65 - A Coroa De Lata

  • July 2019
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65 A COROA DE LATA MAHMOUD TEYMOUR (1894-? - Egito)

Senhor Procurador-Geral, por que Vossa Excelência insiste tanto em saber do motivo que me teria levado a matar o Sr. Zahir? Eu não o matei e jamais pensei em praticar um ato de tal sorte. Sem dúvida, alguém mentiu a V.Ex.a afirmando semelhante coisa, embora eu ache que não tenho inimigos que desejem me prejudicar de maneira tão daninha. Por que razões formularam tais acusações contra mim, inculpando-me equivocadamente desse delito, quando todos conhecem os sentimentos de amizade que eu nutria pelo Sr. Zahir, diretor do teatro onde representei por mais de vinte anos? Eu o estimava muito, respeitava-o muitíssimo. Eralhe reconhecido por todos os favores e delicadezas que sempre teve para comigo. O Sr. Zahir, por outro lado, demostrava afeto por mim, e sempre que tinha a oportunidade, me elogiava, exaltando a minha capacidade artística. Será que haverá um só ator da companhia disposto a me desmentir? Caso houver, faça que ele seja conduzido até aqui, Excelência. Interrogai-

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o sem maiores pressas e ele deverá admitir que mentiu, ou que foi levado ao erro. Por quais motivos haveria eu de assassinar o Sr. Zahir? Justamente a mim é que V.Ex.a dirige uma pergunta de tal ordem? A um homem que, caminhando pelas ruas, tem todo o cuidado em não esmagar uma formiga, em não pisar num escaravelho? Nada me dá tanto horror como o sangue, mesmo que seja de um bichinho. Detesto as cenas de crime e de combates mesmo no palco, a tal ponto que meus companheiros me apelidaram de Rei-Amante-da-Paz, e sempre me confiaram esse papel. Eu o interpretava maravilhosamente; toda a minha vida profissional demonstra isso: representando, não tinha necessidade de fingir, pois aquele era o personagem que eu encarnava diariamente, na minha existência real. Acredite, Excelência, não fui eu quem assassinou o Sr. Zahir: mas, já que deseja me interrogar sobre esse assunto, vou lhe contar alguns fatos relativos ao meu passado e às relações que tive, seja com o Sr. Zahir, seja com a companhia que ele dirigia. Estou convencido que será do seu interesse. Ao longo de vinte anos representei o papel de ReiAmante-da-Paz. Ao longo de vinte anos vivi em suntuosos palácios, por entre colunas de ouro, sentando-me em esplêndidos tronos; trazia à cabeça uma coroa de pedras preciosas, vestia riquíssimas vestes cuja cauda era segurada por jovens escravos. Durante vinte anos, participei de suntuosos banquetes,

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saboreei pratos de imenso requinte e bebi em taças esplêndidas, enquanto meus súditos se debatiam para apanhar o ouro que eu lhes atirava a mancheias. Suplico, V.Ex.a., que não venha a me dizer que aqueles palácios, aqueles ouros, aqueles ornamentos, eram apenas papelão e lata pintada de ouro! Não, pode ter certeza; eram palácios de verdade e nenhum monarca ou sultão teve mais razões para exultar nas suas magníficas pousadas do que eu exultava nas minhas. Os sentimentos do homem, por ventura, não são revelados e provados precisamente pelo prazer que ele aufere de semelhantes alegrias e de sua capacidade de desfrutá-las plenamente? Suponhamos por um momento, Excelência, que, depois de haver presenteado com dez toneladas de ouro puro, um tirano desconhecido lhe enviasse ao deserto para lá viver, numa região onde a civilização fosse desconhecida e não habitada por nenhum ser humano. Para que lhe serviria, num caso assim, essa enorme quantidade de metal precioso, esse tesouro pelo qual nações inteiras, e não apenas indivíduos isolados, estariam dispostas a desencadear uma luta impiedosa? Que prazer vos adviria de tão cobiçada posse? O papelão e a lata dos meus fictícios palácios me eram bem mais úteis: proporcionavam-me maiores prazeres do que as toneladas de ouro puro e verdadeiro do deserto. Graças a eles, sentia a importância da realeza, a pompa da soberania! Sinceramente, aceite, Excelência, minhas razões. Juro que, quando me levantava de meus suntuosos banquetes, estava saciado como poderia estar qualquer homem que tivesse enchido o estômago

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destas iguarias de um esplêndido festim. Conservo ainda nas narinas o perfume das carnes opíparas que então comia, e o meu paladar continua impregnado do sabor do raro vinho que me era servido em taças incrustadas de gemas. Neste momento, posso até saborear de novo a felicidade que me enchia o coração quando perdoava um criminoso arrastado diante de mim pelo carrasco, para que lhe decretasse o castigo. Na verdade, Excelência, a lembrança daquele infeliz que fixava seus olhos súplices em mim e me agradecia por ter sentido piedade por ele faz ainda que meu coração bata mais rápido e meus olhos se encham de lágrimas. Que me perdoe, Excelência, este pranto, mas eu lhe suplico, pelo amor de Deus, não rieis de mim. Na verdade, Excelência, eu gozei de todo o luxo, a comodidade e a beleza que tornam agradável a vida dos soberanos. Poderei por acaso esquecer aquelas longas filas de nobres e de militares que, desfilando à minha frente, dobravam o joelho no chão, com a mais humilde dignidade? Poderei esquecer as deliciosas festas que me eram oferecidas, com belas bailarinas, cantoras de voz melodiosa, as jovens virgens que acionavam o ritmo dos pandeiros? Aquelas festas onde cada homem podia livrar-se das vestimentas para envergar os hábitos do Monarca Louco? Não esquecerei jamais as radiosas donzelas que me circundavam, jogando-me olhares sedutores; quando uma delas conseguia fazer jus a um dos meus fugitivos sorrisos, considerava-o na medida de um tesouro sem preço. Por vinte anos, Excelência, vivi como um grande

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monarca, com súditos, soldados, príncipes, servos e um número infinito de escravos. Por vinte anos, saboreei as sensações do poder; uma simples palavra de meus lábios tornava-se lei, um só olhar de meus olhos era uma ordem sagrada. Passei os meus dias nessa atmosfera, sem um lar onde me refugiasse depois do espetáculo. O palco era meu único asilo; como não me agradasse sentar-me no café para deixar o tempo passar em frívolas fofocas com meus colegas, gastava todas as minhas horas livres no teatro, naquele ambiente estranho, entre personagens interessantes e faustosos palácios. À minha volta, havia sempre bastidores, trajes e praticáveis. Assim se encaminharam as coisas, até o dia em que o Sr. Zahir, chamando-me ao seu escritório, acolheu-me com um belo sorriso, ofereceu-me um cigarro e me o acendeu. Depois começou a falar em termos elogiosos da minha arte: - Com certeza você sabe - disse - quanto é grande o afeto que lhe consagro e a estima em que o tenho, senhor Mahfouz. Mas quero dar-lhe uma prova concreta disso. - Senhor - respondi em tom alegre -, não posso desejar melhor recompensa do que a declaração que me acaba de fazer. - A vida de um ator é fatigante - prosseguiu ele. Há mais de vinte anos que você trabalha na minha companhia, partilhando de incertezas e vicissitudes de toda a sorte. Você nos deu os melhores anos de sua vida, mas agora é a hora de descansar. Não lhe pedimos mais para representar e, no entanto, como no

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passado, continuaremos a lhe pagar salário. Fiquei pálido. - O senhor quer que eu ... me retire do palco? - Sim, mas conservando o salário integral. Abaixei a cabeça, sem lhe dar resposta. Tinha aqui dentro de mim todo o tipo de pensamento e não sabia de que lado começar ou acabar; entre um confuso sobrepor-se de cenas dramáticas, me via rodeado de uma multidão de amigos, de príncipes, de ministros, da corte habitual de militares e escravos. Tinham vindo para me dizer adeus, ao saberem que eu ia deixá-los. Ouvia os alaridos das trompas anunciarem minha partida com tristes notas amargas e, enquanto descia a escada de mármore do palácio real, via os súditos mais fiéis se apertarem à minha volta para espargir copiosas lágrimas sobre o farrapo do meu manto ... Depois chegou até mim a voz do Sr. Zahir. Pusera a mão sobre meu ombro e me sacudia com força. - Que aconteceu? - perguntou. - Você está se sentindo mal? Acorde, meu caro Mahfouz! Fixei-o com os olhos brilhantes de lágrimas. - Que coisa mais inconcebível! - disse ele. - Não ficou satisfeito? - Senhor, senhor ... - consegui responder. Não quero receber o salário integral. Não quero nada. Mas me deixe continuar trabalhando no seu teatro ... Não me aposente, por favor!

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- O que você está dizendo? Eu não estou te aposentando, ao contrário, quero lhe dar uma prova da estima que lhe dedico. Reflita comigo: talvez você esteja cansado; vá descansar e depois examine a proposta e volte a me procurar de modo que possamos falar sobre ela com mais calma. O pedido que fiz ao Sr. Zahir não foi levado em consideração: pelo contrário, me pareceu que todos criticavam a minha atitude e admiravam a ele pela generosidade com que me havia tratado. Realmente, seria difícil encontrar uma pessoa mais magnânima do que ele. Conseqüentemente, me convenci de que eu estava errado e, abandonando o trabalho, decidi me retirar e fui viver num bairro da periferia. Aluguei um quarto com a intenção de me afastar para sempre e por completo do teatro, de modo a não ver mais coisa alguma que pudesse reavivar a minha dor, o meu sofrimento. Meus esforços de aceitar o julgamento do destino, sem acrimônia ou azedume, com a mesma resignação filosófica que representara tantas vezes no palco, quando o meu papel me havia constrangido a suportar os fatos diante dos quais até um rei devia inclinar-se em silêncio. Tentei me ligar por amizade a alguns vizinhos do prédio, pensando que poderiam aliviar um pouco a minha dor e que ao lado deles a minha alma se sentiria consolada e propensa ao esquecimento. Os primeiros três meses na nova moradia, Excelência, foram serenos. Sentia-me bem com os amigos e à noite procurava o café para passar as horas

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em agradáveis conversas. Quando me interrogavam a respeito do passado, eu contava algum episódio interessante da vida que levara à luz da ribalta, vestindo trajes imperiais. E de que outra coisa poderia eu falar? De repente, depois do primeiro gole, apenas sentado à mesinha do café, me sentia novamente possuído pela personalidade do "Monarca”. Revia a imponente sala dos banquetes, com suas altas colunas, mesas cobertas de preciosos pratos, as taças incrustadas de gemas, as delicadas iguarias; revia as multidões apertadas contra mim, os postulantes que se ajoelhavam para formular suas súplicas, os súditos que abriam alas para eu passar e me aplaudiam. Depois, ouvia as claras vozes de "Hosana", a música arrebatadora, o rufar dos tambores, o chocar das espadas. Assim passava eu as horas em companhia dos meus novos amigos. Em seguida, voltando para casa, eu me deixava vencer pelo sono, e uma vez mais vivia em magníficos palácios, em pleno fausto do meu régio poder. Sim, Excelência, nada tenho contra o fato de admitir que atravessei aqueles meses em paz e serenidade. Certa noite, no entanto, enquanto eu estava sozinho no café, me caiu sob os olhos uma filipeta do teatro. Por uns tempos segurei-a entre as mãos, brincando com ela distraidamente, sem intenção de lê-la. Estava admirado que uma publicidade daquele tipo, tendo chegado até o subúrbio, caísse justamente nas minhas mãos. Seria aquilo uma simples coincidência? Ou quem sabe uma

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brincadeira do predisposto Destino? O coração me batia forte quando, finalmente, abrindo o papelucho em cima da mesinha, me inclinei para observá-lo. Naquela noite, justamente aquela noite, o grupo dirigido pelo Sr. Zahir levaria "O Rei dos Reis", a minha peça, aquela que me havia dado glória e renome - e o Sr. Zahir em pessoa iria encarnar o personagem. Saindo rapidamente do café, me percebi correndo loucamente pela rua. As pessoas se viravam para ver, estupefatas, perguntando-se que loucura havia me dado: mas continuei a correr sem prestar maior atenção aos transeuntes. Chegando ao teatro num estado de completo esgotamento, atirei-me no chão num canto escuro, junto à porta de saída dos fundos. Só quando consegui me recuperar um pouco, me levantei e deslizei rápido pela porta sem ser visto por ninguém. Provavelmente, Excelência, vós não conheceis o espírito que impera nos teatros; não tendo jamais subido num palco, ignorais aquela atmosfera palpitante de pura comoção. Não podeis, portanto, ter sequer uma idéia dos sentimentos que me animavam, enquanto, depois de longa ausência, eu girava por entre as caixas de cenários e mobílias dispersas por toda a parte. Como em sonho, assim que encontrei a porta do camarim que fora meu, procurei no armário o cetro, a coroa, as vestes do "Rei dos Reis". Vestida a roupa, comecei a me caracterizar, e só quando terminei a função, ergui os olhos para o espelho. Que o céu me proteja! Eis-me de novo o "Rei dos Reis", como se tivesse ressurgido da morte para voltar

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ao mundo depois de uma interminável ausência. Não me lembrava sequer que sobre esta terra existia um homem chamado "Hahfouz". Por que motivo deveria eu saber de sua existência? Aquele personagem satisfeito com sua esquálida vida não podia contar nada, era um ser insignificante, um pobre freqüentador dos cafés de bairro que nada tinha em comum comigo. Com um passo lento e solene, depois de colocar no rosto a barba do rei, saí do camarim. Todos me aguardavam: na frente, os portadores de tochas, atrás deles, os portadores de estandartes. Enquanto soavam as trompas a sua altissonante saudação, os soldados levantavam as lanças para me prestar homenagens; ao entrar na grande sala, olhei-a com os olhos de sempre: ela com suas paredes cobertas de afrescos, belas colunas de ouro e, ao centro, o trono encimado por um balanquim de veludo vermelho. Ao redor, tudo eram príncipes e ministros agrupados. Finalmente, eu estava de volta ao meu reino, tinha reconquistado a minha soberania. Devagar e majestosamente, aproximei-me do trono, saudando com um furtivo sorriso os fiéis servidores que me rodeavam. Mas naquele momento me surgiu pela frente uma estranha figura: um personagem desconhecido, vestido de "Rei dos Reis". Apesar de cheio de indignação, pedi-lhe amavelmente que se afastasse e que abdicasse, pois era ele um usurpador. Ele me respondeu com uma arrogância difícil de agüentar. Em vão tentei dominar a raiva que me invadia, nem mesmo o mais paciente dos homens pode

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suportar o desdém quando a ofensa alcança e supera todos os nossos limites. Levantei então o cetro numa atitude de ameaça e defesa; depois tudo escureceu à minha volta e perdi a consciência ... Foi aí que acabaram me trazendo diante de vós. Eis, pois, Excelência, a minha história. Contei-vos tudo. Agora dizei-me: estais ou não persuadido de que eu tenha alguma culpa da morte do Sr. Zahir? Tradução de Afonso Schmidt

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