A Morte Da Rainha Walburga, De Marcelo Moraes Caetano

  • July 2020
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A MORTE DA RAINHA WALBURGA PEÇA (ABSURDO CÊNICO) EM 2 ATOS MARCELO MORAES CAETANO A língua artística dos livros é sempre uma reação contra a língua comum; até certo ponto, é um jargão, o jargão literário, que, apesar de conter inúmeras variações e ser diferente nos parnasianos, simbolistas ou decadentes, não deixa de ser, em todos os casos, uma alteração da língua corrente. (Joseph Vendryes, A linguagem)

Os olhos do homem não ouviram, nem os ouvidos do homem viram, nem a mão do homem poderia conceber, nem seu coração expressar o que era meu sonho. (William Shakespeare, O sonho de uma noite de verão)

No dia-a-dia do engenho Toda a semana, durante, Cochichavam-me em segredo: Saiu um novo romance. E da feira do domingo Me traziam conspirantes Para que os lesse e explicasse Um romance de barbante. (João Cabral de Melo Neto, A descoberta da literatura, in: A escola das facas)

Nome é som e fumaça. (Goethe, Fausto)

Em comemoração aos duzentos anos de composição e publicação da Sonata Aurora, op. 53, de Beethoven, este grandiloqüente despudorado que vaticinou os efeitos da industrialização até mesmo sobre o espírito do homem contemporâneo sempiterno. A Waldstein, outro epíteto para a mesma Aurora, é uma máquina-a-vapor que torna estupefaciente o mais incrédulo e agnóstico ateu, e sem dúvida constitui uma interseção, porém exuberante, quase amazônica, pantaneira, praticamente selvagem em brasilidade, entre a maravilha humana e a de Deus. Viva Beethoven, este germano-brasileiro, que sempre soube que o universal é o regional sem muros, como ouvi de Muniz Sodré parafraseando Rodrigues-Miguéis.

ATO I Luz e negror de fundo na praça redonda ou praticamente, como ogiva do futuro. Língua, já não existindo para dar tonalidade, que houver, de certa outra dimensão fora, patenteia sua força. Lindo dia começa. Chove. Há um local. SOLDADO 2: É primavera, irmão, é primavera; e estamos aqui? SOLDADO 1: Que trabalho pode haver pior? Meu bom, nobre e fidelíssimo companheiro, que tarefas, dentre outras árduas que há, poderiam existir de menos dignas e mais causticantes do que esta? guardar o reino... guardar... o reino... SOLDADO 2: Fala baixo, homem: quer que te escutem, acaso? Não sabes o que manda fazer o Rei aos que, em pensamento!, contra ele tentam insurgir-se? A insurreição é peste abominável, que Sua Majestade execra com a veemência de um pulha e a fraqueza transmutada em império de um bárbaro atingido. SOLDADO 1: Que é, amigo, que é e é! Mas é que muito, excessiva, mesmo exaustivamente me estraçalha esta vida. (À parte.) Embora admita não conhecer nem ter conhecido outra em algum antanho da existência. E como são longes os passados. SOLDADO 2: São os agros, as torpezas de que não se pode fugir. (Troveja) SOLDADO 1: Vês? Escutas? Ainda por cima há de chover impiedosamente sobre nossas cabeças. (Apalpa a sua.) E este elmo, então? este elmo? Ó meirinho das revoltas! Que qualidade possui este elmo exceto oprimir ainda mais nossos crânios esmagados de enfaro e desespero? É esta a vida que preconizas? Ah, por certo, ainda que o não saibamos, existem coisas melhores no mundo. Às vezes penso: enlouquecerei... ou melhor − muito melhor! − ficarei sanado desta loucura que, agora, exatamente agora, isto sim, oprime este meu coração tão seco. (Levemente efusivo e gesticulando um pouco acima do que aceita a contenção.) Ou se é loucura a busca pelas cicatrizes da loucura, companheiro de flagelo, sou louco, serei louco... mas dela, desta estranha conseqüência da vida, estarei definitivamente curado. (Acalmando-se − aos poucos.) Quanto a você, querendo, não poderás, ainda assim, sair desse teu fado: és pobre de família e de mente − pobre de sangue, em suma. Sem-prosápia e linhagem? Inveterado!

SOLDADO 2: Acho que a chuva há de, ao menos, fazer-te bem aos miolos: deves ter ficado exposto em demasia ao sol. Sabes o quão maléfica e deletéria pode ser a luz? SOLDADO 1: Ao sol, à lua, às estrelas, à rotina. Exposto, simplesmente. A tudo. E tu? tu sabes aí a diferença entre um dia e outro dia? Lunissolar? É assim: quando um termina, soubeste que vinte e quatro horas foram erradicadas infelizmente do teu mapa, incuravelmente riscadas de tua estrada − sem vestígios, deixaste uma parte de ti. Quando começar outro, ao contrário (e vê como sou otimista, vê bem), confiarás na providência celeste, sabendo que virá o alívio quando as vinte e quatro horas que seguirão, subseqüentes, gastas e cínicas, também estas tiverem já sido felizmente arrancadas para alívio teu, da tua (ou daquilo que queres chamar “tua”) “vida”. SOLDADO 2: És fel, és puro fel; tens o amargor de quem tivesse carregado as pedras, uma a uma, que ergueram o próprio palácio do Rei; pareces ter saído ou sido tirado por alma impiedosa agora mesmo dos limiares de uma sede duradoura, vinda à permanência (ou sei lá eu o quê) de uma vida inteira em deserto qualquer. Por quê, além de tudo, comprazes-te em ofenderme assim? por que dizes, de maneira reta e prolixa, alternadamente, reta e prolixa, que sou infeliz criatura por “aceitar” este destino infeliz que me acomete? Achaste, ou crês mesmo que eu não buscava então felicidade, estando isto lá onde estiver, sendo isto lá o que for, havendo isto lá onde houver ou quer que haja? Tu a queres? é isso aquilo acerca de que tanto falas? vai, então, colega: tendo passado o maquinista do trem, dificilmente acharás modo de num próximo vagão embarcar (ou quem o poderia fazer retroceder em teu socorro? quem, senão o maquinista?): só ele. (Tempo anda. Troveja.)

SOLDADO 1: (Como se não tivesse ouvido o que lhe foi dito.) Ao menos sabes a hora em que passará esta maldita rainha? SOLDADO 2: Mas nem de uma pobre convalescente tu te condóis... nem de uma moribunda agonizando. SOLDADO 1: E há alguém condoído da minha agonia? Da minha “moribundice”? E da tua? Há? SOLDADO 2: Temos saúde: nem reclames assim, que Totum castiga. SOLDADO1: (Um pouco raivoso.) Ao menos sabes a hora em que passará esta maldita rainha?

SOLDADO 2: Não antes das duas; também não depois das quatro. SOLDADO 1: Esta é muito boa! Até para morrer esta gente nos atrapalha a vida... quer dizer que ainda temos de esperar, na melhor das hipóteses, uma hora? Digamos meia hora, que seja, que inferno!!! Isso se a rainha resolver morrer às duas, porque, se não o fizer, haveremos de ficar o dia todo à disposição do último suspiro da excomungada? SOLDADO 2: (Impaciente.) É isso, é isso. (Troveja.) SOLDADO 2: Vai, vai; em vez de ficares reclamando a sorte (o que é inútil mesmo), em vez de deixares os vincos acrimoniosos do perecimento sulcarem veios em tua alma, vai, amigo, vai e busca-nos algo a proteger-nos desta que em breve será chuva... que a prevenção às vezes de nada serve, mas no mínimo nos dá a impressão de termos feito algo por nós próprios, dános a sensação − fantasiosa − de termos agido em favor de nosso conforto, contra o infortúnio e a desavença (de cuja implementação, por isso, achamos estar destituídos por inteiro da culpa...)... desgraçada! SOLDADO 1: (Com esgar.) Enches-te, embora não o sintas talvez, com as agruras chorosas e ressequidas que vertem da minha boca. Sim. SOLDADO 2: Do teu coração, queres dizer: porque a boca não contagia; o coração arrasta e fulmina os arrabaldes mais longes... SOLDADO 1: Disseste algo, enfim, de que se pode tirar proveito. SOLDADO 2: Já reparaste a tessitura da ingratidão em que incorres? O Rei dá-nos, e a todo o momento (se queres bem saber), prova de benquerença desmedida: a quem mais, senão tão-só a nós dois e a uns poucos além, confiou Sua Majestade o próprio reino? Sabes o que significa a ele a manutenção da segurança de seus domínios, que nos foram, com efeito, entregues e confiados? Em poucas palavras: és ingratidão! és perfídia! és bambúrrio! do contrário − em existindo porventura isto em você −, terias sensibilidade ao reconhecimento da nobreza do cargo que nos reveste... reconhecimento, a propósito, dúbio: vem por parte do Rei a nós; vai por parte nossa ... minha, aliás, − vai, por minha parte, como forma de agradecimento à sua benignidade, do nosso monarca... E tenho dito. Mendigamos: somos dele ou ele é nosso.

SOLDADO 1: Como se estivesses à venda em uma feira livre, a barganhar e negociar o próprio valor − é assim que ages; ou que outro motivo te induz, mais grave que esse, a tamanhas adulações? SOLDADO 2: “Adulações”... encaras assim. (Troveja.) SOLDADO2: Bem, não tomando atitude, vou providenciar eu mesmo a proteção contra a chuva. (Vai saindo; pára e olha para trás.) Também o queres? (Troveja. A luz não se apaga de chofre − não assustadoramente, porém.) SOLDADO 1: (Apenas a voz.) Não.

CENA II - Quarto do Rei.

REI: (Preocupado e irônico.) À morte − quando não chega esta de um salto −, é muito agradável a manutenção da dolência e do abscôndito de si mesma; é criatura radical: lerdeia pelas plagas da vida, colubreando... E serpenteia atônita, sempre atenta. Ou é abrupta (e sempre foi assim). Circunstante e sub-reptícia, ubíqua como passarada a esvoaçar, pousa e some, vem para ir, alando e sumindo, aparece com ausência, presente e longe, perto e impossível, dolorosa e leve, rude e delicada, podre e vívida, virtude e mérito, sorte e esforço, paz ­ guerra ­ ódio ­ amor. (À parte, falando consigo próprio, embevecido.) A morte é amor... (Como que se recuperando de um delírio, falando consigo mesmo.) Cuidai, Majestade, que dentre todas as antíteses do homem é a morte a suprema. Dentre todas, dentre todas. Em si mesma a antítese de todas as antíteses, e, assim sendo, deixa de sê-las, sendo portanto a TRADUÇÃO de si própria, antítese de antítese? Louca! É o fim do “não” da vida. O não do “não”. Portanto o “sim” supremo. Porque se a antítese é o fiar-se no dois, a sua própria antítese é nada exceto a prova da existência do um... Do único, do que se degenera e renasce único! CANDELABRO: Interessante o teu exórdio, reizinho de muito pouco; muito me apraz o teu proêmio. REI: Ousas falar-me assim? Nunca ouviste quanto se diz a respeito de minhas crudelíssimas penas infligidas sobre os que de mim escarnecem? És louco? ou aquele por cujo esqueleto não se pagará vintém, um X?

CANDELABRO: Contra mim, que hás... ou mesmo, que podes fazer? Quando morreres (e guarda cá estas palavras), quando os mesmos vermes que te carcomeram tiverem já sido eles próprios carcomidos por outros, de alheias gerações, e por sua vez vomitados e refeitos flor, recomida e tornada uma vez ainda água de chuva e esgoto, absorvido por intestinos ferozes e expurgados terra, adubadora neste instante das árvores centenárias e milenares, por sua vez mortas e cuspindo frutos, comidos por aves e levados com elas para o além-tudo das aves, uma vez mais excomungadas do ventre morto da terra, mãe do grão, pai da vida, madrasta da morte, e renascendo sob nem sei eu que outra forma orgânica de vida − e vida em abundância orgíaca −, estarei eu ainda vivente e a manter-me aqui, na prefulgência solar com que se vestem as velas, os círios que ornam minha cabeça... Ah... eis uma coroa legítima! (Pára e o aponta com mordacidade.) Quanto a ti...! REI: Quanto a mim, varapau (não passas disso), serei, ainda que morto, um rei, um Rei, um REI! e isto é coisa indelével, que nem vento nem verme apagam. (Troveja.) LAREIRA: Se tivesses consertado (ou mandado consertar) minha chaminé, Vossa Altíssima Alteza não correria, agora, o risco de ver em uma única chuva dois infortúnios: o apagar das minhas chamas que o aquecem; o encharcar do quarto que o abriga. REI: Enlouqueceste também. Aliás, que espécie sórdida é esta de conluio? LAREIRA: Cremos antes nas temáticas da natureza do que nas suas tolas e indefesas petulâncias, Majestade fátua. REI: O tom postiço e embargado com que proferes cada palavra, isto mostra bem o descrédito que tens em relação a teu próprio discurso, ó lareira das lareiras, roufenha. (Troveja.) LAREIRA: A ironia, ó rei dos reis, é o apanágio dos acuados; a mordacidade, o dos incompetentes. (Assustado, entra Mago da Corte.) MAGO DA CORTE: Majestade, que bons olhos o vêem... venha comigo: seu cônjuge não passa dos próximos trinta minutos.

REI: Por que o dizes? MAGO DA CORTE: Acompanhe-me e verá. (Mago da Corte sai.) MESA: Como é feliz, como é feliz o dia do divórcio entre a sacrifício e a recompensa. TROVÃO: Tua esposa morrerá. MESA: Como é feliz o dia do divórcio entre o sacrifício e a recompensa. (Troveja.)

CENA III - Tenda de Mago da Corte.

MAGO DA CORTE: Ai de mim... se eu não salvar com meus ungüentos e panacéias a esposa do Rei, a rainha destas terras priscas e preteridas, hei de padecer suplício ainda maior que os corriqueiramente impostos por Sua Alteza: ai de mim! ai de mim! Eu disse “ai de mim”. MÚSICO: Não vejo sinceramente para que te serviram tuas magias, os teus encantos, as tuas nigromantes e malabares virtudes, teus amuletos, Mago, tuas pencas de balangandãs e tuas figas soltas, quantos trevos de quatro folhinhas celtas, milhões de patuás multicoloridos, incenso então, ih..., bem umas duzentas rezas por dia: por quê, se és quem julgas ser, não predisseste a morte à rainha? Ou te propalas falsamente poderoso ou te arrogas potestade vácua...

MAGO DA CORTE: Pois aí está... em nenhum de meus oráculos, cabalas e demais petrechos ou viamentos de adivinhação se me mostrou o passamento de Sua Majestade, a rainha. Recordo-me de ter ido à consulta de quatro sábios cegos, duas bruxas caolhas e, se não me falha ainda a memória, três... não três nada, quatro! quatro Feiticeiras Atormentadas do Monte Heliconísio... É estranho que todos os meus meios divinatórios falhem concomitantemente,

ou mesmo, que o seja, intermitentemente, sucessivos... eu... eu já não sei o que... eu já nem sei o quanto... mais o que diga... eu... digo... diga... eu. MÚSICO: Mas falharam, a julgar pelo desfalecimento e palidez supremos de Sua Alteza... MAGO DA CORTE: ... falharam. Ai de mim! MÚSICO: (Como cochichando.) Não sabias que quando promoves o poder alheio se enfraquece de imediato o teu próprio? E além de tudo... (Troveja.) MÚSICO: (Ouves o ribombar do firmamento? indícios Dela...) ... e além de tudo... MAGO DA CORTE: (Irritado. Corta Músico.) Cala-te, criatura das profundas, cala-te! Como ousas falar assim um “dela” sonoroso? “Dela”! É Ela quem, na sua sordidez, pretendes invocar, tu o bem queres para ti? Pois arca, mas só, solitário, com os arroios aparentemente amenos e tartaruguescos que Ela nos traz... (Um raio de sol penetra na sala.) MÚSICO: Tartaruguescos... Eis um bom auspício... notícias alvissareiras hão de vir, pois, Mago: acalma este teu ânimo insolente e exaltado, não me venhas com tuas espúrias, não vociferes ao léu, porque palavra expulsa é palavra viva. MAGO DA CORTE: (Sentando-se, abaixa a cabeça, de cujo cérebro parecem fluir espectros e redemoinhos cinéreos. Mago da Corte simplesmente está, onde realmente está, com notoriedade.) Não existe uma única palavra ao léu. Ignóbil, desconhecedor... não sabes o que significa este raiozinho de aparência dócil e, inofensiva que seja, hígida... não sabes nada, nada, nada. Cultuas a inópia, és cúpido e pífio. És flamígero, uma ignorância em pessoa. MÚSICO: Mas como?! Vens-me dizer que se trata de maus agouros agora, isto que muito pasmo bom me causou? Julguei ser este raio alentador; e, muito ao contrário do que me instruis, captei tratar-se de amostra inequívoca de presságios e auspícios de alegre, alegríssimo conteúdo, um raio (e assim o podemos chamar) conteudíssimo. MAGO DA CORTE:

Porque não conheces nenhuma das leis o dizes; se as conhecesses... ah! muito pouco ou quase nada falarias. MÚSICO: Sou um cortesão, um áulico fiel desde as eras imemoriais; como dizes que não conheço as leis de meu próprio reino? MAGO DA CORTE: Nem isto conheces. (Levanta-se.) Na ciência do conhecimento, meu desarmado rapaz, não é o tempo o que vale, senão, sim, e tão-somente, a perspicácia... o que nunca tiveste. MÚSICO: Sou jovem. MAGO DA CORTE: Poderias ser uma criança e, fosses sábio, contarias, tenríssima que tua idade se dispusesse ser, muitos anos de sabedoria... (Pára um instante, olha Músico.) isso contanto que tivesses nascido com ela... porque, ou se nasce com, ou se morre sem; nunca é diferente. Não se pode burlar a inexorabilidade do Nada! MÚSICO: Por curioso: o que disse, então (e de tão grave a ponto de te abilolar), o tal raiozinho que outrora confortou minha vista e minha alma assaz medrosa? (Troveja.)

MAGO DA CORTE: Mando que te cales, infeliz. MÚSICO: É a mim ou a este trovão que te diriges? MAGO DA CORTE: Aos dois. Muito embora o trovão, a mim, seja-me ainda menos ofensivo do que a tua espúria presença, ser musical.

(Entra Princesa. O palco cheio de feminil aroma.) PRINCESA: Mago, Mago, viste a luz, vertente do sol, que acaba de nos brindar com suas fitas e fazendas multicoloridas? Que me vens a dizer acerca? MÚSICO:

Das fitas ou das fazendas? MAGO DA CORTE: Ai. MÚSICO: Isto é um tabu do qual o Mago não ousa, e sabe-se por quê, sequer falar. (Irônico.) Deve conhecer leis que as próprias Grandes Leis desconhecem. MAGO DA CORTE: Sua Alteza, a filha da rainha, não deveria estar aqui: fazendo o quê?! o quê?! PRINCESA: Vim conhecer melhor o estado de minha mãe. MÚSICO: Isto é outra coisa à qual o Mago não faz sequer menção. PRINCESA: Verdade? MÚSICO: Verdade! MAGO DA CORTE: (Ao Músico.) Faze-me um favor, ente por cuja boca se derrama e esparrama tanta música: vai aos quintos leves dos calabouços do inferno e escarafuncha tua cara de seriema no meio das poças de lama que lá encontrares? e hás de encontrá-las em profusão, hão de pulular das entranhas dessas paragens, e das tuas; depois engancha tua fuça, desnorteada, no primeiro paul que vires, daí retirando teu repasto − e te rogo pelo Amor do Totum Austero que o faças − por pelo menos quinze décadas! PRINCESA: Ó. MÚSICO: Perdoe-lhe, Vossa Alteza, perdoe-lhe: desde cedo está assim mesmo − desconcertado − este tão leal súdito palaciano de sua nobre estirpe. PRINCESA: Teimas, tu também, Músico, em esconder-me o estado real de minha mãe. Por quê? Por quê? MAGO DA CORTE: Vossa Alteza não entenderia... o que nem eu entendo.

CALDEIRÃO: (Ebulindo.) Notícias novas, Mestre. MAGO DA CORTE: (Aflitamente correndo a Caldeirão.) Dize, companheiro, alivia-me o peito trêmulo... ou, então, acaba logo, e de vez, com supostas esperanças infundadas e efêmeras. CALDEIRÃO: Tudo o que é fugaz se condensa em água.

MAGO DA CORTE: (Motivado.)Tens já em tuas benignas águas algo a dizer-me? CALDEIRÃO: Interpretarás (pois que é a ti que cabe tal função) aquilo que de meu insalubre e palustre conteúdo ferve e emana. (Uma fumaceira fétida sai de Caldeirão.) PRINCESA: Ó! Mago, o que nos diz a nós, fatigados de espera? CALDEIRÃO: Receio não vos agradar, aflições em fôrma humana. PRINCESA: Dize-o ainda assim − isto te é um Decreto Supremo e Majestático. MAGO DA CORTE: (Saindo do meio da fumaça; tem o semblante frustrado e receoso.) Di-lo-ei, Vossa Alteza... (Pára uns instantes.) nada posso ver neste que me foi, outrora, o mais nobre e leal dos companheiros. MÚSICO: Queres dizer que... MAGO DA CORTE: Aconteceu-me, senhores, aconteceu-me o indizível: eis que me foi vetada a previsão do quanto lhe agradaria − ou não! − saber, Vossa Majestade. PRINCESA: Ó! MÚSICO: Lamento muito, eu também.

(Entra o Rei.) REI: Pronto, só pude chegar agora... (Ao Mago.) O que tinhas de urgente a mostrar-me? MÚSICO: Receio ter chegado atrasado, Vossa Majestade. PRINCESA: (Ao Rei.) Pai, ó meu pai, o dom da predição foi misteriosamente dele retirado. (Aponta incisivamente para Mago da Corte.) REI: Se é verdade o quanto disse minha filha, preferível te seria nem ter nascido, Mago. MÚSICO: Com licença. (Sai.) MAGO DA CORTE: Ex officio: nosso poder às vezes se esvai momentaneamente para, depois, retornar roborizado, bem mais forte. Compreendem? REI: Quanto tempo? MAGO DA CORTE: Depende do Mago Supremo, Majestade. REI: Tens vinte e quatro horas. (À Princesa.) Vamos, minha filha dourada. (Saem.)

MAGO DA CORTE: Ai de mim! CALDEIRÃO: Por que se deu inigualável tragédia à tua pessoa? (Troveja.) MAGO DA CORTE: Porque assim Ele o quis. VENTO: Acalma-te, Mago: restituir-se-ão teus poderes.

MAGO DA CORTE: (Sorrindo.) Enfim ouço algo que me provoque o sorriso. VENTO: Tu sanarás a rainha. MAGO DA CORTE: Quando? VENTO: Em menos de vinte e quatro horas.

CENA IV - Jardim do palácio.

VENTO: Ó doce princesinha, que fazes aí, a confundir-se com as flores que colhes, por cujas pétalas se espalham teu ardor, tua temperança? Na verdade existe um instante poético em que nada que não seja vem a ser, deixadas as poucas arestas vitais de lado, e tudo passa a constituir, em harmonia excelente, um crepúsculo outonal e pleno. Dá-se, doravante, espaço a que se agrupem de dois em dois − homem e mulher − os seres de toda a Natureza. Com paciência e perdão, o inverno solicita a presença da vida; a própria vida solicita a presença da vida. E esta se dá, em profusos sussuros escuros, no meio do inverno recém-nascido e já em esboços de primavera que será, como as flores que embeveces. Será tudo muito calmo e tranqüilo, de uma tranqüilidade e de uma calma invejáveis mesmo a Totum. Por que cantas? PRINCESA: Canto, amigo vento, que é para ver se consigo, um pouco que seja, afastar de mim o temor pela minha mãe. VENTO: Pois tua canção é mel a humilhar-me os coros e a insinuar-se algo superior ao canto próprio do mar. PRINCESA: Incomodo-te? VENTO: Não; mas humilha-me sobremodo.

PRINCESA: (Puxa uma boneca.) Queres ser o pai desta nenê? VENTO: Sou porventura pai de bicho com mãe espantalho? PRINCESA: (Cantando.) Minha mãe, sem embargo da justa verdade, não teve ousadia, covarde... um simples trago... ...e já se restabelecia. A pretexto de medo (mas quem não o sente?), logo fez dar-se cria à doença pungente! Porque não tomasse, frugal, a poção, sofre agora o repasse da Morte, e então... PUREZA: (Entrando.) Sempre a invocar-me com teu canto onírico... MELÍFLUA: (Entrando.) Por que não cobraste docemente do teu pai uma atitude ao Mago? PUREZA: E sabendo a ira que sobre o pobre homem se derramaria? Não, ó! PRINCESA: Ó amigas, ó Pureza, ó Melíflua, únicas que neste mundo nunca me abandonais, sei que discutis entre vós o melhor que posso eu fazer... de nada, nada adianta! sou filha infeliz a esperar mãe. Dir-vo-lo-ei: sou eu mesma. MELÍFLUA: Já tentaste ameaçar com forca o Mago? PRINCESA: Não... o que é isso?

MELÍFLUA: Mas que esperas? Vai até ele, e, amável, propõe que, se não der um jeito − e logo!− de salvar tua mãe, é provável que seu pescoço até resista ao nó que os verdugos do reino estão habituados a dar, com destreza, com maestria. É uma arte! PRINCESA: De que nó estás a falar? O que é forca? Não entendi. PUREZA: Faço estas as minhas palavras. MELÍFLUA: Existe, atrás deste belo jardim, uma espécie de palco de madeira e ferros; e a pintura, sei que te interessa, é rosa e eivada de minúsculas flores, pequeninas toda a vida, até não poderem mais... e explodem num arco-íris cintilante. Oh! Pois bem, sobre esse alegre palco de que falo, há um mastro de seus... três metros de altura?... cuidadosamente ornamentado com laços azuis, de cuja extremidade − que faz com o seu corpo como que um “L” invertido − desce amigavelmente até o chão uma corda de crina de jumenta braba e indomável. Em volta de tal imagem amena e idílica (pois não é de fato? amena e idílica), a propósito, um jardim ainda mais colorido e perfumado do que este em que descansamos agora... Que tal? PUREZA: Deve ser lindo, o palco. PRINCESA: O que tem que ver um tal paraíso com a ameaça que eu possa fazer ao Mago? MELÍFLUA: Não és criatura doce? Pois te insinuas a ele de modo a fazê-lo entender que é para lá que o pretendes enviar... faze-o opacamente... anda. PUREZA: Que bela saída; e bem à altura da tua nobreza, dócil princesinha. MELÍFLUA: Mas não te esqueças de dizer que é sobre o palco que ele deverá ficar, com a corda de crina de jumenta braba em torno do pescoço. PRINCESA: (Pára.) Não é por demais desconfortável, amiga? MELÍFLUA: Não, não, que nada: diga a ele que não precisará ficar senão dois minutos, no máximo...

PUREZA: Acho muito justo. Descansa a cabeça. MELÍFLUA: O pescoço. PRINCESA: Estou tão feliz. MELÍFLUA: Vai então. PRINCESA: Não só vou, como já fui. (Sai.) (Troveja.) MELÍFLUA: E tu? o que fazes ainda aí?

CENA V - Casa de uma Campônia.

CAMPÔNIA: Já escutaste o quanto se tem dito a respeito da rainha? MARIDO: Ora, se não há assunto outro sendo vertido das línguas da cidade. CAMPÔNIA: Dizem que de hoje não passa, nem por milagre. MARIDO: Dizem que, com isso, morre o Mago? BULE: Cuida em que não ferva tanto assim a água de minhas entranhas, mulher... não é em água fervida que deve ir a infusão o chá; é em água borbulhante... apenas. CAMPÔNIA: (Ao Marido.) Vês? quase me ia distraindo a deixar extrapolar o ponto. BULE: (Gritando.) Vem! vem! vem!

MARIDO: Vai, antes que entre em colapso este bulezinho de metal farfalhado. BULE: Farfalhado é teu caráter! CAMPÔNIA: (Tirando Bule do fogão.) Pronto. Tiro-te da ardência do fogo, Bule, antes em respeito a ti e a teus fundilhos que por acreditar que de fato seja melhor o chá provindo da água borbulhante apenas, qual o disseste, hipócrita. BULE: Não preciso de esmolas: tendo-me retirado por isso que alegas, devolve-me ao fogo. MARIDO: Assim é a ingratidão. DOCE ROUXINOL: (Sobrevoava o jardim externo; cansado − ao que indica seu fôlego vacilante −, procura o peitoril da janela, onde pousa, descansa e... fala.) Posso ficar aqui por um instante, antes de voltar ao jardim do palácio? CAMPÔNIA: Ó Deus, sinto assomar à janela o contorno frágil de um passarinho? DOCE ROUXINOL: E nisto não te enganas, Campônia. (Campônia prepara o chá.) CAMPÔNIA: Em quê − embora me custe crer que o haja − podemos dar-te amparo? ou auxílio!? (isto é ainda menos provável). MARIDO: Como foste escolher o parapeito de uma tão pobre janela para repousar teus pés, quando tens à disposição os néctares indizíveis que brotam dos jardins do Rei? DOCE ROUXINOL: Às vezes a opulência esfalfa e degenera. BULE: Senta por um segundo sobre a boca deste fogão... mudarás teu ponto de vista em três tempos, antes que possas supor ou respirar.

CAMPÔNIA: (A Doce Rouxinol.) Queres um gole do meu chá (apesar de te ser este de somenos interesse, se cotejado com as delícias do castelo de que dispões)? DOCE ROUXINOL: O que tendes de comer, ó família paupérrima? não que o queira eu; mas, por curiosidade (só), respondei-mo. MARIDO: Neste exato momento, nada; esperamos o regresso de nosso filho, contudo: (Com orgulho.) que há de trazer-nos provisões contra a fome! DOCE ROUXINOL: E se o não trouxer? MARIDO: Satisfar-nos-emos com uns pedaços de pão dormido e oco e murcho... BULE: (Irônico.)... a miséria às vezes degenera e esfalfa. CAMPÔNIA: (A Doce Rouxinol.) Mas não o disseste ainda: o que vieste aqui fazer? DOCE ROUXINOL: Não? Em princípio, descansar; estando aqui, todavia, aproveito o ensejo para dar-vos as novas do palácio: ouvi dizer − e minha fonte é firme qual rocha − que o Mago perdeu seus poderes de cura e previsão, e que, por esse motivo, o Rei está providenciando novo Vate para seu serviço. Isto tão logo faleça a rainha. CAMPÔNIA: Mas o vaticínio não é emblema que se encontre em cada esquina: como fará o Rei para encontrar novo mago? (Entra −m?− Muitas Moscas.) MUITAS MOSCAS: (Com sarcasmo e sagacidade.) Doces olores e fluidos recendem nesta cozinha. CAMPÔNIA: Afastai-vos, moscas das sucursais do umbral supremo. MARIDO: É esta janela aberta que as atrai.

BULE: (Irônico, − obviamente.) Não faláveis bem a respeito da “maviosa” janelinha que, aberta, trouxe consigo esse rouxinol de múltiplos encantos e afetos? Agüentai o lado nefando de tão doce visita, senhoras e senhores; não havendo o bem que não traga um mal, eis Muitas Moscas. MUITAS MOSCAS: Aonde iremos que não haja algo a ser sorvido? Aonde iremos que não haja algo a ser tragado? BULE: O belo é feio. CAMPÔNIA: Apartai-vos daqui, Muitas Moscas! Não vedes o quão desagradável nos é vossa visita? o quão inoportuna se configura vossa presença, por si só, com efeito, sobejando impureza, imundície e toda espécie de sujeirada? Apartai-vos, andai. MARIDO: Calma, mulher, calma... assustas assim nosso Doce Rouxinol. DOCE ROUXINOL: (Chilreando e gorjeando uma bela canção ornitológica.) Prrrrrrrriiiiiiiiii! Ó Deus, Deus que tudo vê Nos rostos simples do Teus Servos, custa-me ser Débil criatura (Pejada de doçura), Se trouxer sempre comigo Aos lugares onde me abrigo Toda sorte de besteira (estas Moscas, por exemplo). E aproveito a esteira Deste meu discernimento, Para dar-Te uma notícia Embebida em malícia: Eu, pássaro, trazendo aqui, Com o bem a imundície − Mais um pouco de sordície −, Eu sou como igual não vi, Porquanto Num canto Digo: Priiiiiiiii!

BULE: Embrulhas-me o estômago... tê-lo-ia embrulhado, se o tivesse. CAMPÔNIA: Ah, ouviste, marido? que belo canto! MARIDO: (Espantando Muitas Moscas.) Traz meiguice inigualável, como nem no céu há de haver igual canção. (Troveja.) BULE: (A Muitas Moscas.) Conta(i)-nos mais sobre a sorte do Mago. MUITAS MOSCAS: Já o souberam? vós outros também? Seria incrível (não fosse patética) a velocidade com que se propagam essas raças de novidades. Depois dizem sermos nós, coitadas, as imundas, meliantes; somos, isto é o que somos, os arlequins da existência. MARIDO: Não deixais de ter razão no quanto dizeis: sois nosso divertimento, de fato, sois motivo de gáudio extremo... mas se permanecerdes paradinhas aí onde estais, deixando que nós vos matemos com um livro, com uma espátula, (pega Bule.) com o rabo quente do Bule! (Atira-o sobre Muitas Moscas, que, naturalmente, sentem-se amedrontadas com a investida do homem fora de si. Este, em ofensiva, e uma vez sendo difícil o acerto de contas se advindo de pessoa descontrolada pela cólera, erra o alvo assaz pretendido − Muitas Moscas − , que, não obstante ilesas, fogem pela janela, levando consigo Doce Rouxinol. Campônia corre e fecha-lhe, à janela, a madeira torneada e, a julgar pelo barulho, necessitando com urgência de um remédio para as juntas, algo que, se o puder, sirva de igual forma à musculatura rota − ah, os anos... − de que tanto já se serviu, reitere-se, a tal desafortunada “porta para o mundo”. No chão, Bule.) CAMPÔNIA: É ingratidão do Rei, e ingratidão pura, em excesso, em excesso: ameaçar com morte na forca aquele que lhe foi desde sempre um servo fiel. BULE: (Do chão, faz troça do casal que discute, tentando dar cabo de seus argumentos, ao que parece, sobreviventes de mera pieguice.) Servo fiel... hum!... de que adianta a fidelidade nos momentos amenos da vida? de que serve o leal nas calmarias? Uns tais amigos, ou melhor, uns tais “amigos”, para que os queremos junto a nós? Quem não é capaz de, sozinho, ainda assim, governar um navio em noites estreladas? Bah! (Apaga a luz.)

BULE: (Voz.) Tranqüilo quilibet gubernator est! CAMPÔNIA: (Voz.) Já pro armário! Ai ai...

CENA VI - Caverna Obscura. (A luz vem aos pouquíssimos.)

CINCO MORCEGOS: Tranquilo quilibet Gubernator est... Antes dessa desditosa decisão, que, aliás, tanta firula fomentou, há séculos e séculos (muitos mesmo), teve o Rei de então, Dom Insano II, atitude tão histórica quanto sumária, que dá brado até aos longínquos dias de hoje; a saber: mandou que expusessem ao ridículo, depois de já tê-lo feito três vezes antes, o próprio Mago da Corte, como se lhe fosse este, ao Rei, à epóca, o próprio irmão. Após o mal perpetrado, Sua Majestade, escarnecendo, saiu bramindo aos quatro cantos: “Morreu por imbecil que o era! Morreu por imbecil que o era!”, depois do quê, com serem pujantes e insurgentes, os povos, acometidos de medo hirundino, resolveram pelo calar-se, pelo resignar-se... que se mantém, perdurando até aos longínquos dias de hoje. É aquela tal história de que um príncipe soberano deve sê-lo acima de tudo pelo medo fomentado em seus súditos. VACA PROFANA: O povo está em quarentena. CINCO MORCEGOS: Como é grande o dia de hoje... Se por um lado o é, como dissemos, de grandeza tirante ao insuportável, sê-lo-á na mesma proporção execrado de nossas memórias pudibundas: a vida é como palavra − quanto maiores, tanto em menor escala tendem à existência!

VACA PROFANA: Que lei é esta que inventais? (Entra Mago Aposentado.)

MAGO APOSENTADO: Lei não se inventa, Vaca Profana. Lei se detecta! O homem sábio, excepcional, é aquele que cataloga as Leis que viu. Nós as captamos como se captura o ar numa proveta: não se vê que existe, mas se sabe que foi aprisionado. Nunca ninguém − nem Totum! − há de ter “inventado” uma lei; muito ao revés disso (que é entretanto o que parece grassar nos meios

humanos como verdade), até mesmo Totum é tão grande por saber melhor que seus súditos captar − captar − leis que a própria Lei não conhecera. VACA PROFANA: Dizer, por exemplo, que um raio de sol em meio às trovoadas é sinal de mau agouro será prova, então, de sapiência quanto à detecção de leis? Antes de tudo, Mago Velhusco, fica sabendo ser isto exatamente o quanto escutei da boca de teu neto, o atual Mago em iminência de perder os ares do pulmão esquerdo... CINCO MORCEGOS: ... e do direito... MAGO APOSENTADO: Dizer o que disseste, Vaca Profana, não é prova de sapiência; antes, muito ao invés disso, é prova de desvelo e generalização − pelo que é burrice. (Retomando.) Explico: raio de sol em meio aos bosquejos da tempestade não é sinal de maus auspícios; é presságio da Morte; e nada mais se pode dizer. VACA PROFANA: Ora, ora, duas indagações te tenho a formular. CINCO MORCEGOS: Formula a primeira primeiro. VACA PROFANA: Presságio da Morte não são maus agouros? MAGO APOSENTADO: Presságio da Morte é presságio da Morte; e aí vem o ponto-final “.”

CINCO MORCEGOS: (A Vaca Profana.) Faze, embora exiguamente respondida a primeira, a segunda pergunta. VACA PROFANA: Por que é burra toda forma de generalizar? (segundo disseste). CINCO MORCEGOS: Nem todas serão burrice... digo, se para toda regra houver uma exceção. MAGO APOSENTADO: Destes-me subsídios à retórica: se PARA TODA REGRA HÁ UMA EXCEÇÃO, como bem o disseste, logo, ou há aquelas para as quais não há exceção, o que é a exceção desta própria regra (não haver exceção), ou, em caso distinto, nem todas as regras têm − como dizeis − sua exceção... porquanto a regra mesma que, de peito estufado, propala: “Para toda

regra há uma exceção!” , há de ter, mercê do que apregoa por si só, a sua exceção, que será, pois, alguma regra ausente de exceção, sendo, portanto, destrutiva de si própria, automortal. VACA PROFANA: (Pensativa e à parte.) Mas isso por um lado... MAGO APOSENTADO: Claro, minha filha, claro: por outro, por conseqüência, para que, de fato, toda regra possua sua exceção (admitamos que possuam ainda), não se pode enunciar nunca tal frase: “Para toda regra há uma exceção!”. E assim o fazendo até há possibilidade de ser isso verossímil. É portanto uma possibilidade − pouco provável, talvez... − que só se manifesta na ausência completa de enunciação formal de seu próprio conteúdo. Palavras que são veneno. O fundo elimina a forma. É matéria sem fundo. É conteúdo que, para existir, se é que existe, só pode existir em forma (ou sem forma) de conteúdo: se virar forma vira nada. E se virar nada, vira TUDO. E, tendo dito, retiro-me. (Sai.) CINCO MORCEGOS: Logo, toda generalização será, isto mais que tudo, BURRA? VACA PROFANA: É a senhora vossa mãe. CINCO MORCEGOS: Quem não sabia? E do Castelo Perigoso?

CENA VII - Castelo Perigoso.

FADA DE NEGRO N. 1: Havemos de nos regalar com tão doce iguaria desgracenta, irmã? FADA DE NEGRO N. 2: Silêncio! Antes de tudo, silêncio! A fala é prurido que atrai, muita vez, coisa nefanda. (Calma.) Havemos de nos regalar com o banquete da derrocada daquele Mago. (Respondendo.) Sim. FADA DE NEGRO N. 3: Quem, de longe ou perto, haveria de ouvir-nos? (Gargalhada estrepitosa.) FADA DE NEGRO N. 2: (Rompendo.) Mago da Corte. FADA DE NEGRO N.1:

Mais fácil será que sejamos flechadas pelo ardil dos morcegos cegos da floresta que por dardos de um tal Mago extinto, acabrunhado pelo medo pânico, estipêndio do prestígio perdido em charcos e bosques da tradição morta... Azinhavre nefasto e sortilégio pulcro, adoçado... Ressurgido ao que pensa de uma fétida e nebulosa fumaça de gases... Morrendo... FADA DE NEGRO N. 2: É aos extintos que devemos dispensar maiores atenções, atenções redobradas. Não aos que, crendo-se poderosos, descuidam de si mesmos, abrindo guarda, então, a que nós a eles cheguemos. Destes não é preciso ter medo! Destes deixemos que a soberba ela mesma se encarregará da derrocada final. FADA DE NEGRO N. 1: Os que se extinguem, esmaecendo em tintas vivas a colorações pardacentas e pálidas, a estes olhamos cuidadosos? é isto que insinuas ser prudência? FADA DE NEGRO N. 3: São o protótipo da fera oriunda do recuo? Cuidadosos é que não deixarão, em tal estado, de ser. FADA DE NEGRO N. 2: São o estereótipo do bicho acuado que reduplica as garras e afia os dentes em decuplicado apuro. Suas atenções se tornam, aí, em verdadeiros tentáculos, em patas de aranha que agarram a mosca de tal maneira, que é impossível já voar... FADA DE NEGRO N. 1: Medo de um mago que, bem o sabemos, de uns poucos dias não passa? FADA DE NEGRO N. 2: Precaução. FADA DE NEGRO N. 1: Medo? (Entra, sem pompas, Tensão.) TENSÃO: As Fadas brincam? TRÊS FADAS DE NEGRO: Dançamos. (As três sentam-se em círculo no chão, coreografando, com braços e cabeças, um arredondado balé em que se funde, à beleza, a agrura e o sombrio.) TENSÃO:

Mas trocam invectivas e contumélias? (palavras de fancaria atestada) ou é com o som lábil do exultamento que vos divertis, bailando? (Gargalhada estrepitosa.) TRÊS FADAS DE NEGRO: A união de tudo, de tudo, de tudo... (Entra um filete tenacíssimo de luz por brecha do palco.) TENSÃO: A luz. Infamérrima luz... FADA DE NEGRO N. 2: (Apavorada.) Saiamos, irmãs, saiamos enquanto pudermos! FADA DE NEGRO N. 1: Se há alguém que, graças a esta luz, há de morrer, este alguém não seremos nós: ou a rainha ou o Mago serão levados para o frontispício da vida. (As três levantam-se, instaurando certa azáfama no palco. Desordenados.) TENSÃO: Afligi-vos pelo que a vós não foi sequer designado. TRÊS FADAS DE NEGRO: Afligimo-nos pela presença corrosiva d’Ela. (Saem de cena.) VENTO: Rasga a rua e rói a neve nova e cheia − Lua... Nada se encaixa nem serve à indecência crua que, breve, avara, nívea... menstrua... e saem raios, muitos raios da sua mesma cara. Iluminai-os por contrastes, Ó Ser em quem se derrama gota a gota como a trama

calma e manirrota a avareza que doastes... Jura-se indelével, que nada a pode tocar, nem ter: se é branca, frágil, que ser, quem a poderia mover? Mas singeleza não tem cor, nem ar, é cinismo; virgindade não estampa − quando vem do alto ou do abismo − estigma, emblema: desce com eles à campa. É como dor: sente-se o quanto é boa quando pára, e nem se lembra mais o antigo problema que fustigara − é um antigo, inexistente problema − apenas quando pára. TENSÃO: Mas, conquanto não vendo, estar temendo, é desgaste... Ponderaste? VENTO: Há quem veja − duvido − mas descreia, por exemplo, que vidro seja − feito de − areia? TENSÃO: Falas com a tamanha autoridade como quem vertesse em veleidade a vontade-cariátide desse Pórtico de mármore Importado de Évora... Como se tirasses de árvore A seiva elaborada de uma canéfora! VENTO: É um pouco, E nada além, Do que, louco,

Faço, e bem. FADA DE NEGRO N. 1: (Entrando aos gritos.) Batalha! Batalha! VENTO: (Calmaria.) Ah! Timeo lectorem unius libri. TENSÃO: Tememo-lo todos... FADA DE NEGRO N. 1: (Senta-se.) Pior que o arrogante, o arrogante desinformado. VENTO: Inculto. TENSÃO: Ignorância, docta ignorantia!

OXÍMORO: (Ao largo se ouve, de sua voz, o matiz cogniscível apenas mercê do tom meio empertigado, embora humilde.) Bendito seja o maldito ignorante que conhece profundamente rasteira a própria sapiência conquistada por méritos do próprio nascimento. VENTO: Tememos os que, lendo um livro (e só), designam-se professores. OXÍMORO: Feliz da arrogância em cuja humildade se vêem tintas fortes de timidez, de aquiescência mesmo... VENTO: Perto de Totum, qual o homem que se não pode tachar de mentiroso completo? Falar é por si só uma mentira: falar é fabulare, é fábula, é mentir... FADA DE NEGRO N. 1: Nenhum homem que desconheça o vício de ser um grande ator poderá, neste mundo ascético onde vive, ter-se algum dia por talentoso completo: a mediocridade e o dinheiro sempre o rondarão, espreitando-lhe a alma, ou o corpo, ou ambos, ou nenhum dos dois (o que é pior, por ser tentação invisível), ou seja assim feito. E depois, quem há de sofrer jamais tão venenosa privação? quem há de, lúcido, julgar-se louco? Ora, o louco me parece mais sensato exatamente por conseguir ver em si mesmo o outro lado de sua própria efígie.

Porque um louco pode ver-se lúcido. Mas um lúcido ver-se louco?... Mas quem? E, juntos, homens haverá que sentirão morrer-lhes as derradeiras forças; juntos − são tão fracotes! −, sentirão partirem-se-lhes os pequeninos dotes como sombras; juntos, veremos o acabrunhar-se de nossos próprios dons... Se bem que estes, os pequeninos atores, estes nunca existiram de verdade. Não em sua integridade moral. TENSÃO: (A Fada de Negro n. 1, sentada, ainda.) Amiga, que esperas? FADA DE NEGRO N. 1: O trovão, a sentença, o exorcismo é o que virá. DUAS FADAS DE NEGRO: (Apenas as vozes são ouvidas.) Anda, anda... que trovões, caindo uma vez, é no recrudescimento da segunda que trazem o dissabor saboroso da Morte! OXÍMORO: Acridoce?

TENSÃO: Ai do Mago da Corte: não salvar a rainha, cujo prognóstico infeliz se faz contundente com esta luz fibrosa que nos trespassa, não o fazendo, pobre diabo, é à Morte que se lhe darão os restos, antes mesmo de restos serem... OXÍMORO: Morte em vida? DUAS FADAS DE NEGRO: (Entrando. Aos gritos contidos.) Vida! Vida! TENSÃO: Vida. FADA DE NEGRO N. 1: Vida! (Troveja.) FADA DE NEGRO N. 2: (Aproxima-se da Fada n. 1 e a puxa pela mão, levantando-a.) Sobranceira, soberba! não escutas o perigo? Levanta, criança malsã, e vem conosco antes que sejas delinqüida. FADA DE NEGRO N. 3: (Dócil.) Apropinquando-se, quem nos afastará d’Ela?

FADA DE NEGRO N. 1: (À Fada n. 3. Ironia se lhe desprende do intestino à boca.) Há razão para o temê-la? Quem é Ela? Diz-me. FADA DE NEGRO N. 2: (Sobejamente agastada tanto com a situação quanto com o contexto.) Ah! Maldição que nos afasta a nós, irmãs que somos... Parai, as duas! Não vedes estardes sendo vilipendiadas pelo perfume azedo gorgolejante das entranhas... OXÍMORO: Perfume azedo. FADA DE NEGRO N. 1: (Ao Vento.) Tuas palavras inolvidáveis, Brisa, me soam frias como a neve que evocaste... Tu murchas as folhas do outono, tu morres os pássaros da primavera, tu enlanguesces cada abutre, não vês?, e corres as lebres vulturinas, pejadas de temor. (A Oxímoro.) Lebres vulturinas! ouviste?

OXÍMORO: Perfeitamente mal. FADA DE NEGRO N. 2: (À Fada n. 1) É chegada, de há muito, a hora da partida: apressa-te em ir embora, sangue impuro de minha genitora. FADA DE NEGRO N. 3: Sempre foi, das três, a indomável, esta aí... FADA DE NEGRO N. 2: É de severamente castigados que nascem os domados. FADA DE NEGRO N. 1: Diz mais! VENTO: Troveja. FADA DE NEGRO N. 2: Castigar-te será o júbilo de minha alma sequiosa. Aprende que o que se conquista com severa pena e trabalho com doce descanso e harmonia se mantém inabalável. FADA DE NEGRO N. 1: Vai, vai...

FADA DE NEGRO N. 2: Não existirão jamais ademanes bastantes a me fazerem expressar, sendo úteis como são, o furor de mim, o ódio em mim. (Troveja.) FADA DE NEGRO N. 1: Escuto tuas palavras com o coração imundo de orgulho santo... OXÍMORO: Coração imundo... FADA DE NEGRO N. 2: Pudesse eu, matar-te-ia aos poucos. OXÍMORO: Orgulho santo? (Cortando.) Não. Esse é válido!

FADA DE NEGRO N. 1: Depois... FADA DE NEGRO N. 2: Quiçá beberia tua linfa inauferível. FADA DE NEGRO N. 1: Quanto a meu estômago? que farias dele? FADA DE NEGRO N. 2: (Descontrolada.) Transformação em pedra fedorenta, em concreto inaudito e rascante, em vinagre mesquinho e fervente e acerbo... (Gritando.) Metamorfose eterna em despudor. É à Morte, quero falar, a quem deves reverência. FADA DE NEGRO N. 1: (À Fada n. 3. Fala baixo.) Corre, corre, e arranca dela o fel... (Fada n. 3 executa o que lhe ordenou sua irmã, a Fada n. 1: corre, com um tubo de ensaio na mão, à Fada n. 2 e, dela, retira qualquer coisa entre o vermelho, o azul, cinza... incinerando ares de podridão no ar. Aquele filete de luz, alígero e dissimulado, mantém a discrição. Em silêncio absoluto, as demais − as demais! − luzes do palco apagam... ...Se me fosse pedido, agora, descrever a sensação que entorpece os atores embrenhados no negrume do palco, diria eu, sem economia: Voltaram à inocência que vem ora do desconhecimento da existência de um “mal” presumível, ora da libertação que se tenha, por força da purgação sincera − e atendendo a que o haja de fato −, quanto a este mesmo “mal”. “Mal”?)

OXÍMORO: (Grandiloqüente.) Simpatia Malevolens. (Troveja. O palco está negro; o que é bom.) TRÊS FADAS DE NEGRO: Não importa como: voltar ao estado primeiro é sempre a retirada do peso da alma. OXÍMORO: Alma? Peso? TRÊS FADAS DE NEGRO: (Gitando!) Arredado nos foi! (Dois minutos são suficientes.) OXÍMORO: Revertere ad locum tuum? TRÊS FADAS DE NEGRO: A beleza do puluis et umbra sumus...

(Devo uma explicação? “Embora não estejamos entendendo muita coisa, sim, devei-no-la!” Antes arrefeço, contudo, se é que me permitis... “Como já tenhais começado, prossegui agora...” Agradeço! Bem, o fato é que as fadas nigérrimas que por ora − e com certa graça − habitaram o palco, estas são inimigas naturais, eu diria, até, êmulas do Mago da Corte. Inveja? Despeito? “Inveja? Despeito?” Sim. Ou, talvez. Mas já reparastes a falta de motivos completa que carreia, por sem dúvida, a emulação? Pois por isso eu afirmaria: há uma rivalidade imanente. “Motivo!...” Se o houver, desconheço... Em tentativa de desmerecer o Mago aos olhos do Rei, as Três Fadas, tendo por certo o amor do monarca à sua esposa, envenenaram-na com o líquido mucilaginoso que outrora verteu da veia de sua irmã mais, digamos, agressiva − a fada n. 2, a irmã do meio. “Foi só?” Não. Depois de envenenada, não satisfeitas e visando ao aniquilamento completo do rival, as fadinhas tiraram-lhe, em acordo com o deus dos trovões, a força suprema que enchera, ontem, o orgulho deste tão velho Mago de vaidade... (o dom da profecia). “Começa a se nos aclarar o sucedido!” Muito bem: agora poderemos prosseguir. “Não! Envenenaram a rainha e tiraram o dom ao Mago. E agora?” Com medo de ter sido insuficiente a dosagem de fel minstrada a Sua Majestade, elas, as Fadas, colheram novo quinhão, um talho definitivo, a fim de lhe trucidarem a vida. Ademais, como houvessem prometido ao deus dos trovões a Princesa de pagamento, este deus, furibundo, espera ser imediatamente pago, antes de esvanecida sua paciência... “Jamais vimos fadas tão malévolas.” Acaso não conheceis os atores? “Conhecemos os músicos.” Basta! Basta! Por gentileza, é o bastante, não me façais sofrer assim, ó não. Mas esta explicação em nada ajudará a que se entenda “melhor” o espetáculo.)

CENA VIII - Casa do Deus Brontos, o dos trovões.

CORO: (Este coro é à Eurípedes: os componentes, femininos, não falam simultaneamente, senão, sim, seqüencialmente, como que devaneando, travando diálogos entre si, discorrendo sobre fatos cênicos que, de um modo, tartamudeiam e claudicam, fluem intermitentes, são opacos, baços à platéia. Úteis por isso? Espontaneidade coral.) Ó tragédia prestes a ocorrer! Ó infelicidade! Quão enorme não é a fúria do deus habitante deste palácio! Acalmemo-nos, arrefeçamo-nos... É hilário o frigir da calma; julgas, alguém, que haverá, por parte de Brontos, uma apostasia quanto ao pagamento por ele às Fadas exigido? Se o faz, norteias-te por certo com a bússola enviesada e torpe do “esquecimento” do deus dos trovões. Ah, ah, ah, tamanha prova de bestialidade... onde haverá? Veremos o enfermo do deus tartamudeando, gaguejando em estrondos. Mais além, escutar-se-ão os terremotos, as avalanches, o arco-íris. Nada será em vão. (Troveja. Entra Morte. Sua indumentária é clara e austera. Em seu séquito, pouco numeroso, algumas Vestais foguentas.) MORTE: (Ao coro.) Onde está? (Quem responde são as vestais.)

VESTAIS: Muito provavelmente ainda no leito. MORTE: O que é isto?! Já vistes que horas são? VESTAIS: Mestra, que viemos fazer aqui de tão urgente? Qual razão haveria para a aflição de teus olhos? MORTE: Brontos me mandou chamar. Isso já é motivo de, no mínimo, grande desventura a me rondar os terrenos.

VESTAIS: (Aduladoras.) Quem pode vencer-vos, mestra? MORTE: Qualquer um. Basta saber que o pode, e o poderá. (Troveja.) CORO: Melhor deixá-lo dormir. Não o acordemos por nada. MORTE: Melhor assim. (Entra um filete de luz. Junto a tal, uma voz de cava, que denominarei, por isso, “Rouquidão”.) ROUQUIDÃO: (À Morte.) Dulcíssima ama, encarregada estou de dar-vos uma notícia. MORTE: Dá. ROUQUIDÃO: Sabeis que sou vossa porta-voz, vosso arauto fiel... MORTE: É favor largar os prolegômenos, os preâmbulos, e dar o que vieste me dar. ROUQUIDÃO: Brontos, o trovão-mor, desconfiando de estar sendo ludibriado pelas Três Fadas, mandoume vasculhar o palácio do Rei, mandou-me abrir caminho para vós, ó mestra, para que, se um certo pagamento não for efetuado, vós possais adentrar naquele castelo e retirar-lhe um membro qualquer, como forma de indenização. Entendeis? MORTE: Parcialmente. Que espécie de pagamento está sendo invocado por Brontos? ROUQUIDÃO: A Princesa. MORTE: Em pessoa? ROUQUIDÃO:

Viva. (Um silêncio agourento.) MORTE: Para quê? ROUQUIDÃO: Para emprenhá-la, dando seguimento à sua geração trovejenta. MORTE: E se a Princesa não for enviada pelas Fadas?

ROUQUIDÃO: Brontos exige que minha ama desça e escolha, a esmo, um membro do palácio... exceto a Princesa e a Rainha: esta, pois que tal acontecimento satisfaria às Fadas mentirosas; aquela, porque, (Em segredo.) parece-me, Brontos estaria experimentando as águas do amor graças à tal princesinha vesga. MORTE: E se eu a trouxer? Brontos não poderá casar-se com ela? VESTAIS: Naturalmente não poderá, ó Morte! ROUQUIDÃO: Naturalmente não poderia... Nenhuma criatura trazida por ti, nem mesmo a favorita de Brontos, pode permanecer neste recinto. É a Lei de Totum! MORTE: Compreensível. VESTAIS: Silenciamo-nos ante a exposição de idéias que fazeis, Rouquidão. CORO: É o melhor. É o melhor. (Troveja. A fenda some.) MORTE: Bem, se não há o que eu possa impedir, vou novamente ao palácio do Rei... o que, entre nós, faz-me lembrar de outra ocasião assaz parecida. Assim é o passado, imitando o presente.

CORO: Se um acontecimento morboso infestou os salões do castelo, é à memória que se tem de recorrer. BRONTOS: (Entrando Imponentíssimo, Fortíssimo.) O que há?!

CENA IX - 400 anos atrás.

Tudo faz crer que o calor de uma batalha é o que inflama os ânimos, já congenitamente exaltados, de dois cavaleiros em cena: Dom Insano II e Príncipe III. −Filho do Rei? −A que Rei vos referis? −Dom Insano II; a ele próprio foste alusivo? −Sim. −Pai e filho em querela? Um e outro se digladiam mutuamente? −Um ao outro deseja a Morte. −Virá? Esta virá? −O teatro não é a apoteose dos personagens? Deixemo-los dramaticamente falar, − muito embora eu os odeie tanto.

DOM INSANO II: Mato, sim; mato, e depois esfolo, ainda por cima... PRÍNCIPE III: Passa antes por sobre o meu cadáver! DOM INSANO II: Coisa besta e fácil... (Pára.) Pensando melhor, di-lo por conheceres as limitações que se me impõem por meu coração débil. PRÍNCIPE III: Antes a debilidade do coração do que a indiferença − ou, pior, o medo − travestidas, ambas, de força. DOM INSANO II: (Irônico.) Ai, como ele é bonzinho... qual donzela infanta e apaixonada...

PRÍNCIPE III: Deves-me respeito como filho que te sou. DOM INSANO II : (Sopesando a espada.) É a isto que devo respeito? PRÍNCIPE III: Deves fazê-lo quanto a isto sem prescindir daquilo... DOM INSANO II: Aquilo?! PRÍNCIPE III: Eu sou aquilo. DOM INSANO II: Qual a tua classe, criatura. PRÍNCIPE III: Finjo demonstrar, quando, na verdade, sou substantivo em quanto afirmo. Sou a própria coisa − Realeza tua − travestida em sombra demonstradora (“teu filho”...), que não sou . Por isso “aquilo” é “eu”, a essência de tua abstração. DOM INSANO II: Mato; mato e depois esfolo, que é para servir ao povo de exemplo e infundir-lhes pavor (verás como há de perdurar minha atitude). PRÍNCIPE III: (Cessando o tom exaltado, o que quebra de uma vez a, então, ex-acalorada peleja: impressiona-nos que, quando um não queira, não caiam dois em desavença?) Este Mago, meu pai, cuja caveira anseias, sedento, por ver, é-te um irmão. DOM INSANO II: (Cabisbaixo e de cabeça baixa.) Isto é escrúpulo que ainda hei-de vencer. Endurecei-me o fígado, ó deuses, fazei-me empedernido e, ao largo, mui fremoso como as camélias e mui feroz como os leões. Pode ser? As culpas, hei-de aniquilá-las? Como Medéia, hei-de vencer a moral? PRÍNCIPE III: Por que insistes no hífen entre “hei”e “de”? DOM INSANO II: Porque estamos em quatrocentos anos atrás... Por sinal, é o que me faz tolerar tão pouco tua petulância, justificando a hediondez do ato que estou por cometer!

PRÍNCIPE III: (Empunhando a espada. “Volta a luta?” Volta!) Por cima dos miasmas de meu corpo extenuado e morto: ergue tua lança: não te será poupada, ainda que se me decalque nas gerações o cruento mórbido do parricídio, a morte, se o for, esta, em prol de um tão fiel escudeiro, qual te tem sido sempre o Mago Xilifipóti. Ademais, o futuro que muito me perdoe: ser-me-á bom lembrar o hoje − isto é, o passado −, se este promover a colheita do então hoje − isto é, o futuro. Tendo êxito, até que as desgraças passadas se conseguem fantasiar (e bem!) de memoráveis lembranças. (Entra aflitivamente Rainha Santa Praxedina, interpolando-se a pai e filho em batalha.)

RAINHA SANTA PRAXEDINA: Parai! Em nome de sei lá quem, parai! PRÍNCIPE III: Mãe?! RAINHA SANTA PRAXEDINA: Por sem dúvida. Cessai, dois, filho, marido, este prélio, e regressai ao palácio, de mãos dadas: peço-vos. PRÍNCIPE III: Não, minha mãe, não; conquanto te seja unívoca minha admiração (quantas virtudes inauferíveis não tens? quantos desapegos do ascetismo estulto não demonstras?), não regresso a nada sem antes ter a decisão de meu pai. (A Dom Insano II.) Darás cabo da vida do Mago Xilifipóti? DOM INSANO II: (A Rainha Santa Praxedina. Amarelo.) Foi a mim que uma sorte de besta e mosquito se dirigiu? RAINHA SANTA PRAXEDINA: Por que, ó esposo, desejas a morte a teu comparsa de antanho? DOM INSANO II: (Penseroso.) Prometeu-me estufar o peito de fé tão cega e pujante, que poderia eu arremessar-me, sem temor, do cimo do mais alto monte alcantilado de meu reino... e não morreria. Hoje, pois que hoje existiu, não verás inseto pífio que não consideres trazer a mim o horroroso pânico que donzelas experimentam ante a lança da Morte (ou ante a morte da lança?)... RAINHA SANTA PRAXEDINA: Pediste fé? DOM INSANO II:

Quem tem fé demanda fé... PRÍNCIPE III: Quem tem fé se dá ao luxo de abdicar dela, se em prol, por exemplo, de impedir que se cometam atrocidades... a mentira, o veneno, a miséria, a guerra, a peste, o escarmento ignominioso, tudo isso está assente com respaldo nos rincões do homem fiel... pois que fé não demanda fé, e prescinde de fortalecimento, digo, de falso fortalecimento (o que é reciclável não precisa de ajuda externa, senão, sim, só de si mesmo!), e de tudo o mais.

RAINHA SANTA PRAXEDINA: (Tira duas moedas do bolso.) Eis as rosas!... (Transformando-as, como se percebe − pelo cheiro − em rosas, não haverá quem não se incomode, ficando boquiaberto e de boca aberta.) CORO DE ATÔNITOS: Óóóóóóóóóó!... PRÍNCIPE III: A transfiguração que te há de denegrir e eternizar. DOM INSANO II: Amaldiçôo; amaldiçôo e depois esfolo em moral! De hoje à frente, assim o será a toda a geração infausta deste Mago embusteiro! (Príncipe e Rainha Santa Praxedina saem de cena. O palco está estranho; a platéia, com sono; eu, escrevendo; nós, aos trancos; alguém, lendo-me; ninguém, mal; a hora, chegada; o ânimo, redivivo. E prenunciar-se-á o quadro giratório e perpétuo − roda de fiar, pois − que virá agora.)

PANO

II

Sala de jantar anacrônica. Plácida.

TATARAVÓ-RAINHA:

A T O:

(Entra aos gritos e coices.) Arro! Arro! Arro! Quanto não daria eu, velhusca, para ter nos braços de novo o estrabismo de minha tataraneta, a Princesa?... quanto?!... IMPONÊNCIA: Vai e busca, antes, o antídoto à maldição que te lançou o Mago. TATARAVÓ-RAINHA: Como pôde, como pôde privar-me de, − mas tão boazinha que eu sou!..., − ver minha tataraneta?! Mago assaz cruel. IMPONÊNCIA: Por que te separou de tua neta, aquele Mago? TATARAVÓ-RAINHA: Porque muito me aprazia brincar de capacho com a barriga inchada dela. E ela adorava, posso garantir... IMPONÊNCIA: Só por isso te separou do teu anjinho?

TATARAVÓ-RAINHA: Só. MICROTUBARÕES: Vai, velha birrenta, e manda matarem o Mago: a maldição se desfaz em poucos segundos... TATARAVÓ-RAINHA: Força para isso não tenho, companheiros... nem que eu quisesse. IMPONÊNCIA: Mas há quem tenha. MICROTUBARÕES: Quem?! (Entra, mesclado de medo e autoridade, Mago da Corte.) MAGO DA CORTE: (À Tataravó-Rainha) Mula degradante, asco ambulante, sirene retumbante, focinho itinerante! Hás de padecer intermitente, pois mentes ao dizer-te inocente! TATARAVÓ-RAINHA:

(Com criancice e birra.) Eu não queria... não queria ver minha neta mesmo, eu hein! não queria... não... MICROTUBARÕES: Ah, ah, ah, essa é boa. O despeito se consubstancia, como o predissera o Mago, num focinho itinerante... (Entra um coral lamuriento; sentam-se; choram.) CORAL LAMURIENTO: A birra. Ó vetusta rainha, que outrora iluminou as alcatifas do palácio, diz-nos, diz-nos: que farás a merecer do Mago a cedência quanto a algo já tão bem imposto (o ter-te separado de tua netinha amada e pisoteada)? Responde! responde! TATARAVÓ-RAINHA: (Com soberba, referindo-se ao Mago.) Se os poderes, que esta criatura mágica tem, foramlhe suficientes para promover uma trama assim maldita − qual a separação de uma tataravó de sua tataraneta −, cedo ou tarde há de resolver-se com a imparcialidade da justiça, uma magia assim vicejante... CORAL LAMURIENTO: (Ao Mago.) Vês? não te apiedas de uma pobre vovó que não deseja senão ver a filha da filha da filha de sua filha? TATARAVÓ-RAINHA: Acho que exageraste. MICROTUBARÕES: Talvez tenham perdido a conta. MAGO DA CORTE: Ora! Parem, parem! Aos quintos com essa polêmica. Eis, agora, que me dirijo ao centro das luzes e do palco, a fim do recital de meu esperado monólogo, de meu solilóquio que, tão doce e melódico o é, mais seria uma ária... sim, assim o entendo: proferir-se-á, por mim, a zarzuela esplêndida... a protofonia coral de um homem só − em uníssono com TOTUM! (Todos os outros saem do palco, com as faces não exatamente iradas, embora planejando, mentalmente − apenas −, muxoxos, estalidos de insatisfação, cliques com tendências exíguas à transformação, a qualquer momento, em assuadas estrepitosas... Deixa-se o palco vazio.) MAGO DA CORTE: Infeliz eu sou infeliz, mil vezes mil, não passo de infeliz... Acusar-me, espectador, pode parecer o atalho mais atraente à exatidão, n’est-ce pas? O que me entristece é saber, contudo, que não conheceis da missa a metade, não sabeis de parte da minha história inglória, ecoando... e vos julgais suficientemente distantes a ponto de me poder enfiar em

julgamento, condenando-me por crime que, repito exaurido, não cometi. Enceno: “Separaste uma avó de sua neta”, direis; e dizei-lo com sapiência; desconheceis, entretanto, o que me impeliu a isso? “A Tataravó ensandecera? Mas quem não ensandeceu?” Não só por isso... (Todos nós já nascemos − ou nos tornamos − ensandecidos; o fato é que assim todos acabam.) Explico de uma vez: tendo voado o pneu da carroça, um dia, a hoje tataravó rodopiou com a carcaça que a engolira, e, freadas, dormiu. Sobre um cuidadoso vasilhame de papel talhado a mão e furtivamente lambido de tonalidade violácea e magenta, a mesa, cujas espáduas (arcaicas e quadradas) soçobravamlhe a audição, a mesa redonda de tampo, a secar com o vento fugitivo do tapete, a farfalhar como os copos de água pendurados recalcitrantemente pelo halo sob a soleira de escorredor de maçarico, a mesa, a mesa aflitivamente equilibrada sobre as bordas do papel. Dir-se-ia, se não se soubesse não sê-lo, ser, aquilo, aquele panorama da dispnéia auricular, uma sala de morte; mas que, muitíssimo embora a carcomerem a platibanda de uma essa, de um ataúde, vermes haverá de deixar ali, sendo a sala sarcófago aparente, vermes que, delicados e docílimos qual sempre têm sido, como o comprovou a mim mesmo o meu caro amigo Mêlampus, a sobrevirem... haveriam, contudo, de, apenas e tão-só, espreitar a putrefação da idoneidade de tantos móveis alérgicos. Sem o que fazer, verminhos dormiriam. Ah, majestade, com todo o respeito pouco e com a precisão de uma varanda litúrgica amparada por escombro e tipóia de ranço bendito, o cheiro que, nenhures, com o badalo do arfar se dissipava era de metade ranço, metade dente, metade a beirada de um peixe encarnado − e talvez algo carpa ou carpideira − amarelante e neo-zelandês (muita atenção a quanto digo: os australianos e comparsas são fenomenais!). Secou, a ingratidão, a brochura de um volume de estampas de escamas, e, em troca de subterfúgios, alçou vôo à parede; a ruptura, carbônica, expandiu-se em ácidos químicos e lúdicos, galgando escarpas traiçoentas e ventando cálices, cortinas, grãos, rochas, mares. A verdade: o tempo, este incréu arauto, não sabia se ventava, se fazia frio ou se mandava a outrem que fizesse um reboante sol. (Entra Religiosa) RELIGIOSA: Quanto (pouco) ainda a se dizer; pouco como a pobridade da areia e breve como pedregulho enlameado e cediço da noite das endoenças... Sexta-feira: exéquias rigorosas à morte em cruz. Que fazer? Aturdir os cães e as cãs com o fustigar curto da vara de víveres ou os ramos da sagrada família? A cabeça encanecida, cheia de milhões de fios novos, saibamo-lo, são boas novas evangelicalmente defensáveis; e pegadas de núpcias de domingo pascoal. MAGO DE CORTE: Se tivesse eu de escolher a hora de minha morte, escolhê-la-ia, por sem dúvida, esta exata em que ao meu lado cintila a pujança do estertor da fé. RELIGIOSA: Ai, caramba, quisera eu poder professar-lhes ora uma homilia que os curasse já antes da anáfora da missa da vida. Ai, toda a vida é um missal, apólogo cristalino da verdadeira

essência de TOTUM: os Dogmas Santíssimos e Beneditíssimos da Santíssma e Beneditíssima Pulcra Santa Madre Eclesia. (Geme e geme com profundidade artificiosa e olhos de santa.) Vejo auréolas pendendo sobre as cabeças bentas de vós todos, amados irmãozinhos doces... Sois como cordeiros papais na ceia de Pantagruel... (Entra Tataravó.) TATARAVÓ-RAINHA: Sabemos o quão mentirosos somos... aliás, algo ou alguém acima de nós é a única coisa ou pessoa de que ou de quem devemos ter medo: só isto ou este conhece ou sabe muito mais do que nós próprios a nosso próprio respeito. Este algo ou alguém é um nós que nós só conhecemos quando podemos não conhecer mais nada. Não é caso para querer, mas para poder. Seria caso para esquecer? Perguntais... NÃO. Porque em esquecer há também frenético exercício da memória. Digo eu que apenas no completo oblívio, no absoluto oblívio da vacuidade, reside o vosso TOTUM. No que, portanto, vos é, simplesmente, NÃO. Queres saber de algo, Mago? acho, de fato acho mais do que tudo, acho uma vergonha que se não tenha ainda abatido a morte ríspida sobre tua carcaça vergonhentopútrida! Fosse-me dado o voto, tê-lo-ia nas condições limite para te não enviar de uma vez para sempre ao limbo enferrujado, à lama, ao lodo... ao azinhavre verde do cobre...odeio-te tão pouco que tua presença me causa náusea e cócegas nos rins. MAGO DA CORTE: Responder-te à altura não posso, velhusca: teria de abaixar-me a um nível ao qual minhas costas jamais se precavieram. RELIGIOSA: O que há? Porque não vos perdoais mutuamente e deixais que a Consagrada Hóstia do entendimento vos amenizeis os corações ungíveis? MAGO DA CORTE: (Apontando para a Tataravó.) Esta aí, estás vendo? foi a única avó da história que, contrariando os índices avoengos, judiava ostensiva e frontalmente da própria neta. Pisavalhe a barriga que, à época, intumescia a cada segundo de gases e água parada e acridoce. Esteve, a Princesa, acometida por semanas de maldição incurável, incurabilíssima... não fosse eu e minha linhagem fiel à realeza desta família... a cujo cabeça, esta anciã, foi entregue a sorte. Ó desfortuna e desagrado... compadecei-vos novamente da vesga Princesa, edulcorando-lhe os cachos. (Religiosa sai com calma. Entra Inveja.) INVEJA: Perfídia! Sou extremamente mordaz e franca, já reparastes, senhores? Todo invejoso estufa as ancas e peitos e propala: “Sou franco! Digo!” Na cara de quem?... Eu, a súmula do sentimento humano da serenidade acuada e impotente, declaro aberto o tempo do diálogo entre vós dois.

(O relógio no fundo da sala − havia um relógio no fundo da sala − aparentemente badalará.) TATARAVÓ-RAINHA: Escutaste, criança desconexa? Menciona fazer as vezes de um carrasco, este velho cuco. MAGO DA CORTE: Mas é entre nós dois que se deve travar o diálogo. TATARAVÓ-RAINHA: Pois vem, vem... que medo já não me conhece mais. MAGO DA CORTE: Desde quando. TATARAVÓ-RAINHA: Desde quando, tendo dobrado o cabo das tormentas da vida, a Morte, aquele monstro hídrico de nove cabeças, já está comigo em crédito, de há muito, muito tempo. Não posso temer o que já me deveria ter carregado há tantos milênios... MAGO DA CORTE: É isso? TATARAVÓ-RAINHA: Quanto a ti, sabemo-lo tão bem, tens contigo o eterno temer por essa misteriosa dama: não sabes se ainda é cedo, tarde, tempo etc., etc. INVEJA: Sujo com meu fel as cores daqui. MAGO DA CORTE: Sentiria eu um fugaz queixume fantasiado de indiferença a revelar despeito?... TATARAVÓ-RAINHA: Só se for da parte de tuas próprias entranhas. MAGO DA CORTE: És mortal? TATARAVÓ-RAINHA: Com orgulho? MAGO DA CORTE: Mortal? TATARAVÓ-RAINHA: Mortal!

MAGO DA CORTE: Passaste do tempo de vigência nesta terra? TATARAVÓ-RAINHA: Como saber? MAGO DA CORTE: Sei, sei... teu mandato expirou? TATARAVÓ-RAINHA: (Mostrando de soslaio os dentes.) Não. Eu sou da família real! MAGO DA CORTE: Da família real... (irônico.) Tens decisão sobre o quê? TATARAVÓ-RAINHA: Mim. (Sai.) MAGO DA CORTE: És o projeto malogrado de uma eminência. Ainda que não queiras. INVEJA: E eu a circundar receosa e feroz o seu estômago... ai! (Sai.) (Entra, afobado, um Arauto.) ARAUTO: A Princesa quer ver-te, Mago. MAGO DA CORTE: (Claudicando, tartamudeando.) Manda aqui, mas... manda... vem com... ela? ARAUTO: Como assim? Por que o gaguejar insinua-te na língua? MAGO DA CORTE: Manda de uma vez por todas, antes de sumida minha paciência. Vai, criatura estranhíssima, vai e busca tua Princesa. (Arauto sai.) MAGO DA CORTE: Se o desespero não me rondasse a infidelidade de que se veste a culpa... ah! muito mais teria a fazer, muito mais do que simples magias...

(Troveja.) MAGO DA CORTE: Tramarias alguma coisa, deus do trovão? Intentarias, porventura, arremessar-te a esta casa? (Entra Tataravó, que saíra há pouco.) TATARAVÓ-RAINHA: Falando sozinho... MAGO DA CORTE: Velha, aonde foste? ouviste, de onde estavas, o ronco de Brontos? TATARAVÓ-RAINHA: Marca uma audiência com ele: Brontos, por consideração a esta casa real de que provém minha família, há de, em nosso nome, receber-te, Mago. Se bem que não haja muito o que ele, mesmo um deus que é, possa fazer por nós: nada é superior à morte (dizem que até o mais íntimo dos deuses a teme...). Dizem que até TOTUM... MAGO DA CORTE: Ai, cada pensamento que me invade é ácido mais corrosivo a consumir-me... Parece não haver saída nenhures. Se a Morte leva a rainha, como está indicando fazê-lo há horas e horas, no mesmo saco terá de levar-me a mim também, − um mago enforcado e humilhado... TATARAVÓ-RAINHA: Foge, foge enquanto é tempo; vai para as adjacências do reino vizinho, consegue um salvoconduto com o rei de lá e refugia-te em terras estrangeiras; que o Rei daqui não poderá contra ti. MAGO DA CORTE; Ora, ora, veríamos certa preocupação de tua parte para comigo? TATARAVÓ-RAINHA: (Cabisbaixa.) Sempre te amei. MAGO DA CORTE: Eu também sempre me amei, e nem por isso... (Entra Princesa, dulcíssima.) PRINCESA: Vó? Que fazeis aqui? MAGO DA CORTE: Apenas conversávamos, tendo, por tema, frivolidades.

TATARAVÓ-RAINHA: (Para a Princesa.) Amor, que fazes? PRINCESA: Neste momento falo. MAGO DA CORTE: Notícias de tua mãe?! PRINCESA: Nenhuminha. TATARAVÓ-RAINHA: De teu pai?! PRINCESA: Menos. Na verdade não estou muito preocupada em receber pormenores da situação que se desenrola em casa. Ah, Mago, antes de vir até aqui, os arautos de meu pai parece que disseram algo sobre um encontro que terias marcado com o Rei. Apressar-te seria boa pedida... MAGO DA CORTE: Encontro?! TATARAVÓ-RAINHA: Esqueceste? MAGO DA CORTE: Estou certo de não ter marcado encontro com Sua Majestade, o Rei. PRINCESA: Não foi o que disseram. MAGO DA CORTE: Pois então devo de fato apressar-me. (Mago da Corte sai. Fica um silêncio pomposo entre Tataravô e Princesa.) TATARAVÓ-RAINHA: É, parece que choveu... PRINCESA: Parece.

TATARAVÓ-RAINHA: Ontem foi quinta-feira? PRINCESA: Por que perguntais? TATARAVÓ-RAINHA: Não sei. Tua mãe? PRINCESA: Doente. TATARAVÓ-RAINHA: Melhor? PRINCESA: Pior. (Troveja.) TATARAVÓ-RAINHA: Chovendo, o lago transborda. PRINCESA: Que lago? TATARAVÓ-RAINHA: Qualquer lago transborda. PRINCESA: Ah. (Pausa.) Quantos peixes têm o oceano? TATARAVÓ-RAINHA: (Apontando a mesa.) Quer jantar? PRINCESA: (Saindo.) Estou com medo do cachorro. TATARAVÓ-RAINHA: De qual cachorro? PRINCESA: Do primeiro que eu encontrar em minha doce frente. (Princesa sai. Mago da Corte, alguns segundos depois disso, entra.)

TATARAVÓ-RAINHA: Voltaste cedo. MAGO DA CORTE: (Com raiva.) Revela agora, velha infernal, revela o que te disse de tão importante a Princesa, tão importante a ponto de ter de mandar-me pastar nas charnecas do quarto do Rei... TATARAVÓ-RAINHA: Como... MAGO DA CORTE: O Rei não estava sequer acordado quando lá cheguei, e, tendo sido desperto, enfureceu-se ainda mais contra mim, jurando que agravaria minha pena caso morresse sua esposa odiada. TATARAVÓ-RAINHA: Um segredo grave. MAGO DA CORTE: Anda, revela, diz o quanto te contou a princesa. (O relógio dá duas horas.) TATARAVÓ-RAINHA: Nada que te importe, Mago. MAGO DA CORTE: Por que nada que me importe? TATARAVÓ-RAINHA: O que pode ter de relevância para ti uma conversa íntima entre tataravó e tataraneta? MAGO DA CORTE: Conversaram apenas sobre romancinhos da Princesa? TATARAVÓ-RAINHA: Precisamente isto. MAGO DA CORTE: (Avermelhando-se a olhos vistos.) O que mais? TATARAVÓ-RAINHA: Nada mais, nada mais. MAGO DA CORTE: (Vermelho.) Tu mentes com o nervosismo de quem diz a verdade.

(Entram, circunspectas o quanto possível, as Três Fadas de Negro.) TATARAVÓ-RAINHA: Mais três para jantar. MAGO DA CORTE: (Gritando muito.) Amaldiçôo, com o pouco da força que me resta, os homens que ousarem ter tocado na Princesa! TRÊS FADAS DE NEGRO: Resolvemos vir para a intercessão em prol da rainha. TATARAVÓ-RAINHA: Que amores. Femininas como a letra “a”. TRÊS FADAS DE NEGRO: Mago, por que não mandas vir a janta? MAGO DA CORTE: (Gritando.) Traz a janta. Daqui não saio mais: não vou mais ser engrupido... Quero ouvir todos os segredos que são segredados redundantemente a esta velha. TATARAVÓ-RAINHA: Então saímos nós. Vamos, fadas. MAGO DA CORTE: Parai! Sei quando devo sair de cena. (Sai.) (Entra Arredio.) ARREDIO: A pessoa acuada, esta reage de fôrmas imprevisíveis. TATARAVÓ-RAINHA: Mando servir o leitão. TRÊS FADAS DE NEGRO: Nem pense nisto! Viemos falar-te algo frigidíssimo (Orgulhosas.) como nós... ARREDIO: Sento-me à mesa. (Amesenda-se.) TATARAVÓ-RAINHA: (Suspirando assim longa como demoradamente.) Ai... quanto não escutamos a favor da mantença das décadas e décadas nesta Terra...

ARREDIO: (Gritando.) Garçom, comida. FADA N. 1: Queres ver tua neta? TATARAVÓ-RAINHA: Já vi, faz uns três minutos... por quê? TRÊS FADAS DE NEGRO: (Entre si mesmas, à parte, tresloucadas.) Já viu, já viu. (À velha.) Se te fosse exigido demonstrar o maior dos desejos enrustidos, que demonstrarias, pois? TATARAVÓ-RAINHA: (Tímida e arredia.) Ai, Fadas, que vergonha... ARREDIO: Estou aqui para isso... TRÊS FADAS DE NEGRO: Não, diz: não há ninguém que nos possa escutar... fala, fala. TATARAVÓ-RAINHA: Não sei. FADA N. 3: Anda, bruaca velha, diz logo que o nosso tempo é mais valioso que o teu. (Sai Arredio.) TATARAVÓ-RAINHA: Quero o Mago! FADA N. 2: Vagabunda! Vulgívaga! Meretriz! (Chora.) FADA N. 1: Dar-to-emos... FADA N. 3: Quere-o? TATARAVÓ-RAINHA: Só para sentir-lhe o peso da magia... FADA N. 1:

Te-lo-ás... TATARAVÓ-RAINHA: Ai. (Entra nos ombros de alguns garçons um suntuosíssimo banquete, em cujo seguimento, secundada por rosas e crisântemos, magnífica baixela de caulim e pré-porcelana.) VOZ: Jantar à mesa. TATARAVÓ-RAINHA: (Feliz.) Parece que os céus, os próprios céus tramaram-me uma comemoração. TRÊS FADAS DE NEGRO: Sentar-se à mesa é dar partida à felicidade. (Depois de assentada a baixela com a comidarada, entra Mordomo.) MORDOMO: Algo? TATARAVÓ-RAINHA: (Às Três fadas de Negro.) Esse aí também serve. MORDOMO: Sirvo. FADA N. 2: Preferes ele ao Mago? TATARAVÓ-RAINHA: Nem pensar. MORDOMO: Horda briguenta. Que há? Se não bastassem as iniqüidades assolando a alcova da rainha... Uma briga? que é isto senão a protuberância de orgulho e temor de um ser humano? Seres contendores são, sempre, sempre, aqueles em cujo escopo sobrevivem harmonicamente as conseqüências do orgulho e do temor. Se este encobre aquele, ter-se-á o que se pode tachar de covarde... mas não menos briguento. Ao invés disso, ao encobrir o temor, o orgulho, por seu turno (maléfico), traz à baila o inconseqüente, o tolo, o que se arremessa sem justificação ao abismo da imaturidade. Morrer: nada mais natural havendo, no fundo é a ele que nos prostramos. Melhor se o for com muito orgulho! TATARAVÓ-RAINHA: Este é que eu não quero nunca. Excessivamente são.

TRÊS FADAS DE NEGRO: (À Tataravó-rainha.) Tua vontade será humildemente satisfeita, desde que te mostres acessível a certos agrados.

TATARAVÓ-RAINHA: A quem? TRÊS FADAS DE NEGRO: A estas fadas que te servem. TATARAVÓ-RAINHA: Agrados concedidos. (As Três Fadas de Negro saem.) TATARAVÓ-RAINHA: Ora, ora... a tolice não poupa, ao que parece, nem o ardil das feiticeiras. A tolice ou a vaidade, ou as duas coisas... MORDOMO: A boca fala o que vaza do coração, nada além. TATARAVÓ-RAINHA: Extrapolando, nem sempre é esta a lei, caríssimo, nem sempre. A mente deixa escapar vez por outra os seus pruridos vocabulares... (Vão entrando lentamente alguns convivas. Uns tomam lugar à mesa; outros, em pé, conversam, discutem, riem, festejam. Azafamado, por fim, o Arauto da Princesa volta à cena.) TATARAVÓ-RAINHA: (Continuando.) ... então a boca se torna arauto não do coração, de quem é por natureza o mensageiro fiel, mas sim da mente, cujo ardil pode apoderar-se da piedade. ARAUTO: (À Tataravó-rainha.) Majestade arcaica, vossa filha, a rainha, não passa dos próximos minutos: respira com a dificuldade de quem tivesse carregado sacos de rocha e areia. Pensam, o Rei e sua filha, a Princesa, na possibilidade de haver passeios ob-reptícios da Morte em torno do leito da moribunda majestade. MORDOMO: Saio? (Sai.) (Os convidados provocam balbúrdia descomunal.)

TATARAVÓ-RAINHA: (Rindo. Levanta uma taça de vinho.) NÃO! Um brinde às tempestades de verão.

ARAUTO: Velha Majestade, acho que não compreendestes o quanto vos disse este humilde servo. TATARAVÓ-RAINHA: Já morreu? ARAUTO: Não. TATARAVÓ-RAINHA: Comemore-se, pois. Escutai, servo: nunca, por injusto que seja o mundo, um deus deixa sem vingança uma mulher... nunca! Cedo ou tarde (e antes cedo do que tarde), não há um deus que se não apiede por completo de uma mulher! Isto me ensinou Medéia, Lucrécia, Penélope... (Sai Arauto.) TRÊS FADAS DE NEGRO: (Entrando. À parte, sem que Tataravô as escute.) A hora é esta, a hora de plantar nova dose de veneno na rainha. TATARAVÓ-RAINHA: Falais consigo mesmas? FADA DE NEGRO N. 1: A hora de teres o Mago te é chegada... FADA DE NEGRO N. 3: Pensaste que este dia um dia chegaria? TATARAVÓ-RAINHA: Não... para ser franca convosco, não! a despeito de, no fundo, agradar-me sobremaneira esta idéia. Ai! Como é feliz o dia do divórcio entre o sacrifício e a recompensa! FADA DE NEGRO N. 2: (Engolindo fel: extravasando veneno.) Deixemos escapolir do álveo de nossos rios a água alterosa da justiça efetivada. TATARAVÓ-RAINHA: Enfim é chegado o dia em que me farto de recompensas...

TRÊS FADAS DE NEGRO: Recompensas... (Em nenhum momento − só a título de curiosidade − os convivas infames deixaram de lado o alvoroço perpetrado desde o princípio da celebração. No mais, silêncio.) (Troveja.) FADA DE NEGRO N. 2: Onde é o quarto da rainha? TATARAVÓ-RAINHA: Que queres com minha filha? FADA DE NEGRO N. 2: Velha tola! que quero... não mais que curar-lhe da doença fatídica o espírito! TATARAVÓ-RAINHA: O espírito cansado de minha filha não quer senão o silêncio, a quietude. Basta de nigromantes poções sobre ela. FADA DE NEGRO N. 2: O silêncio, a quietude, a tranqüilidade lhe será dada... TATARAVÓ-RAINHA: Como afirmas? TRÊS FADAS DE NEGRO: Somos nós quem tem consigo a panacéia... (Levantam o vidro contendo o fel venenoso que será ministrado à rainha.) Aqui, eis a cura de tua filha... TATARAVÓ-RAINHA: É de estontear a ação surda do trovão que me acomete as tripas... (Bota as mãos nas orelhas.) Se ao menos cessasse este estampido... se desistisse, ao menos... FADA DE NEGRO N. 1: Tolice: não vês que se trata de ódios febricitados e insurgentes de Brontos, no afã de enviar-nos o quanto antes a sua filha dileta − a Morte − a amedrontar-nos qual gatos desarmados? É estorvo! Tocaia! TATARAVÓ-RAINHA: Da Morte não tenho temor maior... TRÊS FADAS DE NEGRO: (Rindo.) Ah, ah, ah...

TATARAVÓ-RAINHA: Não tenho mesmo, de fato não tenho... (Troveja. Entra Mordomo.) MORDOMO: Senhoras, a Princesa manda que pela minha boca seja anunciado o incômodo que tal festividade causa assim a ela como a seu pai, rei, soberano. TATARAVÓ-RAINHA: Minha neta, como está? MORDOMO: A rainha? TRÊS FADAS DE NEGRO: Bastaria que nos deixasses ir a ela e curá-la-íamos. MORDOMO: A rainha já é de todo indiferente ao mundo. Moribunda completa. TATARAVÓ-RAINHA: É que a Morte a ronda. FADA DE NEGRO N. 3: Qual um angorá insidioso. TATARAVÓ-RAINHA: Assim mesmo... MORDOMO: (Para todos os que compunham o banquete ruidoso.) Bem, senhoras, senhores, cavalheiros, damas, meretrizes, cafetões, retirai-vos logo, pois estamos de pré-luto, a festa acabou. (Todos saem.) Dado o meu recado, retirar-me seria lúcido. (Sai.) (Entra Arauto, desesperado.) ARAUTO: Não vos enganarei, não vos enganarei... a rainha morre. FADA DE NEGRO N. 1: (À tataravó-rainha.) Ora, anciã ermitoa, velha decrépita, não vês a degenerescência de tua filha? não te condóis?

TATARAVÓ-RAINHA: (Medo.) Nem um pouco... (Em secreto.) Lembremos de que, entrando salvaguardadas no aposento de minha filha, dar-se-me-á o Mago... Ou não?! FADA DE NEGRO N. 3: Sim. Falamos, pois, mesma língua? TATARAVÓ-RAINHA: Nem variação dialetal houve, senhoras. ARAUTO: Bem, minha mensagem foi dignamente proferida. TATARAVÓ-RAINHA: (para o Arauto.) Volta, criança, volta para o teu ergástulo... que a sorte da rainha decido eu. (Às Três fadas de Negro.) Mulheres, ide, acompanhadas pelo Arauto da discórdia, à alcova pestilenta de minha neta... dai-lhe seja lá o que for... desde que me seja doado o Mago; desde que, de quebra, seja curada a rainha. Minha tataraneta, a esta, dai-lhe um castiguinho por ter tomado a atenção ao Mago por tanto tempo (quem sabe, até, desde sempre). Quem é uma mulher acuada? TRÊS FADAS DE NEGRO: (Alvoroçadas. Entre si próprias mas também ao Arauto.) Vamos, vamos. (Saem juntamente ao Arauto.) TATARAVÓ-RAINHA: Nunca há de morrer sedenta uma mulher... Antes a insanidade do que o pouco, do que a vigência do quase nada... a mulher, mulher, é saciada a contento por uma força motriz que a faz, sendo mulher, enfim, que a faz restituída da infâmia por que passou (e com que, porventura, igualmente tenha matado criaturas errantes, ainda que aparentadas). Agora, a propósito, que se me escutem os conselhos, os quais de minha generosidade intermitente navegam, ao mundo: antes, e em maior grau, não desprezar uma mulher é saber dar a si um pouco de segurança e sobriedade; escutar, ouçam, senhores, escutar uma mulher é, quando mais não seja, desprender limites e marcos divisores do certo e do errado-estético; não se morre de fome se se está junto a uma mulher; erguer os olhos ao céu é − antes de qualquer coisa − prestar reverência à mulher, que, como a terra atávica alimenta de seiva os seus bebês, assim essa mulher aleita de terra os seus brotos; e, agora, guarda lá contigo esta última e maioral lei: Quando morre uma mulher e o céu chora, é porque o inferno melhorou. Como não?! Como seria diferente?! (Ouve-se, ao largo, a VOZ da Morte, que entra com calma, sorridente, mantendo um saudável esgar desértico, plácido, constante, fluido, arejado, estéril.)

VOZ DA MORTE: É patente a sanguinolência de um meu mestre... Brontos pede cabeças. TATARAVÓ-RAINHA: Brontos não tem fome maior do que a que sempre o matou... por assim dizer... com o perdão da má palavra... (na verdade, faminto, Brontos sempre ofereceu, até, menor ameaça). VOZ DA MORTE: Ai, ai... às vezes é cansativo seguir os ermos e íngremes alcantis da imortalidade. TATARAVÓ-RAINHA: Se eu fosse, assim como tu és, uma deusa do sempre, não economizaria libertinagem. Os deuses, com efeito, em sínodos intermináveis de depravação moral, esses deuses... que hão de fazer após a audácia do confronto consigo mesmos?! Por outro lado, que orgulho há de estender um alguém que, de berço, tenha trazido as glórias que ostenta no peito assoberbado de pretensão. Ah! quão injusto é o encarregado pela distribuição dos fetos na barriga da mulher... quão injusta é a entidade a quem se atribui o desperdiçar criaturas viventes em ventres menores de amor, de sede, ventres de afã... Parar, senhora dona Morte dos desvalidos, é, tão-só (e nada além), frear o fluxo indene da caça em fuga instintiva de seu predador, em demonstração de alívio, de sede, ou de afã, − é o que quero presumir. Como entender que possa haver entes passíveis de abrir as asas − com cujas penas se sufocam − além dos domínios esféricos do próprio ninho onde se desenvolveram? Há? Por certo, senhora, por certo não houve, em tempo algum, digo, alguém que, nascendo circunscrito, tenha atingido o sublime dos pastos árcades, em busca de, lá, possuir chaves cabíveis a quaisquer salvações. E existem, por TOTUM, salvações?! Por Ele mesmo, não! VOZ DA MORTE: Aqui, velha temerária, pelo quanto dizes, até a mobília, madeira e pedra armada que não vivem deveriam então ser temidas aos píncaros da exaustão. Como acusar o destino pela fortuna degenerada que verga alguns? Como acusá-lo, assim, de responsável pela torpeza e uberdade dos miseráveis? Como convencê-lo de ele ter sido o próprio encarregado da desgraça em face da marginália? TATARAVÓ-RAINHA: É acusação que me não apraz e nem cabe. (Entra Morte.) MORTE: (Demonstrando extrema preocupação.) Verdade, verdade... Por que existes? Antes, e, principalmente, não se nos derramassem aos olhos teus encantos...

TATARAVÓ-RAINHA:

(Assustada.) Por Totum! Queres levar-me? Por todos os santos que navegam na atmosfera, pelo próprio Totum! Donde vieste, ser ermitão e aziago? Ser agourento, donde provéns, infausta criança maldita? Arreda pé daqui! Toma teu rumo de malquerença! Anda e sai! Não me levarás. MORTE: Troveja, troveja, deus iracundo... (Troveja.) Faz do meu o teu desespero, reflete em tuas entranhadas ânsias o declive vertiginoso de nossos destemperos e desatinos amedrontadores! TATARAVÓ-RAINHA: Quantos males não fiz, Totum! (Ajoelha.) Ai eu, ai eu, ai eu! Socorrei-me pela vossa misericórdia! MORTE: Se tivesses de morrer, arquivelha, morrerias a despeito de tuas imprecações, de tua lutulenta e mucilaginosa súplica. Pára, criatura suja: Brontos me não enviou a fim de levarte... ainda não é vinda a tua hora letal, ainda não, não ainda... TATARAVÓ-RAINHA: (Joga-se no chão, em cujo pó enterra a cara.) Não! (Entram Três Fadas de Negro.) TRÊS FADAS DE NEGRO: Êxito, êxito, êxito! (Vêem a Morte.) Morte?! MORTE: Êxito?! TATARAVÓ-RAINHA: (Com pieguice, para as Três fadas.) Vida? FADA DE NEGRO N. 1: (Desconcertadas, para Morte, disfarçando.) Levarás quem? Esta velha anciã?! MORTE: Não ainda. FADA DE NEGRO N. 3: (Com cinismo e firmeza.) Remédio injetado: rainha a meio caminho da cura!

TATARAVÓ-RAINHA: (No chão.) Por favor, Morte, por favor não leveis minha prosápia, nem a mim...

MORTE: Não vos levarei, senhora, não a vós. TATARAVÓ-RAINHA: E como podeis levar minha neta rainha se essas três santas crianças acabam de curá-la, como vós própria ouvistes? (As Três Fadas de Negro ficam um pouco sem graça, mas não sorriem, fecham-se.) São crianças benditas... MORTE: Não irei deixar descontentes estas três crianças benditas. (Com certa incisividade irônica, mas sem perder a placidez fluídica.) Fadas macabras e desemxabidas?... (Às Três Fadas de Negro.) Matar a rainha ser-vos-á o sumo da alegria, não? Pois não morrerá Sua Majestade. TRÊS FADAS DE NEGRO: (Cínicas.) Não sabemos nem de longe do quanto falais... TATARAVÓ-RAINHA: (Levantando-se.) Ai, por que não deixais essa conversa para uma hora mais apropriada? Por que não ides, por exemplo, para um rincão obscuro deste palácio? Ai. FADA DE NEGRO N. 2: Não vês, senhora, que é contra nós que te quer jogar esta senhorita Morte? Dás-lhe ouvido? Hum. TATARAVÓ-RAINHA: Minha filha remedeia a solução ao, curada, driblar com capa e espada o aguilhão da Morte. MORTE: Tua filha sucumbe passo a passo, como um caranguejo em assoalho de mármore molhado, como uma aranha sem teia em parede de gelo, como um escorpião sem rabo ou ferrão em superfície de lama. TRÊS FADAS DE NEGRO: Deixai-a em paz? TATARAVÓ-RAINHA: Não, Morte, não vades, não me deixeis a bel-prazer de loucas! MORTE: Não se entendem certas pessoas. FADA DE NEGRO N. 3: (Lágrimas vêm-lhe imediatamente aos olhos.) Sim. Que não tenha sido inútil a dose enfiada na rainha.

TATARAVÓ-RAINHA: Curar-se-á?! FADA DE NEGRO N.2: (Aproxima-se da Velha e a agrada com uma mão.) Sem dúvida. TATARAVÓ-RAINHA: Ó! Sou-vos grata. (Troveja.) MORTE: Escutastes? Brincais com Brontos? Achais ser isto possível? FADA DE NEGRO N. 3: Quere-o também, Morte? MORTE: Eu o temo, tolas, infelizes. Uma ova que ele sairá tranqüilo da toca, não deixando sulcos nas existências de nós... uma ova! FADA DE NEGRO N. 1: Senhora Tataravó-Rainha, a quem essa tal Morte vem importunar se, como ela mesma diz, nem é a vós nem a vossa neta, a senhora Rainha? MORTE: Adivinhai. TATARAVÓ-RAINHA: Já me indaguei muitas vezes, dez vezes por segundo... E somente a uma conclusão pude chegar: ó, ela está mentindo... TRÊS FADAS DE NEGRO: (Aliviadas.) É verdade... é mentira... FADA DE NEGRO N. 1: (Feliz, exultante, aos brados.) Ela está levando a Rainha, a Rainha! FADA DE NEGRO N. 3: (Partindo seca e ríspida para a N. 1, dá-lhe um tapa na cara.) Não se desespere, cara irmã, isto é calúnia. FADA DE NEGRO N. 2: Mas alguém... (Entra Princesa. Pausa. Silêncio. Troveja.)

TATARAVÓ-RAINHA: (Com súbita determinação e altivez. Para Princesa.) Ouves? Tu ouviste? Sabes o que é isto? PRINCESA: (Gritando.) Não! TATARAVÓ-RAINHA: (Ordenando.) Sente no teu coração de criança podre que há uma espécie de tremor radioativo imundiçando as prateleiras desta sala. Ouve no teu ouvido de menina amarga as trepidações ríspidas que já não se ocultam mais sob os escombros assombrados do passado... MORTE: (Com medo.) Que dizeis? Que dizeis? Ó Podridão, afastai-vos de mim antes que eu vos retire o ar, o alento, o agrado, antes que eu me arrependa de já não tê-lo feito há muito. TATARAVÓ-RAINHA: (Para Princesa, com extrema reverência e lentidão.) Filha, são os espíritos dos Homens Excepcionais... MORTE: (Arremete-se contra Tataravó, mas se contém um pouco.) Não! Mas como ousais tocá-los pela pronúncia! TATARAVÓ-RAINHA: Os espíritos dos Homens Excepcionais... MORTE: (Entre irada e entregue ao desânimo do que já foi desespero.) Não os conspurqueis... Deixai-os na caverna do Sagrado Brontos, dormentes... TATARAVÓ-RAINHA: O que eu digo, filha, não carece de argumento, porque o que digo ⎯ afirmo. PRINCESA: O que dizeis minha tataravó? O que tendes a pronunciar? MORTE: (Quase desaparecendo.) Não pronuncieis.

TATARAVÓ-RAINHA: Quem são os vosso homens excepcionais? Quem?! Quem são os vossos Beethovens, os vossos Newtons, os vossos Aristóteles, os vossos Shakespeares? Quem são eles? (Leve pausa.) Eu respondo: são eles precisamente os vossos homens excepcionais. Não são? Ora quem mais seriam? E o que fazem agora, agora que passaram por nós e nos legaram o convívio com suas verdades arbitrárias? O que fazem estes cínicos, dissimulados homens excepcionais agora, criança? PRINCESA: Nada. TATARAVÓ-RAINHA: (Acuada.) Nada?! (Pausa.) Sim, nada. Já não estão aqui, nunca estiveram aqui, apenas foram títeres obedientes de seus pobres (porém violentos e fortíssimos) cérebros enfermiços. Isso é o que são: títeres de suas próprias massas encefálicas. Esses vossos homens excepcionais nunca viveram de fato porque seus egos se fundiram numa espécie de gosma cerebral por eles mesmos criada, um visgo do Diabo. Eles encheram seus corpos de um lamaçal venenoso e sedutor, chamado ⎯ CRIAÇÃO! MORTE: (Levantando-se de seu estado letárgico, com súbita energia.) Eu sou a Mãe da Criação! TATARAVÓ-RAINHA: Vós sois a Mãe da Criação! E sois de fato. Toda a história da Criação destes homens excepcionais não tem outra bênção maior que não a vossa! Mas vós não sois a Mãe do Homem! Do Homem comum, ó Mãe da Criação, vós nunca fostes genitora! A humanidade não precisa de vossos Homens Excepcionais... MORTE: (Definhando de novo.) Por que dizeis?... TATARAVÓ-RAINHA: (Para Princesa.) Concordas? PRINCESA: (Gritando.) Sim!

TATARAVÓ-RAINHA: E toda a humanidade só vos trata com respeito e reverência, Mãe da Criação, por causa exatamente destes homens excepcionais. Por que, ora, o que seria o marco divisor entre vida e morte se não houvesse vidas excepcionais? Nada, essa tensão inexiste no fundo.

Uma vida excepcional, ou a ilusão subjacente ao espectro do que se chama “criação”, ora, esta vida excepcional não é o que gera generosamente a necessidade de uma morte igualmente excepcional? Sobressacralizar a vida com presunções de excepcionalidade significa ter de pagar à própria vida o eterno medo circundante da sua cara-metade, que não é outra senão a própria morte. Ora, ora, ora, o que buscam mesmo esses homens excepcionais, lá no fundo de suas tripas obcecadas? (Como se falasse em segredo. Lentamente.) Imortalidade... Portanto, existem duas mortes: uma, que sois vós, ilusória, é a criada pelos homens excepcionais, e é uma morte igualmente excepcional, fantástica, cheia de cisões do tipo céu-inferno etc., etc.; e outra, verdadeira, é a dos homens comuns, cujas vidas, comuníssimas, encerram em si mesmas o aplauso final de que precisariam... MORTE: É preciso haver homens excepcionais... TRÊS FADAS DE NEGRO: (Para Princesa.) Princesa, como está tua mãe? TATARAVÓ-RAINHA: (Com certa violência, classe e contenção.) Não, nunca foi preciso. Ninguém precisa dos homens excepcionais. Nem os próprios Homens Excepcionais precisariam dos Homens Excepcionais se não fossem estes últimos os que nutrem a inveja capaz de gerar naqueles primeiros a força do que também arbitraraimente chamaram “criação”... (Para Morte.) Entendestes? Mãe Ilusória! Tudo, tudo, tudo, sem mesmo excetuar o ar que respirais, tudo não passa de arbitrariedade a partir do momento em que é catalogado. Quem precisa catalogar um pássaro para sugar-lhe a mesma liberdade que o assopra pelos ares como um pluma? E, ainda assim, o que mais temos são hábeis catalogadores incansáveis da liberdade do Homem Comum, que é, este sim, um verdadeiro pássaro livre. Vossos Homens Excepcionais apenas são criaturas que sacrificaram e martirizaram toda a vida no frêmito desesperado, cego, obsessivo de impor aos cérebros menos fortes as idéias abstratas em que eles, Homens Excepcionais, encontraram refúgio. Catalogam, inventam... mas de uma forma ou de outra ⎯ impõem! Ora, e este refúgio não seria bom o bastante se permanecesse em seu domínio... Porque seus egos cresceram tanto, que esse domínio precisava ser exposto, antes que lhes explodisse as entranhas ainda mais cedo do que já explodiram... E por isso, num gesto que heroicamente se assemelha ao altruísmo, esses Homens Excepcionais impuseram definitivamente, como uma espada fulminante, seus cérebros fortes e cruéis a toda a massa da gente que rumina surda nos vergéis do horizonte plúmbeo. Estes são os vossos gênios. E nunca houve, escutai bem, nunca um único gênio incompreendido ou desconsolado em toda a história dos Homens existiu. Todos os gênios são gênios. O que pode ter havido foi a existência de Homens cujo cérebro não foi forte o bastante para criar o visgo letal de que seus próprios corpos se empanturrariam. Ah... mas como é engraçado o mundo dos Homens excepcionais... Dos Gênios!... Mas o que ficou mesmo sendo um gênio depois de Wagner?

MORTE: (Levantando-se com muita energia.) Basta! E quando a Morte diz “basta” significa que acabou! Que tudo acabou! E definitivamente! Basta! (Aproxima-se com fúria, porém lentamente, de Tataravô. Ao chegar perto dela, apenas faz uma careta e lhe mostra a língua, saindo do palco.) PRINCESA: Tataravó, temo horrivelmente que esta Morte nos venha com retaliações. TATARAVÓ-RAINHA: Vem nada, é uma medrosa, descansa, minha neta, essa já se foi. TRÊS FADAS DE NEGRO: Mas há um perigo maior. TATARAVÓ-RAINHA: Qual?

CENA II: CAVERNA DE BRONTOS:

BRONTOS: (Furioso.) Raios partam de meus dentes em direção a esta malfadada família... (Para Morte.) Sua burra! Nem pegar alguém mais tu sabes? Burra mesmo! MORTE: Ó Brontos, entendei que fui escorraçada por aquela megera, fui posta a termo, fui humilhada pela Tataravó de vossa Princesa... Como eu poderia ter continuado naquele recinto após tão pungentes e humilhantes palavras em relação a mim? Pior: em relação àquilo que nobremente venho fazendo desde o dia em que surgiu a primeira vida no primeiro rincão do mundo. Quando a primeira vida surgiu, o que fui eu encarregada de fazer? BRONTOS: (Interrompendo.) Cala-te! Não quero mais escutar uma palavra de tua boca aziaga. (Pausa.) Principalmente porque de um tempo para cá, não sei... não... mas me parece que... talvez... é... o clima anda muito tenso e sobrecarregado nestes ambientes, (Começa a rir.) e isto não me agrada... (Dá uma gargalhada, o que faz com que se escutem trovões altíssimos.) MORTE: (Aterrorizada. De joelhos.) Ó Brontos, não fiqueis tão feliz assim, eu vos suplico, não poderei suportar o ronco de tamanhas trovoadas... BRONTOS: Mas o que posso fazer? O que posso fazer se me divertem sobremaneira estas tuas

tentativas estúpidas e frustradas de seqüestrar uns e outros naquele planeta engraçadíssimo? (Dá outra gargalhada. Outro trovão.) Nem pegaste a rainha... VESTAL: (Entra apressada.) Ó grande Brontos, grande e inigualável senhor dos trovões, há uma figura ilustríssima instando em ver-vos. BRONTOS: Mas quem é? VESTAL: Trata-se de uma rainha, em pessoa, uma rainha daquele planeta engraçado... MORTE: Uma rainha do planeta Verus? VESTAL: Precisamente, uma rainha do planeta Verus... BRONTOS: (Como que filosofando.) Verus, Verus. Um planetinha. (Irônico, para Morte.) Aquele cujos próprios íncolas e selvagens habitantes conhecem como “terra”? MORTE: (Receptiva.) É sim... BRONTOS: (Gargalhando, com trovões por conseqüência.) Ha, ha, ha, ha, ha, mandem-na entrar, é a rainha moribunda, a rainha Walburga!!! VESTAL: Mas por que tanta felicidade ó Brontos? BRONTOS: Não vês? Não morrerá esta rainha, nem tão cedo: estar aqui significa que já pode ter sonhos normais, e que, portanto, está apenas cochilando... apenas dorme, leve e suave como um cisne branco... já não tarda em acordar... MORTE: (Subitamente entusiasmada.) Por que não lhe preparamos um sonho premonitório, um sonho que lhe revele a farsa das três fadas que a querem assassinar? BRONTOS: ... sim... sim... e com isso, ao acordar, a rainha descreverá, sem saber que é a mais pura verdade, o que tentaram fazer com ela enquanto dormia...

MORTE: E a rainha suporá ser um sonho o que, na verdade, é a verdade... VESTAL: As fadas hão de ficar horrorizadas com a perspicácia da rainha... BRONTOS: (Rindo.) Ai como isto é divertido. MORTE: (Rindo.) Imaginai a cara da velha tataravó... BRONTOS: Ai que coisa engraçada... Tentarem matar Walburga, o maior espetáculo vivente... Não vejo a hora de armar o circo!!! MORTE: Imaginai a cara do Rei... BRONTOS: ... do Mago da Corte... MORTE: ... da Princesa... BRONTOS: ... de todos os súditos do reino... MORTE: (Gargalhando.) Ai é engraçado mesmo... BRONTOS: Muito, eu não estou dizendo? MORTES: As caras de palhaço dos que assistirem à peça... BRONTOS: As caras de imbecil de todos os que assistem às grandes peças... VESTAL: Mas para que armar um espetáculo tão inútil? BRONTOS: (Recuperando-se.) Que burra! Que burra! Ai, minha Vestal, qual é o espetáculo que de fato não seja completamente inútil?

MORTE: Pra que serve um espetáculo? BRONTOS: Sonhos? Peças? Dramas? Comédias? Circos? Concertos? Exposições? Vernissages? MORTE: Tudo inútil... BRONTOS: Para que serve um espetáculo? MORTE E BRONTOS: Di-ver-são! BRONTOS: (Para Vestal.) Minha cara, nada é sério! MORTE: Nada é grave! BRONTOS: Nada é fúnebre! MORTE: Diversão justifica tudo! BRONTOS: Diversão é o fim! VESTAL: (Um pouco catatônica.) E então? BRONTOS: (Efusivo.) Vamos ao sonho! Vestal, vai imediatamente e me traz a rainha moribunda, e que ela se sente na primeira fila: o sonho é dela! Vamos reviver Walburga. (Bate palma, convocando os atores do sonho. Estes ainda não entram.) Atores, eis que o palco finalmente vos pertence. Entrai agora e tecei a urdidura da realidade nas tramas da arte! Vinde, grandes atores, homens comuns, mediocridade, glória, tomai vossos lugares no palco da convergência entre o que é sonho e o que não é... mas será... (Falando para Morte, como em segredo.) Este palco, querida, onde tudo se converge em um, só existe... na casa de Brontos! (Dá uma gargalhada. Troveja)

CENA III:

O SONHO DA RAINHA:

Participarão desta cena atores vestidos dos seguintes personagens: três fadas de negro, mago da corte, tataravó-rainha. Estes atores são os próprios que representam tais papéis, porém agem, nesta cena, como se estivessem presos, manipulados, num sonho, algo assim. Nunca são de todo naturais. São atores representando os próprios papéis da “vida real”.

(Entram três fadas de negro.) TRÊS FADAS DE NEGRO: Ó algazarra bendita! Com a rainha afastada seremos as poderosas da situação! FADA DE NEGRO N. 3: Eu quero as províncias do norte. FADA DE NEGRO N. 2: Eu quero as do sul. FADA DE NEGRO N. 1: Eu quero as do leste. TRES FADAS DE NEGRO: (Rindo.) E as do oeste eu não quero!!! Ha, ha, ha... FADA DE NEGRO N. 1: E como eliminarmos o mago maldito? FADA DE NEGRO N. 2: A única coisa capaz de neutralizá-lo é a impossibilidade de continuar adivinhando... FADA DE NEGRO N. 3: E também ser expulso pelo próprio rei, irmãs, vós sempre vos esqueceis da melhor parte. FADA DE NEGRO N. 2: (Rindo.) Ó irmãzinha, tu és a crudelíssima das fadas... FADA DE NEGRO N. 1: A rainha está doente... FADA DE NEGRO N. 2: ... o rei confia no mago para curá-la... FADA DE NEGRO N. 1:

... se ele não a curar... FADA DE NEGRO N. 2: ... o rei vira uma fera... FADA DE NEGRO N. 3: ... e o expulsa! TRÊS FADAS DE NEGRO: Perfeito! FADA DE NEGRO N. 3: Para isso, devem existir duas poções... FADAS DE NEGRO N.1 E N.2: Duas?! FADA DE NEGRO N. 3: Uma para matar a rainha, a outra para neutralizar qualquer coisa... no caso, a qualquer coisa são os poderes do mago. FADA DE NEGRO N. 2: Que genial... FADA DE NEGRO N. 1: Um gênio... FADA DE NEGRO N. 2: Prepara-se um veneno... FADA DE NEGRO N. 1 : ... e um neutralizador...

FADAS DE NEGRO N.1 E N.2: Um gênio! FADA DE NEGRO N. 3: (Com franqueza.) Nem tanto, meninas, nem tanto. É esta simplesmente uma lei naturalíssima: todo veneno é categoricamente a fonte do próprio neutralizador. Quando nasce um veneno na Natura, nasce ali mesmo um neutralizador geral. Um veneno ⎯ e toda uma neutralidade! Nunca leram Trithenius? Quem prepara venenos deveria saber disso, irmãs burras! E, assim, usaremos o neutralizador contra o mago e o veneno contra a rainha. Matamos duas lebres... Só um cuidado... (Pausa.)

(A luz apaga, logo em seguida acende, a FADA N. 1 tem um frasco na mão, a N. 2, outro. Há agora um caldeirão no meio do palco. A fada n. 2 vai até o caldeirão e joga o seu frasco aí dentro. Entra Mago da Corte. As três saem às pressas, ele não as vê.)

MAGO DA CORTE: Ó caldeirão, vim beber da fonte dos meus poderes. (Bebe do caldeirão.) Que estranho, sinto uma dorzinha no estômago, pequena... passageira (Arrota muito barulhentamente.) Pronto. VOZ DE BRONTOS: As fadas erraram e colocaram, no caldeirão de Mago, o veneno que deveria ser dado à rainha Walburga. Este veneno, no mago, não causaria maiores achaques... por ser ele um mago. Ao ter arrotado, então, o mago fulminou quase totalmente o poder do veneno que lhe fora ministrado. Ainda assim, por uns instantes haveria ele de perder seus poderes mágicos, aflitivamente... MAGO DA CORTE: (Para a voz de Brontos.) O quê? VOZ DE BRONTOS: Nada, este sonho nem é teu... MAGO DA CORTE: E vou dar um pouco da minha própria fonte de poderes à rainha Walburga, que assim ficará curada muito ligeirinho... he he he (Bota um pouco do líquido do caldeirão num frasco e o esconde sob as roupas.) Quero curá-la, para enfeitiçá-la... ela há de apaixonar-se por mim, chutar o rei, e eu serei o grande soberano! Eterno! (Entram as três fadas de negro.) TRÊS FADAS DE NEGRO: Olá, Mago. (Entra Tataravó-rainha.) TATARAVÓ-RAINHA: Olá, todos. (Mago sai.) TATARAVÓ-RAINHA: Fazei com que o mago me ame!

FADA DE NEGRO N. 3: Para isso, deixai-nos ir ver vossa neta... a rainha... FADA DE NEGRO N. 2: Tentaremos curá-la... FADA DE NEGRO N. 1: E conseguiremos... (Apaga-se a luz, quando volta, o palco está vazio e há um boneco com coroa de ouro, que é a representação da rainha que convalesce, na “vida real”, mas que sonha (entre aspas), na mesma “vida”. O boneco está num canto, como se fosse a cama.) (Entra Mago.) MAGO DA CORTE: (Ajoelha-se sobre o boneco e o faz beber o conteúdo de seu frasco.) Agora ficarás boa... (Sai.) (Dá-se uma longa pausa, com luz indo e vindo, representando a passagem do tempo.) VOZ DE BRONTOS: Por isso o estado da rainha se agravara... (Entram três fadas de negro.) FADA DE NEGRO N. 1: (Ajoelha-se sobre o boneco e o faz beber o conteúdo de seu frasco.) He, he, he... FADA DE NEGRO N. 3: Está escrito… FADA DE NEGRO N. 2: Vamos logo… (Saem.) (A luz apaga, quando retorna, estão no palco Brontos, Morte e Vestal.)

CENA IV: CAVERNA DE BRONTOS

MORTE: E assim tudo se acaba. BRONTOS:

O que a fada de negro n. 1 ministrou à rainha foi, na verdade, o neutralizador. VESTAL: E este acabou neutralizando o verdadeiro veneno... MORTE: ...que fora no fundo dado à rainha por nenhum outro senão pelo próprio mago. BRONTOS: A vida, sempre irônica. Aquele que a ia curar quase a matou; as que a queriam matar salvaram-na definitivamente... VESTAL: Tudo é um grande circo. BRONTOS: Um grande circo russo... MORTE: Uma grande peça... BRONTOS: Mas nada que não possa ser encenado por qualquer um. VESTAL: E é só isso o enredo deste sonho? MORTE: Bem simples. (Vestal sai, um pouco decepcionada.) MORTE: O que fazer? BRONTOS: (Rindo.) Esperar... (Gargalha. Troveja.)

CENA V: APOSENTOS DE TATARAVÓ-RAINHA: (A luz acende e Tataravó já está no palco.)

TATARAVÓ-RAINHA: (Entediada.) Tarde cretina... (Entram três fadas.) TATARAVÓ-RAINHA: Minha neta, nada... TRÊS FADAS DE NEGRO: (Mordazes, irônicas.) Ficará boa, soberana Tataravó... TATARAVÓ-RAINHA: Que demora! (Sai.) FADA DE NEGRO N. 3: Está demorando muito para morrer, de fato!... (Entra mago.) MAGO DA CORTE: (Solene.) Senhoras, meu poder!!! TRêS FADAS DE NEGRO: Sabemo-lo, ó Mago, foi-se pelos ares... MAGO DA CORTE: ... e já voltou... (Saem Três fadas, horrorizadas.) MAGO DA CORTE: (Efusivo.) Voltou... (Entra Tataravó.) TATARAVÓ-RAINHA: É claro que voltei, o quarto é meu... MAGO DA CORTE: MEU PODER voltou... TATARAVÓ-RAINHA: (Inexpressiva.) Que felicidade! MAGO DA CORTE: Pois para mim é de fato! (Sai.)

TATARAVÓ-RAINHA: Pois para mim não é! (Entram três fadas.) TRÊS FADAS DE NEGRO: (Com as expressões confusas.) Oh, oh, a rainha Walburga... TATARAVÓ-RAINHA: (Quase chorando.) Morreu?... TRÊS FADAS DE NEGRO: NÃO! (Entra o Mago, com uma expressão horrorizada.) MAGO DA CORTE: Acordou!

PANO

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