de uma tempestade. Tudo começou a soar como um eco, como se estivessem em uma sala muito maior. Só assim eles atravessaram o Rubicão. O trem saiu da estação. Daquele momento em diante, foi controlado o caos. Às vezes eles trabalhavam juntos – um ou dois dos feitiços eram de quatro mãos. Outras vezes o fluxo divergia, e eles faziam feitiços completamente diferentes em paralelo, roubando olhares um do outro para garantir que terminassem ao mesmo tempo. Havia um fluxo constante de conversas cruzadas. — Devagar, devagar. Termine em três, dois... — Cuidado, os fluxos estão se bifurcando. Eles estão se bifurcando! Uma única curva de fogo irlandês se dividiu em dois, depois em quatro, curvando-se para os lados. Os cachos começaram a apontar com preocupação para Plum, que os estava lançando.
— Eu consigo — disse ela. — Droga. O fogo se apagou. — Faça de novo. Faça de novo. Ainda há tempo. Continuaram assim por três ou quatro horas – era difícil manter a noção do tempo. A essa altura, eles já estavam profundamente envolvidos e a atmosfera da sala havia se tornado completamente onírica. Sombras enormes espreitavam nas paredes. A sala parecia se inclinar e se inclinar, como se tivesse levantado voo com eles dentro. Plum soltou uma bandeja sobre a mesa na frente de Quentin, e ele começou a pegar o que precisava, sem sequer olhar para baixo, e Plum ficou surpresa ao perceber que era o penúltimo feitiço da lista. Eles estavam quase lá. Plum tinha ficado sem coisas para fazer, então ela apenas o observou, tomando um copo de água que havia deixado debaixo da mesa quando eles começaram e que de alguma forma não conseguiu derrubar. O resto era tudo ele. Plum estava tonta e seus braços pareciam fracos. Ela os cruzou sobre o peito para evitar que eles tremessem. Plum não achava que suas amigas tirariam sarro de Quentin naquele momento. Por um tempo ela tinha o hábito de pensar nele como um colega, basicamente, mas na última semana ela se lembrou de que ele era quase dez anos mais velho e que fazia magia em um nível diferente do dela. Agora ele parecia um jovem Prospero no auge da vida. Ele tirou a jaqueta e arregaçou as mangas da camisa branca que estava encharcada de suor. Ele devia estar cansado, mas sua voz ainda era firme e ressonante, e seus dedos estavam trabalhando com precisão em posições que ela nunca tinha visto antes, com os tendões se destacando nas costas de suas mãos. Era o tipo de magia, pensou Plum, que ela faria quando crescesse. Grandes ondas de poder estavam fluindo pela sala. Passou por sua cabeça que feitiços como esse eram exatamente o que transformavam as pessoas em nifos, quando ficavam fora de controle. Enormes seções e estruturas de magia que até agora ela só via de forma isolada estavam colidindo e interagindo como sistemas meteorológicos. A intensidade duplicou e se redobrou. Sem aviso, o quarto estremeceu e se precipitou, deixando-os em queda livre por um instante – se isso fosse um avião, as máscaras de oxigênio teriam caído. A voz de Quentin soou artificialmente profunda e ele começou a tremer um pouco com o esforço de manter tudo junto. Ele rapidamente passou um braço pela testa. — Bastão — disse ele. — Bastão. Na segunda vez, ele gritou alto, e Plum acordou, se virou e pegou o bastão de madeira preta de onde estava apoiado, encostado em um canto. Quentin estava apertando o botão de pânico. Ele agarrou o bastão dela rapidamente, cegamente, e assim que o segurou em suas mãos ele começou a sacudir e vibrar, como se estivesse preso a uma linha de uma vara de pescar com um enorme peixe na outra extremidade, ou uma pipa gigante apanhada em um vento forte. Plum se moveu para ajudá-lo, mas ele balançou a cabeça. — Melhor você não me tocar — murmurou ele. — Pode ser ruim. O ar estava pesado com o cheiro de metal queimado e o suor de magos cansados. Plum podia sentir isso na sala com eles agora, a própria terra: uma criança zangada, faminta e sedenta exigindo a vida, pronta para tirá-la deles se fosse necessário. Gritava com uma voz quase humana. Uma rajada de luz dourada surgiu entre um dos dedos de Quentin: tinha que
ser uma das moedas de Mayakovsky em operação. A paisagem passava a toda velocidade do outro lado das janelas, todas elas desta vez, muito borradas para distinguir. O espaço se distorcia grotescamente, e por um instante a sala parecia esticada, com olhos de peixe, como se uma bolha bulbosa tivesse se formado na superfície da realidade. Plum estava com medo do que aconteceria se explodisse. Quentin gritou, com dor, triunfo ou desespero, Plum não sabia dizer: — Nothung! Quentin girou o bastão e bateu a ponta prateada no chão que soou parecido com um tiro. Plum sentiu o impacto através das solas dos pés. Os fios no teto e nas paredes ficaram incandescentes e as letras no chão queimavam brancas como magnésio. Então eles se desvaneceram novamente e pouco a pouco, tudo parou. O chão se estabilizou. O ar recuperou a calma; duas velas não se apagaram e suas chamas tremeram e depois se endireitaram. Quentin desabou sobre a mesa. A sala ficou em silêncio, exceto por um leve tom alto prateado, embora pudesse ter sido o zumbido de seus ouvidos. O mundo do outro lado das janelas se tornou mais uma vez em Lower Manhattan, mesmo naquela janelinha estranha no canto. Quentin levantou a cabeça e se endireitou. Ele olhou ao redor, no teto, nos cantos escuros da sala, curiosamente. Ele olhou para Plum. Ela apontou para trás dele. Uma porta vermelha apareceu na parede. Era de madeira pintada, forjada com ferro preto, trabalhada em curvas elaboradas e espirais de fada. Quentin largou o bastão, que caiu com um grande barulho no chão.
CAPÍTULO 21
Plum o observou dar passos lentos, cautelosos e incrédulos em direção à porta e depois parar de novo, enquanto a poeira baixava e o zumbido desaparecia. Ela se sentia exausta, tremendo, como se tivesse corrido com o estômago vazio, mas não conseguia tirar os olhos da porta vermelha. — Nós fizemos — disse Quentin solenemente. — Realmente funcionou. Nós fizemos uma nova terra. Tinha uma maçaneta de latão no centro. Quentin a tocou e logo pôs a mão sobre ela, hesitante, como se esperasse um choque elétrico, ou como se achasse que sua mão poderia passar por ela. Mas era sólida. Ele girou a maçaneta e empurrou – errado – então puxou a porta na direção dele. Ela abriu facilmente. Um vento frio entrou na sala. Refrescou a testa superaquecida de Plum, mas congelou algo mais profundo dentro dela. — Quentin — disse ela. Ele não se moveu, e ela se aproximou para ficar ao lado dele na porta. — Você vai entrar? Como se ele estivesse acordando de um sonho, Quentin olhou para ela. — Em um minuto — Ele ergueu a mão. — Eu tinha certeza que ia ter uma cicatriz aqui por causa da moeda de Mayakovsky. Como em Os Caçadores da Arca Perdida. Parecia que estava queimando. Mas não tem nada. Plum não tinha ideia do que ele estava falando, mas ela não disse nada. Não parecia o momento. A terra não se parecia com o Bosque dos Cem Acres. Não era nem mesmo um pomar. Não era nem mesmo lá fora. Olhar pela porta era como olhar para aquele espelho em Brakebills, depois que o reflexo de Darcy desapareceu: era exatamente como o quarto onde eles estavam exceto pelo fato de que eles não estavam lá. E era tudo revertido. — Através do espelho — disse Quentin. Isso não era o que ela esperava. Quentin pegou uma colher de cabo longo da mesa e jogou por baixo através da porta. A colher ressoou e deslizou pelo chão no outro quarto. Parecia bastante seguro. — O que é isso? — disse ela. — Acho que é a nossa terra. — Mas porque parece assim? É assim que deveria ser? — Não sei.
— Era isso que você estava esperando? Eu pensei que você fosse fazer um pomar. É isso que você estava tentando fazer? — Não. — Por que você faria uma terra exatamente igual àquela em que você está? — É uma boa pergunta. Quentin cruzou a porta e entrou no outro quarto. Ela o observou olhar em volta. Tinha que admitir, ele não parecia nem um pouco assustado. Apenas checava a cena. — Clássico — disse ele. — Está completamente ao reverso. É a terra oposta. Você tem que gostar do respeito pela tradição. Ele estendeu os braços. — Entre se você quiser, acho que é seguro. Plum entrou. Realmente era a coisa mais estranha. Era como se a casa tivesse adquirido um gêmeo siamês, preso a ela pela porta. Plum estava lutando com uma sensação de anticlímax. — Isso meio que funcionou — disse Plum. — Digo, nós fizemos uma terra, certo? Quentin acenou a cabeça. — Ou uma casa pelo menos. Vamos tomar cuidado, Plum, isso parece um pouco estranho. Era uma casa muito, muito quieta. A casa original era magicamente à prova de som, por isso também era silenciosa, mas essa era diferente. Este lugar estava sonoramente morto – era como se as paredes estivessem cobertas de papelão de ovo que usavam para revestir as paredes dos estúdios de música. E havia outra coisa. O lugar dava uma sensação claustrofóbica. Plum não pôde identificálo até que estava literalmente o encarando no rosto. — Olhe para as janelas — disse ele. — Todas as janelas. Elas não são janelas, são espelhos. Era como se os olhos da casa tivessem ficado cegos. — Hein. Eu me pergunto quais são os espelhos. Sim. Boa pergunta. Havia um no banheiro no patamar. Plum se preparou para algum choque de filme de terror e depois enfiou a cabeça para dentro. Curioso e curioso. O espelho ainda estava lá, e ainda era um espelho, mas dentro da sala do espelho estava nevando – soprando neve, beirando uma verdadeira nevasca. A neve começava a se acumular no chão, nos toalheiros e na borda da pia. Pousaram no cabelo e nos cílios. Mas apenas no espelho: reflexivamente, ela tocou o cabelo, mas estava seco. A neve não era real. Quentin apareceu atrás dela. — Eh — disse ele. Claramente isso estava os afetando de maneiras diferentes. Eles andaram pela casa, senhor e senhora de seu novo território estranho. Tudo estava ali, mais ou menos, exceto quando não estavam. Os móveis, as cortinas, os talheres, os objetos de vidro. As portas eram portas comuns. Mas não havia computadores ou telefones. Os livros estavam lá, mas as páginas estavam em branco. Não havia toalhas no banheiro ou roupas nos armários. Ninguém morava ali. A água saía das torneiras, mas apenas fria. Eles discordaram sobre se um dos tapetes orientais estava invertido da esquerda para a direita – Quentin tinha certeza de que estava – mas Plum se lembrava de maneira diferente, e nenhum
deles sentiu vontade de voltar e verificar o original. A fadiga e o desapontamento estavam colocando os dois à beira da histeria. — É como um armário gigante — disse Plum. — Nós poderíamos armazenar coisas aqui. Teríamos mais espaço no armário do que qualquer um em Nova York. — Não vamos armazenar coisas aqui. — Coloque um par de telas planas aqui, Xbox, poltrona: uma caverna masculina. Eles chegaram ao último andar novamente quando ouviram uma pancada pesada vinda do andar de baixo. O quarto de Plum. — Acho que a situação está mudando — disse Quentin. — Varinhas para fora, Harry. Plum bufou – caridosamente, porque ela era uma boa pessoa – mas ela entendeu Quentin. Ela ficou na defensiva: um belo feitiço de bloqueio rígido. Se você carregasse, poderia mantê-lo até que você precisasse; só seria necessário um gesto para liberá-lo. Seja lá o que Quentin estivesse preparando, soltou um gemido alto. Mas quando eles chegaram lá, o quarto estava vazio, exceto que a cadeira de Plum estava agora caída de costas, com suas pequenas pernas no ar, como se estivesse fingindo de morta: Ah, eles me pegaram! Lentamente, Quentin a levantou e a colocou de pé. — A cadeira caiu — disse ele alegremente. — Muito bem, muito bem. Era como se estivessem desafiando um ao outro para ver quem seria o primeiro a perder a coragem. Eles desceram as escadas para o segundo andar. Outra coisa: fotografias coloridas haviam se desbotado para preto e branco. — Eu me pergunto... — Mas Quentin foi interrompido pela mesma pancada de antes, de cima de suas cabeças agora. A cadeira novamente. — Eh — Nenhum deles queria olhar. — Eu me pergunto o que tem lá fora. — Eu não — disse Plum. — E eu te desafio a não olhar. Por um segundo, ambos pensaram que havia algo na cama de Quentin, mas ele puxou as cobertas para trás e era apenas um travesseiro. Isso estava seriamente assustando Plum. Algo se despedaçou na cozinha – parecia que alguém havia derrubado uma taça de vinho. Obedientemente, ambos trotaram escada abaixo, Quentin primeiro. De fato, havia uma única taça de vinho, quebrado em pedaços, bem no meio do chão. Olhe aí. — Deve ter sido o vento — disse Plum. Agora ela que estava fazendo isso. Sua psiquiatra diria que ela estava usando humor para evitar sentimentos mais profundos. Ela estaria certa. Eles vasculharam em volta sem rumo; ambos esperavam tropeçar em algo que tornaria a terra excitante, mágica e romântica, do jeito que esperavam que fosse, mas não encontraram nada. Plum não gostava desta terra. Era como se tivessem discado o número errado. Isso não era o que eles pediram. — Me pergunto se tem comida aqui e se podemos comê-la — disse Quentin. Plum se preparou para abrir a geladeira. Havia uma tigela de uvas verdes dentro, mas haviam se transformado em bolinhas de vidro verde. Quentin estava pegando livros um após o outro e os abria. — Cara. Todos vão ficar em branco. — Talvez. Isso não é o que eu esperava, mas não sei por que não é o que eu esperava.
Tudo parecia certo quando estávamos lançando, mas algo deve ter dado errado. Ele largou o livro e caminhou corajosamente até a porta da frente, mas antes que pudesse abri-la, houve um baque surdo no segundo andar. Pode ter sido uma lâmpada caindo em um tapete. Ele parou com a mão na maçaneta. — Quentin... — Eu sei — disse ele. — Esta é definidamente uma terra, mas não tenho certeza absoluta de que é a nossa terra. — De quem então? Ele balançou a cabeça. Ele não sabia. Plum teve que se conter para não começar a cantarolar “This Land Is Your Land”. — Bom, nós fizemos isso — disse Plum. — Eu sei, eu sei. Quer ir ver quem derrubou a lâmpada? — Vamos lá. Ela seguiu Quentin subindo as escadas, mas ele parou no meio do caminho, escutando. — Por que sinto que estamos sendo atraídos para uma armadilha? — Ele se virou e passou por ela, descendo as escadas novamente. — Eu volto já. — Famosas últimas palavras. Plum viu que Quentin chegou ao pé da escada e ficou paralisado, olhando para algo que ela não conseguia ver. — Merda — O que foi? Só que ela sabia ao mesmo tempo em que perguntava a ele. Havia luzes azuis no corrimão polido ao lado dele. Ela conhecia esse azul. — Corra! Ele subiu as escadas em direção a ela, com seu rosto branco. — Deus, corra! Ele teria passado por cima dela se ela não tivesse saído da frente dele e saiu em disparada na frente dele. Não deveria estar ali. Era como se algo de um sonho tivesse seguido ela para o mundo real, ou talvez fosse o contrário – ela o seguiu até o sonho. Quentin corria mais rápido com suas pernas compridas – ultrapassou Plum no segundo andar, passou correndo direto por ela, mas agarrou a mão dela quando passou e a puxou, quase arrancando o braço do ombro. Quentin bateu a canela em uma otomana enquanto corria; o que deve ter doído muito. — Corra, corra, corra! Vamos! No patamar do terceiro andar, Quentin parou e lançou um feitiço pelas escadas por cima do ombro, algo que brilhou calorosamente no rosto dela; então eles estavam correndo ombro a ombro pelas escadas, entraram na oficina e atravessaram a porta para sair para o mundo real. Plum fechou a porta atrás deles, depois lançou o feitiço de bloqueio que preparou para o caso. Ela tinha esquecido completamente disso até então. O ar tremeu na frente da porta. Eles se entreolharam, ambos ofegantes. — Eu não... — disse Quentin sem fôlego. — Acho que... Ela pode... Passar. Quentin parecia que ia chorar ou vomitar ou ambos. Ela esperava que ele não fizesse
nenhum dos dois. Eles não deveriam ter lançado o feitiço. Deus, o quão estúpido você tinha que ser – o encantamento antigo despertava um horror primitivo, era a história mais antiga que havia. Orgulho excessivo. Eles eram tão idiotas. — Como diabos ela chegou aqui? — arquejou Plum. Quentin não respondeu. Sua expressão parecia estranha: feliz, triste e aterrorizado ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 22
Quentin não dormiu naquela noite. Ele tentou, porque parecia importante, porque dormir era algo que você fazia à noite, mas isso nunca aconteceria. Depois de algumas horas tremendo e olhando para o teto, com sua mente girando e balançando como uma secadora com um sapato dentro, ele desistiu, se vestiu e subiu as escadas até o quarto andar. Eram três da manhã. Ele ficou na frente da porta vermelha por uma boa meia hora, com um tremor nervoso em seu joelho e apertando sua mandíbula até doer. Então ele começou a se cobrir com feitiços de proteção, aumentou seus reflexos e fez qualquer coisa que pudesse pensar que poderia ser útil para ele. Ele voltaria a entrar. As salvaguardas estavam provavelmente fora do ponto. Alice era mais forte do que quando era humana e agora estava completamente em outra escala de poder. Agora ela estava conectada à linha principal. Mas ele precisava se aproximar dela. Ele não entendia porque ela estava ali. Talvez a tenha invocado de alguma forma, sem nem mesmo saber, então a prendeu e a amarrou naquela estranha casa de espelho. Talvez ela tenha vindo por sua própria vontade – Alice o encontrou em Brakebills, e agora o entrou de novo ali, entrando em sua terra como uma minhoca em uma maçã. Ela era a cobra em seu Éden. Isso realmente não importava. Ele não conseguiu fazer uma terra, ou não muito, mas isso era melhor. Fazer uma terra era apenas uma distração de qualquer maneira. Assim como o roubo. Isso era o que ele queria. Mas o que Alice queria? Assombrá-lo? Rir dele? Caçar e matar ele? A literatura não falava muito sobre nifos. Seu comportamento era imprevisível na melhor das hipóteses. Mas o que ela quisesse, ele sabia do que ela precisava, e isso era ser humana de novo. Ele não poderia ter pedido uma chance melhor. E ele precisava dela também: ele precisava vê-la novamente, ela era a única pessoa com quem ele se sentia completamente à vontade. Ele sabia que deveria esperar, comer, dormir e conversar com Plum, mas – disse a si mesmo – que era difícil saber quanto tempo ele tinha. Os caprichos de um nifo eram quase a definição de perversão. Se ela fosse embora, ele poderia nunca mais encontrá-la. Ele decidiu acabar com isso. E, além disso, Plum tentaria convencê-lo de não fazer. A casa estava quieta. Quentin não se sentia sequer remotamente cansado. Olhando para a porta vermelha, ele tentou invocar em sua mente a Alice que ele conhecia. Ele realmente lembrava como ela era? Talvez ele estivesse perseguindo um fantasma, o fantasma de um fantasma, uma invenção de sua própria memória. Sete anos se passaram: isso era mais do que ele a conhecia como humana. Talvez tudo o que restasse de Alice era sua fantasia pessoal. Se
ele pudesse trazê-la de volta, quem ela seria? Quentin iria descobrir. Ele abriu a porta vermelha, mas não cruzou a soleira da porta. A outra sala ainda estava lá, a sala do espelho, com suas janelas espelhadas. Se sentou no chão com as pernas cruzadas e esperou. Ele ficou sentado ali por dez minutos, quando Alice flutuou lentamente, de perfil, suas pernas arrastando levemente atrás dela, tão silenciosa e malévola quanto um tubarão em um aquário. Ela era um pouco menor do que quando estava viva, como uma boneca cara de si mesma. Ela não o viu; se sabia que ele estava ali, não se preocupou em virar a cabeça. Uma vez que Alice estava fora de vista, Quentin se levantou, esperou mais cinco minutos e atravessou a porta. Tudo estava exatamente como antes. Havia o mesmo silêncio profundo e abafado. Nenhum vento do lado de fora sacudia as janelas espelhadas. Nada se movia. Ou quase nada: havia uma cintilação irritante no canto do olho, como uma televisão ligada sem som. Era o espelho do banheiro, onde os flocos de neve continuavam caindo. Ele ficou no topo da escada, balançando os braços e pulando na ponta dos pés. Ele não tinha sequer um vislumbre do plano. Como se transforma um monstro em uma pessoa? Demorou muito tempo para Alice reaparecer de novo, e Quentin já estava começando a se perguntar se deveria chamar o nome dela quando ouviu um barulho abafado e desajeitado no quarto abaixo, como alguém chutando algo pequeno e pesado em um tapete. Um minuto depois aquele fino esplendor azul veio filtrando a escada. Seja lá o que ele estivesse prestes a fazer, dizer ou lançar desapareceu de sua cabeça, e ele se levantou e caminhou com as pernas rígidas de volta para a porta. Ele não conseguia parar. Era como se suas pernas fossem biônicas e outra pessoa as estivesse controlando. Era isso que temia pela sua vida. Ele parou na frente da porta, ofegante, sem entrar, ainda não. O que ele ia fazer? Ele queria gritar com ela: Acorde! Se lembre de quem você é. Eu preciso falar com Alice! Mas o problema com monstros é que você não pode falar com eles sobre isso, porque eles se recusam a reconhecer que são monstros. Ela veio subindo pelo chão. Quentin se afastou da porta com um salto, saiu do quarto e desceu as escadas como um atleta. Ele ouviu uma risada estranhamente familiar. Era dela, mas fria, musical, mecânica, como alguém batendo em um copo de vinho. Ela desceu as escadas atrás dele e ele recuou para a versão espelhada do quarto de Plum. Ele teve um vislumbre dela – não era realmente Alice, não exatamente. Ela ficou turva por um segundo, como um holograma de si mesma em baixa resolução. Seus cabelos flutuavam sem peso ao redor de sua cabeça. E ela nunca parava de sorrir. Nunca. Lábios azuis, dentes azuis. Talvez fosse divertido ser um nifo. Talvez todos estivessem errados sobre eles. Ela o seguiu até o primeiro andar, atravessou a sala de jantar e subiu as escadas, depois desceu e subiu de novo, então voltou para o terceiro andar. Ela não se apressava, embora quando ele se apressava, ela também, como se isso fosse uma das regras do jogo. Poderia ter sido engraçado se não estivesse sendo perseguido por um demônio azul que poderia queimálo apenas o tocando, e talvez até sem tocá-lo. Às vezes, Alice prestava atenção nas paredes, no chão e no teto, às vezes passava por eles sem resistência. Talvez a coisa mais estranha sobre esse duelo surreal tenha sido que Quentin estava começando a gostar disso. Por mais distorcida ou transmutada que fosse ela ainda era Alice. Ele estava passando tempo com ela. Ela era pura magia agora, pura raiva e poder, mas ele
sempre havia amado seu poder e sua raiva. Essas eram duas das melhores virtudes de Alice. Ela não era Alice, mas também não era completamente não-Alice. Nesse ritmo, Quentin poderia ficar à frente dela para sempre, contanto que evitasse ser encurralado. Era como se ele fosse um fantasma, pensou ele atordoado, e ela era Pac-Man, ou o contrário. (Embora não – Pac-Man poderia comer os fantasmas quando eles ficavam azuis. Não importa. Foco). Quentin se perguntou quanto tempo até que Alice perdesse a paciência e fosse atrás dele. Era como nadar com tubarões, exceto que ele sabia o que os tubarões queriam. Por outro lado, ele não conseguia imaginar nem em um milhão de anos o que Alice queria. Houve momentos em que ele queria se lançar contra ela, em seus braços, e deixá-la queimá-lo em um instante. Que ideia incrivelmente estúpida. Depois de meia hora, Quentin voltou pela porta vermelha, de volta para casa. Isso não estava os levando a lugar nenhum. Ele se sentou na beirada da mesa, ofegando um pouco depois de subir tantas escadas. Ainda estava vivo, mas não estava fazendo nenhum progresso. De um jeito ou de outro, ele estava fazendo isso errado. Ele ainda estava ali quando Plum chegou por volta das sete com café. — Deus — disse ela. — Você está brincando com essa coisa? — Com Alice — Ele corrigiu ela automaticamente. — Acho que sim. — Como está indo? — Muito bem — disse Quentin. — Eu não estou morto. — E Alice...? — Ela ainda está morta. Plum acenou a cabeça. — Não quero soar crítica — disse ela. — Mas talvez você devesse deixar isso em paz. Pare de tentar o destino. Eu me sinto estranha só de estar na mesma casa com isso. Com ela. — Quero aprender sobre ela. — O que você aprendeu até agora? — Não muito. Ela gosta de brincar. Ela poderia ter me matado agora, mas ela não fez isso. — Cristo! Quentin! Os dois olhavam a porta aberta como se fosse uma TV ou um buraco no gelo através do qual estavam pescando. — É estranho pensar que ela matou meu tio-bisavô Martin — disse Plum. — Mas parece que ela tinha suas razões. Ela está realmente viva lá dentro? — Não sei. Essa é a impressão que tenho. — Tudo bem. Vou deixar você fazer isso — Plum parou na porta. — Só... sei que você vai ficar obcecado com isso, então tente não esquecer o quadro completo. Se não houver esperança, você tem que me prometer que vai deixá-la ir. Ela estava certa, claro. De onde ela veio para ser mais sábia do que ele aos vinte e um anos? — Vou deixá-la ir. Eu prometo. Mas ainda não. — Vou te deixar sozinho. — Não estou sozinho — disse Quentin. — Alice está aqui.
••• Mais tarde naquele dia Quentin tentou lutar com ela. Ele próprio tinha visto Alice destruindo Martin Chatwin com todo um arsenal de magia que ele nunca tinha visto antes, mas isso foi há muito tempo. Agora Quentin conhecia algumas coisas de guerra e escudos. Poderia lançar um míssil mágico como os melhores. Ele era uma maldita crise de mísseis mágicos de um homem só. E Alice estava brincando com ele. Este era um jogo para ela. Quentin tinha pelo menos essa vantagem: ele não estava brincando. Isso o fez se sentir doente, lutando com alguém que ele queria amar, mas agora Alice não estava em condições de amar ou de ser amada. Ele procurou pelo feitiço de proteção mais espesso e perverso que conhecia e, de uma maneira rudimentar, adicionou algumas melhorias para endurecê-lo. Respirando profundamente, ele passou pela porta do armário e, o mais rápido que pôde, lançou o escudo seis vezes seguidas, um após o outro, seis escudos mágicos pendurados invisíveis no ar à sua frente, ou quase invisíveis. Olhando através dos seis escudos ao mesmo tempo, o ar ficou um pouco rosado. Mais de seis teriam começado a interferir entre si e os efeitos teriam sido reduzidos. Além disso, ele não achava que poderia fazer mais outro. Então os mísseis. Ele os preparou com antecedência, com todas as guarnições: peso triplo, carga elétrica, capaz de perfurar armaduras, brutalmente envenenado. Ele não ousaria nem mesmo preparar o feitiço na Terra, quanto mais lançá-lo, se a casa não tivesse sido tão fortemente protegida. Se Quentin falhasse, atravessaria as paredes como se fosse papel, e estavam longe de ser legais nas ruas. Tecnicamente, ele iria lançá-los em outra dimensão, então talvez ele estivesse fora de qualquer jurisdição. Alice se levantou para encontrá-lo: hora de comer. Ela nunca tocou o chão, ele notou, embora quando ela viu que ele percebeu, deu um pequeno chute com as pernas, quase um balé, uma piada – como se estivesse dizendo, lembra quando eu costumava andar com essas coisas? Com certeza. Lembra quando eu costumava abri-las para você, querido? Quentin tentou matá-la. Ele sabia que não podia, mas achava que ela poderia sentir isso, e enquanto ela fosse um nifo, era praticamente a única interação que eles poderiam ter. Quentin lançou os mísseis mágicos, com força total e ainda mais; eles quase arrancaram as pontas dos dedos. Eles eram verdes e ardentes que corriam para Alice como peixes famintos. Mas a cerca de três metros dela, diminuíram a velocidade. Ela olhou para eles, satisfeita, como se Quentin tivesse feito biscoitos. Você não deveria ter se incomodado! Sob seu olhar, os mísseis perderam a coragem de suas convicções. Eles formaram uma linha, uma fila indiana, e obedientemente cercaram a cintura de Alice em um anel verde efervescente e faiscante. Então o anel explodiu em todas as direções. Dois dos mísseis ricochetearam ressonantemente no escudo sêxtuplo de Quentin. Ele se abaixou. Não teria sobrevivido nem a um deles. Então Alice estava do outro lado da sala flutuando no ar bem na frente dele. Ele não sabia se ela tinha se teletransportado ou apenas cruzado em direção a ele, ela era tão rápida. Pela primeira vez, ela parecia irritada. Ela mostrou seus dentes de safira. Era o fato de que ela era um nifo que a deixou tão zangada?
Ou ela tinha estado tão zangada o tempo todo? Talvez a raiva já estivesse dentro dela, e se tornar um nifo acabou por revelá-la – queimou o escudo de proteção. De qualquer jeito, era Alice, Quentin a teria reconhecido em qualquer lugar; ela estava mais do que viva, ela estava zumbindo e crepitando com energia. Seus olhos eram os mais brilhantes, os mais zangados, os mais magnificamente divertidos olhos que ele já tinha visto. Ela estendeu a mão e colocou a mão no primeiro de seus seis escudos, o pressionou com os dois dedos azuis, depois o atravessou. O escudo flamejou e morreu. O segundo escudo zumbiu de raiva quando ela tocou. Isso também deveria tê-la matado; Quentin acrescentou uma carga mágica sobre a qual ele conhecia apenas através de um livro, e em um livro que ele não deveria estar lendo. Alice balançou os dedos com prazer sensual. Delicioso! Com as duas mãos, ela agarrou o terceiro escudo e o pegou – o colocou de lado como se fosse um objeto físico, talvez um velho porta-retratos, e o encostou contra a parede. Era uma piada, a magia nem funcionava assim, mas se você fosse um nifo, funcionava do jeito que você quisesse. Fez o mesmo com o seguinte e o seguinte, os empilhando ordenadamente como cadeiras dobráveis. Quentin não esperou pelo final. Ele podia ver onde isso estava indo. Cedendo o campo de batalha, ele voltou pela porta. Ela o seguiria se pudesse, mas não podia. Era duro e liso como vidro para ela. Alice esmagou seu rosto e seus seios contra a barreira, como uma criança pressionando o rosto contra a janela, e olhou para ele com um olho grotesco, azul sobre azul. Ela estava o desafiando, o provocando. Vamos! Pare de mau humor! Você não quer se divertir? Quando ela abriu a boca era brilhante por dentro, como um negativo fotográfico. — Alice — disse Quentin. — Alice. Ele fechou a porta vermelha. Ele tinha visto o suficiente. ••• Ela era a louca no sótão. Era estranhamente íntimo, esse duelo desigual, só ela e ele, um contra um. Não era como sexo, mas era íntimo. Quentin era como mergulhador de pulmão livre tentando profundidades cada vez maiores, se forçando para baixo, com os pulmões estourando, depois chutando freneticamente para a superfície com suas pequenas nadadeiras humana insignificante, a imensidão azul beliscando seus calcanhares. Quentin registrou suas viagens em um caderno espiral: onde ele foi, onde ela foi, o que ele fez, o que ela fez. Não tinha muito sentido, porque o desempenho era mais ou menos o mesmo de todas às vezes, mas o ajudava a combater a tristeza. E ele notou uma coisa: Alice gostava de atraí-lo para a porta da frente da casa, como se o estivesse desafiando a abri-la. Isso parecia um desafio que era melhor não aceitar. Mas se não houvesse mais nada a oferecer? Sua pequena dança era como o fim de uma partida de xadrez desastrosamente sangrenta, com apenas uma rainha perseguindo um rei cercado por um tabuleiro vazio, recusando-se sadicamente, a lhe dar um xeque-mate. Era difícil saber se algo estava acontecendo na mente da rainha, mas uma coisa estava clara: Alice era melhor nesse jogo do que ele. Além de tudo, ela o conhecia melhor do que ele próprio. Sempre foi assim. Então, naquela noite, perto da meia-noite, quando Plum estava em segurança na cama, ele
inverteu as táticas novamente. Alice queria que ele abrisse a porta da frente? Ele estava indo direto para isso. Dê a ela o que ela quer e veja o que ela faz com isso. Quentin ainda não sabia o que estava procurando, mas talvez descobrisse o que ela estava procurando. Ele preparou dois feitiços com antecedência e lançou o primeiro assim que passou pela porta. Criava uma imagem razoavelmente realista dele em todos os cômodos da casa. Não a confundiu, mas é possível que isso a irritasse, porque Quentin mal conseguiu chegar à escada antes que ela fizesse a ilusão desaparecer tão de repente que ele sentiu como se alguém tivesse esfregado seu cérebro com uma lã de aço. Para frente ou para trás? Em um pânico indigno, ele fingiu ir para as escadas, desviou-se de Alice de perto, arqueando seu corpo como um toureiro e se trancou no banheiro no patamar. Agora ele se prendeu, mas bom. Ele se atrapalhou em seu bolso e tirou uma caneta Sharpie que estava mantendo em caso de emergência. Escrevendo a toda velocidade, ele escreveu uma inscrição em suaíli do outro lado da porta, depois desenhou um grande retângulo ao redor de todo o quadro, com ornamentos complicados nos cantos, todos executados em uma linha ininterrupta. Era apenas uma barreira para isolar a magia, porque, ele raciocinou esperançoso, Alice agora era feita de magia. Era tudo em que ele conseguia pensar. A porta tremeu com um impacto, inchou visivelmente para dentro, o ar vindo das bordas como se uma granada tivesse explodido atrás dela. Segurou, mas imediatamente começou a se dobrar em seu quadro, e a pintura começou a ficar inchada. Não iria segurar por muito tempo. Não foi concebida como uma barreira mágica, só queria ser a porta de banheiro. Quentin se virou e seu olhar caiu no espelho do armário de remédios, no qual continuava a nevar. Experimentalmente ele passou a mão por ele – sem resistência. Outro portal. Ele colocou um pé no vaso sanitário, colocou o joelho na pia e passou pela abertura estreita. Estava frio no outro banheiro – o outro-outro banheiro. Desceu desesperadamente da pia e quase caiu no chão do banheiro, que estava escorregadio com lama. Onde ele estava agora? Dois mundos de distância da realidade agora, uma terra dentro de uma terra. Outro nível abaixo. O que ele faria quando a porta cedesse? Ele poderia desviar de Alice de novo, voltar, mas então o que ele teria ganhado? Ele não queria sair de mãos vazias, não de novo. O mergulhador de pulmão livre iria tocar o fundo, mesmo que isso significasse que não poderia voltar a subir. Tinha que haver algo interessante ali embaixo. A essa profundidade, talvez algumas das regras começassem a quebrar. Deslizando e de pé, meio andando, meio derrapando no corredor e para a imagem espelhada da imagem espelhada da oficina. As luzes estavam apagadas ali e Quentin apressadamente invocou alguma iluminação – as palmas de suas mãos brilhavam como lanternas. Algo estava diferente ali. Ele quase podia sentir o aumento da pressão das múltiplas camadas da realidade acima dele. Essa terra era mais pesada de alguma forma: como se tivesse sido colocada através de um filtro fotográfico que saturava as cores e tornava as linhas pretas mais grossas e escuras. Essa terra tentava penetrá-lo em seus olhos e ouvidos. Quentin não podia ficar ali por muito tempo. Mas para onde iria? Ele foi até as janelas e conseguiu abrir uma. A rua era reconhecivelmente sua rua, ou quase: havia uma estrada e postes de luz, mas não havia outras casas. Era como um complexo habitacional deserto que havia sofrido alguma calamidade financeira assim que a construção começou. Ao redor, ao longe, a areia fria
deslizava sedosa, sibilando, sobre a areia mais fria. Era noite e, em vez de luz, as luzes da rua se derramavam como se estivessem chorando. O céu era preto, sem estrelas, e a lua era plana e prateada: um espelho, refletindo uma terra fantasma. Isso era algo que ele não deveria ver. Era um esboço inacabado de um mundo, um cenário que não estava terminado. Ele fechou a janela. Essa oficina também tinha uma porta vermelha. Ele abriu e entrou. Agora ele estava chegando perto do coração de algo, ele podia sentir isso. Três níveis abaixo, a câmara mais interna, a menor boneca russa – uma pequena estaca de madeira com feições manchadas que mal se tornou uma boneca. Esse quarto não parecia em nada com a casa, mas ele reconheceu de qualquer forma. O carpete silencioso, aquele cheiro quente e frutado – a casa de um estranho, que ele só tinha entrado uma vez, e isso por apenas quinze minutos, mas era como se ele nunca tivesse saído. Ele estava de volta ao Brooklyn, treze anos atrás, na casa aonde ele foi para sua entrevista em Princeton. Era como se estivesse se aprofundando em sua própria mente, voltando no tempo e em suas memórias. Foi ali que tudo começou. Talvez se ele ficasse, poderia finalmente ter sua entrevista depois de tudo. Ele poderia voltar e obter seu PhD. Era real ou apenas um simulacro? Haveria outro Quentin mais jovem esperando do outro lado da porta, deprimido mais do que o habitual, enquanto ele ficava lá, agonizando na chuva fria? E seu amigo James, jovem, forte e corajoso? Os laços estavam ficando mais estranhos, as linhas do tempo formavam um nó górdio, o enredo se complicou até ficar irreconhecível. Ou era uma segunda chance? Essa era a forma de salvar Alice? Mude tudo para que nunca aconteça – rasgue o envelope e vá embora? Ouviu o som de madeira rachando, muito distante, em outra realidade. Duas realidades acima. A última vez que ele esteve ali, Quentin foi até o armário de bebidas. Lição aprendida. Ele olhou em volta: sim, um relógio de pêndulo, assim como na história de Christopher Plover. Era tão óbvio agora. Ele abriu a porta. Estava cheio de moedas de ouro brilhantes. Elas caíram no chão como um jackpot de Las Vegas. Elas eram como as moedas de Mayakovsky, mas deveria ter centenas delas. Deus, a quantidade de poder concentrado ali era impensável. O que você não poderia fazer com isso? Tinha seu mestre agora, ele era um mago mestre. Poderia salvar Alice. Poderia consertar qualquer coisa. Ele encheu seus bolsos com elas. Falando nisso: Alice veio rastejando pela porta atrás dele, aproximando-se de suas costas com a languidez de uma lontra. Hora de ir. Ele se esquivou dela e voltou pela porta para o outro lado. Na oficina, a neve estava se transformando em chuva e o assoalho tinha um dedo de lama cinzenta, e Quentin quase caiu correndo, com os bolsos cheios de tesouros. Ele bateu a porta do banheiro, mas depois se atrapalhou com a caneta Sharpie e a soltou. Não havia tempo. Ele soltou um feitiço que dobrou sua velocidade e subiu por cima da pia e sentiu o formigamento quente de muita magia muito perto de seus calcanhares. Alice era um borrão azul atrás dele, e Quentin não era mais rápido do que ela, mas era rápido o suficiente apenas para atravessar o patamar, atravessar a oficina e a porta vermelha para sair para o mundo real. Alice não o havia alcançado. Hoje não. Hoje não. Quentin ficou ali por um minuto, respirando, inspirando e se recompondo, com as mãos nos joelhos. Então ele enfiou as mãos nos bolsos e derramou o ouro em cima da mesa. Mostre a eles o que eles ganharam. Ele deveria saber. Era ouro de fada, como nos contos – o tipo de ouro que se transforma
em folhas mortas e flores secas quando o sol nasce. Foi o que ele encontrou. As moedas se transformaram em moedas comuns. Nunca seria assim tão fácil. Isso não iria funcionar. Tinha que haver outro jeito. Ele precisava dormir. Seu tornozelo estava começando a queimar onde a proximidade de Alice tinha queimado. — Quentin. Eliot estava de pé na porta, vestindo seu traje da corte filloriana, como se tivesse se separado de uma pintura de Hans Holbein. Ele segurava um copo da cozinha em uma mão, cheio de uísque, e o ergueu para cumprimentá-lo. — Parece que você acabou de ver um fantasma — disse ele.
CAPÍTULO 23
Quentin o abraçou com tanta força que Eliot derramou o uísque na sua frente, que ele reclamou em voz alta, mas Quentin não se importou. Tinha que se certificar de que Eliot fosse real e sólido. Não fazia sentido que ele estivesse ali, mas graças a Deus que ele estava. Quentin já teve o suficiente de tristeza, horror e futilidade por um dia. Ele precisava de um amigo, alguém que o conhecesse desde os velhos tempos. E ver Eliot ali, do nada, sem motivo algum, parecia prova de que coisas impossíveis ainda eram possíveis. Ele também precisava disso. — É bom ver você — disse ele. — Você também. — Você conheceu Plum? — Sim, uma garota encantadora. Imagino que vocês estão... — Não — disse Quentin. — Não mesmo...? — Não! Eliot balançou a cabeça tristemente. — Posso ver que não cheguei nem um minuto cedo demais. Ficaram acordados até tarde se enchendo de tudo o que havia acontecido, depois dormiram tarde e tomaram muito café e começaram tudo de novo. As notícias de Eliot deixaram Quentin bem para baixo: estivesse lá ou não, se poderia ou não vê-la ou tocá-la, achava que sempre existiria uma Fillory em algum lugar. Ele amava saber que estava lá. Isso ancorava seu senso de felicidade da mesma forma que reservas de ouro distante poderiam garantir o valor de uma cédula de papel. Era inconcebivelmente triste pensar no seu fim. E para onde todos eles iriam – todas as pessoas, animais e todo o resto? O que aconteceria com eles? — Mas você acha que pode haver algo aqui que poderia salvá-la? — disse ele. — Algo que Rupert teve? Eliot andou pela sala de estar em círculos. Plum e Quentin estavam sentados em sofás separados o observando. Enquanto eles dormiam, Eliot ficou acordado até mais tarde, revendo o caderno de Rupert. No começo, ele ficou animado quando percebeu que sua busca havia convergido com a deles – ele veio à Terra em uma jornada e seu melhor amigo já havia feito isso por ele! Mas ele voltou a se sentir frustrado de novo. — Talvez tenha sido a faca. Mas o que eu faria com isso? Quem eu iria esfaquear com isso? Nunca sei quem esfaquear. Mas também não sei o que fazer com o feitiço. — Não é para reviver uma terra morta — disse Quentin. — É para fazer uma nova.
— Deve haver algo mais nesse manuscrito, uma pista ou algo assim. E por que o pássaro iria querer isso? Por mais urgente que fosse a mente de Quentin ainda estava concentrada em Alice no andar de cima. Parte dele queria entrar no modo herói, pular para a defesa de Fillory, mas salvar Fillory era o negócio de Eliot agora. Era difícil admitir isso, mas era verdade. Ele faria o que pudesse, mas agora seu trabalho era Alice. — Mas então Martin fez o seu acordo com Umber? — disse Eliot finalmente. — Pensava que Umber fosse bom. E então Martin não matou Umber? — Ele ainda poderia ter matado — disse Quentin. — O clássico jogo duplo. — Ou talvez o Umber ainda esteja vivo em algum lugar. Talvez devêssemos pensar que ele estivesse morto. — Ah, gostei dessa — disse Plum. — Como você sabe que Martin matou Umber? Deus, eu ainda não consigo acreditar que estou falando deles como se fossem pessoas reais. Ou animais ou deuses ou o que quer que sejam. — Ember disse a Jane Chatwin — disse Quentin. — E Jane contou pra mim. Mas você está certo, talvez isso seja tudo culpa de Umber. Talvez ele seja a mão ou o casco escondido ou seja lá o que esteja por trás do apocalipse. — Mas por quê? — Eliot esfregou o rosto com as duas mãos. — Por que ele faria isso? Como ele pode estar vivo? Onde ele esteve todo esse tempo? Como ele pode ser mau? O que, ele é o gêmeo do mal de Ember? É um pouco clichê até mesmo pra Fillory. Baldes de luz do sol estavam se derramando com muito entusiasmo através das janelas salientes. Era claustrofóbico na casa – Quentin não tinha saído há vários dias. Por mais cansado que estivesse ele não dormiu bem na noite anterior. Era difícil saber que Alice estava ali, queimando, sempre queimando, com apenas uma fina fenda de mundo entre eles. Ele se perguntou se Alice já havia dormido. Ele não achava que ela fazia isso. — E o Castelo de Blackspire? — Eliot estava ficando cada vez mais animado. — O que é isso? Isso estraga toda a estrutura! Onde isso acaba? Umber tem que ser a chave, de um jeito ou de outro. Tem que ser. Essa deve ser a pista que Jane queria que encontrássemos. — Chegando ao fim do efeito da cafeína, ele caiu como se não tivesse ossos em uma poltrona de vinil. — Vou mandar uma mensagem pra Janet. Ela deve saber disso. — Você pode fazer isso? Enviar uma mensagem pra Fillory? — Não é fácil. É um tipo de telegrama muito caro. Mas sim, a classificação tem seus privilégios. Vamos falar sobre outra coisa. O que você aprendeu sobre a sua namorada morta? — Ela não está morta — disse Quentin. — Bzzt! — Eliot apertou um botão de jogo imaginário no braço da poltrona. — A resposta que eu estava esperando era: “Ela não é minha namorada, ela é um demônio de magia louco e raivoso”. Talvez você devesse destruir a terra. Eliminá-la. Corte suas perdas. — O que, com Alice dentro? — Bom, ela vai sobreviver, provavelmente. Não pode matar essas coisas. Ela só vai voltar de onde ela veio. — Mas ela ainda está viva, Eliot, e ela está aqui. Aqui! Se alguma vez houve uma chance de salvá-la, é essa.
— Quentin... — Nada de Quentin — Agora ele era o único a ficar animado. — É isso que estou fazendo. O que eu tenho que fazer. Você está salvando Fillory, eu estou fazendo isso. — Quentin, olhe pra mim — Eliot se sentou. — Você está certo. Se alguma vez houve uma chance, seria essa. Mas não há uma chance. Isso não é Alice. Alice já está morta. Ela morreu há sete anos e você não pode trazê-la de volta. — Fui ao Submundo. Ela não estava lá. — Você não a viu, mas isso não significa que ela não estava lá. Nós conversamos sobre isso. Quentin, eu poderia realmente usar sua ajuda. Fillory precisa da sua ajuda. E eu odeio ser grosseiro, você sabe que sim, mas Alice é uma pessoa. Estamos falando de Fillory, tudo isso, toda a terra, milhares de pessoas. Além disso, muitos animais fofos. — Eu sei — Eles estavam perdendo tempo, ele tinha que voltar lá para cima. — Eu sei. Mas tenho que tentar. — Qual é o seu plano lá? — disse Plum. — Não sei. Correr um pouco mais, lançar mais alguns feitiços. Talvez eu tropece em alguma coisa. Tentativa e erro. Plum bateu seus lábios com um dedo. — Não é da minha conta, mas tenho a impressão de que você está um pouco preso. — Estou preso. — Tenho a impressão — disse ela. — Que você está perdendo seu tempo, se esgueirando, se esquivando, evitando o confronto. — Não estou discordando de você, só não sei mais o que fazer. — Embora eu ache que esteja errada — disse Plum. — Vou lhe dar o benefício da perspectiva de uma mulher sobre isso. — Estou muito animado pra ver onde isso está indo — disse Eliot. — Não posso nem te contar. Continue falando. — O que eu quero dizer é conhecer ela cara a cara. Se levante e lute. Pare de se esgueirar. Veja o que acontece. — Eu tentei isso. Eu perdi. — Me parece que você tentou se esconder atrás de noventa escudos — disse Plum. — Essa merda provavelmente só a irritou ainda mais, e pelo que eu a vi já estava muito chateada. Você sabe o que deixa as pessoas com raiva? Quando elas estão tentando te dizer algo e você não está escutando. Então elas sentem que precisam falar mais alto e mais alto e mais alto, e você ainda não escuta. Você está apenas se assustando. — Porque é muito assustador. — Ela quer que você se levante e fique de frente pra ela, Quentin. O que eu estou falando é ir lá e lidar com ela. Você quer que ela seja uma pessoa de novo? Tente tratá-la como uma. Quentin balançou a cabeça. — Isso é suicídio. — É isso? Me parece com um relacionamento. — Você está sendo simplista — disse ele. — Eu sou? Por que ela ainda não te matou?
Um pesado silêncio caiu na sala. O problema era que Plum estava certa. No entanto, Alice chegou ali, não foi um acidente. Ele tentou fazer uma terra e não funcionou. Ele queria criar algo, fazer algo novo, ser alguém novo, mas estava ficando evidente que não poderia, até que lidasse com algo antigo. Não até que limpasse suas dívidas e colocasse seus fantasmas para descansar. Ele sabia que Plum estava certa porque era o que Alice teria feito. — Ainda acho que você deveria eliminá-la — disse Eliot, obviamente desapontado. — Novo começo. Recomeçar. — Tenho a sensação — disse Plum. — De que é um pouco tarde pra recomeçar. ••• De volta à oficina do quarto andar, Quentin abriu a porta vermelha novamente. Ele estava começando a odiar a visão de sua terra. Era uma coisa natimorta: ele queria fazer algo novo e real, e em vez disso ele produziu essa fotocópia fria e estéril. Algo deu errado, e mais e mais ele estava começando a pensar que o problema era ele. Sentou-se à mesa e olhou para suas anotações, pensando no que Plum havia dito e esperando que algum tipo de sinal emergisse do ruído. Ele deveria apenas entrar, ficar lá, olhá-la nos olhos? Talvez ele devesse. Lá estava ela, bem no batente da porta, o observando como se soubesse o que ele estava pensando. — Estou aqui — disse Quentin. — Alice. É hora de conversarmos. É hora de resolvermos isso. Alice flutuou lá, em queda livre, olhando em seus olhos. Alguma coisa estava faltando: se eles iam conversar, contar qualquer coisa deveria ser no mundo real, não na cópia. Ele queria atraí-la, forçá-la para o campo aberto, para sua terra. Seria um risco terrível. Um nifo na Lower Manhattan – se ele perdesse o controle, ele poderia estar olhando para um mágico 11 de setembro. Mas poderia resolver tudo conversando. — Venha aqui — Ela poderia? — Venha aqui fora. Vamos acabar com isso. Um sorriso fraco, mas nada mais. Alice não poderia ou não viria sozinha. Isso significava que ele tinha que ajudá-la. Ele começou com uma série de rasuras, banimentos e ataques anti-mágicos, cada um mais poderoso e violento do que o outro, mas a terra era mais forte do que parecia. Nem mesmo um arranhão. Não seria assim tão fácil, não sem luta. Ele mudou de estratégia: pegou seu bastão, seu adorável bastão de madeira preta e prata. Levou cinco tentativas, batendo contra os pilares de tijolos da oficina, mas quebrou ao meio e depois ele separou as duas metades. E mesmo assim a terra persistiu. Alice parecia estar gostando do show. Talvez isso não fosse uma questão de força bruta. Quentin se aproximou da soleira e ficou a quinze centímetros de distância. Fechando os olhos, ele desejou que a terra desaparecesse. Ele a imaginou renunciando à sua existência, rendendo-se, deixando sua substância fria se dissolver como se nunca tivesse existido. Nunca deveria ter existido. Não queria isso. Deixe ir.
Sim. Ele abriu os olhos. — Apaga-te, candeia transitória!— disse ele, e soprou suavemente. A casa de espelho desmoronou de fora para dentro. Houve um momento de silêncio – Quentin imaginou os arredores frios e arenosos se dispersando do lado de fora, as luzes da rua que choviam deixando de existir. Então veio um estrondo distante quando as andares inferiores começaram a se contrair como um acordeão. Quentin recuou até a porta. Alice olhou por cima do ombro – se um nifo não podia acreditar, havia descrença em seu rosto. Então o barulho se aproximou, e finalmente o quarto atrás de Alice se fechou como um compactador de lixo e ela foi empurrada rudemente através da porta para a realidade. Quando Alice se virou para encará-lo novamente, havia uma nova seriedade em seu rosto. Ela não estava mais brincando. Quentin gritou na direção das escadas. — Pessoal! Plum! Alice sorriu para ele como se dissesse: claro, vá em frente e chame sua namoradinha. — Não é nada disso. Quando ela passou pela mesa, seus dedos roçaram nela e começou a queimar. Quentin desceu as escadas com cautela, sem tirar os olhos dela, como se ela fosse um animal selvagem. — Plum? — chamou ele. — Eliot? Alice saiu. Eu desmoronei a terra e ela saiu. Ele ouviu Plum mexendo em seu quarto. — O quê? — Ela abriu a porta vestindo um moletom e seu cabelo solto, e viu Alice no topo da escada. Ela devia estar tirando uma soneca. — Ah. Tem certeza de que isso foi uma boa ideia? — Provavelmente? Eliot! — onde estava a porra do Grande Rei? O mais estranho era que Quentin não estava com medo. Normalmente, em momentos de crise, ele se perdia em um enxame de escolhas, paralisado com a possibilidade de fazer a coisa errada – havia tantas coisas erradas a fazer e tão poucas certas! Mas não desta vez. Desta vez o caminho estava claro para ele. Havia apenas uma escolha certa, e poderia ser fatal, mas a morte seria preferível a uma vida passada fazendo a coisa errada ou não fazendo nada. — Plum, fique atrás de mim. Ela fez isso, milagrosamente, e juntos eles desceram as escadas para a sala de estar, onde ele tentou parar Alice, bloqueando a porta. Magia cinética: bruta, mas ele tinha que tentar. Ele formou uma barreira com livros, pratos da cozinha, as almofadas do sofá, qualquer coisa em que ele pudesse usar magia. Mas ela passou através delas, e onde ela tocava pegava fogo. — Quentin! — disse Plum. — Esta é a minha casa! É minha! Não a destrua! Ela apagou o fogo, mas o ar cheirava a isolamento queimado. — Plum, você tem que sair daqui — disse ele suavemente. — Encontre Eliot e vá embora. Seja lá o que ele fosse fazer, ele não poderia fazer se estivesse se preocupando com Plum também. Ele não podia se conter e o seu controle não ia ser bom. Na verdade, se ele tivesse sorte, seu controle seria muito, muito ruim. Isso terminaria ali de um jeito ou de outro: ele iria recuperar Alice ou iria morrer tentando. Ela já havia morrido por ele uma vez, ele não podia fazer menos por ela. Um experimento: ele juntou as mãos, entrelaçou os dedos e todos os fios elétricos da sala
se dirigiram para Alice como se fossem cobras ao ataque. Era um feitiço que ele não poderia ter feito antes da morte de seu pai, mas ele carregava aquela força adicional com ele agora. A corrente fluiu, as luzes se apagaram e a aura azul de Alice piscou. Quentin cheirava a plástico derretido. Alice estreitou os olhos com prazer. Qual o próximo? Ele já tinha tentado mísseis mágicos. Uma gaiola magnética, talvez. Não? Apenas força então: barreiras, escudos, camadas grossas invisíveis de poder, uma após a outra, como ele tinha feito quando estava trabalhando na página, envolvendo Alice e depois contraindo e depois tendo a próxima envolvida em torno dela. A luz refratou-se e curvou-se em torno de Alice, produzindo distorções incidentais e arco-íris. Os feitiços lançavam pequenas faíscas orbitais e flâmulas. Ele a sentiu empurrando, provavelmente com uma pequena fração de sua força, mas ela ainda não havia passado por eles. O simples fato de ela sentir resistência já era um progresso. Talvez fosse amor, ou coragem, ou a fumaça de plástico, mas Quentin sentiu sua força aumentar, uma inundação crescente e crestante. Ele se sentiu assim antes em Fillory, na Ilha de Benedict. E ainda mais tarde, naquela primeira noite em Brakebills, quando ele sentiu a força aumentar pela primeira vez. Mas ele estava ainda mais forte agora. Se sentia bem. Não restava muito tempo. Graças a Deus o prédio já estava protegido, porque ele podia sentir a energia na sala pressionando as paredes, inchando-as para fora e ameaçando explodir as janelas. Alice empurrou mais forte o envelope de força, franzindo a testa. Seus olhos percorreram a sala em busca de qualquer coisa de metal, encontrou a estrutura de aço do sofá e a puxou para ele com um feitiço magnético. Ampliando sua força, endurecendo as mãos, Quentin a dobrou na forma de um arco com dois pés: um ômega. Quase chegou tarde demais. Como alguém rasgando papel de seda, Alice atravessou sua prisão e o alcançou. Suas mãos azuis agarraram o selo logo acima de Quentin, mas ela não conseguiu passar por ele. Seus rostos estavam próximos agora. Ela estava sorrindo, como de costume, mostrando seus dentes perfeitos de safira, como se ela mal conseguisse deixar de rir. Quentin devolveu o sorriso. Isso, finalmente, estava certo. Ele estava se encontrando com ela cara a cara, como Plum disse. Força contra força. Quentin apoiou uma perna atrás dele. Não mais rondando em mundos sombrios, isso era real. Ele podia sentir o poder dela, o zumbido e o estalo. Alice também poderia senti-lo? Deus foi um alívio deixar ir, perder a cabeça completamente e dar tudo o que tinha e descobrir de uma vez por todas se era o suficiente. — Isso é tudo, Alice? — disse ele. — É isso? Eu quero mais. Me dê tudo. O metal brilhava vermelho e branco em torno das mãos de ambos. Em vez de proteger as próprias mãos, ele as transformou em metal: pegou emprestado do aço da estrutura do sofá e colocou nelas. Elas começaram a brilhar enquanto ele despejava mais e mais de sua preciosa energia para manter a proteção e se evitar pegar fogo. Ele ia vencer essa coisa, essa abominação mágica que tinha Alice presa dentro dela, ele iria abrir e puxá-la para fora como as garras da porra da vida. Seu sexto sentido de mago o advertiu assim quando o equilíbrio mudou: essa coisa estava ficando crítica. Seu ômega era de aço, mas no final do dia era apenas a estrutura do sofá e ele estava pedindo mais do que tinha para dar. Conseguiu criar um último escudo, este apenas
em torno de si mesmo, depois o soltou. O glifo de metal explodiu em vapor nas mãos de Alice. A explosão os separou – ele derrapou alguns metros no chão da sala. Deixou cair tudo. Seu escudo evaporou. Suas mãos e braços eram de carne novamente. Era só ele e Alice, sem nada entre eles, apenas ar vazio, silêncio e sete anos de tempo perdido. Durante toda a luta, ele continuava esperando entrar em pânico, mas o pânico nunca chegou e agora sabia que não viria. O velho Quentin poderia ter sentido pânico, mas ele não era mais uma criatura medrosa que saltava diante de sua própria sombra, nunca sabendo quem ele era ou por quê. Quando era mais jovem, tinha a sensação de que a única vez em que ele não estava com medo era quando estava com raiva. Estava tão cheio de medo e insegurança que a única maneira que ele conseguia pensar em ser forte era atacar o mundo ao seu redor. Mas isso não era força real. Ele entendia isso agora. Ambos vieram de tão longe para estarem ali. Ele estava recebendo uma segunda chance e não iria desperdiçá-la. — Você — disse ela. — Não sou o garoto que você conhecia, Alice — disse ele. — Não mais. Esse garoto se foi. Agora eu sei quem eu sou. Mas você não me conhece. Uma grande e cálida calma estava crescendo dentro dele, saindo do reservatório escondido onde esteve esperando todo esse tempo, se ao menos soubesse onde encontrá-la. Os olhos de Alice se estreitaram. Ela ficou para trás, desconfiada, o analisando. Quentin começou a tirar a camisa, começou a desabotoá-la e depois a rasgou. Era hora de entrar com tudo. Ele quase perdeu a chance. Tendo decidido, evidentemente, que Quentin estava blefando, Alice foi a sua direção e, dessa vez, ela estava vindo para matá-lo. Ele se virou e gritou uma palavra que não ouvia desde os vinte e dois anos. Ele não sabia se Alice era tecnicamente um demônio ou não, mas de qualquer forma ele tinha uma armadilha de demônio vazia tatuada em suas costas, e ele ia usá-la. Era tudo o que ele havia deixado. Quentin não viu isso acontecer, mas houve uma grande entrada de ar, como se um gigante estivesse ofegante de surpresa, e Alice gritou com raiva... — Não. Não! ... E Quentin ouviu o grito subir uma oitava e depois cortou bruscamente. Então a sala ficou em silêncio, e Quentin ficou sozinho, exceto por partículas de penugem do sofá no ar. No mesmo instante, sua tatuagem se iluminou com fogo frio; era como se alguém tivesse jogado nitrogênio líquido nas suas costas. Quando Fogg colocou um cacodemônio nas suas costas na noite anterior a sua formatura, ele não sentiu nada, mas isso não era nada. Isso doeu. E havia pressão dentro dele, uma pressão maciça. Não conseguia respirar. Ele gemeu como uma mulher em trabalho de parto, tentando encontrar alívio, mas só piorou. Podia sentir Alice lá dentro. Sentia sua raiva e seu poder e algo como êxtase. Quentin pressionou as costas contra a parede fria para tentar aliviar a queimação, mas não adiantou em nada. Ele sentiu como se suas costelas estivessem quebrando. Suas veias brilhavam nas costas de suas mãos. A porta da frente se abriu. — O que você fez? Onde está Alice?
Plum e Eliot estavam olhando para ele. Eles entraram prontos para a luta de suas vidas. — E você tirou sua camisa — acrescentou Plum. — Ela está nas minhas costas — sussurrou ele. Ele não podia falar mais alto. — Eu sei. Ele se afastou da parede e começou a andar rigidamente em direção às escadas. Suor escorria por sua testa, pingando em seu peito. — Vocês deveriam ir — sussurrou ele. — O que você está fazendo? — perguntou Plum, mas ele não podia nem responder ela. Podia sentir Alice se mexendo dentro dele como um gênio em sua lâmpada. Ela queria sair por qualquer saída que pudesse encontrar ou criar. Em sua mente, ele estava colocando as coisas em ordem, fazendo cálculos e ignorando as respostas quando elas não eram tranquilizadoras. — O que você está fazendo? — gritou Plum atrás dele. — Vamos — disse Eliot. — Temos que ajudá-lo. Eles o seguiram. Não podia detê-los, e Eliot estava certo, precisava da ajuda deles. Ele subiu as escadas para a oficina no quarto andar, a pele das costas dolorida e esticada como uma queimadura de terceiro grau. — Moeda — sussurrou ele. — Do Mayakovsky. Havia espaço suficiente ali. O feitiço veio a ele facilmente, automaticamente, como se tivesse aberto um canal profundo bem no meio dele, mesmo que ele estivesse lançando pela primeira vez. Ele podia ver a página da Terra Nula na frente dele em sua mente: as colunas de números, as órbitas girando ao redor uma da outra como um mago fazendo malabarismo, a planta com suas longas folhas farfalhando suavemente com um vento de algum lugar fora do quadro. Ele sabia tudo de cor. Até agora ele simplesmente não entendia o porquê. Era para isso que servia. Foi por isso que ele a pegou no ar e a salvou. Matéria e magia. Ele tinha pensado que era sobre fazer matéria mágica, mas agora tinha algo que era pura magia e ele iria transformá-la em matéria. Inverter o fluxo. Ele ia trazer Alice de volta ao mundo físico. Ele dava ordens – não havia tempo para ser educado – e Plum e Eliot lhe entregavam as coisas como ele pedia: pós, líquidos, livros abertos em diferentes páginas, uma das moedas de ouro. Quentin pegou tudo sem olhar, como um cirurgião completamente ocupado com um paciente. Era como se ele estivesse juntando as peças sem saber. Não poderia ter feito isso sem a sua força recém-descoberta e sem os pequenos reparos: ele sabia como consertar coisas quebradas. Procurou em suas entranhas pela última centelha de força mágica. Ele estava febril e seus joelhos pareciam que iam ceder a qualquer momento, mas sua mente estava clara. Ele sabia o que tinha que fazer, contanto que pudesse ficar de pé por tempo suficiente. Quando tudo estava completo, quando o encantamento pairava latente no ar como uma nuvem de tempestade prestes a explodir, ele virou as costas para o quarto e abriu a armadilha. Era como soltar uma respiração enorme que ele estava segurando por muito tempo. A sala estava inundada de luz azul, a luz de uma piscina em uma tarde de verão. Quentin quase desmaiou de alívio. Mais tarde, olharia para sua tatuagem e encontraria uma cicatriz elevada e enegrecida no centro da estrela.
A forma azul de Alice estava flutuando fracamente no centro do quarto, em suas costas, apática, mas agitada. Ela não estava sorrindo agora, nem um pouco. Sua expressão, quando ela se concentrou nele, era negra. Ela estava com raiva como uma vespa que havia sido presa em um frasco e depois agitada, e ela estava pronta para picar. Ela era a coisa mais linda e terrível que Quentin já tinha visto, como uma chama de acetileno, um filamento incandescente, uma estrela caída bem diante dele. Ele encontrou o olhar dela, o segurou e falou uma palavra em uma língua tão antiga que os linguistas do mundo acreditavam que ela havia sido perdida e esquecida para sempre. Mas os magos não haviam esquecido. A moeda de Mayakovsky, a segunda moeda, brilhou em sua mão, e ele se forçou a segurála com força mesmo que parecesse como um punhado de ouro derretido ou gelo seco – como se seus dedos estivessem derretendo ou enegrecendo e se enrolando. Alice se assustou como se tivesse ouvido um barulho. Não a voz dele, mas algo mais, algo bem distante. Um sino de igreja distante tocando ao amanhecer. Então o ar escureceu ao redor dela, e o mundo começou a cair sobre ela. Havia começado: o feitiço estava atraindo átomos do quarto ao redor dela. Sua pele escureceu e ficou apagada e opaca. Alice se contorceu enquanto as partículas se aglomeravam ao seu redor como insetos, se incorporando em sua forma. A matéria corria em sua direção, se apinhando nela, substituindo a substância áspera de sua luminosa e translúcida carne azul. Quentin cambaleou para trás, e Plum e Eliot o seguraram, e juntos eles cambalearam para fora da porta; não seria bom ficar muito perto e ter alguns de seus átomos atraídos para Alice. O feitiço faria isso se fosse necessário, o feitiço não se importava. Alice estava convulsionando, se tornando mais pesada, se condensando no ar, se incorporando à força. Ela gemeu, um profundo gemido de agonia, já meio humano. Sua luz de nifo estava desbotando. Alice parecia estar morrendo, e por um segundo terrível Quentin se perguntou se ele estava errado, se ele estava a matando em vez de salvá-la. Mas era tarde demais para voltar atrás. Quando acabou, quando todo o azul desapareceu, Alice caiu no chão de madeira com um baque surdo, forte o suficiente para pular uma vez e ficar imóvel. O quarto fedia a gases rarefeitos que pareciam agulhas em suas narinas. Alice estava deitada no chão de costas, os olhos fechados, respirando brevemente. Ela era carne novamente. A velha Alice, a humana Alice, pálida, real e nua. Quentin se ajoelhou ao lado dela. Seus olhos se abriram, mas dificilmente, meio fechados contra a luz. — Quentin — disse ela com voz rouca. — Você mudou seu cabelo.
CAPÍTULO 24
E
— scutem todos. Eu recebi uma carta de Eliot. Janet se sentiu confortável na cadeira de Eliot na sala de reuniões do Castelo de Whitespire. Ela poderia ter conduzido à reunião a partir de sua cadeira oficial, mas gostava da de Eliot. Não parecia diferente dos outros tronos, mas havia algo nela que parecia mais... agradável. Acolhedora. “Poder” ela supôs que fosse. “Cai bem em mim”. — Uma questão de ordem — disse Josh. — Agora que Eliot não está aqui, você é como a Grande Rainha? Ela era? — Claro. Porque não? — É só que… — Seus argumentos constitucionais estão um pouco demais neste exato momento, Josh. Além disso, eu escrevi a maior parte da constituição, então seus argumentos são inúteis. Todos eles. — Josh abriu a boca. — Bup bup bup. Vocês querem ouvir a carta ou não? — Sim — disseram Josh e Poppy juntos. Então eles deram um ao outro um pequeno sorriso de casados desprezível. — Claro — acrescentou Poppy. Suas mortes seriam incríveis – digo, a sacada estava bem ali – mas é difícil justificar politicamente. Janet seguiu em frente. Por enquanto. — Diz assim — Ela levantou a pequena fita de papel, como uma fita de um telégrafo, ou a mensagem de um biscoito da sorte. — “AS COISAS SE COMPLICAM PONTO UMBER ERA MAU E TALVEZ ESTEJA VIVO PONTO NINGUÉM SABE PONTO ENCONTREM ELE O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL PONTO PODE SALVAR O MUNDO PONTO TENTE DEBAIXO DO PÂNTANO DO NORTE TALVEZ PONTO VOLTO LOGO BEIJOS PONTO”. Houve silêncio na sala. — Só isso? — perguntou Poppy. — Você estava esperando...? — Não sei. Algo um pouco mais formal, talvez. — Ele nem mesmo disse oi pra nós? — disse Josh. — Não. Outras perguntas? — Ele realmente tinha que fazer assim? Como um telegrama? — Não, na verdade não. Acho que ele só gosta disso. Alguma pergunta de natureza mais
substancial? Josh e Poppy compartilharam outro olhar conjugal. — Não sei como expressar isso exatamente, mas que porra é essa? — disse Josh. — Umber não é mau. Ou não era mau. Ele era irmão de Ember. Além disso, ele está morto há um milhão de anos ou algo assim. Martin Chatwin o matou. — Ou — disse Janet. — Talvez ele não o tenha matado. Ou ele voltou à vida ou algo assim. — Por que Eliot não voltou? — disse Poppy. — Isso eu não sei. Também estou um pouco irritada com isso. E um pouco preocupada. Eu me apeguei bastante ao nosso Grande Rei. Talvez haja algo mais interessante acontecendo na Terra, mas não consigo imaginar o quê. Josh? — Como Eliot te envia cartas? — Ah. Nós improvisamos antes de ele sair. Elas meio que flutuam na superfície naquela pequena piscina transparente no pátio do lado de fora do meu quarto, nessas tiras de papel. É muito pitoresco. Então você as seca e as palavras são reveladas como em uma Polaroid. Poppy? — Devemos fazer isso? Devemos tentar encontrar Ember? Digo, Umber? Desculpe, os confundo. Cérebro de grávida, já começou. Sério, temos que nos mexer com isso porque estou quase no segundo trimestre. Nós temos seis meses. Uma coisa sobre Poppy, ela tinha uma atitude decidida. Era uma das coisas que Janet gostava dela. Talvez a única coisa. Ela também pensou que o cabelo de Poppy era muito bom. — Mas espera — disse Josh. — E se encontrarmos Umber? O que fazemos com Ele? Digo, temos que imaginar que Ele está bem acima da escala de poder. Não é como se nós o intimidássemos. — Bom, estive pensando sobre isso — disse Janet. — Talvez possamos colocá-lo na Tumba de Ember. Martin conseguiu prender Ember lá uma vez e ele não conseguiu sair. Me parece que aquela coisa é como uma instalação de confinamento projetada especialmente pra um deus carneiro. — Mas é arriscado — disse Poppy. — Poderíamos colocá-lo lá? Talvez tudo isso não seja um pouco precipitado? Só então Janet se sentiu cercada pela sensação mais estranha. Ela se sentiu puxada ligeiramente para um lado, todo o seu corpo, como se estivesse começando a perder o equilíbrio. Então a sala deu um pequeno solavanco e a sensação desapareceu novamente. Também afetou os outros, ela podia ver. Josh foi o primeiro a perceber isso. — A sala parou de se mover — disse ele. O Castelo de Whitespire era construído sobre fundações de mecanismo de relógio que giravam suas torres muito lentamente em uma dança majestosa e interminável, como xícaras de chá em um passei de carrossel lento e entediante. O mecanismo era alimentado por moinhos de vento. Normalmente você mal notava, mas agora eles notaram, porque havia acabado de parar. Até onde ela sabia as torres do Whitespire nunca haviam parado antes, mesmo nos tempos sombrios, nos piores momentos.
— Isso responde a sua pergunta? — disse Janet. — Este mundo está desmoronando. Temos que fazer alguma coisa e esta é a única pista que temos. Acho que é melhor usá-la. — Só estou dizendo que estamos falando de caçar um deus aqui — disse Poppy. — Não será fácil. — Se fosse fácil todo mundo faria isso. Assim que a torre parou de se mover, Josh saiu para a sacada e se inclinou sobre o corrimão de pedra, olhando para baixo. Agora Janet e Poppy o seguiram. Lá embaixo, pessoas minúsculas saíam das portas para as ruas e pátios, olhando em volta, incertas, piscando na luz do sol do fim da tarde. Um por um eles pararam e olharam para cima, olhavam para os três, protegendo seus olhos como se seus reis e rainhas pudessem ter algumas respostas. — Idiotas — disse Janet suavemente, mas só para constar. Talvez as grandes torres em giro perpétuo de Whitespire tivessem parado, talvez até as próprias esferas celestes não dançassem mais com a música do tempo. Quem diabos sabia disso? Talvez o único lugar onde ela já tenha sido feliz estivesse prestes a desmoronar. Mas nem mesmo o fim do mundo impediria Janet de ser uma vadia. Era o principio da coisa. ••• Foram todos, os três. Quatro contando o bebê. Josh e Poppy tinham discutido – não chegou ao nível de uma briga – sobre se Poppy deveria ir, mas Poppy saiu vitoriosa. — Você está se preocupando demais — disse ela. — Vou cuidar do bebê. Você cuida de mim. A viagem para o Pântano do Norte foi mais rápida desta vez. Não havia necessidade de passeios de diagnóstico vagando pelo deserto. Desta vez, eles poderiam tomar o caminho direto, o trem expresso: os hipogrifos, os mais rápidos da frota. Não podia usá-los o tempo todo. Eles eram desgraçados independentes que valorizavam sua liberdade, quase libertários, e eles eram muito pretenciosos também com suas penas, o que você sempre acabava puxando algumas, era impossível não fazer isso. Mas tempos desesperados, etc. Eles eram melhores que os grifos de puro-sangue de qualquer forma – essas coisas eram apenas anarquistas. Caoticamente neutro até o fim. O hipogrifo particular de Janet tinha uma crista vermelha engraçada entre as orelhas, uma característica que ela nunca tinha visto antes. Ele fez um show de ignorância quando ela montou com a ajuda de um impulso de um servo leal. Apenas uma vez antes do fim do mundo Janet não teria se importado com um pequeno gesto de respeito de uma dessas coisas. Ah, bom. Era bom ter uma visão de Fillory do olho de um hipogrifo, de qualquer forma, porque pelo menos confirmou que a interrupção de Whitespire não era um fenômeno isolado. Em todos os lugares havia sinais de que as coisas estavam seriamente fora do comum. Não era nada como quando ela e Eliot estavam viajando, apenas alguns dias atrás, e ela já sentia nostalgia só de pensar nisso. Agora a grama nos campos abertos ondulava e se inclinava em padrões estranhos e regulares, expandindo círculos e linhas em movimento – de cima, pareciam televisões analógicas antigas piscando e com a imagem se movendo na vertical. Então o eclipse, que era um evento diário em Fillory simplesmente não aconteceu. No
início, Janet não conseguia identificar o que estava faltando, mas depois olhou para cima e viu: a lua e o sol estavam desalinhados. Onde deveriam estar alinhados ao meio-dia, eles não se encontraram, o chifre da lua apenas roçou a coroa do sol e continuou em frente, como um trapezista condenado que perdeu a presa. — Merda! — disse Josh em voz alta. — O Homem de Giz caiu! Era verdade: ele havia caído de quatro na encosta da colina, sua cabeça inexpressiva se inclinando como se estivesse sendo dominada pela gravidade ou apenas pelo desespero. Seu bastão havia caído de suas mãos borradas. Flutuava ao lado dele, no meio da colina. Era uma visão incrivelmente patética. E havia esse maldito verão sem fim. Janet já tinha tido calor suficiente. Josh e Poppy ficaram ainda mais chocados com tudo isso do que ela. Eles estavam confortáveis no Castelo de Whitespire o tempo todo se reproduzindo. Eles tinham visto menos ainda do que Janet. Os hipogrifos não os deixaram no pântano, porque certamente o mundo estava acabando, mas isso não era motivo para que eles sujassem suas preciosas garras e cascos. Mas eles encontraram um ponto sólido e razoavelmente claro no perímetro e entraram para uma aterrissagem reconhecidamente graciosa e sobrenatural. — Esperem aqui — disse Janet a eles. — Nos dê vinte e quatro horas. Se não chegarmos, então vocês podem ir. Os hipogrifos olhavam para ela com os olhos amarelos de raiva e não davam absolutamente nenhum sinal de que iriam ou não dar a ela vinte e quatro horas. Janet entrou na lama com Poppy e Josh seguindo atrás dela. — Sem querer criticar — disse Josh. — Mas se eu fosse o Grande Rei ou a Grande Rainha ou o qualquer outra coisa, teria trazido talvez um destacamento de soldados conosco. Como uma força de apoio! Talvez aquele regimento de elite de Whitespire que é tão difícil de entrar. Você já viu aqueles caras fazendo exercício? É uma loucura as coisas que eles podem fazer. Janet respirou fundo. Paciência. — Estamos caçando um Deus, Josh. Você sabe como esse filme acontece. Primeiro você envia as tropas de choque, os mais durões, os caras definitivamente invencíveis, e o que acontece? Eles os matam instantaneamente. E é como, oh, que assustador, nuh-uh, esses caras deveriam ser invencíveis! Então os heróis entram e fazem o trabalho real. É tudo pra aumentar a tensão dramática. Eu pensei que talvez pudéssemos pular essa parte e ir direto ao ponto. — Mas eu amo esse filme — disse Josh, com tristeza. — Isso levanta uma questão interessante, Janet — disse Poppy. — Desde que estamos indo direto ao ponto. Como devemos lutar contra um deus? — Não é lutar — disse Janet. — É caçar. Mesmo ela não estava tão clara sobre a distinção que estava fazendo, mas ela pensou que poderia calá-los por alguns minutos para que ela pudesse pensar. Alguém tinha que fazer isso. — E nós não — disse Josh. — Você não vai lutar. Você vai cuidar do bebê. — Vou cuidar do bebê lutando — disse Poppy.
O tempo estava quente e úmido, mas a água lamacenta que continuava escorrendo pela grama encharcada em que eles estavam andando era um frio intenso. Havia profundidades naquele lugar que o sol não podia tocar. Felizmente, Janet tinha botas incríveis. — Enfim — disse ela. — Martin Chatwin derrotou Ember. Então isso pode ser feito. O que Martin Chatwin tinha que nós três não temos? — Como cerca de mais seis dedos — disse Josh. — Pra começar. Era bom estar de novo no campo, quaisquer que fossem as probabilidades. E era bom estar no comando. Antes do deserto, ela nunca tinha dado tudo de si, pelo menos não quando os outros estavam por perto para assistir. Isso a teria tornado muito vulnerável; de um jeito que ela realmente não poderia dar tudo de si. Não é de admirar que os outros não a tivessem levado tão a sério como deveriam. Além disso, ela tinha feito algumas merdas. Ela se perguntou se Quentin estava com raiva do que aconteceu naquela noite. Como se fosse ela que fez com que ele e Alice terminassem. Ela só fez aquilo por hábito. Se você tem um viciado em casa, você não deixa seus remédios sobre a mesa. E como se eles tivessem durado mais duas semanas de qualquer forma, considerando o perdedor que era Quentin na época. O engraçado era que, quanto mais Quentin se recompunha, menos ela queria dormir com ele. Estranho como isso funcionava. Quando eles encontraram a passarela, Janet começou a trotar ao longo dela, em um ritmo acelerado. Poppy estava atrás dela, mas Josh chamou “Ei, esperem!” e quando elas não esperaram, ele teve que começar a empurrar lentamente seu corpo pálido. O cara vivia em um mundo de fantasia sem comida calórica, carros, gorduras trans ou televisão e ainda era gordo. Tinha que admirar sua dedicação à causa. No caminho, Janet notou um par de sapatos de criança, velhos e desgastados, abandonados em uma pedra. Era a coisa mais estranha. Eles pareciam lamentavelmente muito pequenos. Ela se perguntou o que poderia ter trazido um menino tão jovem – eram sapatos de menino – até ali, nas profundezas do Pântano do Norte, e o que poderia ter acontecido com ele. Nada de bom. Quando o píer estava à vista, ela tirou os machados cruzados de suas costas. — Machados impressionantes — disse Josh. — Onde você...? — Sua mãe me deu — disse Janet. — Depois eu fodi ela. — Por que...? — Porque ela gostou muito. Talvez não tenha sido sua melhor resposta, mas não se ganha todas às vezes. E ela realmente não queria contar essa história de novo. Janet parou no final do píer e olhou em volta, com as mãos nos quadris. Tudo parecia normal. Não havia muitas coisas apocalípticas acontecendo ali. Embora, claro, os pântanos sempre pareciam o fim do mundo de qualquer jeito. Entropia máxima, terra e água misturadas caoticamente. Não havia muito mais colina abaixo onde eles pudessem ir. O vento agitava a superfície do pântano. Um par de árvores mortas partidas por raios apareciam no meio. Eu estava bem aqui, pensou ela. Uma semana atrás. De repente, ela se sentiu poderosamente consciente da circularidade e da futilidade da vida. Eliot havia dito que Umber estava debaixo do pântano, o que era ao mesmo tempo muito específico e muito vago. Ela pensou em pular cegamente, um salto de fé em Eliot e em suas
habilidades de coleta de informações. Mas havia a tartaruga gigante. Enquanto ela pensava em suas opções, Poppy passou por ela e começou a descer a escada. Foi uma ligeira infração disciplinar, mas desta vez ela ia deixar passar. Poppy mergulhou elegantemente um dedo na água, depois enfiou o pé inteiro. — Hum — disse ela. — Cuidado. Poppy não teve cuidado. Com a indiferença tradicional australiana à secura pessoal e aos predadores subaquáticos venenosos, ela se jogou de cabeça. O pântano engoliu em um gole todo o seu corpo magro. — Poppy! — Josh olhou para baixo em busca de sua esposa e criança desaparecidas. — Poppy! Jesus! Nada. Então a mão de Poppy emergiu a superfície calma da água, como a Dama do Lago, exceto que neste caso, em vez de oferecer uma espada mágica, a mão deu um grande sinal entusiasmado de positivo. — Ah, graças a Deus. Josh executou uma bala de canhão bem treinada no cais. Bomba. Tão furtivo. Janet desceu a escada de madeira desgastada com comportamento digno, como uma pessoa normal, até que ela estava imersa até os joelhos. Ela entendeu o que Poppy queria dizer – era uma sensação estranha lá embaixo. Como se não estivesse molhada, e como se houvesse algo tentando empurrá-la novamente para cima e para fora. Janet se inclinou e enfiou a cabeça para baixo. E desmoronou em um monte de terra úmida de cabeça para baixo. Janet se sentiu completamente nauseada; seu ouvido interno estava protestando vigorosamente ao que ouvia do resto de seus sentidos. Algo violentamente desorientador acabou de acontecer. — Jesus! — Ela cuspiu para evitar vomitar. Josh já estava de pé e pulando. — De novo! De novo! Pelo menos alguém estava gostando. Eles estavam debaixo d’água, os três, mas invertidos; isso é o que tinha acontecido. Eles estavam em pé na parte de baixo da superfície do pântano, que agora estava dura e escorregadia. Estava escuro ali embaixo, mas não havia dúvida de qual era o evento principal, um grande castelo que parecia exatamente como Whitespire, mas mais sinistro, com suas ameias iluminadas com tochas brancas. O céu acima – ou o leito do lago ou seja lá o que fosse – era preto. — Um Castelo de Whitespire debaixo d’água e de cabeça para baixo — disse Josh. — Admito isso não teria sido meu primeiro palpite. — É uma imagem espelhada. — Os espelhos invertem da esquerda para a direita, não de cima para baixo — disse Poppy, com correção tediosa. — Além disso, a questão do preto e branco não é... — Tudo bem, tudo bem, eu entendi. Eles não encontraram resistência, mas a ponte levadiça estava levantada, de modo que os três sobrevoaram por cima do muro e entraram no pátio. Eles não viram ninguém. Josh bateu na grossa porta que levava para o saguão externo. Nenhuma resposta, mas abriu facilmente.
O lugar parecia vazio, mas não abandonado – era arrumado e limpo, e mais tochas fumegavam e cuspiam ao longo das paredes. — Que sinistro — disse Poppy. Eles ficaram lá olhando ao redor sem rumo, pelo menos um minuto antes que percebessem que havia dois guardas paralisados no final do salão. Seus olharem estavam mortos – pareciam tão vivos quanto duas urnas decorativas. — Ah — disse Josh. Ele os chamou. — Ei pessoal! Que lugar é esse? Os guardas não responderam. Eles usavam versões sombrias e funerárias do uniforme de Whitespire, e era isso o que acontecia com os olhos deles: suas pupilas estavam realmente dilatadas, como se estivessem usando drogas. Que você não poderia culpá-los, trabalhando ali embaixo. Quando Josh se aproximou deles, eles não o cumprimentaram ou nem mesmo chamaram a sua atenção, mas eles se mexeram: cruzaram suas alabardas na frente da porta para barrar o caminho. — Ah, qual é! — disse ele. Eles baixaram suas armas em sua direção. Josh recuou. — Pego o da esquerda! Um machado de gelo de Janet acertou o guarda da esquerda na testa, enfiando-se no crânio como se estivesse em um toco, rachando o capacete e a cabeça entre os olhos. Foi um belo lançamento. O guarda soltou a arma com um barulho e caiu de joelhos, mas por alguma peculiaridade da anatomia ele não chegou a cair. Embora sangrasse, a inundação escura caindo sobre o rosto e se espalhando pelo chão de pedra. — Ou — disse Poppy. — Poderíamos tentar a diplomacia. Josh e Poppy lançaram feitiços cinéticos no guarda à direita e o levantaram, balançando em um canto do teto como um balão perdido em uma festa de aniversário. O guarda soltou sua alabarda, que ressoou e saltou uma vez no chão. Janet se sentiu um pouco envergonhada por ele. — Não posso acreditar que você matou o seu, Janet — disse Josh. — Por favor. Eu nem acho que esses caras são humanos. Eles não fizeram nenhum barulho, você notou? — Mas eles sangram. — Sua mãe sangrou quando eu... — Shh! — Poppy olhou para a escuridão que os guardas estavam protegendo. Ela levantou a mão. — ... quando eu deflorei ela — terminou Janet em um sussurro. — Isso nem faz sentido! — sussurrou Josh. — Shh! Eles se calaram. No silêncio, ouviram o som seco e irregular de cascos troando sobre a pedra. Com algum esforço, apoiando o pé na cabeça rachada do guarda, Janet balançou o machado para frente e para trás até que ele se soltou. •••
Seguiu-se meia hora de não muito digno jogo de esconde-esconde. Às vezes era difícil descobrir de onde exatamente o som estava vindo. Eles se moviam o mais silenciosamente que conseguiam, tentando localizá-lo, inclinando a cabeça e batendo uns nos outros nos ombros e apontando e acusando um ao outro de fazer muito barulho em sussurros acalorados. De vez em quando ouviam uma voz junto com os cascos, murmurando para si mesmo, apenas a beira da audição. — Sim, sim, apenas por aqui. Lá vamos nós. Por aqui. Agora tenha cuidado. Com quem ele estava falando? Era irritante. A voz não soava como o barítono olímpico de Ember. Uma vez eles perceberam que podiam pegar um atalho e quase o pegaram – tiveram um vislumbre de suas coxas oscilantes desaparecendo em uma escada em espiral. — Por um pelo — Eles o ouviram dizer. — Quase me pegaram! Isto foi seguido por um estranho gemido trêmulo. Os três pararam em uma galeria abobadada que conheciam do Castelo de Whitespire. Na superfície, estaria inundada de luz do sol. Ali embaixo, eles olharam pelas janelas em escuridão sem fim. Eles podiam ver o anel de água brilhante abaixo deles, a superfície do pântano invertido, um sol mergulhado nele como uma gema em um ovo prateado. De vez em quando, alguns peixes de cabeça para baixo deslizavam pelas janelas. O som dos cascos foi ouvido novamente, mais perto. — Não entendo — disse Josh. — O cara é um deus. Se ele realmente quisesse escapar de nós, ele simplesmente aparataria ou qualquer outra coisa. Ou ele quer ser pego ou ele está nos levando pra uma armadilha. — Vamos descobrir — disse Janet. Agora isso era uma demonstração de liderança. — Acho que ele está indo pro solário — disse Poppy. — Ótimo, então ele está preso. Não tem saída. — Então nós o prendemos. — Podemos até ficar aqui — disse Josh. — E não subir até lá. — O que, e deixá-lo morrer de fome? Até mesmo Poppy revirou os olhos. — Vamos acabar com isso e sair daqui. Este lugar está me assustando. — Sim — Janet estava começando a entender Poppy. Mais algumas décadas e elas poderiam até começar a se dar bem. Janet puxou seus machados, suas Tristezas e subiu as escadas correndo. Se você mora em um castelo cheio de escadas em espiral você acaba com panturrilhas de adamantium. Ela ouviu Poppy gritando alegremente e subiu atrás dela. Aquele tremor gemeu novamente. — Minha nossa! — disse a voz, bem acima, um suave tenor inglês, não em sua primeira juventude, com um toque de risada sarcástica. Era uma voz de comédia eduardiana. — Tambores de guerra! Isso a irritou. A porra do Homem de Giz estava de quatro. Você acha que isso é uma piada? Tambores de guerra? Vou te mostrar uma porra de tambor. Subindo os degraus, logo atrás dele, Janet sentiu o cheiro de sua lã oleosa e divina, estranhamente doce. Até ela estava sentindo a queimação em suas pernas. Ela deveria ter se alongado.
— Pare! Jesus! Nós só queremos conversar! “Nós só queremos falar sobre o quão morto você estará depois que nós matarmos você”. No parte de cima, o solário era uma bela câmara abobadada, mas ali embaixo era miseravelmente sombrio, apesar das quatro tochas que gotejavam em seus quatro cantos. Umber fez uma pausa longa o suficiente para Janet vê-lo pela primeira vez: parecia com seu irmão, obviamente, enorme, com grandes chifres curvados para trás como penteados com brilhantina, exceto que onde Ember era dourado, Umber era cinza como uma nuvem de tempestade. — Lá vamos nós! — gritou Ele. Uma das janelas se iluminou com a luz do sol; depois de uma hora sob o pântano, era como olhar diretamente para uma lâmpada de arco. Umber havia aberto um portal para o mundo acima. Ele correu para frente, começou com um galope preparatório e, em seguida, pulou pela janela, fez um médio mortal no ar e caiu de bruços – no céu? No teto? Não, era apenas grama. Lá em cima a gravidade estava invertida. Uma manobra impecável. — Faz muito tempo que não estive aqui — comentou Umber, trotando para longe. — Está mais perto do que você imagina! Janet afundou os ombros. Droga! Nós poderíamos perseguir esse cara para sempre e nunca pegá-lo. Mas Poppy, que acabou de chegar ao topo, estava totalmente destemida. Sem perder o passo – na verdade, ela pegou velocidade – correu direto para o portal, plantou as mãos no peitoril da janela, fez um movimento vertical, deixou a gravidade se inverter quebrando o plano e pousou de pé na grama, de bruços em relação à Janet e de frente para ela. Só de vê-la fez Janet querer vomitar. E ela nem estava grávida. — Vamos! — disse Poppy com entusiasmo. Ela se virou para encarar o deus carneiro que recuava. Até mesmo Umber parecia desanimado com sua vivacidade. Ele se assustou como um cabrito da montanha quando ouvia um tiro distante. — Adeus — disse ele, e disparou como um galgo, e o portal se fechou. Janet deu um meio passo em direção a ele, tarde demais. — Assim como a porra de um deus — resmungou ela. Ela ainda estava de pé lá, de braços cruzados, olhando para o portal, quando Josh chegou ofegante até o último degrau, como se estivesse tentando sair de uma piscina. — Vou saquear o castelo de loucura desse cara — rosnou ele. Janet contou a ele sobre a partida do deus, a ausência de sua esposa, etc. Ele parecia estranhamente imperturbável. — A propósito, sua esposa é muito impressionante. Acho que a subestimei. Então parabéns por isso. — Obrigado, Janet — Josh estava satisfeito. Como deveria ser. — Nunca pensei que ouviria você dizendo a palavra parabéns. — Não conta porque estamos debaixo d'água. — Então ele fez um portal, hein — disse Josh. — Você deu uma boa olhada? — Colinas — disse Janet. — Grama. Céu.
Josh acenou com a cabeça, sem dizer nada, mas seus olhos estavam ocupados. Ele esboçou rapidamente no ar com seus dedos grossos, diagramas invisíveis e sigilos. — Costa leste. Nordeste. — O que você está fazendo? Ah. — Ela esqueceu que Josh sabia três vezes mais do que qualquer outra pessoa sobre portais. Josh já estava perdido em concentração e em sua pintura de dedos imaginária, que ele acompanhava agora com grunhidos de satisfação e sussurros. Janet tinha que dar a ele o crédito: quando entendia algo, ele entendia de verdade. — Pfft — disse Josh. — Você deve estar brincando comigo. Ele se levantou e começou a andar pela sala, olhando em volta como se estivesse perseguindo um mosquito que ninguém mais podia ver. — Imaginei que Umber tinha que estar trabalhando em algo, como uma rede de transporte especial secreta e divina da qual nós, meros mortais, não temos acesso, em virtude de nossa natureza mortal decaída. Certo? Mas não mesmo! Então, onde exatamente Umber estava quando ele abriu essa coisa? Janet fez um gesto vago. — Mostre pra mim — disse Josh. — Preciso ver ou não funciona. Janet suspirou. — Se você olhar pra minha bunda vou dizer a Poppy. Janet ficou de quatro, no estilo de Umber, e representou a sequência exatamente. Josh acenou a cabeça severamente, olhando para sua bunda. Então Josh caminhou até a janela onde o portal estava e pressionou as palmas das mãos contra ele. Esfregou o vidro em círculos lentos e foi como se estivesse traçando uma lápide: onde quer que suas mãos fossem, aparecia uma imagem fantasmagórica e prateada do portal, ou melhor, da visão através do portal: uma série de colinas baixas, mas estranhamente regulares. Cada colina era perfeitamente lisa e mais ou menos da mesma altura que as outras, e estavam dispostas em fileiras perfeitamente retas. No topo de cada colina havia uma única árvore, um carvalho a julgar pela sua aparência. — Onde diabos é isso? — disse Josh. — Colinas das Árvores Secas — disse Janet. Tinha que ser. Não havia outro lugar parecido. — No norte ao lado da Baía Quebrada. — Estranho — Josh se inclinou para analisá-lo, colocou o nariz contra o vidro. — Colinas das Árvores Secas? — Alguns mistérios não valem a pena estudar. Josh, você pode nos levar até lá? — Posso? — Ele estalou os dedos uma vez, duas vezes. — Está quase lá. — Estalo. Na terceira tentativa, a imagem fantasmagórica explodiu em cores, em alta definição, transbordando de vida. — Aqui está, minha rainha. ••• Janet acabou se aproximando do parapeito da janela com os pés na frente dela, a parte de trás pressionada contra o chão e o rosto branco como giz, deixando que a gravidade agarrasse seus pés e os arrastasse para baixo, onde Josh poderia alcançá-los do outro lado. A queda
gravitacional não era algo que ela pudesse entender, muito menos seu corpo: ela congelou no meio do caminho, parecendo um pouco o Ursinho Pooh preso meio dentro e meio fora da toca do Coelho. No final, Josh teve que puxá-la para passar. Então ela estava de novo em pé no chão de Fillory, menos de quatro horas depois de ter ousado sair em busca do deus trapaceiro Umber, de quem não havia sinal em lugar nenhum. Refletiu novamente sobre o eterno retorno, a rotação cada vez maior, que parecia governar a história humana. Há uma maré nos assuntos dos homens. Uma maré lenta, que vomita na areia restos de naufrágios, lodo e algas em putrefação, como um gato deixando o cadáver de um rato à sua porta. Então ela volta em busca de mais. Eles estavam tão perto. Eles poderiam ter resolvido tudo. E agora eles não fariam nada. Umber tinha fugido. De qualquer forma, as Colinas das Árvores Secas era uma visão majestosa. As colinas estavam dispostas a distancia em fileiras, não perfeitamente regulares, ela via agora, mas quase como os pontos de borracha de um tapete antiderrapante muito, muito grande. Cada uma tinha sua própria árvore no topo, como uma vela em cima de um cupcake, e cada árvore era diferente. Em alguns lugares, as encostas das colinas tinham sido branqueadas de amarelo-ouro pelo verão infinito e implacável. Poppy estava lá, esperando por eles, a quatrocentos metros de distância. Ela apontou; espere um momento, talvez nem tudo estivesse perdido depois de tudo. Umber não estava se escondendo, estava parado lá, os observando, no topo de uma das colinas – uma fileira de distância, três outras ao lado. Ele não estava nem se mexendo! Eles podiam vê-lo claramente! Janet começou a correr em direção a ele. — Não corra! — Ela gritou com uma voz suplicante, como se o som de sua voz pudesse mantê-lo lá. — Não fuja! Por favor! Apenas fique aí! Umber não correu. Ele esperou por eles. Ele nem parecia particularmente preocupado quando os três humanos, duas rainhas e um rei, além de um herdeiro real no útero, subiram a encosta. Como cenário para os eventos cataclísmicos, as Colinas das Árvores Secas era a escolha perfeita. A vista era sublime. Janet se perguntou se alguém havia plantado as árvores no topo das colinas ou se elas haviam crescido assim. Na verdade, a entidade com maior probabilidade de saber a resposta a essa pergunta estava a dez metros de distância e cada vez mais próximo. Quando se aproximou Dele, Janet diminuiu a velocidade, não convencida de que Ele não iria fugir no momento em que chegasse perto demais. Seu estúpido rosto lanoso era impassível. — Então — disse Janet, ofegante da subida, com as mãos nos joelhos. — Alguém plantou essas árvores ou elas cresceram assim? — Você gosta delas? — perguntou Umber. — Elas são Minhas, é claro. Meu irmão fez as colinas, embora não ache que Ele quisesse deixá-las assim. Tenho certeza de que Ele planejou espalhá-las artisticamente depois, aqui e ali. Ele gostava de criar a aparência de uma história geológica profunda. Mas Eu disse: “Não, não, elas são maravilhosas assim como são”. E coloquei uma única árvore no topo de cada colina, e elas ficaram assim desde então. Desde o Primeiro Dia. Uma delas é uma árvore-relógio agora – aquele gemido trêmulo e curto de novo – era assim que Umber ria, aparentemente. Uma risada incrivelmente irritante e afetada. — Não sei como ela fez isso. Essa bruxa tem uma facilidade maravilhosa.
Seu jeito era diferente do de Ember. Ele era gentil, um pouco distraído, um pouco divertido, com um toque afeminado. Se Ele tivesse que usar roupas, provavelmente teria optado por uma gravata borboleta e um colete roxo. Janet não sabia se Umber era arrogante e se sentia acima de tudo ou era apenas um pouco maluco. Mas isso não importava, porque de qualquer jeito a ocasião estava ali. Era isso, hora das revelações, Umber ia contar tudo, todas as peças que faltavam e então eles saberiam o que fazer para Fillory viver de novo – oh, Deus, Janet percebeu o quanto queria que Fillory vivesse. Não queria voltar. Queria continuar sendo uma rainha. Outro caso resolvido. Depois de toda aquela perseguição urgente, Janet de repente sentiu como se tivesse todo o tempo do mundo. Um pôr do sol vermelho profundo estava se pondo no horizonte, como um machucado lívido começando a aparecer. — Você parece diferente do Seu irmão gêmeo — disse ela. — De quem? — Seu irmão? Ember? Seu gêmeo? — Ah! Ah. — Ele tinha um pouco de surdez seletiva. — Somos apenas bivitelinos. — Nós pensamos que Você estava morto. — Ah, Eu sei — Uma risada de gemido. Umber trotou em círculo, como um gato perseguindo seu rabo, tal era o Seu prazer. — Mas estava apenas fingindo. Martin queria que fosse assim. Um garoto tão estranho. Acho que ele nunca saiu da fase edípica. Estava sempre falando sobre sua mãe enquanto dormia, imaginando se seu pai estava vivo, esse tipo de coisa. Mas, claro, Você pode fazer muitas coisas enquanto todos pensam que Você está morto. Sem interrupções. Ninguém reza a um deus morto, por que fariam isso? Embora Eu tenha passado um tempo no Submundo. Não que precisasse, mas estava entrando no espírito do personagem. Eles queriam que Eu fosse o Senhor deles, os mortos queriam, mas Eu não. Imagine isso – Eu, deus do Submundo! Preferiria algo menos grandioso. Mais como, não sei, um visitante com uma bolsa de investigação. Mas aproveitei o Meu tempo lá. É muito tranquilo. E os jogos são tão charmosos! Poderia ter ficado pra sempre, realmente poderia ter. E então passei alguns anos como a sombra de Ember, o seguindo por toda parte, trotando sob Seus pés. Ele nunca soube! Eu teria pensado que seria óbvio, considerando o Meu nome. Mas vocês sabem, Ember não pensa assim. Nunca pensa. Ele é muito literal com as coisas. — Mas por que você fez isso? — perguntou Poppy, franzindo a testa e balançando a cabeça. — Não estou me referindo à coisa da sombra, mas por que você transformou Martin na Besta? Um suspiro profundo de Umber. Ele baixou os olhos dourados para a grama. — Isso acabou muito mal. Muito mal. Martin queria tanto e pensei que seria bom pra ele. Mas no final, fiquei tão decepcionado com Martin – seu comportamento. Vergonhoso. Sabe o que havia de errado com Martin? Ele não tinha autocontrole. Nenhum! — Eu diria que sim, isso acabou extremamente mal — disse Josh. — Não há muitos vencedores lá. — Nem mesmo Martin, no final — disse Umber, tristemente. — Pobre garoto. Ele queria muito ficar aqui. Nunca parou de falar sobre isso. E era muito brilhante. Não podia dizer não, poderia? Queria dar a ele o que ele queria, só queria dar a todos o que queriam. Mas então as coisas que ele fez. Desistiu de sua humanidade, sabe, pra ficar aqui em Fillory. Ele a sacrificou por mim, e há muito poder nisso. Até Eu fiquei surpreso com o quanto ele
conseguiu com isso. Mas acreditem, era a melhor parte dele. O resto dele acabou por ser uma merda absoluta. Comecei a Me esconder – ele realmente teria Me matado se ele pudesse ter Me encontrado. Então mais tarde ele disse que tinha feito isso e então deixei assim. É decepcionante. — Umber suspirou e se acomodou na grama, ficando confortável. — Muito decepcionante. Nós tivemos que mudar as regras por causa disso. É por isso que deixamos vocês ficarem, sabe. Paramos de mandar reis e rainhas pra casa. — Mas por que você pegou? — disse Josh. — Digo, sua humanidade? — Bom... — E o carneiro olhou para baixo novamente, desta vez envergonhado, com timidez. Ele arrastou uma das patas na grama. — Acho que tinha a ideia de que, se possuísse a humanidade de Martin, poderia ser o rei de Fillory. Além de deus. Um deus-rei poderia chamá-lo. Era apenas uma ideia. Mas então gostei tanto de estar morto que nem tentei. Essa conversa não estava do jeito que Janet tinha pensado que seria. Não esperava gostar de Umber, mas não esperava odiá-lo tanto. Esperava mais um tipo de supervilão encantador. Que ela pudesse se relacionar. Mas Umber não era encantador. Ele tinha um jeito de não se responsabilizar pelas coisas. Ela poderia ser uma vadia, mas pelo menos ela assumia. — Tudo isso é realmente fascinante — disse ela. — De verdade. Mas não é por isso que queremos conversar com Você. — Não é? — E a propósito — disse Josh. — Já que estamos conversando, por que Você correu antes e depois parou de correr? — Ah — Umber pareceu surpreso. — Pensei que vocês gostariam disso! Uma pequena perseguição. Não era isso que vocês queriam? — Não, na verdade não — respondeu Janet. — Embora eu tenha gostado da parte em que salvei tudo — disse Josh. — Isso foi bom. Sabe, com o portal. — É isso! — disse Umber. — Viram? E você também precisava do exercício. Isso teve o efeito de acabar com o sentimento de triunfo de Josh. Poppy deu um tapinha no braço dele. — Bom, tanto faz — disse ele. — Olha, é sobre esse apocalipse. O fim do mundo. Como vamos parar isso? Essa é uma das Suas coisas, certo? Umber parecia realmente ferido. — O apocalipse? Ah não. Isso não é coisa Minha. — Não é? — perguntou Janet. — Espera. — Minha nossa não. Por que Eu faria isso? As duas rainhas e o rei se entreolharam. Algo começou a morrer um pouco dentro de Janet. Ah, sim – esperança. É assim que as pessoas chamam. — Mas se não foi Você...? — disse Poppy. — Então, como vamos...? A estupefação era evidente mesmo no rosto desumano de Umber. — Parar com isso? Vocês não pensavam que Eu saberia. Não acho que vocês possam pará-lo. Como parariam um apocalipse? É apenas a natureza. Acontece por si só. — Então Você não pode... — disse Josh, mas parou. — Mas, então... — disse Janet. Ela não conseguiu terminar a frase também. Ela tinha certeza que era isso. A resposta, o fim da jornada. Tinha tanta certeza.
O impulso chegou a Janet do nada; de lugar nenhum chegavam seus melhores impulsos ultimamente. De repente, tudo se ligava em sua cabeça: Umber tinha tomado à humanidade de Martin, e fez tudo soar como uma brincadeira inocente, o que mais Ele poderia fazer? Mas Martin se tornou a Besta, a Besta havia arrancado às mãos de Penny, esmagado a clavícula de Quentin e transformado Alice em nifo. E ele tinha comido aquela menina na escola, como se chamava? Isso tudo voltava para Umber. Janet puxou um dos machados da correia em suas costas e no mesmo movimento bateu na cabeça de Umber com ele. Ela nem sequer teve tempo de colocar uma lâmina de gelo, era apenas uma chave inglesa de aço fria direto nas bochechas do carneiro. — Iá! Os olhos de Umber se arregalaram. Ela fez isso de novo, desta vez mais forte, e os joelhos do carneiro cederam. Esses machados malucos! Ela tinha que admitir, o Primeiro não a havia enganado sobre eles. Eles eram tudo o que ele disse que eram e muito mais. Poderia bater em um deus com eles, e Ele sentiria isso. Umber começou a se levantar, sacudindo Seu longo focinho, atordoado mais do que qualquer outra coisa, e Janet bateu Nele de novo, e de novo, e de novo, e as pernas de Umber se dobraram sob Seu peso, Ele afundou e perdeu a consciência. Então ela o bateu mais uma vez, bateu bem na orelha, arrancou um pequeno pedaço de um dos Seus grandes chifres. Faíscas azuis voaram. — Isso é por causa de tudo que Você fez. E por tudo que Você não fez. Seu idiota da porra. — Janet! — disse Poppy, perdendo a calma um pouco pela primeira vez. — Jesus! — Quem se importa? Não é Ele. Ele não pode nos ajudar. Ele não sabe de nada. — Além disso, quem sabe quando seria a próxima vez que ela poderia bater em um deus? Especialmente um que obviamente merecia isso. Umber estava deitado de lado, inconsciente, com a ponta da língua grossa saindo de Sua boca aberta. — Perdedor — Janet cuspiu Nele. — Enfim, Você nunca poderia ter sido rei. Você é muito covarde. Os outros apenas olharam para Janet e para o deus adormecido, deitado na grama verde como um campo de golfe, debaixo de uma árvore, no topo de uma colina nas Colinas das Árvores Secas. — Isso foi por Alice — disse ela. — E também pelas mãos de Penny. Por tudo isso. — Não, nós entendemos — disse Josh. — Mensagem recebida. — É melhor a gente ir andando — disse Poppy. Mas eles não saíram, ou não ainda. Ao longe, através de uma brecha nas Montanhas Sem Nome, eles viram que o sol quase chegou à borda do mundo. Eles observaram o sol se pondo. Mas então não se pôs completamente. Não chegou a fazer isso. Em vez de afundar abaixo do horizonte, o sol parecia descansar sobre ele. Pouco a pouco, incremento por incremento, sua borda inferior foi achatando, e chamas distantes e gotas de fogo começaram a subir em torno dele, complicando o pôr do sol. Houve um clarão de luz, depois outro, como se fosse um bombardeio distante. O som chegou a eles depois de alguns segundos, um estrondo crepitante e o tremor, uma vibração pesada atravessando a terra, como se alguém estivesse
passando uma lixadeira de cinta na borda do mundo. Algumas folhas caíram da árvore atrás deles. — Que porra é essa? — disse Josh. Janet desejou não entender, mas entendeu. — É o fim — Ela se sentou no alto da colina nas Colinas das Árvores Secas e abraçou os joelhos. — Está começando. Chegamos tarde demais. O apocalipse começou.
CAPÍTULO 25
Alice dormia. Ela já dormia por mais ou menos vinte horas, na cama de Quentin, deitada de costas, com a boca aberta, completamente imóvel sob um lençol fino, sem mexer nem se virar. Quentin ficou acordado o máximo que pôde a observando, ouvindo o leve assobio de sua respiração. Seu cabelo era longo, liso e emaranhado. Sua pele estava pálida. Suas unhas precisavam ser cortadas e tinha um machucado em um dos braços de quando caiu no chão. Mas estava saudável e completa. Era ela. Quentin olhou para ela e olhou para ela: ela finalmente estava de volta. Ele sentiu que poderia começar agora o resto de sua vida. Ele não sabia se ainda estava apaixonado por Alice, mas sabia que estar no mesmo quarto que ela o fazia se sentir real, completo e vivo de uma forma que ele havia esquecido. Quando ele não conseguia mais ficar acordado, os outros assumiram. Ele estava lá embaixo tomando café da manhã ao meio-dia, se preparando para outro turno, quando Alice acordou. — Ela disse que estava com fome — disse Plum. Quentin ergueu os olhos de seus Cheerios para ver Alice na soleira da porta, envolta em um roupão azul-claro de Plum, parecendo a mais pálida, mais lânguida, mais preciosa e mais vulnerável criatura que ele já tinha visto. Havia sombras roxas sob seus olhos. Ele se levantou, mas não foi até ela. Não queria incomodá-la. Queria fazer as coisas no ritmo dela. Teve muito tempo para pensar sobre esse momento, e sua única resolução era que ele não ficaria muito empolgado. Calma era o que Alice precisava. Ele fingiria que estava a cumprimentando no portão de desembarque depois que ela retornou de uma viagem longa e desastrosa. Era mais fácil do que ele pensava. Estava feliz apenas por vê-la. Não havia roteiros para isso, mas eles encontrariam uma solução. Agora eles tinham todo o tempo do mundo. — Alice — disse ele. — Você provavelmente está com fome. Vou pegar algo pra você comer. Alice não respondeu, apenas arrastou os pés até a mesa, depois olhou para ela como se não tivesse certeza de como exatamente funcionava. Quentin estendeu a mão, talvez para guiá-la, mas ela se afastou. Não queria ser tocada. Ela se sentou cautelosamente em uma cadeira. Ele pegou alguns Cheerios para ela. Ela gostava deles? Não conseguia lembrar. Era tudo o que eles tinham. Ele os colocou em uma tigela na frente dela, e Alice olhou para a tigela como se estivesse cheia de vômito fresco. Provavelmente os nifos não comiam. Provavelmente essa era a sua primeira refeição em
sete anos, porque era a primeira vez que ela tinha um corpo em sete anos. Depois de um minuto, Alice mergulhou uma colher na tigela, desajeitadamente. Todos estavam tentando não olhar para ela. Alice mastigou por alguns segundos, como um robô, como alguém que tinha visto diagramas grosseiros do que era mastigar comida, mas nunca havia experimentado antes. Então ela cuspiu. — Te disse que deveríamos ter comprado Cheerios Mel — disse Plum. — Dê tempo a ela — disse Quentin. — Vou comprar algumas frutas frescas. Pão fresco. Talvez isso desça mais fácil. — Ela pode estar com sede. Certo. Quentin deu a ela um copo grande de água. Alice bebeu em um longo gole, depois bebeu outro, deu um arroto colossal e se levantou. — Você está bem? — perguntou Plum. — Quentin, por que ela não está falando? — Vá se foder — disse Alice em um sussurro rouco. Ela subiu as escadas e voltou para a cama. ••• Quentin, Eliot e Plum estavam sentados em volta da mesa da cozinha. A geladeira tinha desenvolvido um defeito irritante em que zumbia até que alguém se levantasse e desse um empurrão nela, assim como é feito com alguém que dorme para parar de roncar, e então ficava em silêncio por meia hora antes de começar a zumbir novamente. — Ela deveria comer — disse Quentin. Ele se levantou. Não podia ficar sentado; assim que se sentava, levantava como se fosse uma mola. Ele se sentaria quando Alice estivesse melhor. — Pelo menos ela deveria estar com fome. Talvez esteja doente, talvez tenhamos montado seu corpo errado. Talvez ela tenha um fígado perfurado. — Provavelmente só está cheia — disse Eliot. — Provavelmente comeu um monte de gente antes de recuperarmos ela e só tenha que dormir. Quentin nem sabia se era engraçado ou não. Ele não sabia mais onde estava o limite. E seja lá o que Eliot tenha dito, ele passou quase tanto tempo ao lado da cama de Alice quanto Quentin. — Ela vai ficar bem — disse Plum. — Pare de se preocupar. Digo, esperava que ela fosse grata por termos salvado ela de ser um monstro, mas tudo bem. Não há necessidade de me agradecer. — Enfim, ela parece bem. Não envelheceu um dia. — Continuo me perguntando como era ser um nifo — disse Quentin. — Provavelmente ela nem se lembra. — Me lembro de tudo. Alice apareceu no pé da escada. Seu rosto estava inchado de tanto sono. Ela entrou e se sentou à mesa de novo, se movendo com mais confiança, mas ainda como um alienígena desacostumado com a gravidade da Terra. Parecia estar esperando por algo. — Nós compramos algumas frutas — disse Quentin. — Maçãs. Uvas. Um pouco de presunto. — Ele havia escolhido o que parecia delicioso e razoavelmente fresco no mercado chique da esquina.
— Gostaria de um uísque duplo com um grande cubo de gelo — disse Alice. Oh. — Claro. Agora mesmo. Ela ainda não estava fazendo contato visual com ninguém, mas parecia um progresso. Talvez isso a relaxasse – ajudasse a superar o trauma. Desde que o fígado dela não estivesse realmente perfurado. Quentin abaixou a garrafa, se sentindo muito consciente de que estava improvisando enquanto prosseguia. Ele colocou um cubo de gelo no copo e serviu o uísque. A questão era não ter medo dela. Queria que Alice se sentisse amada. Ou talvez isso fosse demais, mas ele queria que ela se sentisse segura. — Alguém mais? — perguntou ele da cozinha. O silêncio na sala era pedregoso. — Muito bem. Ele também serviu um pra si mesmo. Poderiam mandá-lo para o inferno se ele deixasse sua ex-namorada recém-ressuscitada beber sua primeira bebida em sete anos sozinha. Pela primeira vez, Plum e Eliot ficaram sem nada para dizer. Ele também os serviu uísque, caso eles mudassem de ideia. Alice engoliu o uísque com sede, depois pegou o de Plum e bebeu também. Quando terminou, ela olhou para o copo vazio parecendo desapontada. Eliot discretamente tirou o copo do alcance de Alice. Quentin pensou em dar a ela a garrafa, depois achou que talvez não devesse. Ela deveria beber mais água. — Você quer...? — começou ele. — Doeu — disse Alice. Ela soltou um suspiro trêmulo. — Se você quiser saber. Você já se perguntou Quentin? Alguma vez você realmente tentou imaginar como era – realmente tentou? Me lembro de pensar que talvez não doesse, que talvez passasse facilmente. Você nunca sabe, talvez o fogo mágico seja diferente. Vou te dizer uma coisa: não é diferente. Doeu como o inferno. Doeu aproximadamente tanto, eu acho, como se queimar em fogo normal. É engraçado, a pior dor que senti até então foi apertar meu dedo em uma cadeira dobrável. Acho que tive sorte. A lembrança a deteve e ela olhou novamente para o copo, para se certificar de que não havia mais nada. — Você acha que seus nervos não chegam tão alto, mas eles chegam. Você acha que eles têm um limite máximo. Por que as pessoas são capazes de sentir tanta dor? Era contra adaptativo. Ninguém teve uma resposta. — E então não doeu nada. Posso me lembrar de quando as últimas partes de mim se foram – os dedos dos pés e o topo da minha cabeça ao mesmo tempo – e então a dor desapareceu completamente, e eu queria chorar de alívio porque tinha acabado. Estava tão aliviada que meu corpo tinha desaparecido. Não podia mais me machucar. Mas não chorei, né? Eu ri. E continuei rindo por sete anos. Isso é o que você nunca entenderá. Nunca, nunca, nunca entenderá. — Ela olhou para o tampo da mesa. — Era tudo uma piada, e a piada nunca deixou de ser engraçada. — Mas não foi uma piada — disse Quentin em voz baixa. — Foi a coisa mais terrível que
qualquer um de nós já viu. Penny tinha acabado de ter suas mãos arrancadas com uma mordida e eu perdi metade da minha clavícula e a Fen foi morta. E então nós perdemos você. Não foi uma piada. — Cale a porra da sua boca! — berrou Alice. — Chorão de merda. Você nunca vai entender nada! Quentin a analisou. A questão era não ter medo. Ou que não parecesse com medo. — Sinto muito, Alice. Todos nós sentimos muito. Mas agora acabou e queremos entender. Pelo menos tente. Veja se você pode explicar pra mim. Alice fechou os olhos e respirou fundo. — Você não entende e nunca entenderá. Você nunca me entendeu quando era humana, Quentin, porque alguém tão egoísta como você nunca poderia entender ninguém. Você nem mesmo se entende. Então não pense que você pode me entender agora. Eliot abriu a boca para dizer algo, mas Alice o interrompeu. — Não o defenda! Você nunca teve a coragem de ter um sentimento real em sua vida, você está tão bêbado o tempo todo. Então cale a boca e escute alguém dizer a verdade pra variar. Eles escutaram. Ela parecia Alice – era Alice – mas algo não estava certo. — Uma vez que meu corpo desapareceu, uma vez que era completamente um nifo... sabe, fiquei pensando neste comercial antigo de pasta de dente. Não sei por que pensei nisso, mas o slogan era que a pasta de dente lhe dava aquela sensação de frescor, como sair do dentista. E era assim como me sentia, exatamente assim. Com todas as impurezas eliminadas. Me sentia fresca, leve e limpa como gelo. Eu era pura. Eu era perfeita. E todos vocês estavam em pé ao meu redor parecendo tão horrorizados! Você ainda não vê a graça? Eu me lembro do que pensei então. Não pensava em Martin, Penny, nem em você ou qualquer outra coisa. O único pensamento na minha cabeça era finalmente. Finalmente. Estive esperando por esse momento toda a minha vida sem saber. Quando fiz, quando lancei o feitiço, pensei que talvez pudesse controlar o poder por tempo suficiente para matar Martin. Mas uma vez que tinha o poder, uma vez que era um nifo, não queria mais controlá-lo. Não me importava nem um pouco. Você tem sorte que o matei, muita sorte. Nunca teria levantado um dedo pra salvar pessoas como você. Mas eu queria saber se poderia fazer isso. Quando arranquei a cabeça dele foi mais como um brinde, como tirar uma rolha. Um brinde à minha nova vida! Você quer saber como é ser um demônio? Imagine saber, sempre e para sempre, que você está certo e que todo mundo e todo o resto estão errados. Alice sorriu com a lembrança. — Poderia facilmente ter matado todos vocês. Tão facilmente. — Por que não fez isso? — Quentin queria saber sinceramente. — Por que faria isso? — rebateu ela. — Por que me incomodaria? Havia muito mais a fazer! Isso tinha sido ruim, e ele deveria ter previsto. O corpo de Alice estava de volta, mas sua mente – você não passa sete anos como um demônio sem consequências. Ela ficou traumatizada. Claro que ela estava. — Então você foi embora. Continue falando. Talvez isso acabe ajudando ela.
— Fui. Fui direto através da parede. Mal senti isso, era como uma neblina pra mim. Tudo era neblina. Atravessei a pedra para a terra preta. Lembro que não fechei meus olhos. Era como nadar em um oceano tropical à noite, quente, opulento, salgado e escuro. Alice parou aí e não falou por um minuto inteiro. Quentin trouxe água para ela. Ela parecia ter perdido a noção do desejo de continuar falando, mas depois a encontrou novamente. — Gostava de estar na terra. Era escuro e denso. Se lembra da boa garota que eu era? Lembra como eu era submissa e agradável com todos? Pela primeira vez na minha vida eu poderia apenas ser. Isso sempre foi parte do problema, Quentin. Senti que tinha que estar interessada em você o tempo todo. Você queria ser amado de uma maneira desesperada, e pensei que era meu trabalho dar a você. Pobre garotinho perdido! Isso não é amor, é o inferno. E eu estava sentindo o gosto do céu. Era um anjo azul. Nadei pelo chão durante meses. Está cheio de esqueletos. Dinossauros mágicos, quilômetros de comprimento. Tinha que haver uma grande era de dinossauros. Segui as costas de um por um dia inteiro. Havia cavernas também, terraplenos e muitos túneis de anões. Encontrei uma cidade subterrânea inteira uma vez, onde o teto havia caído, há muito tempo atrás. Estava cheio de corpos. Cem mil anões enterrados vivos. Ainda mais abaixo há mares negros, sem saídas, oceanos encobertos cheios de tubarões sem olhos que se reproduzem e morrem na escuridão. Há também estrelas lá embaixo, as subestrelas, queimando no subsolo, incrustadas na terra, sem que ninguém as veja. Poderia ter ficado lá para sempre. Mas no final fui para o Outro Lado. — Nós sabemos sobre o Outro Lado — disse Quentin. — Mas não esteve lá. Eu sei disso. Observei você às vezes. Estava lá no Fim do Mundo, olhando você de dentro do muro, quando eles te expulsaram. Segui você em seu barquinho, nove braças de profundidade, como o espírito em O Conto do Velho Marinheiro. Vi seu amigo morrer na ilha. Vi você foder sua namorada. Vi você indo pro inferno. — Você poderia ter nos ajudado, sabia? — Não, não podia. Não, não podia! — Seu rosto estava demente de alegria. — Essa é a questão! E você sabe por quê? Porque não me importava. Ela parou e fungou. — Engraçado. Não podia sentir o cheiro quando era um nifo. Mas ela não riu. — Então fui para o outro lado. Me deixei levantar e flutuar como um balão, para a escuridão externa. Eu empurrei as estrelas pra cima. Entrei no sol, passei uma semana em seu coração, andando ao redor, ao redor, ao redor dele. Eu era indestrutível, nada poderia me afetar, nem mesmo isso. Fui mais longe. Alguma vez você já se perguntou Quentin, se o universo de Fillory é como o nosso? Se ele continua e continua e há outras estrelas e outros mundos? Não há. Fillory é a única. Fui até lá, além do sol e da lua, através da última camada de estrelas – as estrelas eram as únicas coisas em todo o meu tempo de nifo que não conseguia atravessar – e então nada. Voei e voei por dias, nunca me cansei, nunca fiquei entediada, então me virei e olhei pra trás, e lá estava Fillory. Parece hilário de longe, você não pode imaginar: um disco gordo em espiral, em meio a uma multidão de estrelas, equilibrado em uma torre oscilante de tartarugas como nos livros do Dr. Seuss. É ridículo. Uma pequena terra de brinquedo, com a aparência pra todo o mundo de uma arte de spin art, dentro de uma constelação de estrelas brancas. A observei por um longo tempo. Não sabia se queria voltar. Foi o mais próximo que senti da tristeza.
Ela ficou em silêncio. A geladeira começou a zumbir. Eliot se levantou e a deu um empurrão. — Mas você voltou — disse Quentin. — Voltei. Fiz tudo o que queria. Uma vez fervi um lago com tudo dentro. Persegui pássaros e animais e os queimei. Todo mundo estava com medo de mim, era um pássaro azul da infelicidade. Às vezes eles gritavam, choravam e me imploravam. Uma vez... Alice engasgou de repente, como se algo frio a tivesse tocado. — Ah, Deus. Matei um caçador. — Um soluço rápido e convulsivo tomou conta dela, quase como uma tosse. — Tinha esquecido isso até agora. Ele ia matar um cervo. Não queria que ele fizesse isso. O queimei até as cinzas. Não demorou muito tempo. Ele nem me viu. Ela estava ofegante, a voz rouca, com uma das mãos no peito, como se estivesse tentando não desmaiar ou vomitar. Seu olhar percorreu a sala. — Agora está tudo bem, Alice — disse Quentin baixinho. — Não é sua culpa. Isso pareceu reanimá-la. Alice bateu as palmas das mãos na mesa. Sua expressão estava com raiva novamente. — É minha culpa! — gritou ela com Quentin, como se estivesse tentando pegar seu bem mais precioso. — Eu o matei, eu! Eu fiz isso! Ninguém mais! Ela colocou a cabeça para baixo em seus braços. Seus ombros estavam tensos. — Odiava ele. Mas odiava todo mundo. E mais do que qualquer um odiava você, Quentin. O ódio não é como o amor, não acaba. Isso dura pra sempre. Você nunca pode chegar ao fundo. E é tão puro, tão incondicional! Você sabe o que vejo quando olho pra você? Vejo criaturas sem graça, estúpidas e feias, cheias de lixo emocional. Seus sentimentos são corruptos e contaminados, e na metade do tempo você nem sabe o que está sentindo. Você é muito estúpido e muito insensível. Você ama, odeia, sofre e nem sente isso. Quentin ficou muito quieto. Não era nem o fato dela estar errada. Era verdade, isso é como as pessoas eram. Mas Alice tinha esquecido que ele também sabia disso, e que antigamente era parte do que os unia. Mas ele não disse isso. Ainda não. Alice parou e se endireitou novamente na cadeira. — Estou tendo desejos estranhos. Mangas. Marzipã. — Ela franziu a testa. — E como se chama? Erva-doce? Então desaparece. Faz tanto tempo desde que provei algo. Sua voz quando ela disse isso foi a coisa mais próxima da velha Alice que ele tinha ouvido desde que ela acordou. — Tinha muito poder. Muito poder. Depois de um tempo, percebi que poderia voltar no tempo. Era fácil. Se pensar sobre isso, estará se movendo no tempo constantemente, um segundo adiante a cada segundo, mas não é necessário. Você pode simplesmente parar. Quase poderia fazer isso agora – é como se você estivesse em um cabo de teleférico, subisse uma pista de esqui e simplesmente deixasse as luvas frouxas, deixasse o cabo deslizar entre os dedos e você diminuísse a velocidade e parasse. Lá vai o presente, correndo sem você, se foi, e sem mais delongas você está no passado. É um sentimento maravilhoso. Mas não pode mudar nada, só pode observar. Observei os Chatwins chegarem a Fillory. Observei pessoas nascendo e morrendo. Vi Jane Chatwin transando com um fauno! — Ela bufou de rir. — Acho que ela era uma pessoa muito solitária. Às vezes, eu apenas observava as pessoas lerem ou dormirem. Não importava, tudo era divertido. Nunca deixou de ser divertido. Uma vez me
deixei voltar ao começo de Fillory. O começo de tudo, ou esse tudo, pelo menos. Foi o mais longe que consegui ir. Você se deparava com isso, como se tivesse chegado o final do seu cabo. Não se pode dizer que foi uma bela visão, a aurora da criação. Era mais parecido como o cadáver do que havia sido antes. Apenas um grande deserto e um mar raso e de aparência morto. Não havia clima, nem vento, apenas frio. O sol não se movia. A luz do sol era... desagradável. Como uma velha lâmpada fluorescente que um enxame de moscas havia morrido. Olhando pra trás agora, acho que o sol e a lua devem ter colidido e se fundido em um único corpo celestial deformado. Observei o mar por um longo tempo. Você não pensaria que um corpo de água tão grande pudesse ser tão calmo. No final, uma grande e velha tigresa veio trotando para a água. Suas orelhas estavam danificadas, e ela havia perdido um olho e estava fechado. Podia vê-la se esticando ao longo de um quilômetro de distância. Pensei que ela devia ser uma deusa. Ela desceu até a beira da água. Olhou para o seu reflexo por um momento, depois trotou pra a água, até cobrir os ombros. Então ela parou, estremeceu e espirrou uma vez. Obviamente, era desagradável pra ela, mas fez isso de qualquer forma. Ela parecia muito corajosa pra mim. Continuou até ficar completamente submersa. E então nada. Ela se afogou. Vi o corpo dela flutuar até a superfície, de lado, virando devagar na maré baixa, e então afundou novamente pra sempre. Depois disso, nada aconteceu por um longo tempo. Então a água mais ou menos se reuniu em uma onda, e a onda jogou duas grandes conchas encaracoladas na praia. Elas ficaram paradas uma ao lado da outra por um tempo, e então outra onda veio e deixou pra trás uma cortina de espuma. A areia sob as conchas agitou, sacudiu e assentou, e isso era Ember. A espuma era sua lã. As conchas eram seus chifres. Ember trotou pela praia até encontrar outro par de conchas encaracoladas e as empurrou um pouco até ficarem próximas uma da outra, depois ficou ao lado delas, de modo que sua sombra caísse sobre elas, e então a sombra se levantou e isso era Umber. Eles acenaram a cabeça um para o outro e depois trotaram juntos para o céu. Eles se revezaram lambendo o grande sol da lua no céu até que se dividiram novamente em duas coisas, e então Ember chutou o sol em uma direção e o colocou em movimento, e Umber chutou a lua, e todo o negócio começou de novo. E esse foi o início de Fillory. Mas em geral não dou a mínima pra essa merda. Você sabe quais foram minhas partes favoritas do passado? Gostava de me ver dormindo com Penny, porque isso te machucava. E, acima de tudo, gostava de me ver queimando. Gostava de voltar quando morri e me esconder nas paredes e observar isso acontecer. De novo e de novo. — Você podia ver o futuro? — perguntou Eliot. — Não — disse Alice, no mesmo tom alegre e desinteressado. Era tudo o mesmo para ela. — Tem algo a ver com agendas e fluxo de informações, eu acho. — Talvez seja melhor assim — disse Quentin. — Se pudesse ter feito isso, tenho certeza que não teria voltado aqui. — Foi isso o que quis dizer. — No começo não conseguia nem chegar à Terra, mas algo mudou. A barreira amoleceu e pude passar. Descobri por acaso: gostava de espelhos – gostava de me ver sem carne – e então um dia toquei em um e entrei em um espaço estranho dentro dele. Estava no meio, como na Terra Nula. Espelhos dentro de espelhos que levavam pra baixo, cada vez mais profundo, e em algum momento eles se misturavam com os espaços de espelho de outros mundos. Passei messes lá. Estava frio, vazio, ou quase – uma vez encontrei um pássaro
perdido, voando em volta, tentando sair. Quando voltei, estava neste mundo, não em Fillory. Não me importei. Brakebills era interessante. Muita magia lá e muitos espelhos – tinha um espaço de espelho muito complexo. Pensei que poderia encontrar meu irmão lá, mas não consegui. Mas te encontrei, Quentin. Você era uma crosta de ferida que eu queria continuar coçando. Você me machucou, mesmo assim, e a dor era algo que eu gostava. E as pessoas eram interessantes. Sabia que Plum estava conectada a Fillory, embora ainda não tivesse certeza de como. Tinha certeza de que você ia transar com ela. — Por que literalmente todo mundo pensa isso? — murmurou Plum. — E então você tentou criar uma terra! — Ela ficou sem palavras com uma risada silenciosa por alguns segundos. — Ah, meu Deus, é tão patético! Você, Quentin, nunca poderia fazer nada. Você não vê? Como alguém como você poderia criar algo que estivesse vivo? Você é um homem oco! Não tem nada dentro de você! A única coisa que você poderia fazer era aquela casa de espelho fria e morta! E você sabe por quê? Porque tudo que você faz é o que acha que as pessoas esperam de você, e então sente pena de si mesmo quando elas o odeiam. — Eu mudei muito, Alice — disse Quentin. — Talvez isso tenha sido verdade uma vez, não sei. Mas mudei muito em sete anos. — Não. Você não mudou. — Pense nisso então: o Quentin que você conheceu poderia ter feito você ser humana de novo? Alice ficou em silêncio por alguns segundos, tempo suficiente para que Plum interviesse. — Por que você está nos contando tudo isso, a propósito? — Plum parecia que já estava farta de Alice. — Digo, é fascinante e tudo mais, mas não é o que esperávamos. — Estou dizendo isso — sussurrou Alice. — Pra que ele saiba o que ele fez. — Ela estava respondendo Plum, mas estava olhando para Quentin. — Me diga o que eu fiz — Quentin olhou de volta. Os olhos de Alice haviam mudado – eles não eram exatamente os mesmos olhos que ela tinha antes. — Quero saber. — Então escute: você me roubou — Ela cuspiu as palavras. Mas ela já estava perdendo o vapor, não tinha mais energia para ficar com raiva. — Eu era perfeita. Era imortal. Estava feliz. Você tirou tudo isso de mim. Você esperava que estivesse agradecida? É isso? Não queria ser humana de novo, mas você me arrastou de volta pra esse corpo. Ela ergueu as mãos como se fosse carne de má qualidade, descartada por um açougueiro. — Perdi tudo, duas vezes. A primeira vez eu desisti. Mas a segunda vez você me roubou.
CAPÍTULO 26
Outro tremor. Ele acordou Umber. Ele abriu os olhos. — Meu coração — sussurrou Ele. Mas quando Janet desviou o olhar do pôr do sol, a queda do sol, o deus se foi. Muito a fazer. Fim do mundo. Não posso ficar. Ele voltou muito rapidamente ao Seu ritmo, mas ela deixou passar. Passou pela sua cabeça que talvez Ele tivesse fingindo – talvez tivesse caído facilmente. Seria mais o feitio Dele. Enfim, Janet ficou aliviada que Umber tinha ido embora. Ela não queria especialmente passar o fim do mundo com Ele. Enquanto isso, a ação na borda do mundo era profundamente, extremamente terrível. O sol estava se desfazendo como uma abóbora podre – ele não tinha apenas roçado a borda de Fillory, mas estava definitivamente e agonizantemente, afundando lá, se achatando, gastando seus restos de energia térmica e cinética para se destruir e lançando gotas formidáveis, línguas de fogo no ar e erguendo um enorme pilar de vapor que subia para o céu. Janet nunca tinha visto a borda do mundo. Os outros tinham, mas agora ela nunca teria a chance. E mesmo se fizesse isso não seria o mesmo: agora teria uma enorme queimadura de cigarro. Janet olhou por cima do ombro para o outro horizonte e viu que a lua estava subindo, como de costume. A velha e boa lua. Ela devia orbitar duas vezes mais rápido que o sol, pensou Janet, para entrar em seu eclipse ao meio-dia e depois voltar outra vez para se levantar à noite. Ou não, teria que ir ainda mais rápido que isso. Velocidade variável? Múltiplas luas? Ela começou a tentar entender e depois parou. O que isso importava agora? — Nós não deveríamos estar aqui — disse Poppy. — Deveríamos voltar pro castelo. — O que isso importa? — disse Janet, mais alto desta vez. Ela desejou que Eliot estivesse ali. Ou Quentin. Josh e Poppy estavam bem, mas, vamos lá, eles eram novatos. Ela teria gostado da companhia de um veterano como ela. Até Julia. — Isso significa que somos os últimos — disse ela. — Os últimos reis e rainhas de Fillory pra sempre. Acho que é uma reivindicação à fama. — Ainda não acabou. Devemos voltar ao Whitespire. As pessoas precisam de nós. Esse era o espírito. — Vão — disse Janet. — Você está certa, vamos cuidar deles. Alcanço vocês. Vou ficar aqui um pouco. Janet não poderia ter dito o porquê, mas estar ali se sentia bem. As colinas estranhas, espaçadas de forma ordenada, iluminadas pela luz bruxuleante do sol agonizante, lançando longas sombras para trás e para longe – ela se sentia calma ali. Eles ficariam bem em
Whitespire. O que diabos a sua presença acrescentaria? Ela se sentaria para a última vigília ali, nas Colinas das Árvores Secas. Josh começou a dizer algo, mas Poppy tocou seu braço e ele calou a boca. Ela entendeu: eles estavam fora de sua profundidade. Josh, silencioso e sério, iniciou o ritual do portal. — Vou deixá-lo aberto depois — disse ele. — Sim. — Quando ficar pior — disse ele. — Voltaremos pra te pegar. Com o botão. — Sim. Estarei aqui. Então eles foram embora. O céu era de um azul profundo e, com o verde das colinas e o cinzento das montanhas e o vermelho alaranjado flamejante do horizonte, formaram uma cena muito surpreendente. Pena que ela não tinha uma câmera, um cavalete ou uma sensibilidade estética poderosamente desenvolvida. Janet não era contemplativa. Se sentou na grama fria de costas para o carvalho duro e nodoso no topo da colina. Talvez devesse estar usando óculos de sol, como aquelas pessoas que foram ao deserto para observar aos primeiros testes atômicos. Janet estremeceu. Parecia errado que de todos eles, ela fosse a testemunha disso. Ela – a cínica. Ela não se importava com nada. Bom, talvez fosse melhor assim, melhor do que alguém que era sensível demais. Quentin seria a porra de uma Fontana Trevi de lágrimas neste momento. Alguém ou algo a oeste dela tocou um grande chifre profundo, um pedal sustenido. Houve alguns segundos de silêncio antes que um tom de trompete de prata penetrante respondesse do sul, a mesma nota um punhado de oitavas mais altas. Em seguida, seguiu seis ou sete notas em uníssono, de todos os pontos cardeais, até mesmo do mar, movendo-se entre harmonias fabulosas e trítonos que estavam fora de sintonia. Quem diabos está tocando essa merda? – pensou Janet. Como eles sabem quais notas tocar? Talvez estivesse escrito em algum lugar, provavelmente sempre houve um grande chifre alpino em algum lugar embaixo do vidro, com uma placa que dizia: Em caso de Ragnarok quebre o vidro e toque em mi bemol. Onde está meu chifre? Teria sido bom pelo menos ter um chifre, pensou ela, permitindo-se alguma amargura, alguma autopiedade, porque se não agora, então, quando? Isso teria dado a ela algo para fazer. Como um todo à sua volta, as árvores-relógio começaram a tocar em uníssono. Janet não sabia que elas poderiam fazer isso. Ela se levantou. Isso não funcionaria. Estava deprimida e não funcionaria. Ela precisava se envolver, descobrir o que estava acontecendo. Se levantou e, naquele momento, a grama à sua frente quase explodiu quando um hipogrifo pousou em alta velocidade e deslizou até a metade da encosta em suas garras e cascos, rasgando metade da colina em seu caminho. Recompôs-se e subiu trotando a encosta em direção a Janet. Ele veio buscá-la. — Sua alteza, rainha Janet, governante de Fillory. Este hipogrifo está à sua disposição. Respeito. De um hipogrifo. Era realmente o fim do mundo. Janet se aproximou dele, colocou um pé na coxa do hipogrifo e passou uma perna por cima das costas largas, castanhas avermelhadas, de pelos curtos. A encosta da colina a ajudou. Janet percebeu que conhecia esse hipogrifo – tinha uma crista vermelha. Era o mesmo que ela tinha montado no pântano antes. — Vamos voar então, você e eu, besta valente — disse ela. — Embora seja pela última
vez, no último dia. Seja como for, ela disse a si mesma. Não julgue. Se alguma vez houve uma ocasião para esse tipo de conversa, era essa. Ela não tinha certeza se eram lágrimas ou o vento ou ambos, mas seus olhos estavam chorando quando eles subiram para o céu e teve que enxugá-las com a manga. Janet deixou que o hipogrifo escolhesse a direção e ele subiu em espiral sobre as Colinas das Árvores Secas e seguiu para o sul. A luz era indescritivelmente estranha: agonizante, a luz do sol piscando do oeste, à sua direita, e à sua esquerda a luz da lua crescente, os dois se encontrando e se misturando em um brilho prateado-dourado diferente de tudo o que ela já tinha visto. — Mais alto, mais alto! — Ordenou em voz alta, e o hipogrifo obedeceu. Ao subir, Janet lançou vários feitiços em si mesma, especialmente nos olhos: distância, foco, resolução, visão noturna. Se ela iria testemunhar isso, queria ver tudo, sem poupar nada. Orelhas também; aumentou sua audição. Ela seria o anjo da gravação naquela noite. O efeito foi desconcertante – uma inundação de dados, mais do que seu cérebro poderia processar, e literalmente jogou a cabeça para trás enquanto sua visão explodia com detalhes. Mas ela tinha que ver tudo. Dependia dela, de mais ninguém. Fillory estava fervendo de movimento – era uma noite agitada para a terra mágica e todos estavam na rua da cidade. Até as árvores se moviam: a imensa massa de tinta preta do Bosque Sombrio, a oeste, já não se mantinham em seu perfil tradicional. As árvores, ou pelo menos as animadas, haviam arrancado suas raízes e estavam marchando para o leste na direção do Castelo de Whitespire, quebrando suas juntas como se dissessem, ah sim, finalmente, vamos fazer isso. Devia haver alguma velha briga com Queenswood, pensou ela, e agora elas iriam acertar as contas. As árvores deixavam para trás uma pequena sombra de árvores inanimadas comuns, uma equipe esquelética onde era a floresta original. Sim: Queenswood, por sua vez, adotava uma posição defensiva, se estendendo em um crescente protetor em torno dos limites de Whitespire. Se movendo do sul para interceptar as Sombrias (presumivelmente, era o que ela teria feito) estavam as menores, mas não menos corajosas, árvores da Terra de Corian, reforçadas pelas pequenas macieiras e pereiras do Pomar do Sul. Fatídico. Como o Bosque de Birnam até Dunsinane. Era tão Macbeth. Ou Hamlet, não me lembro qual deles. O próprio Whitespire estava iluminado, todas as janelas; parecia um arranha-céu de Manhattan cheio de advogados poderosos trabalhando a noite toda. O pátio estava cheio de homens armados. Com quem eles lutariam? Eles aparentemente não tinham ideia do que estava acontecendo. Ou talvez fosse ela, Janet, que não sabia. Provavelmente, eles leram um monte de profecias. E ela nem sequer tinha a porra de um chifre. Os olhos de Janet eram como dois faróis invisíveis, impiedosamente límpidos, e seus raios gêmeos varriam as sinistras colinas gramadas de Fillory. Não eram apenas as árvores que se moviam, os animais também corriam abaixo dela, galopando, pulando, rastejando e voando. Cervos, cavalos, ursos, pássaros, morcegos, criaturas menores que poderiam ser raposas ou doninhas ou algo parecido. Lobos e grandes felinos corriam lado a lado – mas essa era uma nação completa e biodiversa que ela governaria por pelo menos durante, ah, as próximas duas
horas de qualquer forma. Todos eles, todos eles estavam fluindo em grandes números em vários vetores na direção do Castelo de Whitespire. Ou oops – fixou seus olhos – não todos. Alguns deles já estavam lá. Mais animais já estavam formados em fileiras em torno do Whitespire para encontrá-los. Ela finalmente entendeu. Deus, todas as tensões enterradas daquele lugar bonito e fodido estavam transbordando esta noite. Aqueles em Whitespire tinham que ser os animais falantes, e os animais comuns estavam marchando para guerrear contra eles. Janet sabia que eles sempre se evitavam, mas nunca havia percebido o quanto odiavam uns aos outros. Eles devem ter planejado esta noite durante séculos. Os animais que não falavam vieram como uma massa enfurecida; aqueles que falavam permaneceram muito quietos em fileiras ordenadas nos campos do lado de fora do Whitespire, pisoteando as plantações da mesma forma que todos os exércitos pisoteavam as plantações desde o início dos tempos. Uma missa negra, uma noite sem regras. Na linha de frente daqueles que não falavam havia alguns dos animais mais velozes, saltando sozinhos e em pares sobre as paredes de pedras baixas, ultrapassando-as por margens ridículas que beiravam o exibicionismo: guepardos e antílopes, ignorando uns aos outros, ou talvez fossem gazelas, além de alguns leões, cavalos selvagens e alguns filhos da mãe que pareciam ser gnus. Quem sabia que aqueles desgraçados poderiam correr assim? Era bastante surpreendente na verdade. Atrás deles, logo à frente da segunda onda, vinha uma matilha de cães muito grandes, ambiciosos e energéticos. Eles se chocaram com as linhas impecavelmente ordenadas de animais falantes, com alguns deles chocando de cabeça com um impacto que fazia geleia de cérebro e que fazia você querer encolher e talvez vomitar, mesmo daquela distância. Aquele som horrível tornou tudo dez vezes mais real, mais uniforme que o sol. Era o som da morte, o final irreversível. Isso estava realmente acontecendo e nada jamais seria o mesmo. Embora com mais frequência os animais escolhessem arranhar e rasgar, e quando faziam isso optavam por seus equivalentes, espécies contra espécies, aqueles que falavam contra aqueles que não falavam. Os gatos caíram imediatamente, rosnando e arranhando uns aos outros em uma névoa de poeira. Não se via nenhuma ação de cão contra gato, ou ainda não. Os animais falantes estavam gritando na briga, do jeito que os soldados humanos fazem: — Pra mim! Pra mim! — À minha direita! Flanco direito, flanco direito! — Espere, droga. Mantenha a linha. Resistência. Resistência. Era uma batalha muito igualada. Os animais falantes eram mais inteligentes e mais organizados, e eram, em média, um pouco maiores que os mudos, mas os animais mudos eram mais numerosos que eles. Janet se viu encorajando aqueles que falavam, instintivamente, mas depois se perguntou por quê. Eles eram moralmente melhores que os mudos? Eles mereciam ganhar? Talvez ela só tenha sido apenas preconceituosa. Aqueles que falavam pelo menos conseguiam conversar. Talvez ela devesse conceder isso aos mudos, uma vitória na última batalha, a que não contava para nada. Janet pensou nas preguiças. Provavelmente havia um contingente de preguiças a cerca de oitenta quilômetros de distância dali, todo um regimento de combate, e não chegariam até um mês depois, e então tudo estaria acabado. Ou talvez as preguiças não se importassem o suficiente para lutar. Bom Deus, era aquele urso Humbledrum, atacando a direita e a
esquerda. Um cara preguiçoso aquele, mas meu Deus. Que monstro. Ele tinha um colar de aço protegendo seu pescoço, e estava no modo berserker, sem dúvida alimentado por um barril ou dois de schnapps. Ela esperava que ele sobrevivesse. Embora, claro, nenhum deles fosse sobreviver, então talvez fosse melhor se ele morresse assim, no calor da batalha, em vez de ver as ruínas de seu mundo desmoronar sob seus pés. O hipogrifo levantou voo e Janet perdeu a visão de Humbledrum no caos e na escuridão. Ela nunca saberia. Ela estava vagamente ciente de que também havia combates no ar, ao seu redor, pássaros no ataque, combates aéreos complexos, salpicos de sangue e penas. De vez em quando um par de pássaros se agarrava e caía do céu, sem que nenhum deles quisesse soltar o outro para se salvar. Janet se perguntou se eles se separariam antes de caírem no chão, mas ela nunca podia seguir um par tempo suficiente para descobrir. Os homens também estavam lutando ao redor do castelo. Janet os observou, estreitando os olhos, concentrando sua visão telescópica ampliada magicamente. Com quem eles lutariam? Lorianos? Macacos? Não, apenas com aquelas bestas-humanas, metade animais, metade humanas que a Tumba de Ember estava cheia, e uma unidade de elfos negros com armaduras de aparência quitinosa de um preto brilhante. Onde eles estiveram todo esse tempo? Josh e Poppy estavam coordenando a defesa, Josh estava nas ameias e Poppy voava sobre a multidão como uma Valquíria com pernas longas, recebendo parte do fogo que vinha na forma de lanças e flechas que ela estava tendo problemas para controlar. Lá, ela estava recuando, voando mais alto, fora do alcance. Ela ficaria bem. Era melhor para ela, porque ela e Josh eram seu bilhete de saída daquele show de merda. O último helicóptero para escapar de Saigon mágica. Janet examinou a paisagem à procura de mais más notícias. Era tudo muito voyeurismo, como pornografia. Mais! Mais apocalipse! E havia mais. Muito mais. Os centauros vinham trovejando do Retiro onde costumavam ficar. Uma formação rigorosa para esses caras, eles provavelmente estavam praticando essa merda por gerações. Eles se juntaram a briga – na maioria das vezes lutavam com as duas mãos, com espadas curtas pesadas em ambas as mãos ou com arco e flecha – e puta merda! Eles estavam indo atrás dos animais falantes? Lá – aquele cara arrancou a cabeça do que momentos atrás era um cervo falante. Um jato de sangue subiu sobre as cabeças dos combatentes, depois enfraqueceu e diminuiu. Aqueles malditos babacas. Ninguém gostava deles e agora ela sabia por quê. Eles eram provavelmente nazistas totais – imaginavam que se pudessem eliminar os outros seres sencientes, poderiam administrar tudo de acordo com sua estranha filosofia fascista. Nem mesmo Janet podia permanecer impassível com isso. Ela enviou um par de relâmpagos em sua coluna e recebeu uma saraivada de flechas que o hipogrifo conseguiu desviar, depois inclinou a cabeça para ela, só por um instante, para dizer com seu olho amarelo de raiva: que porra, eu não vim para isso. — Sinto muito — disse Janet, e deu um tapinha no seu pescoço. — Simplesmente não suporto esses caras. Por um minuto, pareceu que os centauros iriam fazer a diferença, mas depois boom: uma ponta de lança de unicórnios bateu de lado em sua formação. Jesus. Janet teve que virar a cabeça. Você tinha que ver um unicórnio abrindo o flanco do centauro uma vez, o brilho
branco das costelas enquanto a pele rasgada caía, para fazer um juramento poderoso de nunca se envolver com um unicórnio, nem mesmo de olhar para ele. “Vou sacrificar os corações e as nuvens de algodão e vou recuar lentamente. Não quero nenhum problema aqui. Você pode pegar todos os arco-íris”. Era – visto de um certo ângulo clínico distanciado – como se Fillory estivesse jogando xadrez consigo mesmo. Um grupo de minotauros foi deixado para trás, ofegantes, distanciados pelos centauros, mas claramente ao seu lado. No entanto, naquele momento, bandos de grifos e pégasos começaram a cruzar o espaço de batalha de cima, chutando e rasgando. Na verdade, os pégasos davam a impressão de ter um valor nulo de uma perspectiva ofensiva: seus pequenos cascos eram leves demais e delicados para causar danos a qualquer um, e eles eram muito exigentes para bater em alguém com suas asas como um cisne teria feito. Mas ainda assim, respeito total a eles por aparecerem. E o que importava, porque os grifos estavam limpando a casa. Jesus, esses caras eram como tanques voadores. Bicos e garras. Construídos para a guerra. — Ei! — disse Janet ao hipogrifo. — Você quer entrar nisso? Você quer lutar? Mas a besta balançou a cabeça. Levar a rainha Janet era o suficiente. Suas ambições não iam mais além. Que ela entendeu perfeitamente. Essa seria sua contribuição para a guerra. — Qual o seu nome? — Asas de Inverno — gritou o hipogrifo em resposta. Janet deu um tapinha de novo no seu pescoço. — Bom voo, Asas de Inverno. Bom voo. Fillory é grata a você esta noite. Nos leve mais alto agora. Nenhuma parte de Fillory permaneceu intocada pelo conflito. Aqui e ali, em rios e riachos, as ninfas haviam chegado à superfície, a água que as rodeava refletia a estranha luz mista, embora só observassem por enquanto. Janet não as imaginava arrastadas a uma briga a menos que seus interesses fossem diretamente ameaçados. Algumas das dríades usavam a mesma estratégia, permanecendo ao lado de suas árvores, encostadas a elas ou girando seus bastões como um policial giraria um cassetete. Deus! Ela havia esquecido completamente as florestas. Elas estavam quase neles naquele momento. Um grupo de ulmeiros e bétulas da Terra de Corian (Corian: quem era ele? Outra coisa que ela nunca saberia) já haviam atacado a um grande carvalho do Bosque Sombrio. O carvalho era um monstro e tinha arrancado algumas das árvores mais leves e as agitava sobre a cabeça como um kraken, mas estava sendo superado. Alguns de seus galhos já estavam quebrados e as folhas voavam. As árvores, ao que parece, enlouqueciam completamente em uma briga. Janet olhou para cima e viu que a lua estava rolando. Ainda estava lá em cima, mas fora de seu curso, girando lentamente em seu eixo, sem rumo perdida no espaço. Por alguma razão, foi isso que aconteceu. Janet jogou os braços ao redor do pescoço do hipogrifo. Ela soluçou em suas penas macias, e também espirrou. Seja como for, provavelmente tinha ácaros de pássaros. Era isso, pensou ela. Esta era a melhor. A melhor coisa que já teve. Pensei que teria para sempre, mas estava errada. O pescoço do hipogrifo estava rígido e orgulhoso contra o rosto de Janet. Ele não se virou para olhá-la. Talvez não se sentisse muito à vontade com as demonstrações de emoção. Bom,
ele era um cara durão. Desde suas noites no deserto, Janet aprendeu a manter contato com suas emoções. Janet ouviu e sentiu um estrondo profundo, e olhou meio chorando. Metade das montanhas da Cordilheira da Barreira do Norte havia acabado de explodir, soprando seus cumes como espinhas de pus. Janet nem sabia que eram vulcânicas, mas agora elas estavam jogando grandes pedaços de lava em suas encostas mais baixas, como uma rainha do baile bêbada vomitando em seu vestido. Merda, o desastre estava ficando geológico. Fillory estava derramando seu sangue arterial quente. Ela fez um exame visual da costa. A Baía Quebrada estava transbordando em suas margens, afogando o sopé inferior das Colinas das Árvores Secas com água do mar; algumas das colinas haviam desaparecido e você só podia ver as árvores saindo da água. Mais distante para o mar, Janet pensou ter visto alguns barcos sencientes tentando escapar da tempestade. Ao sul, dunas monstruosas do deserto profundo atingiam as Montanhas de Cobre e ameaçavam enterrar as exuberantes planícies do sul na areia. Não! Fora! Ela queria esticar as mãos e empurrar o deserto para trás, enfiar o dedo na abertura do dique. Provavelmente a gangue do Primeiro estava tremendo em suas cavernas de gelo. Fillory estava sob cerco e as fronteiras estavam caindo por toda parte. O centro não podia resistir e as bordas também estavam em um estado lastimável. Uma rachadura se abriu, movendo-se em ziguezague por dois campos abertos, com um brilho incandescente e a grama queimando em sua borda. Janet queria abraçar Fillory, abraçá-la e juntá-la novamente. Mas não podia. Ninguém podia. Agora algo estava atormentando o Bosque Sombrio na parte traseira e Janet focou em... Jane Chatwin venha para baixo! A velha Relojoeira parecia irritada, cabelos grisalhos soltos e voando e, cada vez que apontava o dedo para uma árvore em movimento, ela parava; seus ombros afundavam e voltava a se enraizar no chão. Parecia que ela estava planejando montar uma bomba como Slim Pickens. Todos os pesos pesados estavam aparecendo. Na Cordilheira da Barreira, os gigantes – por falta de alguém do tamanho deles, e porque sabiam que todos morreriam de qualquer jeito – estavam lutando entre si, berrando e derramando enormes lágrimas enquanto faziam isso. Ao longo de Whitespire, as linhas de batalha se separaram para dar lugar a um grande pássaro que não voava e que avançava majestosamente entre os dois lados da Batalha dos Animais, e só podia ser a Grande Ave da Paz, umas das Criaturas Singulares. Tinha o passo de um casuar, ou o que Janet imaginou ser o passo de um casuar, levantando os pés com cuidado com os joelhos invertidos e balançando a cabeça para trás a cada passo. Quando chegou ao centro do campo de batalha, parou, olhando em volta calmamente, como se dissesse, então agora, meus amores, não é hora de acabar com essa estupidez? Você não sente o amor em meu coração e em seu próprio coração? Então dois grandes felinos, uma pantera e um leopardo, caíram sobre ele, e o pássaro caiu sem sequer ter tempo de soltar um grasnido. Talvez tivesse amor em seu coração, pensou Janet, mas também tinha muito sangue. Junto com sua porção regular de horror, Janet sentiu um frio extra. Seja qual for a magia que dava o mandato às Criaturas Singulares, era à base de Fillory, o vergalhão de aço no cimento. Nem mesmo a Magia Profunda servia esta noite. Se isso estava falhando, qualquer coisa poderia acontecer.
O Pântano do Norte estava regurgitando suas bestas, algumas realmente desgraçadas, especialmente aquela tartaruga-mordedora, o Príncipe da Lama, e um enorme lagarto úmido com listras amarelas e pretas, planas e largas, de aparência achatada. Uma grande salamandra grotesca. Quando Janet observou, a criatura parou, tentando focar os olhos arregalados em algo pequeno, ou relativamente pequeno, que estava bem na frente dela. Era um cervo branco. Era a Criatura Errante, diante dela, sozinha e sem medo. Ah, graças a Deus, pensou ela. Janet não pôde ouvi-la, mas viu que ela estava dizendo alguma coisa. Ela disse de novo, e depois uma terceira vez, como alguém tentando acender um fósforo de uma caixa molhada. A salamandra fechou os olhos enormes e caiu de barriga. Estava morta. A Criatura Errante desejou a morte dela. Foram três tentativas e, aparentemente, até mesmo a Criatura Errante tinha apenas três desejos. Ela guardou seus desejos todos esses anos, todos aqueles séculos, e agora eles se foram. Parecia dar de ombros, se um cervo pudesse dar de ombros, e então a tartarugamordedora mordeu e as belas patas brancas daquela criatura saíram da boca do Príncipe da Lama por um segundo antes de desaparecer. Isso parece injusto, pensou Janet. A troca não é justa. A Criatura Errante por uma grande salamandra de que nunca tinha ouvido falar antes. Uma torre por um cavalo. Janet olhou para o sol novamente. Ainda fervia e espremia no horizonte, espalhando-se lateralmente como sorvete derretendo em uma calçada quente; provavelmente levaria um milhão de anos ou alguma outra extensão de tempo cósmica para gastar toda a sua energia e morrer. Ela viu Josh e Poppy novamente. Poppy estava descansando no topo de uma das paredes de Whitespire, que até agora tinha resistido muito bem. Janet achou que, se as coisas piorassem, eles teriam que abrir os portões e se retirar para a muralha externa, mas ainda não tinham chegado a isso. Ela perdeu Josh por um minuto, até que o encontrou no campo de batalha. Ele usava uma armadura mágica, muito fechada – Janet ficou surpresa que ele pudesse respirar lá dentro – circulando o campo de batalha com um porrete (que por alguma razão sempre era a arma escolhida por um homem gordo), batendo em tudo que estivesse ao alcance. Um elefante furioso pisou nele, e Janet prendeu a respiração, mas a armadura de Josh resistiu. Na verdade, a armadura era tão suave e sem atrito que Josh saiu disparado debaixo do pé do elefante como uma semente de abóbora e voou vinte metros. Josh se levantou. Havia soltado seu porrete, mas ele era completamente invulnerável de qualquer forma. Janet se perguntou o que ele achava que estava fazendo, se acertar alguns gnus ou seja lá o que fosse com um porrete fazia com que ele se sentisse melhor. Deixe-os entrar na briga, pensou ela. Deixe-os se divertir. Ela só esperava que o bebê estivesse seguro. E naquele momento, do nada, Janet sabia que ela mesma nunca teria filhos. Provavelmente sabia disso há algum tempo, mas foi a primeira vez que ela admitiu para si mesma. Deixe os outros se reproduzirem. Deixe-os, e que Deus esteja com eles. Ela seria a testemunha – era durona o suficiente para ver tudo quebrar e não se quebrar. Também servia para aqueles que voavam nas costas de um hipogrifo e observava. Havia muito que observar. Tudo estava em marcha, Fillory tinha dado tudo, todas as criaturas de uma porra de show de perguntas. Provavelmente até os insetos estavam lutando entre si. Ela se perguntou onde estavam os anões. Sentados no subsolo? Um homem alto e um tanto augusto, de smoking, se juntou à briga, lutando com as próprias mãos, e Janet achou que ela o reconheceu das histórias de Quentin sobre a borda do mundo. A batalha estava se
dissolvendo em avalanches frenéticas com todos os tipos de seres estranhos que ela nunca tinha visto antes: uma armadura em chamas, um homem que parecia ser feito de corda, outro que era apenas construído de seixos. Ao sul, uma alta duna havia finalmente chegado ao topo das Montanhas de Cobre, e navegando sobre ela como uma coisa enlouquecida havia um tremendo navio tripulado por... coelhos? Sério? Isso era algo dos livros? Fazia tanto tempo. Eles vieram deslizando as encostas íngremes com uma cambalhota. Deveria ter sido emocionante – coelhos! Um navio clipper mágico! Que navegava por terra! – mas tudo o que provocou em Janet foi exaustão. E agora? Sir Hotspots? “Foda-se tudo isso” disse Janet, e fechou os olhos por um minuto. Não havia fim para Fillory, não havia fim para a beleza e a estranheza, exceto que havia, e era isso. Ela teve que se forçar a soltar-se de Fillory, e sentiu como se arrancasse um pedaço de sua própria carne. Estava acabando cedo demais, do jeito que tudo fazia, tudo exceto o vírus Ebola e pessoas realmente más como os psicopatas. Essas coisas nunca acabam. Isso era justo? Que se dane, era estúpido. Teorias sobre a vida são sempre besteiras. O caos em si era lindo, mesmo que fosse injusto e momentâneo. O sol se espremia, a lua girava e se curvava, Fillory metade luz e metade sombra, pontilhada de flashes de fogo, lava, chamas e golpes mágicos de seres mágicos. Exércitos ignorantes colidindo à noite. E ao longe, mas ainda visível a seus olhos de extrema nitidez, viu o brilho do Deserto do Relógio subindo em chamas e fogos de artifício, tudo de uma vez. Pelo menos ela tinha visto isso depois de tudo. Então Janet viu talvez a coisa mais maravilhosa que já viu ou que jamais veria em sua vida. Acima, uma constelação na forma de uma pessoa desajeitada e de articulações soltas destacou-se do céu noturno, pendurada por uma mão estelar por um segundo e depois caiu, caindo por um longo minuto e levantando uma chuva de faíscas ao cair de costas, com os orbes que a compunham se encaixando na grama de um prado. Imediatamente, foi atacado pelo único outro combatente bidimensional no campo de batalha, o Homem de Giz, que havia recuperado seu ânimo e consertado seu bastão. Nuvens de calcário e partículas de luz voaram. É como o Apocalipse, pensou Janet. É o Apocalipse e eu sou a Mulher Escarlate. — Asas de Inverno — disse Janet. — Vamos voltar ao Whitespire. Está na hora. O hipogrifo a deixou no topo da larga muralha de Whitespire, que parecia que finalmente veria a batalha pela qual supostamente foi construída para resistir, porque os humanos e animais falantes estavam cedendo terreno, recuando em direção aos grandes portões, que até Janet nunca tinha visto aberto. Janet desmontou e caminhou até onde Poppy estava. Nenhuma delas disse nada. As últimas rainhas de Fillory. Um estrondo quase infrassônico vinha crescendo por um tempo, abaixo do ruído geral, e naquele momento ele subiu para o reino do audível, e eles também puderam senti-lo. Os lutadores no campo de batalha perderam parte de seus interesses em lutar e olhavam ao redor em busca da origem do som. Então ficou mais do que óbvio, porque o chão em frente ao castelo começou a subir e todos os que ficaram na corcunda correram a toda velocidade, e bem a tempo. O chão no topo da corcunda se abriu, e uma explosão de algo estranho e alienígena saiu dele. Raízes, Janet percebeu – era uma coroa cada vez maior de enormes raízes pálidas, que
rachavam e se contorciam, e no centro estava Julia, de dois metros e quarenta de altura, linda e brilhante com seu próprio esplendor magnífico. — Olha — disse Janet. — É o Lorax. Uma pantera imprudente pulou sobre ela, e Julia a bateu – não havia outra palavra para expressá-la – no ar com seu bastão com uma das mãos ela a mandou girando e subindo na escuridão. — Chega — disse ela. Sua voz deve ter sido audível por toda a terra agonizante. Ela era a coisa mais brilhante em Fillory naquele momento. — Chegou a hora. A palavra hora ecoou de costa a costa. Todos no campo de batalha, animais, humanos e qualquer outra coisa, ficaram parados. Julia conseguiu o apoio bipartidário. Ela caminhou em direção a Janet e Poppy; enquanto caminhava uma das raízes se estendeu e se achatou e construiu uma ponte até o parapeito, onde elas estavam. Outra raiz pegou Josh de onde estava sentado, exausto, no chão em frente aos portões, e o colocou ao lado delas. — Insira uma piada aqui — disse Julia, em algo parecido com sua voz normal, sem amplificar, predivina. — Sobre como eu te deixo em paz por cinco minutos e toda Fillory vai pra merda. Janet não sabia o que dizer. Ela não tinha mais nada. Ela abraçou Julia. Era um pouco desajeitado, sendo ela tão grande e tudo, Janet mais ou menos teve que jogar os braços em volta da cintura de Julia, mas a sensação foi maravilhosa. Suas vestes eram a coisa mais macia que ela já havia tocado. Janet pensou que poderia estar abaixo da dignidade de Julia, ser abraçada por um mortal, mas ela permitiu. — Rainhas de Fillory — disse Julia. — E rei de Fillory. É isso. É hora de ir. — Pra onde nós vamos? — Foi Josh quem perguntou, com a voz de uma criança perdida. — Você pode nos levar pro Outro Lado do Mundo? Julia balançou a cabeça, não. — O Outro Lado também está acabando. Estamos esfriando o sol e acalmando as águas. Estamos enrolando os prados e baixando as estrelas. — Então pra onde nós vamos? — perguntou ele novamente. — Não sei — disse Julia. — Mas vocês não podem ficar aqui. Julia estendeu as mãos para eles. Janet entendeu; eles tinham que se tocar para que o encantamento funcionasse. Poppy pegou a mão de Janet de um lado, e Julia – seus dedos eram grandes e lhe deram formigamento – pegou a outra. Janet inclinou a cabeça e se deixou chorar. Seu rosto se encheu de lágrimas. Não ia matála, pensou ela. Ela iria viver. Claro que ela iria, não tinha um arranhão nela, pelo amor de Deus. Tudo ficaria bem. Era só que ela nunca mais teria uma casa.
CAPÍTULO 27
S
— into muito — disse Quentin quando Alice terminou. — Não, você não sente. Então pare de dizer isso. — Não sinto muito por ter te trazido de volta. Sinto muito por tudo que aconteceu. Gostaria que não tivesse sido você. Mas ninguém teve a coragem, o altruísmo e a inteligência pra fazer o que você fez. — Foda-se minha coragem e qualquer outra coisa. Estou feliz por ter feito isso. Só lamento que você tenha arruinado tudo. Alice continuou a observá-lo com um desprezo tão desumano quanto um ser humano podia expressar. — É difícil voltar. Agora entendo isso. Não entendia o quão difícil seria. — Quentin seguiu em frente sob um fogo debilitante. — É difícil ser humano, mas há mais do que isso. Você sabia disso antes. Você ainda não se lembra, mas vai se lembrar. Quentin não sabia se iria ou não, mas não estava disposto a ceder naquele momento. Sentia que se mostrasse o quanto ela estava machucando ele, se estremecesse, ela tomaria isso como prova de que ela estava certa sobre tudo. E ela não estava certa – ela estava? Eliot limpou a garganta com muito tato. — Não é uma boa hora pra dizer isso — disse ele. — Mas tenho que ir. — Ele bateu as mãos nos joelhos. — O fim do mundo está chegando e realmente tenho que estar lá pra isso. — Claro — disse Quentin. — Tudo bem. — Provavelmente deveria tentar pará-lo. Provavelmente não deveria ter ficado tanto tempo. — Eu sei. Você deveria ir. Ele estava sendo inusitadamente hesitante. Quentin fez com que ele prometesse voltar assim que pudesse, e pediu que mandasse uma calorosa saudação a Josh e Poppy e, ah meu Deus, eles estavam casados? Não me contou isso? Incrível. E grávidos? Bom para eles. Tudo bem, agora realmente vá embora. — Vou pegar minhas coisas. — Eu sei. — Na verdade, não trouxe nada. Mesmo depois de passar pelas formalidades, Eliot ainda não conseguiu sair. Ele mais do que ninguém estava lutando para encontrar as palavras, para dizer alguma coisa. Ele limpou a garganta novamente. — Você vem comigo? — Ele deixou escapar. — Se alguém pode entender isso, é você.
Ou Julia, mas Julia não atende meus pedidos. Nós precisamos de você, Quentin. Volte. — Pra Fillory — Nem sequer tinha passado pela sua cabeça. — Mas você sabe que eu não posso voltar. Não posso deixar Alice agora, e enfim Ember nunca me deixaria entrar. — Estive pensando sobre essa segunda parte. Te contei como os lorianos nos invadiram, mesmo que supostamente eles não devessem fazer isso? E então Alice encontrou um jeito de chegar aqui através de espelhos... Estou começando a pensar que Fillory está ficando um pouco porosa com a sua velhice. A segurança nas fronteiras não é o que costumava ser. Se alguma vez houve um momento pra você passar, é agora. Houve um tempo em que Quentin teria se agarrado a essa possibilidade como um náufrago. Agora isso lhe dava uma pontada, a dor surda de uma velha ferida, mas isso era tudo. Esse tempo passou. Ele balançou a cabeça. — Não posso, Eliot. Agora não. Precisam de mim aqui. Alice bufou com a ideia de que alguém poderia precisar de Quentin. — Estava com medo disso — disse Eliot. — Bom, olha só venha comigo até a Terra Nula. Isso é tudo o que peço. Pelo que sei, há uma cratera fumegante onde ficava a fonte de Fillory. Não quero enfrentar isso sozinho. — Aaaah — disse Plum. Seus olhos se reviraram. — Eu quero ir pra Terra Alguma. — Terra Nula — disse Eliot, de repente mal-humorado. — E não é uma viagem de campo pra estagiários. Eles foram interrompidos por algo arranhando a porta da frente. A sala ficou em silêncio. Eles não esperavam visitantes. Ninguém sabia que eles estavam ali, ou ninguém deveria saber. Quentin levou um dedo aos lábios. Mais arranhões. Parou e começou novamente. Quentin se levantou e caminhou o mais silenciosamente que pôde até a porta e olhou pelo olho mágico. Rua vazia. Não havia ninguém lá. Ele olhou para os outros. Eliot encolheu os ombros. Ele abriu a porta alguns centímetros, mantendo a corrente, e algo pequeno e frenético passou por ele, e Quentin deu um passo atrás. Era o melro. Ele voou loucamente ao redor da sala por trinta segundos, com aquele horror especial que têm os pássaros sendo trancados, antes de pousar no candelabro Sputnik. Mesmo assim seu olhar foi de um lado para o outro, sem parar, como se estivesse esperando perigo de todas as direções. Parecia diferente: magro e mais desgrenhado. Estava faltando algumas penas, e as que ainda restavam tinham perdido o brilho. — Não me mate! — disse ele. Plum e Eliot estavam em pé. Apenas Alice não se moveu. — O que você está fazendo aqui? — perguntou Quentin. — Você está sozinho? — Estou sozinho! — Por que devemos acreditar em você? — disse Plum. — Seu idiota. Você nos traiu. E você provavelmente matou Pushkar. Ele tinha uma família, você sabia. Quentin, devemos matá-lo? — Talvez. Ainda não. — Se isso era uma armadilha, um truque ou uma distração, era muito estranho, especialmente porque ele considerava o pássaro um covarde do ponto de vista físico. Não era como se ele fosse se expor assim. — Plum, fique de olho nele. Vou ver se tem outra pessoa.
Mas não havia mais ninguém, não na frente, nem atrás, nem no telhado ou em qualquer outro plano de existência adjacente, ou pelo menos não que ele pudesse detectar. Talvez estivesse mesmo sozinho. — Acho que é esse pássaro — disse Eliot. — Aquele que te contratou. — É esse mesmo. O que você está fazendo aqui? — Não tenho mais dinheiro — disse o pássaro. — Tentei contratar mais magos, mas sem Lionel não correu muito bem. — Sem dinheiro, sem magos — disse Quentin. — É assim que funciona. Acho que você deveria sair agora. — Não queria que Lionel matasse Pushkar! Não disse pra ele fazer isso. Não sei por que ele fez isso. Eu estava com medo dele. Parecia incrível que eles tivessem tanto medo do melro. Não estava muito assustador agora. Ele deve ter usado todos os seus recursos preparando seu trabalho e, sem Lionel e seus funcionários, era apenas um pássaro falante, nada mais. Ele não parecia querer sair. — Vocês tem que me ajudar. — Não — disse Plum, olhando para ele. — Não vamos. — Os pássaros aqui me desprezam. Estou com muita fome. Tive que comer lixo. — Não me importo com o que você comeu — disse Quentin. — Temos coisas mais importantes pra nos preocupar. Saia ou vamos te expulsar. Embora ele não tivesse muita certeza de como iriam pegá-lo e expulsá-lo. Ele não estava ansioso para essa cena de perseguição. — Por favor — disse ele novamente. — Ele vai me matar! — Quem? O melro não respondeu, apenas olhou ao redor da sala ansiosamente, para cada um deles. Quentin não sentiu a menor pena por ele. — Está falando de Ember. Até o pássaro pulou, como se não tivesse percebido que Alice podia falar. Sua expressão não mudou. Ela queria que todos soubessem que seu envolvimento emocional naquele drama era nulo. — O que você disse? — Esse é o pássaro de Ember. O encontrei nos espelhos. Ele me implorou pra não matá-lo. Não sei por que não fiz isso. Vou pra cama. Ao sair, ela quase foi para a parede por hábito – como um nifo teria atravessado direto por ela. Ela deixou um silêncio desconfortável atrás dela. Por trás das cortinas fechadas, ouviram um caminhão passar devagar pela rua estreita. Quentin esperou que ele passasse. — Isso é verdade? Ember te mandou? — Por favor — Ele já tinha perdido toda a sua arrogância aviária. Ele tremeu. — Ele vai me matar. — Não vai — disse Plum. — Porque vamos te matar primeiro. — Ele me mandou pra pegar a mala. Não sei por quê. Ele teria mandado um animal maior — Acrescentou ele, quase se desculpando. — Mas precisava de um que pudesse voar. Pra atravessar os espelhos. Ele me deu algum dinheiro e o feitiço pra fazer Lionel quando
cheguei aqui. — Por que Ele queria a mala? Era a faca ou o livro? Ou ambos? — Não sei! — O melro gemeu. — Não sei! Eu não sabia o que havia dentro! É a verdade! E ele começou a chorar. Quentin pensou que nunca tinha ouvido um som mais patético. O pássaro desceu do poleiro no candelabro como um faisão perfurado por uma bala. Aterrissou na mesa de café e se agachou lá, soluçando. Algo coerente estava se formando no cérebro exausto de Quentin, como um cristal se formando em um líquido turvo. Ele havia contemplado o caos por tanto tempo que mal conseguia se lembrar de como era um padrão quando aparecia, mas naquele momento achava que estava vendo pelo menos um fragmento de um. — Espera — disse ele devagar. — Vamos pensar nisso. Rupert roubou o conteúdo da mala e Ember quer recuperá-lo. Ele manda um pássaro para a Terra pra recuperá-lo pra Ele. O pássaro nos contrata pra encontrá-lo. Plum pegou o fio. — O conteúdo da mala era de Umber, não de Ember, de acordo com Rupert, mas acho que sendo irmãos então a herança é da família. Mas então, por que Ember iria querer isso? — Porque não? Uma faca legal? Um feitiço pra fazer uma terra mágica? Quem não gostaria disso? — Um deus? — disse Eliot. — Que já tem um mundo mágico completo? — Exceto que Ele não tem — Todas as luzes se acenderam na cabeça de Quentin de uma só vez. — Ele não tem. Fillory está morrendo e Ember não tem pra onde ir. Ele quer o feitiço pra poder criar um mundo novo. Ele vai desistir de Fillory – Ele vai abandoná-la e começar de novo. A ideia veio apressadamente e foi seguida por uma pausa. Plum fez uma cara de cética. — Mas se encaixa! — exclamou Quentin. — Ele nem está tentando salvar Fillory! Ele é um rato que não vai afundar com seu navio! — Isso — disse Eliot. — É uma metáfora mista. E me escute: eu sei que você não tem motivo pra amar Ember, mas isso parece um pouco covarde. — Sim, porque Ele é um covarde! — Além disso, você sabe que o feitiço não cria um mundo inteiro, certo? — disse Plum. — Apenas uma terra. — Talvez seja apenas no nosso caso. Talvez um deus pudesse fazer mais com ele. Plum olhou para o teto, considerando. O melro observou os três desesperadamente. — Mesmo que isso seja verdade — disse Eliot. — O que poderíamos fazer? É muito deprimente pra mim na realidade. Apenas mais uma prova de que não há saída disso. Quentin sentou-se. Talvez ele estivesse se precipitando. — Ainda temos o feitiço — disse ele. — Destrua — disse Eliot. — Não — Ele não podia fazer isso. — Nós temos o pássaro — disse Eliot. — Podemos virar o jogo. Tomá-lo como refém. — Ah, vamos. Ember não dá a mínima para o pássaro, o pássaro é dispensável. — O melro não protestou contra isso; teria sido difícil para ele fingir o contrário. — Devemos ir a Fillory, confrontá-lo, fazê-lo ficar lá e tentar salvá-la. Ele é o deus de Fillory. E nós temos o
feitiço. Deus, que desgraçado! — Ou — disse Eliot, cauteloso. — Talvez devêssemos entrar nessa merda. Talvez Ele tenha tido a ideia certa. Talvez devêssemos dar a Ele o feitiço e dizer pra Ele criar um novo mundo e nos levar com Ele. — Eliot — disse Quentin. — Eu sei, eu sei. Embora seja muito mais fácil. — Eliot levantou-se com muito esforço. — Tudo bem. Vamos lá, vamos gritar com um deus. No mínimo, quero ouvi-lo admitir isso. Quero que Ele diga isso na minha cara. — Eu vou — Plum também se levantou. — Alguém deveria ficar aqui com Alice — disse Quentin. — Alguém jovem e inexperiente no campo de batalha — disse Eliot. — Não — Plum olhou para ele sem vacilar. — De jeito nenhum. Não sou babá da Bruxa Azul. — Talvez Alice queira ir com a gente. Talvez ela possa ajudar. Alice! — gritou Quentin na escada. Sem resposta. — Vou falar com ela. — Boa sorte com isso. — Me dê uma hora. — Eu posso ajudar! — disse o pássaro. Os reflexos de Quentin eram bons, mas mesmo assim só funcionavam porque ele tinha o elemento surpresa. Ele lançou uma mão e pegou o pássaro pelo pescoço. Ignorando sua agitação histérica, ele foi até uma janela e jogou o melro para fora. ••• Alice estava deitada de costas na cama com os olhos abertos. Ela ouvia os sons da casa abaixo dela – andando, falando, gritando, batendo portas – mas eles estavam muito longe. Ela estava olhando para o teto. Se sentia como uma figura de mármore esculpida em um túmulo, seu próprio túmulo. Este corpo era o caixão dela. Ela estava respirando com fôlegos curtos; até mesmo isso era uma imposição que ela mal podia tolerar. Ela não iria se satisfazer desse corpo. Não lhe devia nada. Queria sentir o mínimo possível. Passos pesados subindo a escada. A porta se abriu. — Alice. Era Quentin, claro. Não virou a cabeça. Ela ouviu o rangido de um banquinho quando ele o puxou e se sentou. Ela não podia detê-lo. — Alice. Nós vamos pra Terra Nula. Temos uma teoria sobre o que pode estar acontecendo. Vamos tentar encontrar Ember e conversar com Ele. — OK — Alice sentiu sua língua, o verme em sua cabeça, beijando levemente o céu da boca para fazer o K. Ela não estava mais com raiva. Ela se perguntou por que havia se incomodado com toda essa raiva, toda essa conversa. Algo havia acontecido com ela, mas agora sua raiva já tinha desaparecido, como uma tempestade que voou para o mar deixando para trás uma grande paz. Uma praia plana suavizada pela violência das ondas, pontilhada pelos destroços das profundezas. Ela não se importava.
— Não quero te deixar aqui. Gostaria que você viesse com a gente. Acho que você poderia ajudar. Alice balançou a cabeça, muito ligeiramente. Ela fechou os olhos. Às vezes, quando fechava os olhos, se sentia novamente sem peso. O uísque ajudou – era melhor quando ela estava bêbada. E dava prazer a ela envenenar esse corpo. — Acho que não. Sete anos atrás Quentin viu quando ela fez uma fogueira azul de sua carne. Durante sete longos anos, seu eu humano havia dormido e ela havia percorrido por Fillory como um sonho de raiva e poder. O sonho havia acabado agora, Quentin tinha acabado, ele tinha a acordado e a forçou a voltar ao seu corpo. Mas ele não podia forçar sua alma, ela mesma. Ele realmente a odiava? Tanto assim? Uma vez, ele disse que a amava. Isso foi há sete anos e ao mesmo tempo ontem. Ela se perguntou se poderia queimar de novo. Talvez fosse como um fósforo gasto, que só podia se acender uma vez, mas ela não pensava assim. Levaria tempo para se preparar, para reaprender as habilidades necessárias, mas em breve. Não se importava se morresse tentando. O suicídio agora estava em tudo o que ela fazia e tudo o que pensava. O suicídio era sua casa: se ela não conseguisse encontrar mais nada, então sempre teria o suicídio. E se funcionasse, nunca mais a pegariam de novo. Nunca mais. — Agora vou tocar sua mão — Alice sentiu Quentin pegar seus dedos; ela deixou os seus flácidos. Era a primeira vez que alguém a tocou desde que ela voltou, fez sua pele se arrepiar. — Você vai superar isso. Não é tão ruim quanto você pensa. Vou tentar te ajudar. Mas você também tem que tentar. — Não — sussurrou ela. — Eu não. Algo aconteceu no silêncio que se seguiu. Seus olhos se abriram de novo. Algo a estava puxando de volta. Era algo no ar, entrando pelo seu nariz e invadindo sua mente. Estava fazendo algo com ela. Magia? Não era magia. — O que é isso? — perguntou ela. — O quê? — Esse cheiro. — Você sabe o que é — disse Quentin. — Pense. Por um instante, Alice baixou a guarda e se esqueceu de lutar, e naquele instante se sentou e inspirou. Em seu cérebro estavam disparando neurônios que não haviam sido disparados em sete anos. Depois de uma eternidade em desuso, os móveis de sua cabeça estavam sendo descobertos, os lençóis que os cobriam estavam sendo removidos. As janelas mentais estavam sendo abertas para deixar entrar o sol quente. — Bacon — disse ela. Quentin tinha trazido uma bandeja com ele. Naquele momento ele pegou um prato e o segurou diante dela. Era um bom bacon, com tiras de meio centímetro de largura, e tinha entortado e borbulhando ao fritar; ele deixou umas das pontas queimar um pouco, porque sabia que ela gostava queimado. Pelo menos antes gostava. Bom, Quentin tinha feito algo com seus sete anos. Antes ele não sabia cozinhar nada. Ela estava cansada e também faminta – ela não estava, sua mente não estava, estava clara como o céu, mas esse corpo estava com fome, essa boneca feita de carne. Estava fraca e
estendeu a mão, pegou a comida e colocou em sua boca. A carne assumiu o controle e comeu a outra carne e, Deus era inacreditável, salgado, gorduroso e esfumaçado. Quando terminou, lambeu os polegares e limpou as mãos gordurosas nos lençóis. Isso deu a ela repulsa, sentiu repulsa de si mesma, mas havia muito prazer nisso. Estava tentando rejeitar a seu corpo como um transplante de órgão inadequado, mas se sentia presa em seu abraço pegajoso. Essa carne estava tentando se agarrar a ela, tentando se tornar ela e Quentin a estava ajudando. Ele estava do seu lado. — Espero — disse ela. — Que você não pense que você vai me manter aqui com bacon. — Não só com bacon. Ele lhe entregou um prato de fatias frescas de manga, de uma intensa cor laranja, como pequenos arcos esculpidos em um pequeno e doce sol. Alice se jogou sobre elas como um animal. Ela era um animal. Não, ela não era. Era pura, bonita e azul. — Por que você fez isso? — perguntou ela com a boca cheia. — Por que você fez isso comigo? — Porque isto é quem você é. Porque você é humana. Você é uma pessoa, não um demônio. — Prove. — Estou provando. Ela olhou para ele, realmente olhou pela primeira vez desde que ela voltou. Quentin tinha um rosto estreito e simétrico, tornado interessante por um nariz um pouco grande demais e uma boca expressiva muito larga. Quentin nunca soube disso, o que o salvou de desenvolver uma daquelas personalidades de garoto bonito, mas objetivamente ele sempre foi bonito. E ainda era. Mas também era diferente. Ele não gaguejou nem olhou para baixo como fazia antes. Ele estava certo, havia mudado. — Você poderia ter trazido ostras — disse ela. — Você odeia as ostras. — Odeio? — Você dizia que elas eram como ranho frio. — Não me lembro. O que mais que eu gosto? — Banhos quentes. Meias limpas. Espirros realmente grandes. Aquela sensação quando você vira uma panqueca com sucesso. E isso. Ele deu a ela uma barra de chocolate – bom chocolate – e quando provou, Alice derramou lágrimas. Jesus, ela estava perdendo todo o controle. Todo o controle. A carne iria vencer? Estava ficando mais difícil se desvencilhar dela. O nifo triunfante e virtuoso nela soltou um grito desafiador. Ela pensou em voar, em mergulhar na terra e voar de novo, em queimar as coisas, fazê-las sentir a dor que sentia, mostrando-lhes como gloriosa era a dor. Ela estremeceu. — Por que você veio aqui? — perguntou Quentin. — Pra te matar — disse ela sem hesitar, porque era verdade. — Não. Você veio aqui pra que eu pudesse te salvar.
Ela riu – sim, aquela risada doente e perversa de nifo, ela ainda tinha. Ela adorou. Mas não podia desistir da comida. Elas estavam a forçando, a fazendo desistir. — Vou engordar meu novo corpo — disse ela. — Vou comer até que esteja obesa mórbida e morra. — Você pode se quiser. Tome. Um barulho. O que foi isso? Seu corpo ferveu de prazer. Quentin havia aberto uma garrafa fria e suada de champanhe e estava servindo um pouco em uma taça de vinho. — Isso não é justo — disse ela. — Eu nunca disse que era. — Você quer que eu beba champanhe em uma taça de vinho? Você caiu muito baixo, Quentin Coldwater. — De onde vinham essas palavras? — Eu ajustei minhas prioridades. Quando ela bebeu, sentada na cama, tomando pequenos goles rápidos como uma criança tomando seu remédio, ela soltou um arroto alto. — Essa pode ser a minha parte favorita — disse ela. — É tudo o que você tem? — Isso é tudo o que tenho. — Não, não é — disse ela. De repente, sem jeito, como uma estudante inexperiente, ela o beijou. Ela fez isso de forma dura e brusca, sem saber que ela ia fazer. Inclinou-se para frente e esmagou os lábios contra os dele, sentiu um dente mordendo o lábio, saboreou o sangue. Quando ela fez isso, algo aqueceu e derreteu entre suas pernas. Ela enfiou a língua na boca de Quentin, o deixando saborear o champanhe. A represa que mantinha sua mente separada de seu corpo estava vazando em uma centena de lugares. Em algum lugar longe, sua taça se espatifou no chão. Ela o queria. Estava se lembrando das coisas – as tardes no andar de cima da Cabana, em um calor sufocante. Ele era magro e forte, mais forte do que antes, e ela o queria. — Me mostre, Quentin — Ela ordenou a ele. — Me mostre pra que servem os corpos. Ela estava desabotoando a camisa dele, mas sem jeito. Tinha esquecido como fazer. Quentin segurou as mãos dela. — Não — disse ele. — Ainda não. É muito cedo. — Muito cedo? — Alice agarrou a frente de sua camisa e o beijou de novo. Sua barba a raspou. Ela o cheirou; não era como bacon, mas ainda assim era bom. — Você faz isso comigo e depois me diz que é muito cedo? Ele estava tentando se levantar! Merda! A raiva veio muito fácil, mesmo assim, com todas aquelas deliciosas palavras de raiva. Raiva combinada com prazer, mas não poderia dissipála. — Espere aí. Alice. Não é assim que funciona. — Então me mostre como funciona — Ela também se levantou, avançando sobre ele. Ela se sentia como um animal – um predador. Ela queria prendê-lo e devorá-lo. — Meu corpo te dá tanto desgosto quanto pra mim? Que pena. Você me trouxe de volta, agora me mostre que valeu a pena. Ela estava usando uma das camisas de Quentin, e era grande o suficiente para que pudesse puxá-la sobre a cabeça em um movimento furioso e deixá-la cair no chão, deixando-a nua, exceto por uma calcinha. Alice o beijou de novo, pressionada contra ele, sentiu a aspereza
elétrica de sua camisa em seus seios. Quentin cambaleou para trás até bater sua cabeça na porta. Com a mão ela encontrou a virilha dele e a massageou. Sim, era assim. Antes ele gostava disso. E ainda continuava gostando. Estava ficando duro sob a mão dela. — Não é por isso que você me trouxe de volta? Pra me foder como antes? Nem mesmo ela não acreditava nisso, mas foi a coisa mais cruel e amarga que ela conseguia pensar. Queria ser violenta com ele, o tipo de violência que ele tinha feito com ela, mas ele não vacilou. — Não trouxe você de volta pra mim — disse ele. E então ele a beijou. Não com força, mas suave e com firmeza. Isso foi tudo, também poderia ser feito assim. Ele a envolveu em seus braços, encaixando o corpo dela contra o dele e a segurou, sua cabeça sob o queixo. Memórias a inundaram, memórias humanas. Na noite em que eles saíram de Brakebills na neve, ele colocou o braço em volta dos ombros dela. O dia na Antártida quando eles eram raposas e ele a perseguiu do jeito que ela queria que ele fizesse quando eram humanos. A maneira como olhava para ela como se não houvesse mais nada no mundo para ele além dela. Como se ele a amasse tanto quanto ela se odiava. Ele estava olhando para ela daquele jeito agora. De repente, Alice se sentiu desesperada para se conectar com ele de novo. Esteve sozinha por tanto tempo. Precisava disso. Juntamente com tantas outras coisas, ela havia esquecido o que era precisar. Colocou a mão sob a camisa dele, sentiu sua pele macia. Algo estranho aconteceu em seu ombro. Ela descansou a cabeça contra o peito dele. — Doeu, Quentin — disse ela. — Doeu muito quando eu morri. — Eu sei. Mas isso vai te fazer sentir bem. ••• Depois eles se deitaram um ao lado do outro na cama. Tinha funcionado, por enquanto, o corpo de Alice tinha conseguido o que queria. Não uma, mas duas vezes, o que, se ela se lembrava corretamente, era uma raridade nos velhos tempos. Mas por outro lado, Quentin tinha praticado desde então. Poppy, porque ela o tinha visto com Poppy? Parecia divertido no momento, mas agora isso a machucou. Ela desejou poder esquecer isto. Ela se afastou dele. Queria ir embora de novo. Ela se deixou cair em si mesma, caindo e caindo, se afastando, na escuridão interior, sonhando em voar. Se recuou para dentro de seu corpo como um caranguejo tímido dentro de uma enorme concha marinha. Ela se sentiu tão humana como antes, tão velha, mas estava perdendo e deixou escapar. Tinha pensado por um momento que seria simples, mas estava lembrando que não era. Quentin se sentou e começou a vestir suas roupas. — Tenho que ir — disse ele. — Pra Terra Nula. Pra encontrar Ember. Venha comigo. Ela balançou a cabeça. Queria que ele fosse embora. Seria muito mais fácil assim. Ele também estava recolhendo as roupas dela. — Alice — Ela não reagiu. Ela iria dormir agora. — Alice. Quero que você saiba que estou falando da maneira mais gentil possível quando digo que você está sendo uma baita
mocinha, mesmo. Ele pegou a mão dela de novo e eles desapareceram, os dois juntos.
CAPÍTULO 28
Eles iriam todos juntos, e de uma perspectiva tática Plum pensava que era uma ideia melhor, mas Eliot estava ficando impaciente, e depois havia os barulhos. Do andar de cima. Quentin e Alice. Plum e Eliot trocaram olhares e acenaram com a cabeça; nenhuma palavra foi necessária. Era provavelmente uma boa notícia para todos os envolvidos, em termos de equilíbrio, mas seriamente: eles não ficariam ali ouvindo isso. Eliot fez um grande show sobre como as viagens interdimensionais não eram grandes para ele, mas Plum não iria deixá-lo arruinar isso para ela. Isso era magia radical, questões de expansão do mundo, e mesmo sob as atuais circunstâncias desencorajadoras, Plum era uma completa nerd por essas merdas. Ela mal podia esperar. Eliot estendeu a mão, em um gesto um pouco afetado, e ela pegou, e ele colocou a outra mão no bolso e... ah. Água fria e limpa. Eles estavam flutuando nela, flutuando para cima. Apesar de que não fosse sua intenção, Plum riu de prazer, e como resultado quase engasgou com água mágica. Eles subiam em direção a luz, pontos brilhantes de luz espalhados sobre eles, mas ficando mais focados cada vez mais, e então suas cabeças cruzaram a superfície. Não era o que ela estava esperando, não baseado no que tinha ouvido. Eles estavam dentro de algum lugar, em uma vasta sala iluminada por dois lustres, pisando na água no que mais parecia uma piscina interna do que uma fonte. — Mas que diabos? — disse Eliot. Ele parecia mais surpreso do que ela. A piscina estava no mesmo nível do piso de mármore. A água escorria pela boca aberta de um rosto de pedra que parecia zangado em uma extremidade; na outra extremidade, havia uma escadaria de saída, como nos banhos romanos, onde o azul da água clareava a cada degrau. Eles foram até eles em sincronia. — Isso não está certo — disse Eliot. — Isso não é a Terra Nula, não acho que seja. Nós fomos sequestrados. O botão foi sequestrado. A água mágica escorria das suas roupas enquanto subiam as escadas, deixando-as secas instantaneamente. Fantástico. As paredes da sala estavam cobertas de estantes de livros. — Quem coloca uma fonte no meio de uma biblioteca? — disse Plum. — Não pode ser bom para os livros. — Não. Não pode. Era uma biblioteca, talvez a mais grandiosa que Plum já tinha visto. Ela saberia que se tratava de uma biblioteca mesmo com os olhos fechados: o silêncio era suficiente, como um ninho de veludo no qual ela foi cuidadosamente aninhada, e o cheiro, o pesado aroma rico e insinuante de couro e papel se decompondo devagar e imperceptível, de centenas de
toneladas de tinta seca. Cada metro quadrado das paredes estava coberto de estantes, e cada metro de cada estante estava cheia. Lombadas de cor creme, lombadas de couro, lombadas rachadas e com nervuras, com sobrecapas ou sem, dourados e lisos, com lombadas em branco e cheias de texto e ornamentos. Alguns eram tão finos quanto revistas, outros eram mais largos do que altos. Plum passou os dedos ao longo deles, um após o outro, como se fossem as longas costas de algum amigável gigante vertebrado que ela acariciava. Em três ou quatro lugares, um livro havia sido retirado e o outro ao lado estava um pouco inclinado, apoiando a cabeça em seu companheiro, como se estivesse chorando em silêncio por seu vizinho ausente. Até as vigas e os pilares de sustentação estavam equipados com estantes – filas, arcos e leques de livros. Nos cantos da sala, perto do teto, havia pequenas portas do tamanho de um livro como portas de gatos. Enquanto Plum observava, uma delas se abriu com um o guincho e um livro entrou, flutuando no ar, voando por toda a sala e saiu pela porta de gato do outro lado. — Retiro o que eu disse — disse Eliot. — Acho que isso deve ser uma das bibliotecas da Terra Nula. Eu nunca estive dentro de uma. — Pensei que não era permitida a entrada de pessoas normais. — Você não é. A voz veio de uma porta atrás deles. Pertencia a um homem de aparência estranha: trinta anos, cabeça raspada, rosto redondo e pastoso como um biscoito não assado. Ele tinha um cavanhaque que talvez estivesse crescendo em algo que era mais do que um cavanhaque, o que o fazia parecer um barista irritado em uma cafeteria moderna cujos sonhos de se tornar um roteirista de sucesso estavam diminuindo a cada hora. Ele usava o que parecia um robe de monge e sandálias, mas a coisa mais estranha sobre ele eram suas mãos. Eram construções mágicas de algum tipo, douradas e translúcidas, e projetavam sua própria luz quente cor de mel. Ele as segurava juntas na frente dele. — Penny — disse Eliot. Não era tanto um cumprimento como uma declaração de fato. — O resto do seu grupo deve chegar a qualquer momento. E assim foi, Quentin e Alice apareceram; ela cuspindo de indignação e bufando e aparentemente muito chateada, que surpresa. Alice lançou um olhar desdenhoso a Quentin, depois nadou de bruços até os degraus, quando ficou claro que ela estava completamente nua. O que, eles tinham rolado por cima do botão enquanto estavam...? Melhor não pensar nisso. Alice não parecia nada tímida. Quentin a seguiu e lhe entregou suas roupas, que ela vestiu sem jeito. — Oi, Penny — disse Quentin. — Que bom ver você. Você acabou de nos sequestrar? — Essa era a minha pergunta — disse Eliot. — Desviei vocês. Agora eu comando todos os caminhos da Terra Nula. Vocês estão aqui como meus convidados especiais. Plum estava tendo a impressão de que todos já se conheciam. — A água não é ruim para os livros? — perguntou Plum. — Nós tomamos precauções. O espaço das estantes é um recurso precioso aqui. Nada é desperdiçado. — Isso é ótimo, Penny — disse Quentin. — Mas na verdade estamos com pressa.
Negócios importantes. Realmente crucial ao tempo. — Preciso da sua presença. Vou explicar. — Bom, obrigado — disse Quentin. — Mas, sabe, seja rápido. Belas mãos. — Obrigado. Eu mesmo as fiz. Plum de repente entendeu: as pessoas que os atacaram em Connecticut também tinham mãos douradas, exatamente iguais. Talvez fosse uma coincidência, talvez estivessem à venda, mas Plum duvidava disso. Nesse caso, ela tinha um assunto pendente com este Penny, talvez vários. — Esta é nossa amiga Plum — disse Quentin. — Plum, este é Penny. E você se lembra de Eliot. E Alice. — Oi — disse Plum. Alice não disse nada. — Prazer em conhecê-la — disse Penny; Plum ficou aliviada por ele não ter tentado apertar sua mão. — É bom ter você de volta com a gente, Alice. Embora não tenha dito nada sobre isso, Penny de alguma forma conseguiu transmitir que ele e Alice haviam dormido juntos. — Penny — disse Eliot. — Você deveria saber que nós realmente... — Venham comigo. Penny se virou e entrou na sala ao lado sem esperar para ver se eles iriam segui-lo. — Quem é esse cara? — sussurrou Plum a Quentin. — Nós fomos pra faculdade juntos. Eles o seguiram. A sala ao lado era ainda mais grandiosa: um salão abobadado, também cheio de livros, mas com imensas janelas altas que estavam escuras e salpicadas de chuva fraca. Através dos painéis inferiores, Plum teve sua primeira olhada na Terra Nula um labirinto cinza de largos quadrados, becos estreitos e palácios italianos. Era noite. Penny andava com suas mãos mágicas cruzadas atrás das costas. — O ano passado foi bom pra mim — disse ele – o gracioso guia turístico. — Meu trabalho defendendo a Terra Nula e salvaguardando o fluxo de magia atraiu a atenção dos meus superiores na ordem – nós cuidamos da Terra Nula, Plum, caso eles não tenham te contado. Ao mesmo tempo, sofremos perdas significativas de pessoal, o que criou lacunas na liderança. Eu fui avançado rapidamente. A promoção foi gratificante, é claro, mas os desafios não foram triviais. A Terra Nula mudou irreversivelmente na última catástrofe. Grande parte da magia ancestral não funciona mais, ou funciona de forma diferente. As coisas crescem aqui agora. Tem tempo aqui. — Ele disse isso irritado, como se fosse um problema de percevejos. — Vocês não podem imaginar a inconveniência disso. Mas o resultado final foi que eles me recompensaram com o cargo de Bibliotecário. É um dos títulos mais prestigiados que um membro da minha ordem pode possuir. — Parabéns — disse Quentin. — Eu sempre me perguntei o que aconteceu com os dragões. A última vez que os vi eles estavam se preparando pra lutar contra os deuses. — Os dragões conseguiram. Se não tivessem, você não teria vivido pra fazer sua parte na crise. Lutar contra os antigos deuses, até mesmo distraí-los, é claro, um negócio arriscado. Uma arte é necessária pra isso: eles realmente não contra-atacam, mas apenas apagam você da realidade. Mas alguns dos dragões sobreviveram. Eles vão repovoar, se puderem lembrar como. Acredito que já faz vários milênios desde que qualquer um deles fez sexo. Nós, na
ordem, temos ajudado na pesquisa. Plum achou que seria lógico supor que, de todos esses bilhões de livros, pelo menos um deles tinha que ser pornografia de dragões. Eles deixaram o grande salão e entraram em um labirinto de teto baixo. Mesmo ali as paredes eram livros, até o teto; de alguma forma eles penduraram com a lombada para baixo, sobre suas cabeças, como morcegos em uma caverna. De vez em quando, grandes faixas de livros se sobrepunham a contragosto, como pessoas dormindo em uma cama cheia, para dar espaço para alguma nova edição. Esse cara Penny era um pouco chato, mas Plum tinha que admitir que estava amando a biblioteca dele. Adorável. Quentin tinha subestimado este lugar. Isso fez com que ela se perguntasse se eles também tinham subestimado Fillory. Agora ela se sentia muito perto de Fillory, apenas uma fonte de distância, mais perto do que ela jamais esteve. Quando ela foi expulsa de Brakebills, Plum pensou que sua vida tinha saído diretamente dos trilhos, direto para uma vala lamacenta e anti-higiênica ao lado dos trilhos, e talvez tivesse – como Quentin disse, não há ninguém para lhe dizer o que teria acontecido, depois do ocorrido. Mas também a trouxe até o limite de Fillory. Ela queria ver isso. Era hora. Plum viu um volume estreito, verde-oliva com tipografia prateada na lombada balançando sobre ela. Era tão tentador, como fruta madura... — Ah, ah, ah. Penny praticamente deu um tapa na mão dela. Uma medida de quanto Plum se sentia fora do lugar é que ela corou. Mas Penny se afastou de novo. — Eu já instituí algumas melhorias que foram muito bem recebidas. Não sei se vocês notaram...? Ele apontou para uma das portas de gato, através da qual os livros entravam e saíam em intervalos irregulares. — Sim, muito bom — disse Eliot. — Um de seus melhores trabalhos — entoou Quentin. Plum estava captando uma vibração significativa de amigo-inimigo na dinâmica de Quentin-Penny. — Foram adotados por várias outras bibliotecas. — Também é bom para gatos — disse Plum. — Embora eles tivessem que ser gatos voadores. — Nenhum animal, domésticos ou não, é permitido no prédio — disse Penny, sem humor. — Nós realmente temos que ir — disse Eliot. — Realmente. — Eu preparei uma sala especial aqui pra formatos problemáticos. Curiosa apesar de tudo, Plum enfiou a cabeça pela porta aberta. Era o zoológico bibliográfico mais estranho que ela já tinha visto. Livros tão altos e ao mesmo tempo tão estreitos que pareciam o metro padrão; ela achou que deviam ser guias ilustrados de cobras, flechas, ou talvez metros padrões. Um livro era guardado em um terrário de vidro – um bibliotecário? – o melhor para conter as palavras que continuavam saindo rastejando para fora dele como formigas. Um deles estava meio aberto sobre uma mesa, mas só um pouco, de modo que você podia ver que suas páginas emitiam um brilho intoleravelmente brilhante;
uma máscara de solda estava ao lado dele. Um livro parecia ser todo de lombada ao longo de todas as suas bordas. Era impossível abrir, suas paginas estavam lacradas dentro dele. — Sinceramente, você se pergunta quem publica essas coisas — Penny balançou a cabeça e eles continuaram andando. Era como uma visita a uma fábrica de chocolate, mas com livros, e com Penny estrelando como um instável Willy Wonka. Outros adeptos usando roupas parecidas com as de Penny, mas não tão bonitas, iam e vinham, acenando com a cabeça em deferência a ele quando passavam. Alguns deles também tinham mãos douradas. Hum. Ela esperaria pelo momento certo. — Há catacumbas debaixo da biblioteca — explicou Penny. — É outra coleção especial: são todos os romances que as pessoas queriam escrever, mas não escreveram. — Ooh! — Eliot se animou. — Posso ir ver o meu? Vou ser honesto com você, tenho certeza que é fabuloso. — Você pode tentar. Passei muito tempo procurando o meu. Não dá pra encontrar nada lá embaixo. — Ele parecia exasperado. — Mas aqui está algo que as pessoas sempre querem ver. Esta sala tinha apenas uma estante, na parede do fundo, mas era enganosa, porque poderia se estender até o infinito: Penny agarrou uma das prateleiras e deu um empurrão lateral, e ela deslizou como uma correia transportadora a uma velocidade incrível, sem atrito, enquanto as prateleiras acima e abaixo permaneciam imóveis. Lembrava a Plum um pouco dos cabides motorizados de uma lavanderia a seco. Então Penny parou e empurrou levemente para cima, apenas um toque, e todo o negócio começou a rolar para cima, prateleira após prateleira após prateleira, como se fosse para além da sala em todas as direções, durante uma quantidade de quilômetros desconhecidos. — O que é isso? — perguntou Plum. — Estes são os livros de todos. Ou melhor, os livros de todo mundo. — Não entendo. — Espere, estou procurando pelos nossos — Eles estavam rolando, milhares e milhares deles, até que Penny parou a estante de livros com uma mão. — Estes são os livros de nossas vidas. Todo mundo tem um. Olha, aqui estamos nós. Todos juntos, por acaso, um livro pra cada um de nós. — Você deve estar brincando — disse Quentin, baixinho. Penny nunca tinha brincado, até onde Plum sabia. — De jeito nenhum. Aqui está o de Plum. Ele colocou um dedo na lombada. O livro tinha, apropriadamente, uma sobrecapa cor de ameixa. — Meu. O de Penny era alto, fino e encadernado em couro liso e pálido, com seu nome gravado em preto na lombada em uma fonte sem serifa séria. Parecia um manual técnico vintage. — Eles estão próximos um do outro? — disse Plum. — Por favor, me diga que isso não significa que vamos nos casar. — Não sei o que isso significa. Ninguém sabe muito sobre essas coisas. — Seu nome do meio é Schroeder? — perguntou Eliot, como se fosse a única coisa que o
surpreendeu. — Você não vai me dizer que existe um desses pra cada pessoa que já viveu — disse Quentin. — Apenas as pessoas que estão vivas têm. Eles vêm e vão quando as pessoas nascem e morrem; esta estante se estende por quilômetros em todas as direções, deve se sobressair em alguma subdimensão separada. Não sei pra onde eles vão quando morremos. Restos de edição, eu acho. Ele riu da sua própria piada. — O que tem neles? — Sobre o que você esperaria. A história da sua vida, do começo ao fim. Quem você é, o que você fez e o que vai fazer. O de Eliot está em dois volumes. Aqui está o seu. Penny colocou a mão em um volume atarracado azul-marinho, tão grosso quanto um dicionário, com o nome de Quentin estampado em ouro. Quentin hesitou. — Eu sei — disse Penny, mais baixinho. — Não é tão tentador quanto você pensa, não é? Eu nunca abri o meu. Há alguns na ordem que olharam e eu vi seus rostos. Plum tirou seu volume da estante e o segurou em sua mão como um bebê. O desejo de ler era quase irresistível. Quase, mas não completamente. — Você passa a vida inteira tentando se entender, pra saber sobre o que é a sua história — disse Penny. — E então de repente está tudo aqui. Todas as respostas, escritas em preto sobre branco. Alguns têm índice. Olhem, o de Quentin está em ordem alfabética. — Era verdade: havia pequenas meias-luas cortadas nas páginas, com os rótulos de A-B, C-D e assim por diante, em uma escada diagonal ao lado. Devagar, com relutância, Quentin devolveu seu livro a Penny. — Acho que eu deveria escrevê-lo — disse ele. — Não lê-lo. Penny colocou de volta na estante – com certa displicência, pensou Plum. Ela recolocou o dela com muito cuidado. Um livro lido uma vez não pode ser esquecido. Ela estava morrendo de vontade de vê-lo, mas achou que se vivesse sua vida adequadamente, quando terminasse, ela saberia o que havia nele. Esse era o objetivo, não era? Para entender sua própria história? Ler o livro agora seria apenas trapacear. E que tipo de idiota trai a vida? — Espera — disse Eliot. — Isso levanta muitas questões. Isso significa que não temos livre arbítrio? E se você queimar o livro de alguém, essa pessoa morre? — Vamos em frente! — Penny os fez saírem para o corredor. — Há muito pra ver! Pensei que você estava com pressa. Ele os conduziu até uma porta simples e sem identificação, que ele abriu. Era a primeira sala que eles viram que estava completamente vazia de livros. Não havia nada nas paredes, nem mesmo uma foto. Também não havia janelas, apenas uma escrivaninha com uma cadeira de couro por trás. Na verdade, era muito sombria. — Me deixe adivinhar — disse Plum. — Livros invisíveis. Ou não, microscópicos. Como se estivessem no ar, e nós estamos respirando eles. — Este é o meu escritório. Penny se sentou à mesa, de frente para eles, e juntou os dedos translúcidos como um sino. — O sistema me avisou assim que vocês entraram na Terra Nula. Existe uma razão pela
qual eu trouxe vocês aqui. — Você tem literalmente três minutos — disse Eliot. Ele estava praticamente inquieto com a impaciência. — Você tem algo meu — disse Penny. — Quentin. — Eu tenho? — Uma página. De um dos meus livros. — Ah. Todos olhavam para Quentin. Plum não tinha pensado nisso, mas ela achou que fazia sentido. Provavelmente, tecnicamente falando, Quentin havia roubado aquela página da Terra Nula. Mas, mesmo assim, Penny estava sendo muito exagerado sobre isso. — É verdade — Quentin a tirou do bolso do casaco. — Eu cuidei bem dela pra você, eu prometo. A página, com o que parecia a Plum como uma certa falta de sentimentalismo, escorregou das mãos de Quentin por sua própria vontade e flutuou no ar em direção à escrivaninha de Penny, como uma criança correndo para abraçar seus pais. — Obrigado. Instantaneamente, uma porta se abriu e uma mulher vestida de robe entrou, olhando para o chão, como se quisesse evitar olhar diretamente para a magnificência de Penny. Ela pegou a página, segurando-a com ambas as mãos, com cuidado, como se fosse um membro com necessidade urgente de reimplante. Que Plum achou em certo sentido que era. Penny se inclinou e puxou um dos ladrilhos do chão ao lado de sua cadeira, que acabou por não ser um ladrilho, mas a capa de um grande livro. Estava incrustado no chão. Plum olhou em volta: eles estavam em pé sobre livros, grandes, empoeirados, de encadernação grossa, reunidos como lajotas. Penny folheou as páginas finas de papel de bíblia, que continham colunas de números, acenou a cabeça, e então deixou a capa fechar com um baque surdo. — Agora — disse ele. — Tem a questão da multa. — Uma multa? — disse Quentin. — Você quer dizer uma taxa de atraso? — Sim. Você ficará detido aqui por um ano pra trabalhar nas pilhas de livros até que sua dívida seja paga. Ah meu Deus, que idiota! — Não seja um idiota — disse Plum. — Você não vai me deter — disse Quentin. — Penny, Fillory está morrendo. Podemos ser capazes de salvá-la, mas não pode esperar. Nós temos que ir. — Existem milhares de mundos. Eles vivem e morrem. Mas o conhecimento é poder, Quentin, e a sabedoria é eterna. — Ele realmente falou assim. — Você pegou um pouco da nossa. — Eu dei de volta. — Mas você a usou por um ano. Uma página do Arcana arcanorum, na caligrafia do escriba Zwei Vögel. Pense no que poderíamos ter feito com ela nesse tempo. — Quase certamente que nada. Você tem um montão de livros aqui, provavelmente ninguém teria olhado para ele. Penny se levantou e deu a volta por trás da escrivaninha, levantando as mãos. Seus dedos – ei, essas eram as posições para lançar feitiços.
— Os livros devem ser equilibrados, Quentin. Você sempre teve dificuldade em aceitar isso. Nós também teremos que remover de sua mente a memória do que você leu... Agora ele queria entrar na cabeça de Quentin? Não. Plum deu um passo para trás e também levantou as mãos. Todos fizeram isso; em um segundo, eles passaram de um grupo heterogêneo de pessoas com sentimentos complicados uns com os outros para se tornar uma única falange defensiva. Quentin foi o mais rápido: levantou a mão e um raio de luz ofuscante saiu da palma da mão, direto no rosto de Penny. Mas a luz não alcançou seu rosto. Com uma estranha mão mágica, Penny parou o feixe – sua mão parecia devorar a luz. Com a outra mão, ele agarrou o raio como se fosse uma coisa sólida e o dobrou em noventa graus para baixo, de modo que brilhava inofensivamente no chão. O raio permaneceu lá. Tarde demais, Eliot interveio com algum tipo de raios elétricos, mas aquelas mãos douradas os pegaram em voo, um, dois, três, quatro, cinco, em uma sequência de velocidade e precisão desumanas. Era como o número de um mago pegando balas no palco. Plum estava desesperadamente tecendo um escudo na frente de Quentin. Ela ainda era fraca nesse tipo de magia, porque ninguém a ensinava em Brakebills, mas Quentin lhe mostrou uma ou duas coisas, e ela certamente aprendia rápido. Mas ela já sabia que não estaria pronto a tempo. — Esperei muito tempo por isso — disse Penny. — Então isso vai ser um pouco anticlímax — disse Alice, e deu um soco no rosto dele. Boom! Ah, meu Deus. Era lindo, assim como em um filme: desde o ombro, pés plantados, torção do quadril, movimento fluido. Penny nem viu de onde veio. As pessoas realmente fazem coisas assim? Pessoas como Alice faziam, aparentemente. Penny não caiu, mas se curvou, segurando o rosto com as duas mãos. — Ahhhhhh! Ele disse baixinho, mas com um sentimento real. — Terminamos — disse Alice. — Vamos. Quentin olhou para Alice com uma expressão que Plum nunca tinha visto antes. Amor, ela supôs que era. Era tão brilhante quanto o raio que a mão dele havia lançado. — Penny — disse Quentin. — Não sei o que você teria feito com essa página, mas vou te dizer o que fiz com ela: tornei Alice humana de novo. Caso você esteja se perguntando como isso aconteceu. Você é um grande mago, você sempre foi, e tenho certeza de que você também é um ótimo bibliotecário. Magia e livros: não há muitas coisas mais importantes que isso. Mas há uma ou duas. Nós salvamos Alice e agora vamos salvar Fillory. Por favor, não fique no nosso caminho, é a única coisa que eu peço. Penny estava curvado, mexendo a mandíbula, ambas as mãos pressionadas contra suas bochechas. Ele levantou o rosto para eles com os olhos turvos enquanto eles saíam Alice liderando o caminho. Ela estava analisando os nós dos dedos da mão direita. — Por um segundo, ali — disse ela. — Eu vi o sentido de estar viva. — Estou feliz que você fez isso — disse Quentin. — Você é muito boa nisso. — Podemos sair daqui agora? — perguntou Eliot. Mas Plum teve uma ideia.
— Esperem — disse ela. — Em algum lugar deste prédio deve haver tudo que há pra saber sobre Fillory, vocês não acham? Talvez antes da gente for embora devemos fazer uma pequena pesquisa. Penny veio correndo atrás deles, com uma marca avermelhada em sua bochecha, mas, por outro lado, firme em seus pés. Plum reconheceu pelo menos isso: ele era imune ao constrangimento. — Não diga nada — disse Eliot, antes que Penny pudesse falar. — Só escuta. Precisamos de informação. Você tem isso. Onde estão os livros sobre Fillory? — Tem uma sala inteira deles! — Plum deplorava a violência física em princípio, mas pareceu ter um efeito notavelmente positivo em Penny. — Enorme. Venham, está na outra ala. Eles nunca teriam encontrado por conta própria; mesmo com Penny liderando o caminho, levou dez minutos para chegar até lá, subindo e descendo escadas e atravessando um labirinto de passagens. No caminho, Penny explicou sobre as mãos dele: elas eram uma forma protética espectral, bastante inovadora à sua maneira, a teoria era muito elegante, mas os conceitos provavelmente estavam além do que a maioria deles, exceto Alice, era capaz de entender. As pontas dos dedos podiam se mover várias vezes em velocidade humana, e tinham vários sentidos extras, incluindo a capacidade de sentir campos magnéticos, refratar a luz e medir a temperatura em até um centésimo de grau. Ele tinha algo de culto à personalidade entre os sub-bibliotecários, continuou explicando Penny, e um bom número deles tinha conseguido que suas próprias mãos fossem – sem dor, higienicamente – amputadas e substituídas por próteses mágicas para combinar com as dele. Plum estava prestes a perguntar sobre o ataque em Connecticut quando chegaram a uma sala que poderia ter sido um salão de baile de Versalhes, um imenso espaço com janelas ao longo de uma parede e a parede oposta coberta de livros, de dois andares, atravessada por uma escada de correr longa e estreita. Penny tinha retornado ao seu papel de anfitrião. Era um papel que ele obviamente gostava. — Fiquem contra as janelas. Dessa forma, vocês terão o efeito completo. Eles fizeram isso, e eles viram. Juntas, as lombadas dos livros de Fillory formavam uma silhueta fraca e fantasmagórica que até mesmo Plum reconhecia como o mapa de Fillory, do tamanho de uma parede inteira. Cada livro cumpria sua parte; os azuis eram o oceano, e os verdes e marrons pálidos eram a terra. De perto, Plum nunca teria visto, mas olhando para eles todos juntos, ela não conseguia ver mais nada. — Lindo — disse Quentin. — Então, podemos olhar os livros? — perguntou Plum. Prova de quanto poder havia mudado desde que Alice o socou, Penny juntou os lábios com desgosto, mas depois acenou a cabeça relutante. — Apenas... não os coloque de volta nas estantes. Por favor. Deixem isso para os profissionais. Era difícil saber por onde começar. Eliot nem se moveu. — Penny — disse ele. — Você é o especialista na Terra Nula. O que acontece quando um mundo acaba? — Mais ou menos o que você esperaria. A terra morre. Com o tempo, o mundo se desintegra e deixa de existir.
— O que acontece aqui? Digo, o que acontece com a fonte? — Ah, seca. Cai devido à falta de reparo. É um processo misterioso, mas consistente com a integridade de toda a Terra Nula, então deixamos que isso aconteça. — Isto é o que eu estou me perguntando: a cauda pode abanar o cachorro, por assim dizer? E se reparar a fonte? Se reconstruir ou consertar os canos? Isso traria um mundo morto de volta à vida? Penny pensou por um momento, movendo os lábios silenciosamente. Ele andou todo o comprimento do salão de baile e depois voltou para onde os outros estavam. — A ideia não é tão estúpida quanto parece — anunciou ele. — Mas não. Você não pode trazer de volta desse jeito. Você poderia abanar o rabo, mas o cachorro ainda estaria morto. Eliot acenou a cabeça com tristeza. — Essa era a minha última ideia. Realmente não esperava que funcionasse. — Por alguma razão, ele havia perdido o entusiasmo. — Olhem, isso vai levar uma eternidade. Vamos apenas direto pra fonte. — Eu preciso fazer algo primeiro — disse Plum. — Veja isto: um truque de mágica. Ela tinha visto quase imediatamente assim que eles entraram, ela estava apenas esperando por seu momento. Plum foi até a imensa parede de livros, se sentindo muito pequena com as fileiras deles se elevando acima dela. Havia um espaço estreito, um espaço estreito onde faltava apenas um único volume. Ela pegou o volume de memórias de seu bisavô de sua bolsa. Penny ficou boquiaberto quando o viu. — A Porta na Página — disse ele, em uma voz infantil. — É o Santo Graal dos livros de Fillory. O último e o mais estranho. Eu tenho caçado por tanto tempo. Plum queria colocá-lo na estante, fez uma pausa, pensou, o virou de um lado para o outro e finalmente o deixou na estante. Ele se encaixava perfeitamente, não apenas pelo tamanho, mas também pelo padrão: a lombada tinha o tom exato de verde pálido, com uma faixa de azul claro perto do topo para preencher a última parte do Charco Baixo, com uma fenda do Rio Queimado para acompanhar. Foi tão gratificante, como terminar um quebra-cabeça gigante, que seus dedos formigaram e ela sem querer soltou um suspiro. Agora ela estava desempenhando seu papel na história dos Chatwins. Não mais ficando nos bastidores, estava no palco, no meio dele. Ela fez o que pôde: trouxe Rupert para casa, ou o mais perto que ele poderia chegar. — Ei, Penny? — disse Plum. — Isso deve pagar as multas da biblioteca de Quentin, você não acha? Ou se você preferir, Alice poderia te dar um soco de novo. Mas a atenção de Penny estava completamente ocupada por sua nova aquisição. Ele foi trotando até lá – meio correndo pelo chão brilhante do salão de baile – e retirou de novo o volume com cautela, tocando apenas as bordas superiores de suas páginas para preservar a lombada. Ele o deixou entreaberto e sentiu o cheiro do papel. — Como você conseguiu isso? — Eu roubei. — Também tentamos roubá-lo. — Eu sei — disse Plum. — De nós. Tente com mais esforço da próxima vez. O fracasso não pareceu incomodar Penny. Ele parecia um garotinho com um cachorrinho
novo. Era estranho: ele era obviamente um idiota, mas não era um sociopata. Ele tinha sentimentos – na verdade, do jeito que ele segurava o livro dava a impressão de que ele possuía uma enorme capacidade de amar. Ele não era bom em amar pessoas, além de si mesmo. Apenas Eliot parecia sério. — Acabo de pensar em algo — disse ele. — Esse foi o último livro. A parede está cheia. O mapa está completo. Isso deve significar que a história acabou, a história de Fillory já está escrita. O apocalipse já deve ter chegado. — Você não sabe disso — disse Quentin. — Sim, eu sei — esbravejou Eliot. — E não tente me fazer sentir melhor. Poderia ser verdade? A ideia varreu a mente de Plum como uma onda fria. Todo esse tempo, toda a sua vida na verdade, ela estava pensando em Fillory, hesitando sobre isso, se escondendo disso. Fillory e os Chatwins e os anseios fatais que eles representavam, tinham sido seu lado sombrio e ela tentou fingir que eles não existiam. Ela queria ter apenas um lado, como uma fita de Möbius. Uma pessoa Möbius. Mas isso foi um erro. Ela estava começando a suspeitar que enfrentar o pesadelo do passado é o que lhe dá o poder de construir o seu futuro. Ela estava preparada para enfrentálo, pensou que talvez até gostasse de enfrentá-lo, que poderia não haver perigo, mas apenas alegria e amor em enfrentá-lo – e, desse jeito, ela o perdeu para sempre. Ela deveria ter feito o que havia dito a Quentin para fazer com Alice (totalmente correta, a propósito): ela deveria tê-lo conhecido cara a cara e feito às pazes quando pudesse. Agora ela nunca teria a chance. Os livros à sua frente pareciam sutilmente diferentes agora. Eles passaram de ser sobre o presente para ser sobre o passado. Ou não? Talvez sim. Mas talvez eles estivessem desistindo com muita facilidade. Plum não sentia que Fillory estivesse morta, essa era a questão. Ela ainda podia sentir lá fora, apenas do outro lado da divisória fina que ficava entre essa realidade e a próxima. Se ela pressionasse sua orelha, ainda podia ouvir Fillory cantando para ela, por mais fraco que fosse. — A parede não está realmente cheia, sabe — Ela limpou a garganta – estava cheia de poeira dessa maldita biblioteca. — Não necessariamente. Poderia colocar outra fileira de livros embaixo, ao longo do chão. Ela apontou. Ainda havia espaço sob a prateleira mais baixa. — Certamente não poderia — disse Penny. — Bom, na verdade poderia, se você quisesse. Fillory! – pensou ela. Estamos chegando! Apenas espere um pouco mais! Era como se pelo simples ato de convencer Penny ela pudesse manter Fillory viva. — Acho que você está olhando pra isso muito literalmente — disse Eliot. — Talvez você não esteja olhando literalmente o suficiente — disse Alice, assustando a todos, possivelmente incluindo ela mesma. — Essas duas paredes estão vazias. E também há espaço entre as janelas. — Isso seria muito irregular — Penny cruzou os braços, as mãos douradas brilhando de indignação. — Mas, de qualquer jeito, não faz sentido. O mapa está completo. Não há mais Fillory.
— Isso não é completamente verdade — disse Quentin. — Tem um monte de ilhas remotas. Como a Ilha Distante que estaria ali – ele apontou – se você enrolasse o mapa no canto da sala. — E a Ilha de Benedict, eu acho — disse Eliot, pegando o fio com relutância. — É muito mais longe. E quem sabe o que existe do outro lado, o lado oeste. — Há outro continente inteiro. Plum não sabia se eles estavam discutindo ou querendo chegar a algum lugar, mas Penny estava olhando ao redor da sala, incerto, como se as paredes estivessem cheias de insetos. Ela até se sentiu um pouco mal por ele. Mas não tão mal a ponto de ficar em silêncio. Plum ainda tinha um plano. Ela não deixaria Fillory morrer. Não iria escapar tão facilmente. Não iria mais se esconder. As duas metades de sua vida se tornariam uma só. — Poderia fazer o céu noturno! — disse ela. — As estrelas! Poderia ter um monte de livros pretos com pontos prateados sobre eles. Poderia fazer isso os pendurando no teto. — Ela deu a Penny seu sorriso vencedor. — Você ama essa coisa! Penny não era um homem muito acostumado que sorrissem para ele. Isso teve seu efeito. — Não está completo — disse ele, meio para si mesmo. — Está longe de estar completo. Vamos precisar de mais livros, muito mais. Quentin, você tem que salvar Fillory. — Isso é o que eu estava dizendo — disse Quentin. — E eu acho que descobri como. Acho que finalmente sei como consertar tudo.
CAPÍTULO 29
H
— istoricamente falando — disse Alice. — Quando as pessoas dizem algo assim, elas estão quase sempre erradas. Quentin adorava ter Alice viva de novo. Era sem dúvida a melhor coisa de todas. Se ela o amava ou não, se podia ou não suportar a visão dele, o mundo, qualquer mundo, era muito melhor com ela nele. — O que você vai fazer? — perguntou Eliot. — Algo estúpido. Penny, onde fica a fonte de Fillory daqui? Ele tinha entendido lentamente, mas ele estava mais do que convencido. Foi algo que Alice disse. Quentin estava pensando em Fillory, tentando imaginar seus sofrimentos agonizantes, como seria – mas é claro que ele sabia como Fillory estava morrendo. Alice havia dito a eles. Alice tinha visto o início de Fillory, e o fim do mundo que o precedeu. O oceano morto, a terra morta, o deus agonizante. Mesmo que ele não tivesse certeza de como fazer isso, sabia o que fazer. É claro que também era verdade o que Alice disse sobre pessoas que achavam que podiam consertar tudo, e era bem possível que ele estivesse prestes a ser morto por nada, mas ele iria tentar, e agora era o momento. Havia seis quarteirões da Terra Nula da biblioteca até a fonte de Fillory e eles foram correndo até ela. A lua da Terra Nula, que era pequena e estranhamente quadrada, como uma tela de uma televisão antiquada, estava baixa no céu, diante deles. Enquanto corria, Quentin sentiu que estava no coração de um vasto drama cósmico, como se o universo houvesse escolhido muito brevemente virar-se apenas para ele. Tudo estava acontecendo ao mesmo tempo, mas muito devagar, como se o tempo estivesse acelerando e desacelerando ao mesmo tempo. Ele notou pequenos detalhes: as silhuetas de algumas coisas, a textura das pedras, vislumbres de água nos canais, sombras nas janelas. Tudo dependia dele fazer isso certo. A fonte de Fillory tinha a forma do titã Atlas lutando sob o peso de um globo, o que era um pouco de licença poética, já que Fillory não era um globo, era plana. Quentin tinha planejado pular a borda sem perder o passo e esperava que a segurança de Fillory estivesse completamente destruída agora, mas em vez disso ele parou, porque quando se aproximou da fonte, viu que alguém estava saindo dela. Era Janet, e com ela estavam Josh e Poppy bem atrás dela. Janet e Poppy se ergueram sobre a borda, como se tivessem saindo de uma piscina depois de um salto olímpico; Josh jogou um braço, depois uma perna e rolou para o chão. Suas roupas secaram instantaneamente, mas seus rostos permaneceram chocados e abatidos.
— Acabou — disse Janet. — Fillory está morta. As palavras ricochetearam na mente de Quentin sem causar danos. Ele não as deixaria entrar. — Quentin, acabamos de ver — disse Josh. — Foi horrível. Os outros se aglomeraram atrás dele, na escuridão da praça. Era a primeira vez em sete anos que os cinco Caras da Física – Eliot, Janet, Josh, Alice e Quentin – estavam no mesmo lugar ao mesmo tempo, mas o clima não era de celebração. — O que aconteceu? — perguntou Eliot. — O que vocês viram? Josh e Janet estavam olhando para Alice. Janet pegou a mão dela. Josh a abraçou. Poppy, no espírito do momento, pegou sua outra mão, mesmo que elas nunca tivessem se encontrado antes. — Ah meu Deus — disse Janet. — Ah, meu Deus, Alice. — Eu sei — disse Alice, muito séria. — Mas só nos diga. — Tudo bem. Tudo bem. — Janet não soltou a mão dela, era como se precisasse de um salva-vidas para se segurar. — O sol caiu. Todos começaram a lutar uns contra os outros, até as árvores. Foi terrível. Então Julia voltou do Outro Lado e nos mandou pra cá. — Merda — Eliot olhou para o céu noturno e gritou. — Merda! A cidade mandou de volta um eco fraco. — Onde está Julia? — Ela deve ter ficado pra trás. Janet não pôde encarar seus olhos. — Então é isso? — perguntou Plum. Ela parecia tão angustiada quanto os outros. Quentin se aproximou da borda da fonte. Se ele fosse tentar, seria melhor se apressar. — Quentin, pare — disse Janet. — Fillory está morta. — Nesse caso, vou ver o cadáver. — Não tem nada lá. — A fonte ainda está aqui. Tem que ter alguma coisa sobrando. — Não, não tem — disse Janet. — E não há. Por favor, Quentin. Enquanto Janet dizia isso, a estátua de Atlas na fonte começou a se mover. Inclinou-se muito devagar para frente e alcançou o enorme globo de mármore preto que sustentava em um dos ombros. Ele estava se preparando, finalmente, para baixar seu fardo. — Ei! — disse Quentin. — Não tão rápido! Se Fillory estivesse morta, teria que provar isso a ele pessoalmente, cara a cara. Ele saltou por cima da borda e caiu na água – deveria estar fria, mas estava quente e ficando mais quente. Provavelmente, em poucos minutos começaria a ferver até que evaporasse por completo. Josh agarrou seu braço, mas Quentin o sacudiu. Atlas olhou para ele, mas, embora fosse duas vezes mais alto que Quentin e feito de pedra, ele deve ter visto algo realmente assassino no rosto de Quentin, porque se endireitou um pouco e relutante colocou o globo de volta à posição. Todos estavam gritando com ele. — Não seja idiota, Quentin! — gritou Janet. — Pra variar! — Quentin, não! — disse Eliot. — Você não precisa.
— Mas eu vou fazer. Quentin procurou sem jeito no bolso do casaco o botão enquanto tentava pisar na água ao mesmo tempo. Alguém estava puxando seu braço de novo, e ele tentou soltar, mas no mesmo momento seu dedo tocou o botão e o fundo caiu. Mais uma vez ele estava caindo em direção à terra mágica de Fillory. Ele nunca pensou que a veria de novo. Isso o fez sentir uma ternura quase dolorosa – depois de tudo isso, tudo o que havia acontecido, Fillory o estava levando de volta. O país inteiro estava espalhado abaixo dele, e ele estava entrando como uma cápsula espacial fora de órbita. Definitivamente, ele nunca pensou que a veria assim. Longe a oeste, ele teve um vislumbre de um sol esmagado na terra como uma gema de ovo em uma frigideira, derretendo e queimando em um mar fumegante e fervente na borda do mundo. Ele quase roçou um objeto maciço e só depois de ter passado ele percebeu que era a lua, girando baixo e fora de seu eixo. Incêndios brilhavam e exércitos escuros surgiam pela superfície do mundo. Algo colossal estava subindo lentamente a borda de Fillory, olhando por cima da superfície com o seu enorme rosto curioso: uma das grandes tartarugas que formavam a fundação do mundo, chegando finalmente para dar uma olhada no que carregava em suas costas todos esses milhares de anos. Fillory, sua linda Fillory, estava arruinada e morrendo. Mas não estava morta. Não totalmente. Não até que não restasse nada. Então ele caiu. O chão tremeu sob seus pés, e o ar estava cheio de gritos estridentes, sons de lágrimas e do cheiro de fumaça. Cinzas em chamas de algum lugar chicoteado por um vento quente. Seu braço: alguém ainda segurava. Era Alice. — O que você está fazendo? — gritou ele sobre o barulho. — Sendo uma idiota — respondeu ela. Ela realmente conseguiu um leve sorriso, o primeiro da nova era. Ele também sorriu. — Então vamos. Temos que encontrar Ember. O botão os deixou do lado de fora dos portões da cidade de Whitespire. O muro ao redor da cidade estava meio desmoronando, e metade do grande portão pendia de lado. Algumas das torres do castelo ainda estavam de pé, por enquanto, mas estavam balançando. Quentin apontou para elas; Alice acenou a cabeça. Não havia como encontrar Ember no meio de tudo isso, a menos que Ele quisesse ser encontrado, e se quisesse ser encontrado, seria onde Ele estaria. — Eu vou fazer escudos, você faz a velocidade — gritou Alice. Eles passaram um minuto intenso lançando sobre si mesmos e um ao outro, então eles deram as mãos e atravessaram o portão juntos. As ruas estavam desertas. A cidade parecia ter sido bombardeada, e os habitantes estavam mortos ou fugiram ou amontoados em seus porões. Quentin e Alice correram sem prestar atenção, saltando com uma força mágica exagerada. Às vezes, eles cortavam ruínas e lotes arruinados para economizar tempo; uma vez, um tremor fez com que uma parede de pedra vacilante caísse pesadamente sobre eles, o que os teria matado se os escudos de Alice não tivessem sido de primeira. Em vez disso, apenas caíram de cara na poeira, e eles tiraram os pesados blocos, se levantaram, recuperaram o folego e continuaram correndo. Eles não diminuíram o ritmo até atravessarem sob a ponte levadiça e através da grossa
parede exterior do Castelo de Whitespire; era a primeira vez que ele e Alice estavam ali juntos. Eles saíram para o pátio. Tinha sido a mais remota das possibilidades remotas – como encontrar uma agulha em um palheiro, teria dito Eliot – que Ember estivesse lá esperando por eles. E Ele não estava. Mas Umber sim. Quentin nunca o tinha visto antes, e até uma semana atrás ele achava que Umber estava morto, mas não podia ser mais ninguém. Ele ficou imóvel, como um carneiro domesticado em um prado, a cabeça baixa enquanto Ele arrancava uma erva daninha que crescia entre dois paralelepípedos no chão, no crepúsculo do mundo agonizante. Ele se endireitou. — Estive esperando por você — disse Ele, entre mordidas. — Por anos. Fiz uma aposta comigo mesmo de que você viria e agora olha. Eu ganhei. Quentin não tinha planejado isso, mas achou que um era tão bom quanto o outro para seus propósitos. Mas Umber parecia saber o que Quentin estava pensando. — Bom, qual é? Não é bom o suficiente apenas Eu. Você vai precisar de Nós dois. Umber balançou a cabeça com os chifres pra eles, como se estivesse os convidando a se aproximarem. Em outras circunstâncias, Quentin teria hesitado, mas naquele dia, mais do que nunca, seu significado era inconfundível. Quentin correu até Ele e, como ele imaginou fazer dez mil vezes antes, pelo menos, ele jogou um braço e uma perna por cima das largas costas macias de Umber e subiu em cima Dele. Alice subiu atrás dele e colocou os braços em volta da cintura dele. No instante em que Quentin enfiou os dedos na lã cinzenta e turva de Umber, o deus saiu em disparada e partiu com eles. Quentin sempre quis fazer isso – como todos – e agora sabia o por quê. Depois de alguns passos para ganhar velocidade, Umber agrupou as quatro patas sob Seu corpo e pulou a parede do castelo, como a vaca pulando sobre a lua. O impulso e a aceleração estavam além de qualquer coisa. Ele aumentou a velocidade ao saltar através da cidade desmoronada e sair dela, tocando o chão cada vez mais levemente e em intervalos cada vez mais longos, árvores, campos, colinas, paredes e rios passando rapidamente. Havia uma estranha alegria fatal nisso. A cena era catastrófica, sua missão não poderia ter sido mais grave, mas Quentin Coldwater voltou a Fillory com Alice, e juntos eles montavam em um deus. — Aiô — disse Umber. E Quentin respondeu: — Aiô. Ele se lembrou do amor de infância que sentia pelos dois carneiros, antes de saber que Fillory era real. Esse sentimento não durou: ele conheceu Ember pessoalmente, Ele não era nada tão forte, gentil ou sábio como Plover o havia descrito. Então, quando Ember expulsou Quentin de Fillory, sua desilusão se transformou em raiva. Mas desde então ele aprendeu algumas coisas sobre aceitação, e a sua raiva havia esfriado, mesmo que o amor não tivesse voltado. Agora ele via os carneiros como Eles eram: seres estranhos, desumanos e um tanto ridículos, tão limitados por sua divindade quanto Eles eram fortalecidos por ela. Mas Eles eram divinos, e havia uma majestade Neles que era inegável. Mesmo quando Quentin sentia a força de Umber abaixo dele, Fillory estava perdendo os últimos restos de sua própria força. Sua vegetação gloriosa estava murchando diante de seus olhos. Eles passaram por homens e animais unidos em massas trêmulas, que nem lutavam
mais, como os últimos de uma festa descontrolada e que foi fechada e destruída pela polícia, deixando os celebrantes de repente sóbrios e decepcionados. Hectares de árvores estavam derrubadas e desenraizadas. No alto, as estrelas começavam a cair, uma a uma, algumas em arcos rápidos como meteoros, outras de maneira mais devagar e graciosa, girando, faiscando e caindo como cata-ventos. Alice o abraçou com força. Uma série de rachaduras profundas soou como fogo de artilharia distante, sinalizando que a própria terra havia começado a se desintegrar. Estava perdendo a coesão, perdendo até a força para se segurar. Grandes fendas se abriram na superfície de Fillory e se alargaram em desfiladeiros e, nas profundezas do mais profundo deles, Quentin podia ver todo o caminho até a pálida massa morta do Submundo, contorcendo-se como uma massa de larvas dentro de um tronco podre. Agora o forte galope de Umber os fazia saltar sobre enormes lacunas na terra, que se alargavam cada vez mais até que em alguns lugares nada ligava os fragmentos que compunham Fillory, e Quentin começou a ver estrelas entre elas. Eles estavam pulando de ilha para ilha no escuro espaço, voando tanto quanto pulando, voando através do vazio. Quentin viu onde eles estavam indo. Um único fragmento de terra jazia morto diante deles, um torrão arrancado da grama encantada que continha apenas um campo, uma lagoa e uma árvore, órfãos em desastre, não mais ligados a nada. Ember estava lá sozinho. Umber tocou o chão levemente e foi perdendo o trote de Seu excesso de velocidade. Quentin e Alice escorregaram de Suas costas. Quentin estava agradecido por Alice estar com ele. Ela acreditava nele, ou pelo menos acreditava uma vez. Isso tornaria mais fácil acreditar em si mesmo durante o que estava por vir. Ember estava olhando para a lagoa, uma piscina redonda cheia de juncos ao redor da borda, os olhos fixos em Seu reflexo. Seu rosto estava tão indecifrável como sempre, mas havia algo solitário Nele, algo de desespero e abandono, enquanto Seu mundo se desfazia ao Seu redor. Pela primeira vez, Quentin sentiu um pouco de pena pelo velho carneiro. — Ember — disse ele. Sem resposta. — Ember, Você sabe o que tem que fazer. Acho que Você sempre soube, desde o começo. Quentin sabia. Ele não tinha percebido até os últimos momentos na biblioteca, mas ele tinha entendido pouco a pouco desde muito mais tempo do que isso. Ele estava pensando em pais e filhos e poder e morte. Depois que seu pai morreu, Quentin ganhou um novo tipo de força, e Mayakovsky, com seu próprio tipo de sacrifício, também lhe deu uma nova força. Isso é o que os pais fazem para seus filhos. Então Alice contou a história de como começou Fillory. Começou com a morte, a morte de um deus. Era a história mais antiga que havia, a mais profunda de todas as magias profundas. Fillory não precisava morrer, podia ser renovada e viver de novo, mas havia um preço, e o preço era sangue sagrado. Era o mesmo em todas as mitologias: para uma terra moribunda renascer, seu deus devia morrer por ela. Havia poder nesse paradoxo divino, a morte de um imortal tem poder suficiente para reiniciar o coração parado de um mundo. — Está na hora, Ember. O pássaro não vem. O feitiço está perdido. Essa é a única alternativa que resta. O velho carneiro piscou. Ele podia ouvir Quentin. — Não vou fingir que é fácil, mas Você vai morrer de qualquer jeito quando Fillory
morrer. Você sabe disso. Só deve ter apenas alguns minutos restantes. Dê Sua vida agora, antes que seja tarde demais. Enquanto isso ainda importa. O mais triste de tudo era que Ember realmente queria fazer isso. Quentin também percebeu isso: Ele tinha chegado ali com a intenção de se afogar, do mesmo jeito que o deus antes Dele havia feito, mas não era capaz de fazer isso. Ele era corajoso o suficiente para querer, mas não corajoso o suficiente para fazer. Ele estava tentando encontrar a coragem, desejando que a coragem chegasse até Ele, mas ela não chegou, e enquanto esperava por isso, envergonhado, sozinho e aterrorizado, todo o cosmos estava desabando ao redor Dele. Quentin se perguntou se ele teria sido corajoso o suficiente. Ele nunca saberia. Mas se Ember não pudesse se sacrificar, Quentin teria que fazer isso por Ele. Ele deu um passo à frente. Ele era um homem que pretendia matar um deus. Era uma impossibilidade, uma contradição teórica, mas se isso significasse salvar Fillory, então tinha que existir uma maneira. Ele agarrou esse conhecimento com força. Se a magia servia para alguma coisa, era para isso. Ele enfrentou a morte de seu pai e Mayakovsky. Enfrentou a perda de Fillory e a perda de Brakebills. Até mesmo enfrentou Alice. Ele estava circulando de volta para todas as coisas que ele lutou e perdeu ao longo dos anos, e um após o outro, fez as pazes com eles. Agora era hora de ele enfrentar Ember. Ele deu outro passo e agora Ember se virou para ele. Os olhos do deus eram selvagens, dominados pelo pânico. Suas narinas se alargaram. Ember estava desesperado de medo. Quentin sentiu uma onda de piedade e até de amor pelo ridículo animal velho, mas isso não mudou a sua determinação sobre o que ele tinha que fazer. Ele esperava que a inspiração viesse, mas não veio. Em vez disso chegou a Alice. — Desta vez é a sua vez — disse ela, e então fez algo estranho: mordeu a parte de trás da mão esquerda, arrancando a pele dos nós dos dedos, e então tocou a bochecha de Quentin com ela. Não era um feitiço que Quentin conhecesse e provavelmente nunca o conheceria – os detalhes técnicos eram demais para ele, e também o poder bruto, provavelmente, mas ele tinha visto Alice fazer isso uma vez antes. Quando ela entoou as palavras, os braços de Quentin incharam com a massa muscular e sua pele ficou mais grossa e mais dura ao mesmo tempo. Ele sentiu a força especial que pertencia apenas à magia de Alice o transformando. Suas pernas explodiram com força, notou que ele estava subindo em dois pilares, e seu pescoço se esticou e a base de sua coluna se estendeu em uma cauda longa e sinuosa. Sua cabeça estava se esticando para frente para formar um focinho, e seus dentes onívoros cresciam e afiavam até se entrelaçarem uns com os outros, assim como os dentes deveriam fazer. Suas unhas brotaram em garras. Suas vértebras se ergueram uma cordilheira de espinhas – era como se coçassem suas costas, mas melhor. Ele era feito de poder e havia uma fornalha em sua barriga. Ele abriu a boca e gritou uma palavra, e a palavra era feita de fogo. Quentin era um dragão e ele estava preparado. Ele iria explodir toda a centelha da imortalidade de Ember. O fogo se curvou e fluiu em torno dos chifres de Ember, mas também queimou o deus – Quentin sentiu o cheiro de lã queimada. Talvez, enquanto Seu mundo estivesse desmoronando, o deus estivesse perdendo parte de Sua imunidade. Bom, azar. Quentin saltou para frente e Ember saiu correndo, mas tudo estava em câmera lenta para os reflexos
draconianos de Quentin. Derrubou Ember com sua maciça pata dianteira com garras – sem braços pequenos e raquíticos de T. rex – e tentou colocar sua mandíbula no pescoço grosso e musculoso de Ember enquanto o deus se contorcia com desespero. As escamas de Quentin, ele não pôde deixar de notar de passagem, eram um azul metálico brilhante de um carro esporte. Ele era um dragão, não um deus, mas ele era enorme, resistente e forte, e esse corpo era feito para lutas épicas. Enquanto Ember, por qualquer razão divina, era um deus com o corpo de um animal que, ocasionalmente, participava de competições rituais de dominação masculina, mas passava a maior parte do seu tempo pastando. Ember rolou para ficar em cima de Quentin, e Quentin sacudiu a cauda perigosamente, esperando que Alice estivesse fora do alcance. Então ele conseguiu voltar ao topo. — Chega — rugiu Ember, e Quentin foi lançado para o ar. Estendendo suas asas – suas asas! – como um anjo furioso, Quentin checou seu voo e mergulhou de novo no deus, que se esquivou antes que Quentin pudesse esmagá-lo. Os dois se moveram em círculos por um minuto, controlando o ritmo, com a lagoa liberando vapor toda vez que a cauda superaquecida de Quentin a tocava, então ele correu para frente de novo e segurou Ember em seus dentes. Um raio atingiu suas costas, uma vez e depois três, quatro, cinco vezes, contorcendo seus nervos e arrancando meia dúzia de escamas, e provavelmente aparando suas delicadas asas de morcego, mas a dor era algo que um dragão só notava de passagem e depois descartava com desprezo. Qualquer amor ou piedade que ele possa ter sentido por Ember era uma coisa humana. Não havia espaço em seu coração de dragão para tais sentimentos. Este era trabalho para um monstro, e era isso que ele era agora. Morra, pensou ele. Morra, seu desgraçado egoísta, seu miserável covarde, sua cabra velha. Morra e nos dê vida. Agora ele tinha Ember bem seguro e mantido no chão entre seus molares como um charuto barato, e o ar estava saindo do deus. Quentin resistiu por Alice, por Eliot, por Julia, por Benedict, por seu pai inútil e irrecuperável, por todos aqueles que ele havia amado ou decepcionado ou traído. Ele resistiu com orgulho, raiva, esperança e teimosia, e ele sentiu o que restava de Fillory resistindo e esperando para ver se seria o suficiente. Quentin lançava fogo incandescente entre os dentes e sua saliva era ácido tóxico. As costelas do carneiro se dobraram e rangeram, e Quentin sentiu que Ele tentava inflar Seus pulmões, e que estava falhando. Ele provou o gosto da carne queimada e sentiu a pele rasgar. Quentin o segurou ali e, quando o carneiro passou cinco minutos sem respirar, o cuspiu no chão. Ele havia feito tudo que um dragão poderia fazer. De repente, Quentin voltou a ser humano, de pé sobre o corpo fumegante do carneiro, deitado na grama como um cão adormecido do tamanho de um touro. Mas não havia acabado. A pata dianteira de Ember tremeu. Ele estava derrotado, mas alguma faísca tenaz da vida estava se recusando a deixar Seu corpo. Se Fillory tivesse que viver, Quentin teria que arrancar aquela faísca Dele e apagá-la. Ele percebeu que era para isso que a faca era, aquela que Asmodeus havia levado. Merda. O destino quase a colocou em suas malditas mãos, e ele deixou escapar! Estava lutando contra um deus e não tinha arma. Exceto que ele tinha uma. Às vezes, quando você finalmente descobre o que precisa fazer, descobre que já tem o que precisa. Ele sempre teve isso. Quentin enfiou a mão no bolso e
seus dedos encontraram uma moeda redonda e grossa. A última moeda de Mayakovsky. Essa era a última de sua herança. Sentiu uma pontada de tristeza, apenas uma pontada, pelo conhecimento de que ele nunca faria sua terra agora. Isso teria sido legal. Mas ele não sentiu amargura. O que Quentin fez então, ele já tinha feito uma vez, há muito tempo, mas tinha feito com raiva e confusão. Agora ele fez isso com calma, totalmente consciente de quem ele era e o que estava fazendo. Ele ainda tinha algumas moedas nos bolsos, as que ele trouxe da casa de espelho. Ele se ajoelhou sobre um joelho e fez uma pequena pilha delas em uma terra vazia, e em cima delas equilibrou a moeda de ouro, com o lado do ganso para cima. Então ele agarrou a pilha e se tornou o cabo de uma espada prata de fogo, que ele tirou do chão como se estivesse estado incrustado ali o tempo todo, colocada ali para ele séculos atrás. Ele a segurou na frente dele. A última vez que ele a segurou foi no dia em que ele chegou a Brakebills. — É bom ver você de novo — sussurrou ele. Um fogo pálido e quase transparente percorria todo o seu comprimento, surpreendentemente brilhante na semiescuridão estranha, como se a espada tivesse sido mergulhada em conhaque e acesa com um fósforo. Quentin ajustou seu aperto no punho. Ele tentou se lembrar de algo, qualquer coisa, de suas aulas de esgrima com Bingle. O olho de Ember se abriu, mas Ele não se moveu. Talvez não pudesse. Mas se Quentin tivesse que colocar um nome no que viu nos olhos de Ember, não teria sido medo ou raiva, mas alívio. Quentin também sentiu. — Desculpa — disse ele. A espada quase cortou todo o pescoço grosso de Ember de uma só vez. A ferida se abriu imediatamente, vermelha e molhada, com a pele recuando como borracha esticada. As pernas do deus ficaram duras e se separaram como uma marionete com suas cordas puxadas. O sangue jorrou e depois continuou fluindo da ferida. Quentin sentiu a mão de Alice em seu ombro. Ele respirou fundo. Estava feito, Ember estava morto. Uma era havia acabado; Quentin havia acabado ela. Não parecia um negócio exaltador – não havia nada de grandioso nisso. Não tinha sido nobre e justo, mas brutal, feio, sangrento e cruel. Ele fez o que era necessário, isso era tudo. Quentin recuou do cadáver do deus. Algo grande atravessou o céu como um foguete, e Quentin olhou para cima a tempo de ver uma espaçonave gorda e atarracada já diminuindo ao longe, um hidrante montado num cone invertido de chamas azuis. Os anões, se ele tivesse que adivinhar. Sempre cheios de surpresas. Restavam apenas três ou quatro estrelas e, mesmo enquanto observava, uma delas perdeu o controle do céu e caiu. Atrás dele, alguém limpou a garganta com delicadeza, como se quisesse alertar um garçom distraído. — Todo mundo se esquece de Mim — disse Umber. — Como Eu disse, você precisa matar Nós dois. Nós éramos apenas um deus entre Nós dois. Ele trotou até Quentin, tão manso quanto você gostaria, cheirou reticente o cadáver de Seu irmão, e depois esticou o pescoço. Ele até balançou os ombros um pouco, em antecipação, como se a operação fosse dar prazer a Ele. Que criatura perversa. Quentin se estabilizou e tentou pensar em tudo de bom que Umber poderia ter feito, mas não conseguiu. Talvez o
próximo deus fizesse melhor. Desta vez, a espada cortou com perfeição, atravessando o pescoço. No instante em que Umber morreu, Quentin explodiu. Ele largou a espada. Sentia que estava expandindo – estava se espalhando em todas as direções. Seus braços e pernas se estendiam – cem quilômetros de comprimento, mil. Sua visão se expandiu para abranger toda a Fillory: ele a viu pendurada no espaço à sua frente, como um pires quebrado. Quentin era um gigante fantasmagórico, uma baleia azul cósmica, um bilhão de vezes maior. Ele não ficou desconcertado, mas apenas porque os deuses não são facilmente desconcertados. A lógica era clara para ele, porque a lógica de tudo estava clara agora. Não havia nada que não fosse auto-evidente. Um deus poderia morrer, mas o poder de um deus não podia, e sem Ember e Umber para manejá-lo, seu poder fluía para aquele que os havia sacrificado. Portanto, ele, Quentin, era agora um deus, um deus vivo, o deus de Fillory. Ele não era mais um leitor de Fillory; ele se tornou seu autor. Mas que mundo quebrado Ele tinha sido confiado! Ele balançou Sua grande cabeça em desaprovação. Mesmo naquele momento, continuava a se desintegrar diante Dele, com seu tecido conjuntivo se enfraquecendo, suas bordas desmoronando. Mas isso não aconteceria. Tinha que ser consertado. Consertar era algo que Quentin entendia bem, e com o poder que estava Nele agora não havia nada quebrado que Ele não pudesse consertar. Com um movimento de Sua mão esquerda, Ele desacelerou a passagem do tempo, de modo que para todos, menos para Ele, o trabalho de um milênio passaria em uma fração de segundo. Então, devagar, deliberadamente e com paciência inesgotável, começou a juntar as peças de onde pendiam e flutuavam no espaço. Ele recolheu os torrões e os grãos de terra e pedra que tinham sido a carne de Fillory, os ordenou como peças de um quebra-cabeça, e um por um os encaixou e os teceu como um único conjunto, passando Seus enormes dedos espectrais ao longo das costuras até que elas desaparecessem como se nunca tivessem existido. Ele trabalhou com muito cuidado. O chão de Fillory era marmorizado como um grande pedaço de carne, e Ele se esforçou para posicionar suas veias minerais para que elas se alinhassem como antes. Ele organizou os rios de prata e riachos de Fillory, ou quando agradava a Ele deixava que encontrassem novos caminhos, e Ele gentilmente conduziu os lagos e mares destruídos de volta a suas bacias. Ele varreu o ar e os ventos e os empilhou em massas invisíveis acima de Fillory para que a terra pudesse respirar novamente. Enquanto trabalhava, Ele rolou e peneirou entre os dedos divinos os restos de vários objetos dos quais se lembrava de Sua vida humana. Pequenas coisas estranhas, de muito tempo atrás. Os ossos da égua baia que Ele montou quando deixou os centauros. Os fragmentos quebrados do relógio da Relojoeira, que haviam sido pisoteados na terra com o passar dos anos, espalhados e esquecidos. A arma que Janet trouxe para Fillory e depois a deixou ao sair da Tumba de Ember. A ponta da flecha que matou Benedict. Os últimos restos apodrecidos do Muntjac, espalhados nas águas rasas do distante oceano Oriental. Aqueles animais e humanos que morreram no apocalipse, Ele os deixou descansar onde estavam, mas passou entre os sobreviventes, os curando, reconstruindo órgãos danificados, reparando e costurando de novo a pele e os ossos. Ele ordenou que a grande tartaruga retornasse ao seu lugar na torre de tartarugas que segurava Fillory, e retomar sua carga de novo, e ela fez – de qualquer jeito, ela na verdade não estava adequada para um estilo de vida
mais ativa. Ele reuniu os mortos que haviam escapado e os levou de volta ao seu ginásio de inferno, e então, se sentindo divinamente perturbado por sua situação, Ele ordenou a eles que dormissem, pacificamente e para sempre. Seus jogos terminaram de uma vez por todas. Ele colocou o delicado tapete verde de grama que cobria Fillory para que crescesse de novo, e restaurou algumas das árvores, separando-as como os mastros dos navios, não todas, mas o suficiente para que pudessem replantar as florestas. Ele passou muito tempo – anos, talvez séculos – colocando os mares na costa de novo e preparando o ciclo da água para alcançar um estado de funcionamento estável. Ele pegou os corpos de Ember e Umber com cuidado terno e os enterrou onde poderiam se decompor e enriquecer o solo ao redor Deles. O solo acima Deles ficou verde e duas árvores enormes cresceram sobre seus túmulos, cujos galhos se curvavam curiosamente como chifres de carneiros. Delicadamente poliu a lua e a colocou em movimento novamente. Uma por uma, Ele pendurou as estrelas como os cristais de um lustre. Encheu a grande cratera que o sol tinha aberto no fundo do oceano, resfriou o mar, e reconstruiu e colocou a argamassa de novo na parede que corria ao redor da borda do mundo. Ele pegou o próprio sol em suas grandes mãos e sentiu o calor diminuindo enquanto Ele o modelava e dava outra vez a forma de esfera. Ele o soprou até ficar quente novamente. Então Ele o colocou de volta em sua trilha eterna e o impulsionou de novo em sua órbita. Ele descansou. Olhou para o Seu trabalho, observou que soava e girava como um grande relógio, aqui e ali, suavizou uma borda áspera ou endurecia uma suave, desacelerava uma torrente ou acelerava uma maré, até que tudo estivesse em equilíbrio. Quando não havia mais nada para consertar, Ele apenas a contemplou, sentiu seus átomos circulando e combinando ou apenas tremendo em seu lugar, e uma grande paz o inundou. Fillory vivia de novo. Não era o que tinha sido ainda, mas seria uma vez que estivesse curada, e isso poderia fazer sem a ajuda Dele. Ele poderia ter ficado contemplando para sempre. Mas não era para Ele fazer isso. Ele tinha sido dado à custódia deste poder, mas sentia que ele não pertencia a Ele. Com nostalgia, mas sem arrependimento, Ele devolveu ao tempo à velocidade habitual, com um movimento de Sua mão direita. Como Seu último ato, um capricho realmente divino, Ele recuperou os restos do Cervo Branco da garganta da tartaruga gigante do Pântano do Norte, recompôs seu esqueleto, reconstruiu seus órgãos e sua pele e o restaurou a vida. Ele o colocou em uma ilha no mar aberto para que ele pudesse começar a vagar novamente. A próxima era de Fillory também teria uma Criatura Errante. Então Ele permitiu que o poder o deixasse. Ao fazer isso, Ele se encolheu e se encolheu, o pequeno disco de Fillory cresceu para alcançar seu tamanho e depois continuou a se expandir infinitamente ao redor dele, até que ele estava em pé de novo como apenas mais um de seus habitantes. Ele não estava sozinho. Quando ele era um deus, os nomes particulares dos muitos habitantes de Fillory não o preocupavam muito, mas agora ele estava na companhia de uma mulher e de uma semideusa, e depois de alguns segundos seus nomes voltaram para ele. Eram Alice e Julia.
CAPÍTULO 30
V
— ocê deixou o poder — disse Julia. Estava amanhecendo no horizonte cru, irregular, ainda se recuperando, e ele já estava perdendo tudo, tudo menos a mais fraca e transparente lembrança do que significava ser um deus. Saboreou a última – a certeza, o poder, aquela sensação de conhecimento, bem-estar e controle, para todo o sempre. Ela evaporou de sua mente e foi embora. Não era o tipo de lembrança que um cérebro mortal poderia suportar. Ele era apenas Quentin de novo, nada mais. Mas ele sempre saberia que isso havia acontecido, que ele soube como era, por alguns segundos, e na vida de um deus, mil anos. — Eu deixei — disse ele. — Não era meu. Julia assentiu pensativa. — Você está certo, não era seu. Um deus mais ciumento, ou um homem mais ciumento, poderia ter tentado mantê-lo, embora eu ache que o resultado teria sido o mesmo. Obrigado por fazer isso, Quentin, por consertar Fillory. Eu poderia ter feito isso sozinha, mas com coisas complicadas como linhas costeiras sempre me tomam séculos. Não tenho jeito pra isso. Além disso, pensei que você iria gostar. — Obrigado. Eu gostei. Ou eu acho que gostei. — Já não estava claro sobre o que exatamente ele havia gostado. Ela era fácil de reconhecer como seu antigo eu, ainda a Julia do Brooklyn, ou diretamente descendente dela, com seu rosto sardento e seus longos cabelos pretos. Mas ao mesmo tempo era inconfundivelmente divina: sua altura tinha sido um pouco variável no passado, mas no momento ela tinha dois metros de altura. Ela usava um vestido muito espetacular que não teria parecido deslocado em uma posse presidencial, embora fosse feito de partes iguais de casca e folhas verdes. — Andem comigo — disse Julia. Eles andaram, os três juntos. Fillory era Fillory outra vez, embora fosse uma Fillory pálida e desgastada, acordando de novo parte por parte depois de sua doença catastrófica. O prado ainda estava marrom, o chão ainda seco e rachado. A nova era ainda estava em seus primeiros minutos. Quentin estava tonto. Ele ainda tinha o sangue de Ember e Umber em seus sapatos. Era difícil conectar o ato brutal e sangrento que ele acabou de cometer com a renovação de Fillory. Mas esse mundo, de uma maneira rudimentar, estava potentemente vivo de novo, você podia sentir isso. — Tenho uma pergunta — disse Alice. — Julia, por que você não matou Ember? Digo,
tudo deu certo no final, mas você teria feito um trabalho mais rápido do que nós fizemos. — Eu poderia ter feito isso. Mas não haveria poder nisso. Um semideus matando um deus... mesmo se eu pudesse ter conseguido, esses não são os termos do ritual. — Mesmo assim, você parece mais uma deusa agora do que quando te vi pela última vez — disse Quentin. — Mais divina. Estou errado? — Não está errado. Me tornei rainha das dríades. Agora sou um pouco mais do que uma semideusa – mais de três quartos de deus. Deveria ter uma palavra pra isso. De vez em quando, Julia passava os dedos por uma planta morta, distraída, que se endireitava e ficava verde. Quando ela apontava para uma árvore caída, suas raízes ganhavam vida e se agarrava ao chão de novo, e ela se endireitava rapidamente, como se tivesse sido apanhada cochilando no trabalho. Quentin não conseguiu descobrir como ela decidiu quais reviver. Talvez tenha sido aleatório; ou talvez algumas árvores merecessem mais do que outras. — Eu gostaria de fazer algo por você, Quentin — disse ela. — Em nome de Fillory. Você nos fez um ótimo serviço hoje e sempre nos serviu bem. Tem algo aqui que você nunca viu ou fez e sempre quis? Quentin pensou por um minuto. Ele pegou a espada de prata e a carregava, mas de um jeito um pouco desajeitado já que por alguma razão ele não conseguiu invocar uma bainha para guardá-la, e ele estava desconfiado de tocar as chamas pálidas que lambiam ao longo de sua lâmina. Ele a cravou no chão e a deixou ali. Provavelmente seria capaz de invocá-la de novo, se precisasse. O que ele queria? Era um gesto adorável, mas até onde ele sabia, tinha estado em todos os lugares em Fillory, ou em todos os lugares que valia a pena ir. Ele não se sentia especialmente interessado nos túneis dos anões, nas Ilhas Alevinos ou nas atrações turísticas da grande Loria. Mas espera. Havia uma coisa. — Você pode me mostrar o Outro Lado do Mundo? Mostrar pra nós? Alice também deveria ir, se ela quiser. — Claro. — Só que já estive lá antes — disse Alice. — Como um nifo. — É verdade — disse Quentin. — Tinha esquecido. Você deveria receber uma recompensa diferente. — Vou guardar a minha. Isto é pra você. Eu vou ficar aqui por um tempo. Então Julia pegou a mão de Quentin e eles subiram juntos e voaram para o oeste sobre a costa de Fillory, cada vez mais rápidos, atravessaram o mar e depois por cima da parede na borda do mundo e desceram de cabeça para baixo, em um grande giro de montanha-russa. Logo Quentin percebeu que seu ponto de vista havia mudado, que sem se virar eles estavam subindo em vez de cair. A gravidade havia se invertido. Eles passaram por outra parede e então estavam olhando para o Outro Lado. Julia fez uma pausa, pairando. Para Quentin, teria sido exaustivo, mas para Julia voar não era nada, e desde que ele estivesse com ela não era nada para ele também. Sua grande mão envolveu completamente Quentin; a sensação lembrou Quentin de sua infância. Era crepúsculo do Outro Lado; o sol tinha acabado de se pôr ali enquanto subia em Fillory. Ele
não podia ver muito, apenas campos e vales silenciosos. A diferença era sutil, mas mesmo daquela distância era mais calmo e mais intenso que Fillory; mais rico em qualquer coisa que fizesse Fillory mágica, mais densamente infundido. Havia um ar de excitada expectativa. Curiosas pequenas partículas de luz brilhavam no crepúsculo, como pequenos mosquitos brilhantes. — Não posso te mostrar tudo — disse Julia. — Nem mesmo eu não tenho essas permissões. Mas tem algo em particular que acho que você pode gostar. Quando se moveram, o vento se movia com eles, de modo que o ar ao redor deles permanecia calmo enquanto eles voavam. Abaixo havia rios escuros e estradas de calcário. Quentin viu o que poderia ter sido uma elaborada casa na árvore em uma floresta e um castelo em uma ilha em um lago iluminado pela lua. — Aquilo são vaga-lumes? — perguntou ele. — As luzes? — Não, é o ar que brilha um pouco aqui. É curioso. Não dá pra perceber isso durante o dia. Pequenas luzes também balançavam em seus rastros, fluindo atrás deles como a trilha fosforescente de um navio em um mar tropical. O pôr do sol tinha cores diferentes daquelas de um pôr do sol terrestre ou mesmo filloriano: tendia mais a verdes e púrpuras. Julia pousou no centro de um grande e desordenado jardim. Ele devia ter sido planejado de acordo com um projeto preciso, como um jardim formal francês, todas as linhas retas, curvas perfeitas e simetrias complexas. Mas havia sido abandonado, com arbustos transbordando em caminhos, trepadeiras se enrolando lascivamente através de ferro forjado, canteiros de rosas morrendo se tornando ornamentos rendilhados marrons e murchos, mas requintados à sua própria maneira. Isso o lembrava de nada mais do que o jardim comunitário congelado em que ele havia andado há muito, muito tempo no Brooklyn, perseguindo o bilhete que Jane Chatwin havia dado a ele, antes de sair do outro lado e chegar a Brakebills. — Pensei que você gostaria disso. É claro que era diferente quando era novo, mas quando começaram a crescer, todos pensaram que era melhor assim, e assim o deixaram. Mas é mais que um jardim, é magia profunda. Se concentre em um lugar e você vai ver. Quentin fez isso e viu. Lentamente, mas muito mais rápido do que seria na natureza, algumas das plantas estavam morrendo e revivendo, murchando diante de seus olhos e florescendo de novo, se levantando e afundando em câmera lenta, fazendo pequenos estalos e sussurros enquanto faziam isso. Isso fez com que ele pensasse em algo, mas não conseguia dizer o quê. Julia sim. — Rupert menciona isso em suas memórias — disse ela. — Nós o chamamos de Jardim Afogado, embora eu não saiba o por quê. As plantas não são apenas plantas, são pensamentos e sentimentos. Um novo pensamento surge e uma nova planta floresce. Um sentimento desaparece e a planta morre. Alguns dos mais comuns estão sempre florescendo – medo, raiva, felicidade, amor, inveja. Elas são muito indisciplinadas, crescem como ervas daninhas. Certas ideias matemáticas básicas nunca vão embora também. Mas outras são bastante raras. Conceitos complexos, emoções extremas ou sutis. Temor e admiração são mais difíceis de encontrar agora do que antes. Embora ali – eu acho que esses lírios são uma espécie de temor. De vez em quando você pode ver até uma nova.
A paz no jardim era inexprimivelmente calmante. Isso fazia com que Quentin nunca mais quisesse sair e, ao mesmo tempo, achava que esse sentimento se manifestava em forma vegetal em algum lugar do jardim. Ele se perguntou onde e se reconheceria se visse. Julia se apoiou em um joelho – uma visão surpreendente, considerando a escala de sua estrutura divina. — Olha. Essa é muito rara. Quentin também se ajoelhou, e algumas das partículas cintilantes se reuniram gentilmente ao redor deles, para dar iluminação. Era uma planta pequena, humilde e frágil, um arbusto com um alguns ramos de folhas – uma árvore de Natal de Charlie Brown. Enquanto Quentin a observava, a planta tremeu, perdendo o ânimo e suas folhas ficaram marrons e manchadas, mas depois se conteve, se encheu de novo, endureceu e até cresceu um centímetro. Um par de vagens germinou de seus galhos. Ele a reconheceu. Era a planta que ele viu desenhada na página da Terra Nula, e novamente no feitiço de Rupert. Ele tinha desistido de encontrá-la, e agora estava ali, bem na frente dele. Julia devia saber. Inesperadamente, os olhos de Quentin estavam cheios de lágrimas quentes, e ele fungou e as enxugou. Era ridículo chorar por uma planta – ele não tinha chorado quando matou Ember – mas era como ver um velho amigo leal que não havia conhecido antes. Ele se abaixou e tocou uma folha suavemente. — Este é um sentimento que você teve, Quentin — disse Julia. — Uma vez, há muito tempo atrás. Um sentimento muito raro. Foi assim que você se sentiu quando tinha oito anos e abriu um dos livros de Fillory pela primeira vez, e sentiu temor, alegria, esperança e anseio tudo de uma só vez. Você os sentiu com muita força, Quentin. Então você sonhou com Fillory, com um poder e uma inocência que muitas pessoas nunca experimentaram. É onde tudo isso começou pra você. Você queria que o mundo fosse melhor do que era. Anos depois, você foi pra Fillory, e a Fillory que você encontrou era um lugar muito mais difícil e complicado do que você esperava. A Fillory que você sonhou quando menino não era real, mas de certa forma era melhor e mais pura que o real. Aquele garotinho cheio de esperança que você foi uma vez era um tremendo sonhador. Ele também era inteligente, mas se alguma vez você teve um dom especial, foi esse. Quentin assentiu – ele ainda não conseguia falar. Ele se sentia cheio de amor pelo garotinho que havia sido uma vez, inocente e ingênuo, ainda intocado, sem estragar tudo o que estava por vir. Ele era uma pessoa tão ridícula e vulnerável, com tantos desapontamentos e maravilhas à sua frente. Quentin não pensava nele há anos. Ele não era mais aquele garoto, aquele garoto estava perdido há muito tempo. Em vez disso, ele se tornou um homem, um daqueles rudes, degastados pelo tempo e deteriorados, e quase esqueceu que tinha sido outra coisa – ele tinha que esquecer, para sobreviver enquanto crescia. Mas agora ele desejava poder tranquilizar aquela criança e cuidar dele. Desejou poder dizer a ele que nada disso seria do jeito que ele esperava, mas que tudo ficaria bem de qualquer forma. Era difícil explicar, mas ele veria. — Alguém deve estar sentindo isso agora — disse Quentin. — O que eu senti. É por isso que está verde. Julia acenou a cabeça. — Alguém em algum lugar.
Mas então a planta murchou, secou e morreu de novo. Delicadamente, Julia beliscou uma de suas vagens duras e ela se endireitou. — Pegue. Leve isso com você. Acho que você deveria ficar com isso. Parecia como a vagem de uma planta comum de qualquer lugar, marrom e dura, mas era inconfundivelmente a mesma que a da página. Ele teria que encontrar uma maneira de mostrá-la para Hamish. Ele a colocou no bolso. A planta não pareceu se importar. Ela iria crescer de novo, mais cedo ou mais tarde. — Obrigado, Julia — Quentin secou os olhos e deu uma última olhada ao redor. Era quase noite. — Acho que estou pronto pra voltar agora. ••• Eles encontraram Alice onde eles a deixaram, mas ela não estava mais sozinha. Os outros haviam chegado enquanto ele estava do Outro Lado – Eliot, Janet, Josh e Poppy – e estavam conversando animadamente sobre os planos de reconstruir o Castelo de Whitespire. Penny ficou em seu posto na Terra Nula, mas Plum estava lá. Ela estava sozinha, apenas olhando em volta e tentando assimilar tudo. Ela estava vendo Fillory pela primeira vez em sua vida. Quentin chamou sua atenção, e ela sorriu, mas ele pensou que ela provavelmente queria ficar sozinha por alguns minutos. Ele se lembrou da primeira vez que viu Fillory. Ele chorou até o ponto de ficar sem lágrimas na frente de uma árvore-relógio. Não havia muita chance de que Plum fizesse isso, mas ainda assim: ele daria a ela algum tempo. — Nada de girar desta vez — disse Janet. — Isso é tudo que eu peço. A coisa do giro sempre foi uma besteira. Eu não sei como os anões os convenceram na outra vez. — Eu te apoio — disse Eliot. — Não me oponho. Vamos discutir isso com eles quando eles voltarem. Se eles voltarem. — Mas escute, e a cor? — disse Josh. — Pode ser mudada? Porque tenho que te dizer que o branco nunca me convenceu. Um pássaro caga lá e pode ser visto de um quilômetro. Eu sei que o Castelo de Blackspire era uma casa do mal indescritível ou algo assim, mas você tem que admitir que parecia muito foda. — Mas e o nome? — disse Poppy. — Nós também teríamos que mudar isso. — Ah, você está certa — disse Josh. — Acho que não podemos viver no Castelo de Mauvespire ou qualquer outra coisa. Ou nós podemos? Oi Quentin! — Olá pessoal. Não quero interromper vocês. Ele não fez isso. Eles continuaram conversando e ele apenas escutou. Era bom vê-los todos juntos em Fillory de novo, isso o deixou feliz, mas havia uma distância entre ele e eles agora também: uma lacuna fina, quase indetectável, mesmo entre ele e Eliot. Eles nunca teriam admitido isso – eles teriam negado calorosamente se ele dissesse alguma coisa – mas a verdade é que ele não estava mais no clube. Ele sempre seria parte de Fillory, especialmente agora que ele segurou o mundo inteiro em suas mãos temporariamente divinas – sempre teria suas impressões digitais imensas e invisíveis, para sempre, como os caminhos de labirintos em espiral. Mas ele também conhecia seu lugar e começava a pensar que não estava ali. Ele voltaria um dia, ou pelo menos esperava, mas agora eles eram os reis e rainhas.
Quentin tinha que desempenhar um papel diferente. Talvez ele e Alice pudessem formar um clube. Ele voltou para onde ela estava conversando com Julia. — É uma pena que James nunca tenha vindo aqui — disse Quentin. — Ele teria gostado. Às vezes me pergunto o que aconteceu com ele. — Fundo de cobertura, Hoboken. Ele morrerá em um acidente de esqui em Vail, aos setenta e sete anos. — Ah. — Espera — disse Alice. — Isso significa que você também sabe como vamos morrer? — As mortes de algumas pessoas são mais difíceis de prever do que outras. A de James é fácil. A sua não posso ver. Você é muito complicada. Há muitas voltas e mais voltas por vir. O primeiro amanhecer havia acabado, e o sol já estava alto e Quentin teve a nítida sensação de que estava chegando a hora de partir. Ele nunca pensou que deixaria Fillory de novo, não de livre e espontânea vontade, mas agora entendia, com crescente entusiasmo, que não estava onde deveria estar. Ainda não. Ele tinha que ir um pouco mais longe. — Julia — disse ele. — Antes de partir, tenho que te dizer: Plum e eu encontramos uma velha amiga sua. Ela se chama Asmodeus. Quentin sabia que isso poderia ser difícil para Julia ouvir, mas achou que ela gostaria de saber. — Asmo — disse ela. — Sim. Nós éramos amigas, em Murs. — Quando encontramos a mala de Rupert, aquela com o feitiço, também havia uma faca lá. Ela pegou. Ela disse que era uma arma pra matar deuses. Ela disse pra te dizer que estava indo caçar raposas. — Ah, eu sei — Os olhos da grande deusa de Julia ficaram distantes. — Eu sei sobre tudo isso. Você já reparou que Asmo sempre teve um pouco mais de informação do que deveria? Era eu, mantive meus olhos nela. Não queria ser muito óbvia, mas me certifiquei de que ela encontrasse o que precisava. — O que aconteceu com Reynard? — perguntou Quentin. — Você sabe se ela o pegou? — Pegou ele? — Agora ela deu um meio sorriso, embora seus olhos permanecessem distantes. — Ela o estripou como um peixe vermelho peludo. Quentin esperava que uma deusa de três quartos fosse tão sublime e divina que não seria capaz de desfrutar de uma vingança sangrenta e bem merecida. Ele não achava que ela fosse capaz. Ele estava desfrutando de sua alegria por simpatia. Plum se juntou a eles. Ela estava pronta para conversar. — Isso é incrível — Ela ainda não conseguia parar de olhar para tudo; ela levantou as próprias mãos e mexeu os dedos, como se estivesse olhando para eles debaixo d'água. — Digo, realmente incrível. — É o que você esperava? — É e não é — disse ela. — Digo, até agora tudo o que vi é um monte de árvores e grama. Não cheguei a nenhuma das coisas exóticas, então não é tão diferente da Terra. Exceto por você – virou-se para Julia. — Você é diferente. — Como você está se sentindo? — Um pouco como se flutuasse. Se isso faz algum sentido. Mas de uma forma boa. Como se algo incrivelmente interessante pudesse acontecer comigo literalmente a qualquer
segundo. — Você quer ficar? — perguntou Julia. — Acho que sim, se estiver tudo bem. Pelo menos por um tempo. — Julia inspirou alguma deferência instintiva, mesmo em Plum. — Gosto de estar aqui. Me sinto completa. — Tenho certeza de que eles poderão te abrigar em Whitespire — disse Quentin. — Ou o que restar dele. — Na verdade, pensei que poderia fazer uma visita à minha tia-avó Jane. Já passou da hora de conhecer esse lado da família e tenho certeza de que sou a única parente viva dela que sobrou. Eu não sei, talvez ela me ensine como fazer árvores-relógio. Pelo o que ouvi falar dela, acho que podemos nos dar bem. Quentin pensou que ela poderia estar certa. Tudo estava começando para Plum – ele quase podia ver os planos se formando em sua cabeça – mas isso o lembrou de novo que para ele as coisas estavam acabando. Uma brisa suave soprou através da clareira. Ele se perguntou se Alice iria acompanhá-lo. — Eu continuo pensando em uma coisa — disse Alice. — Se Ember e Umber estão mortos, e Quentin não é mais o deus de Fillory, então deve ser outra pessoa. Mas quem? É você, Julia? — Não sou eu — disse Julia. Alice estava certa, o poder devia ter ido para algum lugar, mas Quentin também não sabia onde. Ele sentiu fluir dele, e ele poderia dizer que sabia para onde estava indo, mas não tinha dito a ele. Se não era Julia, então quem? Provavelmente era um dos animais falantes, do jeito que tinha sido antes. A preguiça, talvez. Os outros estavam ouvindo – eles também queriam saber. — Fillory sempre teve um deus — disse Quentin. — Tem que ser alguém. — Não é? — disse Julia. — Quando você era um deus, você consertou Fillory, Quentin. Você não se lembra, mas você fez. E você fez bem. Agora Fillory está em sintonia – está perfeitamente equilibrada e calibrada. Poderia funcionar sozinha por alguns milênios sem nenhum problema. Talvez Fillory não precise de um deus agora. Acho que desta vez poderia ser um tempo sem deus. Uma Fillory sem deus. Era uma noção radical. Mas Quentin pensou sobre isso e não parecia ser uma ideia tão terrível. Eles estariam sozinhos desta vez – os reis, as rainhas, as pessoas, os animais, os espíritos, os monstros. Eles teriam que decidir o que era certo, justo e honesto para eles mesmos. Ainda haveria magia e maravilhas e todo o resto, mas eles descobririam o que fazer com elas sem ninguém olhando por cima dos ombros, sem nenhuma figura paternal divina se intrometendo com eles e ajudando ou não, dependendo de seu humor divino. Não haveria ninguém para elogiá-los e ninguém para condená-los. Eles teriam que fazer tudo sozinhos. O vento frio soprava constantemente agora e a temperatura baixava. Quentin se abraçou. — Mas Fillory vai ter você — apontou Alice. — Ah, eu passo a maior parte do meu tempo no Outro Lado — disse Julia. — Vou dar uma olhada de vez em quando. Fillory terá que se contentar com três quartos de uma deusa em tempo parcial, mas tenho a sensação de que será o suficiente. As coisas são diferentes
agora. É uma nova era. — Uma nova era. Era muito diferente. Muito novo. Fillory era uma terra renascida, e Quentin esteve lá, tinha assistido o nascimento, mas ele não iria vê-la crescer. Ele olhou em volta: tudo estava realmente acabando, a grande história de amor de sua juventude, e era como se ele já tivesse partido e estivesse vendo Fillory sem ele. Em algum lugar ao longo do caminho ele tinha finalmente superado isso, do jeito que as pessoas sempre disseram que ele faria. Longa ou curta, grande ou terrível, a nova era de Fillory aconteceria sem ele. Quentin pertencia à última era, a que terminou com dois golpes de espada. A nova era teria seus próprios heróis. Talvez Plum fosse uma deles. Hora de ir, antes que ele perdesse a compostura na frente de todos. Eliot estava olhando para o céu. Estava coberto por um grosso manto de nuvens. — Ah, graças a Deus — disse ele. — Ou a expressão que é apropriada agora. Finalmente. De um céu branco e pálido como uma folha de papel limpa, começou a cair neve branca. Os flocos se assentaram no chão quente e derreteram ali, como uma mão fria na testa de uma criança com febre. O longo verão finalmente acabou.
CAPÍTULO 31
Uma semana depois, Quentin e Alice estavam juntos na oficina no último andar da casa de Plum em Manhattan. Uma porta para algum outro lugar estava diante deles. Eles não se sentiam nem confortáveis nem desconfortáveis um com o outro, ou talvez sentissem ambos ao mesmo tempo. Ambos se conheciam e não se conheciam. Eles eram velhos amantes e eram praticamente estranhos. Agora eram só eles. Todos os outros ficaram em Fillory. — Tem certeza de que você não queria ficar também? — disse Alice, franzindo a testa para ele, duvidosa. — Digo, obviamente você não é mais um rei, mas tenho certeza que você poderia ficar. Eliot teria adorado, e não tem Ember e Umber para te expulsar e eles nunca fariam isso de qualquer jeito. Não depois de tudo o que aconteceu. — De verdade. Tenho certeza. Me sinto bem. Ela balançou a cabeça. — Ainda não entendo. Antes você era o fã número um de Fillory. — Isso é verdade. Eu era muito fanático por Fillory. — Eu tenho essa sensação horrível — disse Alice. — De que você a deixou por mim. Ou isso ou porque você ficou chateado porque não é mais um rei. — Eu realmente não estou chateado com isso. Nem um pouco. Não foi isso. — Ele estava um pouco surpreso com a forma como ele não tinha sido tentado. — Fillory é quem eu era antes, mas agora sou alguém diferente. — Admito que você possa não estar se iludindo sobre isso. Embora surja uma pergunta, quem diabos é você? — Eu poderia te perguntar a mesma coisa. Ela pensou nisso. — Talvez a resposta esteja ali — disse ela. Alice apontou para a porta. Não era uma porta grandiosa nem de uma aparência particularmente incomum, embora fosse bonita o suficiente: alta e estreita, feita de madeira desgastada, pintada de um verde pálido. Era o tipo de coisa que você encontraria encostada na parede dos fundos de uma loja de móveis vintage. — Bom — disse ela. — Se nós estragarmos nossas vidas, podemos sempre voltar rastejando pro Eliot. — Certo — disse Quentin. — Nós sempre teremos isso. Ela olhou para ele, estreitando os olhos. — Você sabe que não estamos mais juntos, certo?
— Eu sei disso. — Não quero que você tenha a ideia errada. — A verdade é que não tenho nenhuma ideia. Certa ou errada. Essa última parte não era estritamente verdadeira. Ele tinha muitas ideias, de ambos os tipos, a maioria delas sobre Alice. Mas ele poderia guardá-las para si mesmo por um pouco mais. Assim que voltou a Nova York, Quentin se jogou de novo ao processo de criação de uma nova terra. Ele sabia imediatamente que iria tentar novamente. Ele pensou que esse sonho havia desaparecido para sempre, depois de usar a última das moedas de Mayakovsky, mas agora que tinha a vagem do Outro Lado, parecia valer a pena tentar pelo menos. Ele não tinha mais o livro de Rupert, ou a página, mas tinha certeza de que os conhecia de cor; naquele momento, ele duvidava que pudesse esquecer, mesmo que tentasse. E ele tinha Alice para ajudá-lo. Ela parecia satisfeita em ficar na casa de Plum por enquanto, e mesmo depois de sete anos sem praticar, ela era uma maga melhor do que ele jamais foi ou jamais seria. Ela observava e dava conselhos. Seja lá o que tenha saído disso, foi bom para ele e Alice terem um projeto para fazer juntos. Isso tirou um pouco da pressão. Era uma chance de se conhecerem novamente, e para Alice se conhecer novamente. Ela ainda tinha muito para se recuperar, e eles precisavam de algo para falar que não tivesse um significado de vida ou morte, algo para discutir, algo concreto para se concentrar em outros que não os seus próprios sentimentos confusos e machucados. Talvez nada viesse a acontecer, mas Quentin achou que valeria a pena descobrir, e achou que não era impossível que Alice também pensasse assim. Estava bem claro para ele agora que, se ela o amava, naquela época, não era por causa da pessoa que ele era, mas por causa da pessoa que ele poderia se tornar um dia. Talvez seja quem ele era agora. Quando terminaram de lançar o feitiço e a poeira e a fumaça se dissiparam, havia uma porta completamente nova na parede oposta da sala. Eles a analisaram por mais um minuto. Não havia pressa. — A aldrava — disse ela. — Belo detalhe. Foi você? Quentin olhou mais de perto. Ele iria ter que comprar novos óculos, sua visão estava piorando. Mas com certeza: tinha a forma da cauda de uma baleia azul. — Me lembre de falar sobre isso algum dia. A baleia parecia um bom sinal. Ele caminhou até a porta e a abriu. A luz do sol branca e fria se derramou. Não era outra casa fantasma; este mundo tinha um exterior adequado. Sua primeira impressão foi de ar frio e doce e um vegetal verde escuro. A maldição foi quebrada. Eles realmente fizeram uma terra, viva e completamente nova. Eles ouviram um pássaro cantar. Quentin entrou. — A atmosfera é respirável — disse ele. — Que idiota. Ela se juntou a ele. — Então este é o seu jardim secreto — disse Alice. O tempo não estava bom: um pouco frio e com nuvens se aproximando. Eles estavam olhando para uma fileira de árvores, árvores frutíferas; desta vez realmente havia um pomar.
O que eles podiam ver do céu continha três luas de vários tamanhos, como bolinhas de gude dispersas: uma branca, uma rosa pálida e uma pequena azulada. — Você vai ter lindas marés — disse Alice. — Se tem mesmo um oceano — disse ele. — E eu gostaria que você dissesse ‘nós’ e não ‘você’. Você sabe que fizemos isso juntos. — É a sua terra, Quentin. Isso saiu da sua cabeça. Mas eu gosto daqui. Parece um pouco com a Escócia. — Você quer uma maçã? Ou seja lá o que seja isso? — Elas eram duras, redondas e vermelhas. — Realmente não sei. Parece que eu estaria comendo sua unha ou algo assim. Eles passearam pelo pomar e saíram para o campo aberto. A terra de Quentin era uma terra irregular, coberta de colinas de grama e montes como ondas do oceano. Passaram por um bosque de árvores finas que pareciam álamos, mas com os troncos entrelaçados como figueiras-de-bengala. As nuvens tinham formas curiosas, nem cúmulos ou cirros, mas novas variedades de nuvens que não ocorriam na Terra. Algo atravessou o ar acima de suas cabeças com um rápido zumbido, deixando uma impressão fugaz de penas cinzentas, mas eles viraram a cabeça tarde demais para vê-lo. — Interessante — disse Quentin. Por nenhuma razão em particular, havia um arco-íris baixo acima do horizonte. Alice apontou para ele. — Bela direção artística. Um pouco clichê, mas bonito. — Como se a sua terra mágica fosse completamente original. Alice chutou uma pedrinha. — Você vai ter que pensar em alguma maneira secreta inteligente para que as crianças possam encontrar aqui — disse ela. — Isso deve ser divertido. — Mas que não seja muito fácil. — Não, não tão fácil. E não farei isso por enquanto. — Ele pegou a mão dela; ela não se desprendeu. — Eu quero que tenhamos isso pra nós mesmos um pouco. Suas bochechas estavam ficando vermelhas, e eles tiveram que parar e se aquecer com feitiços para continuar. Então eles retomaram a caminhada, pisando em uma grama curta e espinhenta, através de pequenas flores silvestres fosforescentes que se fechavam freneticamente quando se aproximavam demais, como anêmonas do mar. Era um grande país, maior do que Quentin esperava: havia montanhas ao longe e logo eles estavam contornando uma floresta de bom tamanho. Quentin chutou um tufo de grama e o solo embaixo era macio e rico como manteiga preta. Algo fez cócegas contra seu peito e ele enfiou a mão dentro da jaqueta. Seu velho relógio de bolso filloriano: estava funcionando. Ele pensou que nunca mais iria funcionar de novo. Ele deve ter gostado dali. — Espera aí, quero fazer uma coisa. Ele sempre esperou que o relógio tivesse algum tipo de poder mágico incrível – voltar no tempo, talvez, ou diminuir a velocidade, ou congelá-lo, ou algo assim. Ele certamente parecia muito mágico. Mas se ele tivesse algum poder, ele nunca o encontrou. É engraçado como
algumas coisas que você espera com muita certeza nem sempre justificam suas expectativas. Tirando o relógio de sua corrente, Quentin se aproximou de uma árvore na borda da floresta, a resposta deste mundo a uma faia, colocou o relógio contra o tronco e pressionou. Depois de um momento de hesitação, a árvore aceitou: o relógio afundou na casca cinzenta e lisa como se fosse argila morna e ficou preso ali, incrustado, ainda fazendo tique-taque. Ele deixou ali. Uma árvore-relógio caseira. Talvez crescessem mais. Quentin reconheceu essa terra e ao mesmo tempo não. Poderia ser uma casa? Ele não viu nenhum motivo contra. Mas era um país estranho e selvagem. Não era uma utopia. Não era uma terra domesticada. Ele percorreu um longo caminho até chegar ali. Estava muito longe do adolescente amargo e com raiva que ele tinha sido no Brooklyn, antes de tudo isso começar, e graças a Deus por isso. Mas o engraçado é que depois de todo esse tempo, ele ainda não achava que aquele adolescente miserável estava errado. Ele não discordava dele – ainda sentia solidariedade com ele nos pontos principais. O mundo era horrível. Era um lugar miserável e desolado, um deserto de insignificância, um terreno baldio sem coração, onde coisas horríveis aconteciam o tempo todo sem motivo e nada de bom durava muito tempo. Ele estava certo sobre o mundo, mas estava errado sobre si mesmo. O mundo era um deserto, mas ele era um mago, e ser um mago era ser uma fonte secreta – um oásis em movimento. Ele não estava desolado e não estava vazio. Ele estava cheio de emoção, cheio de sentimentos, transbordando deles, e no fundo ser um mago se tratava disso. Não eram sentimentos comuns – eles não eram dos tipos mansos e domesticados. A magia era sentimentos selvagens, do tipo que escapam de você para o mundo e mudam as coisas. Ela exigia muito talento, muito a aprender e muito com o que trabalhar, mas era onde começava o poder: o poder de encantar o mundo. Eles andaram e andaram e continuaram esperando a terra acabar (como um penhasco sem fundo? Um mar? Uma parede de tijolos?), mas continuava e continuava e continuava. Tinha muito mais do que cem hectares. O tempo estava prestes a mudar: eles podiam vê-lo avançando pelo vale, com nuvens que arrastavam chuva cinzenta. — Eu não sabia que seria tão grande — disse Quentin. — Até onde você acha que vai? — Não tenho a menor ideia. Eles passaram por um tronco de árvore que devia ter dez metros de largura. Eles escalaram uma cerca (construída por quem?) por meio de degraus de passagem. O vento agitava a grama e empurrava as árvores; as folhas pareciam ficar pálidas quando o vento soprava, até que Quentin percebeu que elas apenas viravam com a brisa, mostrando a parte de baixo que era branca. Ele ouviu um barulho profundo de cascos e um farfalhar e estalar nas árvores. Algo grande estava se aproximando. Alice também ouviu. — Que porra é essa? — disse ela. Quentin não fazia ideia. Algum monstro que escapou de seu inconsciente para essa nova terra intocada? Esperava que eles não tivessem que lutar, ele tinha tido o suficiente disso no momento. Estava se aproximando deles através da floresta, e Quentin podia ver alterações na copa das árvores enquanto seja lá o que fosse estava cada vez mais perto. Ele olhou para trás: eles nunca voltariam para a porta a tempo. Ele nem sequer a via mais.
Da floresta, entre folhas arrancadas e galhos se partindo em seu caminho, apareceu uma enorme besta equina. Era um cavalo do tamanho de uma casa. Veio trotando até eles e parou a poucos metros de distância, a respiração fumegante, como se estivesse à sua disposição. A cabeça de Quentin estava no mesmo nível de seus enormes joelhos sem pelos. Era sem dúvida um cavalo, um cavalo cor de chocolate, com uma crina preta e brilhante, olhos castanhos aquosos do tamanho de bolas de boliche. Mas parecia estar coberto de algo mais macio que pelo de cavalo – parecia que era parte cavalo, parte sofá. De fato… — Isso é veludo? — Alice tocou a panturrilha da besta levemente. — Sabe o quê? — disse Quentin. — Acho que isso deve ser o Cavalo Carinho. — Tem que ser! — O rosto de Alice se iluminou e ela riu. Em todo o seu tempo em Fillory ele nunca o tinha visto. Ninguém tinha, e Quentin começou a pensar que ele não existia, por mais que dissesse Rupert. Ele era provavelmente o habitante mais estúpido de Fillory, uma fantasia completa de uma creche, mas, no fim das contas, era extremamente real. Desconfortavelmente real, até mesmo, ao ponto de estar bloqueando o céu acima deles de uma maneira intimidadora. — Mas o que ele está fazendo aqui? Por que não está em Fillory? O Cavalo Carinho os encarou estupidamente. Ele não falaria. Ele soprou as narinas e olhou por cima de suas cabeças daquela maneira extremamente despreocupada que os cavalos têm. Quentin ficou satisfeito por ele estar ali: havia feito uma terra e a presença do Cavalo Carinho parecia um selo de aprovação. — Eu tenho uma teoria sobre esse lugar — disse Alice. — Você tá pronto? Estou começando a pensar que essa terra não é uma ilha, Quentin. Acho que tem que chegar ao fim. Você queria fazer uma ilha, mas também fez uma ponte. Uma ponte que liga Fillory e a Terra. Esse grande amigo deve ter cruzado ela pra vir nos receber. Alice não conseguiu alcançar o focinho, então ela deu um tapinha na grossa panturrilha. Sua pelagem parecia desgastada em alguns lugares, como o de um brinquedo muito amado, e de baixo podia ver que ele tinha uma grande costura ao longo de sua barriga. Alice sorriu para ele e ele percebeu de novo – aquela pequena diferença. — Seus olhos sempre foram tão azuis? — Eu sei — disse ela. — Também percebi. Você acha que é possível que você não tenha me reconstituído completamente? Me pergunto se ainda tenho um pouco de nifo em mim. Apenas um toque. Apenas o suficiente pra me tornar interessante. O Cavalo Carinho bufou impaciente desta vez e balançou a enorme cabeça como se dissesse: Chega de conversa fiada, tenho lugares para ir. Vocês vêm ou não? — Eu sempre quis montá-lo — disse Alice. — Pra onde vamos? Pra Fillory? — Acho que não. Um dia. Mas ainda não. Vamos mais longe. — Vamos. — Nunca imaginei que ele fosse tão grande — disse Quentin. — Nem eu. Como diabos vamos subir? Quentin olhou para o Cavalo Carinho. Era coisa mais estranha, mas ele estava tão ansioso por tudo que mal conseguia aguentar. Quentin nunca teria acreditado. Ele nunca pensou que faria. — Sabe de uma coisa? — Ele pegou a mão de Alice. — Vamos voar.
© Elena Siebert
Lev Grossman formou-se em Harvard e é doutor em literatura comparada por Yale. Logo percebeu que a carreira de comparar literaturas não era para ele. Em vez disso, passou a escrever regularmente para veículos como Village Voice, Entertainment Weekly, Time Out New York, Salon e The New York Times. Atualmente, é jornalista e crítico de literatura da revista Time. Ele vive no Brooklyn, em Nova York.