A Imagem Das Mulheres No Entre Guerras

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ZIRBEL, Ilze. O ideal feminino europeu do pós-guerra presente no jornal blumenauense “A Cidade”. Blumenau em Cadernos. Blumenau: Fundação Cultural de Blumenau. Tomo XLV – n.11/12- nov./dez. 2004, pp.79-106 (Pesquisa & Pesquisadores)

Imagens de mulher no início do século XX No início dos século XX a ideia de uma mulher ativa no campo público já não era de todo novidade. As lutas que vinham sendo travadas desde o final do século XIX pelas sufragistas em quase todos os países da Europa estavam se alastrando também pela América e na África. Lutando pelo aceso à educação, ao trabalho e ao direito de voto, estas primeiras feministas ocidentais organizadas haviam conseguido mobilizar em seu auge quase dois milhões de mulheres1. Em resposta ao movimento das sufragettes, uma série de mudanças começaram a ser sentidas e grupos começaram a se organizar para impedir que a ordem geral da sociedade fosse subvertida. Com o advento da I Grande Guerra Mundial e a necessidade de se substituir a mão-de-obra masculina nas fábricas e cidades, inúmeras mulheres foram levadas à ocupação de postos de trabalho nunca antes ocupados. Carteiras, mecânicas, condutoras de bondes elétricos e operárias da indústria bélica podiam ser vistas em quase todos os países envolvidos no conflito2. Contrariando a expectativa dos diferentes grupos que vinham lutando pela emancipação do “sexo feminino”, a tomada em massa do mundo do trabalho não representou para a mulher a conquista de seus direitos civis ou a quebra de valores sexistas3. Ainda que se pudesse perceber a sua presença em territórios tidos como masculinos ou mesmo na chefia dos lares, as imagens veiculadas neste período (e no pós-guerra) e a propaganda de conscientização de massa feita pelos governos e meios de comunicação souberam manter tudo no lugar. Assim sendo, era possível perceber no final da década de 1910 a existência de um grande número de operárias trabalhando na confecção de armas e material bélico e, ao mesmo tempo, encontrar uma série de panfletos e cartazes associando a nova atividade 1 2 3

ALVES e PITANGUY, p. 44. Ver: Anexo 1: Mobilização de mulheres pró-sufrágio universal. Anexo 2: Trabalhadoras em período de Guerra. Ainda que um século de História separe os dias atuais daqueles vividos no início do século XX, a questão “mulher e mundo do trabalho” permanece bastante semelhante no que diz respeito às conquistas das mulheres (presentes em todos os campos da sociedade mas mal remuneradas, ocupando poucos postos de chefia, responsáveis pelo mundo doméstico e subordinadas aos homens).

à ”vocação feminina para a maternidade”. Era por amor à pátria e amor à família que as mulheres eram convocadas temporariamente, em uma situação de inversão de valores, a assumir novas funções sociais. Enquanto que os homens giravam pelo imaginário social como heróis nacionais que derramavam seu sangue pela defesa de suas mulheres e crianças, elas eram vistas como os personagens secundários que atuavam na “retaguarda da nação” enquanto esperavam o retorno destes viris heróis. A

mesma

forma

de

propaganda

acabou

sendo

utilizada

na

América,

geograficamente distante do conflito, para mobilizar sua população feminina em prol dos esforços de guerra. Imagens impensáveis em outros momentos podiam ser agora vistas por todos os lados: a francesa Joana D'Arc (tradicional inimiga dos ingleses) convocando mulheres a comprar do departamento do tesouro nacional “selos de guerra” para a “salvação do país”, camponesas seguindo uma “tocadora de tambor” (instrumento utilizado pelo exército) e carregando alimentos para servir seu país com o “espírito do poder da mulher” (o de nutriz), etc.4 Entidades feministas estado-unidenses passaram a apoiar as iniciativas nacionais colocando suas entidades à serviço do Estado que, por sua vez, tratou de se utilizar destas entidades para atividades mais “inofensivas” como a luta contra a fome5. Terminada a guerra dá-se início a um novo processo, o do retorno das mulheres aos seus espaços domésticos. A desmobilização feminina é, por toda parte, rápida e brutal, particularmente para as operárias de guerra, as primeiras a serem despedidas. 6 Até mesmo espaços pouco valorizados e que já estavam sendo ocupados por mulheres anteriormente ao conflito, como o dos escritórios (aparentemente pouco valorizados pelos homens),

precisavam

ser

recuperados

para

que

fossem

ocupados

pelos

“feridos/mutilados” de guerra. A identidade masculina (abalada durante os conflitos) estava em jogo e era preciso reafirmá-la oferecendo aos homens os seus tradicionais lugares de domínio, tanto nos lares (na chefia familiar) como nas cidades (nas funções sociais). Além disso, a ideia de que o mundo havia virado do avesso na ausência dos donos da ordem impunha a necessidade de se agir no sentido de estabelecer a antiga realidade para as mulheres. Nas palavras da historiadora francesa Françoise Thébaud, os homens, por necessidade de se agarrarem ao imutável, por um sentimento de justiça 4 5 6

Ver Anexo 3: Propaganda estado-unidense durante a I Guerra Mundial. Ver imagem n. 4 do Anexo 4. THÉBAUD, p. 78.

elementar, eles querem voltar a encontrar as suas mulheres como as tinham deixado, no lugar onde as tinham deixado. Os jornais franceses das trincheiras revelam, a par de uma enorme necessidade de reconhecimento, o receio de serem suplantados no regresso, o desconhecimento dos esforços de retaguarda e a vontade de se erigirem em juízes e senhores do país, e, principalmente, de reporem as mulheres no reto caminho.7

Uma onda de violência acompanhou o retorno dos heróis da nação para os seus lares,8 violência esta sentida e canalizada por sobre as mulheres (principalmente aquelas que se encontravam emancipadas) e ao feminismo em geral. De igual forma, passou-se a supervalorizar a dona-de-casa, “mãe e esposa exemplar”, criando para ela novas leis de proteção materna e infantil e prêmios de natalidade9. Jornais, romances e homens políticos apresentam as tarefas maternais como a mais nobre das carreiras10. Novamente nas palavras de Thébaud: A guerra teria reforçado a identidade masculina em crise nas vésperas do conflito e reposto as mulheres em seu lugar de mães prolíficas, de donas de casa na melhor das hipóteses libertadas pela gestão doméstica, e de esposas submissas e admiradoras.11

Uma firme linha divisória entre os sexos voltara a ser delineada, ressuscitando os antigos mitos viris: os homens são feitos para combater e conquistar, as mulheres para dar à luz e cuidar dos filhos12. A imagem da mulher lutando pelo país acabou cedendo lugar à “domesticidade feminina” que, por sua vez, ofuscava fortemente à imagem da feminista que lutava pelos direitos de cidadania para as mulheres antes da guerra.

Um novo padrão de estética e consumo: a influência estado-unidense sobre a imagem da mulher “moderna”

Paralelamente ao processo de envolvimento nos conflitos armados e de volta aos lares, acontecia no início do século XX o fenômeno da valorização de uma cultura urbana 7 8

9 10 11 12

Op. Cit. p. 80. Apesar de não haver ainda publicações a esse respeito, Françoise Thébaud deixa claro que o índice de violência doméstica teria aumentado muito neste período nos países envolvidos com a Grande Guerra. Ver Anexo 7: Mães prolíficas, um ideal a ser seguido. SOHN, p. 119. Citação de THÉBAUD, p.33. Op. Cit. p. 85.

e consumidora, principalmente nos Estados Unidos onde havia uma crescente prosperidade material decorrente dos acordos de guerra e dos avanços tecnológicos que vinham sendo realizados. Nunca antes o país havia produzido uma variedade tão grande de produtos e em tamanha quantidade: máquinas de lavar roupa, ferros de passar, cosméticos, tecidos, etc.. A grande maioria desses novos objetos destinava-se ao mundo doméstico: fogões a gás, máquinas de lavar, máquinas de costurar, aspiradores, rádios, etc.. Além disso, a possibilidade de um pagamento em prestações encorajava o aumento do consumo. Absorvendo algumas das ideias do feminismo, principalmente a de uma mulher emancipada que toma decisões por si própria, a indústria estado-unidense percebia na mulher um grande filão de consumo e uma série de novas imagens femininas começaram a invadir o imaginário e os meios de comunicação da década de 1920. Tanto na Europa como na América a publicidade, o rádio e o cinema passaram a veicular informações e imagens de uma nova mulher: A dona de casa, “emancipada”, maquiada e consumidora13. Aparentemente contraditória, a ideia de uma emancipação feminina dentro de quatro paredes (no lar) servia muito bem à publicidade e à sociedade masculina da época que, através dos meios de comunicação de massa, conseguiam sugerir uma emancipação mais estética do que política. Assim sendo, era possível encontrar durante este período uma enorme gama de anúncios voltados para o universo feminino e que apelavam ao novo estilo de vida da “mulher moderna”. Exemplos como o da General Eletric associando o sufrágio ao interruptor elétrico, ou os anúncios de revistas que sugeriam uma carreira bem sucedida ligada ao número de eletrodomésticos existentes em casa não eram raridade. Como bem o atesta o anúncio publicado no jornal estado-unidense Chicago Tribune, em 1930: A mulher de hoje obtém tudo o que quer. O voto. Finos forros de seda para substituir volumosos saiotes. Objectos de vidro em safira azul ou em âmbar resplandecente. O direito a uma carreira. Sabonete a condizer com as cores da sua casa de banho”.14

Novos modelos estéticos passavam a ser veiculados pela cultura de massa visando uniformizar e atingir o maior número possível de mulheres. Esperava-se que elas continuassem se ocupando do lar mas que passassem a prestar mais atenção ao seu 13 14

Ver Anexo 4: Os eletrodomésticos são para as mulheres modernas. COTT, p.96

arranjo pessoal15. Imagens de mulheres passam a inundar as revistas e suas páginas publicitárias introduzindo novos hábitos de higiene, maquilagem e penteados 16. Elementos tradicionais passam a se misturar com posturas mais “progressistas”, não só na América como na Europa, onde as revistas femininas estavam sendo consumidas como nunca. Anne Higonnet, em seu artigo mulheres, imagens e representações, observa que após a primeira guerra mundial em cada seis britânicas, cinco liam revistas dedicadas ao público feminino 17. O mesmo acontecia na França onde revistas como a parisiense Marie Claire possuíam uma tiragem de 800 mil exemplares e se faziam presentes em todas as camadas sociais. Ainda que aparentemente as revistas estivessem incentivando uma nova postura frente ao mundo e que houvesse divergência de conteúdos entre as mesmas, (algumas dedicadas à moda, outras ao “governo do lar”, outras ao “lazer feminino”, etc.), a grande maioria delas compartilhava claramente das fronteiras estabelecidas tradicionalmente para o feminino: a estética, os jogos de sedução e o mundo doméstico. As leitoras são exortadas a melhorar a sua aparência física, a exprimir a sua individualidade, a gerir os seus lares de modo mais eficiente, mais econômico e com mais amor, e a triunfar sobre a adversidade. A leitora das revistas femininas é encorajada a dominar a sua situação pessoal – mas não a pô-la em questão18.

Acompanhando o mesmo raciocínio, uma série de romances, revistas e jornais acabavam por contrapor a nova mulher também à feminista que continuavam lutando por ampliar sua liberdade e conquistar mais dignidade no âmbito público. Exemplo disso podemos encontrar no jornal parisiense Le Rire, um humorístico que se mantinha sendo editado há 26 anos e que no dia 04 de dezembro de 1920 apresentou em sua capa duas mulheres conversando. Ambas apresentam sinais das “mudanças dos tempos”: cabelos e saias curtos. No entanto, através do diálogo e da aparência geral se percebe que uma delas é feminista (pouco feminina, “desleixada”, com “pose de homem”) e a outra “feminina” (mais recatada, jovem, bonita e que “gosta de homem”19). Além disso, a década de 1920 estava se fazendo acompanhar por um declínio 15 16 17 18 19

Citação da página 384 de Luisa PASSERINI. Ver anexo 5: Maquiada e consumista. Ver p. 418, HIGGONET, Anne. Mulheres, imagens e representações. HIGGONET, p. 418. O diálogo daria ainda a entender que ser feminista podia ser sinônimo de “lésbica” visto a resposta da joem “feminina” ser que ela não é feminista pois prefere os homens. Tradução do diálogo: - Minha filha, eu sou feminista. -Ui! Eu não: gosto mais dos homens. A imagem consta no Anexo 6: Satirizando as feministas.

demográfico. Países que haviam se envolvido em conflitos de guerra possuíam sua população reduzida e iniciavam verdadeiras campanhas pró-natalidade tendo as mulheres como foco. Em alguns casos a questão era colocada como sendo um caso de “salvação nacional” e as mulheres que se empenhavam nesta causa eram publicamente recompensadas e homenageadas. Também nos Estados Unidos da América a questão da natalidade entrava em jogo uma vez que Margaret Sanger havia promovido neste país, durante a década de 1910, o controle da sexualidade pela mulher mediante o uso do diafragma. Durante os cinco primeiros anos da década de 1920, ela recebera cerca de um milhão de cartas de mães solicitando ajuda para controlar a natalidade. O desejo de diminuição do número de gestações por parte das estado-unidenses estava ficando cada vez mais evidente.20 Com a taxa de natalidade em declínio e o desejo de aumento das populações, o sexo conjugal voltou a ser enfatizado. De forma mais aberta (ou mesmo veladamente), o tema da sexualidade e da excitabilidade passou a ser mais freqüente, tanto no cinema como nas revistas populares e nos anúncios publicitários. Para os homens a mensagem passou a ser a de que era preciso satisfazer as mulheres e para as mulheres se dizia que “sexo era bom” e que deviam reivindicar o próprio prazer. Ainda que a sexualidade entrasse em evidência, o que se desejava era o sexo dentro do casamento. A vida conjugal passou a receber especial atenção como o “objeto do desejo das mulheres” nos veículos de propaganda e na filmografia da época. Auxiliando (e complementando) o “novo” estilo de vida, os estúdios de Hollywood despejaram para toda a Europa e América-latina imagens femininas de grande carisma seguindo os novos padrões de consumo, sexualidade e estética. Nas palavras de Luisa Passerini, os filmes ofereciam lições práticas de moda, de maquilagem e de comportamento, num período em que tudo aquilo que era inovador se identificava com os Estados Unidos21. Juntamente com o “estilo de vida americano”, vendia-se para o mundo o “jeito de viver” da “mulher americana”. Novo retrocesso pode ser visto para as lutas feministas. Nenhum discurso feito de palavras e textos conseguia se impor para além das imagens veiculadas pelo cinema e a oposição que se fazia à divisão sexual do trabalho suportava a mensagem de que “intimidade e proteção masculina” equivaliam à liberdade para a mulher. Além disso, a própria liberdade passou a ser entendida para as mulheres como sendo a liberdade de escolha ao consumismo individual. 20 21

Ver: COTT, p. 98-9. PASSERINI, p. 388

Concluindo Ainda que as primeiras décadas do século XX tenham assistido à inúmeras conquistas por parte das mulheres ocidentais (o ingresso no campo de trabalho, direito ao voto, acesso ao estudo secundário e universitário, etc.) a situação de subordinação da mulher ao homem e ao mundo doméstico continuou sendo uma constante. Muito do que se viu acontecer durante a I Guerra e no pós-guerra se repetiu durante a II Guerra Mundial e o período que a sucedeu. Novas campanhas de mobilização para o trabalho foram feitas seguidas de apelos de natalidade e de “volta para o lar”. Aparentemente, a propaganda e a utilização dos meios de comunicação de massa podem ser apontados como tento tido um papel crucial no processo de combate e “abafamento” das lutas feministas que sempre se fizeram presentes entre grupos de mulheres europeias e americanas ao longo de todo o século XX. Até que ponto o mesmo jogo continua sendo praticado na atualidade? Ainda que o campo das conquistas femininas tenha se ampliado sensivelmente nos últimos cinquenta anos, a utilização da imagem da mulher pela mídia continua associando a mesma à velhos padrões de consumo e estética. Mudam-se os produtos, os cosméticos, o comprimento da roupa, o corte de cabelo e até mesmo o conteúdo dos textos mas a propaganda ainda parece ser a mesma: As mulheres existem para agradar aos homens, assim sendo, é preciso estar sempre bonita e pronta para assumir “o que der e vier”.22

22

Leia-se aqui: asumir os postos de trabalho que os homens já não querem mais, produzir e cuidar dos filhos, manter a casa em ordem, a refeição pronta e a cama feita.

Referências ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1985 (Coleção Primeiros Passos;20). COTT, Nancy F. A Mulher Moderna: o estilo americano dos anos vinte. Em: História das Mulheres no Ocidente, vol. V: O Século XX, Porto/São Paulo: Edições Afrontamento/EBRASIL, 2000, pp. 95-114. HIGGONET, Anna. Mulheres, imagens e representação. Em: História das Mulheres no Ocidente, vol. V: O Século XX, Porto/São Paulo: Edições Afrontamento/EBRASIL, 2000, pp. 402-427.

PASSERINI. Luisa. Mulheres, consumo e cultura de massas. Em: História das Mulheres no Ocidente. vol. V: O Século XX, Porto/São Paulo: Edições Afrontamento/EBRASIL, 2000, pp. 381-402. PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. (Prismas). SOHN, Anne-Marie. Entre duas Guerras: Os papéis femininos em França e na Inglaterra. Em: História das Mulheres no Ocidente. vol. V: O Século XX, Porto/São Paulo: Edições Afrontamento/EBRASIL, 2000, pp. 115-145. THÉBAUD, Françoise. A Grande Guerra: o triunfo da divisão sexual. Em: História das Mulheres no Ocidente. vol. V: O Século XX, Porto/São Paulo: Edições Afrontamento/EBRASIL, 2000, pp. 31-93.

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