A Pintura - Descricao E Interpretacao.pdf

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Dire^ao geral de Jacqueline Lichtenstein Colaboracjio de Jean-Franfois Groulier, Nadeije Laneyrie-Dagen e Denys Riout

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A PINTURA Cole^ao em 14 volumes 1. O mito da pintura 2. A teologia da imagem e o estatuto da pintura 3. A ideia e as partes da pintura 4. O belo 5. Da imitacao a expressao 6. A figura humana 7. O paralelo das artes 8. Descricao e interpretacao 9. O desenho e a cor 10. Os generos pictoricos 11. As escolas e o problema do estilo

7

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A PINTURA Textos essentials Vol.8 Descricao e interpretacao

Apresentafao Jean-Francois Groulier Coordenacao da tradufao Magnolia Costa

12. O artista, a formac.ao e a questao social 13. O atelie do pintor 14. Vanguardas e rupturas

editoraH34

Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sao Paulo-SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright da edicao brasileira © Editora 34, 2004 La Peinture © Larousse, 1995 La Peinture © Larousse, 2004

A PINTURA Nota da edicao brasileira

7 Vol.8

Ouvragepublic avec le concours du Ministere francais charge de la culture — Centre National du Livre. Obra publicada com o apoio do Ministerio Frances encarregado da cultura — Centre Nacional do Livro.

Cesare Ripa, Iconologia ("Introducao")

21

A fotocopia de quaJquer folha deste livro e ilegal e configura uma apropriafao indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

Jean-Baptiste Du Bos, Reflexoes criticas sobre a poesia e a. pintura (I, 24)

34

Capa, projeto grafico e editoracao eletronica: Bracher dr Malta Producao Grafted

Michel Frar^ois Dandre Bardon, Apologia das aleyorias de Rubens e de Le Brun I o o introduzidas nas galenas do Luxemburgo e de Versailles ("Nota preliminar")

54

Louis Reau, Iconogmfia da arte crista ("Prefacio")

66

Erwin Panofsky, Sobre o problema da descrifdo e interpretacao do conteudo de obras das artes pldsticas

83

Revisao da traducao: Cide Piquet, Marina Kater

l a Edicao - 2005 (l a Reimpressao - 2008)

Catalogacao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundacao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Lichtenstein, Jacqueline (org.) L696p

A pintura — Vol. 8: Descricao c interpretacao / organizacao de Jacqueline Lichtcnsrein; apresentacao de Jean-Francois Groulicr; coordenacao da traducao de Magnolia Costa. — Sao Paulo: Ed. 34, 2005. 160 p.

Descricao e interprera^ao

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Erwin Panofsky, "Et in Arcadia ego ": Poussin e a tmdi$ao elegiaca

110

Werner Weisbach, "Et in Arcadia ego"

133

Otto Pacht, Questoes de metodo em historia da arte

146

ISBN 85-7326-325-3

Relacjio dos tradutores

158

1. Artes plasticas - Pintura - Cri'tica e historia. I. Groulier, Jean-Francois. II. Costa. Magnolia. III. Titulo. IV. Serie.

Sobre os organizadores

159

CDD-750.1

Descri^ao e interpreta^ao Jean-Francois Groulier

O conceito de interpreta9§o, tal como progressivamente se constituiu na historia da arte, nasceu do cruza-r mento de diversas disciplinas. Ele e quase contemporaneo do desenvolvimento da hermeneutica no dominio das letras, da filosofia e das ciencias religiosas. Se o conceito nao cessou de se redefinir segundo as diferentes contributes das ciencias humanas, da filosofia, a interpretacao das obras pictoricas e uma atividade literaria e critica que desde a Antiguidade sempre se exerceu. No entanto, que a interpretacao dos quadros tenha sido sempre uma pratica natural, assim como o julgamento de valor sobre as obras, e uma afirmacao que exige serias reservas. Com efeito, decifrar uma significacao ou avaliar as produces artisticas sao praticas especificas, mais ou menos dominantes em certas epocas da cultura ocidental. Assim como a beleza ou a harmonia, essas nocoes nao sao universais, e sabe-se que elas nao deixaram de ser fortemente contestadas, em nome seja do positivismo, seja do relativismo cultural. Um dos primeiros testemunhos que possufmos de formas de interpretacao e seguramente a Ekphrasis, describe das obras de arte nascida da tradicao retorica. Embora nao corresponda a descri^ao no sentido moderno da palavra, a "pintura" feita por Homero do escudo de Aquiles anuncia um genero litera-

A pintura

rio que os sofistas freqiientemente praticarao e que as Imagens de Filostrato a proposito dos afrescos de Napoles ilustram. Essa origem retorica da Ekphrasis como genero descritivo fez dela o paradigma do discurso sobre a pintura ate hoje, pelo menos no domi'nio literario. Quer se trate da teoria da arte, da critica de arte ou de ensaios mais gerais, a descri9ao foi sempre um genero dominante, desde os sofistas ate os escritos mais contemporaneos. O leitor encontrara multiples exemplos disso em cada um dos volumes desta compila9ao.' Essa forma discursiva se nutre, porem, de algumas ambigiiidades que um discurso mais "cientifico", como o da historia da arte, nao pode dissipar inteiramente. Com efeito, descrever as qualidades mais destacadas de uma obra, sua singularidade e sua alteridade essencial, exige uma arte do matiz, uma acuidade do olhar e um senso da evoca9ao, de modo que a referenda ao objeto corre geralmente o risco de ser eclipsada pelo talento, e ate mesmo pela subjetividade exclusiva daquele que descreve. Donde o perigo de derivas, de logomaquias as mais diversas e de saberes complacentes que pesam sobre toda disciplina, literaria ou nao, e contra os quais precisamente se constitui'ram modelos de interpreta9ao mais rigorosos e mais sobrios. O fato e que, sem um conhecimento claro de seus proprios procedimentos de decifra9ao, toda descri9ao ja e uma interpreta9ao da obra de arte. As descri9oes de um

' Ncs.sc scntido, a maior pane dos tcxtos rcprodu/.idos ncsta eolecao poderia scrvir para ilustrar A qucstao da dcscrieao c da interpretacao. Ncstc volume, opiamos por insistir sobre dois aspectos do probicma, de resto insepanivcis: a alegoria e a iconologia. A alcgoria, por sua coinptexidade, e de fato um objeto tie inierpretacao por cxcelcneia. Quanto a iconologia, ela forneceu, no scculu XX, modelos de invcstigacao e de proccdimento de um grande rigor.

Descri^ao e interpreta^ao

Vasari durante o Renascimento ou de um Bellori no seculo XVII continuam presas ao modelo retorico, como demonstram a divisao e a ordem dos discursos. E assim que, nas longas analises dos quadros de Guido Reni ou de Sacchi, Bellori em primeiro lugar evoca, para cada um, o argumento da fabula, isto e, a ideia que anima a narra9ao; depois introduz a descri9§o propriamente dita, para em seguida destacar o sentido ultimo da represenr^ao, acrescentando as vezes observa9oes de ordem estilistica. Ao reproduzir mais ou menos a ordem das partes do discurso prescrita pela retorica classica, a descri9§o se ordena em fun9§o da in&en9ao, que corresponde ao argumento da fabula, indo a seguir da disposi9ao ate a 3930. Ela implica portanto uma arte da interpreta9ao, ja que os autores analisam o quadro pane por parte, figura por figura, ate que seja estabelecida a significa9ao da representa9ao. O percurso do olhar do espectador devia se conformar a uma ordem ja preestabelecida pelos topoi da retorica, da historia sagrada e profana, e segundo as categorias proprias da pintura (inven9ao, composi9ao das figuras, disposi9ao etc.). Acreditando na ^obje^yijdade das regras e dos principios que concorrem para a cria9§o de um quadro de historia ou de uma cena de genero, os teoricos classicos nao podiam conceder senao uma margem muito estreita ao inevitavel arbftrio da leitura da representa9ao. E corn o reconhecimento dos direitos da subjetividade e da "experiencia estetica" que se desenvolve a ideia de que a obra e suscetfvel de miiltiplas abordagens, portanto de miiltiplas interpreta9oes. A concep9ao mais ou menos difundida segundo a qual a compreensao da pintura, inclusive a mais codiflcada, nao exige nem regras nem criterios de validade, e ainda hoje muito aceita. A cren9a na imediatez do prazer estetico, sem o recurso a fontes tex-

< , .. Descrigao e interpretagao

A pintura

tuais, permanece muito forte. Ora, o seculo XIX e o seculo XX assistiram a iniimeros esforcos com o intuito de fundar, para alem das disciplinas historicas, teorias da interpreta£ao que apresentassem criterios satisfatorios de objetividade. No im'cio do seculo XX, o metodo de Wolfflin procura explicar o valor de uma obra de arte pelo primado da forma plastica e pelo grau de autonomia que distingue a verdadeira criacao arti'stica das inumeraveis producoes de uma epoca.2 For sua vez, Riegl, autor de Stilfragen [Questoes de estilo] e de Spatromische Kumtindustrie [As artes aplicadas no Imperio romano tardio], introduz em seus textos um conceito destinado a esclarecer o principio dinamico operante nas mutacoes das artes, o de Kunstwollen, isto e, vontade arti'stica.3 Ele o definiu assim: "Nas questoes de estilo, em oposi9ao a concep9ao mecanica da natureza da obra de arte, propus uma hipotese teleologica, por ter visto na obra de arte o resultado de uma vontade arti'stica determinada e consciente que se poe no lugar, apos um duro combate, da materia e da tecnica".4 Esses procedimentos, formalistas ou historicistas, foram fecundos na medida em que abordaram a questao da forma abandonando a explicacao baseada no simples exi't'o tecnico. Mas o desenvolvimento crescente das pesquisas iconograficas desde o seculo XIX favoreceu a constituic.ao de modelos de analise

2

mais complexes, mais aptos a tornar inteligi'vel o conjunto das relacoes proprias aos sistemas simbolicos, tais como a arte medieval ou a pintura do Renascimento italiano. Inicialmente ativa na Franca, a disciplina da iconografia surge no seculo XIX, tendo originalmente por finalidade apenas contribuir para o crescimento das ciencias religiosas. Em 1848, A. Crosnier a define como uma "ciencia das imagens".^ Pouco a pouco, todos os trabalhos sobre a iconografia crista se integram no corpo da historia da arte. Emile Male6 os submete a uma analise rigorosa, tomando por base os textos medievais, criticando eventualmente o simbolismo excessivo de seus predecessores. As pesquisas da escola historica alema no seculo XIX resultam na formacao de vastos repertories relatives a mitologia antiga e se dispoem, por sua vez, a sistematizar a iconografia crista, as vezes no quadro de uma "monumental teologia". Desde entao, longe de se reduzir a uma simples disciplina auxiliar, mais ou menos empirica, a iconografia se torna um metodo de analise cujos progresses se baseiam num relacionamento constante das formas visuais com redes de referencias textuais. A medida que os procedimentos de analises formais e' psi'eologicas se revelam insuficientes na explicacao da representacao pictorica, as investigates iconograficas mostram como as obras sao subterraneamente solidarias aos modos de pensamento cientificos, filosoficos

Hcinrich Wolfflin (1864-1945), disctpulo dc Burckhardt. Suas

obras principals sao Renascimeiito e Harrow (1888), A arte clAssica ( 1 899) e Principius fundamentals da bistoria da arte (1915). ' Alois Ritgl (1858-1905), figura niaior da chamada cscola dc Vic-

A. Crosnicr, Iconographie chretienne, Caen, 1848. Ver, igualmente, Didron, Iconographie chretiennc, bistoire de Dieu, Paris, 1843. 6

Emile Male (1862-1954), L'Art religieux du XllF siecle en France

na. Suas ohras principals sao Stilfr/igeii (1893), tradu/ida cm Frances por

(I 898); /, 'Art religieiix dc la fin du Mnyen Age en France (1908); L 'Art re-

Questions de style (1'aris, Ha/an, 1992), c Spiitmtnische Kumtindustrie (1901).

ligieux du XII' siccle en Frnnce (1922); L 'Art religictix it/ires le Concilc de

'* Spiitroiniscbe Kinistiiidiistrie, p. 9.

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(1932).

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A pintura

ou teologicos de uma epoca. Alem disso, a consideravel contribuicao da Kulturgeschichte representada por Jakob Burckhardt 7 ou Aby Warburg8 orientam os estudos para uma concepcao mais globalizante das obras. "A iconografia e esse ramo da historia da arte que se relaciona ao tema ou a significacao das obras de arte, por oposicao a forma." Em sua generalidade, essa defini^ao de iconografia dada por Panofsky nao se distingue particularmente das outras defini^oes fornecidas antes dele. Ela distingue em primeiro lugar dois m'veis de significacao: o sentido fenomenico, tal como se manifesta na percepcao imediata, e o sentido semantico, que corresponde ao da iconografia tradicional, e ao qual o autor acrescenta uma historia dos tipos destinada a atenuar as insuficiencias da abordagem estilfstica da obra.y O segundo nivel, o semantico, nao deixa de apresentar dificuldades tecnicas, no sentido de que nao basta relacionar as fontes textuais adequadas com o tema do quadro. E precise ainda encontrar, no caso de uma identificacao problematica do tema, um criterio de validade que confira objetividade aos enunciados do historiador. Para essa finalidade, Panofsky propoe constituir

7

Jakob Burckhardt (1818-1897), historiador da arte suic,o. Siias obras

principals sao A cwilizaftio do Renasfimento na Italia (I860) c o ('icerone (1855). s

Aby Warburg (1866-1929). Ami go c colaborador de Saxl c dc 1'a-

nolsky, seus cscritos foram rcunidos c publicados apos sua mortc (O Keiiiisciineiito do/uigaiiisiHo rintigtr, 1932). Alguns artigos foram cradu/idos para o Frances cm Essitisflureiithis, Paris, Klincksieck, 1990. Warburg constituiu cm Hamburgo uma imcnsa bibliotcca dc historia da arte que loi transrcrida para l.ondrcs cm 1933, transformando-sc no cclcbrc Warburg Institute. '' Esses dois ni'vcis sao rcprcscniados nos csqucmas rcprodu/.idos mais adiaiuc ncstc volume, no haul do primeiro icxto de 1'anolsky.

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'' : Descrir;ao e interpreta?ao

uma historia dos tipos. A determinacao do tipo — por exemplo, Judite na Italia setentrional do seculo XVI — depende da maneira como uma epoca utilizou os elementos e os atributos que permitem identificar os personagens introduzindo variances que se devem, as vezes, a uma moda e a uma reinterpretacao do texto. Em todos os casos, somente uma fonte textual pode vir confirmar a hipotese que a iconografia formula diante de uma obra, e a func.ao da historia dos tipos e servir de resguardo contra todo risco de identificacao erronea do tema. O terceiro m'vel, o do sentido documental, mostra toda a ambi9ao do projeto teorico que e totalizar o conjunto das relacpes possiveis compreerjdidas no ato da interpretacao e em seu objeto. Para isso, Panofsky introduz duas novas referencias: a do espectador (o historiador), tendo ele proprio categorias de percep9§o que remetem a uma visao de mundo determinada, e a de uma historia geral das ideias, que condiciona em profundidade o sentido ultimo da obra de arte como sintoma de outra coisa, isto e, como estrutura simbolica. E esse movimento de totalizacao de todos os saberes possi'veis relativos a uma composite pertencente a um perfodo preciso da historia da arte que Panofsky denomina, nos anos 1930, iconologia, tomando emprestado esse termo de Cesare Ripa. O interesse do esquema interpretative que o autor propoe e evidenciar a extrema complexidade da resposta que o metodo iconologico da a questao que cada um tern o direito de fazer diante de um quadro, a saber: "O que isso representa?". Assim, diante de uma das composicoes da serie de Maria de Medicis de Rubens, uma coleranea de initologias da epoca pode nos informar sobre a fui^ao dos atributos de um deus (Merciirio ou Netuno): esse e o m'vel do "sentido semantico". O "corretivo objetivo da interpretacao" que Panofsky indica em seu esquema poderia ser ilus-

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A pintura

Describe e interpretacao

trado com o auxi'lio dos testemunhos que reproduzimos aqui a proposito do debate entre Du Bos e Dandre Bardon sobre o estatuto da alegoria. Esses documentos vein oportunamente lembrar a historicidade de toda interpretacao na medida em que esta pertence a uma Weltanschauung, a uma visao de mundo. O modelo de interpretacao que Panofsky elaborou e certamente apenas uma tentativa entre todas as que marcam sua obra. Mas ele renovou profundamente diversas problematicas, como a das redoes do texto e da imagem, do estatuto da forma simbolica na arte e da significacao imanente a toda forma. Alem disso, ele mostra como toda leitura "selvagem" de um sistema simbolico. esta fadada a interpretacao ingenua, enquanto se ignorarem as fontes textuais e as multiplas determina9oes subjacentes a percepcao artistica. Como disse Gombrich: "O que se ve depende do que se sabe".1() A vantagem de tal metodo e responder de maneira mais precisa as duas questoes essenciais que a iconografia prop5e, a saber: "Qual e o sentido deste quadro?" e "Qual era a inten9ao do artista que o executou?". Cada uma das duas questoes exige na maioria das vezes uma referenda a textos que comprovem a vontade do pintor ou de quem encomendou a obra, ou que remetam a circunstancias mais complexas. Essas duas questoes guardam estreita correlacao, visto que o sentido que o historiador revela na obra (atributos, indices, modos de narracao do quadro) permanece indeterminado enquanto nenhum documento informar sobre a intencao verdadeira do pintor ou sobre o assunto exato do quadro. Sabe-se que

obras maiores, como a Tempestade de Giorgione ou as composi^oes de Hieronimus Bosch, continuam enigmaticas por falta de documentos ou de provas que venham confirmar as inumeraveis hipoteses formuladas a seu respeito. A resposta as duas questoes constitui portanto a condicao minima para uma interpretacao correta, ou mesmo justa, na medida em que ela e verificavel, comunicavel e pode aspirar a uma certa objetividade. Resta saber se a obra e passivel de uma ou de varias interpreta^oes justas. Esta e decerto uma questao tradicional, mas ela e tambem seguramente dificil. Com efeito, trata-se de uma das questoes que foram e continuam sendo mais asperamente debatidas pelos historiadores da arte e pelos teoricos. Responder a essa questao so seria possivel se se analisassem todos os pressupostos sobre os quais repousa o conceito mesmo de interpretacao. O metodo do historiador da arte permanece assim exposto a dois perigos: de um lado, a pretensao a interpretacao linica, justa, mas exclusiva e dogmatica; de outro, a reivindicacao a pluralidade de interpreta9oes, a qual contesta implicitamente toda cientificidade no procedimento historico e interpretative, dando-se o direito a arbitrariedade e a improvisacjio, e ate mesmo a superinterpreta9ao. A pertinencia desse principio pode naturalmente aplicar-se a propria iconologia enquanto procedimento as vezes suspeito de hegemonia nas disciplinas da historia da arte. Com efeito, e legitimo atribuir um lugar preponderante a iconologia no problema da interpreta9ao? Seria preciso, sem diivida, evocar as multiplas tentativas feitas pela psicanalise, pela sociologia ou pela semiologia de ultrapassar a etapa da simples compreensao (mais ou menos intuitiva ou impressionista) e chegar enfim a uma explica9ao do ato criador e da obra. Essas pesquisas certamente puderam mostrar sua fecundidade e lembrar a necessidade de nos

'" Ernst tiombrich (1909-2001), ingles dc origcm austn'aca, foi um dos miiiores historiadorcs da arte do seculo XX. Suas principals ohras sao Ait tind illusion (I960), Norm and jonn (1966) c Symbolic images (1972).

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A pintura

prevenirmos contra a ilusao da interpreta9ao global e exclusiva, ja que toda abordagem permanece fundamentalmente determinada pela perspectiva na qual se inscreve. A iconografia e o metodo iconologico como tecnica de interpretacao constituern um acesso privilegiado as obras, mas nao o unico. O modelo teorico que empregarn, fortemente enraizado nas concepcoes humanistas e na tradicao erudita, foi o que mais produziu esquemas, investiga9oes ineditas, conceitos, redescobrindo inumeros sistemas de formas e de signos atraves do ato de recriacjio especifico da pesquisa historica. De resto, ele nao e obra exclusiva dc Panofsky, mas o resultado de multiplas pesquisas conduzidas pelas escolas alemas. Contudo, o criterio de fecundidade proprio a uma disciplina nao deve fazer esquecer seus resukados por vezes contestaveis. De fato, inspirado em metodos hermeneuticos, na filologia e mesmo na exegese medieval, o metodo iconologico postulava necessariamente a existencia de uma certa textualidade da imagem, isto e, que toda representacao so era inteligfvel por referenda a esquemas, a correntes de ideias ou de crencas, portanto a textos. Quando se trata de determinar a influencia do neoplatonismo na obra de Michelangelo, tal procedimento e manifestamente legitimo. Por outro lado, os exitos do metodo nao deixaram de alimentar em muitos pesquisadores uma confian^a excessiva no poder referenda! do discurso como fonte quase linica de significacao. A historia da arte e a iconologia sao disciplinas universitarias, portanto disciplinas naturalmente praticadas por homens de letras habiruados a conceder a priori uma primazia exorbitante a linguagem em detrimento das outras praticas significantes. A sedu^ao que exercem palavras como interpreta/^ao, sentido, leitura, decifrafno, signo iconico, nao deve fazer esquecer que elas sao apenas nietaforas e metom'mias, mais

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,.... ..Descri^ao e interpreta^ao

proximas de nossa relacao com a escrita do que com nossa percepcao efetiva de uma obra pictorica. Elas ja pressupoem implicitamente uma textualizacao da imagem antes de todo ato de interpretacao, se nao mesmo antes de todo olhar. Ora, mesmo em suas estruturas mais simbolicas, a representacao pictorica nao conduz a palavra. Do mesmo modo, a significacao ultima de um quadro nao poderia se reduzir ao tema representado.

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Louis Reau

Se se quiser medir com um termometro muito sensivel o fervor crescente da devocao a Virgem, basta observar a evolucao iconografica do tema da coroacao, que a partir do final do seculo XII tornou-se obrigatorio nos timpanos das catedrais a ela consagradas. A Virgem no Trono dos escultores romanos nao era senao a sede (Sedes Sapientiae) ou o trono vivo do Menino Jesus. Em Notre-Dame de Paris, ela e coroada por um anjo; no frontao do portal central de Reims, e o proprio Cristo quem coroa sua mae; ainda mais tarde, ela sera coroada pela Trindade e, no seculo XV, no celebre quadro de Enguerrand Quarton no hospital de Villeneuve-lez-Avignon, ela ganhara lugar no meio da Triade divina, entre Deus Pai e Deus Filho, sob as asas da pomba do Espirito Santo: a Virgem se torna, por assim dizer, a quarta pessoa da Trindade, ampliada em Quaternidade. A iconografia nao somente reflete as crei^as: acontece muitas vezes de cria-las. Quantas lendas de santos devem sua origem a imagens as vezes mal compreendidas e interpretadas as avessas. Na origem do casamento mistico de santa Catarina ha possivelmente uma pequena roda confundida com uma alianca, e o tern'vel marti'rio de santo Erasmo, a quem teriam aberto o ventre para arrancar os intestinos, origina-se tao-somente de um equivoco acerca de seu atributo de padroeiro dos marinheiros: um cabrestante em torno do qual se enrola o cordame. Home: Louis Rc;iu, Iconogrnphie tie I'art chretien, Prcfacio, Paris, I'UH, 1955, 6vols.

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T Erwin Panofsky (1892-1968)

Sobre o problema da descri^ao e interpreta^ao do conteiido de obras das artes plasticas (1932)

Nascido em Hanover em 1892 e falecido em Princeton em 1968, Erwin Panofsky fez.estudos de historia da arte em Friburgo. Privatdozent na universidade de Hamburgo, leciona all ate 1933, ano em que se ve forcado ao exilio. Durante dois anos da aulas em Nova York, como professor visitante, e trabalha a seguir no Institute for Advanced Studies de Princeton, onde permanecera ate sua morte. 0 numero de obras e de artigos de Panofsky e tao consideravel (mais de 150 titulos) que so podemos mencionar algumas obras principals. As primeiras publicacoes marcantes sao certamente Diirers Kunsttheorie (1915), Die Deutsche Plastik (1924) e Durers "Melancolia", escrita com seu amigo F. Saxl. Idea, de 1923, mostra que as reflexoes teoricas-sempre acompanharam as pesquisas historicas do Panofsky do periodo alemao. Com efeito, entre as duas guerras ele buscou examinar de maneira critica a maior parte das teorias de interpretafao dos seus predecessores. A questao de saber quem o influenciou, seriamos tentados a responder: toda a tradicao critica e historiografica alema, sem a qual seu procedimento nao pode ser inteiramente compreendido. Donde as dificuldades que ele encontrou durante seus primeiros anos nos Estados Unidos para "aclimatar" o metodo iconologico e para adaptar seus conceitos de inspira?ao filosofica as exigencias do pensamento anglo-saxonico, reticente a toda forma de intelectualismo considerado como bizantino. Assim, a nocao de Weltanschauung, presente no texto que reproduzimos aqui, e traduzida pelo proprio

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Erwin Panofsky

Sobre o probJema da descricao e interpretacao

autor por basic attitude, nos Ensaiosde iconologia. No anos 1920, Panofsky foi urn dos raros pesquisadores a querer introduzir na historia da arte preocupacoes epistemologicas, o que o levou a fazer a critica dos conceitos de Riegl e de Wb'lfflin. Em sua formacao intelectual, afigura-se claramente que algumas teses de Cassirer, formuladas em A filosofia das formas simbolicas,^ exerceram sobre ele forte influencia. Antes de mais nada, a ideia de que a obra de arte nao pode ser apenas compreendida em sua significacao imanente, pois ela remete a estruturas mais profundas, a saber, a "valores simbolicos" que sao os da cultura a que pertence o artista. Mas os trabalhos de Riegl, Dvorak, Schlosser e sobretudo Aby Warburg2 haviam aberto amplas perspectivas nesse sentido. 0 que os conceitos de Cassirer ofereciam a nosso historiador era a possibilidade de elaborar um metodo critico, e portanto mais precise, de interpretacao. 0 apoio de Cassirer Ihe permite livrar-se de alguns pressupostos, as vezes demasiado filosoficos, de seus predecessores. 0 livro epistemologicamente exemplar desse periodo e sem duvida A perspective como forma simbolica (1924/25). Os grandes classicos de Panofsky pertencem ao periodo americano. Nessa prodigiosa profusao de artigos, pesquisas e livros, aparecem entao algumas obras-primas tais como os Ensaios de iconologia

(1939), Durer (1943), Arquitetura gotica e pensamento escolastico (1951), Os primitivos flamengos (1953), A obra de arte e suas significances (1955). 0 texto que reproduzimos aqui e a retomada de uma conferencia pronunciada em Kiel, em 1931, no Kantgesellschaft. E o primeiro resultado do periodo de reflexao teorica ainda marcado pelo pensamento de Cassirer, cuja importancia nao deve, porem, ser superestimada. Ele poe em cena a maior parte dos conceitos operatorios destinados a constituir a iconologia como discipline interpretativa. Na introducao aos Ensaiosde iconologia, Panofsky retoma a problematica dessa "Contribuicao...", mas dando-lhe nova amplitude e maior riqueza conceitual. Nao pudemos reproduzir esse texto fundamental em razao da quantidade de reprodu9oes que ilustram a demonstrafao de Panofsky, mas o texto que apresentamos contem, no essencial, a argumenta9ao decisiva do historiador. No entanto, juntamos a esse texto o quadro contendo os tres niveis de interpreta9ao, que aparece nos Ensaios de iconologia, a fim de possibilitar ao leitor uma comparacao esclarecedora. Bibliografia: K. Panofsky, Essais d'iainologie, tradu/.ido para o Frances por Bernard Tcysscdrc e Claude Herbette, Paris, Ciallimard, 1967.

1

Ernst Cassirer (1874-1945) foi tambcmprofl'ss^i'eWHamburgo.

Em 1933 cmigrou para a Succia e dcpois para os Hstados Unidos. Falcccu cm Princeton. Filosofo marcado pelo neo-kantismo da cscola de Marburg, sua obra principal e A filosofia das formas simbolicas (A lingua, 1923; O pensamento mitico, \; Fenomcnologia do conhecimento, 1 929).

Sobre o problema da descrigao e interpreta^ao do conteudo de obras das artes plasticas"

Sobrc Riegl, ver o tcxto dc apresentacao deste volume. Max Dvorak (1874-1921), historiador da arte tchcco, disei'pulo de Riegl c rcprescntantc da escola de Viena. Sua obra Kunstgeschichte ah (ieistesgeschichte (His-

Na decima primeira de suas Cartas sobre a AntiguidaLessing ocupa-se de um trecho que se encontra na des-

toria da arte como historia das ideias) e unia colctanea postuma (1924). Julius von Schlosser (1866-1938), tambcm incmbro da escola cle Viena, autor da obra dc referenda KuHstlitmitur (1924, eclicao f ranccsa: /./(litterantre

•' C) presence artigo — junto com algumas alteracoes parcialnicntc

urtistiqiie, Paris, Flanmiarion, 1984). Sobrc Aby Warburg, ver o texto de

resultantes de uma discussao posterior — reprodu/ a ordem de argumen-

apresenucao di-stc volume.

cos de uma eonfercncia apresentada em 1931 para o Cirupo de Kiel da So-

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Erwin Panofsky

., ^ . . . . . .

crigao de Luciano sobre a Familia dos Centauros de Zeuxis: "No alto do quadro, postado como numa especie de sentinela, debruca-se sorridente um centauro." "Esse 'como numa especie de sentinela' — observa Lessing — pareceme indicar claramente que o proprio Luciano nao tinha certeza se a figura estava apenas recuada ou ao mesmo tempo mais ao alto. Acredito reconhecer aqui — continua ele — a disposicao dos antigos baixos-relevos, nos quais as figuras mais atras estao sempre indiferentes as do primeiro piano, nao porque elas estejam de fato acima delas, mas simplesmente porque devem aparentar estar muito mais atras". A observacao de Lessing nos introduz de um so golpe na problematica de um processo que em geral consideramos muito simples e evidente (como de fato indica o estagio mais primitivo da discussao cientifica sobre a obra de arte): a problematica da pura descricao da imagem. Pois ela chama a nossa atengao para o fato de que um individuo do seculo II d.C. — um individuo que cresceu num ambiente arti'stico marcado por um ilusionismo altamente desenvolvido, tal como o da especie dos afrescos de Pompeia —

cicdadc Kantiana, a qual dcvcria iratar dos princfpios que condii/em durantf o sen trahalho o historiador da arte particularmente interes.sado na intcrpretacJio iconografica. A tarefa do autor, por isso, nao reside tanto em fundamentar os problemas de semelhante trahalho de intcrprctacao em sua sisccmatica, mas muito mais cm excmpliricar as suas conscqucncias mctodologicas. E clc nao deve ser visto como prcsuncoso quando, dc acordo com a csscncia de seu "rcLuorio dc prcstacao de contas", rcpctidus vexes fa/ mcn^ao as suas proprias tcntativas. (Nota dc Panofsky)

Sobre o problema da descri^ao e interpretacao

nao seria capaz de reconhecer e de descrever com facilidade uma imagem do seculo V a.C. em sua pura existencia objetiva. Ele deve se satisfazer com uma indicacao, por assim dizer, topografica de um lugar do quadro e com uma comparacao intencionalmente nao conclusiva — a nao ser que ele tivesse ultrapassado o "dado" imediato, como Lessing faz conscientemente: Luciano so teria podido chegar a um parecer inequi'voco se tivesse se esforcado em apreender a obra de arte antiga nao do ponto de vista do seculo II d.C. e sim do seculo V a.C., se ele tivesse se lembrado de casos identicos ou semelhantes e, desse modo, houvesse se conscientizado de uma alteracao nas possibilidades de representa^ao do espago; em suma, se a sua descriqao nao se baseasse somente nas perccpgoes imediatas do objeto isolado, mas num conhecimento geral dos princi'pios da configuracao artistica, quer dizer, num conhecimento estili'stico, ao qual, no presente caso, so poderia ter chegado por meio de uma reflexao historica. I. Quando nos defrontamos — para tomar urn exemplo qualquer —^ com a tarefa de descrever a famosa Ressurrei<;ao de Griinewald/1 ja nas primeiras tentativas aprenderemos que a diferenciagao tao usual entre uma descri^ao puramente "formal" e uma descricao puramente "objetiva" nao pode ser mantida em toda a sua abrangencia depois de uma observa^ao mais detida, pelo menos nao no que se refere as obras das artes plasticas (gostaria de fazer aqui um

C. U. Lessing, Lettres nnccniant 1'Aiitiijnite, 1768 c 1769. A nona carta, tradu/Jda por R. Klein, foi publitada em Lessing, Lriaofoii, Paris, HerMatbias Griincwald (c. 1480-1 528), pintor alemao, autor do rcta-

mann, 1990. "" Luciano (c. 125-r. 192 d.C.), cscritor grcgo.

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bulo de Iscnlieim que se cncontra cm Colmar.

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Sobre o problems da descricao e interpreta^ao

parentese para observar que, de acordo com a minha experiencia; nao se passa mutatis mutandis de modo diferente com a arquitetura). Uma descricao que fosse puramente formal nao poderia sequer empregar expressoes como "pedra", "homem" ou "rochas", mas deveria se limitar fundamentalmente a descrever as cores como elementos formadores completamente destituidos de sentido e inclusive espacialmente ambfguos, cores que contrastam entre si com nuan9as variadas e que, no melhor dos casos, se agrupam conjuntamente em complexes formais quase ornamentais ou quase tectonicos. Se designassemos o piano escuro no alto do quadro como "ceu noturno" ou as luminosidades notavelmente diferenciadas no centre do quadro como um "corpo humano", e definitivamente se dissessemos que este corpo se encontra na frente daquele ceu escuro, ja teriamos relacionado o que e exposto ao que vemos exposto, um evento formal espacialmente ambiguo a um conteiido representative rigorosamente tridimensional. Nao e necessario realizar aqui uma investigacao ulterior para constatar que uma descricao formal em sentido estrito e algo impossi'vel na pratica: toda descricao — de certo modo, antes mesmo •que-tenhaninfcio — ja teria de ter interpretado os fatores expositivos puramente formais como si'mbolos do que vemos exposto; e com isso, quer queira quer nao, ela ja ultrapassou a esfera do puramente formal e entrou numa regiao semantica. Tambem no interior daquilo que costumamos designar no nosso uso cotidiano da linguagem como ponto de vista "formal" (no sentido dado por Wolfflin, por exemplo), o que constitui o objeto da descricao imagetica e na verdade nao apenas a forma (em cuja analise nao poderemos nos aprofundar aqui), mas tambem o sentido da forma. Com a diferenca apenas — e isso e decisive — de que o "sentido" nesse caso se encontra numa outra cama-

da — mais primitiva, se se quiser, do que aquele outro sentido, com o qual se ocupa a investigacao assim chamada "iconografica". Quando designo aquele complexo de cores mais claro no centre do quadro como um "individuo que paira no ar com maos e pes perfurados", sem diivida ultrapasso, como ja foi dito, os limites de uma deso^ao meramente formal, mas ainda permaneco numa regiao de representacoes sensiveis, que sao acessfveis e familiares ao observador com base em sua percepcao visual, tatil e cinetica, em suma, com base em sua experiencia existencial imediata. Se eu designar, ao contrario, aquele complexo de cores mais claro como um "Cristo que se ergue no ar", entao eu ja pressuponho um conhecimento culturalmente determinado; assim como, por exemplo, um individuo que nunca tivesse ouvido nada sobre o conteiido dos Evangelhos provavelmente teria compreendido a Ultima Ceia de Leonardo como a exposicao de uma agitada refeicao coletiva motivada, a se deduzir pelo saco de dinheiro, por uma questao financeira. Gostanamos de designar aquela camada de sentido primaria, na qual podemos penetrar gra9as a nossa experiencia existencial vital, como a regiao do sentido fe" ' ' • ' I • J J• J' nomemco, o qual, se quisermos, podemos dividir em sentido objetivo e sentido expressive (pois i sem dtivida uma diferenca importance se o signo imagetico se nos apresenta como a exposicao de um individuo ou como a exposicao de um individuo "belo", "feio", "triste", "feliz", "expressive" ou "apatico"). Aquela outra camada cle sentido, ao contrario, que nos e acessi'vel apenas gracas a um conhecimento transmitido literariamente, gostan'amos de denominar como a regiao do sentido semantico. A partir do que nos e permitido afirmar que o historiador da arte nao tern direito algum de diferenciar, no interior desse sentido semantico, entre rcpresenta-

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T Sabre p problems da descri^ao e interpretagao

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goes que julga "essencialmente artisticas" (como, por exemplo, 6 conteiido da Biblia) e representacoes que acredira poder deixar de lado como "alegorias intrincadas" ou "simbolos abstrusos". Nessa diferenciacao tao comumente feita nao se trata, a rigor, de uma diferenca entre o que e artisticamente essencial ou nao, mas de uma diferenca entre o que por acaso (e quem sabe por quanto tempo ainda?) e em certa medida corrente para a consciencia atual e aquilo de que precisamos nos apropriar novamente mediante a redescoberta de fontes hoje esquecidas: nao e de todo inconcebi'vel que a historia de Adao e Eva se tome tao estranha para os homens do ano 2500 como e para nos aquela ideia que originou as alegorias religiosas da Contra-Reforma ou as alegorias humanisticas do circulo de Diirer; e todavia ninguem negara que para a compreensao do teto da Capela Sistina e essencial saber que Michelangelo expos a Queda do Paraiso e nao um "dejeuner sur I'herbe" J II. Depois dessa digressao, retornemos ao nosso quadro deGriinewald. Como jafoi dito, sem determinados conhecimentos literarios previos nao podemos saber o que ele apresenta do ponto de vista do sentido semantico. Mas do ponto de vista do sentido mcramente fenomenico — de um modo inteiramente grosseiro e limitados aquilo que e evidente aos olhos — podemos descreve-lo como a imagem de um indivfduo que, em meio a um fenomeno luminoso, paira com os bracos abertos sobre uma caixa, enquanto outros C't. 1'aiuirsky, Hercules iini Sclif/fti'it'cgr,

in Sliitlifii tier Kibl. \Vrir-

I'lirg, n. 18, 1830. I ' l i n c i p a l n i L i i i c a ininitlu^fio, da qua] lorum aqui tomadas al»uma.s passagcns. ( N o t a dc Piuiolsky)

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homens, equipados com armas de guerra, encontram-se uns transtornados e agachados no chao, outros cambaleantes e com gestos de terror ou de cegueira. Essa descricao puramente fenomenica nao pressupoe, de fato, mais do que uma contemplacao cuidadosa da imagem e uma associacao do seu conteiido com ideias que normalmente fazem parte do conjunto de nossa experiencia. E nem por isso a descricao apresenta menos dificuldade. Sem diivida, temos o quadro diante dos nossos olhos e sabemos por experiencia o que e um homem, o que e o terror e o que e pairar. O problema reside unicamente no ato de fazer associagoes. Basta apenas que coloquemos diante dos nossos olhos, no lugar do quadro de GrLinewald, um quadro de Franz Marc, o Mandril*1 da Kunsthalle de Hamburgo, para reconhecer que podemos certamente possuir todas as ideias que nos torn am capacitados a revelar o sentido fenomenico deste quadro — mas que nem sempre e possivel simplesmente aplica-las a obra de arte dada ou, para nos expressarmos de modo banal, nem sempre e possi'vel "reconhecer" o que esta exposto no quadro. Todos sabemos o que e um mandril; mas para "reconhece-lo" nesse quadro precisamos, como se costuma dizer, estar "•ajustados" aos princi'pios expositivos do expressionismo que prevalecem aqui na configuracao artfstica. E a experiencia nos ensinou que esse mandril que hoje nos parece muito inofensivo, simplesmente nao foi reconhecido na epoca de sua aquisicao (para de algum modo chegar a uma conclusao, as pessoas procuravam angustiadas pelo focinho), porque ha quinze anos era ainda muito recente essa forma expressionista.

s

O mandril 0 uma (.-specie dc babuino, dc K>cinho colorido, que

habita as savanas afncauas.

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T

Sobre o prpblema da descricao e interpreta^ao

Estamos aqui, por assim dizer, diante de uma inversao do caso "Luciano", ao qual podemos agora retornar: em 1919, os hamburgueses nao podiam identificar o objeto pintado por Franz Marc, porque ate aquele momento eles ainda nao tinham se deparado com os principios expositivos do Expressionismo; Luciano nao podia apreender a justaposicao de figuras concebida por Zeuxis, porque na sua epoca ja tinham desaparecido os principios expositivos da arte grega primeva. Tanto num caso como no outro chega-se a conclusao de que a possibilidade de associacao mesmo das representa9oes empiricas mais comuns com um dado imagetico — e com isso a possibilidade de uma descricao acertada — depende de uma familiaridade com os principios expositivos mais gerais que determinam a configurable da imagem, isto e, depende do conhecimento estilisdco, que tanto aqui como ali so pode ser adquirido mediante uma intimidade com a situacao historica: no caso de Marc, mediante um acostumar-se inconsciente ao novo; no caso de Zeuxis, mediante um voltar-se consciente para o passado. Com isso esta demonstrado, por mais paradoxal que possa parecer, que uma obra de arte ainda desconhecida, no que se refere a sua epoca e a sua especie, f&'dieve'estar classificada historica e estilisticamente por aquele que vai descrevela, antes mesmo que a descricao se torne uma possibilidade. No caso do quadro de Griinewald, certamente vemos "com facilidade" que os homens sao homens e as rochas sao rochas. Mas onde vemos que Cristo "paira"? A resposta impensada seria: "porque ele se encontra no espaco vazio, sem uma superficie de apoio". Essa resposta tambem e perfeitamente acertada (pois mesmo sem a curva obli'qua do movimento corporal e sem a elevacao espiralada do pano, que tornam tao acentuada a dinamica do processo de ascensao, nao restaria a menor diivida de que se trata de uma situa-

cao de pairar); i necessario apenas dizer que a mesma reflexao, que neste caso e correta, em outros seria inteiramente erronea. Contemplemos uma obra de arte como o Nascimento de Cristo do chamado Evangeliarium de Otto III, surgida na virada do primeiro milenio e hoje em Munique; 9 tambem aqui vemos que diversos objetos do quadro — a manjedoura com o menino Jesus, o boi, o asno e, principalmente, Maria — estao situados no espa9o vazio, pairando acima das formas curiosamente arredondadas que representam o chao, sem que haja a indicacao de uma superficie de apoio. Neste caso, porem, e impossivel dizer que os objetos do quadro estejam de alguma maneira "pairando" (embora fosse possi'vel que um observador desavisado ou uma crianca os apreendessem dessa maneira) — e isto por um motivo muito simples: porque nao esta dada aqui a conformidade as leis da natureza e do espaco, tao admiravelmente desafiadas por Griinewald. Em tal miniatura, o fundo escuro nao e "ceu", mas um pano de fundo abstrato, e as pessoas e coisas nao sao concebidas e expostas como corpos naturais submetidos a gravidade e que preenchem um espaco, mas como raGipicjQt^s,por assim dizer sem peso de um conteiido espiritual ou de um significado objetivo. O Cristo de Griinewald paira porque toda a exposicao e dominada por um naturalismo perspectivista (apesar de toda a irracionalidade) e plastico (apesar de toda a dissolucao da forma), portanto, a suspensao de um corpo so pode ser interprctada como um pairar — a Maria da miniatura de Otto nao paira, porque toda a exposicao aqui e deter-

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'' Ci. I.eidingcr, Miiiiiinmn iins Hmittscbrijieii da Bibliotccu Real dc Muniquc, I, prancha 17. (Nota dc 1'anofsky)

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Sobre o problema da descrigao e interpretar;ao

minada por um espiritualismo destituido de perspectivismo e de plastica, do que se segue que a suspensao de um corpo no vazio simplesmente nao diz nada sobre a sua efetiva situacao no espaco. De fato, as coisas se dao da seguinte maneira: para poder descrever acertadamente uma obra de arte, inclusive de um modo puramente fenomenico, ja devemos re-la classificado estilisticamente — mesmo que inconscientemente e na fra^ao de um segundo —, pois de outro modo nao podemos saber sob qual criterio devemos entender aquela "suspensao no vazio", se o do naturalismo moderno ou o do espiritualismo medievo. E vcmos com alguma surpresa que com a ora^ao aparentemente tao simples: "unthornem ascende de sen tiimulo", ja decidimos coisas tao diffceis e questoes tao gerais como as das rela^oes entre superffcie e profundidade, corpo e espaco, estatico e dinamico — em suina: que a nossa contempla^ao da obra de arte ja ocorre sob o ponto de vista daqueles "problemas artisticos fundamentals", cujas modalidades de decifracao parriculares caracterizamos como o "estilo" da obra.' 0

III.

"'(I. \\mnlsky, 7<'irs<-/>nfi f Astt:. UrielAllg. Knmtwiis.,\\l\\\, 1925, pp. 49 ss., c F,. Wind, pp. 438 ss. DC resto, cssa oKsciTa^ao 0 Icgilimada pi'lo huo dc c]iic o que vale para a idcniiflca^ao do objcto cxposii) tamhcni c actTfailo para a dctcrmina^iin do "gcncro arti'siico" a que pcrtciKV uma dctcrminada obra dc arte. Seria uni cquivoco acrediiar que o pertenciniento de uma obra dc arte a "arquitettira", a "plastica", ao "desenlio a miio" on a "pintura" possa scr detcrininado dc modo satisfatono pura c .siniplesinente pela intuicao on pelo aspeeto iixnico: tambem o sistema dos coiiccito.s do.s genei'os aru'sticos (como se iiio.stra de modo baslame claro jnstameiue nos "easos limi'tioles" do " m o n i i n i c n t o ' , do "movcl", da "m;iquin.i" etc.) sao no limdo um si.stema de "conccitos esiilistieos". (Nota de I'anorsky)

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Do que foi desenvolvido ate agora segue-se que a descricao inicial de uma obra de arte (para retomarmos urn termo nosso: a descoberta do sentido meramente fenomenico) ja consiste, na verdade, numa interpretacao historica da configuracao artistica ou, pelo menos, ja a inclui implicitamente. E ainda mais que a descoberta descritiva do sentido fenomenico, a descoberta iconografica do sentido semantico vai naturalmente muito alem de uma simples constatacao, uma vez que tambem ela e, e talvez ainda mais do que a primeira, uma interpretacao. Pois se o conhecimento empirico do que e "pairar" nao nos legitima ou capacita a referirmo-nos a figura de uma obra de arte como uma figura "que paira no ar" (pois ja vimos que a associacao entre a representa9ao empi'rica e o evento imagetico so pode ser assegurada com base em um conhecimcnto estili'stico): tanto menos podemos acreditar estar certos quanto ao sentido semantico de uma obra de arte ao simplesmente "atrelarmos" uma fonte literaria ao monumento dado ou mesmo quando o associamos com elementos convenientes de nosso repertorio cultural — bem cohlo ila'6vllevernos esperar, inversamente, poder encontrar em qualquer situacao uma fonte literaria scmelhante. Assim como para a descoberta do sentido fenomenico, tambem para a descoberta do sentido semantico sera preciso, de cerro modo, que exista uma "instancia superior", diante de cujo tribunal, antes cle mais nada, se justifique a associacao entre a nocao extraarnstica (neste caso, portanto, um conteudo fornecido pela literatura) e o Fenomeno imagetico dado. Tal "instancia superior", que para a descoberta do sentido fenomenico era o conhecimento estili'stico, agora, para a descoberta do sentido semantico, e a tipologia, entendendo af por "tipo"

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aquela representacao na qual um determinado sentido objetivo conectou-se tao firmemente a um determinado sentido semantico, que a representacao, enquanto portadora desse sentido semantico, tornou-se tradicional, como, por exemplo, Hercules com pele de ledo e clava ou O crucifixo entre Maria ejoao Batista.'' Uma publicacao recente reproduz um quadro do pintor barroco veneziano Francesco Maffei, 12 quadro que deve representar, de acordo com a legenda, Salome com a cabeca dejoao Batista.1^ Essa designac.ao e compreensivel na medida em que a cabe9a masculina decapitada, inteiramente de acordo com o descrito no Evangelho de Sao Mateus, se encontra sobre uma bandeja; mas e surpreendente e es- ! " tranho o fato de que a "Salome" tenha na mao uma espada, a qual (pois sem diivida nao executou a decapitacao com suas proprias maos) ela teria de ter subtraido ao carrasco. Essa espada gera a suspeita de que nao se trata de uma Salome, mas sim de uma Judite, para a qual a espada, enquanto signo do seu ato de libertacao, possui de certo modo um significado mais essencial; contudo, tal suposic.ao se choca com o motivo da bandeja, pois no tocante a Judite diz-se expressamente que ela "deu a cabe9a de Holofernes a suaK criada e ordenou que a enfiasse em um saco". Por conseguinte, encontramo-nos aqui diante de um fato singular onde se apresentam duas passagens biblicas inteiramente diferentes para uma unica e mesma imagem e para a qual sao apropriadas e inapropriadas tanto uma

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Sobre o problema da descrigao e interpreta^ao

passagem quanto a outra (pois com "Salome" concorda a bandeja, mas nao a espada — com "Judite" concorda a espada, mas nao a bandeja); e sem outros indfcios simplesmente nao e possivel encontrar uma solu9§o. A importancia da historia dos tipos e esclarecedora aqui: ela nao conhece nenhum caso em que seria permitido a uma Salome apropriar-se da espada da heroina Judite, ao passo que, inversamente, e justamente no ambito da arte italiana, pode identificar um mimero relativamente grande de casos (na via daquela "forma9ao por analogia", que desempenhou na arte antiga um papel muito mais essencial do que o tipo de inven9ao recente, que cria imediatamente a partir da fonte literaria) onde ocorreu uma transposi9§o da "bandeja de Joao Batista" para a representa9&o de Judite (exemplos de tais imagens de Judite, confirmadas pela presen9a de uma criada, sao as pinturas de Romanino14 e de Bernardo Strozzi 1 ^ do Kaiser-Friedrich-Museum de Berlim). A historia dos tipos — e apenas ela — nos da o direito e a possibilidade de dizer que tambem no caso do quadro de Maffei trata-se de uma "Judite com a cabe9a de Holofernes"; e sob esse as-

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Nos catalogos do K.F.M. a obra dc Romanino [Gerolamo Roma-

ni (c. 1484-1559), pintor italiano] esta indicada primeiramcntc como "Salome" c depois como "Salome1 ou Judite". Essa transposicao do motivo, provavelmentc ocorrida na metade do scculo XVI, e facilmentc compreendida sc levarnios em considera^ao que o tipo da "bandeja dc Joao Batista" (inclusive como "pintura dcvocional" autonoma) fora fixado por uma cradicao tao antiga e difundida em cantos exemplos, que dc ccrto modo a conscicncia imagctica automaticamcnte associava as rcprescntacocs

1'

Cf. h'estscbriftfur Fricclliindrr, \, p. 294 ss. (Nota dc Panofsky)

'~ Tranccsco Mallei (r. 1605-1660), pintor ii.iliano. '•* Cj. I'iocco, Die Vfiiezuin. Mnlen-i d. 17. mid 18. Jiiljr/iinidc'i'ts, 1929, prancha 29. (Nota dc Panofsky)

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"cabcca decapitada" e "bandeja": uma cabcca decapitada "pcrtcncia", por assim di/.er, a uma bandeja, fosse ela. a -cabtca dejoao Batista ou a de qualquer oiuro. (Nota de Panofsky) ls

Bernardo Stro//.i (1581-1644), pintor italiano.

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pecto descobrimos posteriormente tambem que a cabeca decapitada, considerada em si mesma, apesar de estar sobre uma "bandeja deJoao Batista", todavia corresponde segundo a sua aparencia fisionomica, muito menos ao tipo do "Batista" do que ao tipo nao menos tradicional do "tirano". O caso em si e por si tao facilmente solucionado (que deixa transparecer com bela clareza o significado da "formacao por analogia", independente do texto literario) mostra, por um lado, que mesmo na interpretacao de cenas cujas fontes historicas nao pertencem aquelas que precisam ser "novamente desenterradas", mas ainda estao vivas na consciencia da epoca, pode haver problemas consideraveis se nao for levada em considerable a historia dos tipos; por outro lado, contudo, note-se o quanto e essencial o elemento "iconografico" mesmo para a compreensao de valores puramente esteticos. Pois quern compreende o quadro de Maffei como a imagem de uma jovem voluptuosa com a cabeca de um santo tera de julga-la, tambem por razoes puramente esteticas, de um modo muito diferente de quem enxergar ai uma heroi'na abencoada por Deus com a cabe9a de um criminoso. Neste caso, a historia dos tipos nos permite escolher, entre dois textos "proximos" e igualmente "apropriados" a imagem em questao, aquele que efetivamente acerta o seu sentido semantico. Em outros casos, ela pode de inicio nos conduzir a uma fonte literaria relativamente remota e que em si e por si praticamente nao pode ser aplicada ao quadro, tal como aconteceu coin o autor destas linhas ao trabalhar com a obra de Diirer chamacla O sonho do doutor, a qual inicialmente classificou, com base em fundamentos puramente tipologicos, na serie das "representacoes da pregui^a", excepcionalmcnte difundidas na Idadc Media; e entao, clepois que pesquisou os grupos de tratados morals e

de poesias que desse modo se colocaram em seu horizonte de observacao, pode identificar uma associacao estreita com o capitulo correspondente da Nau dos loucos de Sebastian Brandt. 16 E finalmente existem casos em que a historia dos tipos pode ja de antemao nos poupar a busca por uma fonte literaria ou, depois de um longo esforco em vao, tornar compreensi'vel a sua ausencia. Diante dos "Pessegos" de Renoir, que pertencem ao "tipo" desprovido de sentido semantico natureza-morta, nao vamos, por exemplo, procurar um texto que pudesse revelar um significado alegorico para as frutas (quando, ao contrario, uma figura femi'-nina do tipo das personificacoes da Virtude nos estende provocativamente um pessego, sem dlivida iremos atras de semelhante texto, e de fato descobriremos que o pessego, por motives que nao explicaremos aqui, pode ser o atributo da Veritas)}7 Ou encontraremos, num daqueles manuscritos nos quais a Idade Media tentava tornar vivas para si as representa9oes dos deuses antigos, uma imagem de Merciirio que se destaca das outras por mostrar uma aguia voando por entre as suas pernas; e procuraremos sem sucesso m texto mitografico em que essa peculiaridade fosse comprovada e explicada — ate que a observacao do tipo antigo de Mercuric nos ensine que simplesmente nao precisamos de semelhante texto: aquilo que nos causa estranheza explica-se sem mais como um mal-entendido do de-

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"' Miinchnerjahrb. d. bild. Kitnst, N.T. V I I I , 1931, primciro C;K|LT110. (Nota dc I'anofsky) Hercules /tin Scbeidewege — Die Dei/lung dh i'/lrsicfis t//s cities Wahrheits-Attribiits, (A\S;IIX- Ripa, in Icnnulugin, Roma, 1593. (Noia dc I'anofsky) 17

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Sobre o problema da descrifao e interpretacao

senhista, que julgou dever completar com um passaro inteiro as asinhas dos pes do mensageiro dos deuses.18 No que diz respeito ao quadro de Grunewald, ele apresenta uma cena — e queremos presumir que isto e um dado de nosso repertorio cultural conhecido por todos — em cujo ponto central se encontra a pessoa de Cristo e que ocorre depois de sua morte na cruz. Para encontrar uma fonte literaria dessa cena, nos remeteremos a passagem cronologicamente correspondente nos Evangelhos — e nao encontraremos nada que esteja efetivamente de acordo com o evento apresentado. Pois os Evangelhos narram apenas que as mulheres proximas ao Salvador (cujo niimero e ora um, ora dois, ora tres, ora nao e absolutamente indicado) encontram o tiimulo aberto e vazio, e que sao instrui'das por um — ou dois — anjos de que o Senhor ressuscitara; e de fato apenas a partir do seculo XII encontramos representacoes da saida do tumulo. Apenas uma investigacao mais detalhada, que leve em consideracao outros textos e que alem disso (e sobretudo) se remeta a historia dos tipos, nos ensinara que aquilo que denominamos "a Ressurreifdo de Cristo de Grunewald" significa na verdade uma associacao sumamente complicada da propria saida do tumulo com a ascensao ao ceu e com a chamada transfiguracao.

escritos filosoficos, mas que no fundo designam o problema de qualquer interpretacao: "Se uma interpretacao reproduz apenas o que Kant disse expressamente, entao desde o princfpio ela nao e uma exegese, uma vez que ainda tern de cumprir a tarefa de tornar visivel, para alem da formulacao textual, o que Kant procurou trazer a luz com a sua fundamentacao; mas isto, Kant nao foi capaz de dize-lo, pois o decisive em qualquer conhecimento filosofico nao e o que ele diz expressamente, mas sim o ainda nao dito que ele coloca diante da vista por meio do que foi dito [...]. E claro que toda interpretacao precisa necessariamente fazer uso da forca para arrancar do que as palavras dizem o que elas querem dizer". iy Devemos reconhecer que tambem as nossas modestas descricoes de quadros e as nossas exegeses de conteiido, na medida em que nao sao simples constatacoes, mas ja interpretacoes, sao igualmente afetadas pela passagem acima. Pois tambem elas, inclusive a indicacao aparentemente nao problematica de um sentido meramente fenomenico, no fundo colocam "diante da vista algo nao dito", e por isso tambem requerem o "uso da forca", para empregarmos as palavras de Heidegger. Surge com isto a seguinte quest-ao inevk^t^
IV. No livro de Heidegger sobre Kant encontram-se algumas sentencas notaveis sobre a essencia da interpretacao — sentencas que a princfpio se referem apenas a exegese de

ly

M. Heidegger, Kimt tinddns Problem der MeMphysik, 1929, p. 129

ss. (Nota de Panofsky) uj;i

cm A. Goldschmidt, Vortriigecl. lifbl. Witrbwg, 1923/24, p. 217

com ilustnicao. (Nota dc Panofsky)

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R. Wustmann, Grenzboten, LXIU, 1904, v. 2, p. 151 ss. e Zeitsdn:

f b'lld. Kiinst, N.F. XXII, 1910/1 1, p. 110 ss. (Nota de Panofsky)

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que falhara a interpretacao de uma passagem de Platao se partir do fato de que a palavra grega aner deve ser traduzida por "indivi'duo" e nao por "homem". Mas para alem desse limite externo devem existir barreiras estipuladas pela propria atividade interpretativa, e o proprio Heidegger diz um pouco mais adiante: "Tal fo^a, no entanto, nao pode ser uma arbitrariedade erratica; a descoberta deve ser impelida e guiada desde o prindpio pela fo^a de uma ideia luminosa". So que essa ideia tambem pode conduzir, e de fato nccessariamente conduzira, em muitos casos, ao erro, ja que a sua origem esta nessa mesma subjetividade que impele ao uso da for^a como tal. Nao tenho a pretensao de assumir'dm'S'posigao no que diz respeito ao problema da interpretacao filosofica. Para o nosso ambito, contudo, vale o seguinte: a fonte da interpretacjo (a qual pertence, para o repetir mais uma vez, a descri9ao pura e simples) e sempre o potencial cognitivo e o repertorio cognitivo do sujeito que interpreta: isto e, a nossa experiencia existencial vital, quando se trata de descobrir apenas o sentido fenomenico, e o nosso conhecimento literario, se temos de lidar com o sentido semantico. Queria acreditar que o que se opoe a essas fonfes«E0gnitivas subje-> tivas como corretivo objetivo — e com isso "assegura" o seu resultado — nao e nada mais senao o que podemos denominar "historia da tradifao", que, no caso do sentido fenomenico, aparece como "historia das configurates" e, no caso do sentido semantico, como "historia dos tipos". Essa historia da tradigao nos mostra, na realidade, o limite ate onde pode ir o nosso uso da for9a; pois se temos o direito, se e inclusive necessario tirar de nos mesmos o que nao esta efetivamente dito nas coisas e traze-lo a luz, a historia da tradicao nos mostra tambem o que nao podelia ter sido dito, porque a sua representacao [Darstellung] on a sua ideia

[ Vorstellung] nao teria sido poss/vel do ponto de vista do tempo e do lugar. Esse estado de coisas (contra o qual nao se pode objetar que o conhecimento do estilo e o conhecimento dos tipos imageticos so poderiam ser alcancados por meio da investiga^ao de cada uma das obras em separado; pois em qualquer ciencia os instrumentos cognitivos e o objeto a ser conhecido sao condicionados e tern a sua "verdade demonstrada" reciprocamente, e inclusive os instrumentos do ffsico sao submetidos as mesmas leis da natureza que ele gostaria de determinar, sim, eles contem justamente a teoria que com a sua ajuda deve ser aprovada ou refutada); 21 esse

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"' Cf. Edgar Wind, Proceedings (if the Sixth International Congress of Philosophy, 1926, p. 609 s.s. e Experiment und Metaphysik (in Hamburger Hnbilitationschrifi, 1930). Wind [historiador da artc ingles (1900-1971), foi dirctor do Instituto Warburg] clcmonstra que o que parece num priniciro momcnto uni "'cimilus vitiosus" e na verdade um "circttlns mcthuclicni', no decurso do qual tanto o "instrumento" qua mo o "objeto" sao mutuanieiite tomprovados — tal como na bela hist(Sria antiga sobre a vara do equilibri.sta ("— Pai, por que o equilibrista nao tai?" "I'orque ele se equilibra com a vara!" "Sim, mas por l|iYe"':iW:ill'a*ftatf ttii?" "C.rianca boba, porque ele a segura!"), cujo aspecto central esta no tato de que o suposto cimiltis vitiosus nao verdade nao exclui a possibilidade pratiea da arte do lunambolo, mas a fundamenra. (^ mcsmo que vale para a relacao entre a "obra isolada" e o "tipo", de res to e tambem valido para a relacao entre a obra isolada e a "serie do dcsenvolvimcnto", o "estilo nacional" etc. Ou seja: tambem nesses casos resulta o fato peculiar de que a classificacao da "obra isolada" repousa no "contexto" de uma intcracao "circular" emre a investigacao do caso individual e o conliecmiento do dcsenvolvimemo geral. Admiiamos que um historiador da arte encoutre no urquivo da cidade N. tun contrato, semmdo o qual um pinior local X e encarregado no ano ile 1471 da confeccao de um a-tabtilo para a Igreja |acobina que most re uma Deposicao da (,ru/

Erwin Panofsky

Sobre o problems da descriijao e interpretagao

estado de coisas se mostra de modo mais claro onde a interpreta^ao, para alem da camada do sentido semantico, se eleva para uma ultima regiao, a qual podemos designar, de acordo com uma expressao de Karl Mannheim, como a regiao do "sentido documental"22 ou ainda como a regiao do "sentido essencial". Se um homem nos cumprimenta na rua, o sentido semantico desta ac^io (cujo sentido objetivo pode ser descrito como um tirar o chapeu associado a uma inclinacao sorridente da cabeca, e cujo sentido expressivo pode variar entre amizade, devocao, indiferenca e ironia) e, sem sombra de diivida, uma demonstracao de gentileza. Mas, alem disso, poderemos receber dela a impressao de uma maneira de ser bastante determinada, que esta por traX tal como um ontos on, de todos esses fenomenos — a impressao de uma estrutura interna, em cuja constitui9ao participaram de igual modo o espirito, o carater, a origem, o ambiente e o destine, e que e "documentada" no ato de

cumprimentar de maneira tao clara e tao independentemente da vontade e da consciencia daquele que cumprimenta, quanto em qualquer outra manifestacao de vida do individuo em questao. Portanto, num sentido muito mais profundo e mais geral, tambem a producao artistica parecer ter como base, para alem do seu sentido fenomenico e do seu sentido semantico, um ultimo conteiido muito mais essencial: a auto-revelacao involuntaria e inconsciente de um comportamento em relacao ao mundo, o qual e tipico, e em igual medida, de cada criador em particular, de cada epoca em particular, de cada povo em particular, de cada civilizacao em particular; e como a grandiosidade de uma obra de arte e em ultima instancia dependente do quantum de "energia de visao de mundo" que foi introduzido na materia configurada e que dela irradia para o observador (neste sentido, uma natureza-morta de Cezanne nao e de fato apenas "boa", mas tambem tao "plena de conteiido" quanto uma Madona de Rafael) — tambem a tarefa suprema da interpretacao e a de penetrar nessa camada ultima do "sentido essencial". A interpreta9ao so tera alcancado o seu verdadeiro objetivo quando tiver compreendido e evidenciado a totalidade dos momentos atuantes (titf sejlTfrafr apenas os aspectos objetivos e iconograficos, mas tambem os fatores pura e simplesmente "formais" como a distribui9ao de luz e sombras, a divisao das superficies e inclusive a condu9ao do pincel, do cinzel e do buril) como "documentos" de um sentido homogeneo de visao de mundo. Num tal empreendimento, porem — no qual a interpreta9ao de uma obra de arte se eleva mesmo ao ni'vel da interpreta9&o de um sistema filosofico ou de uma concep9ao religiosa —, o conhecimento de fontes literarias nos deixa na mao, pelo menos no que se refere a fontes que se pudessem relacionar imediatamente a obra de arte. Certamente podemos encon-

com os santos Filipc e Jaeo; e que o mcsmo historiador tcnha cncontrado na mcsma igrcja um altar que corresponda exatamente a essas indicacoes. Ncstc caso, o historiador cstari muito inclinado a identificar cssc altar tnn-v«-,» a obra "legitimada polo docunicnto" c se alegrani de ter uma ohra genui'na "firmemcnte datada e locali/.ada" — mas ha scmprc a possibilidade de que o altar tivessc desaparecido durante o niovimento iconoclasta e tivesse sido sulistituido, por volta de 1 540, por um pintor que veio de muito longe. I'ara estar certo de sua idcntiflca^ao, o historiador da arte dcve ser capa/ de julgar se a obra que chegou ate ele e "algo absolutamentc dentro das possibilidades" da regiao de N. no ano de 1471, isto e, ele deve dispor de uma noc,ao do "contexto" do descnvolvimento historico e das escolas artisticas, o qual por micro lado so poderia ser reeonhecido coin base em momimcntos "clauidos" c "locali/.aclos' ! (Noia de Panorsky) 21 Jiihr/nidj

fiir Kiinstgmhichte I, 1922/23, p. 236 ss. (Nota de Pa-

noKsky)

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Erwin Panofsky ;

trar textos que nos instruam sobre o que a Melancolia de Diirer significa do ponto de vista do sentido semantico, mas nao textos que nos instruam imediatamente sobre o que e revelado do ponto de vista do sentido documental. E mesmo que o proprio Diirer tivesse se declarado expresses verbis sobre a intencao ultima de sua obra (o que artistas posteriores muitas vezes tentaram fazer), rapidamente ficaria evidente que essa declaracao passa ao largo do verdadeiro sentido essencial da gravura e que, em vez de simplesmente nos fornecer a interpretagao da obra, seria antes uma interpretagao extremamente pobre.23 Pois assim como, sem diivida, aquele que cumprimenta e consciente do grau de gentileza com que tira o seu chapeu, mas nao de que indicios ele fornece nesse gesto sobre o seu ser mais fntimo, tambem o artista sabe (para citar um americano muito espirituoso) apenas " what he parades" [o que ele mostra], mas nao "what he betrays" [o que ele trai]. A fonte daquela interpretagao que visa descobrir o sentido essencial reside, pelo contrario, no proprio comportamento original decorrente da visao de mundo do interprete, como se percebe tao claramente na interpretagao que -Me'idegger faz de Kant quanto nas interpretac5es de Rembrandt realizadas por Carl Neumann, de um lado, e por Jakob Burckhardt, de outro. E justamente por este motivo torna-se claro que uma tal fonte de conhecimento, situada num nfvel tao eminentemente subjetivo — deve-se mesmo dizer: tao absolutainente pessoal — necessita de um corretivo objetivo possivelmente num grau ainda maior do que a experiencia existencial vital, com cujo auxilio apreende-

" CLJahrb. d.

Knnstslgii. XL, 1919, p. 277 s. (Nota dc I'a-

ofsky)

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Sobre 0: problems da descrigao e interpretacao

mos o sentido fenomenico, e o conhecimento literario, o qual nos ajuda a revelar o sentido semantico. E de fato um tal corretivo ja esta dado: ele se encontra igualmente numa esfera de facticidade historica, a qual tambem aqui nos indica o limite que nao deve ser transposto pela interpretagao "a forca", se nao quiser se converter numa "arbitrariedade erratica": e a historia universal das ideias que nos esclarece sobre as possibilidades de uma determinada epoca e de um determinado ambiente cultural de acordo com a sua visao de mundo — assim como a historia das configuracoes pareceu determinar o ambito das possibilidades de representacao [Darstellung] e a historia dos tipos pareceu demarcar o ambito das possibilidades de concepcao [ Vorstellung]. A historia das configuracoes, podemos dizer, nos instrui sobre as modalidades sob as quais, no curso das mudangas do desenvolvimento historico, a forma pura se liga aos sentidos objetivos e expressivos; a historia dos tipos nos instrui sobre as modalidades sob as quais, no curso das mudangas do desenvolvimento historico, os sentidos objetivos e expressivos se conectam a determinados sentidos semanticos; a historia universal das ideias, finalmente, nos instrui sobre as modalidades sob as quais, no curso das mudanijas* no desenvolvimento historico, os sentidos semanticos (o que inclui, por exemplo, tambem os conceitos da linguagem e os melismas da musica) sao preenchidos com determinados conteiidos da visao de mundo. Assim, por exemplo, os testemunhos da historia das ideias da Renascenga, entre os quais naturalmente tambem os escritos de Diirer, nos mostram com base em quais premissas de visao de mundo Ihe foi possivel unificar em sua Melancolia urn typus acediae e um typus geometriae e, com isso, espiritualizar pela primeira vez um sofrimento natural e, inversamente, patetizar, tambem pela primeira vez,

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-••,.':-•-..-.

Erwin Panofsky

Sobre o problema da descricao e interpretacao

um atuar intelectual destitufdo de destine.24 No entanto, os testemunhos tracam assim um limite para aquilo que estarfamos talvez inclinados a denominar como um "tedio da vida" moderno — exatamente como o historiador da filosofia podia aprender com a historia das ideias do seculo XVIII sobre os limites a que esta restrita uma exegese ontologica de Kant, contanto que ela nao queira renunciar aos direitos -— e aos deveres — de uma "interpretacao".25 Podemos resumir esquematicamente numa tabela a problematica aqui descrita sobre o trabalho de interpretacao da historia da arte:

Sem diivida, semelhante esquema — que esta para a efetiva realizacao de um processo intelectual assim como um mapa cartografico esta para a realidade da paisagem italiana — corre sempre o risco de ser mal-interpretado como um "racionalismo ingenuo". E por isso, a guisa de conclusao, devemos enfatizar que esses processes, que a nossa analise teve de apresentar como movimentos aparentemente separados em tres camadas de sentido e, por assim dizer, como limites instaveis entre o uso subjetivo da forca e a historicidade objetiva, na pratica se entrelacam em um evento total completamente homogeneo e que se desdobra organicamente atraves de tensoes e distensoes, evento este que so mesmo ex post e teoricamente pode ser decomposto em elementos isolados e em a9oes particulares.

Objeto da i

Fontc subjetiva del interprettifao

Corrctivo objetivo da interpretafdo

1. Scntido fcnomenico (dividido cm

Expcricncia existential vital

Historia das configuracocs

scntido objetivo e scntido cxpressivo)

2. Scntido scmantico

3. Scntido documental (scntido csscncial)

(suma das possihilidadcs dc rcprc.scntac.ao [Ditrstel/ung] arti'stica) Conhccimento

Historia dos tipos

litcrario

(suma das possihilidadcs tic conccpcao

Comportamcnto dccorrcntc dc uma visao dc mundo

Fonte: F.rwin Panofsky, "Zum Problem dcr Bcschreibung und Inhaltsdeutung von Wcrkcn dcr bildcnden Kunst", in Aufsatze zu Grundfragen der Kunstwissenschafi, Bcrlim, Wissenschaftsverlag Volkcr Spicss, 1992, pp. 85-97.

[ Vorstellung\)

gcncia linica de que a imagcm, a partir do fcnomeno isolado que ate agora

Historia gcral das ideias

considerou, scja uma unidadc cm si mcsma plena de sentido, nao importando se cla se ajusta ou nao a algum contcxto historico. Tal mancira de ver

(suma das possibilidadcs dc visao dc mundo)

(que nao cxtrai dos tcxtos o que elcs "di/em", ncm o que clcs "queriam di/er", mas o que clcs, de acordo com esse principio de unidadc, "teriam de ter dito") nao c niais uma "interpretacao", mas uma "reconstruct) livre e criativa", isto e, o seu valor nao e estipulado pclo padrao dc medida da vcrdadc historica, mas pelo padrao de medida da originalidade sistematica e

- ' Cf. a segunda ctiicao do cstudo Mclimciiliti I, rcali/.ado cm parceria com F. Saxl (in Stud/en d. Kibl. Wiit-bnrg, 2, 1923). (Nota dc Panofsky) - h possfvcl pcnsar n u m a mancira dc vcr que sc declare por principio indcpendcntf dc todo conetivo historico c que rcconheca a pen as a exi-

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da consistencia. I'.la c irrefutavel na medida em que tiver conscience de sua posicao extra, ou mclhor, a-historica, mas dcve ser combatida a partir do momento cm que, ao difundir uma prcmissa de outra nature/a, coloca a historia em posicao dc ter que sc defender. (Nota dc Panofsky)

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Questoes de metodo em historia da arte

Otto Pacht (1902-1988)

Questoes de metodo em historia da arte (1977)

Aluno de Schlosser e de Dvorak em Viena, Otto Pacht colabora em diversas revistas especializadas, ate ser fo^ado a emigrar para Londres, em 1933. Dedica-se entao a diversos estudos no Warburg Institute, buscando definir seu proprio dominio de pesquisa. Especialista em gotico tardio, empreende varias pesquisas sobre a iluminura medieval e a arte de Jean Fouquet. Seus trabalhos sobre a primeira pintura flamenca e a pintura gotica francesa sao realizados no entre-guerras, resultando em diversas publicacoes sobre o tema nos anos 1980. Suas interpretacoes minuciosas da obra de Jan Van Eyck, baseadas num conhecimento excepcional do seculo XV europeu, fazem dele um dos grandes especialistas nesse periodo. Em 1956, seu comentario critico na Burlington Magazine (98) sobre o livro de Panofsky Early Netherlandish Painting^ e lido com interesse. Publicado um ano depois de sua morte, seu Van Eyck represents o resultado de meio seculo de pesquisas.2 A analise formal da obra (construcao do espaco, disposicao dos pianos etc.) jamais se separa de um grande conhecimento historico da epoca. A proposito desse pintor, ele escreve que

o que Ihe interessa e "ver e compreender o processo revolucionario de nascenca como um desenvolvimento organico" (p. 30), projeto que corresponde bem ao espirito da escola de Viena. Suas reflexoes sobre o metodo em historia da arte apresentam grande interesse pela extrema precisao de suas demonstracoes e de sua argumentacao matizada. Embora Pacht tenha sempre manifestado imensa admiracao pela obra historica de Panofsky, muito cedo ele exprimiu reservas quanto ao empreendimento iconologico, como o fizeram varies historiadores da escola de Viena. De seus artigos criticos e de suas observances, Pacht compos um livro: Questoes de metodo em historic da arte, do qual extraimos nosso texto. Bibliografla: Ikonogmphie und Ikonologie, Hkkchard Kacmmcrling (org.), Cxilonia, DuMont Buchvcrlag, 1979.

Fun9§o da iconografia Para tornar compreensfvel a necessidade da iconografia, Panofsky concebeu certa vez o seguinte exemplo drastico: coloquemo-nos, diz ele aproximadamente, na situa^ao de um selvagem australiano que contempla uma imageiTl:'cfa Ultima Ceia. Ele nao vera na imagem nada mais do que uma refeiclo coletiva na qual ha certa como9ao. Para entender o sentido da imagem, o aborigine teria de se familiarizar com o conteiido do Evangelho. Quando nos deparamos com obras de arte cujos temas ultrapassam o atual circulo de representa^oes de um individuo com instru9ao mediana, prossegue Panofsky, somos todos selvagens australianos.-^

E. Panofsky, I.es I'rimitifs fiimaiuls, tradu^ao trancesa, Paris, Hawaii, 1993. • Otio Piiclii, Van Eyck. Begriinder dcr iiirderlfindische Mulerei (Van Eyck, o hmdador da p i n t u r a flaniL'iiga], Munkjuc, 1989.

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•( Erwin Panofsky, Studies in Iconulngy. Humanistic 'I'benies in the Art of the Renaissance, Nova York, 1962, p. 1 1 . Rcimprcsso cm Meaning in the

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Questoes de metodo em historia da arte

Mas mesmo quem nao cresceu na selva nao pode, por si mesmo, mediante a mera contemplacao da imagem, chegar a conclusao de que um trono, sobre o qual se encontram um livro e uma cruz, significa a profecia do Juizo Final. Apenas quando somos instruidos pela iconografia da arte bizantina de que foi o Salmo (9, 7-8) — "Paravit in judicio thronum suum; et ipse judicabit orbem terrae in aequitate" [O Senhor permanece no seu trono eternamente, trono que erigiu para julgar. Ele mesmo julga o mundo com justic.a] — que desencadeou a ideia do trono ainda nao ocupado pelo juiz, portanto do trono vazio, compreendemos a relacao do trono, sobre o qual estao cruz e livro, como insignias de Cristo, com o tema do Juizo Final. Pouco importa se para o observador bizantino o trono vazio era mais do que um si'mbolo provido de um carater expressivo determinado. O fato de que em representacoes bizantinas do Juizo Final era possivel ver a referenda a segunda chegada de Cristo, a pariisia, logo abaixo da deisis4 com a figura central do juiz em seu trono depoe antes contra tal imerpretac.ao. Em todo caso, a hetimasia, como os bizantinos denominavam essa associate entre o trono, o livro e a cruz, era um sinal inequi'voco que suscitava imediatarnente a ideia assustadora e solene do dia do julgamento. De fato, diante de estilos que expoem simbolicamente, o olho parece ser como que abordado por hieroglifos, por uma escrita cujo sentido, mediante uma longa habituagao, foi incorporado por aquele que olha. Por

conseguinte, o service a ser prestado pela iconografia moderna e sem dlivida o de equipar os nossos orgaos do sentido com o conhecimento de um costume, o qual e diferente para cada situacao historica. O caminho tornado pela pesquisa iconografica e a ideia que se formou a respeito de sua funcjio especifica e de seu significado para a ciencia da arte como um todo, foram fortemente influenciados pelo fato de que a iconografia nasceu primeiramente como iconografia da arte crista. A religiao crista e uma religiao livresca, suas verdades redentoras estao codificadas. E, mais do que isso, a credibilidade do que e descrito nos livros reside no fato de ser o cumprimento daquilo que ja estava anunciado, profetizado, prefigurado no Antigo Testamento. Assim, nada que nao tenha sido estipulado por escrito, num sentido tamo literal como figurative, pode ser transmitido imageticamente. No tema mais significative do cristianismo, a saber, a Crucifica9ao, o sacrificio voluntario do Salvador, a escolha dos objetos para a representacao nao e determinada pelo relate de uma testemunha ocular, e sim pela mencao de dois episodios do Evangelho, que podem recorrer a autoridade do Antigo Testamento: "Depdis, salTenfdo Jesus que ja todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho Sede".^ (O Salmo 69, 21 soa: "na minha sede me deram a beber vinagre".) E "um dos soldados Ihe furou o lado com uma lanc.a [...] para que se cumprisse a escritura, que diz: Nenhum dos seus ossos sera quebrado".6 E inconcebivel que uma obra de arte mitologica grega cite, por assim dizer, a autoridade de Homero ou Hesiodo ou,

I'isttalarts, Nova York, 1955, p. 35, e cm Sinn und Denning in der bilclen? Kiirnt, ColoiiKi, 1975 (DuMoiit Kimst-Taschcnlriichcr Lid. 33), p. 45. ' Na ante bi/.;intina, rcprcstntii^ao do Cristo cm seu trono no |ui'/.o f'inal, cntrc a Virgcm c Sao Joao Batista.

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s joao

(>

19,28-29.

Moiscs 12, 46 para Joao 19, 34-37.

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para nos expressarmos de modo ainda mais flagrante, que numa representacao do mito de Apolo alguem porte um rolo de escritura para indicar que o acontecimento esta atestado em documentos. Existem, porem, crucificacoes de Cristo em que o discipulo preferido traz consigo um livro — o Evangelho —, que relata o episodic do qual somos precisamente as testemunhas. Quando, no final da Idade Media, a arte sacra e com ela o circulo dos temas biblicos perderam a sua posicao hegemonica, desenvolveu-se uma arte profana de filiacao igualmente sacra que muito provavelmente pressupunha de seu piiblico ainda mais conhecimento e cultura do que a arte sacra da sociedade medieval. Pois o nascimento da moderna arte profana estava sabidamente sob o signo do reavivamento do repertorio cultural antigo, do universe das representa9oes da mitologia classica e grega e de sua alegorizacao helenica e romana. Originariamente, na Antiguidade, esse universe de representacoes era, sem diivida, comum a circulos amplos; agora, depois de seu assim denominado Renascimento, apenas os erudites e o piiblico imediatamente ligado a eles, os circulos humanisticos, es•"'taVam mais ou menos familiarizados com esse universe. E isto significa que, no memento mesmo em que a arte buscava uma relac,ao direta com a realidade e se desfazia de todas as formulas convencionais e esquematicas, sua base tematica se fundava mais uma vez num saber livresco que, ainda per cima, nao possuia nenhuma referenda na vida cotidiana da epoca. Tratava-se, muitas vezes, de uma arte que precisava ser traduzida para os contemporaneos. Quern se ocupa da iconografia crista ou renascentista, ou seja, da iconografia humanista, com razao se perguntara, diante de cada configuracao imagetica, pelo texto que, direta ou indiretamente, a inspira; e procurara a fonte lite-

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Questoes de metodo em Mstpria da arte

raria ou, ao menos, a fonte oral a que podem ser reduzidas todas as concepcoes artisticas e imageticas do tema. Disso resulta silenciosamente o habito de considerar a caca a citacao textual como a propria essencia de toda iconografia e iconologia. A partir de uma generaliza9ao ih'cita, supoese que todo e qualquer suporte imagetico de um conteiido significative, sim, todo motivo imagetico deve ser precedido por um suporte e uma formulae originariamente verbais ou literarias. Numa palavra, acredita-se a priori que as artes plasticas jamais sao capazes de inventar algo por si mesmas, que elas em ultima instancia meramente ilustram o que foi concebido anteriormente em outras esferas espirituais. Quer isto seja intencional ou nao, resulta dai a imagem de uma arte eternamente dependente.

O elemento especifico da esfera artistica da expressao Aqueles que pensam assim demonstram um completo desconhecimento do fato vital de que as artes plasticas, assim como a musica em seu meio, podem dizer coisas que nao podem ser ditas em nenhum outro ambito expressivo. Afinal de contas, e isso que se entende geralmente por "arte como esfera expressiva autonoma". Se e assim, entao a descoberta de fontes de inspiracao fora das artes plasticas, como, por exemplo, as fontes linguisticas, nao pode jamais esclarecer o elemento especifico da criacao artistica; sem contar que novas configuracoes caracterfsticas das artes plasticas, inovacoes formais estranhas a linguagem verbal estao plenamente situadas no dominio do possivel. Ao contrario do que dizem os pais da igreja e teologos medievais, o papel da arte crista medieval tambem nao se esgota num fa-

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; 0tto

Pacht

lar atraves de imagens, na funcao de substitute da escrita. Tambem ela e mais do que um ponto de traslado de valores espirituais e religiosos, que precisassem ser submetidos a um processo de revestimento e desrevestimento para chegarem do emissario ate o receptor. Tambem ela e na maior parte de suas manifestacoes um depoimento suigeneris sobre o mundo e a existencia, tanto do cotidiano como das questoes ultimas, que nao pode ser o substitute nem substituida por algo. A rigor, o que esta em debate aqui e a questao do papel daquilo que e consciente no processo de configuracao artistica; desse ponto de vista, a orientacao radicalmenre icoriologica da historia da arte sempre me pareceu uma notavel anomalia. Nao posso deixar de considerar paradoxal que, numa epoca em que a moderna psicologia abriu as profundezas do inconsciente e do subconsciente para a pesquisa cientifica, exista o esforco obstinado em reduzir as criacoes arti'sticas mais espetaculares a filosofemas, a ideogramas, a simbolizacoes de conteiidos significativos racionalizados, e isto quer dizer: deslocar inteiramente as operacoes da imagi 113930 artistica para a zona do conscientee das intencoes racionais, ou considerar que elas se passam ali. Ate onde sei, disciplinas cujos objetos de pesquisa se apresentam no medium da linguagem consideram necessario dirigir sua atencao para o mundo.alem e aquem do limiar da linguagem. Como se ere necessario entender a especificidade das obras dearte pertencentes ao dominie da linguagem como um entrelacamento de diversos tipos e gratis da consciencia, nao se Pica satisfeito com simplesmente compreender os pensamentos e ideias que o texto literario expressa ou desperta, mas procura-se avaliar ainda o significado que reside no conteudo imagetico das palavras.

Questoes de melodo em historia da arte

Nao deveriamos nos, historiadores da arte, cujos objetos se encontram diretamente no campo visual, procurar o significado nao atras da imagem, mas dentro dela? Em suma, nao deveriamos justamente perguntar pelo conteudo imagetico do que vemos? Determinar o mais claramente possi'vel o que, na criaq:ao artistica, contem ideias verbalmente exprimi'veis, formulaveis, e uma tarefa legitima e importante da pesquisa de nossa disciplina. Mas nao se deve esquecer que o conteudo significative da obra de arte, sendo ela uma cria^ao da esfera estetica, so nos pode ser revelado mediante o questionamento das condi^oes estilfsticas. Sob certas circunstancias, uma analise criteriosa da estrutura formal pode revelar mais da filosofia de uma obra de arte do que a demonstracao de que ela traduz em imagem este ou aquele sublime pensamento da filosofia neoplatonica ou da escolastica.

A descri^ao e um trabalho Nao ha como negar que a descricao adequada de nos-.. "sas experiencias e intuicSes visuais constitui um dos nossos problemas mais espinhosos. O que se exige de nos nao e nada menos que a transposicao ou a traducao de valores e estruturas de uma esfera de expressao para outra. Por conseguinte, se em certos casos extremes o historiador da arte confia completamente na documentacao visual e renuncia, por assim dizer, a palavra, existem outros casos, igualmente extremes, porem opostos, nos quais tambem se busca reproduzir, mas onde a tarefa da reproducao e inteiramente deixada a cargo da linguagem. Para apreender com palavras aquilo que constitui a individualidade sensi'vel da obra concreta, procuramos imagens verbais apropriadas; nao faz

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Otto Pacht

muito tempo, a moda era pintar com frases aquilo que se via, chegando mesmo a uma especie de recriacao poetica da obra. Mas conceber assim a tarefa de descri9§o, com a ideia de que e preciso encontrar equivalentes literarios para a realizacao visual, e considerar que se pode transpor um meio estetico para outro. Porem, na historia da arte, assim como em qualquer ciencia, so se pode chegar a uma apreensao conceitual das coisas; os conceitos nao sao um substitute e um reflexo do objeto estudado, eles sao signos e simbolos verbais que se deve escolher de maneira que tornem compreensfvel algo da essencia mesma do objeto visado. Desta maneira somos reconduzidos a visao que compreende [das verstehende Sehen]. Lembremos quais haviam sido nossas primeiras conclusoes: nossa visao deve passar por um processo de purificacao para que o produto artistico possa se manifestar a partir daquilo que chamamos de "coisa arti'stica", ou seja, o substrate ffsico, e somente o produto — a obra de arte — e o objeto autentico da descricao. Mas a realidade fenomenica [derphanomenale Tatbestand] ja e, no sentido mais autentico do termo, "carregada de sentido", e e importante dar vazao vefbal-a esse f&itido. Somente um enfoque correto e capaz de revelar um fenomeno interessante, e somente um tal fenomeno permite uma descricao interessante. Neste caso, as intuicSes da psicologia da forma, retomadas por Sedlmayr em seu ensaio sobre a visao "informada" [dasgestaltete Sehen] e em outros textos, podem ser resumidas da seguinte maneira: a qualidade da descricao dependc amplamente da qualidade do fenomeno descrito. A impressao caotica e indiferenciada que temos de uma obra pela • primeira vez que com ela nos deparamos e a mais dificil de descrever; mas, a medida que a obra toma forma sob nossos olhos, torna-se cada vez mais facil a tarefa de dar uma

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Q.uestpes de metodo em Jiistoria da arte

expressao verbal a impressao recebida. A organizacao que substitui aquela impressao inicial torna possivel, pede mesmo uma descricao clara; ela torna comunicaveis, nos elementos da linguagem, as experiencias artisticas. Poder-seia dizer que, aos poucos, a obra de arte comeca a falar por si mesma. Em minha opiniao, porem, essa interpreta9ao peca pelo otimismo. Nao ha diivida de que a organizacao crescente e a diferenciacao progressiva da visao tornam possivel uma representa?ao daquilo que e percebido. Mas certamente nao corresponde a experiencia pratica dos pesquisadores a ideia segundo a qual a expressao verbal seria dada automaticamente, ja tendo efetuado a partir da vivencia visual o trabalho de tradu9ao que transmite os novos contetidos da consciencia para a materia da linguagem. Com efeito, o nosso comportamento sofre uma modifica9ao ja no momento em que nos esforcamos para encontrar uma designacao, um qualificativo; passamos de uma apercepcao essencialmente sensivel para uma atitude reflexiva. Mas, sobretudo, a tese segundo a qual a visao informada encontraria por si so a sua apresenta9ao verbal supoe que as novas inrai9oes,,as novas observacoes e as novas experiencias sensiveis se fariam acompanhar do vocabulario necessario para a sua correta descricao verbal. Infelizmente, as coisas nao se passam assim, como ja havia compreendido o imperador Frederico II de Hohenstaufen, o primeiro sabio empirico da ciencia moderna, especialmente da ciencia da natureza, quando quis por no papel suas observacoes sobre a vida e os costumes do falcao e de outros passaros. Lemos no prefacio ao seu tratado sobre a ca9a, o "De Arte venandi": "Nam cum ars habeat sua vocabula propria quemadmodum et cetere artium et nos non inveniremus in grammatica latina verba convenientia in omnibus, appo-

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Quejtoes de metodo em historia da arte

suimus ilia que magis videbantur esse propinqua per que intelligi possit intentio nostra" 7 (Pois como esta arte, a exemplo das outras, possui um vocabulario especifico e nem sempre encontramos na gramatica latina termos convenientes, escolhemos aqueles que nos pareciam os mais apropriados a fim de tornar compreensivel o que gostariamos de dizer). Trata-se aqui primeiramente, e claro, da necessidade de encontrar termos tecnicos, termini technici, mas os propositos do imperador, na realidade, valem tambem para o conjunto dos domi'nios onde se apresenta o problema da adequa^ao dos signos da linguagem aos conteiidos da consciencia. E possivel formular dois testes indiretos para mostrar que toda descri^ao inteligivel na historia da arte, e mesmo toda analise efetiva das estruturas de uma obra, exigem da parte do interprete, para alem do mero olhar, um esfor90 suplementar cujo exito depende mais ou menos de suas capacidades de verbaliza9ao. Ja desenvolvemos o primeiro desses testes quando falamos das argumenta9oes silenciosas limitadas a uma confronta9ao entre reproduces, e que equivalem, no fundo, a um esquivar-se das exigencias da expressao verbal. Essas compa'ra^oes-s'He'Hciosas sao uma especie de substitute da linguagem, como a Biblia em imagens da Idade Media, a Biblia dos pobres, e freqiientemente elas tern, visualmente, um valor demonstrative muito forte. O receio do enunciado verbal desempenha, de modo inconsciente, um papel igualmente grande no segundo

exemplo que tenho em mente. O subterfiigio aqui nao esta restrito apenas ao vies imagetico, pois quando a atei^ao se concentra mais no conteiido das imagens do que na representa9ao, enfatiza-se nao o estilo, mas sim a iconografia. A paixao quase frenetica que se nutre hoje pela iconologia nos limita a uma esfera dependente da linguagem, a qual autoriza enunciados, sem que seja necessario empreender o dificil trabalho de tradu9§o a partir de uma lingua estrangeira, quer dizer, da transposicao dos caracteres visuais da obra para um outro meio, para um outro elemento. Essa completa "intelectualiza9ao" da obra de arte, que acredita reencontrar na imagem uma verdadeira escrita pictografica, dispensa a necessidade dessas transcribes e fornece tambem uma boa consciencia, pois todos os enunciados sobre a obra se movem na esfera do pensamento racional e, desse modo, causam a impressao de satisfazer o postulado da objetividade cientifica.

7

Tome: Otto Pacht, Methodischts ziir ktinsthistorischen 1'raxis, in F.kkchard Kacnimcrling (org.), Ikonographie und Ikonolngie. Thforien. Entwicklung, /'robleme, vol. I: liildc-iulc Kunst als ^t-ichcnsystcin^oJj^ii^puMont Buchvcrlag, 1979, pp. 369-75.

A/nicl Johann (iottlob Schneider, Ad relii/ini libmrum Friderici II

(de arte venandi cum twibus) el Albert! M/igni capita (de filcunibiis) cummentarii cum auctario imendationiim Mtjtie anniitatinnum ad Aeli/mi de nilturn aiiimiilmm libros, Lcip/.ig, 1 789. (Nota dc 1'iicht)

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