BAOBÁS, CARNEIROS E ROSAS A LEI MARIA DA PENHA E UM OLHAR SOBRE A REALIDADE Ana Lara Camargo de Castro *
A Lei 11.340 foi promulgada em 07 de agosto de 2006 e carinhosamente denominada Lei Maria da Penha, em homenagem à luta da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes para obter punição para seu marido agressor e para despertar o país sobre a necessidade de mecanismos para a contenção do drama doméstico-familiar de muitas mulheres. A lei foi aclamada em todo o Brasil por introduzir no cenário jurídico mecanismos mais eficientes no combate a essa espécie de violência. O presente artigo pretende abordar aspectos e problemas práticos decorrentes das diversas interpretações propostas, pela doutrina e jurisprudência em construção, para a exegese do novo diploma legal. Cumpre primeiro registrar para os propósitos desse enfoque as principais alterações introduzidas pela Lei Maria da Penha: a) A alteração do próprio conceito de violência doméstica e familiar, uma vez que estabelece em seu art. 5º que compreende a violência havida na unidade doméstica, mesmo oriunda de pessoas esporadicamente agregadas e sem vínculo familiar; aquela ocorrida no âmbito da família, hipótese em que o alcance da lei é bem amplo, porque se entende como comunidade formada por indivíduos que são ou que apenas se consideram aparentados por quaisquer tipos de laços, inclusive a simples vontade expressa; bem como toda a violência havida em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação. Muita discussão tem se estabelecido nos Tribunais Pátrios acerca dessa amplitude conceitual e muitos julgados têm excluído atos de violência cujos autores sejam pessoas do mesmo sexo, ao argumento de inexistência do conflito de gênero que foi objeto central da lei, outros julgados têm excluído atos de violência em relações erótico-afetivas já findas ou em vínculos mais tênues como namoro ou romance esporádico. Mas, em verdade, o escopo dessa definição inserta na própria lei – a pouco recomendada interpretação autêntica de conceitos 1
jurídicos – importa em excessiva amplitude conceitual e reduzida densidade prática, a qual, apesar disso, poderá resultar útil, conforme se aperfeiçoe a hermenêutica dessa lei, com vistas a vivificar a intenção do legislador. O conceito aberto do diploma legal, que pretendeu abarcar todas as hipóteses de violência contra a mulher - violência psicológica, moral e econômica, alem da física poderá alcançar diversos patamares de efetividade a depender da exegese que ganhar maior respaldo da jurisprudência. b) A sistemática das medidas protetivas, tratada entre os artigos 18 e 24 da Lei Maria da Penha, que muito embora constituam, em grande parte, medidas cautelares cíveis e penais anteriormente previstas pelo ordenamento jurídico, pois, expressamente disciplinadas em outros diplomas legais ou passíveis de articulação como inominadas, foram reorganizadas para proteção da mulher em caráter de urgência. Há, até hoje, certa confusão generalizada acerca da natureza das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, se cíveis, penais ou até mesmo administrativas, sendo que apesar de evidente seu caráter dúplice ou tríplice variando conforme a proteção que se pretende alcançar, o certo é que não existe consenso no país afora na sua forma de apresentação em juízo. Vale ressaltar, porém, que a Lei Maria da Penha pretendeu que elas se dessem de maneira bastante informal, ao conceder legitimidade postulatória extraordinária à vítima para pleitear diretamente ao juiz, obviamente sem manejo técnico-jurídico, a exemplo da informalidade de postulação havida perante os Juizados Especiais.
c) A introdução do inciso IV, no artigo 313, do Código de Processo Penal, prevista no artigo 42 da Lei Maria da Penha, que estabelece a possibilidade de prisão preventiva quando o agressor frustra a execução de medidas protetivas de urgência.
d) A reunião de competências na mesma vara judicial, cíveis e criminais, o que permite, ao menos em tese, que o casal veja resolvido, às vezes em uma única audiência, tanto o processo-crime quanto as ações cíveis relativas à separação ou reconhecimento e dissolução de sociedade de fato, além de guarda e direito de visitas, alimentos e partilha de bens.
e) A exclusão da competência dos juizados especiais dos feitos relativos à violência doméstica e familiar contra a mulher, prevista no artigo 41 da Lei Maria da Penha, o que permite que a 2
prisão em flagrante se consolide, com a liberação do agressor não apenas com a assinatura do termo de comparecimento em juízo, mas somente mediante fiança ou liberdade provisória, e também afasta a possibilidade de retratação de representação e de transação penal, em especial visando coibir o pagamento de cestas básicas ou de prestação pecuniária, o que também se extrai do seu artigo 17.
Em síntese, a Lei Maria da Penha é o carneiro destinado a ajudar o Pequeno Príncipe no trabalho de arrancar todas as manhãs os arbustos de baobás que podem destruir sua rosa. 1 O carneiro, ainda que desenhado às pressas e escondido invisível dentro da caixa, tem uma missão extraordinária – vai se alimentar dos arbustos de baobás, que não são propriamente maus, mas que naquele minúsculo universo doméstico do Pequeno Príncipe, se não contidos ainda no nascedouro, acabam por se agigantar, perfurando o ambiente com suas raízes e, assim, culminam por ruir o planetinha e, claro, destruir a rosa. Mas também é preciso vigiar o carneiro ou ele haverá de comer a rosa... A Lei Maria da Penha encontra-se à solta no universo jurídico brasileiro e para muitos foi suficiente como panacéia para os males da violência doméstica e familiar contra a mulher. Basta que a lei exista, não obstante a ausência de meios eficientes para a sua execução, para que o problema esteja solucionado. E, no mais, a sociedade pode esperar a moda passar e o burburinho do novo assentar, que a lei encontrará seu canto na prateleira da biblioteca, bem acompanhada de códigos e compêndios que, em teoria vicejam, mas que na vida útil agonizam. A Lei Maria da Penha foi extremamente positiva para a sociedade brasileira. É uma lei confusa, de rigor técnico duvidoso. Polêmica, sem dúvida. Mas o simples fato de ter introduzido a problemática no cenário nacional e 1
Saint-Exupéry, Antoine de. Le petit prince. Folio.
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incitado a coletividade a refletir esse drama, colocando a violência doméstica na ordem do dia dos governos, das escolas e da mídia, já lhe confere mérito inquestionável. E depois, ainda que um tanto desajeitados, os seus mecanismos gerais de proteção são interessantes e, se bem aplicados, fortes instrumentos de inibição dos delitos dessa natureza. A dificuldade é como trazê-la à luz da realidade, sem fazê-la desbotar lentamente ao ponto de consumir-se. E que realidade é essa? Sob a perspectiva da aplicação prática, na realidade brasileira, cumpre registrar, para início da conversa, que os casos são numerosos e as Delegacias de Polícia Civil não têm estrutura material e humana para fazer frente à demanda. Os atendimentos emergenciais das Polícias Militares (190), identicamente, não têm condições de priorizar esse tipo de delito que tem aparência de menor importância. As equipes policiais são reduzidas e muitas vezes despreparadas ao extremo de simplesmente ignorar a ocorrência, negar-se ao registro ou orientar a vítima à reconciliação. E ainda pior, quando se forma equipe policial interessada e combativa, em regra, as chefias de ambas as Polícias e as Secretarias de Segurança Pública administram essa matéria como fim da lista de prioridades na destinação de recursos. E isso é complexo porque, tendo a Lei Maria da Penha afastado a aplicação da lei dos Juizados Especiais Criminais, não há mais termo circunstanciado de ocorrência, nem possibilidade de retratação da representação ou de liberação do agressor mediante compromisso de comparecimento em juízo, é preciso lavrar flagrantes e instaurar inquéritos policiais para todo tipo de delito que antes estava englobado na competência dos JEC – ameaça, vias de fato, lesões corporais, violação de domicílio, desobediência, etc. E, como não há estrutura instalada, o primeiro gargalo se forma logo ali na porta de entrada. Ao depois, os feitos são centenas, melhor, milhares e chegam ao Ministério Público já com considerável tempo passado da data do fato e, como, por força do art. 41, da Lei 11.340/06, não mais se aplica a Lei 9.099/95 para os 4
casos de violência doméstica, não há mais audiência preliminar para composição, é preciso denunciar e, depois, não há mais possibilidade de retratação, exceto em raras hipóteses, pois, se a lei for aplicada comme il le faut, exclui-se a previsão do art. 89, da Lei 9.099/95, que passou a admitir a retratação nas lesões corporais e, por via de conseqüência, na contravenção penal de vias de fato. As pautas de audiências são intermináveis e a cada dia com maior distância da data do fato, às vezes ano, ano e meio, quando nitidamente o feito já caminha para a prescrição, já que, uma vez imposta pena in concreto, ela não ultrapassará o quantum para o mínimo prescricional. Além do fantasma da prescrição, assombra as promotorias especializadas o monstro do desconsolo e da incredibilidade, já que inúmeras vítimas e testemunhas se apresentam nas audiências verdadeiramente revoltadas por estarem sendo trazidas a juízo depois de decorrido tanto tempo dos fatos criminosos, que não raro tornaram a se repetir sem contenção, e serem obrigadas a falar de assuntos íntimos e dolorosos que estão já superados, ou por uma reconciliação forçada pelas árduas condições da vida, ou pela ruptura de vínculo e constituição de novo relacionamento, hipóteses em que para a mulher-vítima o processo tardio acarreta mais males do que benefícios. Mais triste ainda são as condenações retardatárias. Quando o processo chega, enfim, ao término e a mulher-vítima espera uma reprimenda razoável ao agressor, depara-se com o fato de que a divulgação feita pela mídia acerca da Lei Maria da Penha é completamente ficcional, uma vez que pena de prisão não haverá. E haverá sim, substituição, contra legem, por restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade, correspondente ao tempo de pena fixado, ou seja, quatro ou seis horas semanais, por quinze ou trinta dias ou, no máximo, três ou quatro meses. E para o sentenciado-agressor, a vantagem é apenas aparente, tendo em vista que, na verdade, vê-se privado inutilmente da sua primariedade, porque a sanção é tão irrisória que não se presta a contê-lo, mas ele está marcado 5
por uma sentença condenatória que constituirá antecedente criminal que o prejudicará ou o rebaixará no mercado de trabalho, e em alguns casos o afastará definitivamente. Permito-me aqui um longo parêntese para discutir a justificativa da afirmação contra legem acima utilizada. Muitos juízes têm sistematicamente substituído a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade nas hipóteses da Lei Maria da Penha, ao argumento de política criminal. A referida substituição não é aplicável aos delitos praticados com violência ou grave ameaça à pessoa, conforme se vê da redação do artigo 44 do Código Penal: Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; (Redação dada pela Lei nº 9.714,
de 1998) II - o réu não for reincidente em crime doloso; (Redação dada pela Lei nº
9.714, de 1998) III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)
Veja-se a explicação do doutrinador Guilherme Nucci, além da dominante corrente jurisprudencial 2 : “Não cabe ao juiz estabelecer exceção não criada pela lei, de forma que estão excluídos todos os delitos violentos ou com grave ameaça, ainda que comportem penas de pouca duração. No caso da lesão corporal dolosa – leve,
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“É incabível a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, nos termos do inc. I do art. 44 do CP, em relação aos crimes cometidos com violência à pessoa, como na hipótese de lesão corporal de natureza leve, consistente em uma mordida no braço.” (RT 789/631). “Não é cabível a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por uma restritiva de direitos quando o crime é cometido com violência à pessoa, por força do artigo 44, I, do Código Penal.” (TJMG – JM 150/285).
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grave ou gravíssima (pouco importando se de ‘menor potencial ofensivo’ ou não) – para efeito de aplicação da substituição da pena, não mais tem cabimento a restritiva de direitos. O juiz, em caso de condenação, poderá conceder o sursis ou fixar o regime aberto para cumprimento.” 3 “Há posição contrária, sustentando que, nas hipóteses de infração de menor potencial ofensivo, se cabe transação por certo seria aplicável a substituição por pena restritiva de direitos. Pensamos de modo diverso. Se o autor desse tipo de infração merecer a transação, está será aplicada. Não sendo o caso, é processado regularmente, vedada a substituição por restrição de direitos, restando outras medidas alternativas de política criminal.” 4
É fundamental observar que até mesmo a doutrina e a jurisprudência que admitem a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, em caso de infrações penais com violência ou grave ameaça à pessoa, fazem-no com a utilização do raciocínio de que, diante de delitos considerados de menor potencial ofensivo e que se processam perante o Juizado Especial Criminal, haveria um contra-senso no impedimento da concessão do benefício, conforme se vê:
“A primeira indagação que se levanta é a seguinte: Se uma das finalidades da substituição é justamente evitar o encarceramento daquele que teria sido condenado ao cumprimento de uma pena de curta duração, nos crimes de lesão corporal leve, de constrangimento ilegal ou mesmo de ameaça, onde a violência e a grave ameaça fazem parte desses tipos, estaria impossibilitada a substituição? Entendemos que não, pois que se as infrações penais se amoldam àquelas consideradas de menor potencial ofensivo, sendo o seu julgamento realizado, inclusive, no Juizado Especial Criminal, seria um verdadeiro contrasenso impedir justamente nesses casos a substituição. Assim, se a infração penal for da competência do Juizado Especial Criminal, em virtude da pena máxima a ela cominada, entendemos que mesmo que haja o emprego de violência ou grave ameaça será possível a substituição”.
“Alguns crimes como os de constrangimento ilegal, lesão corporal dolosa simples e ameaça ‘que pela pena em abstrato cominada podem ser alcançados pela solução consensual da Lei dos Juizados Especiais Criminais, estariam fora
3
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 342. 4
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.
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da incidência das penas alternativas, se houvesse processo criminal. Essa aparente iniqüidade, caso seja feita uma interpretação literal, levaria a um absurdo: permitir o mais (aplicação das medidas alternativas da Lei 9.099/95), sem qualquer processo) e não o menos (medida assemelhada, após o processo).’ (Sérgio Salomão Shecaira, ‘Penas alternativas’, Penas Restritivas de Direitos, São Paulo, Ed. RT, 1999, p. 223). No mesmo sentido: Luiz Regis Prado (op. cit., p. 391) e José Antonio Paganella Boschi (op. cit., p. 398). Daí, a afirmação de Damásio Evangelista de Jesus e de Luiz Flávio Gomes (‘Lesão corporal dolosa simples e penas alternativas’, Bol. IBCCrim 75, fev. 1999, p. 1, Encarte especial) no sentido de que ‘a contradição só pode ser desfeita com uma interpretação contextualizada de todo o ordenamento jurídico, que concluiria: de fato, crimes cometidos com violência ou grave ameaça não autorizam a substituição, exceto quando já admitem a aplicação de outras formas alternativas de sanção, porque nesse caso o legislador já fez alhures uma valoração menos severa da mesma infração’”. 5
Ademais, importa observar que, após a edição da Lei 9.714/1998, que alterou o caput do artigo 46 do Código Penal, não é mais possível a substituição por prestação de serviços à comunidade em condenações inferiores a 6 (seis) meses de privação de liberdade, exatamente as condenações aplicadas à quase totalidade dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher: Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade.
(Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998) Explica novamente NUCCI: “[...] somente após a edição da Lei 9.714/98 estabeleceu-se um piso mínimo para a aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade, provavelmente para incentivar o magistrado a aplicar outras modalidades de restrição de direitos, como a prestação pecuniária ou a perda de bens e valores, bem como para facilitar a fiscalização e o cumprimento – afinal, é dificultosa a mobilização para cumprir apenas um ou dois meses de prestação de serviços, escolhendo o local, intimando-se o condenado e obtendo-se resposta da entidade a tempo de, se for o caso, reconverter a pena em caso de desatendimento.” 6
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FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 903. 6 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 351.
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Daí extrai-se que, apesar de admissível o sursis, previsto no artigo 77 do Código Penal, como forma de benefício ao sentenciado, com cumulação de prestação de serviços à comunidade no primeiro ano 7 , a simples substituição por restritiva de direitos é completamente incompatível com essa espécie de condenação. E toda essa discussão se torna ainda mais relevante diante do complexo paradoxo que se instala diante da proibição de aplicação do benefício da suspensão condicional do processo, pois, grande parte dos magistrados que aceitam a substituição contra lei, como antes apresentado, ao argumento de política criminal, recusa-se permitir a suspensão condicional do processo ao réu, em razão do artigo 41 da Lei Maria da Penha. É fato que o legislador da Lei 11.340/2006 agiu no sentido de afastar, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ritualística e a
praxe
dos
Juizados
Especiais
Criminais,
estabelecendo
uma
efetiva
discriminação de gênero, cuja análise da constitucionalidade ainda permanece sem solução
definitiva
enquanto
não
julgada
a
Ação
Declaratória
de
Constitucionalidade 19/2009, ajuizada pela Presidência da República, via Advocacia-Geral da União, perante o Supremo Tribunal Federal. Entretanto, sem adentrar na polêmica acerca da quebra ou não do tratamento isonômico entre homens e mulheres assegurado pela Carta Magna, é certo que a temática da concessão do benefício da suspensão condicional do processo pode ser enfrentada de plano independente da questão constitucional.
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Art. 78 - Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimento
das condições estabelecidas pelo juiz. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 1º - No primeiro ano do prazo, deverá o condenado prestar serviços à comunidade (art. 46) ou submeter-se à limitação de fim de semana (art. 48). (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
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A constitucionalidade integral da Lei 11.340/2006, conforme pleiteia a Presidência da República com a ADC 19/2007, não é afrontada pela concessão do benefício pretendido pelo acusado. O objetivo do legislador foi de impedir a aplicação do rito informal dos Juizados Especiais Criminais, como, por exemplo, a simples lavratura de termo circunstanciado de ocorrência, a audiência preliminar sem denúncia, as retratações em crime de lesões corporais, bem como obstar os métodos de solução de litígios trazidos pela lei dos juizados, como a transação penal mediante contrapartida em cestas básicas. A suspensão condicional do processo não pretende alcançar os chamados delitos de menor potencial ofensivo, de pena máxima de 2 (dois) anos e, sim, os delitos com pena mínima de até 01 (um) ano, o que, de fato, demonstra não se tratar de instituto exclusivo do Juizado Especial Criminal, tanto que aplica-se a quaisquer crimes, dentro dos parâmetros legais, ainda aqueles da Justiça Comum ou Especial Eleitoral e Militar. O que prevalece nesse benefício não é a pequena ofensividade do delito, típica daqueles feitos destinados aos juizados, mas, sim, o estabelecimento de uma política criminal voltada a oferecer alternativas à condenação e ao falido sistema de execução penal brasileiro. A suspensão condicional do processo reforça o caráter protetivo da Lei Maria da Penha, por ser instituto que dá solução mais célere ao conflito familiar, sem submissão das partes ao sofrimento do trâmite processual, não raras vezes muito mais lento do que o desejável para a sociedade, bem como oferecendo a mulher efetiva atenção do Estado, concedida logo após a prática do delito, com a possibilidade de determinação de afastamento imediato do agressor, inclusive a perdurar durante todo o período de prova, e imposição a ele de condições judiciais de prestação de serviços à comunidade. Ademais, conforme dito antes, em análise superficial pode parecer mais desejável para o acusado deixar transcorrer o processo para não se sujeitar ao 10
período de prova (mínimo de dois anos) da suspensão condicional do processo e se ver condenado a uma pena de poucos dias ou meses, substituída por restritiva de direitos ou sursis, ou, no máximo, a ser cumprida em regime aberto (isso considerando que quase a totalidade dos delitos relacionados à violência doméstica e familiar contra a mulher tem penas baixas previstas em lei e a Lei Maria da Penha não trouxe inovações relevantes nesse sentido), essa perspectiva é falaciosa, porque a maioria absoluta dos réus envolvidos em delitos dessa natureza é primária e de bons antecedentes, constituídas de trabalhadores que por motivos diversos de origem cultural, de embrutecimento pelas precárias condições sociais, de alcoolismo ou de dependência química, vêem-se envolvidos em ações penais, cuja condenação deixa mácula indelével em sua ficha criminal que terá efeitos nocivos para obtenção de posição no mercado de trabalho. Denilson Feitoza enfrenta a problemática e esclarece a questão nos seguintes termos: “O art. 41 da Lei 11.340/2006, como vimos, estabelece que, 'Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995'. Isso poderia significar que, nessa hipótese: a) as infrações penais praticadas com 'violência doméstica e familiar contra a mulher' não são infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, não estão sujeitas aos juizados especiais criminais; b) a homologação da composição do dano civil não acarreta renúncia ao direito de queixa ou de representação e, por conseguinte, tampouco a extinção da punibilidade; c) não cabe a transação penal; d) não cabe representação em crime de lesão corporal leve e de lesão corporal culposa; e) não cabe suspensão condicional do processo. [...] Devemos atentar para os critérios de aplicação do princípio da igualdade, que possibilitam o tratamento desigual. Desse modo, enquanto se admitiu a representação em crime de lesão corporal leve para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, tratando o agressor, nos âmbitos doméstico e familiar, como se fosse uma pessoa qualquer, isso acarretou uma imensa quantidade de representações não oferecidas, muitíssimo acima do que ocorreria com um infrator qualquer, e de retratações de representações. Em última análise, isso somente reforçou o poder de opressão ilegítima do agressor sobre as pessoas que se encontram no seu âmbito de relações domésticas e familiares, inconstitucionalmente favorecido o agressor pela aplicação de uma igualdade meramente formal, em vez da igualdade material preconizada pela Constituição da República. Do mesmo modo ocorreu com as transações penais. Conforme exposto por Nucci, a banalização das transações penais acarretou o esvaziamento da proteção da vítima nos âmbitos familiar e doméstico. Dessa maneira, tendo em
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vista que a Constituição estabeleceu que 'O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações', a vedação da transação penal pretende realizar esse dever estatal, inclusive em consonância com o princípio constitucional da igualdade, pois a situação de hipossuficiência da ofendida, nas relações doméstica ou familiar que estabelece com o agressor, justifica esse tratamento desigual. O mesmo não se pode dizer da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995). Não vemos presentes, no caso deste instituto, as razões que possibilitam o tratamento diferenciado do agressor. Os juízes e membros do Ministério Público não se submetem às possíveis intimidações que a ofendida, no ambiente familiar e doméstico, poderia sofrer por parte do agressor na hipótese de representação em crime de ação penal pública condicionada à representação. Não há, portanto, elemento diferencial, quanto à suspensão condicional do processo que possibilite ao legislador infraconstitucional o tratamento diferenciado do agressor. Ademais, não vemos a suspensão condicional do processo (sursis processual) como redução da proteção à mulher que sofre violência doméstica e familiar, mas uma ampliação de sua proteção. O agressor poderá ficar dois anos sob suspensão, submetido a ´outras condições´ (art. 89, §2º, Lei 9.099/1995) como prestação de serviços à comunidade (talvez nas associações de ´alcoólicos anônimos´ para se curar da embriaguez), o que é muito mais eficaz do que uma pequena pena restritiva de liberdade ou uma futura suspensão condicional da pena (sursis). Além disso, se descumprir as condições impostas, o processo penal prosseguirá. Portanto, entendemos que o instituto da suspensão condicional do processo aplica-se às infrações penais praticadas com violência familiar ou doméstica contra a mulher, com fundamento no princípio constitucional da igualdade.” 8
Desse modo, o que se percebe é que a Lei Maria da Penha gerou enorme expectativa quanto a punições efetivas aos agressores de mulheres, porém, ela esbarra em uma série de entraves, que vão desde a morosidade que conduz à prescrição ou ao desinteresse, até a própria previsão legal de sanções baixas que admitem a substituição por uma série de benefícios na fase de execução da pena e que somente em raríssimas hipóteses poderão resultar em regime fechado para cumprimento de pena. E assim é que a realidade se impõe no sentido de exigir análise mais detida, quanto ao instituto da suspensão condicional do processo, que pode significar, quando bem aplicado e fiscalizado, mormente se concedido com 8
PACHECO, Denílson Feitoza. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 5 ed. Niteroi, RJ. Impetus. 2008, p. 538-41.
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cumulação de condição judicial de prestação de serviços à comunidade, algum alento ao sentimento de impunidade ou de injustiça que passou a permear a Lei Maria da Penha e que, ao longo prazo, pode levá-la ao descrédito. Outro ponto que ainda merece destaque acerca da (não)efetividade da Lei Maria da Penha é a temática da prisão preventiva. Após a entrada em vigor da lei, no ano inaugural, era muito comum a segregação prévia do agressor que, descumprindo ordem judicial da qual fora regularmente intimado em medida protetiva, voltava a se aproximar da vítima e a reiterar os mesmos delitos. Entretanto, com o passar do tempo, tais decisões foram rareando e, principalmente, após a publicação da Resolução 66, de 27 de janeiro de 2009, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determinou a elaboração de relatórios periódicos acerca das prisões provisórias – o que representou trabalho redobrado para magistrados e servidores, já sobrecarregados, em varas superlotadas de feitos. Por esse e outros fatores tais decisões têm minguado, o que acarreta perda de vigor da Lei Maria da Penha e faz com que as vítimas desanimem do registro de novas ocorrências contra o agressor, já que não mais obtém os resultados práticos das medidas protetivas, o que ocasiona também desvalor à autoridade judiciária e completa insegurança jurídica. Mereceria também uma análise detida a questão da falta de suporte do Poder Executivo quanto à criação e à manutenção digna de estabelecimentos para o encaminhamento dos agressores com dependência química, alcoólica ou transtornos mentais, haja vista que, muitas vezes, é a ordem judicial para internação compulsória, seguida de programa multidisciplinar de reabilitação, unicamente o que desejam as vítimas quando procuram a Delegacia ou o Ministério Público para providências. As vítimas, não em raras oportunidades, chegam a implorar por ajuda do Estado nesse sentido. Entretanto, toda a questão do abandono da saúde mental no Brasil e a interpretação equivocada da reforma psiquiátrica seria tema para um artigo à parte, mas ainda 13
assim a mensagem aqui já se registra, pois, não há como obter resultado no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher sem mecanismos públicos para o enfrentamento desse drama. Diante de tantos obstáculos expostos à efetivação da Lei Maria da Penha, o que se teme é que ela se arraste ao desuso, como, diga-se, já ocorre em imensa quantidade de comarcas no país, onde a sua entrada em vigor no ordenamento jurídico brasileiro foi e continua totalmente ignorada, sujeitando-se o tratamento da matéria ao juizado especial criminal e à sua ritualística, sob a pecha da inconstitucionalidade, por ferimento ao tratamento isonômico entre homens e mulheres. A Lei Maria da Penha, como hipótese de discriminação positiva, representou inenarrável avanço no resgate histórico da igualdade material entre os sexos, bem como perspectiva para o combate à desagregação familiar que é responsável por grande parte da grave e crescente criminalidade no país, praticada por autores oriundos de lares desconstruídos e sem qualquer base moral, em virtude da falta de sólidas figuras paterna e materna. Porém, sem aplicabilidade, a Lei Maria da Penha pode acabar por agravar a situação das vítimas, tanto lhes gerando, de início, uma falsa sensação de proteção, quanto, por fim, condenando-as ao conformismo diante da sensação de abandono e de impotência. A Lei Maria da Penha alcançou a vigência e validade, segundo os critérios da doutrina de Hans Kelsen, também galgou os degraus dos planos da existência, validade e eficácia, segundo a escada de Pontes de Miranda, falta-lhe, ainda, alcançar o plano da efetividade, hodiernamente debatido à luz das teorias de Konrad Hesse e Ronald Dworkin. Para isso é preciso vigiá-la com atenção e impedir que a aplicação excessivamente formalista de seus artigos, de precária técnica legislativa, destrua o elevado espírito da norma. “Mas eis que acontece uma coisa extraordinária. Na mordaça que eu desenhei para o Pequeno Príncipe, eu esqueci de juntar a correia de couro. Ele jamais
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poderá prendê-la ao carneiro. E então eu me pergunto: “O que terá se passado no planeta? Talvez o carneiro tenha comido a flor...” Ora eu me digo: “Certamente não! O pequeno príncipe guarda sua flor todas as noites dentro da sua redoma de vidro, e ele vigia bem seu carneiro...” E então eu me alegro. E todas as estrelas riem docemente. Ora eu me digo: “A gente se distrai vez ou outra, e pronto! Ele esquece, uma noite, a redoma de vidro, ou o carneiro sai silenciosamente durante a noite... “ E todos os guizos se transformam em lágrimas!...” 9
É preciso atentar ao desenho da mordaça, e ao propósito de sua existência, a fim de atar a correia ao carneiro ou ele, ao invés de ceifar o baobá, ainda haverá de destruir a rosa...
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Saint-Exupéry, Antoine de. Le petit prince. Folio. Livre tradução da autora.
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* A autora é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, titular da 48ª Promotoria da Capital (Campo Grande), com atuação exclusiva na Lei Maria da Penha, perante a Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, desde 24 de novembro de 2006.
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