A Armadilha

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A Armadilha Tam Huyen Van – Outubro, 2008

O monge perguntou ao Mestre, "Como posso sair do Samsara1?” O Mestre respondeu, "Quem te colocou nele?”

Mergulhado no intenso fluxo da existência, sempre atento aos meus próprios desafios e dificuldades, aprendi a reconhecer o fato de que a fronteira entre conhecimento e a ignorância muitas vezes é tênue e quase indefinível. Nossa capacidade de compreensão e entendimento das coisas pode ser profundamente baseada em um imenso engano, uma intensa, paradoxal e complexa rede de conhecimentos e delusões, mas ainda assim o ser humano carrega em si o dom da inteligência e imaginação, e em meio ao caos entre conhecimentos e estupidez, homens e mulheres são capazes de encontrar justificativas brilhantes para as suas mais trágicas ilusões. A clareza de percepção, o senso correto de propósito e a maturidade de interpretação dos dharmas (os fenômenos da existência) nem sempre se manifestam de forma correta em nossas mentes, ou são compreendidos em sua real qualidade libertadora dos padrões insalubres que sustentam a grande – e histórica – incapacidade humana de atingir uma integração definitiva com a vida. Como sempre, afirmações como esta não são aceitas facilmente, até porque existem tantas nuances argumentativas e racionalizações possíveis nas mentes e corações quantos seres humanos existem no mundo, e seria impossível pretender que qualquer advertência sobre o caráter falacioso de nosso entendimento seja aceita facilmente por nossas percepções imediatas – sempre existe uma desculpa para que permaneçamos mergulhados em nossas auto-indulgências. Entretanto, aquele assustador limbo entre luz e trevas, coerência e caos, permanece como o mais freqüente contexto no qual toda a nossa vida irá se basear, e não há indulgência suficiente para evitar que em algum momento de nossas vidas, mais cedo ou mais tarde, a angústia de não saber onde estamos, quem realmente somos, e o por quê de vivermos em meio a tanta superficialidade se manifeste subitamente em nossos corações, como uma explosão de sobriedade, afastando por alguns momentos o véu de ilusão que obstrui a nossa mente. Mas nem sempre estes momentos de reflexão são valorizados como deveriam. Ao contrário do que o senso comum tende a afirmar, a vida não se apresenta para nós como um quadro definido de virtudes e defeitos, certezas e erros. A concepção do Eu diante de si mesmo e do mundo se baseia nas suas constantes inadequações de entendimento, e no tortuoso potencial de coerência e confusão do intelecto humano. Mesmo agora, no momento em que estas palavras são escritas, sei que se eu não sustentar um intenso esforço de auto-observação, poderei me perder nas lógicas inefáveis da razão pura, e deixar a margem da sabedoria para trás. Preso a uma rede de enganos essenciais, a maioria dos seres humanos existe, ou apenas sobrevive, para justificar suas pequenas expectativas pessoais, seus próprios jogos de lógica e argumento. Graças a isso, permanecemos todos buscando no futuro algo que já está manifestado a tempos em nosso presente, sem que saibamos sequer reconhecer. Estamos enganados, presos em um ciclo infindável de falsas certezas. Ou, para ser mais suave, devo dizer: estamos ligeiramente confusos. Não sabemos realmente quem somos, e nossas realizações representam ações limitadas no espaço de nossas existências relativas e passageiras, talvez muito satisfatórias para nossas ambições e idéias pessoais de sucesso, mas sem fundamento no tempo impermanente da vida absoluta. A avassaladora diversidade de comportamento humano é a maior demonstração do grave processo de auto-engano que a mente sofre em sua natureza imediatista e superficial. Em meio à busca pelo poder, às modas ou vaidades, religiões ou políticas, vícios ou compulsões, a humanidade ainda se mostra capaz de crescer em tecnologia e conhecimento, sofisticação e diversidade. E este é o mais surpreendente aspecto associado à ignorância perceptiva: nós somos brilhantes, somos capazes de fantásticos momentos de inteligência, filosofia e ciência, mas continuamos perdidos em uma grave ausência de senso comum. A descrição buddhista do processo de falta de discernimento sustenta-se a partir de uma sutileza. Se não soubermos reconhecer e compreender corretamente esta sutileza, este delicado aspecto oculto sob o manto da intelectualidade e diversidade de hábitos humanos, perderemos a chance de atingir o cerne real da experiência de plena consciência, e permaneceremos presos a um ciclo de vícios e virtudes ilusórias, sem jamais lograr realizar o potencial de nossas mentes. Observe, contemple, e entenda: nossas opiniões e posturas sempre se baseiam em simples interpretações, nossas escolhas são feitas a partir daquilo que não sabemos, e não em função de tudo que nossa mente poderia perceber. A diversidade de comportamentos, as modas e manias, ritos e maneirismos, todo o universo de opções psico-emocionais humanas manifestam-se devido a um monumental processo recorrente de pequenos enganos, os quais, sutilmente acumulados ao longo de nossas vidas cotidianas

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A Roda de Renascimentos e Mortes.

e experiências aparentemente banais, resultam na consolidação daquelas relativas certezas pessoais que nos fazem tão convictos de que temos razão, de que estamos no caminho correto. E será que, afinal, tudo se resume a enganos e mal-entendidos em nossas vidas? Absolutamente. Apesar do caráter confuso de nossas escolhas pessoais, e do fato inegável de que a vida jamais se apresenta pronta para atender nossas expectativas pessoais, existe uma saída. Mesmo diante do caminho tortuoso de amadurecimento de nossos espíritos, é possível adquirir uma certeza coerente e realmente esclarecida sobre a impermanência da vida, e seguir firme em direção a esta descoberta definitiva. Mas para adquirir esta capacidade suprema e valorosa de consciência correta e correto discernimento, é preciso que tenhamos coragem de abandonar muitas de nossas certezas egoístas, graças as quais alimentamos o lado obscuro e dominante de nosso ego, estimulando nossas vaidades e vícios. Não se fala aqui de uma vida perfeita, de algum tipo de mística através da qual deixamos magicamente este mundo comum e rotineiro pleno de circunstâncias absurdas e paradoxais e ressurgimos em um mundo sem dor, sem máculas, completamente conforme aos nossos desejos e anseios. Não é possível evitar o mundo e seu ciclo implacável de dualidades e condicionamentos. Não é possível, apesar de todo esforço, adquirir controle completo e atingir uma existência linear, absolutamente sem defeitos. De fato, a proposta fundamentada na experiência contemplativa é simplesmente aprender a sabedoria de ser atento e consciente das escolhas que fazemos, e aprimorar definitivamente nossa capacidade de agir com sabedoria e clareza de percepção. Ora, sei muito bem que a maior parte das pessoas imagina que já atingiu este equilíbrio entre escolhas e consciência – os egos sempre se consideram razoáveis. Mas a ironia é que esta suposta razão, ela mesma, se manifesta devido ao fato de que, para o Eu ignorante, sua base de referência não subjaz a essência plena das coisas em si, mas existe em proporção direta à corroboração de seus próprios conceitos pessoais sobre o que é a verdade, o bem, o justo ou o adequado. Ao final desta lógica, o ego insalubre e deludido torna-se convicto de suas certezas apenas porque aceita do mundo aquilo que lhe convém, em um narcisístico complexo de identificação com tudo que reflete o próprio ego, e o valoriza. Como resultado final, ao criarmos uma visão de vida onde o “certo” se define apenas por aquilo que o nosso Eu considera adequado para seu usufruto e aceitação, todos nós nos tornamos moralistas, até mesmo aqueles que se consideram contestadores, inovadores ou revolucionários. Apenas, esta moral será aquela mais conveniente para suprir de razão os conceitos aos quais nos prendemos, e assim a liberdade e fluidez mais uma vez se perde em um triste processo de racionalização sobre uma simples versão pessoal do mundo. Sei muito bem que os pequenos prazeres da vida são o fundamento que justifica e reforça a necessidade de criação de uma versão da vida que seja conveniente e reforçadora da auto-imagem egóica. Argumentamos que somos imperfeitos, e portanto é natural que sejamos egoístas, presos em modos e manias. Este tipo de prazer indulgente é a droga que mantém o Eu preso a um ciclo de atitudes apegadas e superficiais; os prazeres momentâneos compõem o mais acalentado prêmio perseguido por nossos desejos – mesmo que tais prazeres apenas se manifestem como paliativo para as frustrações inerentes a este mundo tão incerto, tão impreciso. É assim que pautamos nossas vidas. Desta forma consolidamos tudo aquilo que corrobora nossas fantasias e auto-indulgências: o carro do ano, as posses desnecessárias, a transformação de nossas faces e corpos por força de químicas e cirurgias, o sentimento de poder e orgulho ao disputar cargos ou superar nossos oponentes nas loucas disputas de poder e prestígio, a reafirmação das personalidades inseguras através de jóias, roupas sofisticadas, comportamentos irreverentes, tudo isso e muito mais em função do avassalador anseio do Eu por ser diferente, ser melhor, estar mais certo, estar em evidência, manifestando-se até mesmo através da mais louca concepção de vida artificial. Este é o Samsara. Esta é a armadilha. Você pode percebe-la à sua volta, é capaz de reconhecer o seu caráter completo e envolvente? Estamos presos nela, e mesmo os sábios e Buddhas devem lidar com este fato – na verdade, eles não seriam Esclarecidos se, envolvidos na armadilha, não lograssem encontrar a saída correta e então permanecer diligentes no esforço de anunciar que a liberdade é possível, apesar de tudo. Pois a verdadeira armadilha não é a vida em si, ou sequer a superficialidade dos nossos egos, mas a insistente dificuldade da mente em reconhecer o engano essencial que a mantém esquecida de sua própria ignorância. Nós somos a armadilha, ao mesmo tempo em que estamos presos nela. Este paradoxo é o mais importante desafio a ser resolvido pelo Homem. Capturados pela armadilha da mente delusória imaginamos que a vida somente pode nos conduzir aos sucessos e usufrutos imediatos de um mundo superficial. A cada dia bilhões de pessoas acordam completamente esquecidas de si mesmas, e perpetuam o mais grave processo de auto-engano e manipulação das reais necessidades de suas mentes e corações. E o tempo passa, os fenômenos se sucedem, e permanece a perplexidade do indivíduo diante da inadequação em simplesmente deixar-se livre de suas angústias. Para evitar encarar a incontestável manifestação da impermanência a cada segundo da existência, este Eu perdido e confuso optou por perceber o mundo a partir de sua própria imagem e semelhança. E assim, a armadilha construiu-se mais intensa e completa, refletindo em sua estrutura não apenas o caráter relativo da existência, mas igualmente o vício de condescendência da mente em profundo estado de inadequação egoísta – ao contrário de perceber a existência em si mesma e por si mesma, a mente diferenciadora (egoísta) prefere criar uma versão da existência, uma versão que comporte todos os seus anseios de seidade permanente (um “eu” individualizado e autosuficiente) e perpetuação dos desejos.

Mas, como é afirmado pelo Buddha, existe uma saída. A armadilha do samsara não é intransponível, apesar de completa e abrangente. Sendo assim, como podemos escapar? É interessante compreender que a saída para a armadilha da mente condicionada se encontra nos próprios limites do samsara, nas próprias margens do rio da vida. Entre as fronteiras do Caminho, no próprio contexto deste envolvente complexo de fenômenos relativos e condicionados, encontra-se algo que será o fundamento da plena superação da ignorância da mente: a transformação e cura. Entretanto, não será através do intelecto que a liberdade da mente vai ser alcançada. Ao contrário do que muitos imaginam, e apesar do valor que o conhecimento possui como indicativo dos meios de superação dos obstáculos da mente, a subordinação à sedutora dinâmica de racionalizações – sejam estas metafísicas ou filosóficas – não conduzirá a nenhum tipo de superação efetiva dos condicionamentos perceptivos mais arraigados. Mais uma vez eu afirmo: a saída para a armadilha se encontra na transformação da mente. Não seria uma transformação cognitiva simples ou comum, sequer algum tipo de transformação mística ou esotérica, mas uma profunda e completa transformação no modo de percepção – em verdade, uma transformação de condição perceptiva. Pois a armadilha foi construída sob as bases da Mente, e sem a profunda alteração nas condições essenciais em que a mente aprimora seus processos de contato e percepção, este ciclo de ignorâncias continuará a dominar todas as ações humanas. Por mais maravilhosa que seja a inteligência e os recursos humanos, o fato mais marcante é que ainda estamos presos a um infindável encadeamento de neuroses, nos levando a desenvolver comportamentos, préconceitos, valores, regimes políticos, teorias filosóficas, dogmas religiosos, mitos espirituais, movimentos sociais, mudanças de costumes, e tantas outras formas de manipulação e diversidade cultural que seria literalmente impossível registrar a todas. Os caminhos do Samsara são, realmente, infinitos. E então, o quê seria a mente de um Buddha? De que modo se dá esta experiência tão plena e liberadora, este momento de esclarecimento tão profundo que nenhum resquício de ignorância é capaz de se manter? E por que é tão difícil alcança-la, apesar dos milênios de ensinamentos e orientações psico-espirituais? A bem da verdade, a experiência búddhica não cabe em qualquer método coletivo. Não se explica por palavras específicas, não se manifesta por meio de uma didática concreta. Sua própria necessidade de ser fluida e completamente intimista em relação a cada mente que pretende realiza-la impede que qualquer sábio ou Esclarecido apresente uma fórmula universal que a fará automaticamente possível. Mesmo o pragmatismo necessário para contemplar o fenômeno psíquico do estado búddhico não se apresenta como fundamento para a criação de um mapa claro e indicativo graças ao qual, ao longo do tempo e espaço impermanente e relativo, o buscador encontrará a resposta definitiva. E isso ocorre porque, em ultima análise, todos os passos dados pelos homens e mulheres estão subordinados às suas escolhas. E justamente devido ao fato de que não conseguimos entender plenamente nossas escolhas, a maravilhosa fórmula da transformação plena da mente se mantém oculta e inescrutável. Apesar da impossibilidade de haver uma construção arbitrária de um método racional ou místico único e perfeitamente eficiente para manifestar em todo e qualquer indivíduo a experiência búddhica, isso não significa que esta experiência não possua uma condição universal para ser atingida. Esta condição está simplesmente baseada em quatro passos essenciais: Assim, dê o primeiro passo: tenha coragem de reconhecer profundamente quem você é, sem desculpas, sem hipocrisia. Reconheça a si mesmo, mas não a partir de sua auto-imagem condescendente. Veja a si mesmo além de seus ternos ou vestidos, além de seus piercings ou tatuagens, jóias ou ornamentos, além de seus músculos ou maquiagens; veja-se além de títulos ou diplomas, além de seus ganhos ou perdas, além de suas conquistas ou decepções. Veja-se despojado de si mesmo, deste “eu” construído a partir de vícios ou virtudes, de sonhos ou fantasias, a partir de medos, ousadias, apegos, desejos ou frustrações – mas jamais se julgue; o reconhecimento não é um sádico método de destruição do Eu, apenas o início de sua mais saudável renovação. Dê o segundo passo: saiba compreender amplamente o quê você é (fique atento: não quem você é, mas o quê). Aprenda, com paciência e profunda atenção, a entender que nossas limitações e enganos não ocorrem por força de uma necessidade perversa de autopunição ou castigo, mas a partir do medo de, em algum momento crucial, deixarmos de existir como indivíduos. Queremos continuar, queremos perpetuar a ilusão de que existimos por nós mesmos e para nosso próprio usufruto eternamente. A compreensão plena resulta de uma bela experiência de esclarecimento: é quando aprendemos o significado da vida em sua mais fundamental natureza. A compreensão de si mesmo é de fato a compreensão de tudo aquilo que poderíamos ser, muito além da pequena fortaleza de nosso egoísmo. E quando esta compreensão é finalmente realizada, a transformação plena é inevitável. Dê o terceiro passo: prepare-se para se transformar. A verdadeira transformação exige preparação, e uma inimaginável resistência à avassaladora manifestação das verdades universais. Não falamos mais de uma transformação artificial, não será apenas uma mudança de manias ou condicionamentos, mas a mudança mais essencial e determinante: a mudança de perspectivas, a mudança de escolhas. E aqui alcançamos uma surpreendente revelação, um koan, um fantástico desafio: a transformação essencial é, ela mesma, uma escolha. Sabendo disso, resta propor a questão: o que é escolhido na transformação plena?

Dê o quarto passo: cure-se. A saída do samsara não se apresenta como uma fuga, ou sequer uma superação, do que é externo ou interno – a cura não se encontra dentro ou fora, simplesmente a cura implica em saber reconhecer a plenitude do todo. O quarto passo do Dharma, este último ato de cura, não significa uma escapada desesperada da vida, um abandono do ciclo interminável do tempo e espaço condicionado e universal. Neste último ato de realização, a mente aprende a reconhecer que nunca existiu a armadilha. O Samsara é um grande teatro universal, um espetáculo de prestidigitação e ilusionismo. Cabe-nos enfrenta-lo com intensa sensibilidade. Envolvidos por uma imensa armadilha, os seres caminham em busca de uma saída. Mas a Roda continua girando... Olhe com a mente da mudança, veja com a atenção plena fomentada pelo exercício da contemplação: a saída se encontra, em verdade, no seu próprio coração.

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