73261375-robert-ave-lallement-1858-viagem-pelo-parana.pdf

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VIAGEM PELO

RDBERT AVÉ-LALLEMANT

m 1858, o médico alemão Robert Avé-Lallemant fez uma peregrinação pelo Paraná, São Paulo e Santa Catarina. Dessa experiência resultou uma narrativa diferente daquela que nos oferecem os registros dos demais viajantes da época. Lallermant conheceu o País por mais tempo e tinha uma preocupação que o situava de maneira provocativa e polêmica diante do que observava - fazer a critica da contribuição de Portugal na formação e desenvolvimento do Brasil, contrastando-a com os sucessos da presença alemão nos Estados do sul. Essa postura rendeu-lhe confrontos exaltados e deixou-nos um documento precioso sobre o trabalho e o comportamento dos brasileiros de quase um século e meio atrás. Neste livro, publicamos a parte referente à sua viagem pelo Paraná. Leitura indispensável oferecida pelo "olhar diferente" do autor, que obriga à reflexão e reabre discussões. Não encontraremos em seus textos o simples

ROBERT AVÉ-LALLEMANT

CONSELHO EDITORIAL Aroldo Mrrrcí Hnygert Cassicli.za Lncerda Cclrollo Geraldo Potrgy Janril Snege Margarita Sansotx

Luís Robeuto Soares Rafael Grecn de Mncedo Wilsort Marti~is

Todos os direitos desta ediçáo reservados à Prefeitura Municipal de Curitiba

Coleção Farol do Saber Coordenação Editorial: Frí bio Caiizpaizn Projeto Gráfico: Jallzil Snege

Despedida de Joinville. -Expedição na mata, através da Serra Geral, entre Santa Catarina e Paraná. - Chegada ao primeiro Campo da Província do Paraná. . . . . . . . 7

'

Capa:

"Mercadode PPriranPrigtlrí" de Paul Garfirizkel

SEGUNDO CAPÍTULO Gente, de novo. - O caçador de antas do Tijucamas. - A Estância do rio do Meio. -Algumas considerações sobre o mate. - Repouso no Rio Negro. - Civilização incipiente. -Abandono das matas e chegada ao Campo do Ambrósio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Projeto gráfico do miolo: Harry Avoiz Revisão e Preparação: Silvnnn Aliizeida Barbedo Pesquisa: Lina Beiiglr i Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Decreto no 1823, de 20 de dezembro de 1907 Ficha catalográfica preparada pela Index Consultoria em Informação e Serviços S/C Ltda.

A948

Avé-Lallemant, Robert, 1812-1884 1858, Viagem pelo Paraná / Robert AvéLal1emant.- Curitiba : Fundação Cultural, 1995. 114 p. - (Farol do Saber) lá

- Descrições e Viagens. 2. Paraná

O Campo do Ambrosio. -Bivaque junto de Chico de Oliveira. - Um francês. - Dificuldades na troca do dinheiro. - Despedida de Wunderwald. - Viagem a pé através dos campos e da mata do Campo Largo. Bodas. - Estância de Dona Ana Teixeira. -Viagem para Curitiba, via São José. - Onde fica a Europa+ . . . . 44 QUARTO CAPÍTULO Estada e sucessos na cidade de Curitiba. - Partida para Antonina e Paranaguá. - Estada em Antonina. - Uma lápide para dois nobres mortos. . . . . . . . . . . . 60 QUINTO CAPÍTULO

(20. ed.) 981.62

910.4 16.2)

~

S

S NO BRASIUPRINTED O IN BRAZIL

Partida de Antonina. - A "Paraense". -Joaquim Antônio de Morais Dutra, o domador dos Coroados. -Vista de Paranaguá. - Nossa Senhora dos Prazeres. - Cananéia. Iguape e nossa festinha de ação de graças. Desenvolvimento material em Iguape. - Partida da barra de Cananéia para Santos. - Santos. . . . . . . . . . 88

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PRIMEIRO Despedida d e Joinville. -Expedição n a mata, através d a Serra Geral, e n t r e Santa Catarina e Paraná. - Chegada a o primeiro c a m p o d a Província d o Paraná. Em 16 de agosto, pelas 8 horas da manhã, despedi-me da aprazível Joinville, com emoção e saudade; lá passara dias muito agradáveis. Todavia mais penosa seria a separação da estimada cidadezinha teuto-brasileira, se não me alegrara um acompanhamento que jamais esquecerei. Escoltaram-me a cavalo os meus melhores amigos de Dona Francisca, especialmente o senhor Aubé, que queria acompanhar-me até ao limite de seu território. Aliás a gentil e jovem esposa do diretor realizara a façanha de mostrar que um gracioso pé de senhora podia percorrer a rude picada na floresta até à serraria do Cubatão. Dali seguimos alegremente a trote. No cemitério lancei o último olhar de despedida à amável localidade. Em pouco, depois de passar por muitos recantos a que me afeiçoara, através de caminhos da colônia, meus familiares, chegamos a Anaburgo e logo em seguida às últimas roças. E começou então a nossa viagem a pé através das selvas. Já falei, em outro lugar, do caminho para a serraria. Desta segunda vez também nos acompanharam alegria e bom humor através da solitária picada. Que daria essa excursão ao romantismo europeu! Onde corria um regato, num momento eram

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cort;id;is algumas pequenas palmeiras com o fac5o (I(* i i ~ i i ~r o improvisava-se uma ponte; quando um tronco clc (i! vorc o l ~ trufa a picada, era ele contornado ou, se havia csl);iqo, 1):innnvrise, rastejando, por baixo. Tudo ia muito bem; o nosso ri~);riilirlrn Wunderwald, que marchava na frente, conqiiisio~ivc*i(liitlcli~on louros. Devo, porém, confessar que a noss;i ~:i;icloiuiij!iilii, senhora Aubé, ganhou muito merecimciit o i a i i i r(* iiOn, Nii iii 1, bonito vestido de montar, a que não Faltav;~c-OII o Illoot~trrl~ttto venceu ela com mais facilidade do q i ~ ri\Os (l\ii\ric tcwli\s tis ~ com o dificuldades da picada, animando a coliiti;~t l vicijriiiiriu seu exemplo; e na margem de um líilipitlo rcK;ito, oiitlr foriim rapidamente espargidas folhas dc paliiicit.;is, iotlos 116srcccl~cmos de seu farnel alguma coisa p;ir;i coiiic.r. Entrementes estalaram na m;it;\ t iios tlc c*spirignr(la.Dos altos ramos caíram duas jacutingas c iilgiiiis tiicnrios, que foram cuidadosamente recolhidos. Ao sairmos da mata veio ao nosso ciicoiitro o digno suíço da serraria, senhor Weber. A1gui.m se acliniitiirii piirn informfi-10 do prodígio que era a chegada da senhora do tlirctor, no que ele não podia acreditar. Entramos, pois, com bandciras dcskaldadas, em nosso quartel de acantonamento e tomamos posse da serraria do Cubatão. Mais uma vez senti a plena poesia do maravilhoso lugar! Através da tranqüila Floresta passava, bramindo, o bravio Cubatão; n o rio da Prata chapinhava a roda hidráulica da serraria, por trás da qual passamos sobre uma pinguela, de modo que nos achávamos entre os dois rios. Revoluteavam martins-pescadores na água, através da qual passava, com grande esforço, um altivo touro. Aqui, nas brenhas, rodeado de pessoas tão amáveis, senti, mais uma vez, não. ser muito fácil a gente separar-se delas para voltar para a mata e aliás para Fazer uma viagem em picadas e para a qual ainda não se abrira nenhuma. Começou, então, uma linda cena da tarde. A nossa caça fora transformada em delicioso petisco, tendo-se cozido ge1 Sistema de traje feminino proposto em 1849 pela reformista americana Amélia Jenks Bloomer. Compreendia saias curtas e calças folgadas. N. do T.

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nerosa porção de taiá. Nesse tempo, no Cubatão, ainda não havia toalha nem serviço regular de mesa; pequenas tábuas serviram de pratos; os dignatários entre nós receberam uma espécie de faca e garfo e, sem isso, ajudariam os dedos. Todos beberam num pequeno copo o vinho trazido. Tudo correu excelentemente. Entardeceu e esfriou um pouco. Depois que o senhor e a senhora Aubé se retiraram, acendemos no centro da casa uma alegre fogueira e acomodamo-nos em volta dela para dormir. Mas, nas primeiras horas da noite, não se podia pensar em repouso. Sabe Deus o que se passava conosco. Brincamos a noite de São João e estávamos todos mudados. Esse o meu primeiro dia de viagem de Joinville para Curitiba. Na manhã seguinte eu não estava tão jovial. Despedimonos. E começou uma difícil viagem na mata. O solo elevava-se gradualmente, as águas murmuravam mais alto; mais agrestes eram as árvores tombadas; afinal, a própria mata obscureceuse, pois de ambos os lados se elevavam os picos da serra. Do lado do sul do vale do rio da Prata e do rio Seco, subia a picada com muita habilidade. Tanto quanto se pode julgar até agora, a estrada será excelente. Tornou-se o desfiladeiro mais estreito, solitário e selvagem. Ali se abria uma clareira. Diante de nós o mais original dos asilos na floresta. Seis a oito homens, alemães e helvécios, construíam uma casa de palmeiras, comprida e baixa; outra, maior, estava pronta desde semanas, o rancho de Wunderwald. O rancho de Wunderwald! Este rancho é de fato, o ideal de cabana silvestre ou casa silvestre. Tem 14 pés de Fundo e 24 pés de largura, telhado largo com paredes muito baixas. Tudo é feito de palmeira, de troncos inteiros ou fendidos, de folhas de palmeiras, tudo amarrado com cipó, na melhor ordem, sendo o conjunto apoiado principalmente em duas grandes palmeiras; em ambos os lados há, a meia altura, camas de sarrafos de palmeira, forradas com folhas de palmeira; diante delas há, como assentos, algumas traves de murta. No centro arde, n o chão, uma agradável fogueira. Em resumo, no seio de Abraão

1858,VIAGEM PELO PARANÁ

não se pode viver mais feliz do q u e no rancho de Wiiiitlirw;iltl, no alto da serra. Além disso, estão pendurados em travessas os iiinis vnriados objetos: machados e calças velhas, carne scc;i, ~)ol;iiti;is de couro, caça morta e cobertas velhas, panelas, copos (I(: I;ii;i, sal, arroz, uma pequena botica, pólvora, chumbo, cspiiij;;irtl;is e pistolas. Estávamos dentro da mata e vivíamos coiiio 1)ríl)cipes. E diante do palácio de palmeira chamejava, c m l>;iixo, uma clara fogueira, em torno da qual a nossa gente foi-iiinva u m magnífico grupo. Atravessava a floresta um denso ricvoeiro. As copas das árvores pareciam fantasmas; a cena cra muito bonita e nós estávamos intimamente contentes. Na manhã seguinte fizemos uma bela excursão serrana. Visitamos íngremes cumes cobertos de mata. Wunderwald mandou derrubar algumas árvores, que se precipitaram, estalando, deixando a descoberto uma bela cadeia de serras. Podíamos avistar, a milhas de distância, no interior da Província do Paraná, um oloroso mundo de floresta com magníficos vales. Debalde se procura no caos serrano um ponto cultivado; não aparece casa, um campo, nenhuma fumaça sobe, nenhum galo canta. Rumoreja no abismo o regato e nenhum outro som percebe o ouvido. E tínhamos de atravessar esse caos! Descemos para o rancho. Os últimos companheiros, o bom padre e Leistico, estimados e bons companheiros, deviam voltar para a serraria e foram portadores de minhas lembranças. E então fiquei só com meu companheiro Wunderwald. Entrementes a nossa gente tinha aberto, para o lado do oeste, um bom pedaço de picada. Subimos durante o resto da tarde a bela serra coberta de mata e iniciamos a trabalhosa peregrinação serrana, que me pareceu ainda mais original do que a minha vida de tropeiro de Lajes a São Josi.. Para essa viagem pela mata fora necessário contratar doze homens. Aprovisionaram-se para oito dias e traziam consigo panelas, as minhas coisas e alguns utensílios domésticos, dc modo que, a caminho, pudéssemos ao menos cozinhar a nossa \

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comida. Faltava-nos ainda u m dos nossos homens. Em marcha para a serraria, deixara-se ficar, meio embriagado, com parte dos meus pertences; surpreendera-o a noite com os horrores da mata e a sinistra solidão. De manhã cedo não se atrevera a seguir sozinho; deixou meus objetos junto de u m riacho e voltou para Anaburgo, de onde partiu um homem mais corajoso do que ele, achou as minhas coisas no caminho e com elas subiu para o rancho de Wunderwald, no fim do vale do rio Seco. Em 19 de agosto, de manhã cedo, houve lá em cima um alegre rebuliço. Os homens arrumavam as suas coisas, comidas, roupas, cobertas, panelas de ferro, etc.; mais uma vez Wunderwald, o experimentado mateiro, passou tudo emrevista, achando e empacotando objetos esquecidos; arrumaram depois espingardas de caça e partimos alegremente os catorze homens para dentro da floresta, na qual devíamos passar, entre animais selvagens, seis a oito dias. Entretanto, nem sempre andamos sob augúrios favoráveis. Princípio de manhã abafadiço. Sibilava sobre as árvores um vento violento e quente; nos píncaros da serra gritavam urus, uma espécie de tinocamu ou melhor inhamu ou galo do mato (~rrrr,em guarani, é galo; Urrrglrai, rabo de galo) anunciando borrasca; nada porém alterava nosso ânimo; seguimos pela estreita picada aberta na véspera. Não se pense, todavia, que uma picada é um caminho como na Europa; coisa inteiramente diversa. Um homem, com um facão de mato, vai na frente do engenheiro; este, com a bússola, dá a direção em que o primeiro deve penetrar na floresta. Então têm de ser removidas, naturalmente, as mais insignificantes moitas, ervas e canas, de modo que se possa passar, mas apenas passar. E tão pequena é essa remoção de mato que, ficando-se muito atrás do desbravador, mal se lhe pode reconhecer a trilha e é preciso ter cuidado para não transviar-se da picada. E, não obstante o pouco que se desbasta, a picada prossegue muito lentamente; dificilmente se avança 1.500 a 2.000 braças num dia e no entanto para os carregadores, que vêm atrás com a bagagem, o trabalho é extremamente

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PRIMEIROCAI>~I'IJI.O

penoso, verdadeiramente mortificante. Trazem a bagagem amarrada em volta de si e com as mãos e os pés têm de trepar; muitas vezes as moitas e trepadeiras os prendem Fortemente e dcscmbaraçam uns aos outros. A cada momento uma árvorc caída tranca a passagem e é preciso trepar por ela ou passar por baixo. Ou tão íngreme é a encosta que a gente escorrega e cai num buraco, num riacho ou num pântano. É, às vezes, aparcntemente cômoda a picada, porque a mata parece mais rala, inns aparentemente apenas. Entáo o desbravador ou o engenliciro faz um pequeno sinal nas árvores e encontra-se a dircçáo tomada e não uma picada propriamente dita. Em resumo, 6 preciso ter aberto caminho na mata pessoalmente, para bem compreender o que significa atravessar uma nova picada sobre a serra Geral, entre as províncias de Santa Catarina e Paraná. E que se obtém em troca de todas as fadigas, trabalhos e perigos; Algo que o europeu, mesmo a maioria dos viajantes, náo pode sentir: tem-se a visáo da floresta virgem em sua mais secreta profundidade, em seus últimos recantos! Os viajantes em sua maioria, todos aliás, viajam sempre em estradas e caminhos, por mais estreitos e menores que sejam; ou navegam em rios e lagos, sempre com certa comodidade, sob a proteçáo de uma civilização, mesmo incipiente, guiados por um vaqueano, conhecedor de veredas e recantos, um negro, um índio. Não assim na picada! Aqui apenas a agulha magnética, muda e tranqüila, indica o norte, por mais que se lhe pergunte se é alto, se é fundo, se é possível ou impossível passar, subir! Não há mais homem, nem vestígio de homem! Nenhum canto de galo, nenhum ladrido de cão! Por cima da floresta murmura o vento; embaixo, no chão, o rio; ao longe troveja a cachoeira; ninguém está com eles; com o animoso grupo humano, só Deus está. Essa uma admirável situação! Diz-se que há trinta anos um boieiro de Curitiba penetrara no vale do Cubatão. Era, pois, Wunderwald o segundo a entrar ali. Numa peregrinação de três semanas quase morrera de fome, até que subira o planalto do Paraná. Outro audacioso mateiro foi o engenheiro Hégreville. Desceu de Curitiba, o que

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é muito mais fácil, sem dúvida, e guiou-se, depois, pelo vale do Cubatão. As picadas de ambos os engenheiros desapareceram completamente e de novo, quem se atrever a fazer a travessia, tem de valer-se da bússola. O engenheiro Major AIvim só chegou até ao fim do vale do rio Seco, onde se acha o rancho de Wundenvald. Lá encontramos o seu nome numa árvore. Diante de nós trabalho pesado. Em pouco terminou o dia, antes de alcançada a picada e nos dirigimos, contentes e infatigáveis, para oeste e sudoeste. Digo contentes e infatigáveis, porque de fato, os meus doze pioneiros estavam muito bem humorados. Eram eles do Holstein, do Meclemburgo, da Renânia, da Holanda e da Suíça. Os últimos não compreendiam os primeiros; havia enganos cômicos; censurava um ao outro o horrendo alemão e motejavam-se mutuamente em alemânico e em baixo alemão. Apareciam, à esquerda e a direita, magníficas árvores, às vezes de enormes dimensões. Medi uma figueira de 38 pés de circunferência, o que dá mais de 12 pés de diâmetro. Fortes troncos conservavam-se abraçados e repousavam hirtos, mortos no selvagem abraço, nos odiosos e aniquiladores anéis. Passou sobre nós um temporal e tivemos de rastejar como nos foi possível. E como já era tarde e, com o mau tempo não tínhamos esperança de continuar penetrando, foi dada a ordem de desembalar e armar o rancho. A instalação de um local de dormida na mata virgem é, porém, muito original. A bagagem é resguardada para protegêIa provisoriamente da umidade. Ressoa em volta o machado. Primeiramente é preciso conseguir a maior quantidade possível de folhas da Euterpe edirlis. Abundam em torno essas nobres e esbeltas palmeiras. Depois de oito a dez machadadas bem aplicadas, abala-se o tronco. Atenção! - grita o cortador e, como num grito de dor, cai para um lado a graciosa rainha da Floresta; com a queda, precipita-se, estalando, um caos de galhos e árvores jovens; às vezes, ao bater em árvores mais fortes ou no chão, parte-se o tronco em três ou quatro pedaços. Passado o ruidoso temporal da derrubada, cortam-se as grandes Folhas dísticas e se arrastam para o bivaque. E dessa maneira,

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para u m só rancho, por uma única noite, abatcin-se oito ;i (IOZC palmeiras. Entrementes, outros trabalhadores ergueram iiiiin nriri;ição de teto inclinado num ângulo de uns, cinqiicntn gr;iiis, tlc uns sete pés de altura na frente e uns trinta de coiiipriiiictito. Depois essa armação é coberta com folhas de palnicir;is, ciijos folíolos são encaixados uns nos outros com muita 11nbilitl;itlc c rapidez. Posta uma camada tripla ou quádrupla clc Folli;is, fic;i o teto bastante compacto, mesmo contra uma chuva forte; ;is extremidades das folhas que se projetam na Frcntc S ~ Odobradas, formando uma aba do telhado; no chão do rariclio espalham-se Folhas de palmeira de modo que uma cubra mct;itlc da outra; entre as nervuras das folhas deita-se um homem c aí temos uma linda cabana verde-escura e uma cama à IA l'fl111c t Virgil~ie.Todos que a vêem, podem irromper em gritos de alegria, menos aqueles que nela devem passar a noite; porque o chão é úmido, úmida a cama, úmido o ar, e fria e úmida a temperatura. E todavia mesmo os qiic pcrnoitniii cin scmrllinntc rriiicho de palmeira enchem-se dc nlcgrin c tlc critiisi;isnio coni a maravilhosa morada. Estava cu, pelo niciios, ;ilc~:rcc ciitusiasmado. Claramente chamejavam duas fogiicii;is tli;iiitc clc nosso rancho e deitavam singulares clarócs sol~rc.os troncos da floresta virgem. Em torno do fogo rccoiifoi-~;iiiic., os coiiip;iiiliciros nórdicos sentados: um fazia café, oiitso coziiili;iv;i ;i carne seca, um terceiro cortava palmito niiilin 11;iiicl;i tlc ferro, iiin quarto descia ao riacho e trazia água. Perto c no loiigc soavam muitas vozes noturnas através da selva; t a 0 11oiic;i vitl;i dnva sinal de si durante a noite e no entanto mcsnio cssr ~)oiicoera ;i forte, grande, sublime. Assim se passou; marrivillios;iiiici~~c, primeira noite. De novo os sinistros urus nos despertara111 clc iii;iiiIi,i ccclo em 20 de agosto e nos intimaram a partir. Toil-iaclo o c;ifC coiri Farinha de mandioca, tudo foi arrumado rapidamcntc c pos-sc a caravana em movimento. Começou então iim trcclio tlc picada muito incômodo: alternavam-se altos e dcprcssõcs c

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acompanhava-nos uma chuvinha úmida e fria. Numa encosta muito íngreme, apreciamos uma pequena e bonita cachoeira de apenas alguns pés de largura e uns doze de altura, Iímpida e branca, sobre rochas negras; tão delicada e poética, honraria o mais belo parque em grande estilo. Após ligeira pausa ao meio dia, a nossa bússola continuou a dirigir-nos em direção ao oeste. Ouvimos a grande distância o trovejar de uma cascata, num braço já visitado do Cubatáo, grandiosa talvez, Fora porém do nosso itinerário. Ouvimos depois um murmúrio muito abaixo de nós. Descemos. Passava por ali impetuoso regato e, perto de nós, precipitava-se do granito vermelho, a cem pés, num íngreme leito de pedra. Um grande bloco de pedra, nas escarpadas margens, formava pequena gruta, sobre que se debruçavam velhíssimas árvores, contemplando tranqüila e gravemente o penhasco no fundo. Numa serra destas seguem-se as paisagens umas às outras. Quando um dia a montanha se tornar transitável, quando essas cachoeiras forem localizadas e tratadas, e delas se possa contemplar o espetáculo da natureza, ganharão nome esses magníficos sítios e serão evocados. Reencetamos a trabalhosa marcha serra acima. Muitos bambus estorvavam nossos passos. Saiu correndo da alta relva uma anta e desapareceu. Por muito tempo ouvimos o seu estrépito nas moitas. Moviam-se também macacos na copa de alta árvore; debalde tentou-se caçá-los: os tímidos animais sabiam esconder-se muito bem e com eles nada se conseguiu. Num terreno fundo e úmido fizemos alto e começou como na véspera, a cena de devastação da mata para a construção de um rancho. Em pouco se aprontou o teto de palmas, chamejavam as fogueiras e estávamos deitados comodamente em nossas camas de palha sorvendo o café, apesar da tempestade e do nevoeiro. Depois dormimos. Tão simples, tão modesto nosso alojamento noturno e no entanto apareceu um ladrão de noite. Meia-noite despertei e percebi ruído em nossos utensílios de cozinha, nos quais ficara um pedaço de carne-seca para o almoço. Um gambá (Didelltliis) fora até lá e fugiu sem largar a

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PRIMEIRO

CAPITULO

carne; Foi um prejuízo sensível, pois numa viagem na mata a dieta tem de ser rigorosamente regulada. Na verdade, nenhum uru, mas uma tempestade com trovões nos despertou na manhã seguinte. Pouco depois fazia bom tempo e os pioneiros, contentes e incansáveis e entre muitas brincadeiras prosseguiram na viagem mata a dcntro. Subimos muito; dos arejados píncaros avistávamos em baixo o escarpado vale do Cubatão, sem podermos ver o ruidoso rio: maravilhosa a vista dos íngremes penhascos. No topo de alta árvore aquecia-se ao sol uma jacutinga. Um tiro feliz derrubou a bela ave. Com estranheza encontramos aqui a tapera de um rancho. Há três anos Wundenvald erguera, no mesmo sítio, o seu alojamento noturno e com alegre exclamação saudamos o lugar, donde o nosso guia já penetrara no planalto do Paraná. Nova tempestade obrigou-nos a apressar a construção de um pequeno teto de palmeira; uma tarde de sol permitiu-nos bom Fim de viagem através de uma região um tanto plana. Em seguida novo temporal Forçou-nos a acampar. Faltavam palmeiras no local, o solo era pantanoso, chovia a cântaros e, no meio do mato, entre árvores velhas, quase não podíamos pensar em levantar um abrigo para a noitc. Contudo, reunindo as forças, conseguimos. A certa distfincia, algumas palmeiras; o que faltava para completar o teto foi siibstitiiído por grandes folhas de feto arbóreo e bambus bcm cnfolhados. Fez-se assim um rancho, áspero e hirsuto como um porcoespinho, mas apesar de tudo um rancho. E até fogo se pBde acender. Passáramos um dia trabalhoso com todas as alternntivas de uma viagem em picada; estávamos no bivaque como depois de travada uma batalha, de uma vitória duramente alcançada. Mas, para compreender-me, é preciso ter feito uma excursão semelhante. Seguiu-se uma noite lamentável. A chiiva caía forte e em breve a água invadia tudo. Os que dormiam acordavam sucessivamente, praguejando, e muito antes de romper o dia estávamos de pé, meio aborrecidos, meio sorridentes e procurávamos pelo menos conservar o Fogo aceso. Muito melhor nos correu o 22 de agosto. A manli5 límpida e fresca fazia-nos ficar também alegres e bem dispostos

1858. VIAGEM PELO PARANÁ

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e assim recomeçamos a nossa Fatigante viagem. Depois de algumas horas de laboriosa subida, despertou-nos a todos profundo espanto a vista de três ranchos desmoronados. Wunderwald jamais acampara aqui; as modestas ruínas não eram tão pouco cabanas de bugres. Conseguintemente, tínhamos de atribuí-Ias ao engenheiro Hégreville; evidentemente passara uma noite aqui com os seus companheiros curitibanos. Pela segunda vez, pois, tivéramos o prazer de encontrar vestígios humanos em nossa solitária peregrinação. E em que consistiam esses sinais humanos que nos alegravam< Em alguns paus cortados com Facas européias! Procuramos apegar-nos aos poucos vestígios que o corte da antiga picada havia deixado nos galhos de árvores, o que nos levou a transviar-nos: evidentemente aqui se tinham cruzado as duas picadas antigas, abertas pelos dois engenheiros. A conseqüência do nosso engano foi considerável perda de tempo. Antes do pôr-do-sol caiu sobre a mata um nevoeiro úmido. Achamos um lugar pitoresco para o rancho. Perto, material de construção para o bivaque. Estalando, caíram dez a doze Etiterye, umas trinta a quarenta pequenas iri deram as suas largas palmas para a cobertura do teto; e construímos o nosso verde palácio silvestre em grandes dimensões, mais de 40 pés de comprimento e oito pés de fundo, com boas camas de palha de palmeira para dormir. Aos golpes de machado de robusto cortador tombou soberba araçá (Myrtlrs araça) para alimentar continuamente, com a sua boa lenha, as nossas duas Fogueiras noturnas. Estávamos de fato, muito bem acomodados; magniFicamente Flamejavam as nossas duas pilhas de lenha; e saboreamos com prazer o jantar, para qualquer europeu simplesmente desprezível. O luxo de nosso palácio chegou ao ponto de passarmos a noite completamente enxutos, embora tenha chovido algumas vezes durante a noite. Na mata somos em verdade Frugais. No dia seguinte deixamos, com pesar, o nosso comprido abrigo verde de palmeira. O cinzento e enevoado crepúsculo matutino tomou-se manhã cheia de sol, em que caminhamos

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PRIMEIRO CAP~TULO

valentemente. Puro e azul o céu sobre as íngremes desfiladeiros da serra, em cujos vales mais importantes, como por uma rasgadura, passava abaixo de nós, murmurando, o Cubatrío. JA bastante distante de nós continuávamos ouvindo a cachoeira de um de seus braços laterais caindo ruidosamente no rochoso vale. A nossa bússola agora nos apontava o caminho descendo no vale do rio. Fatigante a descida. Quase impenetrável cmaranhamento de bambus enchia o espaço entre as árvores da mata. Cada passo era vencido a golpes de facão. De repente se nos deparou um ruidoso rio. Era tinia vista salutar. Espumando e rumorejando passam as inquietas águas em seu caminho de pedra; silenciosas e imóveis pendiam sobre o rio as sombrias frondes das árvores. Na úmida sombra das árvores florescia em grande número uma bela A~iinryllis,cada duas flores sobre um grosso e alto pecíolo, cada flor aberta na largura de um palmo. Sobre elas, no alto, pendiam das copas das árvores elegantes flores de fúcsias, misturadas com uma magnífica leguminosa de flores vermelhas. Alguns alccdinídeos esvoaçavam sobre o rio; todo o resto tla natureza animal desaparecera inteiramente. Com muitas fadigas chegamos ao Fiiii, rio acima. Mas todo o vale era semeado de pedras. Atraves dc i i i i i ; ~fenda entre elas saia o rio e formava uma cachoeira de apcrias ;ilgtins pés de altura, porém muito romântica. Aqui, sobrc as pcclras lisas, rodeados pelas claras águas murmurantes, tivcmos de f;izcr alto, pois não se podia pensar em prosseguir. Volta~iiospor algumas centenas de passos, tentando passar para o outro ln(lo do rio. Um pequeno penhasco formava um rápido, iim;i I~ariiIhenta cachoeira. Podíamos passar. A água apenas atC ao jocllio, terrivelmente fria. Sentíamos nos pés nus as angiilosas pedras debaixo da água. Do outro lado, junto ao rio, encontramos uni magnífico local para acampar. Em pouco estava a nossa cabana constriiítln e instalado o nosso pequeno lar. Fiquei sobre uma pcdra lisa que descia até ao rio e sorvi com prazer meu café, que acabava

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de ser feito. Sobre mim numerosas orquídeas exalavam o seu forte aroma de baunilha. A minha direita, algumas braças rio acima, trovejava a água caindo do penhasco e à minha esquerda bramia o rápido. Ao cair o crepúsculo vespertino, tínhamos comido o nossa modesto jantar. Nossas fogueiras ardiam claramente na mata. Pela meia-noite culminava o plenilúnio num céu sem nuvens. Luzes vivas caiam sobre a cachoeira espumante e sobre o brilhante torvelinho do rio. Ao lado das águas iluminadas pela lua, a sombra da floresta parecia profundamente negra. Pequenas nuvens de névoa flutuavam acima do rio, nas frondes das arvores. Os companheiras dormiam tranqüilamente sob o teto de palmeira e, com eles, toda preocupação de um ataque dos selvagens. Deus velava sobre todos. Noite maravilhosa; jamais a esquecerei. Partimos no dia seguinte (24 de agosto) e encontramos ainda várias cachoeiras pequenas. Quase tão belas, quanto o trecho tumultuoso do rio de uns quarenta pés de largura, São as suas partes tranqüilas, com muita propriedade chamadas "poçosJ1,na língua do país. São acumulações de água, profundas, perfeitamente imóveis, as quais como não se Ihes vê o fundo, parecem completamente verde-negras. Geralmente fervilham, sobre elas, numerosos insetos; devem ter, na profundidade, pequenos mas saborosas peixes. A água tranqüila aproxima-se tanto da encosta da serra, que muitas vezes o viandante corre o perigo de cair num desses poços, se a picada passa muito perto deles. Vimos mais de urna vez quase verticalmente, a alguns pés abaixo de nós, a profundidade negra e silenciosa. O nosso valente guia Wunderwald tomou a direção, que ele julgou conveniente, para o norte e mesmo para o nordeste, a fim de atingir breve o planalto da Província do Paraná. Desistimos, pois, do rio e subimos mui trabalhosamente uma elevação muita saliente, da qual não parecia ser possível continuar na direçáo indicada. Dificilmente podíamos passear, no alto, através dos milhares de bromeliáceas, fetos e melostamáceas; em toda parte troncos em decomposiçáo, cheios de

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orquídeas, mas também em toda parte densas moitas de taquara estorvavam os nossos passos. Depois de errar longamente, tivemos de decidir-nos a descer para o Cubatão e seguir, subindo, o seu íngreme leito, em cujo escuro boqueirão avistamos, a distância, uma cachoeira de considerável dimensão, até agora inteiramente desconhecida. Chegamos ao rio muito abatidos e extenuados. Enquanto vagueávamos Iongamente no alto, o dia gradualmente chegava ao fim e tivemos de fazer bem perto da água o nosso teto de taquara, pois na região não havia palmeiras. Avançáramos apenas algumas centenas de braças; diminuía rapidamente nossa provisão e, com ela, também um pouco da coragem e alegria de nossa gente. Sob uma chuva com trovoada adormecemos ou antes nos deitamos para dormir e despertamos molhados por uma chuva miúda, se é que realmente dormirmos. E além da desagradável situação, ainda a senha da manhã: não comer à saciedade, para não sofrer fome, caso a nossa demora na mata ainda se prolongue por mais tempo. Com essa fraca consolação, partimos com a roupa molhada através da mata encharcada e tornamos a vadear o Cubatão para seguir rumo oeste pela sua margem esquerda. Impossível, porém; o vale tornou-se tão escarpado e agreste que tivemos de subir a serra por uma íngreme encosta. Com muita canseira caminhamos. O trovejar daquela cachoeira aproximava-se cada vez mais, mas também cada vez mais alcantilado se tornava o monte; em vez de andar, trepávamos, com pés e mãos, por entre fortes fetos arbóreos e mirtáceas de grandes dimensões. Da encosta a pique avistávamos a vertiginosa profundidade. Ladeiras escarpadas formavam um amplo vale cercado de rochas. De lá vinha o Cubatão, saindo de um estreito desfiladeiro e precipitava-se de centenas de pés em serpeante linha branca e em vários degraus na garganta do vale. Do tronco com dois galhos de gigantesca figueira, procurei obter uma vista exata do grandioso quadro natural. Sobressaltou-me uma espécie de medo. Afigurava-se-me que toda a parede de terra com a sua mata ia soltar-se e precipitar-se nas furiosas águas.

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Jamais pé humano pisara esta região, jamais o olho dum viajante contemplara o maravilhoso espetáculo natural. Éramos os primeiros civilizados que em fatigante e perigosa peregrinação penetrávamos até aqui e descobríamos a grandiosa cachoeira da. alto Cubatão. E como na rápida penetração da civilização, do mar para cá, é provável que dentro de alguns anos já audaciosos pioneiros alemães façam o seu caminho através da bravia serra Geral, entre Santa Catarina e a Província do Paraná e, assim tornem acessíveis aquele vale e a imponente cascata, creio ter o direito de dar ao sublime quadro natural o nome de "Cascata TeresaJJ (Tlzeresienfall) em homenagem à Augusta Imperatriz do Brasil Dona Teresa Maria Cristina. No alto, acima da cachoeira do Cubatão, já assomam, no ar, imponentes araucárias, anunciando assim a aproximação do planalto. Duplamente nos agradou o aparecimento delas: de um lado pressagiavam o fim de nossa aventura e, depois, podíamos ter a esperança de encontrar no chão alguns pinhóes, frutos de araucária. Infelizmente, em ambas as coisas nos enganamos. Subimos um íngreme outeiro a noroeste e tornamos a descer para o Cubatão que, acima de sua grande cascata, segue muita tranqüilamente e não tem, em nenhum dos lados, terreno escarpado, antes, mata úmida e insignificante, através da qual prosseguimos. Aqui recebe o rio, pela esquerda, largo regato. Tornamos a vadear o Cubatão, molhados, em jejum, numa temperatura de anfíbios. Da outro lado da trilha fria e úmida tive uma alegria que, mesmo para um viajante, é pueril, pois aos outros parece muito pequena, mas vem do coração. Florescia no chão úmido em exemplares grandes e numerosos, uma anêmona branca com leve matiz vermelho, cujo "habitus" e porte me recordaram a nossa primaveril aizerilo~ienerizorosa. Até certa tripartição das folhas aproximava a flor da serra Geral de sua parente nórdica. Foi ela, pois, para mim, no Cubatão de Santa Catarina, um amável mensageiro da primavera, que me alegrou por todo o dia. Anoiteceu. No meio de um emaranhamento de taquaras, junto de palmeiras e araçazeiros, fizemos o acampamento. Tudo úmido

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e miserável e particularmente escassa a nossa provisão. Distribuídos com a máxima parcimónia, os nossos alimentos bastariam no máximo para três dias; por mais que fiz6ssemosJ não dariam para mais de três dias, não para saciar-nos, mas para manter-nos. Afora a umidade atorn~entadora,e o forte apetite, quase doentio, passamos bem, graças a Deus; tínhamos pelo menos saúde, exceto um, que sofreu um pouco de disenteria; dei-lhe um pequeno vomitório, embora ele afirmasse que, com tão pouca comida, nada tinha no estôn~ago.Pouco depois se restabelecia. Com frio e fome, fizen~oslaboriosamente uma fogueira. Muito molhada, fazia a lenha bastante fiimaça. Um vento traiçoeiro empurrou-a para dentro do rancho, provocando tosse geral e derramamento de lágrimas. Tão lastimável, em suma, nosso estado, que todos acabamos dando gargalhadas, bem que alguns rogassem rudes pragas 2 mata e jurassem nunca mais voltar a ela. Durante toda a noite, indesejável chuva fina. Atravessou o teto e caiu sobre nós; nunca em minha vida me agachei tanto como aqui, mas em vão: molhei-nie e molhado fiquei. Em 26 de agosto, de manhã, o mesmíssimo quadro! Muita chuva e pouca comida, a natureza vestida de cinzento, os homens com humor cor-de-cinza. Quem mais me pen a 1'izava era Wunderwald, porque já tinha feito uma peregrinação semelhante e conseqüentemente conhecia a direç5o de nossa nova picada e, ao partirmos de Joinville, dera instruçóes aos trabalhadores para se abastecerem somente para oito dias. J5 estavam há dez dias na mata e ainda não podiam ver o fim da viagem. Além disso, havia o trabalho de arrastar as minhas coisas. Por mais que as dividíssemos em pequenas parcelas, eram sempre fatigantes e despertavaili consideravelmente o apetite. Eu próprio era a causa das dificuldades; sem poder ser considerado imputável, eu absolutamente não podia snl~ciquanto seria extenuante e arriscada uma viagem em picatln. Para excitar o menos possível o apetite dos honicns, Wunderwald propós um dia de repouso, enquanto ele com (lois

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homens abriria a picada. Foi aceito. Caso chegasse até ao campo do Paraná, onde pudesse comprar um pedaço de carne - o que não era de esperar - ele nos traria alimento. E partiu. Entrementes, tentamos melhorar o nosso rancho e conseguimos um teto compacto e uma fogueira animada. E secamos as roupas, remendamos as calças, um genuíno quadro holandês na selva brasileira. Profundo silêncio reinava na mata: nenhum grito de pássaro ressoava e se ressoasse, seria necessariamente seguido de um tiro de espingarda para trazer à nossa panela vazia o emplumado morador das árvores. Em parte alguma se via uma caça, mesmo um rasto de anta, mas muitas "veredas de anta" que, como caminhos, passam entre os bambuais. Não se podem, porém, caçar antas sem cão amestrado nessa caça. E não tínhamos cão. Se tivéssemos, não iríamos tentar caçar, mas mataríamos e comeríamos o próprio cão. De muito longe ouvíamos ainda o ruído da cascata Teresa. Tamanho silêncio que se ouviria até uma agulha cair no chão. As palmeiras em volta, imóveis. Para medi-las, mandei abater uma muito esbelta. Estalando, precipitou-se dentro da mata. Com nove polegadas de diâmetro no tronco, em baixo, media 66 pés de comprimento, uma nobre proporção e esbelteza, que em outras plantas não é alcançada. Pelas 4 horas da tarde soou, a distância, a buzina de Wunderwald. Meia hora depois chegou. Tinha aberto picada valentemente e esperava levar-nos muito breve ao campo do Paraná. Essa notícia e uma tarde amena nos causaram a melhor impressão, sem diminuir-nos o apetite, inabalavelmente ótimo. Apesar de muito subir e muito trepar, foi também agradável a manhã seguinte. Avançamos muito na picada aberta na véspera; magnífica e saudável a floresta! Mata de bambus, fetos e bromeliáceas parasíticas. Sobressaíam os araçazeiros e mirtáceas, além de muitos troncos de sassafrás. Estes espalhavam o seu aroma, quando cortados pelos abridores da picada para deixar sinais para os que vinham atrás e que frequentemente tinham de descansar. Nenhum alimento substancial os fortificara para o trabalho. Erguiam-se da floresta magníficas palmei-

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ras e araucárias. Estimamos algumas em mais de 100 pés de altura. Eram no entanto excedidas por soberbas pináceas, cujas gigantescas colunas se elevavam de maneira imponente. Já falei demasiado sobre as araucárias para que deva repetir aqui quanto entusiasmo me despertaram essas árvores colossais, onde quer que as encontrasse. São majestosas colunas que suportam o teto de folhas do partenon da selva. Um tronco cilíndrico de quatro a cinco pés de diâmetro, que se eleva em linha reta a 50 pés, sem esgalhar, é uma vista grandiosa. Com o bom humor que nos provocara o belo dia e o largo trecho de caminho percorrido, tornáramo-nos imprevidentes. Num sítio muito adequado construímos o rancho, cobrindo-o ligeiramente apenas com grandes folhas de feto e alguns bambus, tanto mais que o tempo permanecera claro e límpido. Choveu à noite e tivemos de expiar a nossa imprevidência; de manhã estava tudo molhado. Em 28 de agosto de novo partiu Wundenvald sozinho com dois desbravadores de picada. O honrado e incansável homem gostaria de tirar-nos de nossa apertada situação e alcançar o mais depressa possível o campo, onde, em sua primeira expedição, há três anos, vieram ao seu encontro porcos amontados. Se encontrasse carne, no-la mandaria imediatamente; esse foi o ajuste, mas eu sabia perfeitamente que ele nada encontraria. Na última refeição matinal - se assim se podia chamar nossa escassa provisão -todos desejávamos um alimento qualquer. O mais fácil seria encontrar uma égua velha na orla do campo. Acontece com essas belezas eqüestres o que costuma dar-se com as dançarinas e cantoras velhas. Depois de gastarem a mocidade, aplaudidas, no largo campo da vida, retiram-se para um asilo tranqüilo com melancólico desprezo pelo que perderam: a beleza, a juventude e os aplausos do mundo. Quase em toda parte, no planalto de Santa Catarina, encontrei, à orla dos campos distantes e meio escondidas nas moitas, algumas éguas velhas. Como nos agradaria uma delas na mata. Devíamos estar apenas a meia légua de distância do campo.

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Como Leônidas nas Termópilas, comi, com os meus leais companheiros, o nosso último almoço para depois, com dignidade e calma espartana, passar fome com eles. Se o processo da inanição andasse rapidamente, encontrar-nos-iam numa fila bem ordenada de onze homens mortos de fome. Mas, tais quais se achavam as coisas, eu sabia com certeza que sãos e salvos e contentes alcançaríamos o planalto, embora com uma rija fome canina. Entretanto, consertamos radicalmente o nosso rancho; suportava bem a chuva e esse melhoramento de nossa situação Foi para nós como uma vitória alcançada. Sem a refeição do meio-dia, estávamos muito contentes. Tentamos caçar, sem resultado. Andei uma hora inteira com a espingarda, mas nada achei. Assim aconteceu também com alguns dos outros caçadores. Pela tarde pudemos ainda distribuir entre nós uns restos de comida. Wunderwald não voltou; ele queria chegar ao campo do Paraná e nós só podíamos alegrar-nos com a sua resolução. "Em Filipe nos reveremos" -foram as suas palavras de despedida. Não em Filipe, não no campo decisivo, mas foi na mata, trivialmente, que nos encontramos. Em 29 de agosto eu partira cedo; deram-nos ainda algum café; dividimo-lo entre nós; tive o privilégio de lavar, com a minha quota de café, a lata de açúcar, na qual, aliás, não havia nenhum açúcar. Depois partimos para encontrar o nosso engenheiro no campo e comer ali, conforme ficara combinado, "o porco assado". Seguimos a picada em direção ao norte e pela última vez passamos o rio onde reconhecemos o local de dormida de Wunderwald. Uma hora depois encontramos, infelizmente, o nosso engenheiro no meio da mata. Havia equivoco e tivemos de regressar. Era, pois, recomeçar o dia. Apoderou-se dos homens um desagradável estado de ânimo: todos estavam fracos, silenciosos, exaustos. Os mesmos homens que até então tinham marchado com muito boa vontade, com infatigável vivacidade e entre constantes brincadeiras, agora seguiam calados pela mata: estavam esfomeados, na

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verdade eu não podia censurar-lhes o cansaço e no entanto em nada podia ajudá-los. Por duas vezes Wunderwald, do topo de uma árvore, fez o reconhecimento da região. O número de araucárias aumentava cada vez mais. Tínhamos de segui-las para chegar ao campo. Andamos e andamos e nenhum campo apareceu. Os regatos continuavanl correndo para a direita, para o nordeste, onde ficava o Cubatão; por mais que subíssemos, nenhum campo transparecia através do mato. - Um tiro! - exclamamos nós, quase todos ao mesmo tempo. Um tiro ao norte, a menos de meia légua de nós! Disparamos também, duas vezes, três vezes, e Wunderwald tocou a sua buzina; depois escutamos largamente, atentamente, mas na mata nada se mexia. Talvez o caçador solitário tivesse medo de ser encontrado no meio da mata. E afinal, quem estaria na mata< Nós, porém, estávamos de bom ânimo. O tiro fora de uma espingarda do Paraná, isso era certo, e o caçador devia morar perto, o que também era ccrto; e até podíamos ouvir o seu cáo latir. Veio, pois, a animação. Voltaram a coragem, a alegria, o bom humor. E, com isso, parecia chegar o fim da nossa penosa peregrinação. Quando descenios uma planície riquíssima em fetos, chegamos a um riachinho que corria para o sudoeste, o d'água pertencente ao domínio evidentemente o primeiro €i do rio Negro e, portanto, ao Paraná. Havíamos chegado aos limites extremos da Província do Paraná; isso parecia-nos certo e talvez dentro de poucos minutos, de horas, no máximo, atingiríamos o campo. Para festejar o momento, ofereceu-me Wunderwald a sua última bolacha de munição. Como um moderno Alexandre, rejeitei. Eu náo queria comer nada antes que todos os meus companhciros dc viagem também pudessem comer alguma coisa. Daquele riachinho subia-se obliquamente pela mata. Alguns minutos depois encontramos vestígios de casco de boi no

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ch5o e que aumentavam em direçáo a determinada vereda. Para a direita a vereda perdia-se na mata; para a esquerda tornava-se mais trilhada e nós a seguimos rapidamente, em ansiosa expectativa. - O campo! - exclamoii a homem que ia na frente; o campo bem perto de nós! Mais dez ou quinze passos e cstávarnos no campo aberto; perto e a distância havia enorme multidão de araucárias dispersas ou densamente reunidas em bosques; no alto, no ar, esvoaçavam e gritavam inúmeros papagaios; julguei-me transportado para o planalto de Santa Catarina e de novo na Estância dos índios. Estávamos, pois, fora das brenhas. Embora continuássemos sem ter o que comer, todos estávamos contentes. Sobre uma próxima araucária pousava, gritando, um papagaio. Um tiro bcm dado c um momento depois estava morta, no chão, a avc colorida. Assim, havia possibilidade de conseguir-se algum alimento, sc continuássemos a caçada com prudência e habilidade. Enquanto alguns começavam a construir um rancho na orla da mata, eu, com um dos mais resistentes ao cansaço, tentei descobrir uma casa, gente. E~icontramosuma vereda trilhada pelo gado e segiii~no-Ia.Encontramos vestígios humanos, pois achamos uma gamela de araucária, na qual evidentemente houvera sal para o gado lamber. Pouco depois descobrimos na vereda rastos frescos de pés nus, que seguin~ossubindo um riacho. Mas surpreendeu-nos o crepúsculo, ao passo que ouvíamos tiros em nosso acampamento. Era natural voltarmos, pois éramos apenas dois homens e só tínhamos dois tiros conosco. De regresso, na semi-obscuridade, perdemos a direção. Chamamos e ecoou a buzina de Wunderwald. Dobramos uma ravina. Diante de nós brilhou a fogueira do bivaque dos companheiros. Um qiiarto de hora depois estávanios com eles. Haviam sido mortos três papagaios. Foram distribuídos com os doze trabalhadores, por pouco que um qiiarto de papagaio pudesse satisfazer iim niateiro esfomeado desdc dias. Para si e para mim, o nosso engenheiro ainda tinha um pedaço

de toucinho. Com isso recebi ainda metade da bolacha de munição que eu recusara na mata. Agora podia aceitá-la em boa consciência, porque os meus companheiros também tinham o que comer, embora pouco. Então tive um silencioso desgosto. Apareceram alimentos que alguns haviam guardado para o caso de maior fome ou necessidade. Quanto a mim, o direito da própria conservação também é um direito; mas o direito de sacrificar-se pelos outros parece muito mais belo. Afinal, em nosso caso não se podia pensar em verdadeiro perigo; tratava-se apenas de passar um pouco de Fome. E mesmo assim aqueles precavidos companheiros tinham revelado egoísmo e cautela, para mim, repugnantes. Por pequeno que fosse o jantar na orla da floresta, foi, todavia, reconfortante. Enquanto os doze trabalhadores tomavam a sua sopa de papagaio e comiam a sua quarta parte, eu assei numa haste de bambu a meu toucinho e comi-o com a metade da bolacha. E com infinita satisfação. Sim, não me envergonho de confessar que, depois de comer o toucinho, chupei a ponta do bambu enquanto havia nela gosto de toucinho. No antigo e no novo mundo, comi muitos jantares lucilados, mas não me lembro de nenhum que me tenha sabido tão bem como o da orla do campo do Paraná no dia 29 de agosto. Dormirmos deliciosamente a noite; satisfeitos, despertamos de manhã. Verdadeira manhã araucariana: leve nevoeiro; brilhantes papagaios gritavam nas frondes dos verde-negros bosques de pinheiro; estava fresco, quase frio e com muito prazer nos aquecemos um momento na reatiçada fogueira do bivaque, até que nasceu o dourado e cálido sol. E então partimos, para achar gente. Seguimos a vereda que o meu companheiro e eu já tínhamos palmilhado na véspera por meia milha e dentro em pouco, aliás sem nenhum prazer para nós, estávamos no meio de uma densa mata, tal como se uma potência demoníaca nos tivesse levado de novo ao Cubatão, condenando-nos a novas dificuldades. Wundenvald ia na frente e os outros o seguiam silenciosamente. Porque, depois de ver a planície do campo aberto

e demorar nela algumas horas, uma vereda na mata é dobrado constrangimento. De repente ouvi Wundenvald falando em voz alta, em português. Aproximei-me rapidamente para ver o que se passava.

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ULO Gente, d e novo. - O caçador d e a n t a s d o Tijiicamas. - A estância d o rio d o Meio. - Algumas considerações sobre o m a t e . - Repouso n o Rio Negro. -Civilização incipiente. - A b a n d o n o d a s m a t a s e chegada a o C a m p o d o Ambrósio. Era gente. Apoiados em suas espingardas, armados com facas de mato, estavam em volta do meu bom engenheiro quatro homens e iim menino, todos t i o espantados de encontrar europeiis quanto nós alegres e atí: entiisiasmados por termos descoberto os quatro mestiços de índios. Apertanlos as mfios uns aos outros, saudamo-nos e conversamos. Há, nesses encontros na mata, uma confiança admirável, firme como um rochedo! Resumidamente Ihes contamos a nossa história nas matas e picadas e causou viva alegria aos homens pardos, calmos e realmente bem constituídos, que europeus se tivessem exposto, destemidamente, à trabalhosíssima vida na mata. "Não encontraram nenhum bugrelJJ-perguntou o mais vigoroso entre eles. Dissemos que não. Isso pareceu dar-lhes prazer. Estranho! Nada -nem a solidão, nem o horror da mata, nem os abismos, nem as cachoeiras, nem os animais ferozes amedronta esses homens: só a palavra "bugres" os faz estremecer e empalidecer; só pensar neles já os pert~irba.Vi o assombramento com o espectro dos bugres no Rio Grande, vi-o em Tubarão e no Feixo em Santa Catarina, vi-o em Lajes, em Índios, no rio Bonito, no Trombudo, em toda parte e de novo na mata do Paraná e no entanto nunca tive ocasião de ver

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bugres. E não obstante vi homens calmos e corajosos empalidecerem com a simples palavra "bugresJJ. O menino e três homens seguiram para trazer uma anta que um deles matara adiante do Campinho no dia anterior, mas não pôde conduzir, pois o animal pesava 10 arrobas, ou sejam, 320 libras. Tínhamos ouvido o tiro, que muito nos alentara. Fato curioso, o caçador de antas, que ficara conosco, fora o primeiro homem que Wunderwald encontrara, na mesma região, quando, três anos antes, aqui chegara em sua viagem através de picadas. Ambos se reconheceram imediatamente. Com certa dignidade o caçador de antas tomou um cigarro de palha de milho, levou-o à boca, deu três ou quatro fumadas e passoii-o depois ao nosso companheiro como sinal de hospitaleiras boas-vindas e de alegria por tornar a vê-lo. Examinei o homem dos pés 2 cabeça. Evidentemente era um índio quase puro, de estatura mediana e bem nutrido, pardoclaro, de aparência leuco-fleumática, de rosto bom, redondo e cabelos negro-escuros. Como cobertura da cabeça tinha um couro cru de bugio. Trazia uma camisa azul, calças de 'linho cinzento até os joelhos, com as pemas nuas do joelho para baixo. Além da espingarda tinha ainda duas pistolas e uma faca de mato ao cinto. Este consistia numa pele de gato selvagenl, cuja cauda servia de bainha à faca. Era originalíssimo. Perguntamos se tinha comida, se podían~oscomprar alguma coisa. Disse ele que para vender nada tinha, mas teria prazer em dar-nos o que tinha no seu rancho, lá em baixo, na mata. E seguiu na frente. Logo depois ele parou, examinou uma árvore seca, tomou o nosso machado e cortou o tronco, a fim de que tivéssemos combustível. Levamos alguma lenha conosco e seguimos o estranho guia através da mata. Abriu-se uma depressão ampla e clara. No fundo corria um riacho. Perto, uma casa de madeira, pequena e pobre, feita de traves de pinheiro e uma cabana menor, evidentemente a cozinha. Ao lado da casa, uma horta, cercada com troncos de feto arbóreo, na qual eram cultivadas as coiives e outras hor-

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taliças. Com extraordinária pompa floresciam ali três pessegueiros. Perto da casa um relvado em talude. Além, toda uma encosta derrubada para uma roça. Assim era a primeira estância no planalto do Paraná. Saíram do rancho algumas mulheres e crianças, que olharam admiradas para os recém-chegados. Provavelmente elas, francamente de origem índia, nunca tinham visto tantos homens inteiramente brancos. Éramos para elas sucesso inaudito, talvez um acontecimento na vida dessa gente. O caçador de antas fez uma fogueira, em torno da qual ficamos nós, com verdadeira fome canina. Tomou depois um grande pedaço de carne-seca de anta e um menor de porco do mato (Dicotyles).Assou o primeiro numa vara; uma das mulheres tomou-o e pilou-o num forte tronco de árvore escavado como gral e colocou-o, depois, numa gamela. Em outra vasilha Foi posta farinha de milho; o caçador de antas estendeu um couro, pôs sobre ele a estranha comida e os meus cossacos sentaram-se para comer. Comeram formidavelmente. E eu também. A carne de anta sabia maravilhosamente; para mim tinha gosto perfeito da carne defumada hamburguesa, aliás achei-a mais suculenta e mais vermelho-escura do que aquela. A carne de porco do mato também estava excelente e desapareceu tão rapidamente quanto a carne de anta, embora fossem enormes as porções. Entrementes, não esteve ociosa a hospitalidade do caçador de antas. Ele tinha grandes panelas cheias de pinhão cozido. Começou, em grandiosa escala, o segundo prato do nosso jantar. Por mais gostosos que fossem os pinhóes, não podíamos comê-los todos. Uma hora antes podíamos jurar que não haveria comida suficiente para saciar-nos. A uma das crianças ofereci uma moeda inteiramente nova e ela me trouxe bolos de milho, muito gostosos e que, distribuídos entre os homens, ainda foram comidos. As mulheres mandaram perguntar a Wundenvald para que servia a sua buzina de sinais. Ele tocou um sinal e elas

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ficaram atônitas. Evidentemente nunca tinham vista semelhante instrumento, nem sequer ouvido um trecho de música. Comoveu-me a surpresa e alegria delas. Reconheci mais uma vez o poder da música, mesmo a de uma buzina. Tem-se imposto por meio do Evangelho e por meio de canhões a cultura européia a povos selvagens; quem sabe se não seria mais fácil incutir-lhes os costumes, as leis e a religião por meio do canto e especialmente por meio dos instrumentos de soprot Li que uma vez levaram à ópera os caciques de índios que estavam em negociações com o Congresso de Washington. Cantou uma célebre cantora; a princípio os índios ficaram muito espantados; depois, dominados pelo entusiasmo, arrancaram do corpo os seus ornatos, pele de sariguéia, e as arremessaram aos pés da cantora até que ela ficou com os mais puros ornatos de suas selvas. Em casa das primeiras pessoas que encontramos no Paraná, após trabalhosa peregrinação, passei, pois, uma hora para mim inesquecível. Fizemo-lhes presentes de dinheiro e coisas que Ihes pudessem agradar. Na despedida, dei a mão a todos; essa gente despertou-me muita compaixão. As mulheres mandaram pedir a Wundenvald que lá na floresta tocasse a buzina mais uma vez. Ele prometeu e nós partimos. O caçador de antas acompanhou-nos até a um riacho Iímpido e escachoante, o rio das Tijucamas, que atravessamos sobre um tronco de árvore. Aqui se despediu o nosso homem. Com todo o coração lhe apertei a mão parda e nervosa. Afinal, escreveu-me ele o seu nome: Francisco Bueno Gomes. Subimos pela floresta um caminho escarpado e do alto olhamos em torno. O caçador de antas seguia-nos com a vista, como se desejasse seguir conosco para a vida da cultura e da civilização. Acenamo-lhes ainda e depois desapareceu no mato. Em cima, na crista da serra, Wundenvald tocou a buzina. Em volta o eco repetiu os sons. Depois seguimos mata adentro. Voltávamos, pois, ao convívio humano e saíramos de nossa opressiva situação, notadamente do perigo da fome, mas ainda se achava muito distante de nós a civilização. Continuavam aparecendo novas matas e embora houvesse nelas

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alguma claridade para poder-se ver o caminho, todavia era tão penosa a marcha no solo pantanoso que se poderia preferir a mais simples picada ao ingrato terreno. Ao meio-dia passamos, sobre um tronco de árvore, o pequeno rio Bateia e pouco depois entramos numa grande clareira, adiante da qual cantou um galo. "Um galo!" - exclamamos quase todos nós, alegremente, no mesmo momento. Porque u m canto de galo é o anunciador de uma bem fundada habitação humana, o profeta de um princípio de civilização. Assim era aqui. No meio da floresta elevava-se uma colina, na qual havia uma pequena estância. Subimos para lá a ver se havia possibilidade de achar pousada. Aqui, aliás, a civilização não fizera muita coisa, já, porém, mais do que no rancho do caçador de antas. Formavam a habitação uma casa feita de grossas tábuas de pinheiro, em rigor só um espaço com um tapume e dois telheiros de paredes de barro. A alguma distância havia ainda uma barraca de tábuas. Em volta, cercados para vitelas e porcos. Apesar da pobreza da habitação, fomos recebidos com boa vontade pelos moradores, mas era pouco convidativo o pessoal que ia aparecendo para ver-nos. O dono da casa, Antônio Ribeiro, era, como sua mulher, de origem índia. Sua filha casara com José dos Santos Barbosa, que representava o papel principal e era manifestamente de origem portuguesa, embora remota. Além disso ainda andavam para lá e para cá alguns homens e mulheres, mestiços de índios e brancos; das muitas crianças se podia concluir que alguns formassem casais sobre cujas relações não pude esclarecer-me. Nos confins da civilização não é fácil passar a limpo essas relações. Aquela gente tinha a rudimentar estância em comum e tudo entre eles parecia em condomínio. Deram aos nossos homens a pequena casa de tábuas. Compramo-lhes 16 libras de carne-seca; pouco depois ardiam duas alegres fogueiras para assar a carne, com a qual receberam os nossos homens excelente farinha de milho e mate de primeira qualidade. Foram estendidos couros de boi; pela primeira

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vez gozaram eles, depois de nossa partida de Joinville, cômodo repouso e a esperança de dormida agasalhada, chovesse ou fizesse bom tempo durante a noite. A quem tenha tido de dormir na mata, na estação mais desfavorável do ano, onde agosto corresponde a fevereiro, não preciso dizer que os meus companheiros de mata ficaram contentíssimos. Na vida de um colono há momentos, dias e mesmo semanas em que ele invejaria a Diógenes no seu tonel. Eu próprio, em minha expediçáo pela mata, vivi semelhantes momentos. Wundenvald e eu fomos levados para junto da família. Lá nos sentamos para alguns momentos de repouso e gozei a vida de pioneiro. No chão rústico da pobre casa de madeira -onde só uma porta dá entrada e nenhuma janela deixa penetrar a luz, a qual, porém, toma a liberdade de introduzir-se por todas as fendas da parede de tábuas - crepitava e chamejava um fogo alegre, lançando a sua luz vermelha sobre o pequeno mundo índiobrasileiro em torno de mim. Agachamo-nos sobre pequenos cepos, pois em tais ranchos naturalmente não há cadèiras, bancos e mesas. Bondosamente a velha da casa nos preparou comida e a pôs ao lado do fogo, no chão: com o auxílio de colheres de metal tomamos a saborosa refeição. Como está a civilização européia longe, enormemente longe de semelhante choça, de semelhantes moradores da mata! E, no entanto, como a gente agradece a Deus quando, saindo da Floresta úmida, encontra estes moradores da mata, este rancho! "Os senhores não encontraram bugresl" - Foi essa a primeira pergunta que nos fizeram quando Falamos de nossa expedição. Sempre os selvagens! Há alguma coisa de terrível na luta entre esses homens-animais da selva e o civilizado da colônia! Por menos numerosos que sejam os primeiros e por menos civilização que tenham os últimos, não se pode pensar em transição de uns para as outros, em nenhum tráfego, acordo ou conciliaçáo. Onde se encontram, espreitam-se e lutam com toda a certeza. Onde a flecha de um sai, zumbindo, da emboscada, a espingarda do outro estoura e envia-lhe uma bala

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SECUNDO CAP~TULO

sibilante contra o corpo nu. O bugre não tem direito algum, porque não reconhece nenhum direito. As histórias de roubos, assasiinatos e incêndios em território europeu São horrorosas, mas São somente exceções, somente infrações de um princípio geralmente aceito e observado. Não assim a vida nas selvas. Aqui a regra é a defesa, mesmo o ataque e o assassinato. O que mais agradeço a Deus é que em minha expedição pela mata nunca tenhamos encontrado bugres. Com o nosso armamento, qualquer ataque seria repelido logo no começo com uma bala, mas essa bala feriria um homem e o estenderia no chão. E depoist Depois eu teria de correr para a vítima, mortalmente ferida pela minha própria bala, oferecer-lhe a mão e socorrê-la. Quem pode suportar o olhar de semelhante moribundo, acredita que a gente leve a bolsa de ferros, o martirize lentamente até matá-lo e depois ainda despedace o seu cadáver! Esse quadro da selva é atroz, mas ocorre e poderia desenrolar-se diante de meus olhos europeus. - O senhor não atiraria no bugre, se o encontrasse< perguntou o meu hóspede. - Se não me atacasse, não repliquei eu. O outro abanou a cabeça. - O bugre é um bicho - disse ele. E abandonamos o assunto. Penso que, no íntimo, me deram razão. Isso deve bastar para que o leitor europeu compreenda que a vida na orla extrema da floresta virgem, numa estância isolada, é triste e medonha; e que o aparecimento de catorze europeus com princípios humanitários que, vindo da costa em trabalhosa expediçáo através da mata, penetram no planalto para preparar um caminho para a civilização é, para esses remotos camponeses, um acontecimento universal. Por exemplo, já não é digno de admiração que numa estância exposta ao azar de um ataque de surpresa apareçam subitamente catorze homens com armas e bagagens sem despertarem a mínima suspeita, de modo que o dono da casa sozinho, sem a menor emoção, embora admirado, Ihes sai ao encontro e os convida, a eles que só iam perguntar pelo caminho, a passarem a noite no seu lar, com os seus, a contentarem-se com a sua pobre

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barraca e ficaremt Um único olhar do homem bastou para considerar-nos e reconhecer-nos como alemães, pioneiros de Joinville; um único e simples pensamento bastou para concluir que éramos um grupo da mesma gente a cujas machadadas a floresta tombava, fugia a barbaria e bugres e tigres se retiravam para as suas cavernas de trogloditas. Na estância havia uma criança de tipo facial genuinamente índio, que há cinco dias quebrara o braço. Improvisei uma atadura e mostrei à mãe como poderia ela própria ajustá-la e disse que a criança se restabeleceria. A menina de sete anos, muito turbulenta, Ficou notavelmente quieta enquanto eu lhe punha a atadura: ela via que eu queria ajudá-la. Nisso, para suportar a dor, agiu mais o instinto natural do que uma resoluta vontade infantil. Saí a ver os companheiros. Chamejava alto a fogueira que acenderam e lançava a sua luz vermelha sobre as frondes das escuras araucárias que se elevavam em volta. Na mata murmurava um riacho. A certa distância gritava uma coruja; tudo o mais era silêncio e em suave paz seguiam as estrelas, no mais puro céu, O seu curso noturno. Em casa também ardia o nosso fogo. Sucediam-se cenas curiosas. A Wunderwald e a mim deram o compartimento junto do espaço principal, onde havia uma espécie de armação de cama feita de cipós entretecidos. Não se podia naturalmente pensar em roupa de cama, almofadas e cobertas. A bondosa velha pusera, todavia, como travesseiro, uma porção de saias e outras peças de roupa, cuja emanação me era desagradável; contudo, deitamo-nos como foi possível. Mas a noite era muito Fria; através das largas fendas da parede soprava um ar cortante, de modo que absolutamente não pudemos dormir e confessamos que um bivaque na mata, com um bom Fogo, seria melhor do que nosso pretenso alojamento. Apenas amanheceu, saímos de casa e fomos aquecer-nos na alegre fogueira dos companheiros. Em pouco estávamos desgelados e os outros despertaram. Vieram mais 16 libras de carne e uma porção correspondente de farinha de milho e os

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meus pacientes companheiros alimentaram-se para mais um dia de marcha. Visivelmente, desde ontem, eles tinham aumentado algumas polegadas de diâmetro. Wundenvald e eu fomos chamados para o almoço. De novo nos acocoramos com os nossos homens primitivos em volta do fogo, cada um em seu cepo muito baixo; mantivemos nova palestra sobre a lavoura dos alemães nas terras baixas, pelo que os homens da mata mostraram muito interesse. Mas há muito brilhava o sol sobre a floresta; nos pessegueiros, que floresciam viçosamente perto da casa, zumbiam os colibris em multidão e a nossa gente já tinha embalado tudo. Com muitos agradecimentos pagamos as provisões consumidas por nós e nossos homens e partimos de novo para a mata, pois continuávamos sem encontrar um verdadeiro campo. Atravessamos o pequeno rio do Meio e viajamos algumas horas na mata sabre altos e baixos. Por pior que fosse o caminho em certos pontos, era, todavia, um caminho, às vezes aberto através dos matos, até com algum tráfego. Encontramos homens que seguiam com burros carregados, em geral de mate; em muitos lugares ouvimos falar e chamar no mato; muitos estavam espalhados a distância, ocupados em "fazer" mate, como se diz na linguagem profissional. Encontramos grande quantidade de troncos desfolhados; de muitas árvores até abateram a copa para mais facilmente colherem os ramos tenros e a folhagem. Mate, mate e mais mate! Essa a senha no planalto, a senha nas terras baixas, na floresta e no campo. Distritos inteiros, aliás, províncias inteiras, onde a gente desperta com o mate, madraceia o dia com o mate e com o mate adormece. As mulheres entram em trabalho de parto e passam o tempo de resguardo sorvendo mate e o último olhar do moribundo cai certamente sobre o mate. É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação. Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, amizade, estima e sacrifício, tudo o que é elevado e profundo e bom

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impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum. A veneração do café e o perfumado fetichismo do chá nada são, nem sequer dão uma idéia da profunda significação do mate, na América do Sul, que não se pode descrever com palavras, nem cantar, nem dizer, nem pintar, nem insculpir em mármore. Comparativamente, nada é o célebre "Tliere be Irolre of benr~tieshrrgliters" de Byron. Sim, tivesse Moore conhecido o mate, a sua amável Peri teria reconquistado as portas do paraíso e a felicidade dos imortais com o mais belo que há, com um maravilhoso diamante, com uma gota demate! Nas folhudas matas, a centenas de pés de altura, do Rio Grande, Santa Catarina, São Paulo e Curitiba e muito além na América do Sul, cresce a árvore encantada que fornece a erva ou erva-mate; e por isso se chama erva1a região particularmente abundante em mate2. A árvore tem o tronco esbranquiçado, esbelto; de algum modo semelha, na cor, a nossa bétula. Vi poucos troncos de certa grossura, apenas até um pé de espessura; geralmente São mais delgados, esbeltos, graciosos. Divide-se em muitos galhos e ramos densamente cobertos de folhas alternas. As Folhas de pecíolo curto, São longamente ovaladas em sentido inverso, ligeiramente denticuladas, tendo, no máximo, nove a doze dentículos de cada lado. Muitos dentes têm até um pequeno prolongamento como se fosse formar um acúleo. A nervura central da folha, que alcança duas a quatro polegadas de comprimento, sobressai fortemente na Face inferior da folha e recebe, em ordem alternada, as nervuras transversais, no máximo seis de cada lado, que se anastomosam entre si por meio de áreas de inserção, especialmente na orla da folha, dando-lhe quase um tipo de mirtácea. Na folha fresca e muito

2 Aqui sáo suprimidas duas linhas, em que o autor faz um jogo de palavras com "erva" e 'Krautn (cr1.n em alemão) e que só oferece algum interesse para os leitores alemács. rrrng Ifcrifn\r,oI Krnrrr i~cdcr~rcir. 1:'sgilirni~cr rirrr cirr Krnrrr, São as seguintes: "Ursyriir~gliclr nird dicscs Krnrrr, Blnrr, ;si /\Inrc, nlso Itcissr llcrc*n ciri-frrr n l l c ~ r ~ n l ~ l l n~ cN. " . do T.

mais na seca, a orla da folha dobra-se, para baixo, numa ourela saliente. A consistência da folha é sólida, meio coriácea e um tanto seca, a cor é de um bonito verde um tanto escuro; ao secar, a cor escurece mais. O gosto, ligeiramente amargo e aromático, é siri gerleris!

Essas as principais qualidades da folha; pelo menos das que tenho ao lado, sobre a mesa, enquanto escrevo. Náo é preciso lembrar ao botânico que a erva é aparentada com o nosso Ilex nqrrifoliirrrr nórdico ou explicar, a ele e a outros cientistas, que ela e outros gêneros formam a família natural das aquifoliáceas ou iliáceas, sobre as quais se pode consultar qualquer manual de botânica ou, melhor ainda, estudar em nosso Ilex nqrrifoliirrrr nórdico. Mas talvez seja injusto dar ao Ilex nqirifoliirr~ro atributo de nórdico. No Uruguai, pelo menos, vi no chão enorme quantidade de moitas cortadas de Ilex; eram usadas para cobrir canoas arrastadas para o seco e protegê-las contra o calor do sol, para o que as sólidas folhas eram perfeitamente apropriadas. Contemplando o arbusto, no Uruguai, eu não podia descobrir nenhuma diferença entre ele e a planta nórdica. E por que não deve ocorrer o Ile.~,se sua parente próxima, a erva-mate, forma bosques inteiros< O melhor tempo para fazer mate - essa é a expressão profissional - é, no Brasil, de março até ao fim de setembro. Conforme a acessibilidade do lugar e o número dos participantes, seguem então para o erval muitos homens com carretas ou burros e, antes de mais nada, lá edificam um rancho para instalarem uma residência durante semanas ou meses, pois muitas vezes o erval fica até a 30 léguas da morada de origem. Começa então o corte. Vestidos apenas de calças e armadas com um facão de mato, os ervateiros decepam não somente as folhas e ramos finos, mas também galhos regularmente grossos com tudo o que neles se acha. A folhagem é secada a fogo brando e depois pilada, com os ramos finos, em cestas de bambu especialmente preparadas para esse fim ou em sacos de couro cru. Preparada a porção colhida, é enviada para casa,

onde, em grandes estâncias, São entregues a um engenho próprio para mate, ou a um maior. Aqui a erva e a parte lenhosa delgada São piladas e moídas, reduzidas ao pó mais fino possível e depois malhadas em sacos de couro cosidos muito regularmente, o que muito contribui para a valorização do artigo. Esses fardos de mate, preparados de maneira originalíssima com couros de boi, têm uma enorme significação e dificilmente se pode dar uma idéia da quantidade de uma mercadoria da qual nada se sabe na Europa que toma chá e café. Creio não exagerar afirmando que na América do Sul todos os que falam espanhol tomam mate e quase metade dos que Falam português lhes seguem o exemplo. Já Falei, alhures, da quantidade de mate que se fabrica. O engenho do rio Pardo podia fornecer 100 arrobas diárias de mate. Uma firma francesa na pequena Itaqui exportava por ano 4.000 arrobas. A exportação de todo o Rio Grande é estimada em 17.000 arrobas. E se lançarmos um olhar sabre os caminhos do Paraná, especialmente sobre a estrada que, saindo do interior da Ptovíncia, conduz, via Morretes, a Paranaguá, podemos dizer, com alguma certeza, que uns dois terços dos burros que passam pela estrada vão carregados de mate e levam muitos milhares de arrobas da estranha erva para a Costa. E se vamos às antigas Missões e ao Paraguai, berço do mate, de onde veio chamar-se a erva Ilex yrirngirnyerrsis -e esse é o nome clássico do verdadeiro mate - então a fabricação de mate é realmente enorme. Os jesuítas ganharam com ele uma fortuna colossal e parece que o Paraguai ainda exporta centenas de milhares de arrobas da célebre erva, o genuíno, o verdadeiro chá paraguaio, ao lado do qual o que se tem exportado como congonha ou mesmo, cassina é apenas uma variedade da planta ou confusão de nomes. Mas o que é que agrada quando se toma o mate, qual o efeito da erva4 A infusão tem gosto levemente amargo e aromático e, como qualquer porção de água quente, é diurética. Quanto ao

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mais, abstraindo do simbolismo já citado, nada de importante posso dizer sobre os seus efeitos benéficos. Mas como o legítimo bebedor de mate o toma quentíssimo, assim tem ele, certamente, conseqüências desvantajosas. Quando sorvia mate, sempre se me desprendia a pele do céu-da-boca e atravessando o Rio Grande sempre andei com o palato queimado. E penso que se podem atribuir ao uso do mate muitas gastralgias e formas crônicas de gastrite, embora não possa dizer com certeza que provenha do mate uma consequência desvantajosa visível. Em qualquer caso, seria enorme perda de tempo querer discretear sobre o tempo e seu emprego nas regiões onde se bebe o mate. Naquelas regiões não há jornais regulares, nem cafés. O bebedor de mate constrói o seu próprio mundo político e sozinho, diante de sua cuia de mate, é mais feliz do que se estivesse sentado num café. Finalmente, pareceu-me digno de nota que se tenha descoberto nas folhas do mate o princípio essencial do chá, a teína. Tanto mais digno de nota me parece porquanto as folhas de chá bem desenvolvidas têm extraordinária semelhança com as folhas do mate, de modo que, vendo-as umas ao lado das outras, nem sempre se pode distingui-las com certeza, por mais diferentes que sejam os caracteres de família botânica entre o chá e o Iles. Mas, sobre a erva e suas diferentes relações, basta! Pelas 11 horas achávamo-nos numa elevação coberta de mato, de onde descortinávamos belo panorama da serra das Três Barras. Em contornos bem definidos eleva-se a cordilheira cinzentoazulada; por ela passa o caminho de Curitiba, capital da Província do Paraná, para São Francisco. Deve ser horrenda a estrada. Ao nordeste desta serra eleva-se outra ainda mais elevada, que estimo em 5.000 pés de altura. Mas essas avaliações à distância São muito incertas. Um caminho medonhamente mau nos conduziu, através de uma depressão do terreno, ao rio Negro, primeiro rio considerável que, por intermédio do Iguaçu, corre para o Paraná. Num pântano do rio me chamaram a atenção algumas vacas

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pelo seu considerável tamanho e magreza. É que, durante a estação desfavorável, os animais não recebem nenhum auxílio. Mais tarde falaremos a respeito. Junto das águas impetuosas do rio Negro passamos uma agradável hora de repouso, depois de termos atravessado a sua defeituosa ponte. Fez-nos bem o cálido sol da manhã primaveril. Em toda parte brotava um verde fresco; em toda parte florescia uma multidão de afelandras de graciosas flores vermelhas e limbo amarelo; e, em revoada esvoaçavam colibris em volta das bonitas filhas da primavera. Chegavam tão perto de nós, em nosso repouso do meio-dia, que poderíamos apanhá-los com as mãos. Esses doidivanas emplumados são às vezes atrevidos e insolentes. Uma vez a senhora Aubé estava sentada na varanda de sua casa e tinha no seio um ramalhete. Um colibri do mato se aproximou e teve a audácia de querer sugar as Flores. Quando compreendeu o seu erro, fugiu como um raio. Lentamente, arquejando, uma tropa de burros carregados subia a íngreme e suja encosta. Um deles perdeu a sua carga e seguiu de muito bom humor. Perseguiram-no alguns homens que muito trabalharam com o animal enfurecido. Prosseguimos e desde ali tivemos a alegria de encontrar sempre vestígios de civilização na floresta. Aqui e ali, uma roça aberta na mata, e entre elas, um pobre rancho cercado de pessegueiros de flores purpurinas. A cada passo, gritos de crianças e o canto do galo, até que uma nova mata encubra o pequeno quadro primaveril. Finamente, à tarde encontramos um campo, porém muito pequeno; creio que se chama Campo da Jararaca. Adentramonos em seguida numa floresta de légua e meia de diâmetro, com um caminho largo, mas difícil. Os homens estavam cansados com a peregrinação do dia; alguns se atrasaram. Fui adiante com o infatigável engenheiro, acompanhado de um suíço. Depois de muito andar, pudemos finalmente anunciar com a nossa buzina, aos companheiros atrasados na mata, que havíamos saído da mata e alcançado o Campo do Ambrósio. Com isso ficavam de fato atrás de nós as florestas existentes entre Santa Catarina e o Paraná.

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O C a m p o do Ambrósio. - Bivaque junto de Chico d e Oliveira. - U m francês. - Dificuldades n a troca d o dinheiro. Despedida d e Wunderwald. - Viagem a pé através d o s campos e d a m a t a do C a m p o Largo. - Bodas. - Estância d e D o n a A n a Teixeira. - Viagem para Curitiba, via São José. - O n d e fica a EuropaC Não é o Campo do Ambrósio um simples campo relvado; antes uma região onde se alternam campinas, matas e depressões pantanosas, com o que ganha expressão de isolamento e abandono, mormente antes de começar a primavera, quando a relva murcha ainda não foi renovada e o gado emagrecido pelo inverno ainda se acoita na mata em exemplares pouco numerosos. Todavia a vista de uma região ampla e aberta, embora erma, é maravilhosamente surpreendente e refrigerante para quem, como nós, vagueou no espaço apertado de uma picada sob a sombra de Florestas úmidas e só por momentos viu uma pequena clareira. Saudamos, pois, com gritos de alegria o vasto Campo do Ambrósio e, embora não houvesse muita coisa civilizada a observar, muito nos alegrou ver pessegueiros florescendo em diferentes lugares. Atravessamos o campo por muito tempo numa direção, na qual Wunderwald julgava residisse um homem que ele já

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encontrara há três anos. Chamava-se Chico de Oliveira e era coletor de impostos da fronteira, cobrados sobre animais de casco e de unha conduzidos da Província do Paraná para Santa Catarina. Precisamente em frente de sua casa se bifurca o caminho, de um lado para Curitiba, rumo ao norte, e do outro, para Três Barras, rumo ao sudeste. Mas, no campo, não era Fácil achar o caminho. Após meia légua de marcha, chegamos a uma casinha, completamente vazia. Em volta pastavam vacas e bezerros. Floresciam densamente os inevitáveis pessegueiros e os igualmente indefectíveis colibris tinham-se aproveitado da ausência do dono da casa para chafurdar descaradamente nas flores, inflamadas de vermelho-escuro ante a tempestuosa corte dos indômitos amantes. Flores de pessegueiros e colibris! O mais gentil epitalâmio que em qualquer parte possa produzir a primavera. Tivemos de voltar a fim de informarmo-nos com os moradores do Campo do Ambrósio, onde quer que Fosse, sobre a casa do Chico de Oliveira. De qualquer modo tinha eu de encontrar o homem. Como funcionário, ele devia levar em consideração minha carta aberta, do Presidente de Santa Catarina, e ajudar-me a achar animais de sela para a continuação da viagem. Depois, era sua casa o ponto de onde descia o caminho para Três Barras; por aí Wunderwald tinha de regressar, - com os nossos companheiros de mata, para as terras baixas, a fim de, após uma viagem de quatro dias, achar-se de novo em Dona Francisca. Topamos felizmente com o nosso grupo, recém-saído da mata para atravessar o campo. Uma chuva ligeira nos estorvou um pouco. Mandamos o criado que eu acabava de contratar a uma casa a alguns minutos de distância, para informar-se sobre o caminho. Devidamente informados, partimos pela tarde. De longe avistamos a casa que nos Fora indicada, mas o crepúsculo chegou cedo demais e, ao cair da noite, nos encontramos, muito desagradavelmente, num pântano. Apalpávamos o terreno

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TERCEIRO CAP~TVLO

com as mãos c os pés c passamos, sondando, como através de um lago, com mil dificuldades. Já ladravam os cães no pátio de Chico de Oliveira, quando notamos que nos faltava um meclemburguês. Ainda há poucos minutos estava conosco. Embora um homem vigoroso, sofria de palpitações do coração e não devia ter-se apresentado para a exaustiva peregrinação; durante toda a marcha ele se atrasava e agora desaparecera de todo. Dispersos como íamos, muito tivemos dc chamar e procurar, até que afinal apareceu o transviado e, em coluna cerrada, subimos para a casa. 0 s cães ladravam furiosamente. Os nossos gritos assustaram-nos e atemorizaram também os moradores da casa. Tudo bem aferrolhado, não se via nenhum raio de luz, nenhuma resposta aos nossos chamados; tudo na casa parecia morto, embora eu tivesse visto luz, de longe, poucos minutos antes. Não levei a mal a inospitalidade daquela gente. A casa ficava isolada, numa região Fronteiriça, erma e solitária. Catorze homens que chegavam, gritando de longe, de noite e com nevoeiro, lembram uma quadrilha de bandidos. Quem são< Que queremt Quem se colocasse na posição dos moradores faria o mesmo. Mas se se colocasse na minha posição, também ficaria, por sua vez, aborrecido e agitado. Afinal de contas, julgava ter chegado ao fim de uma exaustiva excursão pela mata e achar-me na casa de um homem que devia auxiliar-me e encontrava sua porta fechada. Mas, mesmo com essas dificuldades, Wundenvald sabia abrir uma picada com muita habilidade. Lembrou-se de uma casa pouco distante da de Chico de Oliveira, onde havia uma espécie de posta de guarda. Queríamos tentar alcançá-la e seguimos o caminho ou a direção para ele e chegamos a um lugar onde, em vez do caminho, havia água Iímpida. Felizmente ainda tínhamos uma vela. Como o tempo estava inteiramente calmo, Wundenvald acendeu-a e com alguns companheiros passou habilmente a água, que em parte alguma parecia ter mais de um pé de profundidade. Entrementes, com fragmentos

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de uma cesta de mate, acendemos um logo numa pequena elevação da margem e o conservamos aceso a fim de que servisse de luz e os que estavam estudando o terreno pudessem voltar a reunir-se conosco. Era escuro, silencioso e ermo. Perto de nós uma espécie de sapo executava a sua música atroz. A pequenos intervalos soltava um lamentos0 queixunle, como o de um recém-nascido, ou melhor, de uma criança moribunda. Todo o pântano parecia cheio de lamentosas criancinhas. O som já me desagradara no Campo de São Leopoldo, no Rio Grande; mas era pavoroso para mim no escuro da noite e na situação de abandono em que me achava; lembrei-me da "Pfarrestochter von Taubenhain" de Burger. Ainda por cima um dos bichos rastejou até ao nosso fogo, lamentou-se profundamente e de novo desapareceu no pântano. Era muito cômico; rimos unanimemente e tanto mais quando um dos nossos caiu de uma pequena elevação dentro d'água, molhando-se todo. Tarde, porém, chegou a boa notícia de que fora encontrado um abrigo. Tiramos os sapatos e as meias e, como cegonhas, atravessamos a água; na frente ia uma luz. Andamos mais um quarto de légua, de pés descalços, e depois estávamos diante de uma alegre fogueira. E era pomposo o nosso abrigo! Um homem rico quisera ornar o Campo do Ambrósio com uma bonita casa e, para esse fim, escolhera um lugar elevado. A bem carpintejada armação da casa estava pronta e completa a coberta de telhas muito bonitas. As divisões interiores apenas indicadas, por meio de traves e postes. Enorme quantidade de tábuas e vigas preparadas e especialmente muito cavaco e outros detritos de madeira para a esplêndida fogueira que acabava de ser acesa no centro do bem coberto recinto. A passo de carga nos apossamos completamente do palácio de fadas. Em pouco tempo, com o material existente foram improvisados bancos em torno da fogueira; do lado do vento foram colocadas tábuas; o agradável recinto era seco e quente e unanimemente, confessamos que em toda a nossa campanha não tivemos um só momento tão alegre como o que

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passamos debaixo do telhado novo. No fogo crepitante assouse a carne; ainda tínhamos um bom saldo de nossas 32 libras e ainda trazíamos alguns bolos de milho. Até água potável havia. Ao irem da construção para as suas casas, os trabalhadores tinham deixado uma enorme cabaça; parecia que por nossa causa a tinham enchido de novo. Tudo se reunira para o sibarítico banquete noturno. Até o fogo exalava aroma agradável; entre os detritos de madeira, grandes aparas de sassafrás, que espalhavam um cheiro excelente. Diz-se que os Fugger de ~ u ~ s b u r quando ~ o ~ , hospedaram o Imperador Carlos V, lhe aqueceram o aposento com lenha de canela e sândalo. Mas com certeza não se sentiu o espanhol tão bem no solo alemão quanto nós na terra brasileira, nos limites extremos do Paraná. Com cavacos, ponchos e cobertas foi preparada a cama. Eu só tinha uma preocupação. A nossa fogueira devia ser vista a qualquer distância. Se a vissem, que pensariam de nós< Pensava na possibilidade de um ataque noturno, mas Wunderwald despersuadiu-me de quaisquer cuidados. Imaginava ele com toda a razão, que mesmo se alguém ousasse aproximar-se furtivamente para espionar-nos, ficaria contente se pudesse escapar sem ser visto. Ademais, catorze homens são, sem dúvida, uma força considerável. Onde é que se reuniria gente bastante para atacar catorze homens com vantagem4 Dormimos, pois, sem cuidados e maravilhosamente, até amanhecer, como ainda não dormira desde que deixei o meu quartinho na casa do senhor Aubé em Joinville. E que manhã a de 1" de setembro! Clara, fria e silenciosa. Em pouco o sol radiante enviava seus raios cálidos sobre os campos e nas matas próximas gritavam os papagaios desesperadamente. Vimos gado disperso no campo e - o que mais nos alegrou -à pequena distância, em direções diferentes, três casas, em parte bonitas, que ficavam no campo; em volta de cada uma delas floresciam viçosos pessegueiros. No campo as sombrias araucárias pareciam graves e recolhidas. Via-se, sen3 Antiga família de banqueiros de Augsburgo, que emprestava dinheiro a príncipes e reis, tendo tido o privilégio de cunhar moedas. - N do T)

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tia-se, com profunda piedade e entusiasmo que mesmo aqui, em várzeas tão distantes do grande no meridional da América do Sul, há um sopro de primavera e, mais belo ainda, um sopro de incipiente civiIização, de incipiente educação, e incipiente humanização. Pode ser que um europeu, no macio gozo da civilização e no meio de florido parque da Europa, sorria de mim, caso leia estas linhas, e não compreenda que me entusiasme com um quadro de ermas araucárias, em cujo primeiro plano há relva murcha, em cujo fundo apenas se observam três casinhas e árvores em flor! Pode não compreender, pode sorrir: mas naquela manhã, naquele campo, inspirou-me, no sentido cultural, um sopro de primavera, "contudo, devia haver primavera". E sentia-me como se um prezado companheiro de juventude, um querido amigo de Lubeck, uma natureza mais nobre do que milhares de outras, estivesse naquele momento ao meu lado e me apertasse a mão com a exclamaçáo, sua e minha: "Contudo, deve haver primavera!" Vi, então, cerca de um quarto de légua de nós, uma coisa singular. Não confiei em meus olhos e tomei um pequèno binóculo: na verdade, a passos tranqüilos e graves, vinham dois bois encangados, atrelados a um arado, que um homem guiava segundo as regras da arte; era a primeira vez, em minha vida americana de muitos anos, que via um arado trabalhando, embora tenha visto sinais do seu trabalho nas colônias alemãs. Um arado nos limites dos botocudos e bugres! Desci para onde estava o homem. Parece que só me observou quando o saudei; passou o arado a um negro, veio ao meu encontro e ofereceu-me a mão. Era Chico de Oliveira. Em pouco estávamos tão conhecidos que me ofereceu sua assistência. Mas só me podia oferecer um burro de carga para a continuação de minha viagem, pois seus animais ainda estavam metidos nas matas e baixadas. Já estava satisfeito, mesmo que tivesse de esperar todo o dia pelo único burro de carga. Podia vender-me também a ração de carne-seca para o regresso dos meus companheiros de mata. E com isso voltei para o nosso acampamento.

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Lá encontrei um visitante, um morador da vizinhança, interessado na construção daquela casa. Pedi-lhe desculpa par todos nós; com grande amabilidade, disse que não havia de que pedir desculpa, antes se regozijava com o feliz acaso que nos salvara de nossos apuros. Essa afabilidade tirou-me o acanhamento, sete de nossos mateiros precisavam de um dia de descanso e não podiam encontrar melhor local de repouso do que aquele onde estávamos. Pedi, pois, ao homem, mais vinte e quatro horas de estada no acampamento; e com a maior satisfação acedeu ele. Os homens tiveram um descanso homérico. Chegou pouco depois um segundo brasileiro. Que não pensaria ele de nosso aparecimento estranho< Era o escrivão Francisco Alves Pereira, igualmente empregado na estrada de rodagem do Paraná para Santa Catarina, homem digno e modesto, e lamento que, com sua boa educação, tenha de viver naquela região solitária. Pediu-me que o visitasse em sua casinha, o que fiz com muito prazer. Vi na casa u m inequívoco sinal de cultura: uma pequena coleção de livros e um verdadeiro lar doméstico. Quem teve a paciência de seguir-me através das matas solitárias da serra Geral não achará pueril a menção dessas circunstâncias aparentemente insignificantes. A força armada do Campo do Ambrósio está em casa do escrivão. Consta de um soldado, u m jovem negro de boa índole, cujo distintivo militar consiste num boné azul orlado de vermelho. O segundo, que formava a força da fronteira, desertou há pouco tempo; aborrecia-o a solidão do lugar e a falta de qualquer ocupação. Com muita bondade vendeu-me o escrivão parte de seu pequeno abastecimento de feijão e farinha de milho para a minha gente que, nos quatro dias de sua viagem de regresso para Joinville, na estrada de Três Barras, corria o perigo de não encontrar alimento. Tivemos a propósito dificuldade muito original. Trazia apenas notas de 20 mil-réis. Reuníramos todo o trocado para a nossa gente que, no seu regresso, onde encontrasse casa, poderia salvar-se de dificuldades. O bom escrivão

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não me podia trocar dinheiro e nem mesmo Chico de Oliveira; eu recebera do último todo o troco que tinha em casa. Isso, porém, não constituiu dificuldade. O escrivão deume o nome de uma senhora residente a seis léguas de distância, no caminho que eu devia seguir e com quem devia deixar o dinheiro a ele destinado. E caso também lá, em casa de dona Ana Teixeira, não houvesse troco, devia pedir-lhe o nome de uma pessoa na aldeia a nove léguas de distância, a freguesia de São José, a quem podia efetuar o pagamento. No distante Uruguai, nas Missões do Piratinim, encontrei um processo original de trocar dinheiro. Toma-se o patacão, a moeda de prata, partindo-o, com um cutelo, ou com o machado, em quatro pedaços iguais. Guardei, então, como curiosidade, um quarto dessas moedas de prata. Não é assim com o dinheiro de papel. Resolveu então a dificuldade a bolrn fides que o povo tem no viajante europeu bem educado; viaja-se um ou dois dias com a sua dívida e paga-a quando aparece oportunidade. Pelas 11 horas pode Wundenvald partir com a sua vanguarda, de regresso, via Três Barras. Separamo-nos como amigos. Deixávamos atrás de nós um pouco de vida, de privações e perigos em comum. Depois de uma excursão de muitos dias em picada, nunca mais esqueceremos um ao outro. Com cordial alegria e a mais viva simpatia pelo seu destino, sempre me recordarei do infatigável engenheiro de Joinville, que com a sua bússola e a sua faca de mato me serviu de guia fiel, abrindo caminho de 16 de agosto até setembro, através das selvas da serra Geral que, no norte da Província de Santa Catarina encerra, com seu antemuro oriental, a bacia do rio Paraná. Por trás da primeira colina coberta de araucárias desapareceram os robustos peregrinos. Entre os escuros pinheiros ressoou ainda a buzina de Wundenvald; no sul distante o caçador nórdico dizia-me o último adeus. Naquela ocasião entrara em casa de Chico de Oliveira um original vagamundo, um francês entroncado, de pele queimada, barba espessa e estranha aparência. Trazia para Chico uma carta de um compadre e uma carta dessas tem no Brasil enorme

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importância. Desejando-se alguma coisa de um homem, basta agarrar-se ao seu compadre para obter tudo. Entre os homens é o compadre o que é o mate entre as plantas - tudo. Pareceu-me conhecer o francês e ele evidentemente a mim. Era muito conhecido no Rio, mas para mim um enigma. Através de certas palestras tinha de considerá-lo uma espécie de flibusteiro ambulante da medicina que intrujava o povo nas regiões afastadas da inspeção médica e policial. Afirmava ter sido professor na escola do senhor Icopke em Petrópolis. Seus conhecimentos exatos sobre suínos e todos os animais imagináveis e a perspicácia com que tentou negociar em gado com o nosso hóspede deram-me a idéia de que podia ser negociante de gado e, respectivamente, boieiro. Disse-me meu criado que o francês era carpinteiro e que como tal trabalhara durante semanas, na casa do próprio senhor Aubé. Endiabrada gente esses polimorfos franceses, vagando nas províncias do Brasil e certamente em todo o mundo! Como classificá-los< Qual a sua forma zoológica original<Mamíferos, pois mamam o dinheiro no bolso dos ingênuos camponeses. Aves, mas sempre movediças, sempre aves de arribação. Como anfibios se desenvencilham de todas as dificuldades da vida. Têm, pois, alguma coisa de todas as classes de Cuvier; até radiários São muitas vezes e entre eles encontrei muitos cavaleiros da Legião de Honra. Era meu "spahi" um desses radiários. Estragou-me parte do dia e fiquei muito satisfeito quando, na manhã seguinte, partiu num cavalo pedido a Chico. Muito mais tranqüila a minha partida. Chegou o meu velho burro de carga; o meu criado arrumou meus trens e em modesto cortejo partimos, como Caleb e Josué, para a terra estranha. A preço algum pude obter um cavalo de sela de Chico de Oliveira. Aliás, eu só podia mostrar-lhe uma carta aberta do Presidente de Santa Catarina; não trazia recomendação de nenhum compadre; assim já me devia julgar feliz em não ter de carregar as minhas próprias coisas.

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Seguimos a estrada, rumo ao norte, e pouco depois ficavam atrás de nós a casa de Chico de Oliveira e o Campo do Ambrósio. Entretanto, a região conserva sempre a mesma fisionomia. Tal como no planalto de Santa Catarina, descortina-se, até aonde a vista alcança, um desordenado campo de relva, mesclado com muitas singenesias, paisagem erma, sem alegria, na qual ininterruptamente, ora aqui, ora ali, aparecem araucárias, como principais representantes da vegetação, embora atenuadas frequentemente por matas verdes. Em alguns pontos do horizonte, uma serra azul; os olhos aprazem-se com os vivos contornos dos montes distantes, pois o campo, que acaba de despertar do sono, a mata monótona e as profundas baixadas não oferecem variedade. Nas últimas baixadas, no máximo, alguma água estagnada. Debaixo da relva estremece o chão negro quando se pisa nele. São os chamados tremedais. Toda a sua formação e especialmente a rica ocorrência de terreno turfoso, inteiramente semelhante ao nórdico, lembram-me que aqui deve haver tufeiras escondidas e, embora não haja camadas sólidas, se pode cavar turfa, talvez de massas líquidas que possam secar. Não se encontram, todavia, naquelas baixadas ericn, ertrltern~~ir, ledrrrn e outras plantas formadoras de turfa. Por outro lado a floresta de araucárias oferece tão incomensurável provisão de combustível para os próximos séculos que a pesquisa da turfa seria mais interessante do que lucrativa. Formam salutar contraste com essas campinas ermas onde só se encontra algum gado, geralmente magro, errando em grupos - as frequentes pequenas baixadas, distantes apenas alguns passos da estrada. Uma dessas baixadas pouco mais tem que uma casinha, onde perambulam galinhas e porcos. Mas sempre, em torno da pobre morada, florescem viçosamente pomposos pessegueiros. Neste começo de primavera, quase sempre não há gente em casa. Foram buscar os gados, que ainda se acham metidos nas matas próximas, ou lavrar as roças distantes, protegidas pelo mato contra as inclemências do tempo ou ainda mais

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longe, a milhas de distância, buscar a "erva" divina, o mate, para vendê-lo com bom lucro: fazer mate - essa é a expressão profissional. Atravessamos, pois, vários distritos, conhecidos pelos nomes de Campo Comprido, Campo do Tabuado e Campinho. Pouca gente, quase ninguém. E mais aborrecido fiquei quando, numa floresta de araucárias, um cavaleiro, um grosseirão sem modos, se aproximou de mim e, cavalgando ao meu lado, me perquiriu de maneira insolente. Queria absolutamente saber que mercadorias eu tinha para vender. Essa gente ou semigente não pode compreender que se ande viajando sem fins mercantis, sem ser negociante ambulante. Queria a todo custo comprar minha sela rio-grandense e, afinal, vender-me o cavalo, um legítimo sendeiro. Recusei ambas as coisas secamente, e agitei no ar, como brincando, minha bengala de araçá, de respeitável calibre. Encontrei-me, momentaneamente, em situação desagradável. O sujeito parecia um bandido. Diante de mim a mata do Campo Largo, de légua e meia de diâmetro. Veio-me, então, o pensamento de que o flibusteiro podia adiantar-se por um atalho e esperar-me de emboscada. As minhas pistolas, que o criado levava, não estavam carregadas. Eu não queria trair nenhuma preocupação e prossegui tranqüilamente. Não tornei a encontrar o bruto. Deparou-se-me por outro lado algo muito mais bonito. A mata do Campo Largo chegava ao fim; o caminho horrivelmente mau. Aproximaram-se então várias pessoas a cavalo, em trajes coloridos, num cortejo festivo. Ponchos listrados, bonitos e não menos vistosos os ornatos de prata dos arreios. Pouco depois chegou a cavalo um jovem com duas senhoritas. Ambas as moreninhas4 tinham muito boa aparência, igualmente com vistosos vestidos coloridos que, ajustados nos seios e nos quadris, traíam lindas formas. Nenhum feio e longo vestido de montar Ihes escondia os pequenos pés, sobre os quais se via a orla de calças rendadas. Uma delas figura realmente bonita. O 4

Em portiiguês no original. - N. do T.

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redondo braço nu dirigia com segurança o cavalo através da floresta. Algo de excitado e ardente nas duas figuras meridionais. Pouco depois, acampado num verde da mata, um grupo semelhante ao anterior. 0 s animais desselados pastavam tranqüilamente nas proximidades: evidentemente tinham feito preparativos para um bivaque na floresta. Soube pouco depois a significação deste maravilhoso cortejo que, então, me pareceu encantador e profundamente poético. Os jovens a cavalo eram recém-casados, cuja união conjugal o padre de São José abençoara naquele dia; estavam a caminho de casa, a nove léguas de distância. Nove léguas, sete milhas alemãs, entre a igreja e o tálamo! E nenhum carro para o regresso, nem sequer um caminho transitável, sempre mata, sempre campo, sempre chão turfoso! Mas o jovem curitibano5 e seu cavalo são amigos íntimos e a jovem curitibana senta-se tão bem e à vontade no seu corcel como a Aniazona de ICiss diante do Museu de Berlim. Sem cuidado se pode deixá-las montar na tarde de primavera, na noite de primavera; elas sabem achar o caminho e o sangue ardente da juventude certamente não se resfria na estrada que leva a donzela a ser jovem senhora e nova dona de casa, embora entre muitas palpitações do coração. Palpitações de medo ou de impaciência< Não sei! Noivss na mata, Flores de pessegueiros no campo e um ardente céu azul da tarde sobre mim! E conclui a excursão a pé através de campos e florestas até a estância de dona Ana Teixeira, onde os seus filhos adultos me receberam hospitaleiramente. O mais velho deu-me segura esperança de poder alugar-me três animais no dia seguinte. Na verdade, ter-me-ia sido um tanto penoso continuar peregrinando a pé. Desde o dia 16 de agosto, andava a pé, sempre em veredas ínvias ou péssimas. De pés descalços vadeara rios e pântanos, dormira no mato e ao relento, na chuva e no chão úmido e perdera o hábito da cama; além disso fora 5 Evidenteniente no sentido de paranaense. - N. do T.

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minha alimentação ora muito escassa, ora tomada irregularmente. Devia decerto alegrar-me de poder continuar a viagem a cavalo. Com razão se admirara o caçador de antas de Tijucamas nenhum de nós tivesse adoecido. Sou certamente duro como o Ferro, contudo a gente se alegra quando de novo consegue comida, um teto enxuto, uma cama suportável e um cavalo sofrível. E tudo isso, em parte, devia acontecer na estância de dona Ana Teixeira. Também isso não sem uma silenciosa zanga de minha parte. Dona Ana não estava em casa: achava-se com um vizinho, de cuja casa saíra um dos cortejos nupciais e não voltou de noite. Dirigia a estância o Filho mais velho, um homem comprido, magro, de vinte e cinco anos. Na manhã seguinte mandou buscar três cavalos, que estavam abaixo de toda descrição. Pelo uso deles até Curitiba - seis léguas (4 1/2 milhas geográficas) - exigiu e recebeu de mim 30 mil réis (24 táleres prussianos) com a desculpa de que tinha de mandar comigo um negro para trazer de volta os animais. Muito me aborreceu a conduta do jovem. Pelo passaporte viu que eu viajava com o conhecimento e por encargo do governo de seu país; pelas minhas narrativas sabia que nas últimas semanas eu passara por exaustivas fadigas; e queria explorar minha aflitiva situação para ganhar dinheiro. Não tugi, nem mugi. Mas quando, ao ser selado, caiu um dos cavalos, perdi um pouco a paciência, porém dissimulei o meu agastamento. Com a fisionomia mais serena do mundo, disse ao homem: - Senhor Teixeira, quero pedir-lhe um favor. Guarde a onça de ouro que lhe paguei e também os cavalos e as minhas coisas. O dia está magnífico e posso muito bem ir a pé com o meu criado até Curitiba, de onde, depois, mandarei buscar as minhas coisas que ficam com o senhor. O homem mordeu os lábios e pediu desculpas. Afinal selou o seu próprio cavalo para levar-me com segurança a Curitiba. E assim partimos, afinal.

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Tinha meu alto companheiro aspecto original. Um poncho verde-amarelo lhe esvoaçava sobre os ombros e trazia de reserva, sobre a sela, um outro vermelho. Um pequeno chapéu de palha lhe caía, inclinado, sobre a cabeça. A sela, os estribos e a brida cobertos de prata; uma preciosa manta bordada cobria o animal e dava ao cavaleiro certo aspecto militar em tempo de paz. Parecia-se com um guarda de honra e não com um homem que me explorava. Depois de duas léguas de marcha, caiu o cavalo de carga. A minha pequena bagagem pesava apenas 30 libras. Tive de dar uma gargalhada e fiz a observação de que agora podia contar ao Presidente de curitiba6 uma bonita anedota. Como supusesse, pelo que eu disse, que ia contar a história do aluguel dos cavalos, o homem ficou furioso e tanto mais furioso porquanto eu dizia, rindo, que certamente contaria a coisa em Curitiba. Aproximou-se então uma tropa. Teixeira conhecia o tropeiro e pediu para meu uso dois fortes burros em substituição de seus rocins. Então avançamos mais depressa. Já na paróquia de São José a região se tornou muito mais animada. Marchava no campo maior número de burros carregados de mate e outras coisas e mais frequentemente se cruzavam os caminhos. Esses caminhos, embora sejam estradas reais, de modo algum São superfícies planas e ininterruptas. São antes oito a dezesseis veredas que correm uma ao lado da outra ou se cortam e cujo paralelismo e cruzamento oblíquo sempre me lembraram a rede de trilhos de uma grande estação ferroviária. Assim como os pares de trilhos se separam, partem as veredas que correm juntas, umas para o leste, outras para o oeste. Para o leste segue o importante caminho para Morretes e dali para o porto marítimo de Paranaguá, contornando Curitiba, situada ao norte; para o oeste vai um caminho para a região de Príncipe, Lapa e Rio Negro, partes meridionais da Província do Paraná. 6 O autor refere-se ao Presidente da Província do Paraná. - N. do T.

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São José é uma bonita freguesia, uma aldeia com casas muito regulares e vistosa igreja, que tem de prover com suas bênçãos a parte sudeste da Província até a distância de quinze a vinte léguas. E, sem dúvida, uma enorme paróquia, mas de população muito escassa e quase não se pode falar da bênção da igreja e do aperfeiçoamento moral por seu intermédio. Quantas vezes os jovens recém-casados de ontem, morando a nove léguas de São José, poderão vir à igreja em sua vida de casadost Nem sequer uma vez por causa de cada filho que lhes nasça. Talvez voltem depois dc anos com três ou quatro filhos de uma vez para batizá-los por atacado; e talvez, então, somente porque o marido tenha de conduzir um rebanho de bois para Curitiba ou grande quantidade de cestas de mate para Morretes ou Paranaguá. No Campo do Ambrósio a situação é pouco melhor do que ao sudeste de Lajes, no planalto de Santa Catarina. Tão distante quanto a igreja é a escola. Não admira, pois, que se tope com peculiar ignorância. Muita coisa deixa o europeu atônito. Precisamente o meu companheiro Teixeira dava uma prova frisante do afastamento da igreja e da escola, Quantas vezes me mostrou um lugar, uma casa, um matagal onde alguém fora atacado e assassinado. Muitas vezes o assassinado era um "belo moçon7. Conversando com ele, mencionei a Europa. - Onde fica a Europa< - perguntou. A pergunta embaraçou-me. Apontei com a mão para o nordeste. E disse: "Para aquele lado, a mais de duas ou três mil léguas de distância". - Pode-se ir para lá a cavalot - Não! Pode-se viajar a cavalo, no máximo, daqui até Antonina ou Paranaguá e dali se vai por vapor para o Rio de Janeiro, de onde entáo se pode viajar num grande navio para a Europa. O pomposo cavaleiro calou-se por muito tempo, como se quisesse recordar-se se já alguma vez ouvira falar na Europa. -

7 Em português no original. - N. do T., frequentemente o assassino é que o cra e, aos olhos do meu companheiro, o homicídio não parecia ao "belo moço" grande dano.

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Cavalgávamos em silêncio, um ao lado do outro. Eu estava muito bem humorado. Só até São José penetrara a notícia da Europa. Ainda ninguém me tinha perguntado: onde fica a Europa< Depois de São José o caminho é serra abaixo e chega-se a duas compridas pontes de madeira sobre uma depressão pantanosa e um rio algo profundo, chamado rio Grande, por ser o maior da circunvizinhança. A mais algumas léguas dali aumentava o número das estâncias, oferecia a região muita lavoura e pouco depois, de um outeiro, vimos diante de nós Curitiba, a capital da Província, numa grinalda de pessegueiros em flor. Descemos para o aprazível lugar onde, em casa do alemão Teodoro Gaspar, encontrei agradável alojamento e pude descansar comodamente de minha exaustiva excursão pela floresta.

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QUARTO Estada e sucessos n a cidade d e Curitiba. - Partida para Antonina e Paranaguá. -Estada e m Antonina. - Uma lápide para dois nobres mortos. Esteve por muito tempo incluído na Província de São Paulo o belo complexo de terras da margem esquerda do rio Paraná, que começa quase a 20" de latitude sul e, com limites ainda não exatamente determinados, se apóia, além do 26" e mesmo do 27" de latitude sul, no Uruguai e no planalto de Santa Catarina e, do lado oriental, se desenvolve numa bela costa ao longo do Oceano Atlântico, desde perto do trópico meridional até ao 26" de latitude sul. A Província de São Paulo compreendia 15 a 16 mil milhas geográficas quadradas e cerca de 600.000 habitantes. Consideráveis reinos europeus não tinham tão extensa área, mas países menores do Velho Mundo tinham mais habitantes. Por longo tempo ficou indivisa esta colossal Província. Recentemente, recebeu melhor cultura a parte setentrional e especialmente o nordeste, ao passo que a parte meridional, afastada da benéfica influência da capital da Província, ficou numa apagada letargia, embora tenham sido feitos progressos materiais. A enorme distância da capital, a dificuldade da administração e dos processos judiciais e provavelmente também a necessidade de quebrar o poder de certos partidos políticos

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descomedidos levaram, há alguns anos, a uma proposta de separação da parte nordeste do sudoeste da Província e que foi aprovada pelas câmaras legislativas. A antiga quinta comarca de São Paulo, da qual se destaca Curitiba como ponto central e lugar principal, foi elevada à categoria de Província, em pé de igualdade com as demais circunscrições e, como tal, recebeu o seu presidente com a devida dotação administrativa e o direito de futuramente eleger os seus próprios representantes ao Senado e à Câmara dos Deputados do Império. A nova província foi chamada Província do Paraná. De fato o grande rio Paraná é uma das características principais da terra. A maior parte do curso do rio e de seus afluentes da margem esquerda pertence à Província. Semelhantemente ao Uruguai, o rio Grande, principal afluente oriental do Paraná, nasce, não distante do mar, ao norte do vale do Paraíba. No princípio de seu curso ocidental, entre 20" e 21" de latitude sul, este rio Grande sai de seu berço, a Província de Minas Gerais, e forma no seu longo curso, a oeste, sudoeste e sul a orla de São Paulo e depois a da Província do Paraná. Precisamente dessa Província recebe o Paraná grandes afluentes: o Paranapanema, o Tibagi, o Ivaí, o Iguaçu, rios cujos esgalhamentos sulcam largamente a antiga comarca de São Paulo. Campos e matas são os dois perfis principais do solo e gado e mate os principais. Mas a Província não se nega a quase nenhuma produção que se procure obter com uma agricultura bem ordenada e que se tente mais tarde, quando a população for maior. Alguns portos ligam a Província com o tráfego marítimo. Paranaguá é o mais importante deles e pelo qual resolvi fazer a minha viagem para São Paulo. A Província tem um magnífico e grande território, mas apenas duas cidades, cinco aldeias e dezenove paróquias. O número de habitantes pode ser estimado em 80.000. Esta Província tem um grande rio fronteiriço, mas a sua utilização está ainda na infância e os seus afluentes, por causa dos muitos rápidos e cachoeiras, necessitam de muito trabalho para que se tornem navegáveis.

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Possui ela também uma bela zona marítima, mas nenhuma boa estrada conduz das terras baixas, sobre a serra da costa, para Curitiba; por ora, só burros carregam laboriosamente as cargas pela má estrada via Morretes ou Antonina para Paranaguá e vice-versa. Na verdade, creio que não conheço outro distrito do sul do Brasil que com razão exija tanta indulgência e prometa tão brilhante futuro, com o aumento da populaçáo, como a Província do Paraná, que apenas acaba de nascer. Com plena intenção de usar dessa indulgência sempre como norma, chegara eu a cidade capital de Curitiba. Por isso talvez é que me surpreendeu muito agradavelmente a cidade de uns 5.000 habitantes. Naturalmente nela nada se encontra de grande ou grandioso. Em tudo, nas ruas e casas e mesmo nos homens, se reconhece uma dupla natureza. Uma da velha Curitiba, quando ainda não era a capital de uma Província, mas um modesto lugar central, a quinta comarca de São Paulo. Aí se vêem ruas não calçadas, casas de madeira e toda espécie de desmazelo, cantos sujos e pragas desordenadas, ao lado das quais há muita coisa em ruína e não se pode deixar de reconhecer evidente decadência e atraso. Na segunda natureza, ao contrário, expressa-se decisiva regeneração, embora não apareça nenhum grandioso estilo Renascença. Desde a chegada do Presidente e do pessoal administrativo, Curitiba tem o seu palácio. Naturalmente é um simples rés-do-chão e tem aparência despretensiosa, modesta, mas é bonito e asseado. Para a força militar foi construído um quartel-general, que é visto de longe e produz um belo efeito. Como prova de que em tempo de paz essa força não abandona os negócios de Marte, edificou-se uma cadeia, da qual o quartel-general fez um quartel geral para os patifes. São em grande número os moradores da cadeia, que guarda como sociedade fechada, para julgamento e castigo, muitos maus elementos, cujos crimes foram cometidos antes da formação da nova Província e que no regime anterior tinham ficado impunes.

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Além disso, foram construídos a Câmara de Deputados provincial, o Tesouro e muitas casas; em resumo, Curitiba, a velha vila enfezada, marcha com energia para um novo desenvolvimento. E que devo dizer dos habitantes
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Chegou o Presidente com a família e recebeu a saudação do costume e depois Foram dados os vivas usuais à festa do dia. Em seguida um velho sacerdote leu aos jovens, que aguardavam impacientemente o começo do baile, um longo discurso sobre o valor e grande significação da independência - discurso a que se seguiram sonetos de dois fogosos poetas. Eu não podia aquilatar o valor dessas poesias, mas em milhares de casos o soneto tem a especial vantagem de só ter catorze linhas. Mesmo em muitos sonetos de Petrarca muito apreciei essa boa qualidade. Vieram depois os alegres sussurros, cochichos, sorrisos e carícias do baile! Íris espargia as suas belas cores através das salas; segundo o compasso da música, que poderia ter sido um pouco melhor, esvoaçavam elas graciosamente como num caleidoscópio. Estavam nos salões do baile umas cem damas nas mais elegantes "toilettes". Entre elas nenhuma beleza propriamente dita; muitas bonitas e todas, naturalmente, amáveis! As amáveis curitibanas que se achavam nos salões eram quase todas senhoras casadas. Senhoritas havia muito poucas. Casam-se logo que são núbeis, antes de deixarem a escola, e acabam de crescer com os seus filhos. Estavam presentes vários exemplares dessas senhoras jovens, que ainda náo haviam abandonado completamente a infância. Uma senhora de quinze anos parecia um lírio murcho. Parece-me que esse uso do casamento infantil denuncia uma profunda desmoralização. Com alegria eu pensava nos jovens casais da mata do Campo Largo: parecia que eles não podiam deixar de casar-se; os do salão, como se tivessem sido obrigados a casar. Pelas 2 horas depois de meia-noite foi servida uma bela ceia. O baile durou até pelas 4 horas da manhã. A presença do Presidente Liberato de Matos e a amabilidade do educado homem contribuíram particularmente para a animação da festa. A sua senhora era uma figura muito elegante e de muita vivacidade. Ambos são da Bahia, onde Liberato de Matos foi chefe de polícia.

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Entre os cavalheiros presentes, todos aqueles com quem conversei eram homens polidos e bem educados; deles só posso falar bem e muito bem. E se me pareceu que em alguns homens e mesmo senhoras a roupa Festiva não assentava bem e que não estavam ininterruptamente acordes com as melhores formas e maneiras sociais, não devo, entretanto, ocultar que o conjunto me surpreendeu extraordinariamente. Esta é não só a confissão do hóspede amavelmente convidado para a festa como também a do viajante que opina com imparcialidade. Ao lado deste belo desenvolvimento da vida social entre os filhos do país, tive também em Curitiba o gosto de ver muito bem representado o nosso bom elemento alemão. Desde anos tem-se movido também para a Província do Paraná uma pequena corrente humana alemã, que penetrou até Curitiba e mais para cima. Quando começava a colônia de São Leopoldo e quase ao mesmo tempo se formava a colônia de São Pedro de Alcântara no Maruim, em Santa Catarina, vieram também numerósos alemães para Curitiba e Foram instalados pelo governo local ao sul desta cidade, até ao Rio Negro. O ponto central dessa peculiar colonização alemã é a localidade da Lapa, a umas onze léguas ao sudoeste de Curitiba; devem cultivar o campo, criar gado e negociar burros uns quinhentos a seiscentos alemães, com o que chegaram a uma abastada situação. Há muitos outros na própria Curitiba e em pequenas plantações nos arredores, no campo, no Rocio, de onde trazem para a capital os produtos da terra. Calculo que são em número de algumas centenas; conheci alguns na cidade e mesmo nos arredores. Nos últimos tempos muitos alemães têm subido, pelo caminho de Três Barras, de Dona Francisca para Curitiba; pode mesmo dizer-se que a quarta parte das pessoas imigradas para Dona Francisca foi para Curitiba e ali trabalhou. Tem-se acusado as más condições da colônia de Dona Francisca, mas sem razão.

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A enorme extensão de terras, a facilidade da lucrativa criação de gado, o crescimento espontâneo do valioso mate na floresta -são as causas de que tenha sido diminuta a laboriosidade na Província do Paraná e em primeiro lugar na sua parte sudeste, onde é mais lucrativa e onde moderados esforços produzem belos resultados. Em Curitiba o salário é quase o dobro do de Dona Francisca. Jovens que, ao chegarem da Europa, pelas condições difíceis ainda existentes nas colônias alemãs, não podem logo comprar terra, por falta de dinheiro, ou querem primeiro adquirir alguma experiência trabalhando como jornaleiros, têm escolhido, em grande número, a cidade de Curitiba como seu ponto provisório de trabalho. Ali ganharam algum dinheiro e, o que é digno de nota, ali adquiriram alguns conhecimentos da língua e condições do país e depois, com dinheiro e experiência, regressaram a Dona Francisca para lá estabelecer-se. Sem embargo, alguns, e aliás por vantagens financeiras apenas existentes na aparência, se sentem chamados e encadeados pelos encantos da nova pátria alemã nas terras baixas de Santa Catarina; involuntariamente me acode aquele: Nescio qrrn nntrile sol~irrrdrrlccdii~ecnytos dircit et irnrriernores riori silrir esse srri; devendo-se entender aqui nntnlc solriirr como o solo no qual e do qual o nosso coração, a nossa alma, corpo e vida crescem e alegremente deitam galhos e flores, uma vida entre alemães, com língua alemã e costumes alemães. A mim mesmo a vida e maneiras da colônia denominada em homenagem à gentil irmã do Imperador de origem alemã, de costumes e educação simpáticos aos alemães, me atraíram mais e me prenderam por mais tempo do que qualquer outro ponto alemão. A atividade dos alemães no Paraná como simples jornaleiros de passagem ou como colonos estabelecidos tem despertado muita atenção nos últimos anos. Colonização alemã, trabalho alemão, cultura alemã! Esse é o "negro-vermelho-ouro" que, entre aqueles que sob a bandeira não mais amada na Alemanha não podem ali ganhar o pão, serve de manípulo no longínquo Paraná - colonização, trabalho, cultura dos alemães! Todos

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os filhos bem intencionados da nova Província desejam ardentemente que eles venham para cá! Está à frente deles, como fervente partidário da obra de aniquilação contra a mata e a barbaria o próprio presidente Liberato de Matos. Para transformar esse desejo, essa viva aspiração em realidade, está sendo feito, precisamente agora, um trabalho importante. Um belo distrito da melhor terra lavradia ao nordeste da Província, apenas a um dia de viagem do porto de Antonina e Paranaguá, está sendo medido sob a direção do engenheiro alemão Capitão von Ochcz e preparado para receber imigrantes alemães. A região recebeu o nome de um rio que a rega, o Araçungi ou, abreviadamente Açungi e desperta muito interesse na Província. Tanto mais vivo deve ser o nosso interesse pela colônia a ser fundada, Araçungi ou Açungi, porquanto ela não é especulação privada de flibusteiros usurários, como tem aparecido várias, com belos nomes, visando apenas, em seu próprio interesse, o suor dos alemães. A colônia do Açungi é antes uma fundação do governo, uma colônia de administração provincial. Se ela conseguir achar para a nova instalação um diretor capaz, auguro à colônia um brilhante futuro. Sobrepujará com facilidade a débil instalação privada do suíço Perret-Gentil, que fica na costa, não distante de Araçungi. O referido, decerto um honrado helvécio, não pôde, no comércio do Rio de Janeiro, conseguir uma existência feliz. Talvez a instalação de sua colônia fosse apenas um pequeno "coriy de désesl~oir"e dispusesse de limitados recursos. Mas uma colônia deve começar com saúde e alegria, devendo estar à sua frente um homem que receba os imigrantes com saúde e alegria. Os que vêm de longe, que fizeram uma enorme separação entre si e a pátria, ferida que dificilmente sara, dificilmente cicatriza, devem, logo ao chegar, encontrar um homem de coração e de ação, que os aconselhe e ajude, e não gente que na tempestade da vida naufragou, naufrágio de que eles próprios são culpados, porque não sustentaram o leme com força, porque não olharam com confiança para as estrelas e para o céu.

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Como estou falando do esforço de colonização no Paraná, praticaria uma traição se não mencionasse uma colônia empreendida pelo meu muito apreciado e particularmente querido colega dr. Faivre. O distinto medico e clínico do Rio de Janeiro foi ferido por uma dor moral, talvez a dor mais cruel que possa atingir um homem na vida. Parecia que encontrava a sua felicidade em fazer a felicidade dos outros. Sob os auspícios do governo e a graciosa proteção da Imperatriz Dona Teresa fundou ele uma colônia no distante "Oeste", como são chamados os distritos provinciais logo ao oeste de Curitiba, nas solitárias margens do Ivaí. Quase não se encontra outra colônia mais solitária, quase não se pode imaginar uma instalação mais artificial. Talvez seja uma imagem da dor do meu honrado e espirituoso amigo. Não posso julgar a colônia Dona Teresa; dela me deu noticias, oralmente, o presidente da Província; creio que ninguém conhece exatamente a Tomi do Ivaí. Há muito pouco tempo os citas sauromáticos, os bugres, penetraram naquela região, assassinaram algumas pessoas e arrastaram consigo uma senhora e uma criança. Para lá foi enviada uma força armada e o futuro e a experiência dirão se com êxito. Contudo, momentaneamente, o dr. Faivre está inconsoláve18. Um cacique daquela região, um daqueles patifes que, conforme lhes convenha, ora são mansos, ora bravos, queria, segundo se supõe, rastejar o inimigo e raptor, resgatar os raptados e castigar os bandidos. Talvez um desses caciques saiba mais, sobre o assunto, do que supomos nós, homens civilizados. Talvez já saiba onde está escondida a mulher, talvez já a tenha em seu poder, se não foi ele próprio quem a raptou e apenas quer aparentar trabalho para elevar o seu mérito, a sua recompensa. Ocorrem ainda com freqüência essas razias, esses raptos, porque a Província do Paraná apenas em alguns distritos está incorporada à humanidade e aos bons costumes. Eu próprio vi em Curitiba duas obras do laboratório da brutalidade. Mos8 Infelizmente, quando eu escrevia em Curitiba a nota acima, o meu nobre amigo já tinha morrido. Faleceu em 30 de agosto. Só no Rio soube de sua morte. - N. do A.

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traram-me dois rapazes botocudos recém-chegados. Num conflito com os selvagens coroados os botocudos tiveram de abandonar os jovens ao inimigo. Os dois companheiros nus Foram muito mal tratados. Quando eles queriam aproximar-se da aquecedora fogueira dos seus vencedores, eram empurrados com tiçóes ardentes aplicados à barriga; numerosas cicatrizes denunciavam o efeito do fogo na barriga dos prisioneiros. Em novo conflito de ambas as tribos selvagens os jovens foram reconquistados. Os vencedores botocudos cederam-nos a um homem por uma bagatela, creio que um pano de algodão e uma faca; afinal, chegaram eles a Curitiba: rapazes pardo-amarelados, com muito tecido celular, idióticos, com "habitus" mongólicos, irmãos degenerados dos degenerados chineses, fantasmas da floresta, espectros de homens . De bom grado os deixo e volto a coisas mais amáveis, aos costumes, à civilização, que à vista desses sombrios quadros de brutalidade, são dobradamente humanas para o viajante. Logo ao chegar a Curitiba, fui saudado muito amavelmente pelo Dr. Schmidt, de Brunswicl<; eu já o conhecera no Rio de Janeiro. Quanto melhor nos conhecemos em Curitiba, tanto mais o estimei. Sadio, jovem e vivo, exerce ele a sua arte hipocrática com todo o zelo; goza, em geral, da estima e confiança dos curitibanos. Naturalmente, a sua natureza, mesclada dos melhores elementos, aspira a deixar as condições da Província do Paraná! O Dr. Schmidt formou-se em medicina em Heidelberg, Berlim e Paris e desenvolveu-se na plenitude humana ao sopro salutar da arte que tão variadamente lhe ofereciam as referidas cidades. Antes de partir para o Brasil viajou ele repetidamente pela Itália e viveu algum tempo em Palermo. Que admira, pois, que o meu nobre amigo, assim como um grego banido deseja voltar para a sua Atenas, aspire a regressar às felizes terras da Europa, as únicas onde a nobre cultura e o sentido artístico em marcha desimpedida passaram de nação para nação e em memória de cada passo enfileiraram monumento ao lado de monumento.

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Senti-me inteiramente em casa no círculo familiar do senhor Stellfeld, igualmente de Brunswicl<, um farmacêutico digno e muito bem educado, que combateu como oficial na guerra do Schleswig-Holstein e depois da decadência das condições locais se dirigiu para o Brasil. Casado com uma jovem senhora de Holstein, Stellfeld, em cuja casa vive também uma irmã mais nova, conservou-se fiel à boa lealdade nórdica. Eu gostava de estar naquela casa e sempre serei grato pela amabilidade e atenção desartificiosa de tão bem intencionada gente. Vivi, pois, em Curitiba muitos momentos amáveis e agradáveis em que a gente pensa com prazer ao recordar uma viagem. alguns pequenos aborrecimentos, estorvos e dificuldades com que as vezes topei não diminuem o que foi agradável, antes o tornam mais picante. Sofri uma dessas contrariedades, por exemplo, quando uma manhã numa repartição, na minha segunda visita para tratar do negócio que tinha em andamento, o funcionário ainda não me atendeu, ao passo que o Presidente, de quem queria despedir-me, já estava recebendo. Em 7 de setembro houve o baile, no dia 8 houve festa religiosa, procissão e espetáculo no teatro e assim não podiam os senhores funcionários no dia seguinte estar nos seus postos nas diferentes seções. O homem marcara hora especialmente para mim. "Ele faz sempre assim" -disse-me o contínuo da reparti áo "nunca se pode confiar nas suas promessas!" Paciência! E a perda de tempo é um verdadeiro cancro do funcionalismo brasileiro, um aforisma da economia política, sobre cuja confirmação se poderiam escrever longos comentários. Infelizmente muito tempo me tomaram a minha excursão pela picada de Joinville, através da serra Geral, e minha extensa viagem no Rio Grande do Sul. No fim de setembro ou, o mais tardar, no principio de outubro devia estar no Rio de Janeiro; lá me chamavam negócios importantes. Tinha o propósito de viajar de Curitiba para Lapa e de lá, em excursão para o norte e o nordeste, seguir para São Paulo

S

9 Em português no original. - N.do T.

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passando por Palmeiras, Ponta Grossa e Castro. Embora aquelas regiões não me pudessem apresentar muita coisa inteiramente nova, pois oferecem campos, matas de araucárias, mate, criação de gado e os primeiros princípios de uma civilização incipiente, contudo gostaria de fazer a longa expedição de umas cem milhas até a cidade de São Paulo, para ver o quadro completo do "Oeste do Paraná". No entanto isso me tomaria muito tempo; na melhor hipótese, para bem ver e observar, precisava para a expedição, três a quatro semanas de tempo. Na pior hipótese ou mesmo na hipótese muito provável, no caso de encontrar qualquer estorvo no caminho, no que pouco ou só com muita lentidão me ajudaria a indiferença dos criadores de gado e habitantes dos sertões, gastaria seis a oito semanas na viagem ao Oeste do Paraná. Tive, pois, de decidir-me por um caminho mais curto, resolvendo fazer a curta viagem marítima de Paranaguá a Santos. Tornou-se impossível mesmo a pequena, mas decerto interessantíssima excursão a uma caverna, para cuja visita e regresso são necessários três dias. Já estava tudo combinado e preparado para um apressado passeio à caverna, quando fui retardado pela repartição acima mencionada. Mal foi o meu negócio despachado quando chegou por um paquete o correio esperado do Rio e eu, para poder seguir de Paranaguá para Santos no mesmo navio, tive de preparar a minha partida, em vez de fazer a excursão à gruta. Até o notável eclipse solar de 7 de setembro me escapou. Precisamente no momento mais importante o céu se cobriu de nuvens. Ficou tão escuro que no meu quarto normalmente tão claro eu não podia mais escrever e queria acender a luz. Em alguns lugares livres do céu foram vistas estrelas. Quando o sol de novo ficou livre das nuvens, estava oculta somente cerca da terça parte do disco solar, não oferecendo grande interesse. Quase não preciso dizer que também o 8 de setembro foi festejado em Curitiba em geral como o importante dia da Virgem Maria. A praça da igreja esteve particularmente inte-

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ressante nesse dia. Constitui a praça uma grande campina verde de forma quadrada, emoldurada de casas térreas. No seu centro se acha a igreja matriz da cidade. Precisamente se celebrava a missa com música; a igreja estava cheia de gente, de modo que apenas se podia olhar para dentro. Parece ter chegado muita gente dos arredores. A multidão que estava na praça verde da igreja, na maioria em cavalos ricamente ajaezados, dava uma bonita impressão, embora os cavalos em geral fossem medíocres ou maus. De um modo geral, todos os animais da Província, sejam bois ou cavalos, são medíocres e maus. A raça é degenerada e fraca e o tratamento do gado muito imperfeito. No verão correm as animais no campo e sustentam-se com o grosseiro capim. No chamado inverno tudo fica queimado e destruído polo geada noturna e os animais caem numa magreza esquelética. Causa dó ver então os bois e cavalos. Arrastam-se, na maioria, entre as matas e moitas e aí vivem dos renovos de bambu. O homem não os socorre: estábulos e forragem são coisas desconhecidas aqui; ninguém quer ter incômodos, ninguém quer trabalhar; preferem deixar o gado morrer. Disso decorrem estranhos episódios. Em Curitiba, capital de uma Província célebre pela sua criação de gado, sempre encontrei manteiga velha e mesmo rançosa, aliás recebida da Inglaterra. O queijo que vi era da Holanda. O leite às vezes é um artigo caro; às vezes não se encontram ovos e mesmo a carne é cara. Querendo-se alugar ou comprar um cavalo, depende de felizes circunstâncias se se chega à compra ou ao aluguel, pois entre uma coisa e a outra a vantagem é desprezível. Além disso, circula muito dinheiro falso e é preciso que em toda parte a gente se defenda contra embustes. A todo momento me aborrecia a falta de seriedade num homem, numa firma, numa transação. Em todos os cantos e recantos se vê que falta à gente a concorrência do esforço, do trabalho, do procedimento rigorosamente correto. Vivem muito bem, são arrogantes e pensam que com a insinceridade ainda viverão melhor.

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Em tal situação, uma certa arrogância afeta todas as condições de vida. Notadamente me parece ainda muito considerável a flutuação de certos partidos políticos. Com a separação da Província do Paraná, não ficou com a velha provínciamãe o pecado original de São Paulo, cujo desenfreamento há anos o arrastou a uma insurreição entre personalidades consideradas. Ela continua fermentando no Paraná. A ligeireza com que os curitibanos correm pelo campo em seus corcéis pode-se aplicar frequentemente ao seu procedimento político. As eleições para o Senado e para a Câmara dos Deputados são apaixonadíssimas, têm dado ocasião a conflitos sangrentos. Em São José, uma simples aldeia, houve há poucos anos um conflito político, no qual, dentro e perto da igreja, foram assassinadas dez pessoas e, ao intervir a força armada legal, foram feridos mais vinte homens. Esse estado de coisas deve ser combatido com toda a seriedade, toda a circunspecçáo, toda a energia. São um desabono para a grande Província meridional do Império. A inconstante vida a cavalo - denominei-a, certamente com razão, vida de centauro -a eterna matança de gado e salga de carne crua, a caça às onças, antas e emas tendem a impedir sentimentos e costumes delicados; e o rio-grandense, o habitante dos campos do Paraná combatem às vezes, com mais êxito os animais selvagens do que as suas próprias paixões, a cuja vista, a cuja manifestação estremece, horrorizado, o europeu criado entre uma humanidade mais amena e suspira, notadamente quando se trata de senhora educada pela Europa, pelo, a muitos respeitos, desmoronado Partenon, pela Acrópole de todo o gênero humano. Em muitos aspectos não são verdadeiras, mormente para quem conheceu pessoalmente as condições do sul, as linhas que encontrei no álbum de uma jovem senhora alemã de perfeita educação quando com o seu marido, um oficial empregado no Rio Grande, devia partir do Rio de Janeiro para o Sul do Império: Wiilst drr irnclr deirr Sodeir zielieir, Kiird, Iriss Goctlre, Byrorr, Trisso! Sclrnir, tvie drrrcli die Pririipns flielrerr \Vilde Gniiclios rrrir derrr Lnço!

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Urizcri Irctzend urrd das Eirrli! Sclrlaclrrcri, Sclrlaclrtcrr ist dlis Tlrciriri Voir dcs Partirri Ccstntlcir Bis 211 Dltirrc~rCordillcrc~i! \i'follte Gott, iclr korrrrt' circlr IrCrrtc Dic Laylatn-Torir c~crtr~clrrcrr Uird criclr Ircirrrtr~iirtssc~~dc~r, Lcrrtc!

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E contudo há algo de nobre e grandioso na luta da civilização contra essas cenas gauchescas, contra esses quadros de emas, essas caçadas de onças. Por mais lentamente que ande o boi à frente do arado, ele alcança, afinal, os Fugitivos, avantaja-se a eles e por fim os domina. Por mais que, cem vezes, os pioneiros e campeões da civilização vindos da Europa se Eatiguem e até desertem para o acampamento inimigo, a peleja já está decidida, a vitória já foi definitivamente alcançada. Até no longínquo sudoeste penetram os cabeças louras nórdicos, os sucessores dos anglo-saxãos, como estes fortes homens do futuro - não, homens do presente - penetram em toda parte em cortejo triunEal. Assim haja por bem a Providência! Ela nunca permitiu que as patas destruidoras do cavalo mongol invasor esmagasse as nobres flores do helenismo, o fruto maduro e santificante do cristianismo e guiará, protegerá e abençoará o Evangelho e a florescência da arte sob o céu sul-americano! Eu fixara a minha partida de Curitiba para a costa para o dia 10 de setembro; sim, eu devia partir naquele dia, se quisesse alcançar o vapor que de Paranaguá seguia para o Rio, via Santos. O meu hóspede Teodoro Gaspar prometeu-me obter os animais necessários para a viagem de treze léguas até Antonina. No dia 9 foram feitos todos os preparativos, mas baldados foram todos os esforços. Os homens têm animais para o seu uso, mas são precisamente os seus animais, a sua outra natureza, as metades deles próprios, o segredo do centaurismo nos campos. Com isso o forasteiro se dá mal; ele é de algum modo traído e vendido, 10 Tradução em prosa: "I:illio, sc qrierrs irljnrn o Sirl, nbnririoiin C;ocrlrc, R~~rori c Tnsso! 011in iüiiro ntrmrés dos iliiir/>os iorrciir i~idbirrirosgnriilios, injnirdo üiijns c criins! Alnrnr, irtnrnr, é o rcirrn dcsdc ns ~rinrgerrsdo lo'nrnrici nré ns iordillieirns nzrris! 011gclrrc, , yrorii~crnn Driis que Iioic rir 1.0s~~irrirssc iriil~cdirn ~*ingcirrno I'rnrn e iirnitrinr-180sImrn n I'tírrin!"

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se não tem o seu próprio cavalo, o seu próprio burro; ele é apenas um homem, um pobre homem, e não um homemcavalo, um centauro. Ao meu criado, que era conhecido em Curitiba, deram algumas esperanças para me deixarem ao menos a expectativa da possibilidade de partir. Ao amanhecer o dia 10 de setembro, despertei-o e mandei-o em busca de burros ou cavalos, pois eu devia partir sem falta, porque no mesmo dia descia para a costa o correio - último sinal de partida. Por um preço considerável consegui o que me era indispensável, em animais, para a viagem. Podíamos, então, selá-los, mas apenas isto! Tão magros e fracos eram os cavalos que me tinham cedido, que me causava compaixão por-lhes a sela em cima. De Fato, quanta mais eu via o trato dos cavalos no Sul do Brasil, mormente no Paraná durante o inverno, mais me convencia que só se podia encontrar um bom cavalo com o meu velho e honrado amigo Major von Sucl
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vegetação de araucárias. Nos lugares abertos, iluminados pelo sol, florescia uma linda iridácea, de apenas meia polegada de altura, amarelo-clara, com três largas pétalas externas e três pétalas estreitas internas, três anteras subuladas e três esbeltos pistilos, planta realmente característica do campo. O que mais me chamou a atenção, aliás, foi uma árvore que, segundo me disse o meu arrieiro, só ocorre ao leste de Curitiba e que tenho por um yodocnryrrs, embora não seja do meu conhecimento que essa peculiar forma intermediária entre as árvores de fronde e as árvores de folhas aciculares seja observada naquela região. Os exemplares que vi a leste de Curitiba me recordaram demasiado vivamente alguns belos ltodocnrltlrs que eu vira no jardim de meu irmão no Rio de Janeiro para que não os considerasse idênticos. Com a suave elevação do terreno desaparecia gradualmente a cultura e depois de viajar algumas léguas nos encontramos em puras florestas de araucárias. Dentre o mate baixo se elevavam, imóveis e hirtos, altos exemplares daquele pinheiro do Brasil. Cavalgávamos em silenciosa solidão. Depois houve ruído na floresta, um grito de despertar da civilização que se aproximava. Abatiam árvores, removiam terra, aplanavam; um numeroso grupo de homens fazia o primeiro esboço de uma larga estrada. Em pouco encontramos um segundo e a seguir um terceiro grupo, um só constituído de alemães, no qual até havia algum que me conhecia bem do Rio de Janeiro, singular encontro numa floresta de araucárias. A diferentes distâncias tinham sido levantados ranchos para abrigo dos trabalhadores. Cheguei afinal à linha de separação das águas, onde as últimas águas correm a oeste para o Paraná e a leste, em caminho mais curto, para o Oceano Atlântico. Não é visível, ali, uma clara divisão da cadeia de serras; apenas, descendo-se pela floresta sombria se vê à distância, ao oeste, o dorso de uma serra, de modo que poderia estabelecer-se a linha de separação das águas a algumas léguas mais para leste.

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No primeiro riozinho que decididamente corre para leste, no Capivari, encontramos um rancho maior, onde até uma família morava entre os trabalhadores. Junto a um lago estava uma mulher loura e algumas crianças louras; evidentemente, cozinhava-se o jantar. Aqui encontrei um suíço ajudante de engenheiro, que com grande amabilidade me indicou a região onde certamente acharia pousada para a noite no rancho do primeiro engenheiro Vilalva. Entrementes entardeceu. O sol lançava os seus últimos raios através das araucárias e de outras árvores que já começavam a tornar-se numerosas. Cada vez ficava mais silenciosa a floresta. Em alguns lugares encontrávamos tendas de tropeiros acampados, diante das quais chamejavam alegres fogueiras e era cozida a retardada refeição. Nas próximas touceiras de taquara soava o cincerro da madrinha, indicando o lugar onde os animais da tropa procuravam o alimento. Nessa vida na mata; homens e animais dão à paisagem o tom de profunda paz e agradável segurança. Aqui os tropeiros não temem mais ataques dos bugres, os animais nada têm a recear da onça traiçoeira, que outrora abundava na região. Na floresta encontramos um pequeno campo, onde anteriormente as tocadores de gado faziam alto com os seus animais. Os bois aqui podiam ver mais facilmente quando, na mata, o inimigo se aproximava e repelir com os seus fortes chifres o primeiro ataque e, com esse primeiro, todos os inimigos, pois raramente a onça dá um segundo salto quando, no primeiro, não agarra o focinho do touro com uma pata dianteira, com a outra a espádua e, ficando de pé sobre as patas traseiras, quebra o pescoço da vitima. Antes, exatamente à maneira dos gatos, depois de um golpe malogrado, volta, envergonhada, para a mata e só algum tempo depois ataca outro animal. Mas o barulho e alegre atividade da construção da estrada afugentou todos os animais selvagens para o fundo da mata, tornando inteiramente segura a viagem de Curitiba para as terras baixas. Alegre símbolo dessa segurança, dessa paz na floresta ofereceram-me o quarto crescente da lua e a brilhante

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Vênus que com encantadora fraternidade desciam por trás da mata para o sono n s n u Nlfnrrt's slcclt. Cheguei afinal a um grande rancho, em volta de cuja fogueira se moviam muitas pessoas e onde morava o engenheiro civil Saturnino Francisco de Freitas Vilalva. Com a maior amabilidade me deu agasalho o excelente engenheiro e, com um homem das proximidades, abrigou meus dois arrieiros e cavalos. Falamos em seguida particularmente da estrada que ele está construindo sobre a Graciosa, como é chamada aquela região serrana. Com efeito, a nova estrada de Antonina, na baía de Paranaguá, para Ctiritiba, é uma empresa importantíssima. A estrada principal até agora existente, aliás a única importante, subia de Paranaguá para o planalto, passando pelo lugarejo Morretes; era e é um incômodo caminho serrano, no qual só burros fortes com pequenas cargas podem subir lentamente, pelo que as comunicações com o distrito marítimo e todo o planalto são extremamente dificultosas. Depois de ter estudado cuidadosamente o terreno, o referido engenheiro fez um novo traçado na extensão de treze léguas, do mar até Ciiritiba, para uma cômoda estrada de rodagem para o planalto, mediante cuja execução ficará aberta ao tráfego toda uma Província. Para esse fim foram destinados seiscentos contos, o que equivale a 480.000 táleres prussianos. No momento de minha passagem estavam em atividade 170 trabalhadores, entre os quais 54 alemães; cada um recebe um mil-réis e a comida e contudo Faltam trabalhadores. Falta ainda mais o pronto pagamento do dinheiro; se não me engano, há meses os trabalhadores têm salários atrasados a receber. Já desde anos está o distinto e incansável Vilalva na floresta, longe de todas as comodidades da vida, em ranchos precários e, ainda mais, com a esposa doente; no entanto trabalha corajosamente em sua obra, como missão de sua vida, pois a construção da estrada é uma questão vital para a província. A situação de Vilalva lembra-me vivamente o meu amigo, por infelicidade prematuramente falecido, Major Friedrich

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Icohler. Tinha também este uma difícil e grandiosa constrtição de estrada a executar, dedicando-lhe todas as energias. Mas trabalhava na proximidade imediata da capital, com meios abundantes e especialmente sob as vistas de um príncipe quc até agora não deixou e jamais deixará sem recompensa um merecimento, chegado ao seu conhecimento. Vilalva, o brasileiro, não é tão feliz quanto Kohler, o alemão. O seu empreendimento não é menos dificil, porém muito mais extenso no espaço, mais importante nas conseqiiências. A estrada de Petrópolis é um belo monumento para o Comandante ICohler; creio que o caminho que sobe a serra da Estrela nunca será percorrido pelas pessoas de alta posição que anualmente vão a Petrópolis sem que elas consagrem um pensamento ao mestre construtor ferido por uma bala fatal. Pela estrada, pelo menos tão bela e sem dúvida mais fácil, de Vilalva, passarão mais tarde sobretudo tropeiros e negociantes para os quais é mais ou menos indiferente quem construiu a estrada e por que embates da fortuna passou o homem talentos0 e cumpridor do dever. Milhares de gritos de papagaios e gralhas azuis me despertaram em 11 de setembro, antes de romper o dia. Mas, para que descrever semelhante manhã na matal Partiram os homens alegremente para o trabalho, tão alegres quanto o rio do Meio que passava murmurando debaixo da ponte. Com verdadeira alegria passeei de um lado para o outro no belo caminho diante do rancho. O meu amável hóspede teve a bondade de ir enviarme o café da manhã que, na serra do Paraná, também sabia excelentemente. Partimos depois do almoço. Vilalva acompanhou-me por algum tempo para mostrar-me a sua estrada, a menina dos seus olhos. Com admirável elegância serpeia ela através das serras em amplas curvas e insignificantes aclives de oito por cento nos lugares mais íngremes. O leito da estrada, macadamizado com delgada camada de areia, mede vinte palmos de largura. Tem bordadura de pedra de ambos os lados e no centro um canal de derivação que a cada cinqüenta passos, por meio de um ralo

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debaixo da estrada, despeja a água para fora. De cada lado, um pequeno espaço livre, deixando lugar para desvio em qualquer parte. Em certo ponto da bela estrada mostrou-me Vilalva um trecho da estrada antiga, que descia de um outeiro. Parecia uma ravina vazia; dificilmente se compreende como burros carregados podiam vencer tal caminho. Sob a ponte passava ruidosamente o rio Taquari; as muitas pedras roladas de seu leito, algumas grandes, Falam do furioso tumulto no tempo dos aguaceiros tempestuosos e de outras grandes precipitações pluviais. Por entre rochedos desce para o vale, murmurando, deliciosa água potável. Aqui me deixou o meu atencioso engenheiro e regressou para o trabalho diário. Começou a parte escarpada da região montanhosa, a serra propriamente dita. A estrada velha é muito má, embora, visivelmente, houvessem despendido esforço com ela. Nos lugares mais íngremes e mesmo em trechos planos, bastante longos, encontra-se grosseiro calçamento de pedra. Muitas braças de chão de barro mole ou de ladeiras escorregadias são cobertas com troncos de árvores: vêm-se largos trechos de caminho cobertos de sólidos troncos, achando-se a gente, no sentido literal, num caminho no mato, pois às vezes esses troncos saíram do lugar ou foram consumidos; há, entre eles, buracos profundos e o cavaleiro imprudente corre o perigo de ver o cavalo quebrar a perna. O sol estava sobre a serra. Nas quentes terras baixas ele tinha evaporado as emanações úmidas. O fresco vento de leste as impelia para dentro da serra; em grandes massas eram elas atraídas pelos píncaros, até que um vento mais forte as apanhava, afugentava o horrível nevoeiro e o arrastava consigo. Bonito jogo de nuvens sobre a serra, um ir e vir, um perseguir e ser perseguido nos altos espaços. Floresciam em redor bonitas manétias, um verbasco genuíno e muitas fúcsias elegantes. Riachos límpidos passavam borbulhando pelo estreito caminho e precipitavam-se no abismo; como brilhantes colunas de

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espuma, apareciam pequenas cachoeiras entre rochas e matos: assim passa o viandante o tempo na montanha, enquanto o caminho o conduz para cima e para baixo em ladeiras por vezes escarpadas. Da extrema e alta orla da serra descortina-se uma vista soberba sobre as terras baixas que se estendem por milhas, gracioso caos de florestas e campos, depressões e altas colinas, por entre as quais serpeia, ao nordeste, um belo rio. Precisamente ao leste uma vasta baía parece penetrar na terra; muitas ilhas se elevam em formas cônicas. Mas apenas ilusão ótica. O fundo daquela região cobria-se de nuvens; dentre o mar de vapor elevavam-se, em forma de ilhas, picos de serra. Asperamente descia o caminho. A serra forma aqui verdadeira garganta. Em baixo, a chamada Barreira, uma casa onde se pagava imposto de trânsito pelos animais de sela. Vindo da esquerda, passa aqui por baixo de uma ponte um impetuoso rio, a que se reúnem, depois, vários outros. Aqui também há, no leito do rio, pedras roladas, mas de enormes dimensões. Mostra a sua forma arredondada que, apesar de sua massa, reiteradamente Foram um joguete da água. Quase se duvida da possibilidade do elemento mole revirar o duro e maciço. E, contudo isso não padece dúvida. Vi blocos, de cuja frente haviam sido arrastadas ruidosamente pedras roladas menores, de modo que os blocos maiores já tinham sido rolados pelo seu próprio peso desaprumado. Uma única chuva tempestuosa pode encher bastante o riacho torrencial e "bem pode, com estrépito de trovão, fazer rolar rapidamente a pérfida pedra". De fato, na ponte da Barreira, eu não podia reprimir uma recordação do célebre avtrl; m e l t a do poeta, com que descreve o tormento sem fim de Sísifo. Achava-me de novo num opulento mundo tropical, embora a 25" 30' de latitude sul. Há muito tempo as cecrópias, palmeiras e estrelícias tinham desbancado o mundo das araucárias; nas sombras úmidas floresciam bonitas comelináceas e, com elas, muitas outras formas vegetais mais delicadas, que já não podem suportar a geada do frio planalto.

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Da costa marítima ainda me separava uma longa região de colinas, que foi percorrida pelos magros cavalos com muito trabalho e extrema lentidão. Verdadeiramente soberba a vista da serra que eu acabava de descer, especialmente a moldura meridional da garganta - como se chama, na língua do país, esse desfiladeiro - de forma imponente e de vivos contornos. É alcantilada - as massas sobem quase verticalmente a alguns milhares de pés de altura, separadas por longos rasgões, que lançam densas sombras uns sobre os outros aos raios do sol poente. Forma a terra um peculiar sistema de serras isoladas como ilhas. A serra costeira vinda da Província de São Paulo na direção de nordeste para noroeste toma ao sul, na costa do Paraná, a cerca de 25" de latitude sul, sob o nome de serra Negra, a direção ocidental e apoia-se, em ângulo quase reto, na serra que se estende do norte para o sul, chamada serra do Mar OLI serra Geral, a mesma que se atravessa ao vir de Curitiba para Antonina. A várias milhas ao sul esgalha essa serra do Mar uma forte corda de serras para leste até as proximidades do mar, as quais separam as regióes de Paranaguá e de Guaratuba, porto meridional da Província do Paraná, ligadas apenas por uma faixa costeira. Neste pequeno e bonito trato de terra, limitado, assim, pelas serras por três lados, mas lavado ao oeste pelo mar, introduziu este mesmo mar uma mui graciosa e multiforme baía, cuja comunicação com o alto é parcialmente impedida por ilhas, tendo, porém, bastante profundidade para dar livre acesso a navios comerciais. A fundura da barra mais utilizada para passagem é de 30 pés. A baía propriamente dita oferece excelentes condições portuárias. Na sua margem esquerda, a cidade de Paranaguá, rival, em tamanho e importância, de Curitiba, a capital; na parte ocidental da baía encontramos a vila de Antonina, onde entrei precisamente às 4 horas da tarde de 11 de setembro. Para quem vem do interior, fica a vila muito escondida; só se avista quando já se está bem perto.

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Nada mais me aborrece do que ver obras, sobretudo vultosas, começadas e inacabadas, fato muito frequente no Brasil e que procede da Santa Engrácia de Portugal. Ao entrar em Antonina chega-se a um bonito campo verde, no qual se eleva considerável número de obras iniciadas: uma igreja, muros de casas, pilares, etc. Em torno das paredes destinadas à ruína desde a nascença pastam reses em profunda paz. Evidentemente a planície coberta de fragmentos deve ser o Campo Vaccino de Antonina, o velho Forirrrr rorrrnnrrrri, e tem com ele acentuada semelhança, apenas com a mesma diferença existente entre Antonina e Roma. Até agora é essa diferença ainda muito notável. Mas quando um dia estiver pronta a Via Appia para Curitiba, enfim poderá Antonina tornar-se uma cidade das sete colinas. Por ora, há, no centro da cidade, uma bonita colina, de suave ascensão; no seu pico, uma igreja de Nossa Senhora e o panorama que de lá se descortina é maravilhoso: avista-se a magnifica baía de Antonina, na qual a natureza prodigalizou liberalmente os seus encantos. Bonita a ampla praça verde ao lado esquerdo da igreja. Belas, em parte, as casas de Antonina que estão terminadas, algumas, aliás, vistosas e magníficas, especialmente na rua Direita. Muitas, porém, inacabadas e me causam o aborrecimento a que acima me referi. As possibilidades de um futuro porto - e quando estiver pronta a estrada de Curitiba terá de pensar-se nesse porto - são animadoras. O vapor procedente do Rio de Janeiro, em sua visita à baía de Paranaguá, vem também a Antonina. Causa, pois, a vila de Antonina uma muito boa impressão, de que gozei mais do que me convinha. Quando entrei no lugar, não sabia, na verdade, para onde dirigir-me. Mostraram-me a casa de um sapateiro, único alemão livre domiciliado em Antonina; porque o outro alemão, morador ali, estava na cadeia por ter praticado ilegalmente a medicina.

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Agradar-me-ia ter seguido de canoa, na mesma tarde, para Paranaguá, mas mo impediu um forte sueste; e, como não há hotel no lugar, o sapateiro mandou-me à casa de um barbeiro, com uma alusão de que o homem havia de parecer-me uma espécie de Fígaro. O barbeiro indicou-me uma cama num quarto atrás do salão da barbearia, onde havia mais outra. Muito me desagradou o local, mas sobretudo o pensamento de que já às 2 horas da manhã seria despertado para velejar, com o terral, para Paranaguá. Entrementes entraram na casa vários jovens, inclusive alguns de Paranaguá, que consideravam a casa como um café. Um deles, jovem bem educado, estivera, a serviço da marinha portuguesa, na Índia e na África e participara da célebre catástrofe no navio de linha "Vasco da Gama" à entrada do Rio de Janeiro em 5 de maio de 1849. Bem como outros senhores, ele me conhecia de nome; palestramos sobre astronomia até pelas 11 horas. Quase não cabiam os hóspedes na pequena casa do barbeiro. Com que saudade pensava eu em nossos ranchos frios e úmidos na serra Geral . O pensamento de que breve seria despertado para fazer uma viagem noturna num barco aberto na baía de Paranaguá, fez-me lembrar de que antes tivesse ficado com o sapateiro alemão e me alojado em sua pequena oficina. O sofrido Ulisses morou em casa de uma pastora de porcos, o rei Davi alojou-se numa caverna, razões bastantes para que eu desejasse a casa do bom sapateiro. Para não estar dormindo no momento em que me viessem despertar, não adormeci. E durante a noite mudou o tempo; a baía começou a marulhar e quando me levantei de manhã me disseram o que há muito tempo já sabia, isto é, que com tal tempo não se podia navegar as cinco léguas na baía até Paranaguá. E como no dia 13 o vapor deveria regressar a Paranaguá e Antonina, para seguir, via Cananéia e Iguape, para Santos e Rio de Janeiro, resolvi acomodar-me com o lado mais amável

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das pessoas e circunstâncias que me cercavam e aguardar o vapor em Antonina para continuar a minha viagem, tanto mais quando ele costuma voltar daqui para Paranaguá e lá ficar algumas horas. Muito incômoda me foi, algumas vezes, a falta de hotéis, sobretudo quando me punha em contato com pessoas insuportáveis. Em cidadezinhas solitárias e remotas, em distritos longínquos, onde não chegam viajantes, pode-se não esperar estalagens, mas em cidades do litoral, em pontos terminais de importantes estradas comerciais, o europeu instintivamente as procura e não compreende como o espirito de especulação seja tão pequeno que não empreenda um negócio que decididamente tem de render dinheiro. No meu dia de descanso em Antonina, um domingo, éramos sete hóspedes ao almoço. A comida lamentável, a louça e o serviço de mesa, muito maus, bem como toda a casa, uma casa térrea com uma porta, uma janela para a rua, o salão de barbearia ao lado e que mal tem espaço para a pequena família. Mas o Fígaro da casa não sentia o menor constrangimento. Segundo uma declaraçáo, uma alusão que fez, ele conhece no lugar muitos locais para gente jovem, inteiramente à maneira do antigo Oriente. E todavia a tonstrina do homem também me recordou a Grécia e Roma. Ele Ficaria bem em muitas comédias de Plauto e Terêncio. Várias conversas, que escutei, lembravam-me um Antifo e a amabilidade de Fânio, o célebre Fnrrrry de Terêncio. Houve conversas, à mesa, que já se encontram no Bnrrq~retedos sofistns de Ateneu, apenas com mais graça grega. Um cinzento tempo chuvoso me obrigou a ficar, Fastidiosamente, quase o dia inteiro, numa casa onde não dispunha de um quarto para mim e estava exposto ininterruptamente a tudo o que me aborrecia. Deve ser essa a razão por que em Antonina me senti mais desagradavelmente do que em qualquer outra parte e deploro cada momento que tive de passar ali a mais do que era necessário.

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Com verdadeira ansiedade aguardava a chegada do vapor "Paraense" para com ele e nele poder sair dali. Entristeceu-me, nos últimos dias de minha viagem, a notícia da morte do velho Bonpland. Já em Dona Francisca ouvira Falar a respeito, mas não dera crédito como coisa certa. Em Curitiba tive de admitir como def nitiva a notícia de que falecera em 4 de maio em sua Estância de Santana, na margem direita do Uruguai. Há tão poucas semanas antes eu estivera em casa dele! Eii não acreditava que ainda viveria mais de seis meses; entretanto, não supunha que apenas dezesseis dias depois de minha visita ele já não estivesse no número dos vivos. Bonpland era uma das figuras mais originais que eu já vi. Ligado, pelo nome, aos maiores nomes do nosso século e do vindouro, foi levado pelo destino por veredas mais ásperas do que o seu colaborador. Ao Francês Faltava a força titânica do alemão. Não se pode pensar nem remotamente numa comparação entre os dois. Com a alta consideração que me levou à Estância de Santana se misturou uma dor profunda e indescritível, quando me sentei ao lado do botânico de oitenta e cinco anos e cobrei repouso para observá-lo. Com demasiada rudeza a tempestade da vida o dilacerara, demasiado erma se lhe tornara a solidão da existência, demasiado longe vivia ele das moradas de homens europeus cultos. Uma simples camisa e calças lhe bastavam como vestimenta, um rancho, uma choça a sua morada; nenhum caminho, propriamente dito, conduz a sua estância: para regressar tive de guiar-me pela bússola. Jamais esquecerei a incumbência que me deu. Quando vi a sua saúde profundamente minada e ele me falou de seus manuscritos e trabalhos interrompidos, considerei de meu dever por A sua inteira disposição toda a minha pessoa, todas as minhas Forças: ofereci-lhe tudo o que tinha e a mim mesmo para o seu serviço. "Diga ao senhor Icasten (um amigo dele em Uriiguaiana) que me mande uma dizia de facas e garfos!" Era essa a sua única incumbência e não insisti mais com ele; porque, na verdade, ele de mim nada, absolutamente nada queria, nada absolutamente do cientista europeu.

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E no entanto ainda queria muito, muitíssin~oda vida. Em dois anos o seu pomar devia estar em magnífica ordem; no ano seguinte queria encher o seu campo de gado e depois fazer uma grande plantação de mate. Tudo isso ele me dizia com tal serenidade, com tal determinação, que eu o olhava, de fato admirado; tinha uma idéia errada; acreditava que nunca morreria, só na morte parecia não querer pensar! Paz a suas cinzas! Jamais, ao recordar um homem digno e distinto, entre milhares de outros que se separaram da existência, me vem tão profundamente do coração um voto de paz do que quando penso em Bonpland. Entre todos, deve precisamente ser citado como um mártir da ciência. Porque na verdade é muito mais fácil cair subitamente, em plena ação, do que morrer pela ciência lentamente, dia a dia, hora a hora; primeiro, conservado prisioneiro na terra da estagnação espiritual e, depois privado de todo socorro para ir avante, seguir o progresso do tempo e poder, segundo o velho costume, adiantar-se-lhe como estrela de primeira grandeza. Aimé Bonpland e Virgil Von Helmreichen! Ambos os nomes me comoveram maravilhosamente em São Borja, na margem do Uruguai. Morei no mesmo quarto em que ambos moraram, aí cruzei eu ambas as carreiras, ambas as vias de sofrimento. Ali, no centro da praça de São Borja, se devia erigir tima simples lápide e nela inscrever apenas dois nomes, sem mais perífrase: "Bonpland e Helmreichen." E as gerações vindouras reconhecerão o simples texto e consigo exclamarão: Paz a suas cinzas!

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QUINTO Partida d e Antonina. - O "Paraense". -Joaquim Antônio d e Morais Dutra, o domador dos coroados. - Vista d e Paranaguá. - Nossa Senhora dos Prazeres. - Cananéia. Iguape e nossa festinha d e ação d e graças. - Desenvolvimento material e m Iguape. - Partida da barra d e Cananéia para Santos. - Santos. Realmente horrível a minha estada em Antonina. Na casa do barbeiro, tudo vulgar, tudo reles e em parte alguma se podia evitar essa vulgaridade. O homem pode ter sido marinheiro de um navio negreiro. Esteve evidentemente na costa da África. Na sua miserável casa ocorriam as maiores misérias: palavras injuriosas sobre hóspedes que não pagavam ou de hóspedes aos quais se reclamava dinheiro excessivo. Ali entravam e dali saiam figuras esquisitas, ainda que entre elas assomassem algumas sofrivelmente decentes. Se quisesse por no papel o que lá observei, poderia sair um vivo esboço para um romance. Cheguei como um mensageiro de um mundo melhor, embora ninguém me conhecesse em Antonina, salvo um médico que estava na cadeia. Era o pobre diabo um meclemburguês e, a falar verdade, não era médico, mas um tecelão, chamado Muller. Dou o nome sem hesitar porque afinal toda a gente se chama ~ ü l l e r " ! 1 1 Nome de família muito comum em alemão. - N. do T.

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Negociara com a célebre droga de Leroy, prejudicando talvez, na Vila de Antonina, os interesses de alguém que fizesse o mesmo negócio. Quando o levaram perante o presidente da Câmara Municipal e não quiseram reconhecer seu documento de identidade do Meclemburgo, o tecelão, que com ninguém podia entender-se, rasgou o documento em presença dos "Senhores" reunidos. Isso lhe Foi levado muito a mal. Foi denunciado criminalmente e devia ir a júri, a reunir-se seis meses depois. Não há no lugar uma só pessoa que conheça ao mesmo tempo o alemão e o português. Considerei então de meu dever, comunicar o caso ao cônsul geral do Meclemburgo no Rio de Janeiro e ver se era possível ajudar o homem metido num horrendo calabouço. A masmorra onde está o homem é realmente atroz. Como se pode suportar tal coisa< A cadeia, a penitenciária de Antonina, é um monumento tão vil que não há expressão para denominá-lo. Tenho bastante paciência com as Fraquezas, deficiências e injustiças que encontrei em minha viagem. Mas há condições que é preciso levar ao pelourinho da opinião pública. A cadeia de Antonina é uma dessas condições, uma imagem da humanidade e justiça das autoridades daquela cidade. Enfim, a 14 de setembro, cerca de meio-dia, apareceu ao longe, ao leste da baía, o vapor "Paraense". Nunca saí de um lugar de tão bom grado, tão alegremente, como de Antonina. Como despedida, fui ainda muito explorado pelo barbeiro, mas de boa vontade paguei ao sujeito, pelos três dias em sua ordinaríssima tasca, os 18 mil-réis reclamados (14 táleres prussianos) e fui para bordo do vapor. Pertence a uma companhia de navegação Fundada pelo conhecido negociante e empresário comercial Ferreira, a qual envia um vapor de quinze em quinze dias até Desterro, em Santa Catarina, e que na ida e na volta visita os portos mais notáveis, com o que, naturalmente, a viagem se torna mais demorada; mas para os que desejam conhecer aquela costa, oferece muito o que contemplar e aprender e é de grande utilidade para os habitantes da Província de Santa Catarina e do sul de São Paulo.

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QUINTO CAP~TULO

O vapor toca em Ubatuba, São Sebastião, Santos, Iguape, Cananéia, Antonina, Paranag~iá,Sáo Francisco e Desterro, onde ordinariamente costuma chegar depois de uma viagem de nove dias, a partir do Rio de Janeiro. Depois de um dia inteiro de estada ali, regressa pela mesma rota. No momento dois vapores serviam essa linha: o "Catarinense" e o "Paraense", sendo o último mais afamado. E todavia eu poderia chamar o "Paraense" de avô dos vapores brasileiros. Creio que lhe conheço o nome desde que estou no Brasil. Pertencia antes à Companhia Geral de Navegação Brasileira e como tal viajou para a Bahia. Foi expulso pelo "Imperador" e pelo "Imperatriz" e veio para a referida linha costeira. Quando ouvi o nome "Paraense" como sendo o d o vapor e m que devia fazer a minha viagem para Santos, esperava u m péssimo barco, mas, para alegria minha, me enganara; aliás, posso confessar francamente que o "Paraense" me agradou mais do que os dois vapores acima mencionados, nos quais viajara nas águas meridionais do Brasil. Encontrei-me, sim, n u m casco velho, mas muito sólido, que, graças às suas largas proporções, assentava bem na água e manobrava com muita facilidade. A comida e a bebida não tinham a ostentação de outras linhas, mas eram, a meu ver, mais bem preparadas. O convés de popa tinha também muito mais espaço para os passageiros; podia-se andar desembaraçadamente; em resumo, com razão sentia-me completamente satisfeito a bordo do ''Paraensel'. Muito dignos de nota os passageiros que vinham chegando, já desde Antonina. Agora, em sua maioria, os viajantes do interior da Província do Paraná vêm de Curitiba, via Graciosa, para Antonina, e não mais via Morretes para Paranaguá, quando querem embarcar para o Rio; já agora, quando apenas alguns trechos da estrada nova estão prontos, pode-se inferir, com certeza, que a futura estrada comercial do planalto para a costa será a via Antonina. O s viajantes dessa linha costeira são muito diferen-

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tes da gente que vai diretamente do Rio para o Rio Grande oii vice-versa. O s últimos são geralmente negociantes dos referidos pontos terminais, os quais, embora constituam sociedade muito agradável, são tão europeizados, que o viajante observador nada de especial encontra neles. Não assim a sociedade do "Paraense"! Quase o primeiro que encontrei a bordo, era u m homem cujo conhecimento me teria sido extraordinariamente interessante se o tivesse encontrado seis meses antes n o Uruguai; era o mesmo homem que navegara o Uruguai, descendo o rio com índios e que demorara alguns dias em São Borja com os seus coroados, expedição que tive ensejo de mencionar quando de minha estada em São Borja. Joaquim Antônio de Morais Dutra, natural da Província de São Paulo, já estivera, há muitos anos, n o limites da Província d o Paraná, onde estes, por trás do planalto de Santa Catarina, se apoiam no Uruguai, precisamente naquelas regiões onde o Iguaçu mais se aproxima do Uruguai e onde tinham os seus limites as antigas Missões. Ali encontroti ele, em grande quantidade, coroados selvagens, inteiramente nus. O simples e robiisto criador de gado e lavrador conseguiu entrar com eles em contato muito an~istoso; amansou-os às centenas, aldeou-os, ensinoii-os a trabalhar e aliado com o cacique Doble, já várias vezes mencionado, formou originalíssima semicultura de uns quinhentos selvagens. Quase não se pode falar propriamente em usos e costumes numa aglomeração a princípio inteiramente selvagem. A língua deles difere bastante do guarani, embora deste procedam muitos elementos linguísticos. Certas denominações importantes, como, por exemplo, homem, marido, mulher, são inteiramente diferentes do guarani. Quando Dutra os encontrou, pareciam pressentir iim ser superior, que charilavani Tupé. Quando Ine ocupei tle Sáo Borjri falei da significação de Tupá. Tupé deve ter a mesma significação. Tinham, pois, a suposição de um Deus sobre si, mas não

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o investigavam. Reconheciam uma espécie de casamento. Quando os pais e irmãos de uma rapariga davam o seu consentimento, o pretendente recebia a sua noiva, sem mais cerimônias, especialmente se era conhecido como bom trepador de árvores e caçador. Mas se uma única pessoa da família era contra o casamento, tinha o pretendente de procurar outra esposa. Geralmente o homem tem mais de uma esposa, frequentemente ciumentas entre si e brigam muito, de modo que eles foram levados a que cada homem só tenha uma; exatamente conforme os nossos casamentos. Todos andavam e ainda andam na maior parte inteiramente nus, embora, segundo Dutra, com o pudor inato às mulheres de todas as nações, as desses selvagens cubram os quadris. Afora isso, nenhum cuidado em vestir-se e mesmo as moças mostram, sem nenhuma consideração, as formas femininas, às vezes, muito belas. As narrativas de Dutra me recordaram as duas nadadoras que vi em minha viagem pelo rio Uruguai, perto de Itaqui. Entre eles não há educação infantil especial. Não vai além do uso da flecha e da lança, pois a caça e as incursões contra os inimigos, notadamente contra os botocudos, são os traços mais característicos de sua vida. Fizeram correrias de pilhagem contra os colonos que penetraram nas suas proximidades, queimaram as fazendas, assassinaram os homens e raptaram as mulheres que, então, tinham de adaptar-se completamente à vida selvagem. Quando essas mulheres eram liberadas, podiam levar os filhos consigo, querendo. Todavia algumas delas, às vezes, se acostumaram tanto com os selvagens, que ficaram com eles. Graças à influência de Dutra, muita coisa já mudou. Moram juntos, num aldeamento, usam roupa, não saqueiam mais e pode-se confiar neles com segurança, embora ainda furtem objetos de pouca importância. Com esses homens semi-civilizados, numa frota de oito canoas, empreendeu Dutra a sua expedição a São Borja, 90 léguas rio Uruguai abaixo. Não encontrou estorvo em parte alguma; em certo lugar há um

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salto, mas lá há uma ilha e a um de seus lados se pode navegar. Dutra mostrou-me um mapa interessantíssimo do curso do Uruguai entre Passo Fundo e São Borja, mas infelizmente Feito sem conhecimentos técnicos, sem indicação da direção e das distâncias exatas. Na sua viagem levou mate para vender em São Borja e, depois de ter apresentado os seus índios ao General Osório, regressou para o seu lugar de residência. Para obter proteção bastante e auxílio em seu singular empreendimento, partiu para o Rio, acompanhado de um coroado e de seu filho de 20 anos. O filho fala perfeitamente a língua dos coroados. O coroado é um tipo de legitimo índio, um legitimo china, primo, traço por traço, da grande tribo do Império Celeste, mas de rosto cheio, gordo, corpo feminino, pernas e braços curtos, um homem-mulher de alto a baixo. Tem sobretudo o peito repugnantemente efeminado e todo ele uma Figura tão desagradável quanto interessante. As três pessoas do distante Paiquerê - assim chamam os coroados o Paraná me pareceram dignas de nota e não me cansava de ouvir falar delas. Além desse raro fenômeno do "Oeste da Província do Paraná", me chamava a atenção, a bordo do "Paraense", outro grupo humano. Eram dois oficiais brasileiros com suas esposas e filhos, cujos corpos de tropas tinham sido transferidos da Província do Paraná para o norte do Império, de modo que as mencionadas famílias tinham de fazer longa viagem. Despertaram vivamente o meu interesse. Na civilizada Europa ocorrem também essas remoções de tropa, lá também as esposas dos oficiais são obrigadas a desmontar suas casas e, com os Filhos, seguirem os maridos, mas lá há caminhos e meios de transporte até à estrada de ferro. Não assim com os meus companheiros de viagem! Do remoto interior de Goiás haviam eles chegado. Tinham ficado algum tempo no quartel em Curitiba e agora deviam viajar até quase ao Equador. Que viagens fatigantes, primeiro em terra, em caminhos que dificultosamente se percorre a cavalo, impossíveis para carros! Depois no mar, com muitas criancinhas! Cada senhora, como é fre-

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quente em casais jovens, amamentava um filho; uma delas, além da criança de peito, tinha mais seis Filhos. Não tinham criadas. As pobres senhoras enjoaram logo, as crianças de peito choravam e as outras crianças vomitavam e cambaleavam. Crianças boas e amáveis, de tão boa índole como nem sempre se encontra; ajudavam-se mutuamente em seus medos e apuros. E, como era muito natural, nós passageiros, em vez de aborrecer-nos com os apuros da meninada, tínhamos os pequenos em volta de nós e os ajudávamos no que podíamos. Mas admiro a coragem dessas senhoras de oficiais colocadas em tais situações incômodas. Recordam-me as amazonas dos antigos tempos. Aprenderam a montar e percorrer centenas de milhas a cavalo, com uma criança nos braços, e não Ihes causa preocupação. Aliás as senhoras prefeririam uma longa viagem através de províncias solitárias, acampando com as crianças ao relento, a fazerem uma curta viagem marítima. A cavalgadura ser-lhesia mais cômoda do que o barco a vapor. Caso triste o aparecimento, a bordo, de um louco que eu conhecia de Curitiba. A conselho meu a família mandou-o para o grande hospício de alienados da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Ficava geralmente num Iiigar isolado, na proa, onde pouco incomodava os viajantes, embora às vezes os seus gritos fossem torturantes. Mas nenhum dos passageiros se sentia, ou pelo menos se dizia incomodado, pois está profundamente no caráter brasileiro ilimitada compaixão pelos doentes e pelas crianças. Pelas 3 horas partimos de Antonina em direção E.S.E. O ar estava cheio de neblina e só indistintamente víamos os picos próximos e distantes de serras em torno da baía de Paranaguá. Com tempo Iímpido, esta baía é uma das mais belas bacias marítimas que se podem ver. Estendendo-se por várias milhas para todos os lados, a verde superfície da água é recortada por salit.ncias, cadeias de serra e ilhas, de modo que, viajando-se nela o cenário muda constantemente. Quase se poderia comparar o pequeno mar interior com um lago suíço.

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Ao entardecer chegamos a Paranaguá. Os navios grandes tinham fundeado a meia milha de distância da cidade, abaixo de uma cadeia de colinas, numa ilha elevada cujo ancoradouro é bom e seguro, ainda que o afastamento da cidade dificulte um pouco a carga e descarga. Brilhava ao longe risonhamente a bonita cidade. Todavia eu náo podia ir a terra na mesma tarde, tanto mais que em Paranaguá não há hotel onde se possa encontrar hospedagem certa. E ainda pensava, assustado, no meu barbeiro de Antonina. Em nossa vizinhança ancoravam alguns navios. Quanto ao mais a baía tranqüila dava-me a impressão antes de abandono do que de movimento comercial. E todavia o vivo movimento comercial que, de certo modo, já se faz na baía de Paranagiiá, seiii dúvida se tornara cotisidcr,'lvcl. Só rccentcmente n Província do Paraná começa a tiiovcr-sc IJnrri dcsciivolver siias grandes possibilidades; só recentemente se pensa em caminhos para siibir o planalto, como vimos na estrada sobre a Graciosa; só recentemente se tenta trazer para aqui braços humanos para que se efetue o desenvolvimento. Até agora foi a natureza que tudo criou e preparou; a realização pelo trabalho e arte fica para as gerações vindouras. Na manhã seguinte olhamos para todas as particularidades que a baía oferece. Canoas de pescadores sulcavam a superfície; pequenas embarcações traziam lenha para aquecer as nossas caldeiras, outras traziam carga, especialn~entesacos de arroz. O que parecia mais maravilhoso era uma canoa familiar, reacionária da proa à popa, da frente até atrás, um quadro dos tempos antigos, que, com a cessação do tráfico de negros da costa da África, está agonizando e, querendo Deus, breve desaparecerá com o progresso da imigração alemã e o desenvolvimento da lavoura alemã. Na frente da canoa, duas vigorosas negras, que remam virilmente. Uma delas tinha um genuíno rosto da Costa, sem dúvida procedia de Moçambique. Em torno da robusta rapariga tremulava admiravelmente uni vestido de chita de cor, cujas dobras supérÇliias ela prendia entre os joelhos para melhor poder usar o remo. Sobre a cabeça

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lanzuda um gigantesco chapéu de palha. Quando a canoa se aproximou de nós, ela, espantada, deixou cair o remo; evidentemente nunca vira um navio a vapor, nunca ouvira o apito. Na canoa, ao lado da velha dama, certamente senhora da tripulação, estavam sentadas algumas mulatas com diversas crianças de todos os matizes entre o branco e o negro; uma bonita figura prestava serviços de ama a uma criança branca. Atrás um negro meio vestido, tendo na cabeça, enviesado, um boné colorido, por baixo do qual olhava o alegre rosto brejeiro de um Davus astuto e folgazão. Havia ainda muitas coisas sobre as quais estava a imortal cana, a ática planta do açúcar, que tanto gostam de chupar seja em terra, seja no mar. Lentamente passou por nós aquela canoa e abicou em frente de uma casa de campo. A velha dama foi a primeira a desembarcar e começou a repreender desagradavelmente; até nós chegava o ruído de seus ralhos. Tudo recorda o imortal Terêncio, para não mencionar o cáustico Plauto. A navegação matutina na baía de Paranaguá é u m quadro de gênero, tal qual um barco de pesca napolitano perto de Sorrento, tal qual o nosso navio de pilotagem, quando viajávamos com a nossa real e imperial esquadra austríaca entre Cila e Caribdis. Mas onde está o hálito de elegia que sopra entre a Sicília e a Calábria, onde a notícia dos errores de Ulisses na baía de ParanaguáG! Pelas 10 horas partiu o nosso "Paraense" para o alto mar. A vasta baía de Paranaguá une-se ao mar por vários estreitos, dos quais, porém, apenas um é utilizável pelas grandes embarcações, o do centro, entre as ilhas das Peças e do Mel. Embora pareça isenta de perigo, essa barra sempre exige alguma cautela. Do seu lado nordeste os recifes estendem-se até longe, água a dentro, ao passo que o lado meridional parece mais tranqüilo. A nossa rota, ao partirmos, era S.E. Antes de chegar-se ao mar, passa-se por uma fortaleza na praia, sob alta encosta de pedra, chamada de Nossa Senhora dos Prazeres. Os que, vindos do mar, penetram na baía e ali se acham em águas tranqüilas, podem chamar o lugar dos praze-

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res; não, porém, os que no baluarte de pedra formam a sua guarnição. De fato a estada na fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres é desesperadora. A milhas de distância fica Paranaguá, em toda parte marulha o mar, em parte alguma se vê vestígio de sociedade humana. A um sinal dado pelo "Paraense", veio até nós uma canoa da fortaleza. Com certa dificuldade recebeu ela do vapor uma provisão de milho e voltou, rompendo as ondas, para a fortaleza. Do muro da fortaleza doze a dezesseis canhões nos contemplavam, de modo que, em caso de necessidade, a barra pode ser defendida. Outrora a fortaleza estava em muito mau estado. Quando, nos últimos anos da primeira metade do nosso século, os ingleses procuravam com toda a energia suprimir a importação de escravos da África para o Brasil e, com numerosos cruzadores, cometeram muitas violências, um navio de guerra inglês penetrou aqui e aprisionou na baía brasileira três navios. Mas antes que pudessem ganhar o mar com a presa, armaramse todos os barcos e canoas de Paranaguá e houve diante de Nossa Senhora dos Prazeres uma batalha naval e bombardeio pela fortaleza, resultando mortos e feridos de ambas as partes. Um homem de Paranaguá me mostrou, ainda encolerizado, os vestígios das balas inglesas no muro da fortaleza. Parece que, além da violação do direito, naquele tempo também foram ofendidos os seus interesses particulares e, para muita gente, a ofensa dos interesses particulares é uma provocação mais viva do que um insulto à bandeira da pátria. Isso quisera ter dito a muitos portugueses estabelecidos e naturalizados no Brasil. Muitos deles devem recordar-se, com saudades; dos tempos lucrativos em que ainda florescia o tráfico de escravos com a África e podiam ganhar uma fortuna com um carregamento de negros da costa. Muitos ainda deitarão olhares amorosos para Loanda e Inhambana! Naturalmente, para indivíduos, para os ricos, os proprietários de terras e fazendeiros, era melhor o trabalho escravo. Agora, a lavoura, o trabalho dos braços de imigrantes livres Ihes faz terrível

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concorrência. Sem essa concorrência, sem o ilimitado gozo dos frutos do trabalho de parte dos que lá trabalham, plantam, e colhem, não é possível o desenvolvimento do Brasil. Com o vento contrário e o mar um pouco agitado, o nosso navio que, conforme já dissemos, não tinha a força da juventude, fez com dificuldade a sua rota para o nordeste e os passageiros enjoaram quase sem exceção. Pelas 11 horas da noite, depois de passarmos com felicidade por vários pontos críticos, notadamente uma ilha isolada em águas navegáveis, a Ilha da Figueira, chegamos a uma alta ilha, protegida do sueste pela barra de Cananéia, onde ancoramos e passamos a noite em completa tranqüilidade. Com toda a razão a ilha se chama do Abrigo e é bem conhecida de todos os navios que navegam para Cananéia e Iguape ou que de qualquer modo tenham de procurar um refúgio naquela latitude. A faixa da costa ao norte e ao sul do 25" de latitude sul é digna de nota. Aqui encontramos uma pronunciada formação de "haff"12. Começa junto aos 20" 20' de latitude sul e estendese para o norte e para o nordeste. A extremidade inferior é um belo e amplo lago de água salgada, separado do mar por uma ilha bastante grande, a Ilha do Cardoso, e a ele ligado por dois estreitos. O meridional é o de Superagui, nome que, às vezes, também se dá à barra setentrional da baía de Paranaguá. Ao nordeste da Ilha do Cardoso fica a barra de Cananéia, que é um perigoso canal. Quem navega da ponta setentrional da Ilha do Abrigo em direção ao noroeste pode bem orientar-se em pleno dia. Mas o canal é estreito e dois bancos de areia lançam, de ambos os lados; violenta ressaca. Dessa barra de Cananéia estende-se o "haff" em direção ao nordeste por umas catorze léguas, separado do mar por uma comprida ilha rasa que, na sua massa principal, evidentemente é um produto do mar. Na extremidade do nordeste o "haff" de modo algum é fechado, antes se liga pela barra de Capara com 12 Haff é uma espécie de laguna, separada do mar por estreita e longa faixa de areia. O nome éaplicado especialmente a lagunas do Mar Báltico, nacosta da Prússia (Friesclics Haff, Kurisches Haff e Pommersches Haff). - N. do T.

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o mar e permite alguma navegação. Ao falarmos sobre Iguape voltaremos a este assunto. Ao alvorecer do dia 16 de setembro levantamos ferro na enseada da Ilha do Abrigo, onde tínhamos passado tranqüilamente a noite, e avançamos lentamente na esperança de sermos observados pelo piloto de Cananéia e de sermos conduzidos por ele para a baía através da perigosa barra. Mas nenhum piloto apareceu. Algumas ondas muito consideráveis faziam arfar o nosso velho navio; de ambos os lados batiam as ondas e a nossa situação não era agradável. Então o prudente comandante resolveu levar o navio pela perigosa barra, mesmo sem piloto. Dentro de um quarto de hora era realizada a façanha, embora com susto de parte dos passageiros. A ressaca ficou atrás e o "Paraense" penetrou tranqüilamente pela entrada do "haff" de Cananéia, de onde precisamente acabava de sair a canoa do piloto. Navegamos para o norte, em água perfeitamente tranqüila, e pouco depois, por trás de uma saliência da serra, víamos o lugarejo Cananéia. Cananéia está situada sobre uma ilha que fica no "haff". A vila consta de uma velha igreja e de algumas casas e motiva uma triste impressão. O lugar já estava fundado em 1500, mas nunca teve considerável desenvolvimento, apesar de ser o porto bonito, seguro e profundo. A praia da vila tem, verticalmente, uns dezesseis pés de altura e a água na margem é tão profunda, que grandes embarcações podem encostar bem perto. E contudo só havia um navio ancorado ao nosso lado; viam-se, porém, na praia, muitas canoas grandes. Na praia, sobressaiam das águas profundas os destroços do naufrágio de um grande navio. Quando, há poucos meses, o "Conde de Áquilal', o melhor vapor que navegava na linha entre Rio e Santa Catarina, acabava de sair de Iguape para Cananéia, irrompeu fogo a bordo e em poucas horas era ele destruido pelas chamas. Diante dos olhos dos passageiros que acabavam de ser salvos, afundou-se no mar o casco ardente. Ainda aparecem fora da água uma roda e a proa da elegante embarcação e formam uma vista muito desagradável, especialmente para os passageiros que viajam em vapor da mesma linha.

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O "Paraense", como todos os vapores da linha intermediária, tinha de ir a Iguape, de onde deveria voltar a Cananéia e sair pela barra para o alto mar; por isso só ficamos pouco tempo em Frente do triste lugarejo. O "haff" entre Cananéia e Iguape é um estreito lago ou antes um rio de água salgada de umas doze léguas de extensão, que o vapor percorreu tranqüilamente em poucas horas. As margens, de ambos os lados, têm poucos pés de altura e sáo cobertas de vegetaçáo um tanto emaranhada. Na terra firme se elevam, a alguma distância, colinas mais ou menos consideráveis, ao passo que a língua de terra, a orladiira de ilhas do lado do mar, é inteiramente plana. Iguape dá impressão muito diferente de Cananéia e desde algum tempo foi elevada a categoria de cidade. Até então era uma simples vila. Quando acabamos de ancorar o comandante fez uma pequena coleta entre os passageiros, a Fim de que houvesse 2 noite, na igreja iluminada, uma pequena Festa religiosa. Nossa Senhora de Iguape deve ser muito milagrosa, de modo que o lugar se tornou um ponto de romaria. De manhã cedo, a milagrosa rainha do céii nos guiara, sem piloto, através dos recifes da barra de Cananéia e devia-se agradecer, oficialmente, em sua igreja. E cada iim que tinha de dar graças ao céu concorria de bom grado, alegremente, com seu óbolo. Conscienciosamente prometemos ao nosso comandante ir à noite à igreja. Entrementes desembarcamos e visitamos a cidade. Iguape é uma graciosa e pacífica cidade, bastante regular e limpa; os 1.500 habitantes moram em casas caiadas, muitas delas bonitas e algumas até magníficos sobrados. A mais bela casa da cidade, uma soberba casa de esquina, tem, de um lado quinze janelas enfileiradas e, oito a nove, na frente; em cima tem uma "América" e dois terríveis leões, tudo de barro cozido e esmaltado de branco, que causam um efeito formidável. E, falando-se das coisas notáveis de Iguape, não devem ser esquecidos os leões de barro.

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Os habitantes cumprimentam amavclmentc e parecem encontrar especial prazer em observar os passageiros do vapor, o que não se Ihes pode levar a mal, pois a chegada do paquete do rio é o maior acontecimento na vida dos ig~iapenses.Nós Ihes parecíamos táo dignos d e ser vistos quanto a nós os seus leões de barro. Depois de perambular por meia hora, ocorreu-me a idéia de que Iguape, por longo tempo, se tornara enfadonho. Num pequeno café encontrei um bilhar e - o que muito honra os bons habitantes-uma pequena biblioteca, composta dos mais variados elementos e que pertence a um clube existente na cidade. Não é insignificante o número de livros bons, científicos. Ao lado deles se ostentavam i11rrsrrrrr Dcll~lrirri,várias obras de tom mais alegre, e Paulo de I
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Folhas com Flores purpurinas e, ao lado da ardente peralvilha, uma anêmica begônia, suspirosa, estende as suas Flores para a luz, ao passo que sobre ambas se debruça uma multicolorida malpíguia. Aqui, no ermo lugar, a cada passo uma alegria, uma íntima satisfação. Então soaram os sinos na torre da cidade, chamando-nos ao "terço", à nossa oração de agradecimento, e regressei rapidamente à cidade. Antes, porém, de chegar à igreja, corri a ver um conhecido, o engenheiro von Randow, empregado na medição de terras, o único alemão que na época existia na cidade de Iguape, cujo encontro não somente era muito agradável, como Foi muito interessante. Primeiramente, fomos juntos à nova igreja. Embora ainda não esteja concluída a nova igreja de Iguape e por isso mesmo lhe Falte, mormente na impressão externa total, qualquer harmonia arquitetônica, o interior da nave é limpo e decente com toda a sua simplicidade. A igreja causa uma impressão agradável, mas muito grave, impressão que ainda não senti em nenhuma igreja brasileira, e que eu chamaria de impressão protestante. O altar-mor e alguns pequenos altares laterais estavam bem iluminados. Estavam presentes numerosas iguapenses, que se ajoelhavam no centro da igreja. Diante do altar-mor se ajoelham os passageiros do navio. A ladainha, cantada com o acompanhamento de uma Filarmônica, era dissonante, mas isso não perturbava a impressão da igreja, porém me incomodavam os olhares curiosos de uns meninos e mulheres para o lugar onde eu estava sozinho. Em pouco, porém, compreendi a razão disso. Ao meu lado estava o coroado de bordo, perfeitamente iluminado pela luz da igreja, um genuíno Filho das brenhas, que nessa igreja cristã, sozinho, era coisa digna de admiração. Imóvel como uma estátua de sal, estava ele ali, num pasmo quase sinistro; os seus pequenos olhos enviesados, antes sem brilho, cintilavam como as luzes do altar; a amarela fisionomia mongólica imóvel, mas o largo e carnudo peito respirava a plenos pulmões.

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Quanto tempo fará que os numerosos habitantes primitivos da praia de Iguape, os botocudos e coroados, olharam, atônitos, para o primeiro europeu que penetrou em suareuniãoL E apenas alguns séculos depois já os descendentes de europeus olhavam, atônitos, para o último coroado que, como um estrangeiro, um Fenômeno, um milagre no solo de seu país, penetrava em sua reunião cristã e, pasmado, os contemplava! Digo: o último coroado, pois bem posso considerar todos os coroados vivos, que ainda vagueiam como cadáveres ambulantes, como meros espectros, os últimos de sua outrora poderosa tribo. No Brasil também passou o tempo dos peles-vermelhas e dominam os Faces pálidas. Sob o estrépito dos Foguetes e o repique dos sinos deixei o bonito templo. Era uma clara noite de luar e tinha agradável aspecto o povo que se dispersava na praça da igreja. Corii o senhor von Randow fiz uma visita ao Comandante Jose Inocêncio Alves Alvim, homem de distinção. Lá nós contaram muitas anedotas, algumas muito cômicas, sobre o eclipse do sol. Muita gente acreditava, no dia 7 de setembro, que com o eclipse do sol o mundo se subverteria, e se preparou para a morte com cristã resignação. Muitas promessas foram feitas à milagrosa Mãe de Deus de Iguape e sucedeu aos promitentes o que nos sucedeu na barra de Cananéia: atravessamos os recifes como eles com Felicidade atravessaram o eclipse. Um homem da cidade, aliás esclarecido a outros respeitos, a quem disseram que o eclipse só seria total numa estreita Faixa da costa, viajou trinta léguas interior a dentro para escapar ao horrível acontecimento e assim, conforme julgava, salvou a vida. Até se afirmou, de alguns bons paranaguaenses, terem eles acreditado que, visto que o governo mandara vários sábios da Capital e um astrônomo vindo especialmente de Paris num vapor de guerra acompanhado de duas canhoneiras para Paranaguá foco principal do eclipse do sol - o eclipse tinha de ser um acontecimento perigoso, cujas conseqüências poderiam ser muito atenuadas pelos sábios e, em caso de necessidade, por disparos de artilharia.

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Por mais que se pilheriasse, o eclipse total de 7 de setembro não deixou de causar profunda impressão de terror nos habitantes da costa de São Paulo e Paraná e muitos julgam ter escapado ao grande perigo devido a rápida passagem do Fenômeno. Mas o que acontece com um viajante! A gentil e jovial senhora do Comandante falou-me, com infinita alegria, de sua influência política; de como a outrora Vila de Iguape deve aos seus esforços e pequenas maquinações ter-se tornado cidade, a qual precisava de ter uma boa barra própria. E então recebi a severa ordem de, no Rio, agir com toda a energia para que a barra de Capara, que forrna a entrada natural para o porto de Iguape, seja estudada, medida e provida de um piloto. Prometi-o em sã consciência e despedimo-nos como bons amigos. Eu queria regressar para bordo. Soube então que o "Paraense" na manhã seguinte ainda receberia carga e que o nosso Comandante queria aproveitar as horas da manhã para tomar algumas medidas da referida entrada. Podia eu assim atender mui tranqüilamente o amável convite do senhor von Randow de passar a noite em sua residência e tanto mais que, com mais algumas horas de estada, eu podia informar-me sobre vários empreendimentos de considerável utilidade para o desenvolvimento daquela região. Logo ao norte da barra de Capara desemboca um rio no mar, o rio Iguape, que, por pouca extensão que pareça ter no mapa, é de grande importância para toda a região. Os seus últimos confluentes vêm das serras de São Paulo e Curitiba e aquele Araçungi ou Açungi, de cuja região e respectiva colonização já falei, é precisamente um de seus afluentes. O curso muito sinuoso do rio atravessa regiões férteis, nas quais, além de todos os demais produtos agrícolas, se cultiva especialmente o arroz. Algumas milhas antes da sua embocadura no mar, na barra da Ribeira, que não C isenta de perigo, o rio, tomando a extensão de um lago, chega tão perto da cidade de Iguape, que é preciso apenas meia milha para se chegar àquele lago. Conduz até lá um excelente caminho. Ali

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se desenvolveu quase espontaneamente um lugarejo, o Porto do Iguape. Partindo desse portinho, dois pequenos vapores fazem o tráfego do rio, subindo até ao lugar Xiririca, num percurso de trinta Iéguas, e trazem produtos agrícolas para armazená-los no Porto do Iguape, de onde depois são transportados para a cidade de Iguape e de lá para o Rio de Janeiro. Evita-se, pois, assim, o perigo da barra da Ribeira, embora pequenas embarcações costeiras entrem no rio Iguape. Mas pretendeu-se evitar mesmo o pequeno caminho do porto à cidade de Iguape e fez-se um canal do "haff" à lagoa do rio, de modo que as canoas podem ir diretamente de Iguape ao rio e subi-lo, evitando qualquer perigo de navegação. Todavia as margens do canal ainda não estão bastante firmes para que seja utilizado constantemente. Por isso o breve caminho continua a ser a ligação segura do rio com o mar e mais tarde pode ser muito facilitado, sendo necessário, com uma via Férrea. O solo até o rio é firme e perfeitamente plano. Com tão belas vantagens, que oferece um rio costeiro aparentemente tão insignificante, o rio Iguape não Faculta somente com o seu curso principal o desenvolvimento daquela região. Um afluente meridional, o Jacupiranga, que por sua vez recebe um afluente, o rio da Canja, é também navegável para canoas. Essa ramificação de rios, não grandes, porém muito utilizável - precisamente muito utilizável por não serem os rios grandes nem impetuosos - serve uma vasta região entremeada de colinas e serras de especial fertilidade. Devido a pouca vistosidade da região, escondida atrás do "haff" e do rio Iguape, aquela terra ficou até hoje em mãos do governo. Com o crescente progresso da lavoura alemã nas províncias do sul do Brasil e, ao mesmo tempo, a já vultosa imigração iniciada para lá, a Direção das Terras Livres, para poder atender imediatamente os pedidos dos recém-chegados, mandou medir um terreno de duas Iéguas quadradas em pequenas seções ao sul do rio, a três léguas ao oeste da cidade de Iguape, no território banhado pelo Canja e pelo Jacupiranga. A execução dos trabalhos foi entregue ao senhor von Randow.

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Pelos cuidadosos desenhos e mapas preparados por esse trabalhador alemão pude obter uma idéia dessa nova colônia. As seções são de 500 braças de largura e de fundo e formam, pois, fazendas, para colonos, muito apreciáveis, especialmente comparadas com os escassos e malsãos pedaços de terra que, por ávido interesse particular, os especuladores de terras vendem aos imigrantes. Com belas e grandes porções de terra deve começar o trabalho alemão; pai e filhos devem atacar o seu rico solo viribirs tinitis e não correr um para lá e outro para cá procurando um escasso pedaço de solo num país onde, desde séculos, um solo ainda intacto anseia, na verdade grita por braços humanos para o desenvolvimento. Isso adiante de Iguape! Em distância ainda menor e da mesma maneira e também no mesmo "haff" foi medido adiante de Cananéia um terreno de duas léguas quadradas. Agradeço à bondade de nosso compatriota um bonito mapa de orientação daquela região e das terras medidas. Logo que a colônia se estabeleça e desenvolva, os dois estabelecimentos, o de Iguape e o de Cananéia, podem, em expansão excêntrica, tocar-se dentro de pouco tempo e, crescendo, representar uma terra de cultura de primeira importância. Trata-se, em primeiro lugar, de saber onde serão construídas as casas de recepção para os dois pontos ainda separados e no entanto tão ligados. Parece que, para esse fim, a região de Cananéia é preferida à de Iguape. Naturalmente fica mais perto do tráfego marítimo, embora apenas algumas horas, pois a dificuldade da barra de Capara - entrada natural para Iguape - torna este porto mais distante do mar do que Cananéia. Pode, pois, ser que tenha toda a razão aquela genuína patriota senhora do Comandante Alvim quando me deu ordem de tratar solicitamente, no rio, da barra de Capara. Quando, na manhã seguinte (17 de setembro), eu quis ir para bordo, o nosso Comandante tinha partido para a barra de Capara, com o aparelho necessário, para fazer as medições. Podia eu, pois, dar ainda um passeio, com o senhor von Randow, ao Porto de Iguape, na lagoa do rio do mesmo nome.

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A estrada do Iguape vai em linha reta até esse singular porto de água doce; não é propriamente uma estrada, mas uma longa praça relvada, firme, em cujas margens crescem, no solo pouco aproveitado, matagais de melastomáceas e de várias outras plantas tropicais. Nos lugares abertos, pastam reses. Não se pode deixar de ver, na faixa de terra, a preguiça de seus donos. No solo frouxo poder-se-iam cultivar mandioca e aipim com as próprias mãos e com grande lucro. Mas, em vez disso, preferem comprar o arroz que desce do rio e dedicar-se a todo gênero de pequenos negócios na cidade. Outros, num modificado dolce fnr lrierrte, preferem passar o dia numa canoa, pescando e secando peixe salgado, quase à moda do bacalhau nórdico, mas em pequena escala. Para essa gente a lavoura é sempre penosa em toda parte, bem que reconheçam o seu valor; não discutem a sua alta importância, e compreendem perfeitamente o valor do trabalho agrícola livre. Invejam o trabalho da imigração alemã. No Porto de Iguape presenciei bonita e calma cena matinal. Estava na praia um barco a vapor e bem perto dele um navio de cabotagem. Sobre a superfície da lagoa, cuja margem oposta ainda estava envolta no nevoeiro matutino, passavam canoas. Cantos de galos denunciavam, porém, que do outro lado havia habitações humanas. Por cima das brancas massas de vapores se elevavam colinas cobertas de mato, que brilhavam, pingando orvalho, aos raios do sol nascente. Formam o porto várias casas e armazéns. Naturalmente, tudo está no começo, ainda em formação. Em toda parte se sente a falta de braços humanos livres, mas se vê o que será, o que deve e precisa ser quando vierem braços humanos. Examinei também o pequeno canal. Primeiro que tudo, deve ser difícil dar-lhe estabilidade: as margens são arenosas e, com a escavação que foi feita, abatem continuamente, sobretudo quando se eleva um pouco o nível habitual das águas. Todavia as canoas podem utilizá-lo. Com o maior desenvolvimento do trafego, eu preferia uma via férrea. Durante horas esperamos, a bordo, pelo nosso comandante. Soprou um vento sudeste bastante forte; por trás da

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língua de terra ouvíamos o mar quebrar-se com mais força e já nos preocupávamos com o nosso capitão, quando o seu bote contornou a última curva da língua de terra. A sua ambição náutica estava vivamente excitada. Já uma vez dois navios desta linha costeira, o "Catarinense" e o "Conde de Áquilan, tinham utilizado a barra de Capara para entrar no "hafF de Cananéia, evitando, assim, 28 léguas de rota. Talvez os comandantes de ambos aqueles navios conhecessem melhor a barra, talvez fosse preamar; não sei ao certo, mas fora mostrada e provada a possibilidade de atravessar aquela barra. O nosso comandante encontrara 21/2 toesas, mas a entrada, o canal da barra, lhe parecia demasiado sinuoso para que ousasse navegá-la com o "Paraense" e assim tivemos de partir de novo para Cananéia. Afinal, era prudente, apesar de um rodeio de 28 Iéguas. Porque se o "Paraense", um casco velho, tão velho como a capa de montar do célebre Mantellied, batesse, ao sair, num banco de areia, com certeza naufragaria, deixando-nos em condições muito precárias. Partimos, pois, de Iguape pelas 3 horas da tarde em calma navegação fluvial. Ao anoitecer devíamos fazer alto num ponto para receber lenha. Essa demora foi aborrecida. Fui dormir e quando despertei na manhã seguinte e abri a porta do meu camarote, brilhava uma aurora dourada sobre Cananéia. Passamos algumas monótonas horas da manhã em Frente do velho lugarejo, mas divertia-nos o movimento na praia e na água. Quando faltam acontecimentos grandiosos, divertemnos um grupo de crianças brincando, peixes saltando fora da água e as gaivotas que os perseguem. Em Iguape comprara uma grande tartaruga ~ ~ d a sgravemente ' ~ , ferida na cabeça, da qual eu queria salvar pelo menos o casco. Mas o pescador estragou a couraça do ventre do grande animal, de modo que só pude aproveitar a couraça dorsal. A couraça dorsal é uma pequena praia, um pequeno museu zoológico. Há, sobre ela, uma multidão de cirrípedes e 13 Suruanã (Chelone mydas).

- N. do T.

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bivalves, entre os quais se escondem, no limo aderente, numerosos anelídeos marinhos. Em formações mais finas ocorrem igualmente formas zoofíticas ao lado de tenras formações de plantas marinhas, quase como finos e articulados cerâmicos. Quando, em 1855, sob bandeira de guerra francesa, viajei do Rio para Brest, muito nos divertia pescar, no mar de sargaço, fucos com as suas legiões de autozoários e outros seres, sobre os quais o meu nobre amigo Burmeister fez, na mesma região, tão inteligentes observações que depois burilou e publicou em seu "OCE(III'~. Pelas 11 horas deixamos a singular Lagoa de Cananéia e Iguape e o piloto conduziu-nos pela barra e recifes fora para o mar aberto até a Ilha do Abrigo. A pequena canoa do piloto e de seus dois companheiros fora içada pelo "Paraense". Baixaram-na. Com grande Iiabilidade os pilotos a alcançaram e afastaram-se com felicidade do vapor trepidante. Um momento depois estava a vela desfraldada e o tronco de murta escavado, como um verdadeiro talassídromo, saltava habilmente sobre a superfície ondulada e às vezes parecia afundar-se no salso elemento, acompanhado de pitos de angustia de parte dos passageiros de bom coração. Com um tempo maravilhoso seguinlos em rumo nordeste, ao longo da costa que se afastava. Um ligeiro vento fresco S.S.E. enfunou com alguma força duas de nossas velas, o mar pouco agitado fazia o nosso navio arfar levemente e nada perturbava a nossa alegria no magnífico elemento verde, do qual se elevavam ao noroeste belas serras de nevoento contorno. Quando, pelo fim da tarde, reconhecemos a costa distante de Iguape, no lado ao norte da barra de Capara, podíanlos com alguma probabilidade fixar a nossa chegada a Santos para a manhã seg~iinte.E, alegres, fomos todos para a cama. Pela nieia-noite me despertou um forte estrondo de trovão. Em volta desciam relâmpagos sobre o oceano e um vento do nordeste que soprava em nossa direção, assinalava o horizonte do mar na meia obscurecida noite de lua. Lentamente, mas em maiores dimensões, subia e descia o nosso navio. Não

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era uma tempestade no mar, mais ou menos como ocorre em todas as viagens marítimas. E todavia a tempestade se ajuntava a inquietação. O vapor era uma velha carcaça; dele não se podia esperar muito. Demais, o vento nos era contrário e, para justificar completamente a nossa inquietação, nos encontrávamos precisamente na latitude e altura de uma regiáo que é perigosa para os que nela navegam de noite e com nevoeiro. A umas dez milhas geográficas ao sul de Santos existe no mar um grupo de rochedos dividido em duas partes, chamado -as Queimadas, com as quais se deve ter muito cuidado para não arriscar vidas e bens. Exatamente ali devíamos estar, O "Paraensel' marchou com meia força e olhava-se para todos os lados. Mas caía uma pesada chuva que nos obrigou a ir para o camarote. Maravilhoso instrumento é a agulha magnética, maravilhosa debaixo da terra, no meio da floresta, no meio da noite tempestuosa no mar, no meio da planície relvada americana. Sentei-me no camarote, tendo diante de mim o meu mapa e a minha bússola portátil, que mostrava E.N.E. Depois virou ela OU,antes, virou o nosso barco um semicírculo para S.O., dizendo-me assim, com precisão, em baixo, dentro do navio, que em cima do mastro, tinham visto as Queimadas precisamente na rota de nossa embarcaçáo, afastando-se delas. E assim era. Não distante de nós podiam-se ver, à luz dos relâmpagos, os funestos rochedos da Queimada Pequena. Um forte aguaceiro acalmou o mar e pelas 2 horas os passageiros foram deitar-se. A tempestade, embora moderada, durou toda a noite. Ao romper do dia tornou-se mais violenta. Os elementos desencadeavam-se, cada vez mais fortes, contra nós, mas cada vez mais nos aproximávamos da bacia protetora; desenhavam-se mais claramente, entre as nuvens, os contornos das escarpadas serras, é com um mar suavemente encrespado, penetramos na baía de Santos! A entrada da baía de Santos é efetivamente notável por causa de sua beleza natural. Do lado de leste elevam-se os

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outeiros em parte outeiros pedregosos da grande ilha de Santo Amaro, ao passo que ao oeste limita o braço de mar um solo plano e verdejante. Ali, no alto, se vê sobre um belo outeiro uma capela de Monte Serrat, a cujo sopé fica Santos. Diante de uma fortaleza situada numa íngreme encosta pedregosa, o, barco que entra é chamado e depois visitado. Parece cada vez mais habitada a costa verdejante, por trás da qual se estende, a distância de algumas milhas, como um forte baluarte, a serra de São Paulo. Dobra-se, então, para leste e para-se diante de Santos, que se estende numa extensa linha ao longo do mar. Despedi-me de meus companheiros de viagem e fui para terra. Como porto principal da grande Província de São Paulo, Santos é decerto conhecida no comércio mundial e entre agente que lê para que me seja necessário dar informações precisas sobre ela. A cidade tem cerca de 7.000 habitantes. Estende-se ao longo da baía de S.S.E. para N.N.O. com um considerável comprimento, sem muita largura. Algumas, aliás muitas casas são bonitas e vistosas; muitas ruas são retas e largas mas, no conjunto, Santos ficou muito aquém de minha expectativa. Que uma cidade de 7.000 habitantes não tenha palácios e grandes catedrais, é muito compreensível. Convenho até que Santos tem edifícios públicos condignos, igrejas, conventos, etc., que quase não seriam de esperar em cidade tão pequena. Refiro-me aqui a coisa muito diversa; tenho de censurar aqui um caso muito especial. Subam comigo ao íngreme outeiro da igreja de Monte Serrat ou Montserrat. Temos diante um quadro encantador, quase majestático. Ao sul e ao sudeste fica o oloroso mar. O braço do mar penetra na terra, sinuoso como um rio, primeiro para o norte e depois para o noroeste e forma várias enseadas e reentrâncias. Mas o contorno imediato da baía de pouca correnteza, de pouco fluxo e refluxo, de pouco vento, é uma terra plana, pantanosa, em torno da qual se erguem uma serra muito escarpada e outras serras.

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Por mais graciosa que seja a paisagem que se desfruta do alto do Monte Serrat, jamais se lhe pode atribuir o conceito de região salubre. Ao contrário, forma uma caldeira com todos os ingredientes com os quais o sol tropical pode guisar uma multidão de matérias infecciosas. E nisso eficazmente cooperam os homens. Do outeiro se avistam, em baixo, em quase todos os pátios e hortas, lugares pantanosos, fossas sujas, poças de águas estagnadas. Mas isso não é nada ou apenas amargamente pouco. A flor da porcaria encontra-se na praia, no cais da cidade. Aqui é realmente de pasmar. Em toda parte imundície, em toda parte fedor, em todos os cantos e recantos matérias pútridas! E ainda se queixa a gente de ser perseguida pela febre! Que magnífico solo deve encontrar o germe da febre que entra aqui e como deve ser difícil, aqui, que os não aclimados escapem 2 febre amarela! Como ainda em 1850 assustava desesperadoramente a simples palavra - febre amarela - no Brasil! E hoje, passados apenas sete a oito anos, constrói-se ~ i n ltemplo à deusa Febris e conscienciosamente se praticam os seus mistérios na praia imunda de Santos. Quando, antes de minha partida, sua excelência o senhor Ministro Presidente Marquês de Olinda pediu a minha opinião sobre os meios e processos para afastar da costa brasileira a minha figadal inimiga desde anos - a febre amarela - eu acreditava na possibilidade dessa expulsão e disse algo a respeito, mas então não pensava que, numa conhecida cidade comercial, dentro da zona da febre amarela, se tolerava tal acúmulo de fétida imundície. Primeiro é preciso que Santos seja castigada pelo seu crime contra a saúde pública, antes que mereça libertar-se dó flagelo da febre amarela e antes que um médico viajante possa dizer qualquer coisa de bem da cidade. O movimento comercial de Santos é bastante considerável, embora, pessoalmente, nada tenha visto de importante. No porto havia um brigue norueguês, dois vapores e uma velha barca totalmente desmantelada; nenhum outro mastro

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se via, o que me causou estranheza. Um comandante consciencioso, quando pisa a suja praia da alfândega, não tem nada de mais urgente a Fazer do que despachar os seus papéis e ir-se, para não por em perigo a vida da sua gente. O principal artigo de Santos, para a exportação, é ainda o café. Por ano são exportados 160.000 sacos. Outros artigos, como o açúcar, o tabaco, etc., não alcançam volume importante. Com os vapores da linha regular seguem gêneros alimentícios para o Rio, inclusive grande quantidade de toucinho. A importação de todos os produtos industriais europeus imagináveis é feita em parte diretamente, mas em maior quantidade indiretamente, via Rio de Janeiro, cuja forte expansão comercial evidentemente pesa um pouco sobre Santos e fica no caminho deste centro comercial de segunda classe. É da maior importância para Santos o seu intenso tráfego de navegaçáo com o Rio de Janeiro. Quase não se passam três dias sem que dali chegue ou para lá siga um vapor. O movimento de passageiros é considerável por causa da capital de São Paulo e de toda a Província, cujos habitantes, cada vez mais, preferem a viagem de 24 horas por mar ao fatigante caminho por terra de duas a três semanas para o Rio de Janeiro. Dados mais precisos sobre todc esse comércio e navegação reservo para mais tarde, se tiver oportunidade de compor uma obra estatística sobre o Brasil. Santos tem um hospital municipal. Poderá ser suficiente para as necessidades da pequena cidade, mas deixa muito a desejar. Em particular fica muito perto do outeiro de Monte Serrat e mesmo por isso me pareceu milito úmido. Parece que náo são isoladas as doenças cujas emanações podem ser nocivas a terceiros. Numa sala havia variolosos misturados com outros doentes. Dc resto, não faz muito tempo era a mesma prática seguida no Rio dc Janeiro. Conheci poucas pessoas em Santos. Tive o prazer de rever antigos conhecidos, entre os quais saliento, com alegria e gratidão, os senhores Wedeltind e dr. von der Meden. O último

exerce em Santos a arte hipocrática com zelo e circunspecção. Devo à sua hospitalidade uma agradável residência na casa do doutor, cuja família estava ausente, no campo. Fiz também uma ou outra visita a novos conhecidos, algumas muito agradáveis e alegres. Parece-me no entanto, que é preciso viver muito tempo em Santos para poder gozar de relações sociais agradáveis, embora me tenham cochichado que, quanto à vida social, Santos é uma cidade incolor, horrivelmente aborrecida e tanto mais o parece ser quanto mais tempo lá se vive. Famílias, não conheci. Parece que entre elas não há relações fáceis. Os alemães de Santos - devem viver lá uns sessenta a oitenta de todas as categorias - parecem muito isolados do mundo brasileiro, vivendo entre si. Por isso não se pode falar de uma vida alemã em Santos. Ocupam-se calma, tranqüila e sensatamente de seus interesses comerciais, parecendo pesar-lhes certa crise comercial; em resumo: uma sadia vida alemã, uma aproximação para estímulo mútuo, a formação de uma vida familiar alemã, náo vi em parte alguma. O único empreendimento que devo assinalar entre os alemães na maioria protestantes -como expressão de vida em comum, é que fundaram um cemitério protestante. Parece-me ser um monumento de vida alemã e por isso julguei que, de passagem, devia referir-me a ele. Enquanto, porém, for essa a única vida alemã em comum, desejo aos meus amigos alemães de Santos que agora passem ao largo do Céstio e que mais tarde desçam para o Orco em terra alemá. Eu, de minha parte, não gostaria de ser enterrado em Santos!

"Fue Rafael Greca de Macedo quien, emulado por los logros de su predecesor, se ha lanzado a construir unas bibliotecas para ñiños enforma de empinadosfaros, multicolores y vertiginosas @ara quien sufre de mal de altura). Él me assegura que han sido diseñadas tomando como inspiración a la primera biblioteca que recuerda la história, la de Alejandría, y yo le creo. iPor qué no le creería, después de haber visto con mis propios ojos que era cierto que Curitiba tiene una Ópera construida no con mármol nifierro ni concreto sino con alambre?"

Mari0 Vargar L l w (Premio Nobel)

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