A Horta

  • November 2019
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  • Pages: 5
A HORTA E OS ANIMAIS Toninho olhava para o canteiro com as mudinhas de alface, todas bem verdes e juntinhas, prontas para transplantar para o canteiro maior onde cresceriam afastadas umas das outras. Agora estava revolvendo a terra com uma pá de ponta chata, aproveitara para fazer isso naquele dia, porque havia chovido no dia anterior, e a terra, então, ficava mais macia. Mesmo assim colocava todo o peso do corpo, com o pé sobre a pá, para que ela penetrasse no solo. Depois deslocava o torrão de terra, revirava e quebrava com a pá para a terra ficar fofa. Neste ano não teriam o trabalho perdido do ano passado, quando transplantaram as mudinhas, e elas foram atacadas sistematicamente pelos pardais e pouco restou. Os pardais gostavam de comer as folhas, logo que elas começassem a brotar porque eram mais tenras e, apesar de pequenos, o bando todo fazia um grande estrago caso não se tomassem certos cuidados. Por isso, ao olhar para a alface, não poderia deixar de recordar do que havia feito no verão passado. Capturou alguns com uma arapuca feita de sarrafinhos de madeira trançados, colocando ração de galinha para servir como isca. Os filhotes mais novos, que eram os menos ariscos, ficavam presos quando a arapuca caia. Tentou criá-los na gaiola, mas, alguns dias depois, murchavam e morriam: parecia de tristeza. Foram feitos para ficarem livres. Não gostava também de pardais, porque eles destruíam os ninhos de outros passarinhos, e acabavam expulsando os pintassilgos, coleiros, carroíras e sabiás da cidade. Onde havia pardais os outros não se arriscavam. Soube que esses pardais foram trazidos pelos portugueses vez que não existiam no Brasil. - Será que há um jeito de mandá-los de volta? Gostaria de saber... Resolveu, então, que queria todos numa panela, uma fritada de pardais. Para isso, deveria capturar o maior número possível no menor tempo, para que eles não morressem antes da “festa”. Aquilo não era trabalho para uma pessoa e, então, arrumou um sócio para a empreitada, o Roberto. Comprou uma tela para construir uma gaiola grande, ou seja, uma prisão. As arapucas, gaiolas e alçapões também foram fabricados por eles, Ganhou do pai uma furadeira, tipo vai-e-vem, para fazer o furinho no sarrafo de madeira por onde passam os arames. Fez uma excursão pelo mato nos arredores da cidade para recolher visgo de uma planta difícil de encontrar e que formava uma cola espessa bem viscosa, que eles passavam num galho fino e colocavam próximo da gaiola para servir de isca. Quando eles pousassem no galho, suas patas ficariam presas, coladas e, então, os apanhariam com as mãos. Com todo o material pronto, pediram licença para usar o pátio de toda a vizinhança e partiram para a “guerra”. Capturaram os primeiros filhotes e os colocaram nas gaiolas para atrair os outros. Os pardais piavam de fome chamando as suas mães e lá íam elas parar em alguma das armadilhas e depois para a prisão. Toninho e Roberto só iam fazendo a colheita. Difícil era capturar um pardal macho, ele é todo pintado e mais bonito do que a fêmea, toda cinza, e ainda sabe cantar. Esperto e arredio, não caia em armadilhas e pressentia a presença de alguém à distância. Para esses o segredo é não ter pressa, ficar bem afastado, depois de muito tempo ele acabaria sendo atraído por algum filhote.

Todas as estratégias foram utilizadas. Veio à tona o instinto de homem caçador e predador que se situa no topo da cadeia alimentar. Depois de três dias, já haviam capturado mais de cem pardais. Eram poucos os que ficaram livres voando pelos telhados e, então, resolveram que chegara a hora de matar todos, e só aí é que foram verificar o trabalho que daria. Capturá-los foi pura diversão, mas matar, arrancar suas penas, abrir o bucho para tirar tripas e estômagos não era nada divertido. Apelaram para suas mães, elas não queriam colaborar e, ainda por cima, mandaram abrir a porta do presídio. Toninho ficou irredutível. - Soltar aqueles bandidos? Nunca! Para tornar o fato consumado, apanhou um a um, de dentro da gaiola, pelas patas traseiras e arremessou suas cabeças de encontro a uma pedra. Morriam na hora! Depois, começaram a arrancar suas penas, aí a mãe do Roberto, vendo que não tinha mais jeito, ajudou na limpeza e preparação. Convidou toda a turma para a festa: fritada de pardais. Eles devoraram tudo e ainda ficaram perguntando: - Era só aquilo? Não tinha mais? - Mortos de fome, respondia Toninho. Toninho não comeu. Experimentou e não gostou, eram muito pequeninos, não era possível separar os ossos da carne e, então, comia com osso e tudo. Aquilo ficou indigesto, largou seu prato e deixou aquela comida para lá. Aprendeu que precisava conviver com os pardais. Eles voltaram, não era possível matar todos da cidade, então, os da redondeza preencheram o lugar dos eliminados. Hoje o canteiro com as mudas de alface estava lá, sem ser tocado, porque ele conseguiu resolver o problema. Foi catar numa vidraçaria pedaços de espelhos quebrados, desses que não servem mais para nada. Fez uma armação com sarrafos de madeira onde pendurou os espelhos com barbante sobre a alface. Eles ficavam balançando e refletindo imagens, e os pardais se espantavam com aquilo. Não era apenas a alface que os pardais atacavam, gostavam também das frutas, principalmente dos figos, bastava um ficar maduro e lá iam dar sua bicada. - Paciência, não se pode fazer tudo. O velho pé de figo preto era campeão de produtividade. No final do verão, época da safra, ele dava uma trabalheira enorme para se colher todos. Faziam figada, esse doce dava um trabalho enorme. Além de esmagar todos os figos, era necessário ficar horas ao redor de um grande tacho, feito de cobre colocado sobre o fogo de lenha e ficar mexendo, com uma grande pá de madeira, para que o doce não grudasse no fundo do tacho. Valia a pena porque tinham doce durante todo o ano, inclusive com uva e chuchu colhidos da horta. Toninho não gostava de trabalhar na horta, mas vendo, não só a necessidade porque com ela não era preciso comprar hortaliças e frutas, mas porque sua mãe gostava de lidar com isso. Tentava fugir daquele trabalho, mas ela e seu pai o convocavam. Teve que ajudá-lo a podar a videira que ficava no quintal. Toninho fez a limpeza recolhendo todos os ramos que foram cortados, só ficaram os principais, mais grossos, que foram amarrados aos arames que davam a sustentação. A videira ficou irreconhecível, parecia impossível que ela cresceria novamente, ficando como no verão passado: com grandes cachos de uva por baixo de uma ramagem viçosa. Nas figueiras,

caqueiros e pessegueiros já se viam os pequeninos brotos verdes no lugar das folhas, que haviam secado e caído no outono passado. Era difícil fazer as pulverizações, com seu corpo pequeno a máquina utilizada ficava grande e pesada. No pequeno parreiral era necessário fazer uma aplicação a cada 10 dias, e nos tomateiros, toda a semana. Preparava o verderame derretendo as pedras de sulfato de cobre e misturando-as com a água da cal e. depois, lá ia ele, com a máquina nas costas, a bombear com a mão direita. Ele saía de lá todo sujo e pulverizado. O mercadinho da esquina e os supermercados vendiam o que eles produziam em casa, e muitos diziam: - Por que trabalhar na horta, se você pode comprar tudo na ali na esquina? A vontade era essa, sua mãe é que não deixava. Não gostava também de criar galinhas. - Eta bicho mais cagão. Aí estava o problema de todos os animais, era preciso limpar a gaiola dos passarinhos pelo menos uma vez por semana, mas esses fazem um cocô pequenino que não fede tanto. Galinha suja tudo. Quando precisava entrar no cercado para apanhar ovos, colocava o tamanco de madeira que sua mãe usava para ir à horta. Pelo menos a galinha não mija. Não quis criar coelhos porque sentiu, na casa do Roberto, que eles mijam e cagam umas bolinhas que cheiram muito. Ele gostava de criar passarinhos cantadores. Era sempre uma aventura sair com a gaiola e o alçapão para pegar coleiros, pintassilgos e canários-da-terra. Só os novinhos e, de preferência, os machos porque cantam. Não adiantava passarinho adulto, eles não se acostumavam atrás das grades e morriam. Toninho ia com sua pequena turma, lá para os matos nos arredores da cidade, porque esses passarinhos haviam sumido da cidade. Ganhou, do seu tio Alberto, um Cardeal muito bonito e com a cabeça vermelha. - Eu trouxe lá da fronteira do Estado. Disse seu tio. Cardeal não dava nos arredores da sua cidade. No inicio o pássaro estava arisco pulando dentro da gaiola, parecia triste e não cantava. Colocou, então, a gaiola junto ao seu canário-da-terra cantador e ele foi se acalmando, começando a cantar. Era um canto bem diferente dos outros passarinhos, mas era bonito. Era, porque ele morreu. Quando viajou de férias para a casa do seu avô por alguns dias, deixou sua irmã encarregada de alimentar os passarinhos, dando água limpa todos os dias. Quando retornou encontrou o cardeal caído na gaiola. Os outros ainda se recuperaram, mas ele, morreu. A irmã havia se esquecido dos passarinhos e eles estavam quase mortos de fome e sede. - Mulher não serve para cuidar de passarinho. Sentenciou. Ficou sem falar com ela durante um mês. Recordou-se das férias na casa do avô, o nono como costumava chamá-lo. Ele morava num pequeno sitio próximo da cidade e Toninho fora ajudá-lo na colheita da uva de um grande parreiral próximo da casa. Não era muita uva como as dos colonos que colhiam grandes quantidades e transportavam para as vinícolas. Seu avô utilizava aquela uva para fazer vinho apenas para o seu consumo e dos parentes.

Toninho aprendeu com ele a fazer vinho, esmagando os cachos numa pequena máquina manual, prensando bem o bagaço para extrair todo o suco que era jogado nos barris onde ficaria fermentando. O suco de uva era muito gostoso quando bebido na mesma hora, mas no dia seguinte já ficava com o gosto da fermentação. Naquele ano diziam que o sol não ajudara e a uva não era o suficientemente doce para dar um bom vinho e, então, aprendeu com seu avô como dar um jeito nisso. Pegaram uma amostra do suco e levaram para uma cantina e seu avô pediu para fazerem a medição do teor de açúcar e, como era baixo, pediu para o técnico da cantina calcular a quantidade de açúcar que deveriam colocar no suco. Foram para casa misturar açúcar no suco de uva e também fazer uns furinhos na tampa do barril para sair os gases da fermentação. Aprendeu que era assim que o açúcar se transformava em álcool. Por isso o vinho ficava gostoso e embebedava. Quando o vinho ficou pronto o avô mandou um garrafão para sua casa. Ele provou um copo bem grande, ficou um vinho branco e leve, bebeu como se fosse água. Era um vinho que enganava, não era doce, mas tinha bastante álcool que o deixou com as pernas frouxas. Gostava de jogar cartas com seus avôs. A nona pegava o baralho e estendia sobre a mesa. Ela era muito engraçada e gostava de jogar porque sempre ganhava. Depois ele foi percebendo o porquê. Ela roubava e blefava no jogo e sempre fazia par com o nono, Toninho, com sua prima. Não tinha o menor arrependimento por ter feito aquilo com os pardais, mas uma vez ficou sentido por ter matado um passarinho. Estava no meio do mato, numa trilha, quando surgiu a sua frente um casal de pássaros silvestres, desses que pouca gente sabe o nome, apontou o estilingue e acertou em cheio. Pegou o pássaro na mão, era muito bonito. Ele deu uma olhada nos seus olhos antes de dar o último suspiro. Ver a sua vítima morrer daquele jeito, nas próprias mãos, foi uma experiência enriquecedora. Ficou magoado porque eram passarinhos que não incomodavam ninguém e não havia sido sua intenção. - A culpa foi dele que parou bem na minha frente. Nunca mais atirou em passarinhos, só em pardais e bem-te-vis, porque eram maus, roubavam os ninhos de outros pássaros. Depois, olhou para o outro que restara, devia ser a fêmea. Ela piava num galho mais alto, olhando o seu par morto na mão de Toninho que pegou no estilingue para atirar nela também, com o intuito de ela não ficar sozinha e perdida sem seu macho. Depois desistiu: talvez ela encontre outro por aí. Todo animal tem uma forma de ser morto. Não é a toa que sua mãe mata uma galinha torcendo o pescoço, ninguém apunhala uma galinha no coração. Ratos, com uma paulada ou com a ratoeira. Não gostava de usar veneno, não tinha graças. Com as formigas, bom mesmo é vê-las queimando. Quando a gata dava cria e nasciam muitos filhotes, matava o excesso. - Para que tantos gatos? Se havia seis apanhava uns três, colocava dentro de um saco plástico junto com uma pedra e jogava lá no riacho, num lugar fundo. Esse era o jeito tradicional de eliminar gatos. Ele não tinha idade para matar porco, mas já havia visto como é que se fazia. O porco grita forte num misto de dor e histeria. Ninguém sabe como ele pressente que

será morto. Era preciso firmeza para enfiar a faca no pescoço, acertar a veia, e não desistir. Achava que era por isso que todos matavam cobra e peixe sem piedade. Aquilo que chamam de pescaria não é outra coisa senão uma maneira de matar o peixe. Retirando-o da água ele morre, e quem pesca nem sente dó porque ele, como a cobra, não grita, se gritassem, com o bando de frouxos que existe no mundo, estariam salvos. Outro exemplo de como é preciso saber matar um animal foi dado quando Roberto o convocou para ajudar com um coelho. Ele nunca havia feito isso, mas ouvira falar que se pega pelas orelhas e dá uma paulada na cabeça e foi o que fez. O coelho não queria morrer, ele batia com força, mas continuava vivo, tremendo da cabeça aos pés. Não podiam deixá-lo assim, machucado e sofrendo, nem vivo, nem morto. Aí o Roberto apontou para o machado e disse. - Vamos cortar a cabeça fora! Colocou o coelho estendido sobre um cepo de madeira e Toninho deu duas machadadas. Saiu muito sangue, mas finalmente ele morreu. Lógico: ninguém vive sem cabeça. Depois aprenderam a retirar a pele e limpar. A mãe de Roberto convidou Toninho para comer o coelho, ele não quis.

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