A Cueca Bibelo

  • April 2020
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  • Words: 28,559
  • Pages: 81
Título A cueca bibelô Autoria Anabela Natário, 1992 Edição Online 1.ª Edição - Abril de 2007 Fotografia da capa Hermann Danzmayr Grafismo Rui Justiniano Todos os direitos reservados SINAPSES Editora Urbanização Quinta das Lágrimas, lote 1, 1º Esq. Frente, 3000 Coimbra www.sinapses.net [email protected]

A cueca bibelô Anabela Natário

Para vós que vasculhais perturbações recriais ambições confundis interpretações com desejos próprios que julgais conhecer-me Maria Branca P.S. A propósito Não vos deixo um diário ou uma autobiografia! Algo inventado? Deixo-vos um registo temporário! Arquivem-no! Não preciso que me reinventem! Não sei se o descobriram cedo ou tarde, pouco importa, fui famosa, serei famosa em qualquer data. Ambição desmedida? Presunção? Tracei a vida assim, para ser o que fui, fruto de uma geração herdeira de muitas outras. Lembrem-se de mim que eu não me esquecerei.

A Baixa está num bulício. Bulício? Bu-lí-cio, Lembra-me algo, essa... paixão? Nunca me aconteceu amar perdidamente. Que coisa! Mas se coisa há mais agradável à vista é esta baixa enlouquecida, entre montras, mitos, quente de gente. E se há coisa mais desagradável, perturbadora, é uma cueca suja tanto mais de corrimento emprestado. Alucino? O globo alucina ou talvez se restrinja a loucura a esta federação europeia; desconheço quem decidiu made in (como gostam de dizer os literatos) destas cuecas. A loucura desabrocha e prontifica-se a dominar, sabe-se, é um direito do indivíduo deixar-se dominar! E a Lei protege o consumidor, mas considera o fabricante o filho querido. De quem terá partido este delírio, digamos, este delírio cuequeiro que até a mim me surpreende? Há quem queira beatificar-me, eu mereço porque me confesso neste registo hoje encetado, e merecerei, com certeza, a crucificação. A razão de romper o sagrado sigilo, publicitando a minha verdade, surge apenas para me redimir... Surge para intimidar os devaneadores que esgatanham mortos revelando intimidades alheias; dizemse admiradores, amigos, choram elogios e recordações, inventam simpatias, almas puras, génios, espíritos elevados... Quem fala à porta dos crematórios? Recolhidas as cinzas continuam a inventar verdades à medida da concorrência. Suportamos melhor a condenação à morte se acreditarmos no abrangência da dádiva, na benesse para mortos e vivos. Não peço perdão pelo devaneio, ninguém está obrigado a saber quem sou ou, melhor, quem fui, e quem quiser conhecer a personagem terá de descobri-la: narrarei as divagações que entendo necessárias à compreensão dos factos. A dúvida excita-me! Você está morto? Acompanhe-me! Como é evidente, serei parcial. Que vejo eu com estes lindos olhos azuis, que um dia serão transplantados por uma fortuna? (quando esta espécie de confissão póstuma estiver a ser lida, já eles moram noutras órbitas.) A resposta é uma montra! Simples, até aqui a normalidade acompanha-me, só o olhar vai além comprovando-me a demência. Será mesmo minha aquela cueca suja como alvitra aquele cartão escrito por mão desleixada? Ah! Diz em letra curta que Não É Mas Pode SER. Meu Deus! (Gosto sempre de O evocar nas alturas em que, na certa, é um choque também para Ele) Como é que eu não tinha reparado no outro cartão, menos cartaz, ali, do lado esquerdo? COMPRE-AS JÁ SUJAS E NÃO TEMA O CORRIMENTO! GRANDE MODA EM ITÁLIA!

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Não quero acreditar: grande moda em Itália. Itália? Não será coisa de nipónicos? Sou a única a interrogar-se enfrentando a montra. Serei curiosa? Já houve quem abrandasse, quem nem sequer olhasse. Os especialistas chamam stresse a este desapego pelas montras, os especialistas também chamam Ansiedade Erotizada ao prazer de regressar à própria ansiedade. E depois? Encontro-me nesta pequena loja que só vende roupa interior (não resisti ao apelo da cueca) e o empregado brasileiro responde-me que é ótima esta calcinha, tem um elástico tão perfeito que quase não si dá por ele e não envergonha mesmo caindo de suja, além do mais é moda em Itália, e também há estampadas... tudo por apenas algum dinheirinho. Si vendem muito bem, é o que ele diz. Atendendo aos desvarios sugeridos pelo comissionista, será sensacional ter, e ver, pendurada no candeeiro ou exposta no chão do quarto, esta cueca-bibelô! Um brasileiro vendedor de moda italiana em Portugal? Talvez não seja mesmo de admirar, aliás, nem entendo o porquê desta minha interrogação. Comprei umas cueca-bibelô. Sou incapaz de abandonar cuecas sujas, de dar pistas para se desvendar mistérios; comprei a peça para oferecer - registe-se. E a quem irei ofertar esta nunca-dantes-usada-linda-cueca com uma porca alada de cores ténues e um amarelo provocador no lugar onde tudo assenta? Penso: verifica-se um desvio acentuado no típico, mas sem implicações patológicas. Saio da loja - um dado importante dada a firmeza dos passos. Estão quatro pessoas a observar a montra, estão de queixos descaídos e braços sobrecarregados por sacos biodegradáveis cheios de necessidades prioritárias. Olham-se de soslaio e eu observo-as com a satisfação da consumidora entusiástica acabadinha de assaltar um super-hiper. Falo alto. - São giras. Comprei uns pares. Ouço-me a dar gargalhadinhas. As quatro mulheres miram-me incrédulas porque (julgo) anunciei com palmas a minha fala. Digo-vos: às vezes a boca não é minha e as mãos ganham independência, são efémeras as situações, mas sucedem-se. Tentarei evitar a divulgação de outro lapso. Faço este aviso, porque, como sou humana, tentarei evitá-los, descobri-los antes que os dedos me traiam. Continuo a passear por esta augusta rua, ansiando por música. O dito bulício incomoda-me, perturba o intermediário de sensações. Perturbar intermediários? Intolerável! Entro numa loja com uma montra cheia de aparelhómetros; cá dentro cercam-nos 6

empilhados, todavia, se não fosse a algaraviada de gentes conseguiria satisfazer-me sem impaciência. Há momentos exigentes como este: é uma urgência, quero um portátil, preciso de algo antigo para encarar melhor a minha realidade! Sinto-me uma dependente em privação. As mãos vão parar de tremer ao tocar no desejado objecto. Transpiro. Tenho suado muito neste Inverno. A minha melodiosa voz sai desentoada e perco a vez a favor dos excursionistas. Russos (para mim soviéticos, que não distingo línguas) perguntam se os preços etiquetados representam dólares. Momentos antes, o bando de espanhóis arrematara à dúzia as baratezas empoeiradas, de fabrico em série. E eu fui ficando para trás nesta confusão de turistas por direito próprio. Atenção: vem aí uma lestista, vem fixada no meu portátil, parece pronta a arrebatá-lo. Rosno-lhe, rosno também à empregada. Pago com cartão Devisa e saio em passo de corrida. Friso a mundaneidade - não me apeteceu mostrar o European Express e é imprescindível entender o facto, nem sempre sou vaidosa. Ou receio denunciar-me? Na réplica da frente, lojinha antiga com banca na rua, compro três cêdês, à toa, para me surpreender. Pago em dinheiro, não me apetece ditar códigos. E que surpresa! Um deles é do cançonetista da modinha e os outros de habilidosos artistas do ruído! Vou oferecer estas antiguidades compactadas: não colecciono músicas, abomino a intenção; há mais de uma década que os artistas do ruído me consomem. Dispenso mais bulício. Bu-lí-ci-o, ah! como gosto desta palavra. Sim! O gosto... Preciso de diminuir a intensidade do pensamento. Sinto alguém a saborear tudo o que vejo, tudo o que penso. Irão pensar que enlouqueci? E eu penso: É preciso tomar decisões, sorvê-las para tranquilizar. Estou na Praça da Fogueira, piso a homenagem à pedra terrena que cumpre a função de inibir o sobreaquecimento. Lá está Adalberto à espreita. Vem na minha direcção, aproxima-se o meu manequim privado. Correcto, moro em Lisboa, num apartamento inteligente e tenho um motorista lindo, tenho quem me conduza. De outra maneira, como voltaria a casa depois das noitecas, dos regressos do cosmo ao caos? Com quem dormiria quando há falhas no câmbio de estímulos? A quem no imediato ofereceria coisas, existências? - Adalberto, não imagina o que vi na Baixa. Uns lestistas convencidos de que o dólar destronou o euro. A empregada disse que eram russos e eu acredito, a vida dela é o balcão. E comprei umas cuecas-bibelô. - Para onde vamos? 7

- Adalberto! Tanto materialismo! Comprei-lhe uma prenda, um disco, daqueles antigos, compactos... Mas se quer saber, vamos para casa que ainda é tarde. Este Adalberto não conduz muito bem, mas é lindo! Um belo cabide que convidei a partilhar um Jaguar sem paralelo, feito de encomenda, o dinheiro é para isso mesmo, para gastar em mimos. Fica bem na viatura; e move-se como se estivesse a desfilar, continuamente. É tudo uma questão de embalagem e ele diz que continua a ser manequim, diz-se fascinado por poder servir Branca, Maria. Sinta Seu! Diga Meu! Oh! Jaguar... A frase é uma das minhas filhas, razão porque não poderia deixar de aqui figurar. Criei-a para o último modelo da Jaguar concebido para o deleite, o selôgane caiu no goto. Adalberto convenceu-se e, como não tem talento financeiro mas reconhece a arte, há três meses que oferece préstimos em troca de conduções. Parece satisfeito; alimenta-me o ego, nunca responde a provocações. Experimentemos: - Lembra-se dos selôganes? Se-lô-ga-nes de Jaguar... Reacção? Circulamos silenciosos. Gosto de apreciar este trânsito engarrafado: gente encurralada em viaturas económicas, que se coça, bisbilhota as narinas com a cabeça do dedo, enquanto atira um olhar ao semáforo e outro à vizinhança, acabando o gesto na maneta das mudanças já aterro sanitário. Também preciso de retirar esses obstáculos ao deslizar da coca, todavia sou incapaz de colocá-los onde quer que seja a não ser em lenços de papel mentolado. E há quem, de mãos suadas no volante, se mantenha sério, incomodado por timidez, quem seja capaz de distribuir sorrisos e quem queira devorar a mulheraça do jaguar. O tipo olha-me (para mim ou para o carro, não se percebe), parece enfeitiçado. - Quero oferecer umas cuecas àquele tipo. Adalberto, não arranque! Deixe-me oferecê-las ao devorador de jaguares. Esse do bêvê cinzento. Não desligar motores! Transmito a necessidade de manter o motor ligado e nada mais. Eu própria abro a janela, já de cabelo ao vento aproximo o embrulho do rosto interrogativo a transbordar de obediência. Deixo o homem de cuecas na mão, sem tempo para entender o estímulo. - Amarelo, acelera! O homem esperará o verde. É da espécie habituada a receber, mas a educação obriga-o a balbuciar desculpas. - Sim. - Sim?! O Adalberto apenas sorri sabendo que aquele seu semelhante está em 8

ponto morto e não conseguirá engatar à primeira? A surpresa é afectante. Vai gostar do cêdê que lhe comprei. O tempo de adaptação compensa. Fecho a janela. Não gosto de compartilhar falsas emoções. Tudo é télico, torna-se necessário exercitar capacidades para obter prazeres. Acabei de dar a cueca suja que podia ser minha, aliás, ser era... verdadeiramente, o par ainda pertence ao European Express, portanto, acabei de ofertar umas cuecas sujas que o European me ofereceu temporariamente. A temporalidade merece certos sacrifícios, por exemplo, despenteei a minha cabeleira branca para me surpreender com um sorriso ingénuo. Maravilha! Um acender de faróis e o estacionamento abre-se ao residente – habito uma casa inteligente e, para contrabalançar, arranjei um adorno: Adalberto, ex-jogador de basquete e amante do corpo, não bebe não fuma... mas fornica, como costuma dizer num sorriso, abanando as mãos. Tem um carácter genital, tem menos quinze anos do que eu. Dou-lhe o braço, afirmo que pertence ao meu rol de bens. - Adalberto, vamos voltear no Centro? - Sim Marianinha! - Sabe bem que não gosto desse trato. Marianinha... O meu nome é Maria! Maria Branca quando a ocasião assim o exige. Desfilamos entre gente, fria, nada sorridente. São da espécie obcecada. Uns compram, outros olham outros a comprar. Mirem! está ali um gordo, na companhia de outro, de olhar roubado por uma montra de chocolates: baba-se e é o pai do filho que puxa o braço ao pai sem conseguir demover a mão paterna da algibeira da gabardina, sem ganhar a ficha que produz um poderoso efeito quando penetra na ranhura de uma atracção. Ai, como eles adoram usar gabardinas neste protegido terreno seco! - Adalberto, será capaz de pôr uma moeda na ranhura para me satisfazer? A criança ofende os tímpanos, que tome a sua dose. - Claro, Maria. Que mais poderia dizer? Quem concebeu estas diversões tem uma deficiência congénita no pavilhão auditivo. Abafam-se vontades para impor outras e, claro, há sons que escapam ao controlo. Apesar de tudo, a controladora nacional de sons não os considera prevaricadores. Os negociantes estão sempre atentos. As crianças pelam-se por fichas, as crianças são um exército poderoso, felizmente que cada vez há menos crianças, felizmente que há muitos adultos ainda crianças senão eu teria demorado o dobro do tempo a enriquecer. As estatísticas dizem que são eles quem 9

compra os meus livros... Entramos, então, no Imprensário. Quedamo-nos junto às canetas, aperto-lhe a mão esquerda. Ei-los! os menos analfabetos, a vasculhar revistas, a folhear jornais. Eis um ruído agradável! Eis o prazer da raridade. São raros estes espaços desinformatizados, porém, hoje, não me apetece ouvir e o que necessito de saber está em casa. Adalberto? adivinho-lhe o desejo de acompanhar a dama. - Vamos embora! Baixe a cabeça! Não me obrigue a falar alto. Ponha esta caneta na orelha. Sairemos sem despertar o detector. Quem dorme não merece ser perturbado. Para casa! Temos de transpor as portas com rapidez. Sair do centro, entrar no apartamento. Talvez o elevador surja vazio. O psicólogo disse-me tudo sobre a cleptolagnia, mas será mesmo uma doença satisfazer o desejo depois de furtar uma caneta de tinta permanente? É a lei do tudo ou nada. É o vigésimo quarto piso e o elevador é um senhor ascensor: a lentidão embala os corpos, humedece a pele, catalisa o gozo. Suamos satisfazendo o desejo acelerado, rodopiamos, unidos prolongamos a excitação. Rimo-nos, os dois, Adalberto é um sábio, merece um beijo. - Estamos a descer. Adalberto... Só agora reparo na luz que se reacendera. Alguém chama o elevador e nós descemos quase nus. O comando de voz não funciona, regressamos ao ponto de partida: décimo, nono, oitavo... e é sempre nos momentos pertinentes que não se consegue atinar casas com botões. Desisto. Terceiro piso: Adalberto está vermelho, faz-me lembrar algo. Claro, o painel de comando! Pressiono o botão vermelho e o elevador imobiliza-se. Ambos respiramos fundo. Ao meu motorista só falta o chapéu; se não lhe tivesse pedido moderação ele tê-lo-ia como peça querida do seu uniforme, Adalberto encara a profissão com seriedade, tão profissionalmente que no caso das luvas fui obrigada a proibir o uso. É tão bonito vestido como nu. A luz apaga-se. Adalberto acende o isqueiro, em vez de ordenar ao elevador que suba ao vigésimo-quarto, e eu aproveito a oportunidade para acender um cigarro. Escusado será dizer que estamos num sobe-e-desce panorâmico, igualzinho a tantos outros concebidos em nome da transparência. - Abotoe a blusa Maria. - A blusa Maria! A blusa! Quem é que me disse isso uma vez? Não me lembro e não vou abotoar nada, nem a sua braguilha. Estamos aqui, estamos em casa. Adalberto, o ingénuo, olha de imediato para a fazenda vincada e ri-se aproveitando para aconchegar o conjunto orgânico que tão bem manobra. Estamos chegando, 10

entrando no apartamento. Tenho uma imensidão para fazer. Vou estender o corpo, exercitar os neurónios para enfrentar o encontro de negócios que me espera. Mais uma vez Adalberto transporta o pensamento nas cuecas, ou cueca e nunca calcinhas, como fez questão de me avisar o comissionista da baixa: cueca é pra homem, calcinha pra sinhora, disse-me. Sou obrigada a ordenar que abra a porta, depressinha, me deixe de driblar, de tentar encestar. - Adalberto! Vá, vá lá abaixo devolver a caneta, tenho muito que fazer... Finalmente só. Viva Domingo! Vou tomar o duche de porta aberta. A Adalberto ainda recuso essa visão. Desabotoar roupa, arrancá-la ao corpo é um prazer mesmo quando o feito tem por destino o banho. E a água cheira tão bem que me tenta bebêla. Estou na semana do vernáculo da lavandula stoechas, da família das labíadas. É assim: todas as segundas-feiras mudo o cheiro da água, só de uma das torneiras, por vezes gosto dela com a dose maciça de desinfectante oferecida pelo Estado; quando quero o líquido inodoro lavo-me com água mineral, mas para isso é preciso que a criatividade esteja a escapar-me, por completo, fazendo com que qualquer cheiro me perturbe. Mas este cheiro a rosmaninho!... Noutras eras, sabia-se sair da terra perfumada a melhor sementeira. Os velhos sabem e eu, rainha do Sabá, apressar-me-ei a encontrar Salomão. E se assim for... de que hei-de falar hoje, pela noite fora, rainha? Belo duche, ainda escorre. Dominarei o jantar, claro. Temos sempre um objectivo a alcançar: mente-se sinceramente para gozar algo que gostaríamos de sentir, eu assim minto, ou nunca sinto se se entender ser essa a verdade. Como actuar, então? Satisfazer um curioso sobre a mania de roubar pequenas coisas, de possui-las temporariamente? Nada é definitivo, repito: nada é télico! Contar à amiga a escapadela com o seu amigo, seu matrimónio? ou vice-versa como a vida? Porquê marcar actos de importância momentânea, com que objectivo? Por que não coleccionar momentos, momentinhos, verdades, mentiras? Aspiro o corpo no secador de banho. Afinal atravessamos um sábado, ainda não me tinha apercebido; é sábado, pois. O mundo não pára, são vinte-e-quatro-horaspor-dia e eu perco (talvez nem por isso) a noção do tempo tal qual a minha vizinha social-tecnocrata, ex-capitalista que adora perguntar em que ano caiu o muro - o muro do seu jardim de família, naquele longínquo ano de cheias da margem sul, porque Berlim sempre foi una, ao contrário do que a levaram a pensar sobre a Soviética. Não! A conversa da vizinha não me serve, são politiquices de condómino, sem fundamen11

tação histórica. Talvez seja aconselhável abrir o jogo, ir directa ao assunto e... desmistificar o selôgane da pasta dentífrica! Três Dias Por Semana! TDPS! Foi uma boa frase. Na verdade, a qualidade do produto não atingia essa amplitude, a sua eficácia ficava-se pela lavagem quatro vezes por semana, mas um estudo de mercado revelara a tendência três... Os especialistas foram chamados a actuar, apenas conseguiram atingir uma garantia de três dias e meio de escovadela por semana. Avançámos com os três, conscientes de que o meio é um mal menor. Nunca tantos dentes foram lavados por uma só marca de pasta. E os trocadilhos que o povo teceu à voltada frase... Que estou eu a ensaiar? Nunca fui de me perder em considerações. Assim, dificilmente conseguirei vestir o que distrairá os homens. Terei de arranjar um ouvidor? Terme-ão convencido, esses apelos de vozes doces que por aí proliferam oferecendo serviços? Detectam-me alguma predisposição para ligar aos ouvintes dos egos, aos lenitivos da intimidade? Afectar-me-á uma espécie rara de crise existencial? Encontrar-me-ei psicologicamente comprometida? Estarei dependente do acto de duvidar? - Adalberto, é você? Não podia ser outra pessoa, a entrada de Adalberto, seja a que hora for, faz-se sempre acompanhar pelos mesmos ruídos: diz que abre a porta de mansinho, para não me importunar, mas não resiste a fechá-la de forma brusca; avança de calcanhares, pousa as chaves a meio da sala, na coluna de alabastro. Sempre. Não quer privar-me de sair de Jaguar, não quer inibir o pensamento da patroa. Invariavelmente, consegue impedir uma mudança de condutor. Terá medo de me deixar conduzir? por mim ou pelo Jaguar? É um verdadeiro motorista. Foi a correr para o quarto. Adalberto desvaira com o meu cheiro a banho, em qualquer semana, e tenta-me a qualquer hora, sempre com discrição. Faz-se surdo para me obrigar a espreitá-lo no leito, faz-se esquecido de que tem à cabeceira um comunicador, embora sem ecrã para evitar trocas suplementares de privacidades. Também raramente uso essa via, confesso preferir o impacto visual ou, melhor ainda, o impacte gestual. Mas tenho um compromisso agendado para o jantar. Ligo a Adalberto anunciando a próxima saída, se quiser mudar de farda ainda poderá fazê-lo. Gosto aparecer um pouco atrasada. 12

Ao aparecer, depois do empregado me despir o casaco, os gémeos Miguel Celsus e o primo Fernando Cassandra levantam-se em sintonia. Estão os três iguais, de fato cinzento, corte eclesiástico, camisa branca de colarinhos abotoados e gravata vermelha. Constato: André rapou o bigode, ficou a cara chapada do mano Jorge; todos bebem Porto seco. Dou um beijo a cada um e sento-me, desculpando-me pelo atraso, sem necessidade de o fazer. Eles sorriem, murmurando interjeições. Tiro da mala a minha cigarreira prateada, mal pouso o cigarro nos lábios e já os três homens se estendem flamejantes. Trocando risos, discutimos a próxima campanha publicitária. Explico-lhes a ideia, uma ideia que acabou de me assaltar. Exponho os traços gerais. Noto alguma surpresa, estranho, entendemo-nos bem tratando de negócios. Têm confiado no meu indiscutível talento. Conhece-los bem, André está triste, mostra-se convencido à partida, o seu gémeo convence-se, Cassandra demora, ganha tempo, gosta de fazer esperar outras espécies de animais. Explico a necessidade de chegar a uma conclusão, aliás, que eles cheguem a alguma conclusão. A campanha na altura da última privatização resultara num êxito, devo lembrá-lo. O Pai a seus Filhos! Anos de entrega a uma táctica de recuperação do banco renacionalizado num período revolucionário. Há anos, a família concretizou o objectivo, há anos saboreia a reconquista da confiança dos deuses. E depois surgiu a frase de relançamento, a aposta num valor. Fidelizar clientes, aliciar outros. O Pai Protege-nos! Gosto de criar sem limitações, não propriamente sem prazos ou moralidades, desde que seja eu a definir o paraíso e o inferno. Gosto de espaço para o poder dispensar. Não me importo se crio se recrio, gozo. E que gozo me dá. Penso: exceptuar é parte integrante de qualquer regulamento. - Então acabaram-se as dúvidas... Avançamos, Pai e Branca?! - Não desperdiçará o seu precioso tempo. Responde-me o mano Jorge, o negociante, o mano André, o erótico, bamboleia a cabeça, e Cassandra mantém-se mudo, o marialva! Todos querem manter o império. O negociante, o erótico e o marialva: a combinação perfeita que aniquilará o império. Silêncio à mesa. Aproxima-se a proprietária do restaurante com um pequeno ecrã 13

na mão, mostra-nos o resultado de nos ter filmado, já com os cortes imprescindíveis a um excelente anúncio. Garante-nos: se manifestarmos desacordo, destruirá, ali mesmo, as imagens. Acredita, por nos conhecer a fama, que não recusaremos tão importante valorização do restaurante, onde preferimos jantar. Merece, é verdade. Iríamos negar aquela prática esporádica do Pape-a-Louca? Beneficiemos também da oportunidade. A vida alimenta-se de contrapartidas. PUBLICIDADE Quando a mulher aparece, depois de deixar que o empregado lhe dispa o casaco e leve o marta sem se chegar a ver para onde, os três homens levantam-se em sintonia. Média de idades: trinta e cinco anos. Estão iguais, de fato cinzento, camisa branca de colarinhos abotoados e gravata vermelho-sangue; de cabelo castanho e olhos verdes. A mulher chegara ligeiramente atrasada e eles não resistiram a um aperitivo. Colada ao corpo traz a cor das gravatas; é um vestido aveludado, franzido nos ombros descaídos. Dá um beijo fugidio a cada um e senta-se. Os homens riem-se, abanando a cabeça. Com a mão direita afasta da fonte uma madeixa loura, com a esquerda tira da mala a cigarreira, pequena, prateada. Ainda não colocou nos lábios carnudos, o cigarro sem filtro e já os homens flamejantes estendem isqueiros baços. Jantam num ápice. Os pratos apresentam-se, apetitosos, bem decorados. São as cores quentes a marcar o ritmo. Entre troca de risos, não interessa o que comem, não interessa o que dizem, apenas trocam monossílabos. Gozam o manjar, numa sala de ar renovado, decorada aos cantos com plantas e quadros de estampas imitando cartazes de espectáculos de anos idos - são árvores da borracha a crescer por de trás de molduras de madeira, molduras amarelas. Raridades. Pape-a-Louca e deslumbre-se ao jantar! O filme vai passar na fachada do restaurante, substituiremos outros afamados 14

quaisquer. Nada nos importa a não ser um outro negócio que terá de ficar concluído durante o jantar. Só André retorquiu algo, tipo: não me parece muito correcto... Regressamos ao que interessa, conversamos mais um pouco. É importante que o B do P mantenha o carisma. Banco do Pai, um bom nome! Eles, os Miguel Celsus, jamais tinham pensado em mudá-lo. Sempre fora do Pai, o banco - assim reza a história da família. Eu sei ter sido de outros quando PAI significava Prontos A Investir e mais tarde Património Alternativo Internacional (a última mudança, já com o pai dos manos, foi para Património Alternativo Intermundial). Agora evitam-se as maiúsculas, quer-se transmitir apenas o peso do patriarca. Os homens explanam palpites sem interesse. Demonstrei saber os pormenores da próxima campanha publicitária e os sócios estão disso convencidos, os sócios julgam saber que eu sei, só não sabem o que sei de facto e a família é conservadora, como convém a qualquer agregado. Eles entenderam a estrutura linear, nada mais se discutirá para não agravar discordâncias latentes, confiam em mim, não precisavam de dizer, mas fazem questão de repetir o voto de confiança. Seria indelicadeza da sua parte perguntar já os pormenores, conhecendo tão bem o modo de criar da minha ilustre figura. Saberão tudo quando a campanha estiver pronta, obviamente, estão tranquilos, respeitam os hábitos. Fernando não gosta de esperar sentado e aguarda ao balcão o registo da factura. Jorge e André acompanham-me em direcção à porta. André consegue roubar ao empregado o privilégio de me vestir o casaco, envolvendo-se, envolvendo-me. Jorge é menos excitante, mais tradicional, posicionaria o marta conforme fazem os cavalheiros. Ambos me cortejam, chegam a desorientar-me o ego. Faço-me desentendida, dando simpatia, lançando boquinhas. O Fernandinho chegou, podemos partir. Adalberto espera-me junto à porta do carro já aberta. - Boa noite, meus senhores! Darei notícias. - Boaa noitee! - Boa noite, Maria... André adora saborear cada letra do meu nome, o Jorge não. São pormenores que me ajudam a distinguir bem os irmãos, mesmo sem o bigode de André. André seduz, Jorge só raciocina. Tão iguais e tão diferentes, ricas biografias, uma história de coelhinhos da mesma ninhada - dinheiro, acção, sexo! Corta! Nada é tão simples assim, mas tudo faz parte. De que falo? Da vida... O Jaguar arranca. Estou farta destes pegajosos manos catitas que arranjam cassandras para se controlar. Quero lá saber! 15

Irei pensar na próxima campanha do Pai? Desafiaram-me.... eu disse que já sabia. Ainda nada vislumbrei. Preciso de mergulhar no sonho! Sem dúvida! A solicitação é infernal, para pensarmos em percentagens, ordens, prazos... na facilidade de tudo possuir com dinheiro temporário, de dispormos daquilo que não possuímos. Todos adoramos ser aliciados, bom, alguns adoram, há quem resista. A realidade está na cadeia dos factos, apalpemos os elos! Trabalhemos em rede. Registo: interessar as elites, atraindo os verdadeiros endinheirados, por consequência, toda a mediania, onde são raros os desligados do hábito de ter aquilo que não conseguem manter. Estou deprimida. Que pensará Adalberto? - Quer ir ao Livre Arbítrio, Maria? - Não sei. Espreitemos o cais. Entristeço, estou a ser atacada por uma forte nostalgia sem base científica. Com Adalberto dispenso as aparências, sou irascível, não disfarço ódios nem extremas paixões. Ele nada diz, claro. Deslizamos por luzes, entre banalidades. Sinto-me amolecer. É um grande dispêndio de energia, isto de albergar uma personalidade múltipla... Estou a enlouquecer e nunca me senti tão lúcida. E o rio que passa na minha Lisboa encanta-me, sinto-me uma alfacinha desenraizada, adoro o rio que lambe a minha cidade, como adoram apregoar. Raramente (gosto desta também palavra, define-me) disponibilizo tempo para a apreciar, mas sei que a adoro e pra mim é a capital. Passamos o cais, sem nos impressionarmos com o fervilhar do desfruto proibido, igual na sua essência, solução alcoólica concentrada no óleo essencial a um bom porto. A pretextos infundados, quiseram mudar a área, retirar-lhe a protecção concedida aos bairros antigos. Cada bar no seu lugar! Reconhecem-se em qualquer filmagem, e continua tudo igual graças aos destemidos marinheiros de outros mundos que resolvem enfrentar estes nossos mares saturados e nos sustentam o cais. Os espaços interiores renovaram-se, renovaram-se e regressaram à velha receita, abrindo a porta a um novo ciclo. Gritaria. Oiço berros. Quem pergunta quem sou eu? Veio do lado de fora ou de Adalberto que me guia pelo cais? Também se soubesse, também não quereria saber. Tento discernir os distúrbios da minha personalidade com a ajuda da narcoterapia, utilizando as passagens nasais. Sou, simplesmente, uma pessoa de sucesso, apreciando a possessão do êxito. São efémeras as situações em que penso o contrário. 16

Adalberto sabe do meu gosto pela beira-rio. Parar o carro de frente, apagar faróis, enfrentar a solidão... - Pára ali. Onde está ninguém. Quero cheirar! A narina direita sente dificuldade em aspirar, preparo-a tapando a esquerda, e Adalberto - um bem precioso - prepara as linhas, brilhantes carris para percorrer a acelerar. E controla, controla o desenvolvimento da excitação... Nunca esquecerei Adalberto, não mais esquecerei o melhor motorista que possui, até ontem. Mas que vejo eu? Um golfinho no Tejo? Um mamífero no Tagus? Mas a-coca-nãoína-assim, se atendermos à normalidade... Quero perguntar a Adalberto se vê o que vejo e desisto. Ele nunca me contrariará. E poderá ser uma alucinação, às vezes alucino. Em caso de estrita necessidade, o Adalberto responderá? Antecipa-se!? - Há gente no Tejo. - Que diz Adalberto? - Digo que está alguém nas águas... - Ora! É um golfinho! - Pode ser... daqui parece uma pessoa. - Muito bem! Vamos embora. Chega de cansaços por hoje. Adalberto fica-se pela repetição do Vamos. Eu completo com um Para-casa-sim! Adalberto, sereno, manobra o volante. Rectifico: - Mas vamos pelo sobe-e-desce do Rato. Com este desejo do Rato, o homem tem obrigação de ficar a saber que quero ir ao Livre Arbítrio! Quando passarmos à porta vai abrandar e eu vou ordenar que pare e me chame passadas duas horas bem medidas. Adoro ruas sobe-e-desce. Quando se entra no Livre Arbítrio é difícil seguir o racionalismo, atravessamo-nos no caminho da racionalização. O espaço está enevoado, preenchido por corpos femininos, masculinos, híbridos. Algo no ar atordoa. O som é ácido! O cheiro é adocicado, os corpos salgados e a bebida amarga. Logo à entrada, um belo jovem de traje branco vigia a continuidade da queima de incenso. Os perfumes misturam-se. Tudo se concentra nos corpos. É obrigatório deixarmos os casacos no menino do bengaleiro sob pena de nos serem retirados, a qualquer instante, pelos funcionários dos serviços administrativos da Autoridade que à noite zelam pela segurança local. Hoje em dia, há ordem na desordem. Não quero acreditar! Nunca quero acreditar e acabo por consentir. É de André a primeira cara no meu olhar. Belo André, mas a Maria não lhe apetecia vê-lo, para já. Pretendia desfilar, sorver fragrâncias, deixar o nariz arrebatar odo17

res, destrinçá-los. André cheirava a violeta, ao jantar... - Viva Maria. - Oh André, surpreendeste-me! Aproximamos os rostos, fingimos beijar as faces, cumprindo o estabelecido por estudiosos dos bons costumes. Preferíamos ter surpreendido as bocas. André, o erótico, continua excitante, mesmo cheirando a bebida. Pergunta se quero beber. Apetece-me, sim, e logo ele tenta infiltrar-se entre as dezenas de bebedores disfarçados de dançarinos, que mal deixam vislumbrar a saída dos copos. Raramente me desloco ao balcão para satisfazer um gosto, aproximo-me de André para labiar: - Vol-to-já-já! Aceno (até parece que vou a um lugar previamente determinado), invisto o corpo em busca de um choque de emoções, dou a volta ao interior, espreito o jardim: caras conhecidas, nada apetitosas, embrenhadas em metafísicas pouco convincentes. Sempre as mesmas personagens de papéis decorados... pelo menos André diverteme, com as suas extravagâncias, e deve esperar-me com duas bebidas. Regresso ao ponto de partida. - Sou bom de mais para existir... De voz firme, André balança o meu copo. A neurose do ego assalta-o, ao jantar detectara-lhe algum transtorno... Digo-lhe que me parece confuso, algo cansado, que mesmo um bom conhaque desfaz o fígado. - Apetecia-me deitar tudo pela janela e... Fora! Não ligar, ir! Nada a prender-me a esta terra traiçoeira. Não parar, seguir! Transpor margens, desfazer todas as pontes e... prosseguir. Não chorar, sorrir! - André, isso é patético... - Então, longe, nas profundezas do meu ser, pegava numa flor e... ESQUECIA-A! - André, engasgas-me. Não ficaria pior se me dissesses que sofres de uma doença incurável. - Se eu quisesse partir, deixavas-me ir? Esquecer-te, assim, como quem atira uma flor ao rio? Apanha-me desprevenida, nem sei se brinca se me atormenta. Confesso: nunca vi um Miguel Celsus tão debilitado. Palavras enganosas? Desconheço se a apresentação de um ego confundido faz parte da sua actual estratégia de engate, penso que não, apesar de conhecer alguns casos de rendibilidade, casos raros. Ninguém quer um ego amolecido. E a nós, os inteligentes, irrita-nos a mentira fácil. Digo: Os hábitos são difíceis de abandonar, os vícios, esses, não nos largam. 18

- Rico chavão! André, o libidinoso, assim me habituou a aceitá-lo, quase a amá-lo... desilude-me. - É verdade, digo-te. Sabes? Desde que acordei contigo, nunca mais fui capaz de me entreter... com as mulheres que me atraem, que atraio. E soubeste de muitas. Não as evito e envergonho-me quando me desculpam a impotência. Transformaste-me numa obsessão, impossível de saciar. - Eu? Maria? Ouves o que digo? - Conclui afinal não te amar. Por ti julguei-me apaixonado. Teu namorado... Tudo mentira! Destruíste a minha confiança no erotismo, destruíste a minha dama. Castraste-me, sem me impedires de prosseguir com leviandade. Nunca fui nada, nem por ti, nem por ninguém. - André, estás bêbado... - Farto! Cansado de me verem bonito, menino rico e extravagante. Resolvi-me e sinto-me descontraído, repousado. Não interessa o que irei encontrar. Farto, estou de saber o que me espera. Não te odeio, apenas te descobri. Sei quem és, quem sou... Amo outro, afinal! - Outro? Pára André! O assunto assume-se demasiado sério. Tens a certeza de quereres... falar-me dele? Como deverei entender esse teu... desabafo? Tenho frio. Devo gritar, no Livre Arbítrio, que gosto dele porque me diverte? que julgava a sua leviandade um pacto assumido e que ele fosse o verdadeiro dono daquele peculiar vozeirão? que me lembro de com ele ter-me deitado? que todos desejamos atenções mesmo sem nos esperarem grandes divagações? que adoro ser um génio imbecil? Penso: Nem sempre o registo se assume, mas a sistematização corrompe-nos. - Maria-Maria! Vem comigo! - Mas... já? Talvez um dia... - Só esta noite. André aperta-me o braço e os lábios cerram-se. O ritmo entontece-nos. Desconheço como ainda aguento esta disforia. Duvido da probabilidade de envelhecermos juntos. Dúvidas. Quarenta anos. Qua-ren-ta! Eia! E há um homem que me aperta o braço sem eu querer. Tento evitar aquilo que me tenta.. Pura lógica de autocensura. - André, ainda bebo! - Traz o copo. Vamos! Puxa-me pelo braço, a mim, inimiga figadal dos arrastadores de humanos. 19

Desprendo-me com um ANDRÉÉÉ!!!!!. Passo-lhe a mão pela cara, suavemente, digolhe ir à casa de banho, voltar-já-já. O trajecto até ao extremo contrário é conturbado, o Livre Arbítrio enche-se de corpos descoordenados. O Livre Arbítrio descoordenanos por uma questão de sobrevivência. Vem-se uma vez e é-se fiel (coisa estranha e doce) impossível passar de outra maneira certas horas da noite – esta é uma realidade. Empenho-me no reencontro. Apenas quero observar André, de mansinho. Talvez vá com ele, talvez não, deste André guardo encantamentos. Perdi-o. Onde se encontrará? À entrada, no menineiro? Mexo-me bem. Estou de copo na mão, no bengaleiro, e André não. Dou o código ao menino, recebo o casaco. Encubro, com a falsa pele, o copo prateado do Livre Arbítrio. Saio. André também não está na rua. Adalberto não falha. O Jaguar espera-me à porta. É único este Adalberto. - Vamos embora. Viu algum Miguel Celsus? Viu alguém? - Não Maria, vi ninguém. - Hum... responde-me à letra, imita-me? Então, irei sentada a seu lado. - Como queira, Maria. - Roubei um copo do Livre Arbítrio. Guie, para casa à velocidade do som! - Sim Maria... Desculpe, Maria, mas terei de devolver esse Livre Arbítrio? Ainda hoje? - Adalberto! Beija-me! Cumpridor, sabe bem desenvolver as ordens recebidas, sem exacerbar. Classificação: Excelente; óptimo funcionário, muito dedicado. O copo foge pelo chão, os corpos lançam-se pelos bancos, algures entre o Livre Arbítrio e a minha cama, talvez estejamos no largo do cauteleiro, parece-me ver o chapéu do homem de bronze. Quanto mais evoluo mais me seduz o acaso matemático, basquetebolistas dinâmicos com a noção exacta dos movimentos precisos a uma boa jogada. Cesto! Em casa dormirei, estou perto. Acordo, esquecida de como encetei o dia. Reconheço estar em casa, na minha cama... desconheço o paradeiro da minha almofada. Sento-me a custo, maldita dor de cabeça, descubro uma nódoa negra na perna esquerda. Estou despida. Deito-me nua, de pele perfumada, até aqui nada difere do habitual, mas tanta confusão na minha cabeça... Necessito de um revigorante, sei que nem a efervescência de duas pastilhas vai conseguir pôr fim à ressaca das conveniências nocturnas. Odeio acordar com o dinamismo fabricado via rádio, odeio ouvir besouros. Odeio 20

acordar, portanto, começo por avivar o espírito, desperto-me inspirando! Vou recordando a noite: vi um golfinho no Tagus e perdi o André no Livre Arbítrio. Afinal que fiz desta madrugada? Não acredito! A rádio fala sobre um corpo a boiar no rio, fala dos gémeos Miguel Celsus... - Adalberto!!! Onde é que andará o basquetebolista? logo desaparece quando preciso de uma confirmação. Desperta, julgo o golfinho um milagre. As promessas são ofertas de probabilidades, as probabilidades são verosimilhanças: parecem realidades, parecem... Talvez um dia, o rio volte a permitir ver os saltos dos mamíferos, já outros nisso acreditaram, talvez tenha visto um golfinho. Calar-me-ei, nada de trunfos gratuitos para os ecopolíticos. Adalberto bate à porta, sussurrando marias, entra de bandeja. Nunca o despedirei, sabe satisfazer-me ao despertar: sussurros, torradas e café. - Bom dia! Já ouviu as notícias? Adalberto falou ao pousar o tabuleiro? - Acabei de ouvir a rádio Aélisboa. Foi finalmente constituída a comunidade económica soviética; foi inaugurada uma exposição para relembrar Berlim, milhares de pessoas participaram com pedaços; o oriente continua fascinante, enraivecido; o euro flutua; há guerrinhas por aí. Nada de novo... - E disseram que apareceu um corpo no Tejo, e disseram que poderá ser um dos gémeos Miguel Celsus. Não escutou? - Escutei, sim. Não seja indelicado. É preciso confirmar. Ontem, insistiu ter tido uma visão diferente da minha... - Pareceu-me uma pessoa, a nadar, a meio do rio. - A nadar naquelas águas? Não podia ser André. Estive com ele no Livre Arbítrio. - Coincidências, Maria. Adalberto o protótipo, pensa que o acaso tudo explica. Vive feliz, sem necessidades exuberantes. Entende de tudo. Deliciosamente empírico, portanto, raro. Acende-se a luz vermelha do comunicador! Uma urgência. Peço a Adalberto que atenda a urgência na sala-escritório - não é um escritório, não é uma sala, é um espaço à medida da minha personalidade. Gosto de me levantar enquanto dura a última torrada. Uma da tarde, ainda é cedo. Hoje o escritório será sala, não trabalharei. Mas não desligarei o sistema, a inteligência caseira que controla ligações, comunicadores, intercomunicadores, portas, máquinas, brrr! Irei espairecer à beira-rio, desprovida de qualquer comunicador, sem o 21

Adalberto que já está à espreita na porta do quarto. - É o senhor Miguel Celsus. Atende aqui? - Pensaste, por acaso, estar eu disponível para quem quer que fosse? - A urgência do senhor convenceu-me. Não sei se é André se Jorge... São todos senhores para Adalberto. Desculpa-se com a notícia da manhã, obrigame a falar, a escutar a voz grossa, desprovida de qualquer entoação sentimental, falando sobre o corpo de André. A voz grossa lembra-me André, são quase iguais. Fala-me neste momento quem reconheceu o morto e conseguiu anular a autópsia. O funeral é às seis da tarde. A moda dos horários vespertinos impõe-se. Mas ele não me contactou apenas para demonstrar saber de cor a cartilha, quer informar-me sobre o funeral, assegurar que o negócio continua, perguntar-me se tinha visto o irmão, algures, de madrugada, no Livre Arbítrio, ao pé do rio... Disse-me: não mais vi André desde a hora do jantar, desde que o ouvi murmurar ao seu ouvido o convite para o Livre Arbítrio; talvez a Maria o tenha encontrado ao longo da noite. Ele sabe do meu apetite por noitecas, agitações... Talvez me tivesse cruzado com ele, sabe... Avisa-me de que o corpo foi descoberto pelas quatro da manhã, disso não existem dúvidas. - Impossível! A essas horas eu estava com André a coberto do Livre Arbítrio. Não sei bem a hora, mas palpita-me que fossem essas. Quatro. Não pode ser! Disso não existem dúvidas, não há que criá-las. Repete-se três vezes para me aconselhar a pensar: PENSE BEM, quando o pessoal do porto descobriu o cadáver o meu irmão estava morto há algumas horas! E relembra serem as quatro da manhã, uma garantia médica registada na certidão de óbito. Não consigo interrompê-lo, também nem sequer tentei. O alerta partira de uma voz masculina, um denunciante anónimo utilizara as telecomunicações, como se fosse possível manter o anonimato... Como se tudo isto fizesse parte da realidade. Preciso de repensar como passo as horas de lazer. - Se eu tenho a certeza do que digo? André? Jorge, ainda estou a acordar. Deixese de ironias, claro que estava ébria. Jorge pede desculpa, pede mais um favor: se me importo de ir esclarecer a Autoridade, devo ter sido a última pessoa a vê-lo; providenciou para não me incomodarem muito, conforta-me com a palavra pró-forma. Decido-me: vou à polícia, quem lá não vai uma vez, pelo menos? Apareço nos Restauradores. Olham-me surpresos, tão admirados que ninguém pergunta ao que venho. Desço às profundezas da super-esquadra. Dirijo-me a uma 22

porosidade na vedação transparente que guincha um Queira Aguardar. Levanta-se um rapaz fardado à Citadino – a polícia mais próxima do cidadão -, abre a porta do cubículo e esgueira-se por um imenso corredor de paredes nuas, com um banco corrido, bem centrado, encoberto por miudagem mal cheirosa. Pensava que fossem mais evoluída esta classe de citadinos, são parentes pobres. - Foi chamar o comandante. Oiço murmurar um raso, entre o arrastar das botas enlameadas pela sala de espera, onde só eu destoo vestida de amarelo, a cor que eu entendo que uma pessoa deve vestir quando se apresenta à Autoridade. O Queira Aguardar regressa com um sorriso duvidoso, abre-me uma porta na vedação transparente, leva-me por outro corredor de paredes nuas até à porta fechada do seu superior. No gabinete, uma pequena janela, na penumbra uma farda a rebentar de gordura. Repito onde vi André, quando, onde, que o meu motorista sabe, pode testemunhar, deitar-me o fogo (oh! escapou-me esta frase bélica! o corpo de Adalberto...). O polícia de preto não raciocina, não se mostra muito indelicado, abana a cabeça, acha pouco credível Toda a História (Todinha) e Não Vale a Pena ocultarlhe qualquer pormenor, diz-me ele. Acredita que nada tenho a esconder, reconhece vagamente o que a senhora doutorada representa, conhece o nome Miguel Celsus, e pergunta-me pela carta de condução, com o mesmo despropósito com que gargalhou ao achar estranha a história de ter um motorista/mordomo/amparo. Não espera pela carta, aconselha-me a pensar melhor naquilo que pretendo impingir: a Autoridade Especializada há-de querer ouvir-me, com toda a certeza, e a Autoridade Especializada não se interessa por histórias infantis; só por si, claro, não se levantariam quaisquer problemas, conhece bem Jorge Miguel Celsus... Os Citadinos são conselheiros delicados, bem humorados - assim os vendi a pedido do Estado, uma campanha como qualquer outra. Penso: somos uns vendilhões. Desdenho templos. Farto-me do ar enfadado deste graduado superior, comandante de esquadra com aspecto de taxista nas horas vagas. - Boa-tarde, citadino-chefe. - Boa-tarde, escritora Maria... publicitária. E fica à procura do apelido nos papéis que se confundem com o tampo da secretária. É tudo tão transparente... Tonto do Citadino. Tonto! A minha história... aconselhar-me a fabricar uma história por achar a verdadeira pouco credível. Acusa-me, de forma velada, de ter concebido uma lengalenga, de propósito, tal como julga que crio 23

uma história infantil ou um anúncio... Vi André, sim! Terei sido a última pessoa a vêlo, talvez. Para mim, André não morreu, pelo menos à hora que parece dar jeito a todos. Alguém nadava de madrugada, sem medos, aí pelas... Não sei, o problema é que não sei. Foi quando estava à beira-rio a manobrar a tensão. Não podia ser André, mas a Autoridade diz que sim. Adalberto sabe, claro, se for caso disso, o meu motorista virá depor. Todos esperamos que não se atinja esse extremo, na certa, um incómodo desnecessário. Estamos de acordo, e eu ao dispor da Autoridade, sem dúvida. Saio da esquadra sem receber continências. Adalberto deve estar algures por aí. - Adalberto! Leve-me daqui... - É pra já! O temor de Adalberto à Autoridade, faz-me desconfiar do mundo do desporto e do mundo da moda. Interessa-me pouco o passado de Adalberto, este homem habita no meu presente. Circulamos, silenciosos. O meu nome é Maria. Sou virgem nascida a 28. De que ano sou? Em que ano estou? Importam as datas quando a obra nos imortaliza? Petulância? Apenas a concretização de uma vontade infantil. - Naaaaão! Naaaaaão! Acabo de gritar à janela do Jaguar. O semáforo avariou. Aparentemente as reacções contêm-se. O semáforo afinal funciona, nunca deixou de controlar, se calhar está apenas mais lento, com a óptica cansada. Muito calmo permanece este mar de veículos. A imobilidade permite concluir que nenhum condutor, nem sequer um, me desculpou o grito, sou alvo de muitos olhares. Continuamos encurralados. É proibido gritar? Há quem me olhe interrogativo, há quem atire ares de zangado. A inveja subverte os valores e alimenta-os. Um condutor queixou-se do grito e o Citadino aproxima-se. Adalberto não espera pelo agente da Autoridade, aproveita a deslocação dos chicos-espertos e zarpa avenida acima. A ida e a fuga à polícia não conseguem aborrecer-me, André sim. Contornamos o Marquês, subimos três pisos de rua e atingimos o Moreiredo, a acelerar, tudo se processa aceleradamente. Já em casa visto-me para a Basílica Principal, para a cremação no cemitério Parque-jardim, para os funestadores que nunca distinguiram os gémeos e sempre hão-de confundi-los. Enterrarão André, como enterrariam o mano Jorge ou mesmo outro qualquer, é-lhes igual, é-lhes imposta esta movimentação e a moralidade decalcada, a obrigação de conviver impõe há séculos a manifestação do sofrimento, na essência a teatralização. 24

Penso: Trata-se de uma fixação tradicional. Libertar Barrabaz para não privar Cristo da ressurreição. Haverá quem sofra, aqui no templo católico em que André nunca admitiria penetrar. Eu (amava?) gostava de André, não me atraia somente aquele físico esbelto, senão teria aceite as ofertas do gémeo; não sentia somente uma atracção, achava graça à globalização da personagem. Nem sempre tinha paciência para o aturar, quando em presença de ambos os Celsus, pior. Mas André entoava de maneira peculiar a palavra Maria e comungávamos, sobretudo, do asco ao aborrecível. E estas duas aqui pertinho, a meu lado na fila do templo. Benzem-se às ordens do sacerdote, aproveitando a missa, apreciando o gémeo sobrevivente à luz do morto. Somos fatos adequados ao momento solene que assinala a ida da terra para a terra. Somos muitos, compenetrados na nossa missão de carpideiras. E oiço as duas mulheres imaginando como arranjar substituto para o rebuliço, uma menos discreta que a outra quase impõe as vozes à leitura da cartilha: a morena de chapéu de renda preta bichana ao ouvido da outra, no momento preciso, quando o mano ameaça recitar em memória do irmão. Oh ironia, rainha das figuras! O tempo é real. Ouçam o que oiço. O Mano Jorge, a Morena de Chapéu e a Outra. A morena de chapéu – Era linda aquela membrana, aquele corpo másculo e titânico, como é o de... O mano – Sabemos bem que o corpo é como uma habitação onde vivemos, que nos reveste. E que quando estiver destruído e morrer, teremos no céu... A morena de chapéu – A sua beleza, de tal forma apetitosa, que não nos cansamos de olhar, voltar a saboreá-la quando? Resta-nos um para... A outra – Sim. Cale-se. O mano – ...que viverá eternamente, preparado por Deus e... A morena de chapéu – ...até os dedos dos pés são bem feitos, de cabeças redondinhas e unhas bem cortadas, gostosos... A outra – Já chega! Oh! O mano – ...e é justamente por isso que ficamos cada vez mais cansados do corpo, de... A morena de chapéu – ...ficar louca, desvairada! Ao olhar perde-se a visão, ao ouvir aquela voz perde-se a razão. Fala com as mãos, aquelas delícias perfeitas, esculturais condizentes com o todo o resto, com a excitação de... A outra – Atão!? 25

O mano – ...enquanto vivemos neste corpo terreno sentimo-nos oprimidos e carregados com... A morena de chapéu – ...saltar-lhe para os braços, cada membro lindo, esbelto, confortável... A outra – Basta! O mano – ...que quer que façamos ou sejamos é o resultado do amor de Cristo, que pressiona... A morena de chapéu - ...dos braços, fixávamos-lhes os olhos, olhos verdes, inflamados, convidativos, espelhados, tristes. O mano - ...e se ele morreu por todos... A outra - Basta! Basta! Então? A morena de chapéu - Não. A tristeza é quente. Nos braços, importam os olhos? e o nariz? ser ou não aquilino? O mano – ...agora não avaliamos mais as pessoas por aquilo que elas possam parecer... A outra – Será preciso implorar que pares? A morena de chapéu – O apêndice é um factor secundário. Depende. Sim! Mas nos braços, eis aos olhos o inevitável: preto e farfalhudo, difícil não se notar. A outra – Tinha-o rapado, há muito... A morena de chapéu – Teve-o! De bom corte, charmoso. Um encanto secreto a tornear o lábio superior, de morder e chorar. Mais rubro, era, notava-se o inferior, mesmo quando escondia os dentes selectos, sempre... O mano – ...é obra de Deus... A outra – Chega! Cala-te! Domina... A morena de chapéu – A boca ainda mais rubra e apetitosa... Não fora às vezes o álcool... Uma boa cama, até... O mano – ...confiou-nos a missão de anunciar essa reconciliação com... A outra – ...a ultrapassar os limites do bom senso. A morena de chapéu – Ora, tu própria me despertaste o apetite ao descrevê-lo. Que digo agora? O que relataste e o que eu provei. O Jorge será igual? Pelo menos parece... O mano – ...exortamos a que não deixem que a sua bondade vos seja anunciada em vão! - Acabou a missa! Digo eu! Finalmente o silêncio. As morenas obrigaram-me a um esforço suplemen26

tar. Queria apreciar o Jorge, descobrir-lhe o sofrimento, desvendar o futuro, ver André. Pura curiosidade, a mesma culpada do esforço feito em prol da audição do bichanar. Prol! Também gosto desta, não vou prosseguir, recuso-me a acompanhar-lhe as cinzas até à casa da família. Tenho um compromisso com outra espécie de Miguel Celsus, se bem o conheço não irá adiar o nosso jantar, as emoções não devem interferir nos negócios. - Adeus, até prá semana. Entrei na semana da odorata, da família das violáceas. Uma linha mais e escapava à omissão dos últimos dias – uma semana a lavar o meu físico com água mineral e nada de problemas profissionais. Sete dias para ignorar. Lembrarei apenas Adalberto, o seu nome. Assalta-me, o meu lado ternurento? São zero horas e descubro-me dois pisos abaixo do meu. Estou na casa dos Zacarias Albuquerque. Abandonamos a majestosa mesa de pé-de-galo. Sentamo-nos nos sofás moles, brancos de pele. Sentimo-nos instalados, confortáveis. Quantos somos? Quem somos? Importará saber? Jantámos, sim. Manjámos é a palavra mais adequada. Dantes, sentávamo-nos em bancos de cozinha, quatro pés ligados por uma tábua, amparávamos os braços no balcão frio; confrontávamos teorias, cruzávamos experiências; chegávamos mesmo à irreverência, à violência, e os bancos caiam ao erguermo-nos exaltando a utopia. Eu explico, somos os mesmos quatro: eu, Maria Branca, o Jacinto Silva Crista, o Onofre Zacarias Albuquerque e a Constança Zacarias Albuquerque. Hoje, por tradição, trocamos banalidades. Ba-na-li-da-des. Ba-nal-ida-des. Velha mania a minha de silabar. São engraçadas, as sílabas, mesmo sendo difícil combiná-las. Penso: Temos conhecimento da tendência para a acção, praticamos a tendência para a aquiescência. Dirigem-me palavras. Àquelas que oiço respondo por impulso da memória. Oiço o meu apelido. Sou obrigada a prestar mais atenção. Provocam-me o discurso na tentativa de saborear o gozo da minha atracção pelo alheio e aliciam-me com revelações comportamentais. Querem explorar a superficialidade. Explorar é um esforço que a moleza da pele do sofá não permite. Estamos bebidos, enterrados... que não se entenda o contrário: gosto desta pose cómoda, enformada, não dispenso o jogo do psicanalista, não gosto de ditos populares, na generalidade, na especialidade aprovo aquele de quem desdenha. E estou consciente de que abusei do povo na última campanha legislativa.

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Quem Desdenha Quer Votar! QDQV! A abstenção diminuiu. É um facto que coincidiu com o lançamento do Votonet, com absoluta garantia de anonimato. Não mais trabalharei para governo do Estado. Jamais contarei o episódio das cuecas estampadas aos meus amigos de condomínio, castigo-os por nunca terem cultivado o passeio pela Baixa, por terem cedido o bulício aos suburbanos. Prometem calar-se em troca de (sempre em troca de) histórias publicitárias. Esta noite nada direi! Provocai-me até à exaustão, não cederei. Todos conhecemos os Miguel Celsus. Encontrámo-nos na Basílica. Desconheço se o trio acompanhou até ao fim o acto fúnebre, já bebemos dois cafés, sorvemos a terceira bebida e nem um som acerca do acto e dos Miguel Celsus. Nada digo, portanto. Jacinto livra-me de embaraços. - Fumemos primeiro para alterar o discurso vindouro. Jacinto propõe, carregando no botão da sua cigarreira preta. Tira um charro de mortalha verde. Onofre e Constança abandonaram o haxe desde a troca da vivenda no Estoril por este apartamento no Moreiredo. Só dão uma fumaça por mês. Eu própria deixei de sorver, com a assiduidade adolescente, esse tipo de induzidor. Tomada pela gula haxeana, devorando bombons e bolinhos de areia, recriei as infantilidades de Maria Branca, escritora respeitada pelo grupo dos reinantes, convertida às linhas publicitárias, inteiramente publicista. Discordo das condecorações, acabo por aceitar as imposições, sou educada, sou uma cidadã cumpridora da lei, mas tenho o cuidado de enviar outrem a recebê-las em nome de Maria Branca, a renitente agradecida, a louca enraivecida. Afinal, qual o motivo da troca dos Zacarias? Mudar a casa da costa rica para o centro capital? Por que mudamos? Talvez seja normal. Os irmãos Zacarias adoram parecer normais. Espirro! duas vezes. É geral a satisfação. Onofre aproveita para congratular o meu húmido discurso. - Finalmente diz algo com nexo, Mariazinha. Perdão, Maria... Goza-me, a mim, Mariazinha... Onofre está recuperando o bom humor, devagar mas está. Ele próprio volta a dizer num sotaque brasileiro apanhado ninguém sabe onde: - Estou recuperando... Estou recuperando! Rimo-nos. Os quatro reunidos pontualmente para um jantar mensal, social, desde 28

que habitamos o Moreiredo. - Pensas tu... Desdiz Jacinto, acendendo um charro cor-de-rosa, dedicando-o Às Ausentes e Às Presentes. Todos anuímos. Este grupo não se reúne para sobrecarregar a consciência. Os quatro, impensáveis mosqueteiros, apenas desejamos divagar na penumbra aproveitando a inspiração do fumo. Uma vez por mês. - Pensar exige um esforço nem sempre reembolsável. Um duplo esforço. É! É-se obrigado a pensar para obter esse esforço... Onofre balbucia, julgando-se eloquente. Onofre é um ilhéu, dos que jamais perdem uma vaga, assim como o atraso na reacção e o embargo na voz. Eis a minha oportunidade de baralhar o jogo: - Pensamos enquanto pensamos. Existirão enquantos fora do pensamento? A Constancinha não perde tempo e afirma que há muitos em pensamento... Onofre acentua as rugas da testa, coça o nariz. Insisto: - São todos os enquantos... - Penso que não é assim. É uma verdadeira tontaria... Onofre perdeu o rumo ao pensamento. Nada de novo, Jacinto irrita Onofre: - Pensas... o teu pensamento atraiçoa-te. Lembraste? - Os enquantos não me preocupam. Passam. Passam-me pelo pensamento, passam! Onofre fala erguendo o indicador deformado pelo tiro ao alvo, uma das suas grandes paixões. Do meu sofá, riu-me recitando uma máxima: - Enquanto acontece já passou! Constança, pronta a confundir, aproveita a deixa: - O esforço é uma obrigação. Não, não pretendo dizer que devemos fazê-lo... - Esforçarmo-nos? Com que finalidade? Qual é o fim? Qual é o princípio? Só de pensar nesse duplo esforço que é pensar para e usufruir de. Claro que eu não penso assim, mas se eu não penso quem pensa por mim? Antecipo-me à fala de Jacinto, passando-lhe a beata cor-de-rosa. Passo a Jacinto, administrador bancário, reformado aos quarenta anos por deficiência mental; se não tivesse incendiado o gabinete do presidente da instituição, não mais se teria libertado do quotidiano na Torre das Necessidades, dignificante sede do Pai. E Jacinto acena-me com mais um induzidor fresquinho, desta vez, azul. Os irmãos Zacarias Albuquerque, peritos em investimentos, julgam-se filósofos, prosseguem a saga do pensamento. Já raramente se filosofa, eles são um péssimo exemplo. 29

- Eh! Eh! Não a entendo, mana Constancinha, quando se põe com essa filosofia de beco... - Diz antes Onofrinho, alto e bom som: não ouso responder-te, não quero baralharte! - Tremo, só de pensar como tu Consta, sofista, podes sufocar com tanto cepticismo. - Não entendes nada Onó. A prioridade é a procura... - Diz. Não te inibas! Sou Onofre Zacarias Albuquerque, gestor, grande atirador. - E eu vou ascender ao vigésimo-quarto. Não achas Jacinto? Chegou a hora de deixarmos os manos. - Talvez Maria. Depois de fumarmos este verdinho ainda pela metade. Fumamos envolvidos por uma musicalidade apaziguadora que interrompe as divagações. Um Franzqualquer a interpretar Clássica; Constança disse o nome ao sintonizar a música. Já esqueci. Ouvimos em silêncio. Fumamos. Jacinto passa a Constança, Constança passa a Onofre, Onofre passa-me a mim – a alucinante sucessão passa-se em ritmo lento, a passas profundas. E eu mato a beata, sem... - Apelo nem agravo! Caminhemos Maria. Jacinto lê-me o pensamento, quero dizer, capta a ideia. Raramente penso em termos proverbiais. Os meus clientes sabem disso! Levantamo-nos dos sofás com algum sacrifício, saímos da sala. Beijo dois manos e Jacinto um, dou dois beijos e sinto um. Saímos os dois, permitimos aos manos baterem com a porta antes da chegada do elevador. Rumo à saída, Jacinto desafiara-me para roubar uma das duzentos e sessenta e seis minúsculas fotografias dos Albuquerque, algumas provas únicas que os Zacarias Albuquerque (talvez apenas Onofre) insistem ostentar em molduras circulares à direita de quem entra no apartamento. Por quê? Para que me interrogo? - Deves-me um beijo malandrim! Imponho a minha voz melodiosa, mostro a fotografia de um Albuquerque a um Jacinto surpreendido, de mãos nos bolsos. O riso aproxima-nos, carrego no botão 22, beijamo-nos. Tropeçamos várias vezes um no outro, abre-se a porta e enrolo-me no meu bom amigo pelos dois lances de escadas, até à minha porta, até ao meu quarto. - Pssst! Não acordemos Adalberto. - Tu e esse teu motorista... E o que fazemos à foto? Jacinto questiona o destino da fotografia desviada, aconselho-o a guardá-la para 30

uma noite qualquer a devolver à parede dos manos. Entrego-lhe o meu frasquinho de cristal, proponho a partilha de um trilho mágico. - Maria, somos quarentões, conhecemo-nos há décadas, partilha algo mais comigo... - Tu és um quarentão, eu conto apenas quarenta anos. Desculpo-me, abro a porta do roupeiro e entro na sala de banho. Jacinto escolheu a mesa parisiense de aço retorcido, de tampo transparente viciado em alcalóides. Traça trilhos com o seu European Express. É justo! Ao fim dos jantares mensais do Moreiredo, Jacinto acompanha-me a casa, beija-me, entra no meu quarto e cheiramos para estoirar a madrugada. Adalberto, sempre atento, irá buscar-nos ao Livre Arbítrio, cumprindo o ritual. À luz do dia, eu e o meu amigo Jacinto entraremos no Jaguar e seremos depositados no M3, cada um em seu apartamento. Não reservei esta madrugada para tal diversão, apetece-me variar. Pôr fim a dependências. Refresco a cara com o cheiro das violetas diluídas. - Jacinto, que pensas tu sobre a morte do Miguel Celsus? Interrogo-o sem convicção, enquanto compenso a mucosa inspirando o perfume de André, deixado na toalha, na noite passada. O magana responde-me com outra interrogação: - Por que não falámos do assunto lá em baixo, em casa dos Zacarias? Não pretendo dar este rumo à conversa. Várias vezes prometi a André, reflectir, a sós, sobre ele. - Tu achas que o aroma a violeta é excitante? Posso? E aspiro boa parte do milagre em pó destinada a esgotar-se amanhã. Permito a partilha do meu tubinho de platina, Jacinto mostra alguma surpresa, hesita alguns segundos, e aceita. Ruidosamente, aspira o branco restante e agradece com sons incertos de garganta adormecida. Eu volto à casa de banho para retocar a pintura. É rápido, um pouco de batom é o suficiente para renovar a maquilhagem. Já o disse e consagrei em público. Bouche É Batom! Batom Bouche! BB! - Vamosprárua. Jácinto! - Bóra, Maria. Como naquele teu anúncio. Goze A Imensidão De Um Refúgio. Viva A Noite Capital! 31

Maldita conjugação de palavras. Jacinto venera-me. Eufórico, ensaia vénias, restame levá-lo daqui. Tremem, as minhas mãos. - Chiuuu! Poupemos Adalberto. Chamemos um táxi. Indico-lhe o número junto ao comunicador. Jacinto marca-o. Nenhum sinal, ninguém responde. Jacinto impacienta-se. Pede um táxi ao emetrês. À torre três do Moreiredo. Sopra. Diz que sim, que sabe da existência de uma praça, ali, no próprio condomínio. Sopra. Diz que sim, sabe da praça e do centro comercial e isso é-lhe indiferente. Sopra. Quer um táxi à eme-tê-três e basta! Olha para mim e chama-me gaja chata. Eu? Chata é a do lado de lá, a quem Jacinto agradece de voz cândida e diz bai-bai. Verdadeiramente a acção desenrolou-se quase de um fôlego: disse-lhe que encontrava o número junto ao telefone Jacinto marcou-o e nenhum sinal ouviu ninguém respondeu Jacinto impacientou-se pediu um táxi ao Moreiredo soprou disse que sabia da praça e por ele até podia ser um mercado era-lhe igual soprou porque queria um táxi na emetrês soprou e olhou para mim e chamou gaja chata à do outro lado a quem agradeceu de voz mansa. Penso: a primeira versão é a mais fiel. A infidelidade é um impulso do pensamento. - É o duzentos e sessenta e cinco! - Vamos. Eu fecho as portas. Entramos no elevador anti-stresse, no senhor ascensor. Estamos apressados, aparentamos apreensão e apenas pretendemos entrar num táxi, seguir caminho. Não sem antes atravessar as avenidas, até ao Limiar, pelos viadutos e túneis. A acelerar pela noite! Está fria, a entrada da torre. Saímos, voltamos a entrar. Sem parar. Rimo-nos. O porteiro ri-se connosco, sem fundamento. Contamos-lhe que julgávamos esperar-nos um táxi, o homenzinho simpático indica-nos a praça, ali, por baixo, no próprio condomínio. Jacinto sopra, julgase um cartão no raiado de uma bicicleta e não pára de agitar os lábios com o indicador. As bicicletas são moda; o verde é moda, o branco também. E outras mais cores e coisas, tudo é moda neste século. Jacinto está um desassossego, não pára quieto. Sou obrigada a pôr cobro ao andamento. Oiço as batidas... - Chegou o vosso táxi. Vem de fora. O homenzinho simpático acaba de entrar e eu nem reparara na sua ausência 32

momentânea. Quis agradar a dois proprietários ou quis ser o primeiro a ver um táxi de fora do parque habitual do Moreiredo. O homenzinho simpático é novo naquela farda azul. Entramos na viatura bege pela porta traseira. Usando o intercomunicador, Jacinto avisa o taxista: não quer saber mais de praças, nem está disposto a manter qualquer conversa. O jovem faz descer o vidro que nos separa e pergunta qual o destino a darnos, porque ainda não percebera. Queremos o Livre Arbítrio! À primeira explicação, o jovem de cabeça rapada não entende a razão que nos leva ao Limiar quando o objectivo é o Livre Arbítrio, lugares opostos. Interrompo para lhe explicar quanto adoramos percorrer túneis, viadutos, e quanto mais rápido melhor. Alucinante corrida em contramão. Uma corrente de luz... São cinco horas. São seis e meia. Ainda é noite. Não me perguntem nada. Estamos na capital do Norte. Loucos, somos loucos! Penso: os vidros fumados encurtam o horizonte visual, logo estimulam a imaginação. Quando se não vê, inventa-se. Desconheço os pormenores da viagem. Tenho a sensação de que um túnel une o Marquês à Circunvalação. A velocidade emparedou-nos. Nada vi, a não ser o espanto de Jacinto desfazer-se em gozo. O condutor nunca moveu a cabeça no nosso sentido, fiquei a conhecer-lhe a careca sem descobrir qualquer defeito, constatei a cintilação das carecas. Também não me perguntem a razão por que me sinto excitada. Para onde vamos, por onde iremos? A viatura desliza. Palpita-me que rolamos na via rápida, rolamos em sentido contrário. Oiço buzinadelas, em segundos de luz. Pode ter sido um efeito alucinatório da velocidade crescente. Talvez. Penso: ... É-me difícil pensar, é-me impossível verificar quantos quilómetros galgamos por hora. Voamos! Seguramente a trezentos. Da capital do Norte, já nem um vislumbre. Na sua aparição fugaz, pela manutenção da velocidade, percebi uma inimizade latente do taxista para com a velha rainha que se afirma Invicta, senão ter-lhe-ia sugerido uma paragem no Sinqueabaute para ajudar a desfazer em copos a energia acumulada. Mas não! Não trocámos palavra. Não tocámos naquele solo. Uma situação hipnótica, esta de ver passar a vida a alta velocidade. Pergunto a Jacinto se não quer questionar aquele que para nós é um taxista, sobre este equívoco no nosso destino. O meu bom amigo atira-me com risadinhas. Explicolhe que me satisfaz ter ido à capital da Zona Norte, reconheço-lhe um lugar cimeiro na conquista de Ceuta, todavia detesto andar à procura de D. Sebastiões. Mas é 33

estranho o motorista. E... Oh meu Deus! (assustemo-nos), acabei de ver uma aparição fugaz de outro passageiro. No banco da frente, uma cabecinha mirou-nos. - Jacinto, viste? Quando aponto nada indico. Será que só eu vejo aquilo que indico, ou indico o que não vejo? Não vou desistir de apontar o indicador à minha miragem. - Agora, Jacinto! Abano o seu braço para que siga o meu dedo. Jacinto está obcecado, com a cabeça de lado, de olhar fixo na janela. A velocidade espanta-o, tudo o que não vislumbra o espanta. Diz-me, enquanto insisto comandar o seu olhar, que não invente mais nada. A realidade basta. Que saberá realmente? A realidade o que será? Pedir o táxi não foi fácil – burocracias; quando pensávamos o contrário, fomos nós que esperámos – teorias. Também não perguntámos ao taxista se estava à nossa espera... Não chega a ser vingança. De novo confusa, eu? Que lhes parece? Ei-la de novo! O quadrilátero escamado espreita. Jacinto vê a cabeça e aconselhame a não me preocupar com aquilo que se encontra para lá do vidro tipo preservativo. Conta-me que conhece vários casos de motoristas de táxis que se fazem acompanhar pelos mais diversos símbolos de ferocidade, pelos mais estranhos companheiros. Animais, sempre animais. Tudo se vulgarizou neste século individualista. Francamente, pouco me incomoda a presença do réptil no lugar do morto. Mas onde guardará o taxímetro, este taxista peculiar? Estamos na Circular Orientadora dos Subúrbios a Lisboa. Na COSL, retornamos à capital. Vuuum! Porta do LA. - Chegámos senhores! O taxista engana-se, pensa que acelerar é ir ao futuro sem largar o presente. A hora do Livre Arbítrio já passou. Experimento explicar, para evitar uma desnecessária troca de palavras, que detestamos transpor o Livre Arbítrio quando a artificialidade da luz é imperceptível. Sair e ser iluminado acaba por revelar-se inevitável, entrar não. A cabeça rapada vira-se, mostra as íris negras, os lábios de traço fino, e oferece metade da corrida. Aponta para o taxímetro escondido no porta-luvas. Não entende que o preço marcado é para nós indiscutível. Recusa-se a aceitar a falta de uma reclamação quanto aos quilómetros cobrados extra. E revela-nos nunca ter tencionado cobrar a experiência. Tenciono ir para casa. Lá impedirei o sol de atravessar as janelas. O mesmo desejo ataca Jacinto. O careca enerva-me, conheço-o de algum lado. 34

- Leve-nos ao ponto de partida, sem atalhos, sem brindes extra. - Ao Moreiredo? Jacinto corrige-o: - À torre três. Anoto: vê-se melhor através dos vidros fumados, as questões de hábito impõemse. Mesmo assim, só adivinho o Tejo aqui ao lado. E por lá fica. Somos obrigados a forçar a abordagem quando queremos sentir o rio, acomodámo-nos, o envolvimento esfriou, o rio tornou-nos indiferentes, basta que nos envolva, imutável, alimentando a dependência. Culpamos as águas pelas nossas limitações, contêm corpos, pedaços da cidade. E o povo vingou-se, migrando por diversas vezes, acreditando ser o dono da vingança. Protegemo-nos, seguindo as vozes de comando, as mesmas que hoje apregoam de novo as suas razões pegando pela saturação do cais. Eu e Jacinto, de novo. Olhamo-nos sem pejo. Abraçamo-nos, movimentamos as mãos com despudor... e são elas a desabotoar-nos ciosas de pele. Apaixonei-me, por instantes. Um calor pelo corpo, esse mesmo! Vê-se? Nota-se? Talvez seja o brilho nos olhos, o trejeito de lábios, os gestos... Há sempre uma denúncia. Sim, claro: existe uma maneira de desacreditar a denúncia, não é fácil… as reflexões ficam para os idilistas. Riu-me, Jacinto mordisca-me a orelha. O careca tornou a divisória opaca, não sei como nem quando. É como se viajássemos de comboio, num compartimento reservado. As emoções brilham no escuro, tacteamos os corpos, descobrimo-nos, recompomo-nos. A opacidade torna-se transparente, reaparece o crânio lustroso, alvo de cuidadosa limpeza diária. Vejo-o, todos os dias, antes de pegar ao trabalho, mostrando ao espelho da sua casa de banho que as esponjas de lustrar sapatos abrilhantam muito bem a pele sem pelo. E se foi o próprio quem contou tudo? naquelas escassas horas de via rápida confessou-se, mostrando a nuca, e eu decidiria nada registar deste momento inverosímil? Eu disse que não falámos? E se falou? Esta é a minha verdade, talvez a imaginação se sobreponha, talvez não. Ele contou muito mais: quando fazia o turno da noite, por vezes, enfurecia-se e acelerava estrada fora, fosse ou não do agrado do cliente; gabava-se de ter alguma consciência e poupar ao desnorte quem transmitia a pressa em atingir um objectivo; o nosso vagueava entre a emoção e o delírio, julgou presentear-nos com a aceleração desabrida, reconheceume e sabia quem eram os Miguel Celsus, muitas vezes os transportara àquela mesma torre três, gabava-se de os distingir. Voltaremos a ver-nos, avisou. Bem pode ter dito isto tudo com aquele ar delicado, comprometedor. Jacinto tira uma nota do bolso do paletó, como gosta de classificar os casacos de 35

bandas arredondadas. O rapaz rapado move os lábios finos e nada oiço. Dou as costas à criatura, saio. Surpreendentemente alguém me apalpa o cu – Cu é uma palavra de entoação desagradável mas, dada a natureza do apalpão, é a única que se adapta ao estilo. Com ternura disfarçada de repressão, encosto os meus dedos na face bronzeada de Jacinto. Conheço-o? já lá vão diversos invernos e desconheço a sua verdadeira raça, estive perto de desvendar a verdadeira tonalidade da pele, não fosse o tacto daltónico e... estou convicta, descende de árabes. Viajamos neste ascensor, quietinhos, encostados aos nossos cantos. Concluo nunca me ter esforçado por entendê-lo. Ainda sinto o apalpão, não resisto, ataco com a minha boca a sua, com as mãos as nádegas, ele avança retaliando... As portas abrem-se: prosseguimos entrelaçados pelo corredor, caminhamos em passos trôpegos, atingimos a porta D, despeço-me de Jacinto desviando o beijo. Ele não entende, balbucia incompreensões. Abro a porta, empurro-o docemente, fico a salvo de alcance. - Mas Maria... - Até... - É esse teu motorista que te inibe? - Jacinto, tem termos, já é dia! Viro-lhe as costas, estou em casa. Hoje, pela primeira vez, fui ultrapassada, nem dei pelo Limiar. - Bom dia, Adalberto. Ainda à lareira?! Na minha casa não há qualquer lareira. Adalberto levanta-se num rompante, estava sentado no chão, de fato castanho e lenço bege ao pescoço, desculpa-se, diz que ainda não se deitou, gagueja, quando pretende acrescentar justificações embaraçase-lhe a voz. - Conversamos mais tarde, estou derreada. Reparo na cara entristecida, tomo-lhe a mão convidando a seguir-me rumo ao quarto. Vamos para o dele, evito acostumar quem quer que seja à minha cama. Que começo de dia! Vale-me agora percorrermos o entardecer. Tenho de trabalhar um pedacinho, tenho de pensar, pensar... Vou tomar banho. Opto pela água mineral e se a cabeça continuar oca, como neste preciso momento a sinto, passarei os próximos oito dias a lavar o corpo com água gaseificada. A criatividade necessita de estímulo. Vou à agência. Vou à zona do terciário, meter-me num parque-escritório na hora da superlotação. Adalberto não passará dificuldades para estacionar o automóvel, isso satisfaz-me, todos os dias nascem desempregados e os lugares passam de 36

mãos, temos sempre lugar no parque. Quando terminar a festa, reaparecerá o deserto, como todas as noites, uma após outra! Rotinas, como a fuga dos trabalhadores mal dispara a sirene do final do dia. A realidade induz-nos, recordemo-nos desta realidade inspiradora. Abro a porta: olhai-os entre as secretárias e os computadores! Parecem divertir-se. Nos corredores anda Sebastião João, perdido insinua-se entre os convivas, na busca. É dia de festa na agência, eu não sabia. Ou não me lembrava? Sebastião João ri-se para quem passa, toca nos corpos com o copo. Ri, sorri, sussurra interjeições simpáticas. Clássica é a música ambiente e o tom das conversas crescente. E há homens e mulheres que se beijam. Sebastião cumprimenta-os, procurando-me. E eu cada vez mais desejada, desejosa, e só por uma vez encostei o copo aos lábios. Os seus olhos nervosos detectaram-me, são verdes, durante a criação da campanha usou-os azuis para não destoar das cores escolhidas. Eis-me num grupo de homens! Ei-lo tão só Adónis! Sebastião demora, aproximase dançando. Os que me rodeiam sugam as bebidas e fogem para outros pares, ficamos os dois a brindar à nossa última filha. Toque de copos, toques de corpos e lábios. À memória das nossas campanhas, em especial da última! Sebastião João andava perdido, serpenteava e não me via, trata-se de uma situação inevitável nestas festas rotineiras. Normalmente, adora descobrir-me e desfazer-se em espanto ao ver Maria, sabendo de antemão que iria encontrar: sabe por onde ando, percorremos os mesmos caminhos, só o tempo da paragem diverge. - Maria Maria! Virgem Mãe! - Sebastião, assustas-me! Sou virgem, mas não mãe. - Oh Maria, que bom ver-te! Nada mais diz. Sorri, não com os olhos. Canso-me ao vê-lo? Gosto de o ver bambolear-se entre corpos, sem me detectar, gosto de vê-lo ao longe, em festas, quando estamos a recriar, gosto de saber que me procura... se ele não me cumprimentasse, talvez sentisse falta das exclamações habituais; ao falar arrasa-me, fico como se tivesse suado quilómetros na passadeira do quarto. Resta-me arfar. A sua feminilidade enerva-me, é desleal, joga rasteiro, talvez lhe rosne. É melhor guardar o rosnar para uma outra ocasião, Amílcar Cartinha vem na nossa direcção, traz um ar de salvador da pátria, cumprimenta-me com três beijos. Sebastião João foge de apertar aquela mão pegajosa, odeia o homem, detesta este tipo de macho. Em matéria de mulheres, Amílcar Cartinha dá mesmo cartas, adepto convicto da heterossexualidade não admite a existência de sebastiões, e o meu amigo sabe disso, o machão nada 37

esconde, nem a sua versatilidade em matéria de clubes desportivos. Um bom negociante este Cartinha, sócio de todos os clubes. Não preciso de me mexer nesta lareira de fogo apetecível, vem aí mais um. António José de Casinha vem direito a mim. Amílcar fica a defender a dama conquistada a um maricas qualquer, disse ele. Casinha não perde tempo - olá está boa, como tem passado, e vice-versa - para disparar as perguntas que sabemos de cor. - E que livro anda a ler? - Ad Artem Dialectiam Introductio brevis et perspicua, salibus et facetiis undique aspersa, pro tyronibus et novitiis elaborata. - Ah sim? De quem é? - De um João qualquer, não lhe interessa. - É giro? Casinha não desarma e eu não pretendo justificar-me. - Giro? É a alegria da lógica! - Mas o que é que pensa... Ataca-me de novo, este ladrão de ideias. O que é que eu quero? O que é que andas a ler, o que é que pensas sobre isto, aquilo e aqueloutro? E porque te salvei do paneleiro, murmura Amílcar... Caramba! Cartinha é um traste, mas Casinha massacra qualquer um com as mesmas perguntas, dando ares de entendedor, o profissionaleco da intelectualidade, ladrão de vários sonhos, chantagista. Mas está rico e atingiu a terceira condecoração, já aparece na décima quinta fila na cerimónia anual. Aquilo que eu quero só a mim diz respeito, a mim principal interessada em entender uma mente atormentadora do seu corpo; estou farta de argumentar. Nas conversas trocam-se ideias, respondem-me os meus pares, que ideias? As assimiladas através dos mecanismos de indução de imagem e som? E a forma primitiva da poesia dramática não conta? Penso: A signografia faz parte de qualquer currículo. Perco o senso, resta-me sair porta fora, mesmo correndo o risco de alguém educado querer acompanhar-me ao carro, acompanhar-me até avistar o Adalberto… Já não os suporto, são sempre os mesmos, os mesmos fatos cinzentos de gravatas desmaiadas, sempre delicados, sempre servis. Sempre inhas! - Olá Maria. De fato antracite e gravata castanha, eis um ilustre cliente assíduo das festas da agência: Jorge Miguel Celsus. Encontramo-nos mais cedo do que o previsto, embora no dia combinado. Bonito como André, este mano. 38

- Jorge que surpresa! - Oh Maria! Como vai? Não se esqueceu do jantar? - Não, evidentemente, estava de partida para me ir arranjar. Jantar consigo merece uma preparação cuidada. - Ainda há tempo, não me importo de esperar por si, Maria. Há anos que espero por si. Corro para Adalberto, não me reconheço, foi Jorge quem suavizou a minha ansiedade. Atrai-me esta família de Celsus, os primos nem tanto, chamam-se Cassandra, vestem fatos verdes e cantam o fado, dominam as desgarradas. Tínhamos combinado encontrar-nos para adiantar trabalho, como evito as reuniões matinais marcámos um jantar. Talvez fosse mais acertado escolher o dia, talvez, mas prefiro o entardecer ou a noite: pela manhã, em encontros de trabalho (cedinho, melhor dizendo, porque quando a subjectividade reina destrunfa-se a verdade) existe o risco de se cheirar ao mesmo banho, de o perfume nos denunciar ou inibir, enquanto à noite ou de madrugada, misturar fragrâncias é um desejo; de olhos franzidos pelo sol, o mundo muda de aparência, há demasiado brilho e confundir cheiros é atrapalhar o cérebro. Trapalhar. Trabalhar, tra-ba-lhar, traba agora que a função é renascer. Ih! Ih! Iludamonos com as fragrâncias quando a lua nos vigia, o sol orgulha-se de nunca nos vigiar, fomenta odores para nos confundir... Estou louca, desvairada… Abismada, eu, comigo! Penso que não penso e penso, ou melhor, pensei... Estou a sentir-me afectada, em consciência, julgo conhecer-me. Julgava! A evolução é uma função contínua? Sinto o formigueiro da ressaca da mudança. Mandai-me parar, tenho de partir! Já são quarenta anos e o mundo não percebe. - Dispense a preocupação Adalberto, desobrigue-se. Siga, para casa. O desejo saiu-me num grito. Preciso de escrever, nem que espante a família com uma mensagem manuscrita. Não sairei até a hora-jorge. Adalberto receberá a ideia com agrado mesmo percebendo que só o papel será o meu amante. Não perde a esperança, nunca. Enerva-me. E eu não sou de me enervar com facilidade, prová-loei. Ter-se-ão os neurónios exaltado? Julgo enfrentar a amarrotada folha e... reajo com interrogações. Sucede. Questiono desejando responder por exclamações. Só sei que nada sei? Por vezes julgo-me dona do saber e sinto obrigação de lembrar o outro, o primeiro a nascer cheio de razão, sortudo por ter sido o primeiro a admitir em público nada saber. Nada saber? Parece-me bem, por estas e por outras, a antiguidade é um posto. A sabedoria refina-se ao longo dos tempos, ganha-se, conquista-se usando os também banalizados sacrifícios: sacrifica-se o eu em prol de nós, sacrificam-se ternu39

ras; não quero admitir o sacrifício da alma porque a única versão conhecida é uma efémera troca de interesses! Eis a exclamação quando nem sequer me interroguei para a justificar, eis-me a divagar quando pretendia ser concreta. Sei nada me obrigar a tanto ou terei alguma dificuldade? Sinais da tal crise da existência? Confesso que algo se desligou, entre mim e a cor branca, na folha faz-se silêncio. Não acredito que saiba o que digo, creio saber quando começo a divagar, depois, perco-me como neste momento, pensava escrever uma história, uma historinha infantil, ser mais forte a vontade de exorcizar fadas e encantamentos, nem armada de caneta. São possessivos estes meus tormentos, são exigentes, são eles que há longa data me impedem de recriar infantilidades. Aviso: A consciência atraiçoa, posso começar a mentir. Reparo nos meus tês por cortar, fechados em cima, ter-se-á mudado o meu carácter? Raramente, mui raramente, uso o aparo, só em casos extremos. A história da folha em branco só serve para me enervar. Se não corto os tês como registarei os emes e os enes? Ao contrário, virados? Vou escrever Mui. Mui, palavra a saborear, emes virados, bolas!. Perguntam se sinto falta deste mecanismo de manivela que me absorve o ego? O computador encanta-me: eu comando e ele serve, simplesmente facilita, dito e ele escreve. Acredita em mim, não me deturpa a escrita. Mui! Este mimo bocal ainda existe. Apetece-me parar, e não. Estarei ansiosa ou angustiada? Será um sentimento misto de receio e apreensão, um medo sem causa especifica? Ou deixei de ter uma relação normal com o psíquico? O intimo em fúria apaga-me o cigarro, pura exaustão, não consigo pensar sem pôr em dúvida. A dúvida é o benefício da verdade. Eis-me julgando ter criado mais uma máxima para várias vezes ser evocada. Talvez um dia a oiça, talvez. Tenho frio! Tenho frio porque estou de tronco nu, porque estou de mamas ao léu - a primeira expressão é demasiado masculina, embora bastante elucidativa, revela o segredo, enquanto a palavra mamas... Leia-se reticências: uma estava a desviar-se do essencial, duas os mistérios apenas se desvendam parcialmente. Aviso: Repetir-me-ei sempre que ache necessário, não preciso de mentir. Urge guardar segredos para sentirmos o prazer de tentar desvendá-los ou não fosse o ser humano uma engrenagem misteriosa. E a vida? Levamo-la, a pensar que há quem não pense. E há os generosos que pensam por todos. Somos nós, os iluminados, os orientados por algo que se encontra para além do mais irresistível, que me comanda a páginas tantas. O que poderá ser? Quem? Força? Poder? Desconheço a 40

razão porque me ocorrem processos obscuros quando o pensamento corre célere e transparente, talvez sejam apenas meros processos, talvez seja mais forte a necessidade de evocar conhecimentos adquiridos, de falar em processo alheio para justificar o próprio. Quiçá... (eheh, também gostamos desta palavrinha). Imprópria a verdade, é-o muitas vezes! Desconheço a força desta frase, a razão de tê-la escrito mal me ocorreu. Soa bem, como me soa esta língua inibidora por excesso de compromissos. Compromete-me, quando penso que a domino ela esquiva-se, reinventa-se, brinca, brinco... O meu brinco? Perdi-o porque a minha orelha emagreceu repentinamente. Foi de manhã, de madrugada quando ele chegou e disse toma lá nada, dá cá... Se quisesse, poderia não mais parar de escrever frases sem nexo aparente ou de nexo aparente. Por vezes sinto-me dona do saber. E nada escrevo ou escrevo aquilo que nem eu entendo. As minhas fraquezas só eu as conheço. Mas não comprei um pacote de discos para vos entreter, meramente, não se precipitam, resolvi registar algum tempo da vida, não desperdiçá-lo em divagações, resolvi deixar-vos uma parte da minha vida. E quem sou eu? Por que vos atormento? Porque já ouviram falar de mim, com certeza. - Adalberto! Não aguento mais esta reclusão, preciso de ar, vou sair. Rua, a noite clama! Caminho. Boa, esta cidade devolvida aos peões. Adalberto não pode seguir-me, as viaturas motorizadas rumam por caminhos impróprios para pedestres. O sol deixou de nos aquecer nestas passagens pedonais que nos protegem dos astros, mas de outros seres nem por isso. Surpreendo-me, gravo com os olhos e os ouvidos: - Quéquele fez, qué quele fez?! - O que é que ele fez? Sei lá! Não sou eu a dirigir-me a este matulão ignorante, o próprio tomou a iniciativa de me atirar palavrões. Especifico: a pergunta atirou-a o cavalheiro de roupa leve encostada às minhas belas nádegas, a resposta dei-lha seca. Encontro-me retida pela observação de uma cena quotidiana, mergulhada num mar de gentes, numa turba surgida de repente para presenciar, apenas. Dificilmente me safarei como convinha, impossível retroceder. Avançar? Para quê? Passeava eu, com toda a tranquilidade, por este pátio jardinado... nas minhas reflexões ambientais, num raro momento de lazer, agora teoricamente estragado... Que excitação! De lenço amarelo, um outro matulão provoca barulhos com a boca reprovando a cena em observação. Está a meu lado. O roupa leve, encostado às minhas nádegas, torce-se e liberta os pulmões da farfalheira. Mexo-me para não sentir a convulsão, o 41

culturista do lenço amarelo, de olhar viés, por três vezes bafeja-me a sua incredulidade: - Isto é incrível! Isto é incrível! Isto é incrível! Observam-se aqui representantes de aberrações de todas as espécies. Garantovos, e quando garanto certifico. A encapuzada suburbana, do lado esquerdo, assoase a um papel esfarelado de gripe; aperta o blusão impermeável e espreita o centro do círculo humano, por cima do ombro do de fato castanho, esticadinho, a impedirme a visão. Cedo à espreitadela: vejo um homem sentado no chão, de cabelo desalinhado e suor no rosto. O homem escorregou, confessa várias vezes, ao cair, os botões da braguilha rebentaram. Não o possuíra qualquer intenção de estragar o fato amarelo nitidamente amarrotado de fresco, nem de atrapalhar alguém. A mulher Citadina, vigilante do passeio preferido para exibições públicas, já informou que serse arguido num processo de atentado à moral pública dá-nos o direito de permanecer calados. - Não é culpado? Mesmo se tivesse escorregado, não ficaria um quarto de hora de barriga para cima a ostentar o desprotegido instrumento. Instrumento, classificou a menina toda de preto até nos olhos vidrados que informou os presentes ter decidido não algemar o arguido de amarelo por acreditar que ele a acompanharia direitinho à esquadra. Aqui existe uma esquadra mesmo ao virar da esquina, mas a Citadina quer brilhar na sua própria esquadra, a dois quarteirões a pé. Diz-nos ser a do virar da esquina destinada à recolha de informações. Ninguém pode levar a mal - equívocos acontecem nas ruas, todos os dias; ninguém abre alas, os presentes, eu inclusive, estão insatisfeitos quanto ao sucedido que continua a surpreender centenas de passeantes, sobretudo a partir da terceira fila, onde a deturpação da mensagem já provoca burburinho. Há quem venda pormenores aos posicionados na pioria, quem trespasse a sua posição dianteira, quem recolha dinheiro de apostas. Eu faço-vos o relato. Estamos cá todos, não escapa um. Até eu aqui me encontro desejosa de sorver um episódio do quotidiano do qual raramente desfruto. Tive alternativa? Reconheço ter-me deixado encantar pelo passado do entretanto recolhido instrumento. E como pode a Citadina provar a existência de um despropósito durante um quarto de hora? Onde estão as testemunhas? Deve haver testemunhas. Ah, parece não ser necessário em casos idênticos, casos testemunhados por Citadinos... Adalberto? O que é que este homem anda aqui a fazer? 42

- Adalberto! O Jaguar está perto? Vamos. Há outro Celsus a esperar-me. Lembreime ainda a tempo? Por que não me avisou? Atrasei-me e não sei que inventar para minorar responsabilidades. Apresso-me a andar de um lado para outro. Penso: quando a pressa aperta não se pode sentar o corpo. - O quê? Não pode ser. Que dizes Adalberto? Adalberto grita-me o aviso do recepcionista sobre a chegada do senhor Miguel Celsus. Nada assim se combinou. Vir em vez de esperar no restaurante acordado? Temos relações especiais mas não passamos de duas variáveis nem sempre implicadas. Terei cometido indecoro à saída da festa? Se fosse André... Com André em casa nem sairia, muito menos para jantar negócios. O encontro com Jorge fora combinado para mais tarde, quase para amanhã. E ele vem subindo. Lembra-me aquela porta aberta, o meu anúncio preferido. PUBLICIDADE Porta aberta e o homem entra. Veste um sobretudo verde. A mulher aparece vestida de rosa e prata, de vestido comprido a marcar a cintura, quadrado nos ombros. Cumprimenta-o como se o não visse há longo tempo. Ajuda-o a despir o abafo, ficalhe com o sobretudo por um instante, passa o volumoso casaco ao empregado - mordomo vestido a rigor, aguarda o desenrolar da cena, quieto. Homem e mulher trocam sorrisos e deslocam-se como se bailassem, sem verdadeiramente o fazerem. Dançam em círculo, entre o mobiliário francês, como se tudo fosse normal. Ela diz-lhe para estar à-vontade, precisa de uns minutos para terminar a tualete. Ele agradece e descansa-a: está sem pressa. A mulher avança, o homem vai atrás, de mansinho, e já na casa de banho surpreende-a: - Posso tomar um banho? A mulher reage com naturalidade, indica-lhe a banheira redonda, toalhas limpas nas prateleiras da estante, diz-lhe, novamente, que esteja à-vontade. E quando se prepara para sair e fechar a porta, o homem pergunta: - Posso usar o seu gel? Quero esse cheiro. - Não é do gel, é da água. 43

A mulher abre a torneira de banho. O homem começa a despir-se. Canalize o seu aroma, diz ela. Arõmatikós pelas torneiras! Miguel Celsus entra. Adalberto abriu a porta e abandonou-nos. Vem de sobretudo verde, o mano. Hum... - Olá! Mais uma surpresa!? Cumprimento-o com saudades de André. Ajudo-o a despir o abafo, pego no sobretudo por um instante, Adalberto não aparece, atiro-o para cima do sofá. Trocamos sorrisos e movemo-nos em círculos entre o mobiliário da sala, como se fosse um ritual nosso, desejado. Digo-lhe que fique à-vontade, que preciso de uns minutos para terminar a tualete. Agradece a atenção e descansa-me: está sem pressa. Evidentemente! Entro na sala de banho e apercebo-me de uma presença masculina, segue-me de mansinho. - Tens coca? Surpreendeu-me, marca pontos. Jorge nunca me fez tal pergunta. Quando o senti pensei que iria elogiar o perfume. Ao despir-lhe o casaco estranhei os gestos, lembrou-me André. Mas este Celsus não sabe dizer Maria. Há coisas que nunca se aprendem. Penso: O irracional é a tentação maior. Estranho, Miguel Celsus não pára de falar. Conta que foram descobertos já a dormir, serenos, num descanso merecido. Alguém os acordara, aos dois, comprometidos num sono profundo? - Que aconteceu então? Inquiri no meu direito de confidente involuntária. O Jorge dormindo com a namorada quase noiva de André? Ou seria André com a namorada quase noiva de Jorge? Desde quando existia uma namorada quase noiva? Desde quando não era André quem comia as meninas do Jorge? Rodeavam-no muitas. Naquela noite, André disseme que encontrara o amor, se não fora isso, sentia-se apaixonado. Esquecera-me por troca, mas percebi mal as suas palavras, não me revelou a troca, cheguei a duvidar. Jorge é famoso por nunca ter praticado qualquer adultério classificado. As sereias confundiam-no com o irmão, ele achava piada, participava nas aventuras inventadas pelo seu outro eu nascido minutos depois. Jorge nunca fora de confidências, por que 44

me contava esta história esquisita? Para afirmar a sua virilidade? uma indicação sobre o seu outro eu? uma questão de partilhas? Reviveria a crise existencial que consumia André? Porque se encontra este homem na minha sala de banho? Mais uma vez o irracional me tenta. Continuamos à porta. Ganho consciência da possibilidade de me apaixonar por este irresistível perfume de homem. Corro sérios riscos. Estamos próximos, quase trocando respirações, não desejo evitá-lo, também não quero desvendar segredos. Tão parecido com André, céus! - Toma um banho? O subconsciente comanda. Desconheço a razão desta experiência sensorial, recuso a origem da pergunta. Fi-la eu e ele reage naturalmente, sem vincar o rosto. Aceita com a condição de usar o meu gel. Estranho ouvi-lo dizer gel, como se não resistisse a chamar-lhe gelo. - Desconhece o Arõmatikós? Bom, é apenas um novo produto, ainda em fase de lançamento. Resolvo não insistir. Outros do género circulam no mercado, nas listagens discretas. Ao contrário daquilo que achara impossível, nem todas as casas Celsus possuem equipamento normalizado. Jorge salvaguardara o esconderijo que habitava com mais assiduidade. Nada tinha contra o sistema mas adorava referências ao passado. Quase duvido das palavras ouvidas. Oiço e lembro-me de André. Se calhar são ainda mais parecidos, eram... Sempre olhei Jorge como sendo um malabarista do marketing, mais um. Conhecido por acções bastante insatisfatórias, algumas, outras penetrantes, sempre em benefício das instituições do Pai. André não recusava malabares, todavia, outros meios lhe concederam o bem-estar, provavelmente a semelhança desvirtua. Cansada? Entra e eu saio com um Esteja-à-vontade. Não sei o que fazer. Tudo o que preciso deixei na sala de banho. Vendam-nos algo se querem atrair-nos, vendam-nos qualquer coisa, uma guerra mesmo, mas vendamna bem. Arómatikós! Esqueci-me que ando a água mineral. É tempo de mudar. - Posso entrar? Só um momento e abre a porta, sem gravata, de camisa meia desabotoada. Exponho-lhe a necessidade de escolher um perfume, ele pergunta se pode escolhêlo, alerto-o para o meu direito de veto. Afinal, prefere a minha escolha, admira a minha selecção. Regresso ao armário e a minha mão retira um pacote de violáceas. Eis de novo o subconsciente, não o contrario. E coloco aquela espécie de erva criada em laboratório na caixa de parede que obriga a água a perfumar-se. Deixo-o sem pala45

vras, sem lhe mostrar o rótulo apesar da sua insistência. Estou de novo fora, a salvo de mim própria, sem saber o que fazer. Abandonar esta porta antes que ceda ao sub? Fumarei um cigarro. Onde estará Adalberto? Talvez tenha saído, comportamento nada original. Tenho cigarros na sala, cá estão eles. Não posso ir fumar para o quarto, fragilizaria o consciente. Vou concentrar-me na pequena tocha, na sala, o Jorge ainda não teve tempo para completar o banho, vou ligar o ecrã, saltar canais, apanhar outros mundos, esquecer por onde escorre a água, as gotas de violetas cheirando a André. Não basta o mundo para apagar antecedentes à criação - o desejo, o desediu, latino saboroso. - Maria! O banhista reclama-me. E lá vou a correr ao quarto, atender à sua última chamada. Esqueci-me de lhe deixar um toalhão, que maquinação... Digo-lhe que deve procurar no armário ao fundo, desculpo-me. Ri-se, rimo-nos, com as gargalhadas surge a recordação. Ao escutarmos sem ver os trejeitos próprios, confundimos as vozes, a taquicardia ataca-me. Tenho saudades de André e ele ali dentro, André fisicamente. São espíritos diferentes em corpos iguais. E em André não admirava apenas o corpo. Mas está morto, já não tenho de o amar. Estará? A memória é traiçoeira. Abandonoa. De novo na sala do ecrã: mantive-o ligado para não perder as comemorações; são comemorações, não consigo perceber nem onde nem de quê, mas são, e oficiais, são fardas e medalhas, filas e filas. Somos todos traidores, seja do que for, por uma vez todos somos, por isso, todos somos traídos. - Já pronto? - Sinto-me bem melhor, agradeço-lhe este banho. Voltamos ao princípio, peço para aguardar o tempo de terminar a tualete. Aconselho-o a distrair-se com as festaloras no comunicador, assim tenho a garantia de ficar a saber a origem de mais umas comemorações, um bom começo de conversa para a refeição, e fico sossegada na sala de banho, por ora. Olho-me ao espelho e não me reconheço. Envelhecida? Eu? Cheira a Jorge, o aroma passou a ser deste mano, bolas! Penso: é aborrecida a personificação do cheiro. Chamo Adalberto pelo intercomunicador, ouvirá em qualquer lugar, a não ser que esteja fora de casa. Às vezes tomo-o por ciumento, imagino-o a deambular por mim - um conforto para o ego. Mas é o que me parece quando lhe detecto birras, Adalberto só sai sem avisar quando a companhia é masculina. Obriga-me a ir à sala apontar a 46

Jorge o lugar das bebidas, a desculpar a sua fuga. Aproveito para assegurar que mais dez minutos e estarei de casaco. Quando o sobrevivente Celsus termina a bebida, vême a seu lado, no braço sustento o casaco que me ajudará a pôr nos ombros. Nunca minto numa questão de minutos. Saímos. Suponho uma reserva para dois, desconheço onde, desconheço a alteração do plano. Não pretendi sabê-lo. Descemos de elevador (no rápido) para o estacionamento dos residentes, Jorge começa a explicar ter ficado com o apartamento de André, no MT4. Estão longe de resolver as partilhas, mas não se adivinham os conflitos. André era solteiro, não deixa filhos, e para a mãe qualquer confusão é desgosto, mais quando ligada ao dinheiro da família, tudo se resolverá sem exaltações, a fortuna da família está registado em apenas dois nomes: Miguel Celsus. Ultrapasso o assunto, comentando os muitos outros seres que também procuram viaturas para largar este edifício eleito pelos críticos dos parques-habitacionais, um edifício habitado por personagens do contra-senso. E este conjunto de torres está repleto de ofertas, é um adorável gueto, Não se pode ceder à comodidade e outras formas de bem-estar que a critica cai-nos em cima, é? Jorge olha-me interrogativo, ansioso. Dizemos banalidades, há exemplos na História de que o mistério se desvenda à medida da descoberta, não me sinto disponível para descascar negócios. Sem disponibilidade... e pesame o facto de ainda nem sequer ter delineado a campanha que ele julga arquitectada. Dirigimo-nos à Marginal, iremos jantar a Cascais, aos Estoris? Não me apetece perguntar para onde vamos, não quero saber. Fala de um episódio qualquer, quando jovem: Jorge e André cavalgando motos, ludibriando radares, ultrapassavam a velocidade do som, da luz... juntavam Lisboa a Cascais, várias idas e vindas numa só noite; loucuras sempre bem sucedidas em noites encantadas por copos e deslumbres de meninas. Muitas vezes mentiam sobre as corridas na Grande Capital, muitas vezes enganaram os engates com a semelhança. Um permanecia na zona de Lisboa, o outro nunca sairia da de Cascais, deslocavam-se em motos gémeas com capacetes e vestes idênticas às ocasiões. A encenação divertia-os. Levantaram-se suspeitas – brincadeiras, trocadilhos em momentos de prazer –, jamais foram descobertos; deliravam ao assumir o papel predestinado, a atitude tomavam-na por bom humor. Divertiam-se muito os maninhos. Rio-me por simpatia e interrogo-me se terei dançado sempre com o mesmo mano. André nunca tentou enganar-me, divertíamo-nos juntos, não precisava de me partilhar com o mano. Ter-me-ia dito. 47

Fala: - Não sei quem é que fazia esta comparação, onde é que li, devo tê-la lido em qualquer lugar... mas é verdade que tudo depende do clima criado, do enredo. Repare-se num filme, por exemplo, um homem e uma mulher falam à porta de uma casa antiga, numa pequena escadaria; falam baixo, não se sabe se de amor se de ódio, se de medo apenas. A mulher despede-se com uma simples palavra e a câmara esquece o homem para nos dar a mulher a abrir a porta de casa. Nada se detecta do exterior, do que ali habita ou está de passagem. O momento da abertura da porta (isto, até, partindo do princípio de que ninguém tocou à campainha) não nos prenderá se não tiver sido criado um certo clima de tensão. Se for um encontro ligeiro, sem história, ou mesmo de boa história nem repararemos como é que ela entra, nem pensaremos o que estará por de trás daquela porta... De contrário, será a nossa surpresa. Abrimos a porta? E eu, apanhada de surpresa mais uma vez, a segunda pela mesma família. Quererá dizer alguma coisa ou tenho a obsessão de interpretar? Valerá o esforço, a análise detalhada da tese? Ocorre-me uma remota imagem cinéfila... quererá Jorge discutir, debater histórias antigas? Bem sei que marcaram uma época, mas é isso mesmo: marcaram! bom, será preferível levar o assunto para a cultura. Teremos ocupação para todo o jantar? A experiência motiva-me: - Tem razão. - Admira-me, se me permite, essa anuência tardia. Para a rapidez a que nos habituou... Errarei ao pensar? - Adora cruzar erros. Não é Jorge? - Cruzar erros? Terei um momento de sossego enquanto tenta decifrar o cruzamento. Depois iremos batalhar um pouco no Está a Ver Como Acontece, apesar de haver situações em que o sentido é simples, referendável, e outras que se destinam a atingir fins singulares baralhando os meios. Uma possibilidade infinita? E um Celsus a argumentar que não tem uma coisa a ver com a outra. Declamaria André: uma coisa é uma coisa, outra coisa já nem coisa é. Não farei qualquer esforço para tentar descortinar quaisquer efeitos secundários. Há actores que nunca serão actores, não têm garra, pensei responder-lhe; não me peçam razões, optei por alongar o silêncio. Trocadilhos na família só com o André, ele conhecia-me, compreendia-me. Desconheço por onde anda o humor do homem a meu lado, apesar de conseguir prever os movimentos do corpo... De novo me repito, Para me confundir, confundir-vos. 48

André está a transformar-se num fantasma. Será? Terá o comerciante engendrado esta partida? Nunca percorri a marginal sem pensar em algum mistério, lembranças ténues de literatura antiga. Como é que era aquela... É difícil controlar as estradas, os nomes, os números, as siglas, livros escritos há muito tempo. Confirmarei no depósito de dados, mais tarde, ou talvez num resumo dos arquivos centrais, mais cedo. Sigo em frente. Quero perder-me. Jantarei! E que vejo eu que me desperta? Na mesa ao lado, comem com as mãos, são muito morenos, mesmo castanhos, são antepassados; na do outro lado, são quatro brancos e não falam; na nossa Miguel Celsus desdobra-se em banalidades. Os que não falam ouvem os outros três da diagonal: comentam o mundo, dizem e desdizem; brincam deixando-nos, a nós, os mais chegados, a mexermo-nos nas cadeiras. Brincar só em privado ou na idade própria. São negros de olhos verdes, misturam os seus usos com os nossos costumes. Jorge fala de induções. Recordo a realidade que me inspirou para fabricar uma indução! No caso, previsivelmente, resultou um escândalo – gerou-se um protesto contagiante pelo seu contexto conservador; a marca chegou ao topo, digo previsivelmente porque recriei a realidade (como sempre) optando por uma situação mais serena. Ninguém criticou o produto, mas sim a utilização de um local onde somente se deve pensar em trabalho, para promover o lazer. Argumentaram que poderia surgir da desculpabilização do assédio sexual; os excitantes são produtos necessários, fazem parte dos hábitos, todavia, não devem ser usados no local destinado ao trabalho, nem mesmo em dia de festa. Antigamente é que se misturavam conceitos, vulgarizou-se o quanto basta, o q.b. que anda na boca do mundo. O Eros foi propagandeado em abaixo-assinados, recolhidos, na sua maioria, em empresas. As vendas subiram a pique. Penso: Dei o meu contributo, recriando a cena, a vida é um somatório de cenas. PUBLICIDADE Olhai-os! Entre as secretárias e os computadores. Nos corredores, anda uma Afrodite perdida. Insinua-se entre os muitos convivas à procura de um Adónis. É dia de festa na empresa. Afrodite ri-se por quem passa, troca copos que salpica com um líquido amarelado de um frasquinho transparente. Sorri, ri. Profere monossílabos. O som de Clássica vai diminuindo. O tom das conversas cresce à medida do bamboleio de Afrodite. 49

Há homens e mulheres que se abraçam, ficando no horizonte de uma Afrodite que ainda não encontrou Adónis. Ninguém sabe quem é esse filho de Mirra. Afrodite existe, sente-se cada vez mais desejada, desejosa, e só por uma vez encostou o copo aos lábios. Os olhos azuis daquela mulher dominam o ambiente. Ei-lo num grupo de homens! Ei-lo tão só Adónis! Afrodite não perde tempo e salpica os copos do grupo com o frasquinho hexagonal - pairando entre eles, quase dançando sem nunca o fazer. Adónis reage como se preferisse Perséfona. Os outros esvaziam os copos ao passarem por outros pares. Afrodite escolheu aquele homem delicado. Só os dois existem, no ecrã. E Afrodite brinda com Adónis, que nada bebera. - Ao nosso filho! Toque de copos, toques de copos em lábios, de corpos. Brilham os olhos verdes do belo descoberto. Cai a garrafinha Ero Eros no soalho de madeira envelhecida. - Afrodite! - Adónis... Corta! Ero Eros! Que Excitante!... - Maria quem não se lembra desse anúncio?! Que me quer dizer? Sou um admirador das suas criações. Retomemos a conversa anterior. - Fala, então, de uma campanha política? Colocar um político à frente de ene? Quem? - Saberá a seu tempo. Agora quero saber se está ou não interessada. - Interessada? Interesso-me por tudo, mas isso não significa nada, evidentemente. - Mas é um desafio interessante, tem de admitir. Vencer de novo a maioria. - Não nos precipitemos... - É como pô-los a lavar os dentes com a mesma pasta. É fazê-los acreditar num produto, nem que seja por um dia, nem que seja pela via contrária. - É quanto basta! Posso ponderar, posso até esquecer o nome em causa e aferir as possibilidades, admitir a atracção de uma campanha ambiciosa. - É quanto basta. - Mas nunca decidirei sem conhecer a personagem. 50

- Sempre reconheci em si uma postura profissional em qualquer situação. Atrapalha-me. O esforço, o profissionalismo serão bem recompensados... Já não o oiço, pôs o carro a trabalhar. Não posso encantar-me com o som do desafio. Jurei nada mais fazer para governo do Estado. Só poderei ceder em causa de crença. Querença tê-la em quem? Em quem se quer no mais alto patamar? Querença em equipas. Quando resolvi renegar? Imagine-se, colocar no topo alguém que nunca valeria qualquer percentagem, fabricar uma imagem, vender obrigando a comprar... Isso pratica-se há anos, porque será que me surpreendo, me armo em pudica, se é tudo aquilo que tenho praticado? Querença em quê? No produto? Aproxima-se a têtrês. Jorge guia enquanto fala da táctica a longo prazo. Mais cativadora, portanto, esta proposta. Querem tomar o poder pelo voto. Não são inovadores: apresentar durante o tempo suficiente, mesmo alguns anos, um candidato defensor de direitos, liberdades e garantias para se sentar numa cadeira e ser tirano até alguém da mesma equipa querer ocupar o assento. Quando lhe perguntei, ao jantar, qual a diferença entre esta vontade e a História, ficou nervoso, pediu a conta e, antes de voltar ao assunto, tentou convencer-me a ficar na sua casa de Cascais, a regressar de manhã ao centro capital, para poder explicar-me tudo, tintim por tintim. Decidiu-se, afinal: - Bom, o que nós queremos é mudar o boneco. Passar de mãos as marionetas. Quer dizer que estão disponíveis para golpear o Estado, fazendo-se legitimar pela maioria acéfala que acéfala se assume nas ocasiões decisivas. - Entendo senhor Miguel Celsus. E o tal ser tem capacidade para isso? Está escolhida a espécie? Existe na categoria das marionetas conhecidas? - Não está a perceber Maria. Nós queremos que o fabrique, que invente, crie um Messias, o tal que (tantos acreditam) regressará um dia para salvar o mundo. Preciso que esses fiquem convencidos e que os outros, antes descrentes, pensem não haver alternativa senão acreditar no Enviado. Temos a certeza que este trabalho se adequa à sua pessoa, excelente profissional, de categoria qualificada, competentíssima. - Nós, nós... mas quem são vocês? Tem falado em nome de um conjunto, excepto quando se referiu a forma agradável como poderíamos ambos acabar a noite. Massaja-me o ego, repetidas vezes, para me levar à certa. Mas quem faz as campanhas sou eu. Não sei se devo continuar a agir em função de desafios, de tarefas, se devo comprometer a existência de uma série de gente que não deveria ser manobrada, que há outra gente que não deve aprender a fazê-lo; há mais quem o faça e com toda a perícia, escolham outra. Alguns 51

chamam-lhe profissionalismo. Talvez seja necessário reflectir e começar a condenar o que parecemos defender: o orgasmo pelo orgasmo. Outro chavão!? Tesão? - Nós? Quem somos? Pergunta-me o quê Maria? Decididamente, não ficarei em casa dos Miguel Celsus, não fabricarei qualquer Messias por interesse de um grupo obscuro de personalidades anónimas. Eu também sou egoísta. Não me custa nada admitir na cara de um Celsus a criação de um monstro, não serei a primeira, certamente que posso fazê-lo. Atendendo a outros exemplos, talvez perca o domínio: também não penso ficar neste Estado, nesta federação. Irei para África, o futuro do mundo, cheguei aos quarenta. - Será preciso dinheiro. Muito dinheiro... - Não daremos importância a gastos. - Será preciso dar-lhe lições de tudo, de modo a que não aprenda. Segue-me? - Claro! Para inteligentes bastamos nós. - Habituá-lo ao luxo... - Tudo o que quiser. - Dando-lho de repente, tirando-o ao mesmo ritmo. Mostrar-lhe que se poderá proceder no inverso ainda em maior velocidade... - Tudo o que disser. Confiamos inteiramente na sua experiência. Estamos nas suas mãos. Nunca o esqueceremos. - Mas, diga-me só, porquê? - Recompensá-la-emos. - Não foi a minha pergunta. Isso eu sei. Nunca faria nada do género senão fosse recompensada, nem vocês me convidariam, pensando em poupanças. Não. Quero saber o porquê dessa ambição! - Pela nação. Quer dizer que apenas é movido pelo bem-estar individual? Percebo, provavelmente todo o seu bando pensará na nação. Há poucas cadeiras para tantos bandos, estes integram o mesmo bando que pretende, simplesmente, ter a cadeira. Há animais que sobrevivem porque desenvolvem as estratégias mais indicadas. Não tenho nada contra, mas não me incomodem. Nunca provocarei Demos. A não ser... desejo de poderio? Desediu? Latinos! - E amanhã, Maria, jantamos? - Amanhã? Não terá a resposta amanhã. Quer convencer-me de que ninguém recusa o melhor contrato da sua vida. E poderá? 52

- Quando jantamos, nem sempre procuramos respostas. Não é? Jorge não aguarda a resposta e recorda-me ter apenas perguntado se eu queria jantar amanhã. Não resisti ao estimulo e soprei-lhe um Venha buscar-me às nove. Agradeci-lhe o belíssimo jantar. Despedimo-nos com um beijo fugidio e uma desajeitada troca de acenos. Vou para casa! O elevador é lento mas ascende! Não é o que todos deveriam querer? Cada vez mais longe não só no pensamento, esquecendo o empenhamento anterior, interior. O que é isto? O poder, o máximo da soberania saboreado em vagas lentas. Respondi isso, exactamente, e resultou. Calou-se, nada mais disse, nem um murmuro. Mas foi tão firme quando nos despedimos, tão poderoso. Jorge e André, que parelha... Quererá distrair-me da campanha do Pai? Por quê? Para quê? Não é fácil fabricar duas campanhas em simultâneo e tão direccionadas. Talvez seja de ponderar razões. Todas as hipóteses são viáveis, não podemos limitarmo-nos a excluir as partes. É exemplo a polémica levantada há dias por um grupo de cidadãos desconfiados, ociosos. Resolveram pôr em causa a moralidade de alguns anúncios. Assim falaram para os média. Escolheram um anúncio a pensos higiénicos e exigiram saber se as raparigas vestidas de branco estavam ou não menstruadas, se usavam ou não um penso daquela marca. Foram duros, tiveram eco. Eram inofensivos, aparentemente. Mais uma vez a marca obteve uma publicidade inesperada. Ainda ninguém provou o que alguns defenderam sem convicção, por piada. Os interessados é que levantaram a polémica? Seria uma manobra arriscada, fazer uma campanha do género, mas o risco implica réplica imediata e nada é impossível quando as regras económicas que nos regem. O produto está exposto, é tão bom que não se nota. E se as mulheres não acreditam? Ainda não acabaram os confrontos. Estão a realizar-se debates por todas as zonas. As videoconferências são já notícias de segunda ordem. No último debate que deu notícia, discutiu-se qual o futuro do mundo se as mulheres perdessem a menstruação. Faltou-me tempo para ler todas as notícias. Acho que não é preciso ir tão longe, como alguém o disse publicamente, repare-se no resultado que deu discutir o sexo dos anjos, agora não se pode falar em anjos sem imediatamente associar-lhes um sexo. Voltaremos todos a falar no assunto. Ver-nos-emos todos os dias, durante aqueles que estarei no meu gabinete na agência, aquele que raramente ocupo com o meu físico. Irei lá durante os próximos 30 dias e não prolongarei a estada. Festejar? Festejarei no final da campanha com quem me apetecer. Quase não resisti. Ainda 53

pensei no peixe Palhaço, na substância que o reveste e lhe garante a sobrevivência no meio das anémonas, elas não o reconhecem quando anda por ali a pôr ovos, por isso, não o atacam... ainda escrevi o primeiro discurso destinado ao pré-candidato. Lio a um Jorge entusiasmado. Decidiu expô-lo ao Conselho. Não havia pressa. A personagem estava a ser preparada com requinte e um dia seria lançada com um discurso inflamatório. Não resisto a inscrevê-lo neste meu epitáfio, faz parte integrante desta minha vivência temporária. Atenção, máquinas em manobras! PUBLICIDADE Chamem-lhe cretinices, hipocrisias, egoísmos desmesurados... A experiência, a minha vivência enquanto ser único entre outros únicos milhões demonstrou-me que, na procura do conhecimento específico, o individualismo é uma resultante do cansaço colectivo! Todos somos diferentes, todos somos iguais. (palmas) Conforme as épocas! (palmas) Só um conjunto de indivíduos poderá marcar a devida diferença. O nosso será, portanto, um movimento a desenvolver em diversos sentidos! Desenvolver-se-á não tendo um único objectivo final, obrigando-nos a assumir – constantemente – importantes tarefas! (palmas) Missões! (palmas) Com o nosso movimento aniquilaremos muitos dos problemas emergentes que nos afectam. (palmas) Resolver-se-ão urgências, pontualmente, sem necessidade de impor teorias cujo prazo de validade se desconhece. Sem ser preciso impor teorias que quando se aplicam revelam-se caducas! Que quero dizer com isto? Talvez alguns de vós se interroguem neste preciso momento sobre o que digo, o que quero dizer. Outros, com certeza, reconhecerão nas minhas as suas palavras 54

muitas vezes proferidas numa intimidade que suaviza a contra-argumentação. Por mais que se invente, já não nos restam dúvidas quanto à veracidade da imaginação. Já não há quem acredite na razão! (palmas) Entenda-se: quem tem soluções deve, como cidadão federal, proporcionar a sua aplicação, sem se vincular a movimentos de massas insensíveis ao significado das palavras tarefa e missão. Assim estas devem ser entendidas: com graus de responsabilidade diferenciados, sem prazos de conclusão definidos, com regras de evolução continuas. (palmas) Hoje penso assim, amanhã pensarei o contrário? Hoje penso de uma forma à qual terei de me vincular até à morte? Interroguemo-nos sobre os valores aplicados ao longo dos milénios e entretenhamo-nos com a descoberta das diferenças. Detenhamo-nos sobre o seu modelo de aplicabilidade! (palmas) Querem um modelo? (palmas) As conclusões serão, mais uma vez, individuais. Mas há quem as transforme em leis argumentando posições maioritárias ou minoritárias, de acordo com a justificação necessária. (assobios reprovadores) Não defendo a completa ausência de regulamentos de conduta. Entenda-se: o excesso origina comportamentos contrários! Cria, entre os próprios legisladores, uma desorientação progressiva de difícil reparação! (gritos concordantes) Recomeçar poderá implicar destruir e, se assim tiver de ser, deverá sê-lo sem pejo algum! (gritos eufóricos e palmas) A bem de uma única Nação, a bem da comunidade individual que insiste na vivência em comum sem a interiorização do pensamento educacional indispensável! (palmas) De contrário, matemo-nos uns aos outros para dissolver as minorias-maiorias e as maiorias-minorias. Para que deixe de haver pretextos burocráticos! (palmas) 55

Recomecemos a criação ou atribuamos um novo significado à palavra paraíso. (palmas crescentes) Quem é por mim, é por si! (demorada salva de palmas)

Batem-se muitas palmas, ouvem-se apoios. Confundo-me. Nada aconteceu. Vou deitar-me sem despertar Adalberto, irei com pezinhos de lã, de modo a induzir o seu comportamento. Um Celsus espera Maria às nove. Adalberto nunca adormece antes de eu chegar, não me recordo se já tinha registado este ponto paternal do seu carácter. Penso: a necessidade de repetir aquilo que já foi dito significará uma tentativa de fugir à verdade? Estou em casa. Quero pôr a mente a funcionar com discrição. Sonhar. E subi a rua, por entre o trânsito. Subi-a devagar, saboreando os passos em terra firme. A luz intensifica-se e eu sigo-a lentamente, não tenho pressa. Levei quarenta anos a descobrir que a lentidão intensifica o prazer, será difícil convencer-me do contrário. Escorrego numa casca de laranja e rio-me, levanto-me apoiada apenas numa mão, sinto o físico a atingir o expoente máximo: é o domínio do conhecimento. Escorregar numa casca de banana ainda se aceita, acontece aos melhores, mas num pedaço de laranja nem sequer significa ter caído numa armadilha, mentira: nesta era, as armadilhas perderam a sua característica tradicional, é bem possível atirar para o chão outros tipos de cascas para quem passa escorregar. Tudo montado, prestes as filmagens. E os actores? Percorro apenas meia rua, começam a chegar alguns convivas, são tagarelas observadores. Não sei se é da maneira como falam se do assunto, certo é que nada entendo. Desconheço o tipo de conversa e estranho estes seres tagarelas, embora já tenha ouvido falar deles. Começo a aperceber-me de que não comunicam na mesma língua, não entendo os seus sons, apesar de a musicalidade me agradar. São todos belos e morenos, mas não são de cá, são africanos. Africanos ou árabes? Tentam falar-me, mas o português atrapalha-se-lhes na fala. Vou ter de acordar, apresenta-se-me essa consciência, assaltam-me outros compromissos. Sonho esquisito para um dia destinado a dar uma entrevista. A insegurança é uma sensação curiosa. Uma alucinação? Que vi eu então, nesta viagem de rua que me ocupará o pensamento nas próximas semanas? Deslumbrei-me, sensação que este entrevistador parece incapaz de me provocar. Cansativo de tão banal. 56

Estarei desiludida? Falamos de teses, dialogamos em tese. Apetece-me pouco a conversa com este entrevistadorzeco, respondo por exigência de quem gere a minha imagem. Armo-me em política praticante, digo-lhe que quando se percebe que é melhor defender uma tese é bom que se a defenda, não é preciso que nos obriguem a fazê-lo; adianto-lhe que os ilusionistas não divulgam truques. Um escritor nunca dirá a verdade sobre como escreve, o que descreve, vocês sabem fazer a verdade parecer mentira, disse-me ele satisfeito com a sua própria conclusão. - E não é preciso combinar previamente, nem promover encontros, onde nunca seriam debatidas intimidades. Impropérios para o público em geral. Parece haver um acordo tácito. Nunca dizemos quem somos. - Não pode responder assim, sendo quem é! - Mas quem é que eu sou? Diga-me! Quem somos nós? Ele espera sentado. Interrogo-o para me distrair, abordo questões que não me importam decifrar, não pretendo saber nada que me perturbe a singeleza; nem as minhas interrogações quero debater, seria avançar num sentido adverso aos meus interesses. Somos todos egoístas, todos aplicamos o oportunismo para satisfazer interesses. Para quê isolar esta premissa? Ele responde-me com teorias estoiradas por épocas, não aprofunda, prefere mudar de assunto, tentar saber o que premeditou ajudado pela tabela de audiências. - Como é que se sente, sendo quem é? - Quem sou? Diz que sofre de ataques de pânico, que posso evitar-lhe um ataque respondendo às suas perguntas. Fala no chefe, implora-me uma mentira, a que mais me agradar. Nada direi! - Diz-se que... - Diz-se que, o quê? Que conversa esta! Deixo-o a falar sozinho. Sendo quem sou... como se soubesse quem sou, como se quisesse saber, como se soubesse querer. Adora ler, fez pesquisas, cita títulos de inúmeras obras sobre obras de alguém. Garantiu-me ter ouvido o meu nome em bocas de crianças a quem os pais lavam os dentes com a minha pasta, sentindo-se gratos com o meu empenho conciliador, o meu exemplo trabalhador, os meus ensinamentos. Já estou nas enciclopédias... Em breve, a minha exposição será inaugurada no Museu Central. Todos sabem quem sou, todos menos eu. Quando lhes pergunto nunca respondem, resvalam em teorias. A única coisa boa destes energúmenos das entrevistas é aceitarem entrevistar-me no meu jardim pre57

ferido. Poderei passear antes de regressar ao controlo de Adalberto. Está a fechar? Não pode ser. Sou... sou uma passeante de jardins, mas também gosto de me sentar em bancos metálicos às tiras; sou obrigada a saber que pouco nos resta para esgotarmos a camada protectora. Tenho receio de que o mundo acabe, confesso, por isso, visito galerias; tenho medo de andar, a pé, por ruas sombrias; tenho medo de inspirar este ar de escapes; tenho medo de nada ser, nada representar; tenho medo dos vírus, das bactérias, do ar. Serei superficial? Tudo será uma questão de sangue? Recriemos a seiva! Sou deslumbrante! Choco-vos? Choquei-vos sem intenção? Eu gosto de me ver. Apreciem-me, é essa a minha intenção. Confio no meu talento! Sou mesmo deslumbrante e se o não fosse nunca perderia tempo a registar momentos para a posterioridade! É a minha história, uma parte integrante da nossa História, que vos deixo. É a minha versão para poderdes distinguir as verdades! Cada cabeça sua verdade, dizse. Dantes falava-se de sentenças. O que se dirá quando o tempo já não for meu? Terei saudades? - Adalberto! Tenho de voltar a deitar-me. Descansar. Tratar de mim. Estou cansada de outros que não eu: apagam-me, isolam-me, marginalizam-me para meu bem. Penso: uma recaída nunca vem só. Deixem-me contactar o povo, falar de coisas simples, viver enquanto a natureza o permite. Não se deve contrariar a natureza. Não se deve, passei a acreditar. Libertemme! Sinto-me sufocar. Sei que é uma frase feita, tipo Triste sabe-se que assim é, toma, leva-a e embrulha-a no melhor papel enfeitado que descobrires. Mas sinto-me só. Terrivelmente só ou será desesperadamente só? Ou nada disso? Tenho sempre a companhia da dúvida. Constato! Sou humana, embora haja quem pense o contrário e me mime tendo na mira a sua própria imortalidade. Deitar-me! Imperativo, absolutamente necessário à manutenção da minha parca sanidade mental. - Adalberto! Impossível viver sem me desconcentrar todas as noites e quando se dá uma ausência são as horas de sol as sacrificadas. Estou a envelhecer, descobri isso há algum tempo ao ver escassear a vontade de me perder na multidão, de me deixar transportar de vátio em vátio. Estou desencontrada, desconcentrada, não durmo há três noites, ainda aguento estas tiradas demoníacas cobradoras ao retardador. Mas não estou a participar em qualquer prova, porque me atormento. Ou se calhar estou, 58

batalho comigo. Só. A tentar fabricar selôganes que já me custam a criar. Hoje, ontem, amanhã, esgotei-me. Sinto a dor de não sentir os pés, de ausência de pernas e braços. Sou materialista? É cansativo suportar membros inertes. Quando o cérebro nos atraiçoa desgastamo-nos. Não uso comparações, não há nada comparável. Ainda estamos a descobrirmo-nos. Uma vez André respondeu-me: tu, como eu, conhecemo-nos, mas todos somos bons exemplos. Adalberto surge no horizonte. Quero ir para casa, o meu condutor não acredita, tenta acalmar-me, leu algures em mim uma inquietação. Estou do contra? sou contra tudo e contra todos? Fui alimentando esta inquietação na presença de Adalberto e ele confessa-me, a caminho de casa, que se sente impotente para me devolver ao lar que também chama de seu. Talvez (adoro este termo) tenha razão, estou disposta a saboreá-lo melhor, mais tarde, quero ir para casa, preciso de repouso, talvez jogue xadrez e aprenda a defrontar Adalberto de uma vez por todas. Nunca me apeteceu aprender mais do que o teórico movimento das peças, sempre achei o jogo das Damas mais próximo do quotidiano, mais rápido, preciso, efémero. E agora o que é que eu quero? O que é que quero? Irei à festa de aniversário do outro? Adalberto desafia a minha paciência, mascara-se de Jacinto, tenta ganhar noutro campo, outro encanto, mas ele já tem tanto. Não é tonto, tonto-tonto como tonto eu pensava. É um tanto ao quanto... - Afinal, quero ir jantar à Zona Sul. - Que rumo prefere? Viadutos até à velha ponte sobre o Tejo. Direcção costa sul! Ocorreu-me de repente esta ideia. Viajamos. Viajo e não me descubro. Não sei onde pertenço, porque circulo, quanto mais descubro mais me confundo. Ou desentendo? Confusão, faço-a, fabrico-a com tudo o que se encontra ao meu alcance. Ter quarenta anos não é o mesmo que ter trinta, pode ser uma frase feita, de gargalhar para quem tem menos dez, a mim, custa-me entender este avanço da idade que não se faz sentir no físico. Como será quando o corpo me ultrapassar? Restarão as memórias? PUBLICIDADE Quando a manequim aparece estão os quatro à proa, esperam-na. O motorista abre-lhe a porta. É a última a chegar. Acena-lhes. Sobe a escada apoiada por vários homens. O barco navega por entre pantanais. Num ápice, acosta. Inúmeros carrinhos solares esperam os passageiros para os levar aos aposentos. 59

Os carrinhos são azuis como ali é o mar, de um tom gritante. Jovens belos de ambos os sexos acolhem os seus passageiros, acenando-lhes. E arrancam à vez, parecendo desprezar a formatura, rumo ao Grande Hotel da Ilha da Língua. Dando uma demorada volta, acabam por estacionar na recepção do Grande Hotel que se estende rasteiro pelo areal, por entre palmeiras. E vêem-se as piscinas naturais, enormes para os escassos banhistas nus. Ecoa então uma voz sensual apregoando que a Ilha da Língua está no topo da tabela federativa dos destinos turísticos por eleição de associações e utilizadores. Já os condutores conduzem os afilhados aos predestinados aposentos, quando se ouve um sussurro rápido: - Enche-me a boca de uma maneira louca. Ilha da Língua, Europa, Portugal! No domínio das orgias! Apareço, vejo-os na proa à minha espera, sou a última a chegar, não sabem, mas a minha presença esteve por um fio. Adalberto estaciona, olha-me admirado, mudo como fez o caminho. Os outros pulam, gritam, acenam, eu retribuo-lhes os gestos e mando o basquetebolista regressar a Lisboa sem quaisquer satisfações. O barco parte à hora marcada, navegamos em propriedade de Zacarias Albuquerque – dez minutos a contornar pantanais esgotados pelas automariscadoras europeias. Condutores esperam-nos em carrinhos de três e cinco lugares, protegidos por toldos transparentes, carrinhos feitos de tubos da cor do mar, aqui azul gota a gota. Os linguareiros escolhem os visitantes que querem servir durante a estada; mal nos sentamos, desprezam a formatura e arrancam rumo ao Grande Hotel da Língua, uma viagem curta se directa ao aposento, um pouco mais longa se o desejo for obter uma panorâmica geral da pequena ilha e sentir, desde logo, o domínio das orgias, seguindo o conselho dos rapazes que vão manejando o diminuto volante e falando no patrono da Língua. Patronos são todos os servidores, basta pedir e o nosso desejo é satisfeito, de imediato, pelo linguareiro mais próximo. À chegada, informámos o jovem sobre as nossas pretensões (ele tem obrigação de as conhecer, aqui sabem sempre quem é quem, quem quer o quê), fomos conduzidos directamente aos aposentos, propriedades temporárias de Personagens Especiais, vulgo PES. Possuo um espaço, evidentemente, troquei a concepção da primeira campanha do Grande Hotel da Língua de Areia pelo gozo de 60 dias vitalí60

cios numa das tendas da ponta nascente. Reclamo pouco esse direito, sei que quando apareço, mesmo de surpresa, sou bem-vinda; o proprietário, continua meu cliente, adora as estadas de marias brancas, seja um dia ou dois meses, diz que o beneficio é da Língua. Nesta permanência à beira de água, partilho com Jacinto um espaço amplo, numa das tendas que me está destinada, há espaço para os dois, não me perturbará demasiado. Os Zacarias Albuquerque são nossos vizinhos, há uma passagem entre os aposentos, se a quisermos abrir... - Jacinto, vou tomar um banho. Irás fazer o mesmo? - Sim-sim. Jantamos na boda, é? - Combinámos com os Zacarias. Jacinto mostra-se aborrecido, teria gostado de escolher o restaurante para ir ao lugar do costume, no centro, à única tenda fechada ao mar. Acha que andamos todos na prática da influência, influenciamos e saímos influenciados. Porque será que temos de ir comer todos ao mesmo sítio? pergunta o meu amigo sem obter uma resposta, não me apetece alimentar esta conversa, Jacinto atravessa uma fase de obsessão por influências, detecta-as onde ninguém consegue vê-las, apanha-as em todo o lado; é um neurótico obsessivo, diagnosticado, para mim, o problema dele é uma neurose de carácter, insuportável, nesta fase, para si, qualquer iniciativa ou gesto lê-se no dicionário do lado obscuro do mundo, qualquer pessoa é uma ameaça ao bem-estar comum, qualquer palavra tem um significado duplo, pelo menos. O meu amigo entrou numa fase de palilalia, repete-se sem se fazer entender, diz abominar o sentir universal, critica a falta de transparência nas atitudes tomadas por quem decide em nome de um NÓS. Mas nós viemos à Língua com o propósito de festejar, sem restrições, a passagem dos quarenta anos de um amigo de adolescência que resolveu reunir uns bandos para comemorar a entrada nos enta. Jantaremos na boda sem a presença do aniversariante, será respeitada a moda, mais logo ele aparecerá. - O que é certo é que já todos os norte-americanos comem com garfo e faca, e os europeus gozam agora o prazer do garfo em mão de faca. Esta conversa indica que Jacinto se conforma com a ideia, já sabe o que vestir ao jantar, ele adora esta comparação entre americanos e europeus recolhida na tele-informadora que inquire e debita percentagens nas ruas da Grande Capital. Estamos convencidos, Jacinto oferece-me um cálice de Vermê, brindamos a pensar que temos pouco tempo para nos enfeitar. Resta-nos uma hora, restam-nos, afinal, horas infindas, do jantar até à Surpresa da Prima-dona serão horas infindas, não que 61

seja desagradável refastelarmo-nos na boda, porém, o nosso interesse é sermos surpreendidos e já não é fácil isso acontecer com uma refeição, o nosso objectivo é o clímax, há casos... - Aparentemente tudo se resolve com uma interacção de esforços. Quem disse? Não sei. Silêncio! Também o vejo entrar no salão e como todos emudeço na apreciação involuntária, também olho deslumbrada para Lino Glória, que vejo depois de ter saboreado um repasto bem ensopado? Algo surpreendente que reduz o período anterior a um jantareco, apesar da concepção nos ter causado alguma surpresa. Não vou especular sobre o seu olhar, não pretendo divulgar facetas de outra figura pública que não a minha pessoa. Glória é deslumbrante de feio, eternamente encantador, quando quer impressionar encanta serpentes ao toque de flauta. E assim ele entrou: sentado num tapete voador, arrancando sons encantados a um estranho instrumento de onde saia um réptil ondulando. O tapete aterra suavemente, o meu amigo quarentinhas levanta-se e recita qualquer coisa numa linguagem estranha à maioria dos espectadores. - ... E mandoulhe cortar aquelles menbros, que os homeens em moor preço tem; de guisa que nom ficou carne os ossos que todo nom fosse corto; e pensarom Dafonso e guareçeo e engrossou em pernas e corpo, e viveo alguuns annos emjalhado do rosto e sem barvas, e morreo depois de sua natural door! O salão quedou-se estupefacto. E cuidou-se alguém de inquirir o artista sobre tal representação? Glória, na sua extravagância, quedou-se silencioso, junto ao tapete, aguardando reacções, e nada; proporcionou alguns minutos à plateia e nada ouviu, então, aproximou-se do meu lugar, murmurou ter vindo num antigo tapete persa e lançou-me as folhas acabadas de ler. Passeia agora de turbante e tanga, cumprimentando os convidados que circulam pelo salão, acena a cabeça, estende as mãos. É puro acaso reconhecer quem nos cumprimenta. São muitos os convidados neste ambiente nublado, tudo se enquadra neste cenário das arábias, todos vestidos para a ocasião, pretende-se comemorar os anos de Lino Glória e os feitos de antepassados remotos, com interpretações ao gosto de cada conviva. Observo-os: envergando fatiotas extemporâneas, acenam com as cabeças, concordantes. E num rompante os homens puxam de leques, há muitos leques no ar, ninguém pega em copos e nas mãos das mulheres vêem-se bengalas. Elas, ora fixam o olhar nos homens ora bichanam, encobrindo com as mãos os sorrisos marotos, saboreando o movimento vigorosos dos machos. Todos têm um papel nesta cena, mostram-se agradados; todos entenderam que acabou de ser lançada uma mensagem qualquer, confidenciam, em 62

tom baixo, terem agarrado as pétalas soltas por Glória, não adiantam pormenores, ficam-se como se algo desfeito merecesse mor castigo (MOR?) ou será que se traem em consciência. Mor, registe-se que este termo sobrevive e eu gosto do paladar. Nós ficámos pra lá da Surpresa Prima-dona, eu, Jacinto, os Zacarias e um número incerto de convivas dependentes de embarcação, os demais recolheram-se por aí, aos tombos, outros foram levados pelos linguareiros. Os barcos privados só aportam mediante autorização, à noite o movimento é restrito, os linguareiros preferem ir pôr ou buscar os forasteiros ao largo, uma dezena de cada vez, para não se perder o controlo, não pode haver excesso de clientes, é o único excesso verdadeiramente proibido. Estamos numa língua com direito reservado a admissão, não há residentes que ultrapassem os dois meses no complexo hoteleiro deste areal perdido no mar, só os empregados podem aqui residir. A Língua não é um sistema abstracto, aqui, qualquer acaso está previamente combinado. A manhã já tem algumas horas, e estamos estendidos, agrupados, alguns acasalados. Cada um no mais diverso entretenimento. Nós, os do meu bando, divagamos sobre o regresso a bom porto: como atingir terra firme quando nem firmeza possuímos nos passos? É melhor prosseguir a conversa, continuar a beber o verdadeiro néctar desta era. Néctar, sim! Bebida benévola que extasia sem efeitos secundários, diz-se, até, que beneficia o funcionamento do organismo. Não se serve em qualquer lugar, embora a sua venda apenas seja controlada nas zonas do terciário e nas suburbanas, a certas horas do dia, uma decisão tomada para criar apetência à sua volta. Nas festas servem-na, a Vermê e muitas outras coisas, ir a uma festa é melhor do que nos expormos na farmácia. Guardo em casa um lote desta Branca da marca Vermelha, não vá alguma vez esgotar-se. Os portugueses chamam a esta bebida Vermê, o nome Bebida Branca não pegou, em outro idioma que não o nosso as palavras parecem soar melhor. Nas garrafas e nos copos é um líquido lácteo, se não a baptizássemos de Vermelha podia confundir-se e a cor branca apenas se vende bem quando se trata de roupa, a publicidade dita a moda. Os ingleses chamam-lhe White Drink, dizem o nome deixam a marca, cá tentou-se chamar-lhe Branca mas o publico ganhou dizendo Vermê, a bebida é branca como tudo o que é puro, é lácteo porque é uma via para as estrelas, não existe qualquer contradição em referenciá-la com a palavra Vermelha. Os fabricantes ainda pensaram misturar-lhe um pigmento vermelho para igualar nome e cor, no próprio instante compreenderam que sairia outra bebida distinta; a razão pertence ao público e seria mais fácil comercializar o revigorante rendibilizando os diversos significados da cor vermelha e a aparente contradição. Cá, 63

pelo nosso Estado, os representantes do consórcio ainda ponderaram se adoptar o Red Drink ou baptizar a bebida de Encarnada, esquecendo a marca, todavia, alguém descobriu uma eventual ligação do adjectivo à ideia de carne e o estudo de mercado reforçou a ideia: o público gosta de estrangeirismos. Branca é que não, logo Vermê. Confusos? Melhor, mais consumem. - Ficou vermelha, por consenso dos publicitários. Foi assim mesmo, Jacinto. Acredita! Jacinto nunca me perdoa, já contei duzentas e cinquenta e sete vezes a indiferença de 48 por cento dos inquiridos; não concorda com aquilo que classifica de manobra das mentes, reafirma-se um rebelde nas palavras, lambe-se ao pensar na Vermê, adora embebê-la em álcool. Não nega a existência de um contra-senso curioso no baptismo desta bebida natural inventada por portugueses. Quanto ao progresso, Jacinto fica-se pela negação de teorias e práticas impróprias, aliás, todos sabemos que ele tanto diz sim como diz não. - Bom, se a bebida ficou vermelha é porque de facto tomou a cor. Ou não? Respondo para manter a conversa. Os Zacarias mostram-se diferentes dos jantares do Moreiredo, preferem beber a intervir. A bebida mantém-nos vivos, satisfeitos, e não nos corrói o corpo, desagrava o cansaço acumulativo, não trata a origem, não dispensa a terapia. Rimo-nos de quem tem compromissos esta tarde, não os há no nosso bando, em outros serão poucos, com certeza, poucos são os que se comprometem à quarta-feira, em privado, talvez, até porque é essa a razão da folga a meio da semana consagrada aos criativos: dia destinado a compromissos particulares. Eis o anfitrião que abandona o sorriso complacente e nos leva gargalhando pela beira de uma das piscinas publicitadas como sendo naturais. Lino Glória convida-nos a nadar nas águas límpidas, constantemente renovadas por um sofisticado sistema. Estamos numa língua de areia sem conseguirmos detectar um verdadeiro grão; existem compensações mais preciosas do que um extenso areal, esta língua não deixa de ser o paraíso, e há uma estreita faixa de areal pela costa da língua. Espantoso, todos envergamos um fato de banho; espantoso pela rapidez dos gestos na substituição da indumentária, apesar de nestas deslocações se substituir, à partida, a roupa interior por uma outra semelhante mas impermeável. Ninguém se atreve a desnudarse, não existe razão plausível entre gente tida por responsável, se fosse no mar... Dantes, aqui, neste lugar, não se corria qualquer risco, agora recomenda-se a libertação em privado. Alguns do bando ainda se lembram da Língua ser um privilégio mais restrito, quando nem tudo representava um acontecimento social, o problema é 64

que há sempre quem arranje dinheiro para obter uma entrada – uma passagem para outro mundo, onde só passará um dia da sua vida. O que lhes digo é que conceitos imutáveis só enquanto dura o período da descoberta que é a mãe de toda a esperança... costumava proclamar na minha adolescência ser o meu pai o pensamento e a minha mãe a descoberta... - Sou uma megera! Brinca o anfitrião Glória, meu companheiro de diabruras inocentes. - Aquilo que se diz nesse tempo em que se sente possuir o mundo... Intervém Jacinto, calando-me. Decididamente, a telepatia pode tornar-se irritante. - Água connosco, estamos quase na hora de almoço. Compreendemos o Mundo. Aproveitaremos a água. De novo o anfitrião nos arrasta e todos lhe imitamos o acto corajoso de mergulhar de cabeça, no lado mais profundo. Mergulhamos em grande alarido, damos braçadas para atingir a escadaria de mármore. Eu e o anfitrião alcançamos os copos e mandamos os empregados levar os outros aos donos que ainda se banham prazenteiros. - Já provaste este líquido? é salgado. Respondo que não, claro que nunca bebera daquela água. - Está bem. Eu também nunca precisei de beber água do jarrão das flores... - Que queres que faça? - Calhou-te uma vez... Ri-se e não termina a frase. Entendeu nas minhas palavras uma censura. Explicome: - Não me percebeste. Não estou a censurar-te, nem a culpar-te do que quer que seja. É um outro tipo de experiência. A água para manter as flores é revigorante, por uma vez tentou-me... Rimo-nos, encostando os ombros, cumplicidades. A vida tornou-nos cúmplices. Merece um registo vago a razão por que naquela noite bebi a água da jarra: estava muito longe de casa, sem Adalberto que na altura era um tal Velino, a quem raramente chamava Lino, também não chamo Berto ao... se, nesse preciso momento, fosse Adalberto o meu contratado... se tivesse que beber do jarrão tê-lo-ia feito em minha casa, segura por me saber bem acompanhada. A água soube-me docemente como, suponho, me aconteceria em qualquer outro lugar desde que em idênticas circunstâncias. Reconheço que voltei a baralhar os factos, acontece sempre que tento justificar aberrações. E, então, com... E estou salva de justificações. Há um grupo recém-chegado à piscina, são seis que 65

gritam dentro de água clamando a salvação divina. É o efeito do álcool combinado com o Vermê – uma tentação que garanto não acontecer no dia-a-dia, com a proporção verificada em ocasiões festivas ou, em menor grau, aos fins-de-semana. Seguimos os povos do frio em usos e costumes saudavelmente cómodos, apesar de mantermos o sul intocável. Há bandos da noite e bandos do dia, os diurnos acham a palavra bando um disparate, recusam qualquer qualificação julgando-se os únicos detentores da diversidade. Verdadeiramente, o que me irrita nestes seis aprumados é só conseguirem actuar em língua alheia, nos seus lugarinhos de residência a nada se atrevem. Discordam de quem pensa o contrário, evidentemente... apenas acentuo esse facto porque conheço quem não discorde de quem pensa o contrário. Reino, de reinar aos reis e rainhas? Estou ébria... a propósito de brincar, ainda ontem me apresentaram mais um assessor do Estado, um tal Costinha Silveira, um amigo de um meu amigo que meu amigo não é. Disse-me que era o Toné, para os amigos, especificou sem ter tido de mim qualquer sinal para trocar intimidades, garanto-vos. É esse Toné quem comanda o bando dos nus que não pára de se obrigar a mergulhos e satisfações gritadas. O nosso bando ri-se. Nada mais podemos fazer, diga-se em confidência. O bando do anfitrião não pode, nunca, impedir os outros convivas de disparatar, mesmo sabendo daí advirem problemas a precisar de muita energia para os dissipar; eles, extasiados, desperdiçam Vermê atirando-a à piscina e, de seguida, mergulham em busca do néctar, fazendo de peixes. - Vês? Eles bebem a água. - Ter-nos-ão ouvido? Facilmente se desvaira nestas confraternizações linguinformes, representam zonas exclusivas do grande lazer, mantidas para a libertação do gozo, sustentadas para diminuir as perturbações ao quotidiano. Muitos só agora compreendem a razão da dura peleja para se manter aquilo que afinal se pretende destruir em nome de moralidades estranhas. Veja-se o tratamento dado ao corpo, há quem nunca reconheça os períodos de tréguas; desfazemos corpos sem apelo nem agravo. Tenho náuseas. - Vamos para casa Adalberto. Despeço-me à francesa. Adalberto apareceu, assim, como num gesto de magia; abraço o meu príncipe encantado que nunca será esquecido. Que faço eu? Adalberto leva-me num carrinho amarelo, ele estava na Língua, não regressara sozinho, por aí fora, não se fizera notar. De novo sós. Está ali um homem a fazer gestos estranhos. Fala em inglês. Quer ir para a praia? Mando-o entrar. E prego-lhe uma lição de lin66

guística, explicando com ênfase a diferença entre uma língua permitir o tratamento diferenciado e outra negá-lo. Os ingleses entendem que são auto-suficientes sendo ilhéus... Ainda sentado no carrinho, balbucia não ser egoísta, bastarem-lhe os problemas de consciência do reino, acreditar em lendas, reconhecer a Irlanda... Que dizer a um ente que não aprecia porque ignora? chamar-lhe atrasado, mal educado? convencido? Os franceses dizem que pagaram um preço demasiado elevado para serem franceses, os portugueses continuam a pagar um balúrdio por o serem, mas por que estou a dizer isto a um inglês, ainda por cima em português? Paramos. O britânico abandona o carrinho a meio percurso, suponho que intimidado. Ainda bem, sufocavame a excitação de roubar um momento de sossego a um inglês, meu concidadão, já fiz o mesmo a um alemão e não é porque rima que registo esta atitude; se sinto o dever de realçar o meu lado nacionalista é porque admito que alguém possa confundir atitudes, há quem diga por aí que quem desdenha quer comprar e que eu escondo um desejo de internacionalização, uma ambição desmedida, que defendo o país mas detesto o Estado, defendo a produção nacional apenas para me proteger. Nacionalismo barato? Justifico-me demasiado? Maneiras, como direi, fórmulas de dizer? Não significa que minto, antes sim o que entendo. Tretas!? não deixa de saber bem dizê-las e ouvi-las. Não? Nunca escondi ser pus o que trago na garganta e me provoca convulsões matinais. Nunca o tinha dito? São escarros - matéria viscosa para atirar a quem brama desprovido da verdadeira expectoração! Odeio para conseguir amar. A idade quer matar-me, todos me querem matar, há quem desconfie do meu cabelo. Nunca lhes entregarei a certeza sobre a minha personalidade, neste registo julgo contar o que pretendo, tenho consciência de dar a entender o que não quero. De vez em quando ultrapasso-me, acho que são influências do Jacinto. Acreditem que não me impressiono facilmente: hoje ao reler as criticas aos meus êxitos... fiquei apenas nostálgica. Tão somente! Bom, indigna-me ainda a desfaçatez de outros quererem apenas querer sem entender uma palavra escrita, daquelas palavras que se escrevem para dar a entender e não para proporcionar entendimentos longínquos, porque os desprezo. A razão não me assiste quando assim vocifero? A razão atormenta e a lógica só baralha. Sinto-me ligeiramente diferente. E não venham dizer que faziam de mim outra ideia. É tudo mentira! O que dizem, o que digo... Só se não existíssemos seríamos verdadeiramente solidários. Quantos seres represento? Continuo a gostar de acasos. Acreditem que não me impressiono, as criticas aos meus êxitos deixam-me ape67

nas nostálgica. Tão somente? Bom, indigna-me a desfaçatez de outros quererem apenas o seu querer sem entender uma palavra escrita, daquelas palavras que se escrevem para dar a entender; para proporcionar outros entendimentos. Por que os desprezo? A razão não me assiste quando assim vocifero? A razão atormenta e a lógica só baralha. E não venham dizer que faziam de mim outra ideia. É tudo mentira! Repito! O que dizem, o que digo... Só se não existíssemos seríamos solidários. Quantos seres represento? Continuo a gostar de acasos. Não quero que me entendam! Calma, também não sou apenas uma personagem inventada, também posso apelar ao vosso entendimento. Enlouqueci? Talvez, dirão. Estou cansada de falsas noções, saturada de ter que perceber tudo para concluir que nada entendo. Amargurada? De modo algum! Ah! Engano-vos? Evidentemente, como gosto de dizer. Só eu conheço a verdade: os anos passam por mim, e ficam. Renasço e sei não estar longe o dia de todos os meus pertences irem parar ao Museu Central; vão todos ali parar, todos não, os dos iluminados eleitos pelos pares. Um dia todos os meus pertences estarão no Museu Central, foi para isso que vivi. Eia! é preciso elucidar-vos. Nestes dias que deixei em branco, nesta semana liberta de campanhas e durante a qual nada escrevi, irritei-me ao compreender que tentam matar Maria Branca. Só agora desabafo. Julgo a propósito frisar que nunca esquecerei André, ainda não desvendei o mistério da morte. Terá morrido? Em mim vive. Gozo férias sem prazo, nada sei do outro gémeo; não despedi Adalberto e Adalberto nunca pretendeu deixar-me; deixei de ir aos jantares mensais do Moreiredo. Quem me terá descoberto, destemperado? Tentam reinventar-me. Terei morrido? A primeira exposição das minhas obras está prestes a ser inaugurada no Museu Central. Penso: terei passado de uma motivação disjuntiva para uma motivação conjuntiva? Abandonado a temporalidade, adoptando as satisfações permanentes encontradas na realidade? Esta semana, recebi uma carta anónima, transformou-me; suo quando penso que decidiram anular a minha actual existência. Persistência, quer queira quer não, rima com permanência, por isso, me refugio há algum tempo no Museu Central. Antecipo o fim? A mensagem não determinava datas, apenas impunha que aparecesse no Museu Central. Espero há três dias esse recontro, a casualidade é uma questão de fé, espero à porta principal do museu. Ontem, julgo ter visto quem me quer ver. trocámos olhares, nem sequer nos aproximámos. Estranha esta sensação de angústia, é novo para mim este sentimento. Sigo por corredores que terminam em corredores, 68

sigo correndo nas galerias. Busca! Nisso a carta era explícita, dizia: busca com ponto de exclamação. Vejo umas pernas junto àquela obra envidraçada, é impossível descortinar-se da porta o dono do corpo. Passei por aqui ontem e ninguém vi, agora assaltam-me a vista umas calças folgadas. Não chega para adivinhar se se trata de algo humano. Pode ser uma obra de arte. Avanço? Tenta-me espreitar o encoberto, noutra ocasião já o teria feito. Neste momento, espero encontrar o homem por aqui, é de certeza um homem quem me escreve. Vou explorar o corredor principal. Acredito em cartas anónimas. Julgaram-me assustada? Nunca tinha recebido mensagem tão tentadora e tão tímida. Medo de quê? Não corras!, diz. Porquê? Interroguei-me várias vezes ao ler as cinco exclamações: No Museu Central! Busca! Não corras! É tudo paus! Evita o primeiro encontro! Regresso à entrada da galeria das calças. Terão desaparecido? Lá estão as ditas de pano folgadas, no mesmo lugar. O pano fará parte da obra plástica? Talvez seja melhor verificar, de novo, onde acaba o corredor, entreter-me, atirar um olhar a mais três ou quatro galerias. Curiosamente respiram gente – passeantes que julgo indiferentes ao que vêem. Miram os cantos num frenesim. Observo. O Museu Central abre as zonas interiores conforme os dias da semana, conforme o número de bilhetes reservados; a entrada é gratuita, o dinheiro que se paga pelos bilhetes destina-se a financiar uma associação qualquer ligeiramente devota da benemerência. Alguns comentários quebram o silêncio, são de rumorejantes. O museu ficou cheio deles, num repente. Pode ser que saibam o que dizem, parecem divagar; diz-se que rumorejam para iludir ouvidos, que os murmúrios mais valiosos saem por entre lábios doutos, que não se deve murmurar em lugar algum. Regresso à pintura envidraçada, não acredito na possibilidade de desperdiçar tempo numa observação, não entendo as criticas à contemplação, dizem que as horas são-nos fornecidas para que sejam utilizadas de uma forma racional. O museu é uma surpresa diária, dá-nos sempre algo de novo, faz-nos regressar. Lá estão as calças, na mesma posição de esforço. Calças largas de bonitas, em tons laranja, plenas de vincos. Aproximo-me desconfiada. São reais. - É tudo paus... Não reconheço a voz, estranho o tom do comentário, sinto um tremor, uma ansiedade, demorarei a responder, avançarei com cautela. Vou deitando olhares a outras obras. Até aprecio arte – como querem que vos diga? - praticamente todas as formas e gosto de conhecer objectos estimados por gente famosa, como qualquer cidadão. 69

Mas como neste momento tudo me dispersa, aceito quaisquer comentários. Tudo poderá ser paus, começo a acreditar, já aqui estive, práqui virei. É ele, o autor da carta! Quero fugir. Releio a pequena folha amarelada: evita o primeiro encontro! Quero segui-lo à letra, aceitar o destino. O ser move-se. Traz ao colo uma criança de óculos e fala como se tentasse surpreender um adulto, disfarçando o nexo. Impossível desviar o olhar, tento disfarçar a obsessão com um sorriso, viro-me, ele sai, espreito-o da porta: move os vincos pelo corredor, continua a falar para o ser de colo, talvez educando, talvez educanda. Coincidências? A carta alerta para a possibilidade de um primeiro encontro frustrado. Saio na direcção contrária. Não foi nesta galeria das exposições temporárias que três vezes vi quem busco, três vezes à mesma hora! A exclamação assalta-me. A ânsia adiantou-me, faltam cinco minutos para a hora habitual. Terei mudado o rumo do destino? Se assim fiz, não mais poderei voltar. Terão acabado os encontros na galeria? Rasgo a folha mensageira e como é folha como-a para que faça parte de mim. Procuro as campânulas ajardinadas, um lugar assinalado - jardins, por ali à direita - é por onde vou. Algo no ar me atormenta, devo fazer uma jogada para repescar a meada? Ei-lo! Fixa-me a curta distância. Pela primeira vez diz-me Olá Bom Dia. A voz intranquiliza-me, os olhos nada me dizem, mudamos, temos de mudar. É preciso delirar. Resta pouco tempo. A idade mata-me, é ele! Este é o homem da carta. - Vamos para casa. Agarra-me no braço e eu aceito dar-lho. Tomé, assim se chama, disse-mo sem que lho tivesse perguntado. Só em casa me apercebo do significado da aparição. E vejoo envelhecido no espelho, a barba por fazer, o brilho nos olhos. Apetece-me chamarlhe André... Tomamos um banho? Entro no chuveiro. Há atitudes de consequências irremediáveis. Puxa-me para fora, suga as gotas violáceas percorrendo o meu peito, no chão, rendo-me ao tactear eréctil, um golpe de ancas e julgo evitar que tudo expluda num só solavanco. Ele sabe, e envolve-me, envolve-se. Age seguindo o desejo do meu corpo. Inventamos uma praia, molhamo-nos na chuveirada, e uma onda empurra-nos para a areia. Embrulhados arrastamo-nos para o quarto. O prazer agita-nos, libertamo-nos. Molhados somos eternos. Agarrada a André voei, abandonei-me ao prazer; tantos anos de sedução ardente a esvaírem-se num só encontro, não tenho medo de os perder. Quem me dera poder esquecer para não comparar! Separamo-nos docemente e amarinhamos para a cama. Dois extenuados sorrindo, como foi bom entregarmo-nos ao destino. Olho-o e não me surpreendo, tenho dificuldade em entender 70

esta sensação que me atira para o passado. Arrisco, pergunto se pertenço às suas recordações. O homem pergunta o que entendo por recordações, lamenta-se, a sua memória encontra-se inacessível. Paciência (digo eu incrédula), readapto o discurso, sei ser compreensiva. - Não é necessário ter memória, quando o destino deixa de ser uma preocupação. Até se fazem cirurgias de limpeza... certas incapacidades são dádivas dos céus. - Os meus recursos são escassos. Absorvo o que existe tal como existe e as comparações? somente as faço com aquilo que me dão do passado, vivo o presente. Sinto-me tão banal, há uns anos juraria conhecê-lo. Tomé é um anjo. Ouvi-lo-ei um pouco mais para poder acreditar ser-me estranho. - Tem o privilégio de nunca se lembrar, é certo? - Entendo como se constroem os factos. Para mim, és uma visão. Ele desconhece esta Maria Branca, como lhe dizer que não sou tão diferente quanto pode pensar, sou quem sou vivendo do presente, deixando o passado entregue a outros. - Tenho da memória uma memória... Acho preferível acreditar num rumo previamente definido, pouco se pode fazer. Nada de rasuras ou se acerta ou se rompe? Será mais fácil viver quando viver se transforma na peça de um jogo? Admito o esquecimento intencional... - Não me interrogue sobre essas coisas. Estou impedido de responder. Mas uma coisa bastante agradável eu sei: quando estou consigo amo-a. Não sei que dizer. Estou encantada, só me apetece escutá-lo. - Gostaria tanto de voltar a rir contigo... Maria, nome invulgar. Há personagens, assim, com o poder dos deuses. São agradáveis lembranças: o riso, a voz, este cheiro. Lembranças ténues que me povoam, que quero fortalecer e só tu... Entoou o meu nome docemente. Lembrar-se-á das últimas vinte e quatro horas? Acompanhar-me-á para sempre a angústia de ouvir perguntar como foi ontem? Mas sabe tão bem sorver palavras de amor servidas quentes, sabe tão bem refazer recordações. Assumo a minha posição solitária, mas tenho recaídas. E se acontece encontrarmos, mesmo quando nada procuramos? Mando Adalberto levá-lo a casa. O sol já nasceu. Mais uma vez me confundo, perdi o poder de. Beijamo-nos na sala até Adalberto chegar, fico ansiosa porque ele promete ligar-me mais logo. Leva escrito num papel mentolado: impossível esquecer ligar a Maria. Aperta o pedaço com as mãos, cheio de medo de perder a lembrança. Talvez um dia falemos sobre a outra carta. 71

Saem os homens. Com certeza esmiuçar-me-ão a aparência. Calculo, como sempre o faço. Deito-me até Adalberto regressar. Tomé está em casa, seguro. Adalberto conta-me ter lutado por mim, falado de Luísa ao senhor Tomé; falado do seu fiel comportamento ao mais leviano dos homens; das suas qualidades de mãe; dos seus excelentes cozinhados resultantes das receitas recolhidas pelos séculos da família. Adalberto é tramado. Conheço a famosa Luísa, excelente anfitriã de um lar à antiga que faz questão de manter para lá das aparências. Julguei-a fraca, ao conhecer aquela residência de três andares com piscina conversível no terraço. Conversámos pouco nessa noite de festa. Acho, ao fim destes anos, que ela não quis distrair as atenções dos homens presentes para me ouvir falar sobre mais uma promoção, certamente polémica. Podia tê-los encantado, mas Luísa cedeu de bom grado o papel. Dias depois, convidou-me para uma partida de bilhar, no salão do seu condomínio - um pretexto para juntar à mesma mesa as mais diversas personalidades femininas. Só eu não sabia o que fazer com aquele pedaço da vida que nunca me interessara. Fiquei a saber que impor a perícia a corpos roliços, estáticos mas esquivos, pode ser confrangedor. E a conversa entre cada tacada: concisa troca de palavras de um só significado, jogamos com a cumplicidade própria dos homens quando falam de sexo. Ajuízo por mim. Fabriquei cálculos a vida inteira, desperdicei a essência matemática, uma só tacada arrasou a minha convicção na ciência das mentes. Bola preta. Estarei mais vulnerável? Ter-me-ei confrontado com algo inesperado, com algo a que nunca dera tempo... perdi a razão ao manipular as noções. Tenho obrigação de conhecer os destinatários das mensagens encantadas, fiz vencer os mais variados produtos. Padronizar comportamentos, uma ideia vital a ofuscar-nos os anos. Nós aproveitamos as oportunidades, apenas isso. Vivo numa desmedida virtualidade. Foi assim, recentemente descobri de onde vinha, para onde vou, provavelmente. Amanhã regresso ao Museu Central, lá estará Tomé adorando obras que irá esquecer. Esperarei à porta. Há-de ligar, prometeu. Esperei até a luz do comunicador se acender. Meu Deus, a campainha tocou! Falamos. - Ligas-me para falar do tempo? És mesmo tu, Tomé esquecido? - Oh! canta-me lá esse olá derretido... por ontem. Quero dizer... gosto de ouvir-te... - Comprometes-me o olá... Fazes ruídos com a boca! Afinal tu existes... - Mesmo! ou será que me inventaste? - Não sei. Já lá vão vários dias... - Ouvindo-te, norteio a minha vida. A tua voz encanta, diz-me olá. 72

- Queres com isso dizer que tenho pressa? Uma velocidade acrescida por pura intenção, uma atracção por vertigens? - Ainda bem que não estou a entender-te. Assim, somos obrigados a encontra-nos amanhã. Amanhã na galeria? - Queres conhecer-me melhor? Adoro esses teus ruídos ternurentos... Olha que não és único. Não sei se vou entender essa tua vontade de não memorizar. - Vontade? Amanhã na galeria. Adoro-te, Maria... - Até então, no museu.... Escorreguei. Passaram-se séculos sem sentir o solo a derrapar. Solo. Descansem: nunca pensei incluir neste registo que se pretende curto, uma história de amor. As paixões invadem-nos sem aviso prévio, mas eu não deixo. Vou para a sala, hoje será escritório, aqui trabalharei. Apetecia-me reencontrá-lo, mas o Museu Central enervame. Todos os dias aquele espaço isento de humidade embalsama algo de meu. Reforcei a consciência: tudo o que escrevo é para a posterioridade! Está lá uma das minhas camas... Deixei no passado que me integrassem numa exposição temporária, participei com frases feitas para esculturas em casca de amendoim. E agora, quando escrevo, sinto a insegurança da primeira vez, uma virgem a falar de amantes. Prometi, durante estes meses predestinados não mentir, prometi, até, não omitir pormenores irrelevantes; mas nada que considere relevante omitirei para a História. Nem sempre sou de confiança... A selecção foi uma naturalidade desmentida. Minto-vos? Baralho-vos? Também muitas vezes me confundo. Sou publicista galardoada. Sou (fui?) escritora condecorada. E prometi, prometi a mim mesma, ser nascido de geração espontânea, inventado, muitas vezes reinventado... Nem sabem onde nasci, associam-me à capital, parece que só nas capitais nascem os iluminados. Nunca consegui assumir ter surgido na margem sul. Os meus pais, naturalmente, registaram-me nos serviços capitais! Pertenciam à espécie culta, nunca iriam correr riscos devido a meros incidentes de percurso. A minha mãe ainda tentou reter-me, mas eu queria sair, cair fora desse caldo onde permaneci o prazo normal. Inexplicavelmente fiquei com uma tendência suburbana, de que nunca me libertei, apesar do esforço em afastá-la de mim; apesar dos cheiros com que inundo o corpo. Prometi renegá-la. Promessas, quando a compensação nos desilude muito antes? É em momentos vacilantes, como este, que me ocorrem pensamentos idos, a custo ultrapassados. A minha determinação vacila. Lembro-me de Adalberto, sempre fiel na condução pelos mais diversos circuitos. Adalberto faz parte da minha vida, quando penso nela como um todo; totalidade de uma existência repartida que se interrompe73

rá para ser repensada. Alimentamo-nos com modelos remodelados até à exaustão, temos a ciência dos antepassados; que se aprenda quando se papagueia exemplos, que se resista à experiência alheia o suficiente para usufruirmos desta dádiva que é experimentar. É preciso refrear a apetência devoradora de impor os ensinamentos da idade. Estarei a converter-me? Envelheço? Mas não estávamos a falar de equilíbrio, estávamos... estava eu a falar de Adalberto. Sabemos, os dois, quanto é forte esta ligação estabelecida por contrato de trabalho – faço questão de cumprir as imposições fiscais para nunca sofrer o vexame de ficar inibida de qualquer acto ou actividade, tendo o Estado a desculpa de ser eu a prevaricadora. Nunca! Sei não ser essa a razão deste singular contrato. pelo menos não foi por isso que se firmou o documento. Trespassarei Adalberto? Esta noite não ficarei em casa sustentando o cansaço. Vou levar o Adalberto a jantar, transformá-lo em parte activa; agradecer-lhe-ei ter-me deixado caminhar pelas ruas, junto às montras, quando passeamos agradeço-lhe a concessão desse direito baixando o rosto, quero que se sinta o meu romano, cavalheiro e marialva. Com facilidade assume o papel do macho e aceita tudo, condescende, foi concebido para servir. Abandonou o basquete porque se desentendeu com a equipa. Ele assim conta mas (desconfio por natureza) julgo o abandono uma opção fácil. Bem sei que corto as oportunidades de se dar a conhecer, penso conhecê-lo o suficiente e não me apetece descobrir o contrário. E adoro Tomé, parece que n os conhecemos há muito. Fascina-me a ausência da repressão consciente e irrita-me não suportar memórias. Se se entender este pensamento como uma contradição, congratular-me-ei pela existência de um Deus que permite o livre arbítrio. Vou jantar com André. Ligo-lhe. Oh! Chamei-lhe André... - Interrompi-te o sono? - De forma alguma! A tua voz encanta-me, já to devo ter dito. - Lembras-te ou calculas que sim? - Devo-te uma confidência... - Trata-se então de um esquecimento a longo prazo? - E disseram-me especialistas que só um amor eterno me faria subtrair ao inconsciente a parte roubada à consciência. - Isso é um convite? A esta hora? - Vens cá? Tomé repete a conversa telefónica. Diz o que disse, diz como respondi. Repete o diálogo, satisfeito por se lembrar; desconhece qualquer motivo para dramatizar. Diz 74

que repetiu as frases até eu chegar. Brinca, com certeza. Há talvez uma ou duas horas que se estende o monólogo, que André traduz essa insólita sensação de mortalidade prematura. E Maria Branca em vez de se irritar, ouve fascinada. Penso: trata-se de uma fuga ao convite dos impulsos, sem dúvida. Um mecanismo de defesa como outro qualquer. Tomé poderá restabelecer-se, mas à custa de quê? egoísta? eu? Confesso que talvez tenha pensado que à minha custa será difícil, mas não foi o primeiro registo, como tal, como palavra pronta a ser lida. Estou deveras surpreendida, eu que resolvi afastar-me do mundo para viver mais tranquila, sem obrigações de criar, procriar... - Tenho de regressar a casa. É uma obrigação moral. A agenda sobrecarregada... Falas bonito, que mais dizer-te? que me atordoas? - Atordoo-te? - Que me dizes? ...se isto é amor? paixão? Deixo André na cama. Deixo-o atordoado, o sol entra pelo quarto. Encontrar-nosemos na galeria. De acordo? Responde um sim, nada sóbrio. Duvido. Penso nele, acho que nos conhecemos mesmo há muitas luas, talvez noutra vida. Reparo agora no lapso da noite. André, Tomé... Troquei os nomes, quantas vezes? Tenta-me o justificativo da terminação, mas espanta-me a facilidade com que o pensamento impõe o registo. Foi sem dúvida um registo do pensamento. Terei de interpretá-lo, mais logo. Tenho uma agenda demasiado preenchida, gozo o lazer, preciso de variar. Ter-lhe-ei chamado André, por acaso? Tomé não se lembrará. Lembrar-se-á de mim? Chego à pesada porta do museu de aço, cinco minutos antes do fecho. PUBLICIDADE Ao olhar o relógio leva um encontrão. O homem desculpa-se apertando-lhe os antebraços. De repente, abraçam-se largando exclamações inteligíveis. O homem está envelhecido, gordo, de cabelo completamente branco, como a roupa que tem vestida. Ela, de verde, olha-o, fresca, sorridente, de pele macia. O homem fita-a com as olheiras. Olham-se agora como velhos companheiros num reencontro. O homem tenta esboçar um sorriso, em vão. A mulher pergunta com voz doce: - Que tens? O homem balbucia algo, de novo inteligível. A mulher põe a mão no bolso do casaco curto e justo. Tira um pequeno vaporizador amarelo. Vaporiza o nariz do homem. 75

O homem abana a cabeça e olha-o surpreso, feliz! A mulher grita: - Água pura, de mistura! Refresca até a alma! - Vivex! Diz o homem eufórico.

Ao olhar o relógio levo um encontrão. Também há irrealidades que se repetem, designam-se correntemente antevisões, cientificamente paramnésias. O homem desculpa-se apertando os meus antebraços. Reconheço-o ao fim de cinco anos de esquecimento, desde que trocou a informática por tudo o que tinha na vida. Está envelhecido, gordo, de cabelo branco, como a roupa que traz vestida. Miro-o, sorriolhe, impressionam-me a pele pardacenta, as pesadas olheiras. - Antão, que tens? A pergunta é um trovão: entrega-me a mala cilíndrica, fala percorrendo o enorme átrio em passadas longas, revela-se uma máquina humanizada; vira o rosto arrependido, pisca os olhos brilhantes, sussurra duas ou três vezes: - Ando desesperado. Diz-se cansado, ultrapassado pelo que ele próprio ajudou a erguer forçando vontades, e delira à velocidade do som, da luz... O desespero atacou-o quando começou a escapar-lhe a realidade da repetição. Concluo, ele já só acredita em premonições. Esconde-se nas redes, pelos ecrãs, a fonte do seu tormento, bem assim na vertigem que os origina. Tudo se repete como se fosse o dia da criação e não há qualquer aviso do contrário. Não são imitações, são reposições sem prévia denúncia. E entre estas surgem outras adaptadas, obras sem fim. Nada de novo. Não que seja pessimista, limito-me a registar preocupações de Antão. Interessam outras épocas se vivo a minha? Se temos tão pouco tempo para a denuncia... Escassas horas acordados. - Tu julgas que estou louco? Que enlouqueci para o mundo? Que não estou preparado? Acredita no que te digo, lá chegarás. E largou-me o braço. Não duvido de uma palavra, o conjunto é que me parece desconjuntado. Apago a razão que se opunha ao pensamento e sofro com Antão porque, diz ele, a lua é pisada por tantos quantos pretendem alunar e são muitos. Novamente confusa esta minha declaração de princípio? Entenda-se a minha paixão, recorde-se 76

o resultado de outras, mas permita-se a sua actividade! Sei que prometi evitar a teatralização e tenho tido momentos de cedência, que fazer quando a Natureza se impõe quando julgamos controlá-la? Ainda estou do lado de fora. Tomé deve permanecer para lá da pesada porta. Terá saído mais cedo, ter-se-á cansado antes do fecho do museu? Esquecido? Antão rodopia no jardim sem o casaco de lã e a camisola de mousse, cantando suavemente: - Este é o mundo que eu sempre quis, este é o mundo que eu sempre quis... Hesito entre a entrada no conforto da História e o clamor da experiência. Passamse segundos e não consigo optar. Estou confiante de que André me espera. Também não sei lidar com este Antão. Não preciso de saber mais, agarram-no, os da segurança do Museu Central, edifício a condizer com o aço da porta, antiga fortificação sobrevivente à contemporaneidade. Não voltarei a vê-lo. Ainda tenho na mão a mala cilíndrica que Antão transportava agarrada ao braço esquerdo. Pouso-a a um canto e avanço para a campainha. Procuro um senhor, Tomé... O funcionário boceja um vou verificar. Agradeço e preparo-me para esperar a meio do átrio. Antão desaparecerá. Levaram-no, evaporou-se. A mala ainda se encontra a enfeitar o canto, vai causar pânico. Ninguém mais por aqui passou, os citadinos membros da Autoridade surgiram do exterior, não sei de onde, desapareceram não vi por onde, levaram-no. Deve haver guaritas disfarçadas, hei-de perguntar. Dispenso a mala, recuso outras recordações... - Tomé! Temi por nós. - Volto a apaixonar-me por uma mulher surpreendente. Já a conheço? Para onde me levas hoje? Temo vir a cansar-me de pilotar tão robusta carroçaria. Eu, patroa de motorista... Experimento André: - Quem ama até em sonhos adivinha! - Que dizes? - Eu não digo, já foi dito e eu repito: quem ama até em sonhos adivinha. - Sonhar? É tudo o que eu posso fazer, além da terapia através da arte... - E o sonho o que é senão a esperança retida, muitas vezes perdida, dispersa em fragmentos? Será pouco? Pergunto, querendo provar ser a exteriorização da voz a posterioridade. Tomé apenas sonha... Como giraria o mundo se não ele não existisse? Opto pelo clamor da experiência. Estamos os dois a entrar para o carro. Mais uma vez Adalberto surge do nada oferecendo conforto. Aonde vamos? 77

- Vamos amanhecer no melhor lugar. Adalberto escuta-me atento, vejo pelo retrovisor no seu rosto o gosto por adivinhar o meu desejo – por vezes penso terem criado este homem para me desconcentrar. Não me interrogo. Deslizamos a mando de Adalberto. Tomé beija-me o pescoço e eu esqueço outros lugares, outros beijos. Ainda me consigo espantar! - Se jantamos? Foi o que perguntou, Adalberto? Afirmativa, a minha resposta, evidentemente! Interromper-nos para tão grande evidência. Pediu desculpa, mas... Por que lhe hei-de perdoar o desaforo. Que me interessa o que me rodeia se me sinto completa? Saboreio devagar este sentimento egoísta, vulgarizado pela Terra. Tantos anos passados... Perco de novo a memória, é contagiante esta doença de Tomé, o encantador de gestos misteriosos, inesperados. - Como podemos recordar outros momentos quando o presente é tão forte, tão desejado? Tomé sussurra-me ao ouvido como real herdeiro de uma técnica há séculos em apuramento. Rio-me e congratulo-o por ter optado pela arteterapia. Recolhe as mãos e fita-me zangado, assim o parece ao questionar-me sobre o amor. Então? Indignome por não atingir de imediato o significado da expressão. Estou lenta. Não entendo a linguagem da ira num momento de doçura. Ou será necessária para não desfazer o encanto? Os seus olhos recuperam o sorriso, o meu encanto, julgo eu. É-me penoso imaginar a falta de retenção daquele brilho. Não se consegue lembrar, de que se lembrará então? Já me explicou teorias, rebuscou frases instantâneas, rebuscadas lá onde a noção se perde para dar lugar ao esquecimento. Nele nada se reduz a metade, não existe meio termo. Desconhecerá Tomé ter alguma vez aprendido? Enganarme-á? Um ligeiro toque telefónico acorda-me deste melodioso estado de espírito em que afundo comigo Tomé. Adalberto diz que saí por momentos e pergunta quem fala. Repete um pouco mais alto o nome, olha para mim, quer seguir a técnica do costume temendo interferir em algo que não domina, além de não querer irritar-me. Mas eu não estou disponível nem para os raros seres que detêm o número secreto. E quem era só poderia ser para incomodar - noutras circunstâncias, ponderarei sobre este desabafo. Poucos podem completar este meu número restrito, a poucos forneço a chave completa. - Não atendeste, entendemo-nos. Beijo... dá-me um beijo dos teus! O carro pára, a realidade lança o apelo. Adalberto resolveu bem: estamos à porta do melhor sítio para jantar, o restaurante panorâmico compartimentado, envidraçado, 78

obviamente rotativo, a rotação e a ementa variam todos os dias: a favor ou contra o sentido da evolução horária, conforme as notícias. Entramos naquele lugar que todos frequentam raramente cruzando-se nos túneis, labirintos espelhados. Para Tomé será sempre a primeira vez, para mim é como se fosse. E a cueca? Qual cueca?

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Quando comecei a escrever «A Cueca Bibelô», em Novembro de 1991, estava de partida para uma nova experiência, a abertura de uma delegação do jornal «Público» em Faro. Já somava dez anos de jornalismo, mas sempre me sentara em redacções lisboetas: no «Correio da Manhã», onde comecei, e na Agência Lusa, de onde saí para me juntar ao grupo de fundadores do «Público». Tenho muitos textos espalhados pela imprensa, todavia, «A Cueca Bibelô», terminada em 1992, é o primeiro livro que publico. Ah, pois, nasci no dia 27 de Janeiro de 1960, na única freguesia lisboeta que tem dois santos no nome, S. Cristóvão e S. Lourenço, mas não sou crente. Entretanto, ganhei muitas outras experiências, por ora, sou editora do semanário «Courrier Internacional».

Maria Branca, publicitária, escritora de literatura infantil, boémia, psicóloga amadora, viveu na cidade de Lisboa, em Portugal, não se sabe bem quando, mas marcou o seu tempo. Para a posterioridade deixou este registo temporário agora feito livro. «Lembrem-se de mim que eu não me esquecerei», diz na dedicatória. Quis ficar na História e conseguiu conquistar um canto no Museu Central, onde até uma das suas camas se encontra exposta. Amante dos prazeres da vida, conta o que lhe apetece sobre si e essa época louca em que se vendem cuecas bibelôs…

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