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Tratado Sobre a Tolerância
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TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA
TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA A propósito da morte de Jean Calas
Volta ire
Introdução, notas e bibliografia RENÉ POMEAU
Tradução PAULO NEVES
Martins Fontes São Paulo
2000
I lhhiBDlIRlhUi. ij(jh123Kj-;'IMÉRANCE. Copyright © Flamar;on, Paris, Í989, para' o aparelho crítico. Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1993, para a presente edição.
Índice
I' edição setembro de /993 2' edição junho de 2000 Tradução PAULO NEVES Tradução do prefácio Maria Ermantina Galvão Revisão da tradução Eduardo Brandão Revisão gráfica Andréa Stahel M. da Silva Ivete Batista dos Santos Produção gráfica Geraldo Alves PaginaçãolFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial 16957-7653)
Introdução ...................................................... ~...... VII Cronologia .............................................................. XXXIII
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil) VOltair., 1694-1778.
Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas I Voltaire ; introdução. notas e bibliografia René Pomeau ; tradução Paulo Neves. - 2. ed. - São PauJo : Martins Fontes, 2000. (Clássicos) Título original: Traité sur la tolérance. Bibliografia. ISBN 85-336-1258-3 1. Filosofia francesa 2. Literatura francesa I. Título. 11. Série. CDD-I94
00-1860 Indices para catálogo sistemático:
1. Filosofia francesa 2. França: Filosofia
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Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 239-3677 Fox (11) 3105-6867 e-mail:
[email protected] http://wWw.martinsfontes.com
I. História resumida da morte de Jean Calas. lI. Conseqüências do suplício de Jean Calas .. lI!. Idéia da Reforma do século XVI ................ . IV. Se a tolerância é perigosa, e em que povos ela é permitida ............................................ . V. Como a tolerância pode ser admitida ....... . VI. Se a intolerância é de direito natural e de direito humano ............................................ . VII. Se a intolerância foi conhecida pelos gregos .......................................................... . VIII. Se os romanos foram tolerantes ................. . IX. Acerca dos mártires ..................................... . X. Acerca do perigo das falsas lendas e acerca da perseguição ..... ,................................. . XI. Abuso da intolerância ................................. . XII. Se a intolerância foi de direito divino no judaísmo e se foi sempre posta em prática XIII. Extrema tolerância dos judeus ................... .
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XIV. Se a intolerância foi ensinada por Jesus Cristo .................. ······························ ............ . XV. Testemunhos contra a intolerância ............ . XVI. Diálogo entre um moribundo e um homem saudável ............................... ··············· XVII. Carta escrita ao jesuíta Le Tellier, por um beneficiado, em 6 de maio de 1714 .......... . XVIII. Únicos casos em que a intolerância é de direito humano ............................ ·················· XIX. Relato de uma disputa de controvérsia na China ............................. ···················· ........... . XX. Se é útil manter o povo na superstição .... . XXI. É preferível a virtude à ciência .................. . XXII. Acerca da tolerância universal ................... . XXIII. Oração a Deus ........................................... .. XXIV. Pós-escrito .................................. ··················· XXV. Continuação e conclusão ........................... . Artigo posteriormente acrescentado, no qual se fala da última sentença pronunciada em favor da família Calas ................................. ···························
Notas ...................................................................... . Bibliografia ......................................... ··················· .
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Introdução
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Voltaire não esperou o processo Calas para se preocupar com a tolerância. A questão já agitava o meio em que foi criado: é notório o clima de discussões religiosas e de perseguições em que terminou, durante a juventude de Arouet, o longo reinado de Luís XIV. Quando da morte do rei, em 1º de setembro de 1715, as prisões estavam cheias de jansenistas, pessoas muito honestas, vítimas de sua fidelidade à teologia da "graça eficaz". Infelizmente, Luís XIV obtivera da corte de Roma, reticente, a bula Unigenitus. Arouet, por sua família e círculo de amigos, vira de perto essa última tentativa de reduzir os partidários de Jansênio, de Arnauld, de Quesnel. Depois, com o advento do Regente, abrem-se as prisões, a pressão atenua-se, mas não desaparece. O século inteiro será preenchido pelos esforços do poder para sufocar ou adormecer um partido religioso, poderoso, inerradicável. O Tratado sobre a tolerância evoca as fases de crise desse enfrentamento prolongado. Como sói acontecer, o conflito religioso permite que tensões de outra ordem se manifestem. Na capital, o bairro jansenista por excelência vem a ser o mais miserável: o de SaintMédard, povoado de pobres-diabos, de indigentes. Um
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diácono da paróquia, chamado Pâris, asceta que literalmente se matou de tantas privações, é reconhecido por essa gente pobre como seu semelhante e herói, que condenava, com seu exemplo, a religião corrompida dos bairros ricos e da corte. É "canonizado" pelo povo. Ao seu túmulo afluem multidões, sacudidas de crises histéricas. São Pâris realiza milagres: as "convulsões" que agitam seus fiéis passam por curá-los de suas doenças. Tendo a polícia fechado o cemitério ("Em nome do rei, é proibido a Deus/Fazer milagre neste local"), as "convulsões" continuam a portas fechadas, nos sótãos. Alguns anos mais tarde, o caso dos atestados de confissão faz recrudescer a perseguição. O Tratado sobre a tolerância, no capítulo dezesseis, refere-se a esse episódio, ainda recentíssimo no momento da publicação da obra. O arcebispo de Paris, esperando acabar com o jansenismo, tivera uma idéia que se revelou das mais desastradas. Os últimos sacramentos só deviam ser administrados aos agonizantes que pudessem apresentar um atestado de confissão de um padre que acatasse a bula Unigenitus. Ora, numerosos fiéis falecem sem poder cumprir o requisito. Resulta daí ser-lhes recusada a sepultura cristã. Conseqüência mais grave: esses cristãos, não tendo sido lavados de seus pecados pelo supremo sacramento, correm o risco da danação eterna. A emoção em Paris se transforma em rebelião. O Parlamento apodera-se do caso. Agonizantes fazem lavrar, por tabelião, a recusa do sacramento. Depois disso, o tribunal de justiça processa os párocos culpados de terem obedecido ao seu arcebispo. Luís XV intervém, exila os parlamentares, depois os chama de volta. Ainda, à véspera de 1789, o jansenismo continua bem vivo. Tirará sua desforra ao inspirar largamente a Constituição civil do clero, de 1790. VIII
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Quando lemos o Tratado de Voltaire, devemos rememorar o ambiente da antiga França, onde o poder se arrogava mui normalmente o direito de atormentar homens por suas crenças. Dentre as vítimas, os mais dignos de pena eram seguramente os protestantes.
*** A consciência francesa ficou marcada pela lembrança das guerras religiosas do século XVI, até que "93" viesse apagar antigos horrores por outros mais recentes. Voltaire não se enganava ao escolher, por volta de 1720, para sua Henríade épica, um herói e um tema que continuavam a repercutir na opinião contemporânea. Repercussão amplificada ainda pela atualidade da perseguição antijansenista, bem como pelo que sobreviera aos protestantes. O fracasso da Revogação do edito de Nantes ficou, no século XVIII, patentíssimo. Ao assinar o edito de Fontainebleau, em 15 de outubro de 1685, Luís XIV pensava que venceria a resistência dos últimos recalcitrantes. Num regime autoritário, os relatórios que chegam ao príncipe infelizmente dizem não o que é, mas o que este deseja' ouvir. Fazia meses que só se falava ao rei de calvinistas que aderiam aos magotes à verdadeira religião. Ele não se interrogava sobre a solidez de conversões, quer compradas pela Comissão de Pellisson (às vezes após escandalosas barganhas), quer extorquidas pelos dragões, cujas práticas eram todavia conhecidas: pilhagens, roubos, estupros, brutalidades de toda espécie ... A amplitude do êxodo protestante surpreendeu as autoridades. Muitos, porém, não conseguiram emigrar. Subsistiram massas IX
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compactas, intactas, em especial nas Cevenas. Luís XIV, no momento em que devia fazer frente nas fronteiras, com dificuldade, à Europa coligada, foi também obrigado a guerrear os camisards, seus súditos protestantes revoltosos, no coração do reino. Depois da morte do rei, teria sido sensato aprender a lição com o fracasso. Ora, foi a decisão contrária que se adotou. O duque de Bourbon, primeiro-ministro, faz o jovem Luís XV declarar que o desígnio do rei da França continuava a ser o de extirpar a heresia (1724). As antigas leis voltam a viger: pena capital contra os pastores surpreendidos no exercício de seu ministério; quanto aos protestantes presos em flagrante delito de praticar o culto, galés perpétuas para os homens, prisão perpétua para as mulheres. Houve empenho na aplicação de um código tão cruelmente repressivo. Resolvia-se assim, é verdade, um difícil problema: recrutar remadores para as galeras do rei. Enviavam-se os camponeses languedocianos presos pelos guardas nas assembléias do "Deserto" para remar em Marselha e Toulon: duzentos apenas nos anos 1745 e 1746, segundo Antoine Court. Voltaire, por sua vez, calcula que, entre 1745 e 1762, oito pastores foram enforcados por decisão da justiça. Ainda que provações tão rudes atingissem apenas pequeno número de protestantes, todos, em compensação, eram sujeitos a medidas discriminatórias muito penosas. Não tinham estado civil. Seus nascimentos, seus casamentos fora da Igreja não eram legalmente reconhecidos. Seus filhos eram considerados bastardos, com todas as conseqüências daí decorrentes, notadamente no que tange à transmissão das heranças. Por isso, a maior parte dos protestantes se resignava a atos puramente formais de catolicidade. Jean
Calas, por exemplo, fora batizado pelo pároco católico de seu local de nascimento. Mais tarde, casara-se regularmente na igreja, não em Toulouse, mas numa aldeia da Ile-de-France, onde o cura da paróquia não levantara a menor dificuldade para administrar o sacramento. Jean Calas batizara católicos seus seis filhos. Seus quatro filhos homens realizaram seus estudos no colégio dos jesuítas da cidade. Nem por isso deixaram de ser huguenotes, com exceção de um. Oficialmente, depois da Revogação, já não existe no reino da França nenhum protestante: somente "católicos novos". Mas todos sabiam que esses supostos "católicos novos" que se abstinham de assistir à missa, de se confessar, de comungar, eram realmente fiéis da R.P.R. ("religião pretensamente reformada"). Eram tratados como tais. Em particular, eram excluídos de grande número de profissões, vedadas aos protestantes. Na verdade, ao longo dos anos, para tornar possível a vida cotidiana, as autoridades prestavam-se a acordos. De modo que, graças a apóstolos como Antoine Court, recomeçara certa vida religiosa na comunidade reformada. Um sínodo nacional pudera até efetuar-se na clandestinidade, em 1744. Mas esse despertar inquietava. O bispo de Agen fizera, por uma carta pública, em 1751, o elogio da Revogação do edito de Nantes, denunciando paradoxalmente, no calvinismo, "uma religião que consagra os vícios, que permite a licenciosidade". Um abade de Caveyrac, em 1758, publicara uma Apologia da Revogação e do massacre de São Bartolomeu; o Tratado de Voltaire se referirá a essa escandalosa obra. Renasce, no local, uma tensão entre católicos e protestantes, manifestada, em torno de 1760, por vários processos quase simultâneos.
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Em 14 de setembro de 1761, uma patrulha de guardas prende perto de Caussade, ao norte de Montauban, um rapaz de uns vinte anos. Um vagabundo? Não. Ele declara sua identidade: é o pastor Rochette. Sabe que sua franqueza vai fazê-lo incorrer na pena de morte. No dia seguinte, dia de feira em Caussade, os camponeses huguenotes afluem à cidadezinha. Rebentam tumultos. Três irmãos, fidalgos fabricantes de vidro, tentam libertar Rochette. São· presos e chamados a juízo com ele diante do parlamento de Toulouse. Um protestante de Montauban, Ribotte-Charron, solicita a Voltaire que intervenha. O grande homem o faz, mas sem muito ardor (tendo ele próprio rixas com os pastores de Genebra) e, infelizmente, sem resultado. Os quatro huguenotes são condenados à morte. O pastor, de camisa, pés descalços, trazendo no pescoço um cartaz, "Ministro da R.P.R.", é conduzido ao suplício com seus companheiros pelas ruas de Toulouse, apupados pela multidão. Ao pé do cadafalso, Rochette reza longamente. Exorta seus companheiros. Sobe ao patíbulo cantando salmos. Os três irmãos abraçam-se antes de colocar suas cabeças sobre o cepo. Pois, sendo fidalgos, têm a honra de ser decapitados. Essa cena atroz (conhecida por uma carta de RibotteCharron a Rousseau) se passava em 19 de fevereiro de 1762. Alguns dias antes, começara em Mazamet o processo Sirven: a filha de um geômetra-agrimensor, louca, matara-se atirando-se num poço. Acusam o pai, um protestante, de tê-la assassinado para impedir sua conversão·. Alguns dias mais tarde, o protestante Jean Calas será tor-
turadO na roda na mesma praça Saint-Georges de Toulouse onde haviam sido executados Rochette e os três irmãos.
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• Voltaire esperará o desfecho do processo Calas para encarregar-se da causa de Sirven e de sua família.
Na noite de 13 de outubro de 1761, Jean Calas, comerciante de tecidos na Rue des Filatiers, jantara com a família, em seu modesto apartamento no primeiro andar, em cima da loja. Recebiam o jovem Gaubert Lavaisse, de uma família protestante de Toulouse, então fazendo es! tágio com um armador de Bordeaux; vinha dizer adeus aos seus antes de partir para São Domingos. À sobremesa, o filho mais velho, Marc-Antoine Calas, levanta-se e desce; vai, pensam, dar uma volta pela cidade, como está habituado. Por volta das 9h30min da noite, Gaubert Lavaisse se despede. O irmão caçula, Pierre Calas, acompanha-o na escada, de vela na mão. Tendo chegado ao corredor do térreo, avistam na loja o corpo de Marc-Antoine, morto por estrangulamento: o pescoço tem as marcas de uma corda. Ante os gritos da família, os vizinhos saem à rua. As pessoas do bairro se ajuntam. Um boato espalha-se na mesma hora: Marc-Antoine ia converter-se, como fizera alguns anos antes seu irmão mais novo, Louis. Para impedi-lo, os Calas, ajudados por Gaubert Lavaisse, agente de um complô calvinista, com toda evidência, o assassinaram. Pouco depois, chega o chefe da polícia, o magistrado municipal David de Beaudrigue. A versão da rua parece-lhe convincente. Cerca de meia-noite, encarcera na prisão do Capitole todas as pessoas da casa: Jean Calas e sua mulher, seu filho Pierre, Gaubert Lavaisse e, também, a velha criada católica, Jeanne Viguiere.
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Entrou em ação uma máquina infernal que nada deterá mais. Em 9 de março, o tribunal criminal de Toulouse condena à morte Jean Calas. No dia seguinte, o condenado é, perante uma multidão reunida, executado pelo suplício da roda. Drama da intolerância, por certo. Voltaire tinha toda razão em escolhê-lo como ponto de partida de sua campanha contra a perseguição religiosa. A família Calas sofrera as coerções da legislação antiprotestante. Foi esta que criou as condições do drama. Jean Calas exercia havia uns quarenta anos seu modesto comércio. Em sua casa exígua, criara seis filhos: quatro filhos, seguidos de duas filhas·. Com eles morava a velha Jeanne Viguiere, a seu serviço por um quarto de século, considerada parte da família. Era, segundo a sentença, católica e muito devota. Seu testemunho é decisivo para inocentar os Calas. O terceiro filho, Louis, com vinte e cinco anos em 1761, convertera-se cinco anos antes ao catolicismo, sob a influência de Jeanne Viguiere e do abade Durand. Rompera então com sua família. O bispo, após a abjuração, obrigara o pai, como exigia a lei, a quitar as dívidas de Louis e a pagar-lhe uma pensão. Desde então, o rapaz levava uma vida preguiçosa, incapaz de ocupar um empre• Rosine, vinte anos, e Nanette, dezenove anos, ausentes em 13 de outubro: como todos os anos, foram ao campo para as vindimas. Os defensores do crime calvinista pretenderam que os pais as afastaram a fim de executar à vontade o assassínio de Marc-Antoine. O mais jovem dos filhos, Donat, também está ausente: está como aprendiz em N1mes. - Sobre a família Calas e a documentação judiciária do drama da Rue des Filatiers, o estudo fundamental é o de Jean Orsoni, L'a.ffaire Calas avant Voltaire, tese de doutorado do terceiro ciclo, Universidade de Paris, Sorbonne, três volumes datilografados de 605 páginas ao todo, trabalho infelizmente não publicado.
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go fixo, subsistindo apenas da mesada paterna. Depois da morte de Marc-Antoine, diziam que também o filho primogênito ia converter-se, e que esta era a causa do assassínio. Marc-Antoine ia completar vinte e nove anos. Auxilia conscienciosamente o pai na loja, substituindo-o com freqüência, pois Jean Calas, de 63 anos, sente o peso da idade. Marc-Antoine assumirá logo a direção do negócio. Mas sonhara algo diferente dessa vida tacanha de comerciante. Culto, amante da literatura eVoltaire o qualifica d~ "homem de letras"·), estuda direito. Gostaria de entrar na advocacia. Mas esbarra na legislação antiprotestante: é uma profissão vedada aos "pretensamente reformados". Terá ele pensado, para afastar o obstáculo, em aderir ao catolicismo? Tudo prova que se recusou a isso. O inquérito sem dúvida estabeleceu que ele costumava freqüentar os ofícios solenes da Igreja. Era apreciador da bela música. Um homem de condição tão humilde não tinha acesso aos concertos da boa sociedade. Não podia satisfazer seu gosto senão nas cerimônias abertas a todos nas igrejas da cidade. Mas não adiantou procurarem o padre a quem ele se teria aberto sobre suas intenções de abjurar: ~ão o encontraram. Em compensação, os inquiridor~s ti~eram de registrar o testemunho categórico de Jeanne ~l~lere: ela "jamais soube que ele tivesse alguma disposlçao para se converter" ••. Marc-Antoine vivia, portanto, ensimesmado, habitualmente taciturno e melancólico. Aos seus mostrou-se assim, durante a refeição de 13 de outubro à noite. Ou tal.............. • Tratado sobre a tolerância, p. 4. •• Citado por Jean Orsoni, L'a.ffaire Calas avant Voltaire, p. 88.
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vez não tenham prestado atenção nele, ocupados que estavam com a conversa de Gaubert Lavaisse. Será que, quando desceu ao térreo, ele se suicidou na loja por enforcamento? A resposta dependia da posição do corpo quando o descobriram. Nesse ponto capital os Calas divergiram, o que agravou a presunção da sua culpabilidade. Na noite do dia 13, Pierre, apoiado pelo pai, afirmou que o corpo estava estendido no chão: primeira versão, por certo verídica. Tal posição não excluía a tese do suicídio por enforcamento; mas combinava melhor com um .assassínio por estrangulamento. Por isso, os Calas, já no dia seguinte, mudaram seu depoimento. Teriam encontrado Marc-Antoine pendurado numa corda fixada num rolo de madeira (destinado a enrolar os tecidos), estando o referido rolo equilibrado nas duas folhas entreabertas da porta que fazia a comunicação entre a loja e o depósito. Suicídio acrobático, mas existem alguns assim. O inquiridor, David de Beaudrigue, não era um Maigret, menos ainda um Sherlock Holmes. Negligenciou seguir pistas que, talvez, teriam levado à verdade. MarcAntoine havia trocado à tarde, por ordem do pai, prata em luíses de ouro. Não encontraram esses luíses. Que fim levaram eles? Beaudrigue não formulou a questão. MarcAntoine os teria perdido, no jogo ou de outro modo, o que explicaria o suicídio? Estaria um assassino amoitado no quintal da casa, espreitando-o para roubá-lo, ou por outra razão (o inquérito não se interessou pelas amizades femininas desse moço de vinte e oito anos)? Nunca o saberemos. Pois o inquérito orientou-se para uma única direção, que se revelou um impasse: o crime calvinista. Os sentimentos de intolerância foram aqui determinantes. Beau-
drigue sente pelos protestantes uma invencível aversão. Ao seu redor, a cidade manifesta, durante as semanas da instrução, uma viva hostilidade por essa gente de uma minoria reprovada. Como se a conversão de Marc-Antoine fosse um fato estabelecido, a confraria de cogula dos penitentes brancos apodera-se de seu cadáver, enterra-o na igreja de Saint-Étienne, faz em sua honra uma procissão em que ele é representado por um esqueleto articulado empoleirado num catafa1co. Lançam uma escandalosa "monitória": uma advertência aos fiéis lida em todas as igrejas. O texto apresentava como incontestável o crime calvinista; os ouvintes eram intimados, sob pena de excomunhão, a dizer tudo quanto sabiam sobre a conversão de Marc-Antoine, sobre o assassínio deste pelos seus por motivo de religião. Recolheram assim apenas mexericos. Nem todos os parlamentares do tribunal criminal estavam, por certo, cegados pelo fanatismo. Hesitaram. Tinham contra os Calas presunções fundamentadas nas contradições destes quanto à posição do cadáver, na atitude embaraçada do velho comerciante, nem um pouco preparado para enfrentar tamanha provação ao termo de uma vida pacata. Mas indícios não bastavam. A pressão da opinião pública supriu a falta de provas. Faltavam dois votos de maioria para uma sentença capital. A mudança de opinião de um juiz no último momento permitiu obtê-los. Entretanto, a sentença de morte ainda trai as incertezas do tribunal. Na hipótese do crime calvinista, cumpria que toda a família fosse coletivamente culpada, notadamente dada a exigüidade da moradia dos Calas. Em boa lógica, o promotor requereu para o pai e o filho Pierre a morte pelo suplício da roda, para a mãe a morte
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por enforcamento. A sorte de Gaubert Lavaisse e de Jeanne Viguiere seria decidida posteriormente. Mas o tribunal não ousou ir tão longe. Condena em 9 de março de 1762 apenas Jean Calas a ser "quebrado vivo", depois estrangulado e "atirado numa fogueira ardente". "Esta última pena", especifica a sentença, "é uma reparação à religião cuja feliz escolha feita pelo filho foi verossimilmente a causa de sua morte" (grifo nosso). Assim, Jean Calas foi condenado a uma morte atroz com base numa mera "verossimilhança". Fizeram um cálculo: durante a execução, Jean Calas faria afinal a confissão de seu crime. O suplício ia trazer a prova, sempre ausente, que justificaria o suplício. Os juízes não tiveram o que esperavam. Em 10 de março, o condenado foi, conforme a lei, previamente à execução, submetido à questão "ordinária" (seus membros são esticados por talhas), depois à "extraordinária" (fazem-no ingerir dez moringas de água). Beaudrigue, ansioso, fica perto dele. Suplica-lhe, para abreviar o tormento, que confesse por fim, no momento de comparecer perante Deus, a verdade, ou seja, que matou MarcAntoine. Mas Jean Calas não pára de protestar sua inocência. Conduzido ao cadafalso, repete que morre inocente. Deitado na roda, com braços e pernas quebrados a golpes de barra de ferro, fica lá, com o rosto voltado para o céu, agonizando durante duas horas, tendo ao seu lado o padre Bourges. Depois é estrangulado, e seu corpo queimado. Quando tudo terminou, o promotor correu ao confessor: "Nosso homem confessou?" Não, não "confessou". O padre Bourges testemunha lealmente a firmeza de alma de Jean Calas. Os juízes ficam desconcertados. Já não ousam condenar os outros acusados, como logicamente deveriam
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fazer. Em 18 de março, pronunciam contra Pierre uma sentença de banimento e põem os outros réus para "fora do tribunal"; noutras palavras, absolvem-nos. Era reconhecer implicitamente o erro judiciário. Não podemos ter dúvida disso hoje. Por culpa de uma instrução dominada pela prevenção e, por isso, mal conduzida, estamos até hoje reduzidos à "verossimilhança". Mas a maior verossimilhança é a favor da inocência de Jean Calas e dos seus. A comunidade protestante ficara abalada por tão horrível desfecho. As minorias perseguidas sabem organizar-se. Ribotte-Charron, o negociante marselhês Dominique Audibert, seus amigos de Genebra, alertam Voltaire. O grande homem, depois de um exame que teria durado três meses, depois de interrogar longamente o mais jovem dos Calas, Donat, vindo a Ferney, formou uma "convicção íntima": "o furor da facção e a singularidade do destino concorreram para assassinar juridicamente na roda o mais inocente e mais infeliz dos homens, para dispersar-lhe a família e para reduzi-la à mendicância" (a Audibert, 9 de julho de 1762). Desde então encarrega-se do caso. Multiplicando as diligências, as intervenções em Versalhes, acabará obtendo, em 9 de março de 1765, a reabilitação de Jean Calas. O Tratado sobre a tolerância, começado em outubro de 1762, situa-se num momento crucial dessa longa campanha. Uma vantagem decisiva foi obtida, em 7 de março de 1763, quando o Conselho do rei autorizou a apelação do julgamento do parlamento de Toulouse. Voltaire difunde no início de abril o Tratado, impresso em Genebra pelos Cramer. Envia exemplares a Madame de Pompadour, aos ministros de Estado, ao rei da Prússia, a príncipes da Alemanha (carta a Moultou, 3 de abril de 1763). É
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perante a Europa das luzes que ele advoga a causa dos Calas, e vai ganhá-la.
••• Partindo do "caso", o Tratado amplia as perspectivas. O drama tinha, manifestamente, como primeira origem, a legislação antiprotestante. Voltaire propõe modificá-la. Mas procede aqui com extrema prudência, consciente das poderosas oposições que encontrará. Um de seus princípios é que "é preciso sempre partir do ponto em que se está e daquele a que chegaram as nações"·. Durante seu exílio na Inglaterra, ficara impressionadíssimo com o pluralismo religioso instituído nessa "ilha da razão;', em contraste com a situação francesa. Existe, tanto além-Mancha como aquém, uma Igreja de Estado: na Inglaterra, a Igreja anglicana, "aquela em que se faz fortuna", escrevia maldosamente (quinta Carta filosófica). Mas, ao lado dessa Igreja oficial, deixam viver em paz os dissidentes: quakers, presbiterianos, socinianos. Voltaire não pede, no Tratado, uma liberdade comparável para os calvinistas do reino da França. Que concedam aos protestantes apenas uma situação análoga à dos católicos no Reino Unido (dos quais as Cartasfilosóficasnão haviam, aliás, dito uma só palavra). Sem "templos públicos", sem acesso "aos cargos municipais, às funções graduadas". Mas que lhes restituam o estado civil de que a Revogação de 1685 lhes despojou: validade dos casamentos, legitimidade dos filhos, direito de herança, "franquia" das pessoas. Em 1763, ainda era pedir demais. Nas últimas • Tratado sobre a tolerância, p. 31.
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décadas do Antigo Regime, a monarquia francesa parece atingida por uma impotência para realizar até mesmo as reformas mais necessárias. O processo Calas teve, decerto , uma conseqüência nos fatos. Acabou-se com as execuções de pastores, com a prisão em massa de huguenotes "no Deserto" para abastecer as galés. Mas não se modificou em nada a lei. Podia, portanto, ser a qualquer momento reativada. Foi somente em 1787 que Luís XVI decidiu-se a promulgar um edito de tolerância, em favor de seus súditos que não pertenciam à religião católica (o texto não especificava se a medida era aplicável também aos judeus). Vinte e quatro anos depois do Tratado de Voltaire, o rei adotava-lhe as recomendações. Restituía aos protestantes o estado civil. Tolerância, portanto, e tlada mais. Estamos, porém, a alguns meses da convoca;ão dos estados-gerais. O Edito vai ser rapidamente suDerado. De fato, a Declaração dos direitos do homem de L789 institui que "todos os cidadãos [. ..] são igualmente ldmissíveis a todas as funções graduadas, colocações e ~mpregos públicos [. ..] sem outras distinções além daqueas de suas virtudes e de seus talentos". Assim termina a ~xclusão dos protestantes, exclusão de há muito inadnissíveI, pois que, em 1777, Luís XVI havia nomeado :omo principal ministro, e tornado a nomear em 1788, ~ecker, um protestante convicto e até mesmo militante. ~ Declaração de 1789 não afirma explicitamente a liberlade do culto público, como pedira o pastor Rabaut :aint-Étienne, deputado na Assembléia Nacional. O artiiO X estipula somente que "ninguém deve ser importulado por suas opiniões, inclusive religiosas, contanto que Ua manifestação não perturbe a ordem pública estabe~cida pela lei". Mas o artigo seguinte, ao afirmar que "a XXI
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livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem", implicava uma liberdade de culto que era, na verdade, daí em diante praticada sem entraves. O Tratado de 1763 deveria, por uma evolução normal, redundar em mais do que mera "tolerância". A argumentação desenvolvida por Voltaire acarretava conseqüências que iam muito além dos tímidos pedidos de seu capítulo cinco. O Tratado sobre a tolerância revelava a substância de um "Tratado sobre a liberdade de pensar".
como idéia principal "a distinção entre a comunidade política e a sociedade religiosa, a distinção e a separação radical entre as funções da Igreja e as do Estado"·. Desse argumento, Voltaire quase que só retém a recusa galicana ao poder dos papas de distribuir as coroas e de coletar as anatas (capítulo I1I). A separação entre a Igreja e o Estado na França nunca foi um de seus objetivos. Advoga, ao contrário, uma subordinação da Igreja ao Estado: vê nisso um meio de garantir a tolerância. O apelo ao Conselho do rei no processo Calas prende-se a essa política. O Estado não pode desinteressar-se da religião, pois, "em todos os lugares onde há uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária". É desejável que seja uma "religião pura e santa", isenta de superstição e de fanatismo: "não se deve procurar alimentar de frutos silvestres aqueles que Deus se digna alimentar de pão". Mas Voltaire - quiçá para espanto de muitos - concede que, numa população grosseiramente primitiva, as superstições, "desde que não sejam destruidoras", podem ser justificadas. "O homem sempre necessitou de um freio." Por isso era, outrora, "bem mais razoável e útil adorar aquelas imagens fantásticas da divindade [faunos, silvanos, náiades, etc.] do que entregar-se ao ateísmo" (capítulo XX). Voltaire citou Locke como penhor de uma idéia que ele extrai de fora do contexto da Epístola: é permitido "a cada cidadão acreditar apenas em sua razão e pensar o que essa razão esclarecida ou enganada lhe ditar". Formulação que está muito mais próxima de Bayle do que
••• Abordando a questão da tolerância, Voltaire alia-se a textos clássicos: Locke, Bayle. Retoma-lhes as idéias, mas se estabelece, com relação a eles, numa perspectiva nova. Uma nota do capítulo onze remete à "excelente Carta de Locke sobre a tolerância". Obra de forma bem diferente do Tratado. Locke redigiu, em latim, Epístola de tolerantia, esse texto compacto, que será traduzido em seguida para o inglês e do inglês para o francês. Com toda evidência, a Epístola se dirige a um público de doutos. O Tratado de 1763 visa, ao contrário, ao grande público. Faz parte de uma estratégia voltairiana que se esforça por mobilizar a opinião pública. Daí a divisão em capítulos curtos, entremeados de ditos espirituosos e que apelam, no final, para a emoção. Locke escreve por volta de 1685-1686, exilado na Holanda. Tem como objetivo a situação inglesa sob o reinado do derradeiro dos Stuart, pouco antes da Revolução de 1688, que expulsará do trono de um país protestante o católico intolerante Jaime 11. Portanto, Locke desenvolve XXII
.............. • Raymond Polin, John Locke, Lettre sur la tolérance, PUF, 1965, introdução, p. XLVIII.
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de Locke. Sabe-se como em seu Commentaire pbilosopbique sur ces paroles de jésus-Cbrist "Contrains-les d'entrer" (1686), Bayle fundamenta a tolerância numa teologia da consciência. Expõe que o conhecimento absoluto da verdade, em matéria metafísica, ultrapassa o alcance do espírito humano. Logo, basta que tenhamos o sentimento interior de seguir a verdade. Em outras palavras, o que produz o valor de um credo não é seu conteúdo, mas a fé de que procede. Contra essa fé, a autoridade não tem direito algum de empreender o que quer que seja. Voltaire, por sua vez, bem diferente do crente segundo Bayle, não é muito inclinado ao exame interior ou ao ensimesmamento. Vê-se no Tratado e em outras obras que ele tem tendência a reduzir a fé a seus elementos intelectuais, e ainda os mais fúteis: os de uma obscura teologia. Cita a procissão do Espírito Santo (na Trindade, o Espírito Santo procede apenas do Pai ou do Pai e do Filho, Filioque?); ou ainda a questão de saber se Jesus, homem e Deus, tinha só uma ou duas vontades (capítulo XI); ou a do Logos. ele foi feito ou gerado? Com toda a certeza, "seria o auge da loucura pretender levar todos os homens a pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica" (capítulo XXI). Mas, nas guerras de religião que "ensangüentaram" a terra, os dogmas absconsos foram algum dia algo mais que um pretexto? Voltaire não insiste, pois, como Bayle, nos direitos da "consciência errante". Recorre a critérios mais exteriores. O valor supremo para ele é "o bem físico e moral da sociedade" (capítulo IV). "O interesse das nações" exige a tolerância, é isso que ele desenvolve através de um amplo panorama histórico. O pluralismo religioso da humanidade deve-se ao fato de que, nessa matéria, "a educação faz tudo", pelo XXIV
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menos quase tudo. Bayle já propusera esse apólogo: suponhamos uma cidade metade cristã, metade muçulmana; se forem trocados os recém-nascidos entre as famílias das duas religiões, é evidente que o bebê nascido cristão será muçulmano, e o inverso. Voltaire levara ao palco uma situação análoga. Sua Za'ire, nascida de pais cristãos, criada desde o berço no serralho de Orosmane, é muçulmana. Ela mesma fazia sobre seu caso pessoal uma declaração de relativismo religioso: Teria eu sido perto do Ganges escrava dos falsos deuses, Cristã em Paris, muçulmana neste lugar.
Que nem a prédica nem a força conseguem eliminar uma religião em proveito da outra, ficou suficientemente demonstrado pelo fracasso da política antijansenista e antiprotestante de Luís XIV, e o processo Calas acaba de fornecer a sangrenta ilustração desse fato. Voltaire, no Tratado de 1763, amplia o campo de visão. "Saiamos de nossa pequena esfera e examinemos o resto de nosso globo" (capítulo N). Uma vista-d'olhos mundialista faz a humanidade aparecer como um imenso mosaico de religiões. Desse modo, os vastos impérios, necessariamente pluriconfessionais, praticam todos a tolerância. Voltaire os examina. O império otomano tolera os cristãos gregos e latinos, os coptas, os judeus, os guebros, os banianos, etc. Assim também a Índia e a Pérsia. Da mesma forma o império russo, desde Pedro, o Grande. A China confuciana tolera o budismo ("as superstições de Fô"). Se o imperador, que Voltaire escreve Yung-Ching, expulsou os jesuítas, foi porque tais jesuítas eram intolerantes. A Roma imperial acolhia liberalmente os cultos orientais, xxv
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mesmo os mais estranhos ao espírito romano. Mas perseguiu os cristãos. Voltaire esforça-se por responder à objeção: os cristãos eram combatidos não como cristãos, mas como facciosos, que recusavam celebrar o culto de Roma e do Império·. E talvez esses mártires cristãos não tenham sido tão numerosos como pretende a tradição. Voltaire acrescenta, por fim, uma espécie de argumento ad hominem: os próprios judeus antigos eram tolerantes. Sabe-se hoje que o judaísmo arcaico era antes monolátrico do que monoteísta. Embora a comunidade judaica se consagrasse apenas ao culto de Javé, reconhecia paralelamente a autêntica qualidade divina dos deuses venerados por Estados, tribos, povos vizinhos e inimigos. O povo de Javé chegava a invocar essas divindades rivais, de poderio reconhecido como incontestável. Voltaire, que leu muito o Antigo Testamento, notou os vestígios desse estado primitivo das coisas nos textos. Os juízes no deserto, assinala, adoraram não só o bezerro de ouro (que ele identifica com o deus egípcio Ápis) mas também Moloch, Renfa, Kium. As infidelidades ao ciumento Deus de Israel nem sempre eram reprimidas. O próprio Moisés teria sido "obrigado a fechar os olhos à paixão do povo pelos deuses estrangeiros" (capítulo XII): tolerância ... Quanto ao judaísmo na época das origens cristãs, Voltaire salienta que está muito longe de ser um bloco
homogêneo. Os judeus contemporâneos de Jesus se dividem entre várias seitas: fariseus, saduceus, essênios, em desacordo sobre dogmas essenciais e mais diferentes entre si do que são os protestantes dos católicos. Contudo, conseguem coabitar. Assim, Voltaire se diz espantado de encontrar entre os judeus "a maior tolerância em meio aos horrores mais bárbaros" (capítulo XIII). Jesus Cristo teria vindo pôr fim a essa paz religiosa? Voltaire, depois de Bayle, é levado a examinar o "Obrigaos a entrar" (Contrain;;-les d'entrer), invocado para justlficar a perseguição. E conhecida a parábola de Lucas, XIV. Um pai de família preparou uma grande ceia, mas nenhum dos convidados compareceu. Para substituí-los, ele manda buscar cegos e mancos. Como sobram ainda lugares vazios, envia um empregado: "Sai pelos caminhos e atalhos e obriga todos a entrar." Deve-se compreender que o empregado brutalizou os novos convidados e que, a seu exemplo, os dragões de Luís XIV apenas aplicaram um preceito evangélico? Voltaire observa que um só criado não podia obrigar pela força tanta gente. "Obriga-os a ~ntrar" só pode evidentemente significar "rogai, suplicai, mstai, obtende". "Qual a relação, vos pergunto, dessa súplica e dessa ceia com a perseguição?" Jesus pregou "a doçura, a paciência, a indulgência". Ele mesmo foi vítima da intolerância do sinédrio. "Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo", conclui Voltaire, "sede mártires e não carrascos" (capítulo XIV) .
• o que também admitem historiadores modernos: ver Pierre Grimal, Les erreurs de la liberté, Paris, Les belles lettres, 1989. Durante a primeira perseguição, sob Nero, "os cristãos eram tidos L.. l como um grupo de facciosos, inimigos, precisamente, da ordem estabelecida, profetizando a derrocada de Roma".
•••
o fato de a filosofia da história de Voltaire abrir-se para uma visão religiosa fica mais evidente, do que em
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qualquer outra parte, nas últimas páginas do Tratado sobre a tolerância. Pode-se lamentar que tenha achado bom acrescentar após o vigésimo terceiro capítulo mais três capítulos de "post-scriptum", para levar em consideração o estado presente da polêmica e os progressos do processo Calas. Na realidade, o Tratado culmina e conclui com a impressionante "Prece a Deus": "Já não é aos homens que me dirijo, é a Ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos." Tal "prece", dirigida ao "Ser supremo", não é única na obra de Voltaire. Um de seus primeiros textos, a Epítre à Uranie (Epístola a Urânia) (ou Le pour et le contre), é também uma "prece a Deus". Bem como os versos que concluem a profissão de fé em quatro partes de La [oi naturelle:
ramo Quanto mais Voltaire exalta o Ser dos seres, mais rebaixa-lhes as crenças irracionais, que tende a reduzir ao nível de práticas derrisórias: "círios em pleno meiodia", batinas de pano branco ou mantos de lã negra, jargão antigo ou novo, hábitos tingidos de vermelho ou de roxo. Seria loucura para os homens degolarem-se por tais misérias. Com vistas a esse final, foram colocadas indicações nos capítulos anteriores, às quais correspondem temas abundantemente desenvolvidos por Voltaire no resto de sua obra. Por exemplo, a alusão à "adoração simples de um único Deus", esse "culto dos descendentes de Noé" , ou seja, da humanidade primitiva. Voltaire preza a idéia de que o teísmo foi a primeira religião dos homens e se conservou na China de Confúcio (capítulo IV). A religião pura degenerou noutros lugares em superstição e em fanatismo, que produziram a intolerância. Mas um pouco em toda parte encontram-se vestígios das origens: "os antigos povos civilizados [. ..] reconheciam todos um Deus supremo", ainda que, deploravelmente, associassem-lhe "uma quantidade prodigiosa de divindades inferiores" (capítulo IV). Os romanos, mormente, reconheciam esse Deus supremo (capítulo IX). Voltaire acalenta a esperança de que a humanidade voltará à religião natural de seus primórdios. É a isso que tende o esforço de tolerância. Não vão as formigas, perdidas na imensidão cósmica, dizer consigo, cada uma de seu lado, "o meu formigueiro é o único que é caro a Deus, todos os outros lhe são odiosos por toda a eternidade". Voltaire prega: "Digo-vos que é preciso olhar todos os homens como nossos irmãos. Como! meu irmão, o turco? meu irmão, o chinês? o judeu? o siamês? - Sim, sem dúvida, não somos todos ftlhos do
Ó Deus que não reconhecemos, ó Deus que tudo anuncia ...
Essas eloqüentes declarações são provavelmente uma das raras expressões assumidas, em Voltaire, por certo sentimento religioso. Qualquer um que as aceita sem prevenção não pode deixar de ficar comovido com seu tom. É impossível não lhes reconhecer a sinceridade. Na "prece a Deus" final se revela a evidência da qual procede o alegado de Voltaire em defesa da tolerância. Com o "Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos" são confrontadas "fracas criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do universo": os "átomos chamados homens". Esses insetos produziram, ao mesmo tempo que suas "linguagens insuficientes", seus "costumes ridículos", suas "leis imperfeitas", suas "opiniões insensatas", as religiões em cujo nome se dilaceXXVIII
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mesmo pai e criaturas do mesmo Deus?" O que termina na invocação da "Prece a Deus": Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos!
*** Que pensar hoje dessa filosofia da tolerância? Dirão que Voltaire dava provas de demasiado otimismo. "Os costumes se abrandaram", nestes cinqüenta anos, constatava ele. Abrandaram-se, certamente, no seio de uma elite européia, mas bastante estrita: muitos acontecimentos posteriores mostrarão que o movimento era menos extenso e menos profundo do que se julgava. Não se pode ler sem um aperto no coração a página em que ele anuncia que a "Irlanda povoada e enriquecida não verá mais" católicos e protestantes matarem-se uns aos outros (capítulo IV). Será mesmo indubitável que a multiplicidade das seitas as enfraquece, por um efeito quase mecânico? Não vemos ainda algumas que, instaladas em número de quatro ou cinco num mesmo território, se combatem, de armas à mão, com um ardor que sua pluralidade não diminui? O otimismo do Iluminismo se estribava numa filosofia da história que já não parece aceitável. Nossa antropologia já não é a de Voltaire, tampouco a de Rousseau. Quem se atreveria a afirmar que os pequenos grupos originais de Romo erectus ou de Romo habílis adoravam o Ser supremo sem a sombra de uma idéia supersticiosa? Quem pode esperar que a humanidade do futuro, liberta dos fantasmas do irracional e dos furores do fanatismo, comungará no culto puro do Ser dos seres, conforme
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o voto de Voltaire? A disparidade das culturas subsiste e estas, justapostas e pouco assimiláveis entre si, não c;nduzem, mais do que à reconciliação, ao "choque dos mundos", para repetir a expressão com que Alain Peyrefitte define o início do contato da Europa com a China no século XVIII*? Contudo, tanto no universo atual como no Século das Luzes, delineia-se uma evolução em sentido inverso. Nã~ é de espantar que Voltaire, nas Cartas filosóficas, deslgne como um dos lugares privilegiados da tolerância a Bolsa de Londres (Carta VI). Ora, quanto progrediu desde então a internacionalização dos intercâmbios! A rapidez, a facilidade das comunicações de um extremo a outro do p~aneta, a interdependência entre todas as partes deste nao cessa de acentuar a mundialização de nossa civiliza?ão. Impõe-se, por esse fato, uma ética que presc:eve aceitar, na terra inteira, o estrangeiro em sua altendade. Aqueles que ainda pretendem encerrar-se em seu campo fechado, eriçados contra os outros, macerando em seu próprio fanatismo, condenam-se a si mesmos. . O movimento ascendente do Tratado chega a enfatizar uma fórmula, inscrita no título do vigésimo segundo capítulo: "Acerca da tolerância universal." Ressaltaremos o epíteto. No mundo em que vivemos dois séculos depois de Voltaire, a universalidade faz da ~olerância um dever. RENÉ POMEAU
.............. • Alain Peyrefine, L 'empire immobile ou Fayard, 1989.
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te choc des mondes Paris '
,
Cronologia
1572. 24 de agosto: Noite de São Bartolomeu. Por ordem do rei Carlos IX, encorajado por sua mãe Catarina de Médicis, massacre dos protestantes em Paris e nas províncias. 1598. 13 de abril: Henrique N põe fIm às guerras de religião pelo edito de Nantes. A liberdade de culto é garantida aos protestantes sob certas condições. 1685. 18 de outubro: revogação do edito de Nantes por Luís XIV. A religião reformada é proibida no reino da França. Os protestantes convertidos à força são tidos como "novos católicos". 1694. Voltaire, de nome François-Marie Arouet, nasce em Paris. 1702. Guerra de Sucessão da Espanha. 1704. Voltaire inicia estudos no colégio dos jesuítas Louisle-Grand. Derrota dos exércitos franceses em Hochstedt. 1706. O príncipe Eugênio e Marlborough apoderam-se de Lille. 1702-1710. Revolta dos camisards, camponeses protestantes das Cevenas. 1710-1712. O convento dos religiosos cistercienses de Port Royal des Champs (vale de Chevreuse), reduto do XXXIII
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jansenismo, é destruído por ordem de Luís XIV. Os soldados devastam o cemitério. Cenas escandalosas. 1713. Estada de voltaire em Haia como secretário do embaixador da França. 8 de setembro: Luís XIV obtém do papa Clemente XI a bula ou constituição Unigenitus que condena o jansenismo. Paz de Utrecht. 1715. Morte de Luís XIV; o duque de Orléans, regente, assume o poder. 1717. Voltaire é encerrado durante onze meses na Bastilha. 1718. Ele alcança seu primeiro grande sucesso com Oedipe, tragédia. 1719. Inflação: o "sistema" de Law. 1720. Voltaire visita lorde Bolingbroke, no castelo de la Source, perto de Orléans. 1721. Em Londres, Robert Walpole torna-se primeiro-ministro; ocupará o cargo até 1742. 1722. Voltaire faz uma viagem à Holanda: admira a tolerância e a prosperidade comercial desse país. 1723. Publica La Ligue, primeira versão de La Hentiade, poema épico sobre as guerras de religião e Henrique IV. 1726. 4 de fevereiro: é espancado por ordem do cavaleiro de Rohan. 17 de abril: preso na Bastilha. 5 de maio: embarque para Londres. O cardeal Fleury governa a França; conservará o poder até sua morte (1743). 1727. Janeiro: Voltaire é apresentado ao rei da Inglaterra, Jorge I. XXXIV
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Dezembro: publica dois opúsculos em inglês: Essay on Civil Wa~, Essay on Epic Poetry. 1728. Publica em Londres, por subscrição, La Henriade, dedicada à rainha da Inglaterra. Novembro: retoma à França. O abade Prévost converte-se ao protestantismo e refugia-se em Londres. 1729. Montesquieu na Inglaterra. 1730. 15 de março: morte da grande atriz Adrienne Lecouvreur. Tendo o clero recusado a sepultura, o' corpo é lançado à lixeira. Voltaire indigna-se contra isso no poema La mort de Mademoiselle Lecouvreur. Agitação jansenista: convulsões sobre o túmulo do diácono Pâris. 1731. Voltaire publica L'histoire de Charles XII, iniciada em Londres. 1732. Agosto: sucesso triunfal de Zai're, tragédia de Voltaire dedicada ao mercador inglês Falkener. 1733. Janeiro: Voltaire publica Le tempie du gout [O templo do gosto]. Junho: ligação com Madame du Châtelet. Julho: acrescenta às Lettres philosophiques [Cartas filosóficas] o texto Remarques sur Pascal [Notas sobre Pascal]. 1734. As Cartas filosóficas são divulgadas em Paris. Voltaire refugia-se em Cirey, na Champanha, no castelo de Madame du Châtelet. Montesquieu: Considérations sur les Romains. 1735. Voltaire obtém a permissão de voltar a Paris. 1736. Le mondain [O mundano]: Voltaire refugia-se durante algumas semanas na Holanda. xxxv
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1737. Publica os Éléments de la pbilosopbie de Newton. 1738. Temporada em Cirey. 1740. Subida ao trono de Maria Teresa da Áustria. Subida ao trono de Frederico 11, rei da Prússia, que invade a Silésia. Voltaire encontra Frederico 11, pela primeira vez, em Cleves. 1741. Guerra de Sucessão da Áustria. 1742. Mabomet, tragédia de Voltaire, é proibida em Paris. 1743. Voltaire faz representar Mérope, tragédia. Realiza uma missão secreta em Berlim. Morte de Fleury. Entrada dos irmãos d'Angerson no ministério. 1745. Luís XV alcança a vitória de Fontenoy e toma Madame de Pompadour como favorita. Voltaire é nomeado historiógrafo do rei. . 1746. É eleito para a Academia Francesa. 1747. Encontra dificuldades na corte. Zadig. 1748. Em Nancy, Lunéville, Commercy, freqüenta a corte de Stanislas, sogro de Luís XV. Paz de Aix-Ia-Chapelle. Montesquieu: L'esprit des lois. 1749. Morte de Madame du Châtelet. 1750. Nomeado secretário particular de Frederico lI, Voltaire parte para Berlim. Rousseau: Discours sur les sciences et les arts. 1751. Voltaire publica Le siecle de Louis XIV. Publicação do tomo I da Encyclopédie. 1752. Contra o cinismo filosófico de La Mettrie (e de Frederico 11) Voltaire compõe La loi naturelle, poema inicialmente intitulado La religion naturelle. 1753. Rompe com Frederico 11. XXXVI
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Luís XV proíbe-lhe aproximar-se de Paris; passa uma temporada na Alsácia. 1755. Instala-se em Délices, nos arredores de Genebra. Morte de Montesquieu. Rousseau: Discours sur l'origine de l'inegalité. 1756. Voltaire publica Essai sur les moeurs et l'esprit des nations [Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações]. Início da Guerra dos Sete Anos. 1757. Desastre do exército francês em Rossbach. Perseguições contra os mósofos: a publicação da Encyclopédie é interrompida. 1758. Voltaire adquire o castelo de Ferney, em território francês, na fronteira com a Suíça. O duque de Choiseul é nomeado para o ministério. 1759. Voltaire publica Candide. 1761. O parlamento de Paris inicia o processo que culminará com a supressão dos jesuítas . Rousseau: La Nouvelle Héloi'se. 13 de outubro: Marc-Antoine Calas, após um jantar em família, é encontrado morto na loja de tecidos da Rue des Filatiers, em Toulouse. 1762. 19 de fevereiro: execução em Toulouse do pastor Rochette e três nobres protestantes. 9 de março: o parlamento de Toulouse condena à morte Jean Calas. Ele é executado no dia seguinte. Por volta de 20 de março, em Ferney, Voltaire é informado por Dominique Audibert. 9 de junho: após a publicação do Contrat social e do Émile, Rousseau é condenado pelo parlamento de Paris por ter escrito a Profession de foi du vicaire Savoyard. Ameaçado de prisão, é obrigado a fugir para a Suíça. Mas Genebra e Berna condenam igualmente a Profession de foi. XXXVII
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7 de julho: A Monseigneur le chancelier, assinado por Donat Calas, mas redigido por Voltaire. Agosto: Voltaire publica Histoire d'Elisabeth Canning et de Jean Calas. Mémoire pour Anne-Rose Cabibel (a viúva de Jean Calas), pelo advogado Mariette. Mémoire à consulter, por Élie de Beaumont. Mémoire pour Donat, Pierre et Louis Calas, por Loyseau de Mauléon. 1763. Janeiro: Réflexions pour dame Anne-Rose Cabibel, por Mariette. 10 de fevereiro: o tratado de Paris põe fim à Guerra dos Sete Anos. 7 de março: o Conselho do rei autoriza o recurso contra o julgamento de Toulouse. Abril: a impressão do Traíté sur la tolérance pelos Cramer é concluída. A difusão do livro na França, onde é proibido, enfrenta dificuldades. 1764. Fevereiro: intervenções de Voltaire em favor dos galerianos huguenotes. 5 de maio: o parlamento de Toulouse condena a família Sirven. Junho: primeira edição do Dictionnaire philosophique portatif. 1765. 9 de março: reabilitação de Jean Calas. 1766. 1Q de julho: o cavaleiro de La Barre, de 19 anos de idade, condenado por sacrilégio, é decapitado. Luís XV recusara seu indulto. O Dictíonnaire philosophique é queimado sobre seu corpo. Voltaire refugia-se por algum tempo na Suíça e publica La relatíon de la mort du chevalíer de La Barre. XXXVIII
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1767. Voltaire publica L'ingénu [O ingênuo]. 1770. Queda de Choiseul. 1771. O novo parlamento de Toulouse ("Parlamento Maupeou") pronuncia a absolvição definitiva de Sirven. 1774. Subida ao trono de Luís XVI. Ministério de Turgot. 1778. Retorno de Voltaire a Paris: apoteose e morte. 1787. 19 de novembro: Luís XVI assina o edito de Tolerância que restitui aos protestantes seus direitos civis. 1789. Agosto: a Assembléia Nacional vota a DeclaraçãO', dos direitos do homem e do cidadão. 1790. 12 de julho: a Assembléia Nacional adota a Constituição civil do clero. 1791. 11 de julho: transferência das cinzas de Voltaire para o Panthéon. 1801. 15 de julho: Bonaparte, primeiro cônsul, conclui com o papa Pio VII a Concordata que restabelece na França a paz religiosa. 1905. 9 de dezembro: lei de separação da Igreja e do Estado. 1948. 10 de dezembro: a Assembléia da ONU em Paris adota a Declaração internacional dos direitos do homem, cujo artigo XVIII declara que "qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião".
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TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA A PROPÓSITO DA MORTE DE JEAN CALAS
CAPÍTULO I
História resumida da morte de Jean Calas
o assassínio de Calas, cometido em Toulouse com o gládio da justiça, a 9 de março de 1762, é um dos mais singulares acontecimentos que merecem a atenção de nossa época e da posteridade. Esquece-se facilmente a quantidade de mortos em batalhas sem conta, não somente por tratar-se da fatalidade da guerra, mas porque os que morrem pela sorte das armas podiam também dar a morte a seus inimigos, e não morreram sem se defender. Lá onde o perigo e a vantagem são iguais, o espanto cessa, e a própria piedade diminui; mas, se um pai de família inocente é entregue às mãos do erro, da paixão, ou do fanatismo; se o acusado só tem como defesa sua virtude; se os árbitros de sua vida, ao decapitarem-no, apenas correm o risco de se enganar; se podem matar impunemente através de uma sentença, então o clamor público se levanta, cada um teme por si próprio, percebe-se que ninguém está seguro de sua vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos Cidadãos, e todas as vozes se juntam para pedir vingança. Tratava-se, nesse estranho caso, de religião, de suicídio, de parricídio; tratava-se de saber se um pai e uma mãe haviam estrangulado seu filho para agradar a Deus, Se um irmão havia estrangulado seu irmão, se um amigo 3
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havia estrangulado seu amigo, e se os juízes deviam ser censurados por terem feito morrer no suplício da roda um pai inocente, ou por haverem poupado uma mãe, um irmão, um amigo culpados. Jean Calas, de 68 anos de idade*, exercia a profissão de negociante em Toulouse há mais de quarenta anos e era reconhecido por todos que com ele viveram como um bom pai. Era protestante, assim como sua mulher e todos os seus filhos, com exceção de um, que havia abjurado a heresia e a quem o pai concedia uma pequena pensão. Jean Calas parecia tão afastado desse absurdo fanatismo que rompe todos os vínculos da sociedade, que aprovou a conversão de seu filho Louis e mantinha em sua casa, há trinta anos, uma dedicada empregada católica que ajudara a criar todos os seus filhos. Um dos filhos de Jean, chamado Marc-Antoine, era um homem de letras: diziam-no um espírito inquieto, sombrio e violento. Esse jovem, não conseguindo nem entrar no comércio, ao qual não se ajustava, nem ser aceito como advogado, porque exigiam certificados de catolicidade que ele não pôde obter, decidiu acabar com sua vida e fez pressentir esse propósito a um de seus amigos; firmou-se em sua resolução através da leitura de tudo o que até então se escrevera sobre o suicídio. Certa vez, enfim, tendo perdido seu dinheiro no jogo, decidiu naquele mesmo dia executar seu propósito. Um amigo seu e da família, chamado Lavaisse, jovem de 19 anos, conhecido pela candura e delicadeza de seus hábitos, filho de um advogado célebre de Toulouse, havia chegado de Bordéus na véspera!; casualmente jantou
na casa dos Calas. O pai, a mãe, Marc-Antoine, o filho mais velho, e Pierre, o segundo, jantaram juntos. Após o jantar retiraram-se para uma pequena sala. Marc-Antoine desapareceu; enfim, quando o jovem Lavaisse quis partir, Pierre Calas e ele, tendo descido a escada, encontraram no térreo, junto à loja, Marc-Antoine de camisolão, enforcado numa porta, e sua roupa dobrada sobre o balcão; seu camisolão estava em perfeito estado; os cabelos continuavam bem penteados; não havia no corpo nenhum ferimento, nenhum machucad0 2• Damos aqui todos os detalhes apresentados pelos advogados; não descreveremos a dor e o desespero do pai e da mãe; seus gritos foram ouvidos pelos vizinhos. Lavaisse e Pierre Calas, fora de si, correram a procurar cirurgiões e a Justiça. Enquanto cumpriam esse dever, enquanto o pai e a mãe estavam aos soluços e em lágrimas, o povo de Toulouse junta-se em torno da casa. Esse povo é supersticioso e violento; vê como monstros seus irmãos que não são da mesma religião que ele. Foi em Toulouse que agradeceram solenemente a Deus pela morte de Henrique III e que juraram decapitar o primeiro que falasse em reconhecer o grande, o bom Henrique IV. Esta cidade soleniza ainda todos os anos 3, por meio de uma procissão e fogos de festa, o dia em que massacrou quatro mil cidadãos heréticos, dois séculos atrás. Em vão seis decisões do conselho proibiram essa odiosa festa, os tolosanos sempre a celebraram como o faziam com os jogos florais*. ..............
• Jean Calas nasceu em 1698 e morreu em 1762, portanto aos 64 anos. Trata-se aqui, sem dúvida, de um equívoco de Voltaire. (N. do E.)
• Referência a um concurso poético anual, com esse nome, existente em Toulo use desde 1323, inicialmente com o intuito de manter as tradições do sul da França. (N. do T.)
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Algum fanático da populaça gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio filho Marc-Antoine. Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime; outros acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais; toda a cidade foi persuadida de que é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai e uma mãe devem assassinar seu filho tão logo ele queira converter-se. Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm. Imaginou-se que os protestantes do Languedoc haviam se reunido na véspera; que haviam escolhido, em deliberação conjunta, um carrasco da seita; que a escolha recaíra sobre o jovem Lavaisse; que esse jovem, em vinte e quatro horas, recebera a notícia de sua eleição e chegara de BOrdéus para ajudar Jean Calas, sua mulher e seu filho Pierre, a estrangularem um amigo, um filho, um irmão. O senhor David, magistrado de Toulouse, excitado por esses rumores e querendo valorizar-se por uma ação imediata, fez um processo contrário às normas. A família Calas, a empregada católica e Lavaisse foram postos na prisão. Publicou-se uma citação eclesiástica não menos viciosa que o processo. Foram mais longe: Marc-Antoine Calas morrera calvinista e, se atentara contra a própria vida, devia ser arrastado na lama; inumaram-no com a maior pompa na igreja Saint-Étienne, apesar do pároco, que protestou contra essa profanaçã04 • Há, no Languedoc, quatro confrarias de penitentes, a branca, a azul, a cinza e a negra. Seus membros vestem um longo capuz, com uma máscara de pano provida de
dois buracos para deixar a visão livre; tentaram fazer com que o senhor duque de Fitz-James, comandante da província, entrasse na corporação, e este recusou. Os confrades brancos prestaram a Marc-Antoine Calas um serviço solene, como a um mártir. Jamais uma Igreja celebrou a festa de um mártir verdadeiro com maior pompa; mas essa pompa foi terrível. Elevaram acima de um magnífico catafalco um esqueleto que faziam mover e que representava Marc-Antoine Calas, tendo numa das mãos uma palma e na outra a pena com que devia assinar a ' abjuração da heresia, e que escrevia, na verdade, a sentença de morte de seu pai. Ao infeliz que atentara contra si, só faltava mesmo a canonização. Todo o mundo o via como um santo; alguns o invocavam, outros iam rezar junto ao seu túmulo, outros pediam-lhe milagres, outros relatavam os que havia feito. Um monge arrancou-lhe alguns dentes para ter relíquias duráveis. Uma devota, um pouco surda, disse que escutara o som dos sinos. Um padre apoplético foi curado após ter tomado o vomitório. Prepararam-se relatórios sobre esses prodígios. O autor do presente relato possui um testemunho de que um jovem de Toulouse ficou louco por ter rezado várias noites junto ao túmulo do novo santo e não ter podido obter um milagre que implorava. Alguns magistrados eram da confraria dos penitentes brancos. A partir desse momento a morte de Jean Calas pareceu irreversível. O que preparou seu suplício foi, sobretudo, a proximidade dessa festa singular que os tolosanos celebram todos os anos em memória de um massacre de quatro mil huguenotes. 1762 era o ano do bicentenári05 • Prepa-
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rava-se na cidade o aparato dessa solenidade, o que atiçava ainda mais a imaginação exaltada do povo; dizia-se publicamente que o cadafalso sobre o qual seriam supliciados os Calas seria o maior ornamento da festa; diziase que a própria Providência trazia essas vítimas para serem sacrificadas à nossa santa religião. Vinte pessoas ouviram tais discursos, e outros mais violentos ainda. E isso em nossos dias! E isso num tempo em que a filosofia fez tantos progressos! E isso quando cem academias escrevem para inspirar a suavidade dos costumes! Parece que o fanatismo, indignado com os recentes êxitos da razão, debate-se com maior furor a seus pés. Treze juízes reuniram-se diariamente para concluir o processo. Não tinham, não podiam ter nenhuma prova contra a família; mas a religião enganada fazia as vezes de prova. Seis juízes persistiram por muito tempo em condenar Jean Calas, seu filho e Lavaisse ao suplício da roda, e a mulher de Jean Calas à fogueira. Sete outros, mais moderados, queriam ao menos que se averiguasse. Os debates foram reiterados e longos. Um dos juízes6 , convencido da inocência dos acusados e da impossibilidade do crime, falou vivamente a favor deles; opôs o zelo da humanidade ao zelo da severidade; tornou-se o defensor público dos Calas em todas as casas de Toulouse, onde os clamores contínuos da religião equivocada exigiam o sangue desses infortunados. Um outro juiz, conhecido por sua violência7, falava na cidade com tanta exaltação contra os Calas quanto o primeiro se empenhava em defendê-los. Enfim, a grita foi tão grande que ambos foram obrigados a julgar-se incompetentes, retirando-se do caso. Mas, por estranha infelicidade, o juiz favorável aos Calas teve a delicadeza de persistir em seu afastamento,
enquanto o outro voltou para dar seu voto contra aqueles que não devia julgar: esse voto é que determinou a condenação ao suplício da roda, pois foram apenas oito votos contra cinco, havendo um dos seis juízes contrários, ao final, após muitas contestações, passado para o partido mais severo. Creio que, quando se trata de um parricídio e de lançar um pai de família ao suplício mais terrível, o julgamento deveria ser unânime, porque as provas de um crime tão inusitadd deveriam ser de uma evidência sen-' sível a todo o mundo: a menor dúvida em semelhante caso deve ser suficiente para fazer tremer um juiz prestes a assinar uma sentença de morte. A fraqueza de nossa razão e a insuficiência de nossas leis se fazem sentir diariamente; mas em que ocasião percebe-se melhor sua miséria do que quando a preponderância de uma única voz condena ao suplício um cidadão? Eram necessárias, em Atenas, cinqüenta vozes além da metade para ousarse pronunciar uma sentença de morte. Que resulta disso? O que sabemos muito inutilmente, isto é, que os gregos eram mais sábios e mais humanos do que nós. Parecia impossível que Jean Calas, velho de 68 anos, tendo há muito tempo as pernas inchadas e fracas, tivesse estrangulado sozinho e enforcado um filho de 28 anos, que tinha uma força acima do comum; era absolutamente necessário que tivesse sido auxiliado nessa execução por sua mulher, por seu filho Pierre Calas, por Lavaisse e pela empregada. Eles não haviam se separado um só momento na noite dessa fatal aventura. Mas tal suposição era tão absurda quanto a outra: pois como é que uma dedicada empregada católica teria podido suportar que huguenotes assassinassem um jovem criado por ela, a
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fim de puni-lo por amar a religião dessa mesma empregada? Como é que Lavaisse teria vindo expressamente de Bordéus para estrangular seu amigo, de quem ignorava a suposta conversão? Como é que uma mãe afetuosa teria atacado seu filho? Como é que todos juntos teriam podido estrangular um jovem tão robusto quanto eles todos, sem um combate longo e violento, sem gritos terríveis que teriam alertado a vizinhança, sem golpes reiterados, sem ferimentos, sem roupas rasgadas? Era evidente que, se o parricídio pudesse ter sido cometido, todos os acusados eram igualmente culpados, por não se haverem separado em nenhum momento; era evidente que não se haviam separado; era evidente que o pai não podia ser o único culpado; não obstante a sentença condenou apenas esse pai a expirar no suplício da roda. O motivo da sentença era tão inconcebível quanto o resto. Os juízes favoráveis ao suplício de Jean Calas persuadiram os outros de que esse velho fraco não poderia resistir aos tormentos e de que confessaria, sob os golpes do carrasco, seu crime e o de seus cúmplices. Ficaram perplexos, quando Q velho, ao morrer na roda, clamou a Deus em testemunho de sua inocência e conjurou-o a perdoar seus juízes. Estes foram obrigados a pronunciar uma segunda sentença, contraditória com a primeira, ordenando a soltura da mãe, de seu filho Pierre, do jovem Lavaisse e da empregada. Mas, tendo um dos conselheiros notado que essa sentença desmentia a outra, que elas se condenavam mutuamente e que, como os acusados sempre estiveram juntos no momento do suposto parricídio, a ordem de soltura dos sobreviventes provava cabalmente a
inocência do pai de família executado, decidiram então banir Pierre Calas, seu filho. Esse banimento parecia tão inconseqüente, tão absurdo quanto o resto, pois Pierre Calas era ou culpado ou inocente do parricídio; se fosse culpado, devia ser submetido ao suplício como seu pai; se fosse inocente, não tinha cabimento bani-lo. Mas os juízes, assustados com o suplício do pai e a comovedora piedade com que morrera, imaginaram salvar sua honra dando a entender que perdoavam o filho, como se perdoar não fosse uma nova prevaricação; e acreditaram ' que o banimento desse jovem pobre e sem apoio, não tendo conseqüências, não era uma grande injustiça, depois daquela que haviam tido a infelicidade de cometer. Começaram ameaçando Pierre Calas, no cárcere, de que teria a mesma sorte de seu pai, se não abjurasse sua religião. É o que este jovem9 atesta por juramento. Pierre Calas, ao sair da cidade, encontrou um abade convertedor que o fez voltar a Toulouse; encerraram-no num convento de dominicanos e lá foi constrangido a cumprir todas as funções da catolicidade. Era em parte o que queriam, era o preço do sangue de seu pai; e a religião, que acreditaram vingar, parecia satisfeita. As filhas foram retiradas da mãe e encerradas também num convento. Essa mulher, quase regada com o sangue de seu marido, tendo amparado nos braços seu filho primogênito morto, vendo o outro banido, privada de suas filhas, despojada de todos os bens, estava só no mundo, sem pão, sem esperança e sucumbindo ao peso de sua infelicidade. Algumas pessoas, tendo examinado com ponderação todas as circunstâncias dessa horrível aventura, ficaram tão chocadas que instaram a senhora Calas, retirada na solidão, a ousar pedir justiça ao pé do
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trono. Ela não podia, então, sustentar-se, extinguia-se; além disso, tendo nascido inglesa, transplantada a uma província da França desde a juventude, o simples nome da cidade de Paris a assustava. Supunha que a capital do reino devia ser ainda mais bárbara que a do Languedoc. Mas o dever de vingar a memória de seu marido acabou prevalecendo sobre sua fraqueza. Ela chegou a Paris quase morta. Ficou espantada de ali encontrar acolhida, amparos e lágrimas 10. Em Paris a razão prevalece sobre o fanatismo, por maior que este seja, ao passo que, na província, o fanatismo quase sempre prevalece sobre a razão. O sr. de Beaumont, célebre advogado do parlamento de Paris, assumiu inicialmente sua defesa e redigiu um parecer que foi assinado por quinze advogados ll . O sr. Loiseau, não menos eloqüente, compôs um memoriap2 em favor da família. O sr. Mariette, advogado no conselho, elaborou um requerimento jurídico 13 que levava a convicção a todos os espíritos. Esses três generosos defensores das leis e da inocência destinaram à viúva o lucro das edições de seus arrazoados!4. Paris e a Europa inteira encheram-se de piedade e exigiram justiça com essa mulher infortunada. A sentença foi pronunciada pelo público bem antes que pudesse ser assinada pelo conselho. A piedade penetrou até no ministério, apesar do contínuo caudal de questões 15 , que geralmente exclui a piedade, e apesar do hábito de ver infelizes, que pode endurecer ainda mais o coração. Devolveram-se as filhas à mãe. As três foram vistas, cobertas de luto e banhadas de lágrimas, suscitando lágrimas também em seus juízes.
No entanto essa família teve ainda alguns inimigos, pois se tratava de religião. Várias pessoas, que na França são chamadas devotas 16 , disseram abertamente que era preferível deixar supliciar um velho calvinista inocente do que expor oito conselheiros do Languedoc a admitirem que haviam se enganado. Serviram-se inclusive desta expressão: "Há mais magistrados do que Calas"; e dela inferiam que a família Calas devia ser imolada em honra à magistratura. Não se imaginava que a honra dos juízes consiste, como a dos outros homens, em reparar suas. faltas. Na França não se acredita que o papa, assistido por seus cardeais, seja infalível: poder-se-ia, do mesmo modo, crer que oito juízes de Toulouse não o são. As pessoas sensatas e desinteressadas diziam que a sentença de Toulouse seria anulada em toda a Europa, ainda que considerações particulares impedissem que fosse anulada no conselho. Tal era o estado dessa espantosa aventura, quando ela fez surgir em pessoas imparciais, mas sensíveis, o propósito de apresentar ao público algumas reflexões sobre a tolerância, sobre a indulgência, sobre a comiseração, que o abade Houteville chama de dogma monstrnos(P, em seu discurso empolado e errôneo sobre fatos, e que a razão chama de apanágio da natureza. Ou os juízes de Toulouse, arrastados pelo fanatismo da populaça, fizeram supliciar um pai de família inocente, o que é inédito; ou esse pai de família e sua mulher estrangularam seu filho primogênito, ajudados nesse parricídio por um outro filho e um amigo, o que é antinaturaI. Num caso ou no outro, o abuso da religião mais sagrada produziu um grande crime. É, portanto, do interesse do gênero humano examinar se a religião deve ser caridosa ou bárbara.
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CAPÍTULO 11
Conseqüências do suplício de Jean Calas
Se os penitentes brancos foram a causa do suplício de um inocente, da ruína total de uma família, de sua dispersão e do opróbrio que só deveria associar-se à injustiça, mas que está associado ao suplício; se a precipitação dos penitentes brancos em celebrar como um santo aquele que, segundo nossos costumes bárbaros, deveria ter sido arrastado na lama, levou ao suplício um pai de família virtuoso; essa infelicidade deve certamente tornálos penitentes de fato para o resto de suas vidas; eles e os juízes devem chorar, mas não com uma longa túnica branca e uma máscara que ocultaria suas lágrimas. Todas as confrarias merecem respeito: elas são edificantes. Todavia, por maior que seja o bem que possam fazer ao Estado, igualar-se-á esse bem ao terrível mal que causaram? Elas parecem instituídas pelo zelo que, no Languedoc, anima os católicos contra aqueles a que chamamos huguenotes. Dir-se-ia que fizeram voto de odiar seus irmãos, pois temos religião de sobra para odiar e perseguir, e pouca para amar e socorrer. E o que seria, se tais confrarias fossem governadas por fanáticos, como o foram outrora algumas congregações de artesãos e de senhores 18, nas quais convertia-se em arte e sistema o 15
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hábito de ter visões, como diz um de nossos mais sábios e eloqüentes magistrados? O que seria, se nas confrarias se estabelecessem essas câmaras escuras, chamadas câmaras de meditação, onde eram pintados diabos armados de chifres e garras, abismos de chamas, cruzes e punhais, com o santo nome de Jesus acima do quadro? Que espetáculo para olhos já fascinados e para imaginações tão inflamadas quanto submissas a seus diretores! Houve épocas, sabe-se bem, em que as confrarias foram perigosas. Os fraticelli, os flagelantes, causaram problemas. A Liga começou por tais associações. Por que distinguirem-se assim dos outros cidadãos? Acreditavamse mais perfeitos? Isso já é um insulto ao resto da nação. Queriam que todos os cristãos entrassem na confraria? Seria um belo espetáculo a Europa de capuz e máscara, com dois pequenos orifícios redondos diante dos olhos! Pensam de boa-fé que Deus prefere essa vestimenta ridícula a um gibão? Tem mais: essa vestimenta é um uniforme de controversistas, que adverte os adversários a se porem de guarda; é capaz de excitar uma espécie de guerra civil nos espíritos e resultaria talvez em funestos excessos, se o rei e seus ministros não fossem tão prudentes quanto os fanáticos são insensatos. Sabe-se bem quanto isso custou desde que os cristãos disputam sobre o dogma: o sangue correu, seja nos cadafalsos, seja nas batalhas, do século IV aos nossos dias. Limitemo-nos aqui às guerras e aos horrores que as querelas da Reforma suscitaram e vejamos qual foi sua origem na França. Talvez um quadro resumido e fiel de tantas calamidades abra os olhos de algumas pessoas pouco instruídas e sensibilize os corações bem-feitos.
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CAPÍTULO III
Idéia da Reforma do século XW
Quando, no renascimento das letras, os espíritos começaram a iluminar-se, houve queixa geral contra os abusos; todo o mundo reconhece que essa queixa era legítima. O papa Alexandre VI havia comprado publicamente a tiara, e seus cinco bastardos compartilhavam as vantagens. Seu filho, o cardeal duque de Borgia, fez perecer, em mancomunação com o papa, seu pai, os Vitelli, os Urbino, os Gravina, os Oliveretto e cem outros senhores, para arrebatar seus domínios. Júlio 11, animado pelo mesmo espírito, excomungou Luís XII, deu seu reino ao primeiro ocupante e, ele próprio vestindo capacete e couraça, pôs a ferro e fogo uma parte da Itália. Leão X, para pagar seus prazeres, traficou com indulgências como se fossem gêneros alimentícios num mercado público. Os que se insurgiram contra tantos atos de banditismo não cometiam, pelo menos, nenhum erro na moral. Vejamos se o cometiam contra nós na política. Diziam que, não tendo Jesus Cristo jamais exigido anatas 19 nem reservas, nem vendido dispensas para este mundo e indulgências para o outro, podiam eximir-se de pagar a um príncipe estrangeiro o preço de todas essas 17
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coisas. Ainda que as anatas, os processos no tribunal de Roma e as dispensas que subsistem ainda hoje nos custassem apenas quinhentos mil francos por ano, é claro que já pagamos desde Francisco I, em duzentos e cinqüenta anos, cento e vinte e cinco milhões; e, considerando os diferentes preços do marco de prata, essa soma representa cerca de duzentos e cinqüenta milhões, atualmente. Pode-se, portanto, convir, sem blasfêmia, que os heréticos, ao proporem a abolição desses impostos singulares que haverão de espantar a posteridade, não faziam com isso um grande mal ao reino, sendo antes bons calculadores do que maus súditos. Acrescentemos que eles eram os únicos que sabiam a língua grega e conheciam a Antiguidade. Não dissimulemos que, apesar de seus erros, devemos-lhes o desenvolvimento do espírito humano, por muito tempo enterrado na mais espessa barbárie. Entretanto, como negavam o purgatório, do qual não se deve duvidar e que, aliás, muito beneficiava os monges; como não reverenciavam relíquias que devem ser reverenciadas, mas que proporcionavam benefícios ainda maiores; enfim, como atacavam dogmas muito respeitados 20 , a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na fogueira. O rei, que os protegia e financiava na Alemanha, marchou em Paris à frente de uma procissão, após a qual foram executados vários desses infelizes. E eis qual foi essa execução: eram suspensos na ponta de um comprido poste que oscilava sobre uma árvore; acendia-se uma grande fogueira, sobre a qual o poste era abaixado e erguido alternadamente; assim experimentavam aos poucos os tormentos da morte, até expirarem através do mais longo e terrível suplício que a barbárie jamais inventou.
Pouco tempo antes da morte de Francisco I, alguns membros do parlamento da Provença, animados por eclesiásticos contra os habitantes de Mérindol e Cabrieres, solicitaram ao rei tropas para apoiar a execução de dezenove pessoas da região, por eles condenadas; seis mil acabaram sendo mortas, sem perdoar o sexo, a velhice ou a infância; trinta burgos foram reduzidos a cinzas. Esses povos, até então desconhecidos, eram culpados, certamente, de terem nascido valdenses; era sua única iniqüidade. Haviam-se estabelecido há tre>' zentos anos em desertos e montanhas que tornaram férteis por um trabalho inacreditável. Sua vida pastoril e tranqüila relembrava a inocência atribuída às primeiras idades do mundo. As cidades vizinhas só eram conhecidas deles pelo tráfico dos frutos que iam vender, ignoravam os processos e a guerra. Eles não se defenderam: foram chacinados como animais fugitivos mortos num cercad0 21 • Após a morte de Francisco I, príncipe não obstante mais conhecido por suas galanterias e seus infortúnios do que por suas crueldades, o suplício de mil heréticos, sobretudo o do conselheiro do parlamento Dubourg, e, finalmente, o massacre de Vassy, armaram os perseguidos, cuja seita havia se multiplicado ao clarão das fogueiras e sob o ferro dos carrascos. A raiva sucedeu à paciência. Eles imitaram as crueldades de seus inimigos: nove guerras civis encheram a França de mortandade; uma paz mais funesta do que a guerra produziu a Noite de São Bartolomeu, da qual não havia nenhum exemplo nos anais do crime. A Liga assassinou Henrique III e Henrique IV, pelas mãos de um frade dominicano e de um monstro que ha-
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via sido frade bernard022 • Há pessoas que pretendem que a humanidade, a indulgência e a liberdade de consciência são coisas horríveis; mas, em boa-fé, teriam elas produzido calamidades comparáveis?
CAPÍTULO IV
Se a tolerância é perigosa, e em que povos ela é permitida
Alguns disseram que, se usássemos de uma indulgência paternal para com nossos irmãos errantes que rezam a Deus em mau francês, estaríamos pondo-lhes armas nas mãos; que veríamos novas batalhas de ]arnac, de Moncontour, de Coutras, de Dreux, de Saint-Denis, etc. Ignoro isso, porque não sou profeta; mas parece-me que não é raciocinar conseqüentemente afirmar: "Esses homens insurgiram-se quando lhes fiz o mal; portanto se insurgirão quando lhes fizer o bem." Eu ousaria tomar a liberdade de convidar os que estão à testa do governo e os destinados aos grandes postos a examinarem com ponderação se devemos de fato temer que a doçura produza as mesmas revoltas que a crueldade faz nascer; se o que aconteceu em certas circunstâncias deve acontecer em outras; se os tempos, a opinião, os costumes são sempre os mesmos. Os huguenotes, certamente, deixaram-se tomar pelo fanatismo e manchar de sangue como nós; mas a geração presente é tão bárbara quanto seus pais? O tempo, a razão que faz tantos progressos, os bons livros, a mansuetude da sociedade não penetraram nos que conduzem o espírito desses povos? E não percebemos que 20
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quase toda a Europa mudou de face de uns cinqüenta anos para cá? Por toda a parte o governo se fortaleceu, enquanto os costumes abrandaram. Aliás, o policiamento geral, sustentado por exércitos numerosos sempre existentes, não permite temer o retorno daqueles tempos anárquicos em que camponeses calvinistas combatiam camponeses católicos arregimentados às pressas entre o plantio e as colheitas. Outros tempos, outros cuidados. Seria absurdo dizimar hoje a Sorbonne por ter requerido outrora que a Donzela de Orléans fosse queimada; por não ter reconhecido a Henrique III o direito de reinar, por ter excomungado, proscrito, o grande Henrique IV. Certamente não se irá investigar outras corporações do reino, que cometeram os mesmos excessos naqueles tempos de frenesi: isso seria não apenas injusto, mas tão insensato como purgar todos os habitantes de Marselha porque tiveram a peste em 1720. Acaso iremos saquear Roma, como fizeram as tropas de Carlos v, porque Sisto V, em 1585, concedeu nove anos de indulgência a todos os franceses que pegassem em armas contra seu soberano? Não é suficiente impedir Roma de entregar-se a excessos semelhantes? O furor que inspiram o espírito dogmático e o abuso da religião cristã mal compreendida derramou sangue, produziu desastres tanto na Alemanha, na Inglaterra e mesmo na Holanda, como na França. Hoje, no entanto, a diferença das religiões não causa nenhum problema nesses Estados; o judeu, o católico, o grego, o luterano, o calvinista, o anabatista, o sociniano, o menonita, o morávio e tantos outros vivem como irmãos nesses países e contribuem igualmente para o bem da sociedade.
Na Holanda, não mais se teme que as disputas de um Gomar23 sobre a predestinação façam rolar a cabeça do grande pensionista*. Não se teme mais, em Londres, que as querelas dos presbiterianos e dos episcopais, envolvendo uma liturgia e uma sobrepeliz, espalhem o sangue de um rei sobre um cadafals024 • A Irlanda povoada e enriquecida não verá mais seus cidadãos católicos sacrificarem a Deus durante dois meses os cidadãos protestantes, enterrarem-nos vivos, suspenderem as mães em forcas, prendendo as filhas ao pescoço delas e verem'nas expirar juntas; abrirem o ventre das mulheres grávidas, retirarem os fetos e darem-nos de comer aos porcos e aos cães; colocarem um punhal na mão dos prisioneiros garroteados e conduzirem seus braços ao ventre de suas mulheres, de seus pais, de suas mães, de suas filhas, imaginando, assim, tornarem-nos mutuamente parricidas e condenarem-nos à danação ao mesmo passo em que os exterminavam todos. É o que relata Rapin-Thoiras, oficial na Irlanda, quase contemporâneo; é o que relatam todos os anais, todas as histórias da Inglaterra e o que por certo jamais será imitado. A filosofia, a mera filosofia, essa irmã da religião, desarmou mãos que a superstição por muito tempo havia ensangüentado; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantouse com os excessos a que o fanatismo o havia levado. Nós mesmos, na França, temos uma província opulenta em que o luteranismo prevalece sobre o catolicismo. A universidade da Alsácia está em mãos dos luteranos; eles ocupam uma parte dos cargos municipais; jamais a • Nome dado ao representante da assembléia e do conselho de Estado da Holanda com funções comparáveis às de primeiro-ministro. (N. do T.)
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menor querela religiosa perturbou o repouso dessa província desde que ela pertence a nossos reis. Por quê? É que lá não se perseguiu ninguém2s • Buscai não perturbar os corações, e todos os corações estarão a vosso dispor. Não digo que todos os que não são da religião do príncipe devam ter acesso aos postos e às honras dos que são da religião dominante. Na Inglaterra, os católicos, vistos como adeptos do partido do pretendente, não podem aspirar aos cargos; pagam inclusive imposto dobrado; mas, afora isso, gozam de todos os direitos dos cidadãos. Suspeitaram-se alguns bispos franceses de pensar não ser de sua honra nem de seu interesse ter calvinistas em sua diocese; seria esse o maior obstáculo à tolerância. Não posso acreditar. O corpo dos bispos, na França, é composto de pessoas de qualidade que pensam e agem com uma nobreza digna de seu nascimento; são caridosos e generosos, é uma justiça que devemos fazerlhes. Devem pensar que seus diocesanos fugitivos não se converterão, nos países estrangeiros, e que, voltando para junto de seus pastores, poderiam ser esclarecidos por suas instruções e tocados por seus exemplos; haveria honra em convertê-los, o temporal não sairia perdendo e, quanto maior o número de cidadãos, tanto mais as terras dos prelados renderiam. Um bispo de Varmie, na Polônia, tinha um anabatista como feitor e um sociniano como coletor de impostos. Propuseram-lhe expulsar e perseguir um, porque não acreditava na consubstancialidade, e o outro, porque só batizava seus filhos aos quinze anos; o bispo respondeu que eles seriam eternamente condenados no outro mundo, mas que, neste, eram-lhe muito necessários.
Saiamos de nossa pequena esfera e examinemos o resto de nosso globo. O Grande Senhor governa em paz vinte povos de diferentes religiões; duzentos mil gregos vivem com segurança em Constantinopla; o próprio mufti [intérprete da lei muçulmana] nomeia e apresenta ao imperador o patriarca grego; tolera-se aí um patriarca latino. O sultão nomeia bispos latinos para algumas ilhas da Grécia 26 , servindo-se da seguinte fórmula: "Ordenolhe que vá residir como bispo na ilha de Quios, segundo seu antigo costume e suas vãs cerimônias." Esse impérió está repleto de jacobitas, nestorianos, monotelistas; há coptas, cristãos de São João, judeus, guebros, banianos. Os anais turcos não fazem menção de nenhuma revolta provocada por alguma dessas religiões. Ide à Índia, à Pérsia, à Tartária, e vereis a mesma tolerância e a mesma tranqüilidade. Pedro, o Grande, favoreceu todos os cultos em seu vasto império; o comércio e a agricultura ganharam com isso, e o corpo político nunca foi prejudicado. O governo da China jamais adotou, desde mais de quatro mil anos que é conhecido, senão o culto dos noáchidas27 , a adoração simples de um único Deus; no entanto, tolera as superstições de Fô 28 e uma quantidade de bonzos que seria perigosa, se a sabedoria dos tribunais não os houvesse sempre contido. É verdade que o grande imperador Yung-Ching, talvez o mais sábio e magnânimo que houve na China, expulsou os jesuítas; mas não porque fosse intolerante, e sim porque os jesuítas, ao contrário, o eram. Eles mesmos relatam, em suas Cartas cu riosas 29 , as palavras que lhes disse esse bom príncipe: "Sei que vossa religião é intolerante; sei o que fizestes nas Manilas e no Japão; vós
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enganastes meu pai, não espereis enganar-me também." Lede todo o discurso que ele houve por bem fazer-lhes e encontrareis o mais sábio e o mais clemente dos homens. Podia ele, com efeito, acolher físicos da Europa que, a pretexto de mostrar termômetros e eolipilas à corte, já haviam incitado à revolta um príncipe real? E que teria dito esse imperador se houvesse lido nossas histórias, se conhecesse nossos tempos da Liga e da conspiração dos barris de pólvora30? Para ele, era suficiente estar informado das querelas indecentes dos jesuítas, dominicanos, capuchinhos, padres seculares, enviados da outra ponta do mundo a seus Estados: vinham pregar a verdade e anatematizavam-se uns aos outros. O imperador, portanto, não fez mais do que mandar de volta perturbadores estrangeiros. Mas com que bondade os mandou de volta! Que cuidados paternos dispensou-lhes para a viagem e para impedir que os insultassem no caminho! O próprio banimento deles foi um exemplo de tolerância e de humanidade. Os japoneses31 eram os mais tolerantes de todos os homens. Doze religiões pacíficas haviam se estabelecido em seu império; os jesuítas vieram completar a décima terceira, mas, logo, não querendo tolerar as outras, sabemos o que resultou: uma guerra civil, não menos terrível que a da Liga, assolou o país. A religião cristã foi, enfim, afogada em ondas de sangue; os japoneses fecharam seu império ao resto do mundo e passaram a nos ver como animais ferozes, semelhantes àqueles que os ingleses expurgaram de sua ilha. Em vão o ministro Colbert, sentindo a necessidade que tínhamos dos japoneses, os quais não têm necessidade nenhuma de nós, tentou estabelecer um comércio com seu império: eles mostraram-se inflexíveis.
Assim, portanto, nosso continente inteiro prova-nos que não se deve anunciar nem exercer a intolerância. Voltai os olhos para o outro hemisfério, vede a Carolina, da qual o sábio Locke foi o legislador: bastam sete pais de família para estabelecer um culto público aprovado por lei; essa liberdade não fez nascer nenhuma desordem. Deus nos livre de citar esse exemplo para instar a França a imitá-lo! Só o relatamos para mostrar que o maior excesso até onde pode chegar a tolerância não foi seguido da mais leve dissensão. Mas o que é muito útil e muito bom numa colônia nascente não é conveniente num antigo reino. Que diremos, então, dos primitivos, chamados quakers por derrisão e que, com costumes talvez ridículos, foram tão virtuosos e ensinaram inutilmente a paz ao resto dos homens? Na Pensilvânia, eles são em número de cem mil; a discórdia, a controvérsia são ignoradas na pátria feliz que construíram para si e o simples nome de sua cidade de Filadélfia 32 , a lembrar-lhes a todo instante que os homens são irmãos, é o exemplo e a vergonha dos povos que ainda não conhecem a tolerância. Enfim, essa tolerância jamais suscitou guerra civil, enquanto a intolerância cobriu a terra de chacinas. Que se julgue, pois, entre essas duas rivais, entre a mãe que quer que matem seu filho e a mãe que o cede para que ele viva33! Não falo aqui senão do interesse das nações; e respeitando, como devo, a teologia, considero neste artigo apenas o bem físico e moral da sociedade. Imploro todo leitor imparcial a pesar essas verdades, retificá-las e desenvolvê-las. Leitores atentos, que se comunicam com seus pensamentos, vão sempre mais longe que o autor34 •
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CAPÍTULO V
Como a tolerância pode ser admitida
Ouso supor que um ministro esclarecido e magnânimo, um prelado humano e sensato, um príncipe que sabe que seu interesse consiste no maior número de súditos, e sua glória na felicidade deles, dignar-se-á lançar os olhos sobre este escrito informe e defeituoso: suprem-no suas próprias luzes; ele diz a si mesmo: que risco correria eu em ver a terra cultivada e melhorada por mais mãos laboriosas, os tributos aumentados, o Estado florescendo mais? A Alemanha seria um deserto coberto pelas ossadas de católicos, evangélicos, reformados, anabatistas mortos uns pelos outros, se a paz de Vestefália não tivesse proporcionado enfim a liberdade de consciência. Temos judeus em Bordéus, em Metz, na Alsácia35 ; temos luteranos, molinistas, jansenistas - não podemos tolerar e admitir calvinistas mais ou menos nas mesmas condições que os católicos são tolerados em Londres? Quanto mais seitas houver, tanto menos perigosa cada uma será; a multiplicidade as enfraquece; todas são reprimidas por justas leis que proíbem as assembléias tumultuosas, as injúrias, as sedições e que estão sempre em vigor pela força coativa. 29
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Sabemos que vários chefes de família, que fizeram grandes fortunas em países estrangeiros, estão dispostos a retornar à sua pátria; não pedem senão a proteção da lei natural, a validade de seus casamentos, a certidão reconhecida de seus filhos, o direito de herdar dos pais, a franquia de suas pessoas; nada de templos públicos, nada de direito aos cargos municipais, às dignidades - os católicos não os têm em Londres nem em vários outros países. Não se trata mais de dar privilégios imensos, áreas de segurança a uma facção, mas de deixar viver um povo pacífico, de abrandar editos talvez necessários outrora, mas que já não o são. Não cabe a nós indicar ao ministério o que ele pode fazer; basta implorá-lo em favor dos infortunados. Quantos meios de torná-los úteis e de impedir que jamais sejam perigosos! A prudência do ministério e do conselho, apoiada pela força, encontrará com facilidade esses meios, que tantas outras nações empregam de maneira exitosa. Há fanáticos ainda na populaça calvinista; mas é certo que os há em maior número na populaça convulsionária. A escória dos insensatos de Saint-Médard contou muito pouco na nação; a dos profetas calvinistas, quase nada 36 • O grande meio de diminuir o número de maníacos, se restarem, é submeter essa doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente, os homens. Essa razão é suave, humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que a força é capaz. E não se há de levar em conta o ridículo hoje associado ao entusiasmo pelas pessoas de bem? Esse ridículo é uma poderosa barreira contra as extrava-
gâncias de todos os sectários. Os tempos passados são como se jamais tivessem existido. É preciso sempre partir do ponto em que se está e daquele a que chegaram as nações. Houve um tempo em que se julgou necessário emitir decretos contra os que ensinavam uma doutrina contrária às categorias de Aristóteles, ao horror do vazio, às qüididades e ao universal por parte da coisa. Temos na Europa mais de cem volumes de jurisprudência sobre a feitiçaria e sobre a maneira de distinguir os falsos feiticeiros dos verdadeiros. A excomunhão dos gafanhotos e dos insetos nocivos às colheitas esteve muito em moda e ainda subsiste em vários rituais. A moda passou; Aristóteles, os feiticeiros e os gafanhotos foram deixados em paz. Os exemplos dessas graves demências, outrora tão importantes, são inumeráveis. De tempos em tempos surgem outros; mas, quando fizeram seu efeito, quando se está farto deles, desaparecem. Se alguém ousasse hoje ser carpocratiano, ou eutiquesiano, ou monotelista, monofisista, nestoriano, maniqueu, etc., o que aconteceria? Ririam dele, como de um homem vestido à antiga, com um colarinho de pregas e um gibão. A nação começava a entreabrir os olhos quando os jesuítas Le Tellier e Doucin fabricaram a bula Unigenitus, que enviaram a Roma. Acreditaram estar ainda naqueles tempos de ignorância em que os povos adotavam sem exame as asserções mais absurdas. Ousaram proscrever esta proposição, que é de uma verdade universal em todos os casos e em todos os tempos: "O temor de uma excomunhão injusta não deve impedir de cumprir seu dever." Era proscrever a razão, as liberdades da Igreja galicana, e o fundamento da moral; era dizer aos homens:
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Deus vos ordena jamais cumprir vosso dever, contanto que temais a injustiça. Jamais o senso comum foi ferido tão acintosamente. Os consultores de Roma não prestaram atenção nisso. Persuadiu-se o tribunal de Roma que essa bula era necessária e que a nação a desejava; foi assinada, selada e enviada. Sabemos os desdobramentos; certamente, se os tivessem previsto, teriam mitigado a bula. As querelas foram acirradas; a prudência e a bondade do rei finalmente as apaziguaram. O mesmo ocorre numa grande parte dos pontos que dividem os protestantes e nós: há alguns que não têm a menor conseqüência; há outros mais graves, mas sobre os quais o furor da disputa arrefeceu de tal maneira que os próprios protestantes não pregam hoje a controvérsia em nenhuma de suas igrejas. É, portanto, esse tempo de fastio, de saciedade, ou melhor, de razão, que podemos perceber como uma época e uma garantia da tranqüilidade pública. A controvérsia é uma doença epidêmica a ponto de extinguir-se, e essa peste, da qual nos curamos, não requer mais do que um regime suave. Enfim, o interesse do Estado é que filhos expatriados retornem com modéstia à casa de seu pai: a humanidade o exige, a razão o aconselha e a política não se pode assustar com isso.
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CAPÍTULO VI
Se a intolerância é de direito natural e de direito humano
O direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Educastes vosso filho, ele vos deve respeito como a seu pai, reconhecimento como a seu benfeitor. Tendes direito aos frutos da terra que cultivastes com vossas mãos. Fizestes e recebestes uma promessa, ela deve ser cumprida. Em todos os casos, o direito humano só pode se fundar nesse direito de natureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é, em toda a terra: "Não faças o que não gostarias que te fizessem." Ora, não se percebe como, de acordo com esse princípio, um homem poderia dizer a outro: "Acredita no que acredito e no que não podes acreditar, ou morrerás." É o que dizem em Portugal, na Espanha, em Goa. Atualmente limitamse a dizer, em alguns países: "Crê, ou te abomino; crê, ou te farei todo o mal que puder; monstro, não tens minha religião, logo não tens religião alguma: cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província." Se fosse de direito humano conduzir-se dessa forma, caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; este perseguiria os gancares, que cairiam sobre os habitantes do Indo; o mongol arrancaria o 33
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coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco - e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos outros. O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos.
CAPÍTULO VII
Se a intolerância foi conhecida pelos gregos
Todos os povos de cuja história temos algum conhecimento consideraram suas diferentes religiões como pontos de união entre eles: tratava-se de uma associação do gênero humano. Havia uma espécie de direito de hospitalidade entre os deuses como entre os homens. Um estrangeiro, chegando a uma cidade, começava por adorar os deuses locais. Não se deixava de venerar nem mesmo os deuses do inimigo. Os troianos dirigiam preces aos deuses que combatiam pelos gregos. Alexandre foi consultar nos desertos da Líbia o deus Amon, ao qual os gregos deram o nome de Zeus, e os latinos de Júpiter, embora ambos tivessem seus próprios júpitere Zeus. Quando uma cidade era cercada, fazia-se um sacrifício aos deuses da cidade para torná-los favoráveis. Assim, no meio da guerra, a religião reunia os homens e abrandava, às vezes, seus furores, ainda que eventualmente lhes inspirasse ações desumanas e horríveis. Posso estar enganado, mas parece-me que, de todos os antigos povos civilizados, nenhum impediu a liberdade de pensar. Todos tinham uma religião; mas creio que procediam com os homens da mesma forma que com os deuses: reconheciam todos um Deus supremo, mas asso34
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ciavam-Ihe uma quantidade prodigiosa de divindades inferiores; tinham apenas um culto, mas permitiam grande quantidade de sistemas particulares. Os gregos, por exemplo, por mais religiosos que fossem, achavam bom que os epicuristas negassem a Providência e a existência da alma. Não falo das outras seitas, que feriam as idéias saudáveis que se deve ter do Ser criador e que eram todas toleradas. Sócrates, que mais se aproximou do conhecimento do Criador, sofreu punição por isso, dizem, e morreu mártir da Divindade; foi o único que os gregos fizeram morrer por suas opiniões. Se esta foi, de fato, a causa de sua condenação, não cabem honras à intolerância, já que se puniu apenas o único a glorificar Deus, enquanto honravam-se os que davam da Divindade as noções mais indignas. Os inimigos da tolerância não devem, em minha opinião, prevalecer-se do exemplo odioso dos juízes de Sócrates. É evidente, aliás, que Sócrates foi vítima de um partido furioso animado contra ele. Fizera-se inimigo irreconciliável dos sofistas, oradores, poetas, que ensinavam nas escolas, e mesmo de todos os preceptores encarregados dos filhos da elite. Ele próprio confessa, em seu discurso relatado por Platã037 , que ia de casa em casa provar a esses preceptores que não passavam de ignorantes. Tal conduta não era digna daquele que um oráculo havia declarado o mais sábio dos homens. Lançaram-se contra ele um sacerdote e um conselheiro dos Quinhentos, que o acusaram; confesso que não sei precisamente de quê, vejo apenas algo vago em sua Apologia; atribui-se-Ihe, de maneira geral, a acusação de inspi: rar aos jovens máximas contra a religião e o governo. E assim que procedem diariamente os caluniadores no mun-
do; mas um tribunal requer fatos comprovados, pontos de acusação precisos e circunstanciados: é o que o processo de Sócrates não nos fornece; sabemos apenas que ele chegou a ter duzentos e vinte votos a seu favor. O tribunal dos Quinhentos possuía portanto duzentos e vinte filósofos. É muito; duvido que fossem encontrados alhures. A maioria, enfim, decidiu pela cicuta; mas consideremos que os atenienses, caindo em si, abominaram os acusadores e os juízes; que Melito, o principal autor da sentença, foi condenado à morte por essa injustiça; que os outros foram banidos e que se ergueu um templo a Sócrates. Jamais a filosofia foi tão bem vingada nem tão honrada. O exemplo de Sócrates é, no fundo, o mais terrível argumento que se possa citar contra a intolerância. Os atenienses tinham um altar dedicado aos deuses estrangeiros, aos deuses que não podiam conhecer. Há uma prova mais forte não apenas de indulgência para com todas as nações, mas também de respeito por seus cultos? Um homem fino, que não é inimigo da razão, nem da literatura, nem da probidade, nem da pátria, justificando recentemente a Noite de São Bartolomeu, cita a guerra dos fócios, chamada guerra sagrada, como se essa guerra tivesse sido provocada pelo culto, pelo dogma, por argumentos de teologia: tratava-se de saber a quem pertenceria um território, é a questão de todas as guerras. Feixes de trigo não são um símbolo de crença; jamais uma cidade grega combateu por opiniões. Aliás, o que pretende esse homem modesto e suave? Quer que façamos uma guerra sagrada38?
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CAPÍTULO VIII
Se os romanos foram tolerantes
Entre os antigos romanos, desde Rômulo até os tempos em que os cristãos disputaram com os sacerdotes do Império, não encontreis um único homem perseguido por suas opiniões. Cícero duvidou de tudo, Lucrécio negou tudo, e não lhes fizeram a menor censura. A licença foi inclusive tão longe que Plínio, o Naturalista, começou seu livro negando a Deus e dizendo que há só um: o sol. Cícero diz, ao falar dos infernos: "Non est anus tam excors quae credat; não há sequer velho imbecil que acredite neles 39 ." Diz Juvenal: "Nec pueri credunt (sátira II, verso 152); nem as crianças acreditam." Cantava-se no teatro de Roma:
Post mortem nibil est, ipsaque mors nibil. (Sêneca, As Troianas, coro ao final do segundo ato.) Não há nada após a morte, a própria morte é nada. Abominemos essas máximas e, quando muito, perdoemos um povo que os evangelhos não iluminam. Elas são falsas, são ímpias. Mas concluamos que os romanos eram muito tolerantes, já que elas não provocaram jamais o menor murmúrio. 39
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o grande princípio do senado e do povo romano era: "Deorum offensae diis curae; compete apenas aos deuses cuidar das ofensas feitas aos deuses." Esse povorei não sonhava senão em conquistar, governar e civilizar o universo. Foram nossos legisladores, assim como nossos vencedores; e jamais César, que nos deu grilhões, leis e jogos, quis forçar-nos a abandonar nossos druidas por ele, embora sendo o grande pontífice de uma nação nossa soberana. Os romanos não professavam todos os cultos, não davam a todos a sanção pública; mas permitiram todos. Não tiveram nenhum objeto material de culto sob Numa, nem simulacros, nem estátuas; em seguida ergueram-nos aos deuses majorum gentium, que os gregos lhes fizeram conhecer. A lei das doze tábuas, Deos peregrinos ne colunto, limitou-se a só conceder o culto público às divindades superiores aprovadas pelo senado. Ísis teve um templo em Roma, até que Tibério o demoliu, quando os sacerdotes desse templo, corrompidos pelo dinheiro de Mundus, fizeram-no deitar no templo, sob o nome do deus Anúbis, com uma mulher chamada Paulina. É verdade que Josefo é o único a relatar essa história; não era contemporâneo, era crédulo e costumava exagerar. É pouco provável que, numa época tão esclarecida como a de Tibério, uma dama da primeira classe tivesse sido tão imbecil para acreditar nos favores do deus Anúbis. Mas, verdadeira ou falsa essa anedota, o certo é que a superstição egípcia havia erguido um templo em Roma com o consentimento público. Os judeus comerciavam nessa cidade desde o tempo da guerra púnica; passaram a ter sinagogas a partir de Augusto e as conservaram quase sempre, assim como na Roma moderna. Há exemplo
maior de que a tolerância era vista pelos romanos como a lei mais sagrada do direito dos povos? Dizem-nos que, tão logo os cristãos apareceram, foram perseguidos por esses mesmos romanos que não perseguiam ninguém. Parece-me evidente que esse fato é completamente falso; tomo por prova o próprio São Paulo. Os Atos dos Apóstolos nos mostram que 40 , tendo São Paulo sido acusado pelos judeus de querer destruir a lei mosaica em nome de Jesus Cristo, São Tiago propôs a São Paulo que raspasse a cabeça e fosse purificar-se no templo com quatro judeus, "e saberão todos que não é verdade o que se diz a teu respeito; e que, pelo contrário, andas também, tu mesmo, guardando a lei". Paulo, cristão, foi portanto cumprir todas as cerimônias judaicas durante sete dias; mas os sete dias não haviam ainda transcorrido quando judeus da Ásia o reconheceram e, vendo que havia entrado no templo, não apenas com judeus, mas com gentios, acusaram-no de profanação. Paulo foi preso, levado ante o governador Félix e, em seguida, enviado ao tribunal de Festo. Os judeus em coro exigiram sua morte; Festo respondeuIhes 41 : "Não é costume dos romanos condenar quem quer que seja, sem que o acusado tenha presentes os seus acusadores e possa defender-se da acusação." Tais palavras são ainda mais notáveis nesse magistrado romano, pois ele aparentemente não teve nenhuma consideração por São Paulo, sentiu por ele apenas desprezo; enganado pelas falsas luzes de sua razão, tomou-o por louco; diz ao próprio São Paulo que era insan0 42 : Multae te litterae ad insaniam convertunt. Portanto, Festo só escutou a eqüidade da lei romana ao dar sua proteção a um desconhecido que não podia estimar.
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Eis O próprio Espírito Santo a declarar que os romanos não eram perseguidores e que eram justos. Não foram os romanos que se insurgiram contra São Paulo, foram os judeus. São Tiago, irmão de Jesus, foi apedrejado por ordem de um judeu saduceu, e não de um romano. Foram somente judeus que apedrejaram Santo Estêvã0 43 ; e, quando São Paulo vestia a capa dos executores 44 , certamente não agia como cidadão romano. Os primeiros cristãos por certo não tinham questões com os romanos; tinham como inimigos apenas os judeus, dos quais começavam a separar-se. Sabemos o ódio implacável que todos os sectários sentem pelos que abandonam sua seita. Provavelmente houve tumulto nas sinagogas de Roma. Suetônio diz, na Vida de Cláudio (cap. XXV): judaeos, impulsore Christo assidue tumultantes, Roma expulit. Ele se enganava, ao dizer que fora por instigação de Cristo: não podia estar a par dos detalhes de um povo tão desprezado em Roma como era o povo judeu; mas não se enganava sobre a ocasião dessas querelas. Suetônio escrevia sob Adriano, no segundo século; os cristãos ainda não se distinguiam dos judeus aos olhos dos romanos. A passagem de Suetônio faz ver que os romanos, longe de oprimir os primeiros cristãos, reprimiam então os judeus que os perseguiam. Queriam que a sinagoga de Roma tivesse para com seus irmãos separados a mesma indulgência que o senado tinha para com ela, e os judeus expulsos voltaram logo em seguida; obtiveram até honrarias, apesar das leis que delas os excluíam. É o que nos dizem Díon Cássio e Ulpian045 • Será possível que, após a destruição de Jerusalém, os imperadores tivessem prodigalizado dignidades aos judeus e perseguido, entregue aos carrascos e às feras, cristãos que eram vistos como uma seita dos judeus?
Nero, dizem, os perseguiu. Tácito nos conta que foram acusados do incêndio de Roma e que os entregaram ao furor do povo. Tratava-se, em tal acusação, da crença dos cristãos? Certamente que não. Diremos que os chineses mortos pelos holandeses, há alguns anos, nos arredores de Batávia, foram imolados à religião? Por mais que queiramos nos enganar, é impossível atribuir à intolerância o desastre acontecido sob Nero a alguns infortunados semijudeus e semicristãos46 .
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CAPÍTULO IX
Acerca dos mártires
Posteriormente houve mártires cristãos. É bem difícil saber com precisão por que razões esses mártires foram condenados; mas ouso pensar que, sob os primeiros Césares, nenhum o foi simplesmente por sua religião. Todas eram toleradas; como poderiam visar e perseguir homens obscuros, que tinham um culto particular, num tempo em que todos os outros eram permitidos? Os Tito, os Trajano, os Antonino, os Décio não eram bárbaros: como imaginar que teriam privado somente os cristãos de uma liberdade que a terra inteira usufruía? Teriam ousado acusar apenas os cristãos de ter mistérios secretos, enquanto os mistérios de Ísis, Mitra, da deusa da Síria, todos estranhos ao culto romano, eram permitidos sem contradição? Cumpre que a perseguição tenha tido outras causas e que os ódios particulares, sustentados pela razão de Estado, tenham derramado o sangue dos cristãos. Por exemplo, quando São Lourenço recusa ao prefeito de Roma, Cornelius Secularis, o dinheiro dos cristãos que tinha em sua guarda, é natural que o prefeito e o governador ficassem irritados; eles não sabiam que São Lourenço havia distribuído esse dinheiro aos pobres e 45
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que fizera uma obra caritativa e santa; julgaram-no um rebelde, e o fizeram perecer17 • Consideremos o martírio de São Polieuto. Te-Io-ão condenado apenas por sua religião? Ele vai ao templo, onde rendem-se aos deuses ações de graças pela vitória do imperador Décio; ali insulta os sacrificadores, derruba e quebra os altares e as estátuas: em que país do mundo perdoariam semelhante atentado? O cristão que rasgou publicamente o edito do imperador Diocleciano e que atraiu sobre seus irmãos a grande perseguição nos dois últimos anos do reinado desse soberano não tinha um zelo conforme a sabedoria e sentiu-se muito infeliz por ser a causa do desastre de seu partido. Esse zelo irrefletido, que irrompeu com freqüência e foi inclusive condenado por vários padres da Igreja, provavelmente constituiu a origem de todas as perseguições. Certamente não comparo os primeiros sacramentários aos primeiros cristãos: não coloco o erro ao lado da verdade. Mas FareI, predecessor de João Calvino, fez em Arles a mesma coisa que São Polieuto havia feito na Armênia. Levavam pelas ruas a estátua de Santo Antônio, o eremita, em procissão; Farel lança-se com alguns dos seus sobre os monges que levavam Santo Antônio, agride-os, dispersa-os e atira a estátua de Santo Antônio no rio. Ele merecia a morte, que não recebeu, porque teve tempo de fugir. Se tivesse se contentado em gritar a esses monges que não acreditava que um corvo tivesse trazido a metade de um pão a Santo Antônio eremita, nem que este tivesse conversado com centauros e sátiros, teria merecido uma forte reprimenda, porque perturbava a ordem; mas se, à noite, após a procissão, houvesse examinado pacificamente a história do corvo, dos centauros e dos sátiros, nada teriam a lhe censurar.
O quê! os romanos teriam suportado que o infame Antínoo fosse colocado entre os deuses secundários e teriam trucidado, entregue às feras, todos aqueles que eram acusados apenas de adorar pacificamente um justo? O quê! teriam reconhecido um Deus suprem048 , um Deus soberano, senhor de todos os deuses secundários, o que é atestado pela fórmula Deus optímus maximus, e teriam perseguido os que adoravam um Deus único? Não é verossímil que alguma vez tenha havido uma inquisição contra os cristãos sob os imperadores, isto e, que tenham vindo interrogá-los sobre suas crenças. Sobre essa questão, nem judeus, nem sírios, nem egípcios, nem bardos, nem druidas, nem filósofos foram jamais perturbados. Os mártires, portanto, foram os que se rebelaram contra os falsos deuses. Era muito ajuizado e muito piedoso não crer nesses deuses; mas se, não contentes de adorar um Deus em espírito e em verdade, manifestaram-se violentamente contra o culto estabelecido, por mais absurdo que pudesse ser, somos forçados a reconhecer que eles próprios eram intolerantes. Tertuliano, em sua Apologética, admite 49 que os cristãos eram vistos como rebeldes. A acusação era injusta, mas provava que não era apenas a religião dos cristãos que excitava o zelo dos magistrados. Diz Tertulian050 que os cristãos recusavam-se a ornar suas portas com ramos de louro nos festejos públicos pelas vitórias dos imperadores: podia-se facilmente tomar essa atitude condenável por um crime de lesa-majestade. A primeira severidade jurídica exercida contra os cristãos foi a de Domiciano; mas limitou-se a um exílio que não durou um ano: "Facile coeptum repressit, restitutis etiam quos relegaverat", diz Tertuliano (cap. V). Lac-
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tâncio, cujo estilo é tão arrebatado, admite que, de Domiciano a Décio, a Igreja foi tranqüila e florescente 5'. Essa longa paz, diz ele, foi interrompida quando esse execrável animal Décio oprimiu a Igreja: "Exstitit enim post annos plurimos exsecrabile animal Decius, qui vexaret Ecclesiam" CApol., capo IV). Não queremos discutir aqui a opinião do erudito Dodwell sobre o pequeno número de mártires; mas se os romanos tivessem perseguido tanto a religião cristã, se o senado tivesse feito morrer tantos inocentes por suplícios inusitados, se tivessem mergulhado cristãos no óleo fervente, se tivessem exposto jovens nuas às feras no circo, como teriam deixado em paz todos os primeiros bispos de Roma? Santo Irineu conta como mártir entre esses bispos apenas Telésforo, no ano 139 da era vulgar, e não há nenhuma prova de que esse Telésforo tenha sido condenado à morte. Zeferino governou o rebanho de Roma durante dezoito anos e morreu pacificamente no ano 219. É verdade que, nos antigos martirológios, colocam-se quase todos os primeiros papas; mas a palavra martírio era tomada então apenas em sua verdadeira significação: martírio queria dizer testemunho, e não suplício. É difícil combinar esse furor de perseguição com a liberdade que tiveram os cristãos de realizar cinqüenta e seis concílios que os escritores eclesiásticos contam nos três primeiros séculos. Houve perseguições; mas se tivessem sido tão violentas como dizem, certamente Tertuliano, que escreveu com tanta força contra o culto estabelecido, não teria morrido em seu leito. Sabe-se bem que os imperadores não leram sua Apologética; que um texto obscuro, escrito na África, não chega até os encarregados do governo do
mundo; mas devia ser conhecido por pessoas próximas ao procônsul da África, devia atrair muito ódio ao autor. Tertuliano, porém, não sofreu o martírio. Orígenes ensinou publicamente em Alexandria e não foi condenado à morte. Esse mesmo Orígenes, que falava com tanta liberdade aos pagãos e aos cristãos, anunciando Jesus a uns, negando um Deus em três pessoas aos outros, declara expressamente, em seu terceiro livro contra Celso, "que houve muito poucos mártires, e só de tempos em tempos. No entanto, diz ele, os cristãos nadà negligenciam para que sua religião seja abraçada por todo o mundo; percorrem as cidades, os povoados, as aldeias". É certo que essas missões contínuas podiam ser facilmente acusadas de sedição pelos sacerdotes inimigos. No entanto, elas são toleradas, apesar do povo egípcio, sempre turbulento, sedicioso e covarde; povo que havia linchado um romano por ter matado um gato, povo desprezível em qualquer circunstância, não obstante o que digam dele os admiradores das pirâmides52 • Quem haveria de incitar mais contra si os sacerdotes e o governo do que São Gregório Taumaturgo, discípulo de Orígenes? Gregório vira durante a noite um velho enviado por Deus, acompanhado de uma mulher resplandescente de luz: essa mulher era a Virgem Santa, e o velho, São João Evangelista. São João ditou-lhe uma mensagem que São Gregório foi pregar. Indo à Neocesaréia, passou por um templo onde faziam oráculos e onde a chuva o obrigou a passar a noite; ali fez vários sinais da cruz. No dia seguinte, o sacrificador do templo espantou-se de que os demônios, que lhe respondiam antes, não mais quisessem transmitir oráculos. Chamou-
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os. Os diabos vieram dizer-lhe que não viriam mais; comunicaram-lhe que não podiam mais habitar o templo, porque Gregório nele havia passado a noite e fizera sinais da cruz. O sacrificador mandou prender Gregório, que lhe respondeu: "Posso expulsar os demônios de onde quiser e fazê-los entrar onde me agradar. - Então faça-os voltar ao meu templo", diz o sacrificador. Gregório rasgou um pedaço de um papiro que tinha na mão e nele traçou estas palavras: "Gregório a Satã: Eu te ordeno que voltes a este templo." Puseram esse bilhete no altar. Os demônios obedeceram e, naquele dia, transmitiram seus oráculos como de costume; após o quê, cessaram, conforme nos é dito. É São Gregório de Nissa que relata esses fatos da vida de São Gregório Taumaturgo. Os sacerdotes dos ídolos certamente deviam odiar Gregório e, na sua cegueira, denunciá-lo ao magistrado; contudo, seu maior inimigo não esboçou nenhuma perseguição. Conta-se na história de São Cipriano que ele foi o primeiro bispo de Cartago condenado à morte. O martírio de São Cipriano é do ano 258 de nossa era; portanto, durante um longo tempo nenhum bispo de Cartago foi imolado por causa de sua religião. A história não nos diz que calúnias foram lançadas contra São Cipriano, que inimigos tinha, por que o procônsul da África irritou-se contra ele. São Cipriano escreve a Comélio, bispo de Roma: "Uma comoção popular irrompeu há pouco em Cartago e por duas vezes gritaram que eu devia ser jogado aos leões." É bem provável que os arrebatamentos do povo feroz de Cartago tenham sido a causa da morte de Cipria50
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no; e é óbvio que não foi o imperador Galo que o condenou de tão longe por sua religião, uma vez que deixava em paz Comélio, que vivia sob seus olhos. Tantas causas secretas se misturam com freqüência à causa aparente, tantos motivos desconhecidos servem para perseguir um homem, que é impossível identificar nos séculos posteriores a origem oculta dos infortúnios dos homens mais importantes e, com mais forte razão, a do suplício de um indivíduo que só podia ser conhecido por aqueles de seu partido. ' Observe-se que São Gregório Taumaturgo e São Dionísio, bispo de Alexandria, que não foram supliciados, viviam na mesma época de São Cipriano. Por que, sendo tão conhecidos ao menos quanto o bispo de Cartago, foram deixados em paz? E por que São Cipriano foi entregue ao suplício? Isso acaso não parece indicar que um sucumbiu a inimigos pessoais e poderosos, à calúnia, ao pretexto da razão de Estado, que amiúde junta-se à religião, enquanto os outros tiveram a felicidade de escapar à maldade dos homens? É pouco provável que a simples acusação de cristianismo tenha feito perecer Santo Inácio na época do clemente e justo Trajano, já que permitiram aos cristãos acompanhá-lo e consolá-lo quando o conduziram a Roma 53 • Houve freqüentes sedições em Antioquia, cidade sempre turbulenta, onde Inácio era bispo secreto dos cristãos. Talvez essas sedições, malignamente imputadas aos cristãos inocentes, tenham chamado a atenção do governo, que se enganou, como aconteceu muitas vezes. São Simeão, por exemplo, foi acusado perante Sapor de ser espião dos romanos. A história de seu martírio conta que o rei Sapor propôs-lhe adorar o Sol; mas sabe51
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se que os persas não prestavam culto ao Sol: consideravam-no um emblema do bom princípio, de Oromase, ou Orosmade, do Deus criador que reconheciam. Por mais tolerante que se possa ser, é impossível deixar de sentir alguma indignação contra esses declamadores que acusam Diocleciano de haver perseguido os cristãos assim que subiu ao trono. Confiemos em Eusébio de Cesaréia: seu testemunho não pode ser recusado; o favorito, o panegirista de Constantino, o inimigo violento dos imperadores precedentes, deve ser acreditado quando os justifica. Eis suas palavras54 : "Os imperadores deram por muito tempo aos cristãos grandes sinais de benevolência; confiaram-lhes províncias; vários cristãos moraram no palácio; inclusive cristãs foram desposadas. Diocleciano tomou por esposa Prisca, cuja filha foi mulher de Maximiano Galera, etc." Que esse testemunho decisivo nos ensine, pois, a não mais caluniar. Convém considerar se a perseguição provocada por Galera, após dezenove anos de um reinado de clemência e de benefícios, não deve sua origem a alguma intriga que desconhecemos. Que se perceba o quanto a fábula da legião tebana ou tebéia, massacrada, ao que se diz, apenas por motivos de religião, é uma fábula absurda. É ridículo que tivessem feito vir essa legião da Ásia por causa do grande São Bernardo; é impossível que a tivessem chamado para apaziguar uma sedição na Gália, um ano depois que essa sedição fora reprimida; não é menos impossível que tenham massacrado seis mil homens da infantaria e setecentos cavaleiros numa passagem em que duzentos homens poderiam deter um exército inteiro. O relato dessa suposta carnificina começa por uma impostura eviden52
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te: "Enquanto a terra gemia sob a tirania de Diocleciano, o céu se povoava de mártires." Ora, essa aventura, como foi dito, teria acontecido em 286, quando Diocleciano mais favorecia os cristãos e quando o Império Romano foi o mais ditoso. Enfim, o que deveria poupar toda essa discussão é que nunca houve legião tebana: os romanos eram demasiado orgulhosos e sensatos para formar uma legião de egípcios que só serviam em Roma como escravos, Verna CanoPi; é como se tivessem tido uma legião judaica. Temos os nomes das trinta e duas legiões que, compunham as principais forças do Império Romano; o da legião tebana seguramente não consta. Classifiquemos, pois, essa fábula juntamente com os versos acrósticos das sibilas que prediziam os milagres de Jesus Cristo e com tantas outras suposições que um falso zelo difundiu para abusar da credulidade.
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CAPÍTULO X
Acerca do perigo das falsas lendas e acerca da perseguição
A mentira por muito tempo iludiu os homens; está na hora de conhecer o pouco de verdade que se pode identificar nessas nuvens de fábulas que cobrem a história romana desde Tácito e Suetônio, e que quase sempre envolveram os anais das outras nações antigas. Como se pode acreditar, por exemplo, que os romanos, esse povo grave e severo de quem conservamos as leis, tenham condenado virgens cristãs, moças de caráter, à prostituição? É conhecer muito mal a austera dignidade de nossos legisladores, que puniam tão severamente as fraquezas das vestais. Os Atos Sinceros de Ruinart relatam essas torpezas. Mas deve-se crer nos Atos de Ruinart como nos Atos dos Apóstolos? Esses Atos Sinceros dizem, segundo Bollandus, que havia na cidade de Ancira sete virgens cristãs, de cerca de 70 anos cada uma, que o governador Teodecto condenou a passar pelas mãos dos jovens da cidade; mas tendo essas virgens sido poupadas, como é de se supor, ele as obrigou a servirem completamente nuas aos mistérios de Diana, aos quais porém jamais se assistiu a não ser com um véu. São Teodato, que na verdade era taberneiro, sem por isso ser menos fervoroso, pediu ardentemente a Deus para que fizesse
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morrer essas santas filhas, temendo que sucumbissem à tentação. Deus lhe atendeu: o governador mandou que fossem atiradas num lago com uma pedra no pescoço. Logo elas apareceram a Teodato e rogaram-lhe não deixar que seus corpos fossem comidos pelos peixes; estas foram suas próprias palavras. O santo taberneiro e seus amigos foram durante a noite à beira do lago vigiado por soldados; uma tocha celeste marchou sempre à frente deles e, quando chegaram no lugar onde estavam os guardas, um cavaleiro celeste, armado dos pés à cabeça, perseguiu esses guardas com a lança na mão. São Teodato retirou do lago os corpos das virgens. Foi levado perante o governador, e o cavaleiro celeste não impediu que lhe cortassem a cabeça. Não cessamos de repetir que veneramos os verdadeiros mártires, mas que é difícil acreditar nessa história de Bollandus e de Ruinart. Será preciso contar aqui a história do jovem São Romano? Lançaram-no na fogueira, diz Eusébio, e judeus que estavam presentes insultaram Jesus Cristo que deixava queimar seus confessores, quando Deus havia tirado Sidrach, Misach e Abdênago da fornalha ardente 55 • Mal os judeus acabaram de falar, eis que São Romano sai triunfante da fogueira. O imperador ordenou que o perdoassem e disse ao juiz que não queria complicações com Deus. Estranhas palavras para Diocleciano! O juiz, apesar da indulgência do imperador, ordenou que cortassem a língua de São Romano e, embora tivesse carrascos, mandou que a operação fosse feita por um médico. O jovem Romano, nascido gago, falou com loquacidade assim que teve a língua cortada. O médico foi repreendido e, para mostrar que a operação fora feita segundo as
normas, pegou um transeunte e cortou-lhe o mesmo tanto de língua que havia cortado de São Romano, o que fez o transeunte morrer na hora; pois, acrescenta sabiamente o autor, a anatomia nos ensina que um homem sem língua não poderia viver. Em verdade, se Eusébio escreveu semelhantes asneiras, se não foram acrescentadas a seus escritos, que confiabilidade pode ter sua His-
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tória? O martírio de Santa Felicidade e de seus sete filhos, condenados à morte, segundo se diz, pelo sábio e piedoso Antonino, é-nos apresentado sem se indicar o autor do relato. É bem provável que algum autor mais zeloso que verdadeiro tenha querido imitar a história dos Macabeus. É assim que começa o relato: "Santa Felicidade era romana, vivia sob o reinado de Antonino." Tais palavras deixam claro que o autor não era contemporâneo de Santa Felicidade. Diz que o pretor a julgou em seu tribunal no campo de Marte; mas o prefeito de Roma tinha seu tribunal no Capitólio, e não no campo de Marte, que, após ter servido para os comícios, servia então para desfiles de soldados, corridas e jogos militares. Somente isso já denota a falsificação. É dito ainda que, após o julgamento, o imperador confiou a diferentes juízes a tarefa de fazer executar a sentença, o que é inteiramente contrário a todas as formalidades daqueles e de todos os tempos. Há também um Santo Hipólito, que se supõe ter sido arrastado por cavalos, como Hipólito, filho de Teseu. Esse suplício jamais foi conhecido dos antigos romanos, e a mera semelhança do nome levou a inventar-se essa lenda.
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Observe-se ainda que, nos relatos dos martírios, compostos unicamente pelos próprios cristãos, vemos sempre uma multidão de cristãos vir livremente à prisão do condenado, acompanhá-lo ao suplício, recolher seu sangue, enterrar seu corpo, fazer milagres com as relíquias. Se tivessem perseguido apenas a religião, não teriam imolado esses cristãos declarados que assistiam a seus irmãos condenados e que eram acusados de fazer encantamentos com os restos dos corpos martirizados? Não os teriam tratado como tratamos os valdenses, os albigenses, os hussitas, as diferentes seitas dos protestantes? Nós os degolamos, os queimamos em massa, sem distinção de idade nem de sexo. Acaso existe, nos relatos comprovados das perseguições antigas, um único traço que se aproxime da Noite de São Bartolomeu e dos massacres da Irlanda? Há um único só que se assemelhe à festa anual ainda celebrada em Toulouse, festa cruel, festa que deveria ser abolida para sempre, na qual um povo inteiro agradece a Deus em procissão e felicita-se por ter massacrado, há duzentos anos 56 , quatro mil de seus concidadãos? Digo-o com horror, mas com verdade: nós, cristãos, é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades, com o crucifixo ou a Bíblia na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras, desde os tempos de Constantino até os furores dos canibais que habitavam as Cevenas, furores que, graças a Deus, não mais subsistem hoje. Ainda enviamos, por vezes, ao patíbulo pobres coitados do Poitou, do Vivarais, de Valence, de Montauban. Enforcamos, desde 1745, oito dos chamados predicantes
ou ministros do Evangelho, cujo único crime foi ter orado a Deus pelo rei em patoá e ter dado uma gota de vinho e um pedaço de pão levedado a alguns camponeses imbecis. Nada se sabe disso em Paris, onde o prazer é a única coisa importante, onde se ignora tudo o que se passa na província e no estrangeiro. Tais processos fazem-se em uma hora, mais depressa do que um desertor é julgado. Se o rei tivesse conhecimento deles, perdoaria. Em nenhum país protestante os padres católicos são tratados desse modo. Há mais de cem padres católicos na Inglaterra e na Irlanda; são conhecidos, deixaram-nos viver tranqüilos na última guerra 57 • Seremos sempre os últimos a abraçar as opiniões sensatas das outras nações? Elas se corrigiram; e nós, quando nos corrigiremos? Foram precisos sessenta anos para que adotássemos o que Newton havia demonstrad0 5B ; mal começamos a ousar salvar a vida de nossos filhos pela inoculaçã0 59 • Faz muito pouco tempo que praticamos os verdadeiros princípios da agricultura, quando começaremos a praticar os verdadeiros princípios da humanidade? E com que cara podemos censurar os pagãos por terem feito mártires, quando temos sido culpados da mesma crueldade nas mesmas circunstâncias? Admitamos que os romanos tenham feito morrer uma multidão de cristãos apenas por causa de sua religião: nesse caso, os romanos foram muito condenáveis. Gostaríamos de cometer a mesma injustiça? E quando os censuramos por ter perseguido, gostaríamos de ser perseguidores? Se aparecesse alguém bastante desprovido de boafé, ou bastante fanático, para perguntar-me aqui: Por que
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vindes denunciar nossos erros e nossas faltas? Por que destruir nossos falsos milagres e nossas falsas lendas? Elas são o alimento da piedade de várias pessoas. Há erros necessários. Não arranqueis do corpo uma úlcera arraigada que arrastaria consigo a destruição do corpo; eis o que eu lhe responderia: Todos esses falsos milagres com os quais abalais a fé que devemos aos verdadeiros, todas essas lendas absurdas que acrescentais às verdades do Evangelho extinguem a religião nos corações; muitas pessoas que querem instruir-se, e que não têm tempo de fazê-lo suficientemente, dizem: Os mestres de minha religião me enganaram, portanto não há religião; mais vale lançar-me nos braços da natureza do que nos do erro; prefiro depender da lei natural do que das invenções dos homens. Outros têm a infelicidade de ir ainda mais longe: vêem que a impostura lhes pôs um freio, e não querem sequer o freio da verdade, inclinam-se para o ateísmo, tornam-se depravados porque outros foram velhacos e cruéis. Eis aí certamente as conseqüências de todas as fraudes piedosas e de todas as superstições. Os homens em geral só raciocinam pela metade; é um péssimo argumento afirmar: Voragine, o autor da Lenda dourada, e o jesuíta Ribadaneira, compilador da Flor dos santos, só disseram tolices, logo, não existe Deus; os católicos liquidaram um certo número de huguenotes, e os huguenotes, por sua vez, assassinaram um certo número de católicos, logo, não existe Deus; serviram-se da confissão, da comunhão, e de todos os sacramentos, para cometer os crimes mais horríveis, logo, não existe Deus. Eu concluiria afirmando o contrário: logo, existe um Deus que, após esta vida passageira, na qual o desconhecemos tanto, e
cometemos tantos crimes em seu nome, dignar-se-á a consolar-nos de tão horríveis infortúnios: pois, considerando as guerras de religião, os quarenta cismas dos papas, quase todos sangrentos; as imposturas, quase todas funestas; os ódios irreconciliáveis acesos pelas diferentes opiniões; considerando todos os males que o falso zelo produziu, os homens há muito têm tido o seu inferno nesta vida.
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CAPÍTULO XI
Abuso da intolerância
Mas como! Cada cidadão só deverá acreditar em sua razão e pensar o que essa razão esclarecida ou enganada lhe ditar? Exatamente60 , contanto que ele não perturbe a ordem, pois nào depende do homem acreditar ou não acreditar, mas depende dele respeitar os costumes de sua pátria. E se dissésseis que é um crime não crer na religião dominante, vós mesmos acusaríeis os primeiros cristãos vossos pais e justificaríeis aqueles que acusais de os ter entregue aos suplícios. Respondeis que a diferença é grande, que todas as religiões são obras dos homens e que apenas a Igreja católica, apostólica e romana é obra de Deus. Mas, em boafé, deverá nossa religião, por ser divina, reinar pelo ódio, pelos furores, pelo exílio, pelo açambarcamento de bens, as prisões, as torturas, os crimes, e pelas ações de graças prestadas a Deus por esses crimes? Quanto mais divina a religião cristã, tanto menos compete ao homem comandá-la; se Deus a fez, Deus irá sustentá-la sem vós. Sabeis que a intolerância só produz hipócritas ou rebeldes. Que péssima alternativa! Enfim, gostaríeis que fosse mantida por carrascos a religião de um Deus que carrascos fizeram perecer e que pregou tão-só a doçura e a paciência? 63
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Rogo-vos que vejais as conseqüências terríveis do direito da intolerância. Se fosse permitido despojar de seus bens, lançar no cárcere, matar um cidadão que, em certo grau de latitude, não professasse a religião estabelecida, que exceção eximiria os mandatários do Estado das mesmas penas? A religião une igualmente o monarca e os mendigos. Assim, mais de cinqüenta doutores ou monges afirmaram este horror monstruoso: que era permitido depor e matar os soberanos que não pensassem como a Igreja dominante. E os parlamentos do reino não cessaram de proscrever essas abomináveis decisões de abomináveis teólogos61 • O sangue de Henrique, o Grande, ainda não secara quando o parlamento de Paris aprovou um decreto que estabelecia a independência da coroa como uma lei fundamental. O cardeal Duperron, que devia a púrpura a Henrique, o Grande, insurgiu-se, nos estados-gerais de 1614, contra o decreto do parlamento, e mandou suprimi-lo. Todos os jornais da época relatam os termos que Duperron utilizou em seu discurso: "Se um príncipe se fizesse ariano, seríamos obrigados a depô-lo." Seguramente não, senhor cardeal. Queremos precisamente adotar vossa suposição quimérica de que um de nossos reis, tendo lido a história dos concílios e dos padres da Igreja, impressionado, aliás, pelas palavras Meu pai é maior do que eu 62 , tomando-as ao pé da letra e oscilando entre o concílio de Nicéia e o de Constantinopla, se declarasse a favor de Eusébio de Nicomédia: mesmo assim eu obedeceria a meu rei, não me julgaria menos compelido pelo juramento que lhe fiz; e se ousásseis erguer-vos contra ele, e eu fosse um de vossos juízes, vos declararia criminoso de lesa-majestade.
Duperron levou mais longe a disputa, e eu a abrevio. Aqui não é o lugar de aprofundar essas quimeras revoltantes. Limitar-me-ei a dizer, com todos os cidadãos, que não é porque Henrique IV fora sagrado em Chartres que lhe devíamos obediência, mas porque o direito incontestável de nascimento dava a coroa a esse príncipe, que a merecia por sua coragem e por sua bondade. Seja, pois, permitido afirmar que todo cidadão deve herdar, pelo mesmo direito, bens de seu pai, e que não se pense que ele mereça ser privado disso e arrastado à forca, por ser da opinião de Ratram contra Paschase Ratbert, e de Bérenger contra Duns Escoto. Sabe-se que nem todos os nossos dogmas foram claramente explicados e universalmente aceitos em nossa Igreja. Não havendo Jesus Cristo nos dito como procedia o Espírito Santo, a Igreja latina por muito tempo acreditou, com a grega, que procedia apenas do Pai: por fim acrescentou que procedia também do Filho. Pergunto se, após essa decisão, um cidadão que se apegasse ao símbolo da véspera teria sido digno de morte. A crueldade, a injustiça seriam menores em punir hoje aquele que pensasse como se pensava outrora? Era-se culpado, no tempo de Honório I, por acreditar que Jesus não tinha duas vontades? Não faz muito tempo que a imaculada conceição foi estabelecida; os dominicanos ainda não crêem nela. Em que momento os dominicanos começarão a merecer castigos neste mundo e no outro? Se devemos aprender com alguém como nos conduzir em nossas disputas intermináveis, é certamente com os apóstolos e os evangelistas. Havia motivos para provocar um cisma violento entre São Paulo e São Pedro.
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Paulo diz expressamente em sua Epístola aos Gálatas 63 que resistiu a Pedro porque este era repreensível, porque usava de dissimulação assim como Barnabé, porque ambos comiam com os gentios antes da chegada de Tiago e em seguida retiraram-se secretamente, e separaramse dos gentios com receio de ofender os circuncisos. Acrescenta Paulo: "Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do Evangelho, disse a Cefas [Pedro] na presença de todos: Se, sendo tu judeu, vives como gentio, e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus?" Esse era um tema de querela violenta. Tratava-se de saber se os novos cristãos se judaizariam ou não. O próprio São Paulo, nessa época, foi oferecer sacrifícios no templo de Jerusalém. Sabe-se que os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram judeus circuncisos, que observavam o sabá e abstinham-se das carnes proibidas. Um bispo espanhol ou português que se fizesse circuncidar e que observasse o sabá, seria queimado num autode-fé. No entanto, a paz não foi perturbada, por causa dessa questão fundamental, nem entre os apóstolos, nem entre os primeiros cristãos. Se os evangelistas se assemelhassem aos escritores modernos, teriam um campo bem vasto para combater uns aos outros. São Mateus64 conta vinte e oito gerações de Davi a Jesus; São Lucas65 conta quarenta e uma, e essas gerações são absolutamente diferentes. Contudo, não se vê nenhuma dissensão surgir entre os discípulos sobre essas contradições aparentes, muito bem conciliadas por vários padres da Igreja. A caridade não foi ferida, a paz foi conservada. Que lição maior para tolerar-nos em nossas disputas e sermos humildes em tudo o que não entendemos!
São Paulo, em sua Epístola a alguns judeus de Roma convertidos ao cristianismo, dedica todo o final do terceiro capítulo a dizer que só a fé glorifica e que as obras não justificam ninguém. São Tiago, ao contrário, em sua Epístola às doze tribos dispersas por toda a terra, capítulo 11, não cessa de dizer que é impossível ser salvo sem as obras. Aí está o que separou duas grandes comunhões entre nós 66 , mas o que não dividiu os apóstolos. Se a perseguição contra aqueles com quem disputamos fosse uma ação santa, cumpre admitir que o que matasse o maior número de heréticos seria o maior santo do paraíso. Que figura faria um homem que tivesse se contentado em despojar seus irmãos e em jogá-los no cárcere, perto de outro, mais zeloso, que teria massacrado centenas deles na Noite de São Bartolomeu? Eis aqui a prova. O sucessor de São Pedro e seu consistório não podem errar; eles aprovaram, celebraram, consagraram a ação da Noite de São Bartolomeu; logo, esta ação era muito santa; logo, de dois assassinos iguais em piedade, o que tivesse estripado vinte e quatro mulheres huguenotes grávidas deve ser glorificado em dobro em relação ao que só tivesse estripado doze. Pela mesma razão, os fanáticos das Ceve nas deviam pensar que seriam glorificados na proporção do número de padres, religiosos e mulheres católicas que tivessem liquidado. Estranhos títulos, esses, para a glória eterna.
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CAPÍTULO XII
Se a intolerância foi de direito divino no judaísmo e se foi sempre posta em prática
Chamam direito divino, creio eu, os preceitos que foram dados pelo próprio Deus. Ele quis que os judeus comessem um cordeiro cozido com alfaces 67 e que os comensais o fizessem de pé, com um bastão na mão68 , em comemoração do Phasé69 ; ordenou que a consagração do sumo sacerdote se fizesse pondo sangue7° em sua orelha direita, em sua mão direita e em seu pé direito, costumes extraordinários para nós, mas não para a Antiguidade; quis que sacrificassem o bode Hazazel pelas iniqüidades do pov07\ proibiu que se alimentassemn de peixes sem escamas, porcos, lebres, ouriços, corujas, gaviões, etc. Instituiu as festas, as cerimônias. Todas essas coisas, que pareciam arbitrárias às outras nações e submetidas ao direito positivo, ao costume, tornavam-se, ao serem ordenadas pelo próprio Deus, um direito divino para os judeus, assim como tudo o que Jesus Cristo, filho de Maria, filho de Deus, nos ordenou é de direito divino para nós. Não nos preocupemos aqui em saber por que Deus impôs uma lei nova em substituição à que havia dado a Moisés e por que havia ordenado a Moisés mais coisas 69
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do que ao patriarca Abraão, e mais a Abraão do que a Noé7 3 • Parece que ele tem por bem adaptar-se às épocas e à população do gênero humano: é uma gradação paterna. Mas tais abismos são demasiado profundos para nossa débil compreensão. Atenhamo-nos aos limites de nosso tema; vejamos em primeiro lugar o que era a intolerância entre os judeus. É verdade que, no Êxodo, nos Números, no Levítico, no Deuteronômio, há leis muito severas sobre o culto, e castigos mais severos ainda. Vários comentadores têm dificuldade de conciliar as palavras de Moisés com as passagens de Jeremias e Amós, e com o célebre discurso de Santo Estêvão, relatado nos Atos dos Apóstolos. Amós diz74 que os judeus, no deserto, sempre adoraram Moloque, Renfã e Quium. Jeremias diz expressamente7 s que Deus não pediu nenhum sacrifício a seus pais quando saíram do Egito. Santo Estêvão, em seu discurso aos judeus, exprime-se assim: "Mas Deus se afastou e os entregou ao culto da milícia celestiaF6 ... Ó casa de Israel, porventura me oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto pelo espaço de quarenta anos, e acaso não levantastes o tabernáculo de Moloque e a estrela do deus Renfã, figuras que fizestes para as adorar?" Do culto de tantos deuses estrangeiros, outros críticos inferem que esses deuses foram tolerados por Moisés e citam como prova as seguintes palavras do Deuteronômio 77 : "Não procedereis em nada segundo estamos fazendo aqui, cada qual o que bem parece aos seus 0Ihos."78 Apóiam sua opinião no fato de não ser mencionado nenhum ato religioso do povo no deserto: nenhuma celebração da Páscoa, nem de Pentecostes, nenhuma men-
ção à festa dos tabernáculos, nenhuma oração pública estabelecida; enfim, a circuncisão, sinal da aliança de Deus com Abraão, não foi praticada. Também citam a seu favor a história de Josué. Esse conquistador diz aos judeus79 : "Escolhei hoje a quem sirvais: se aos deuses a quem serviram vossos pais, que estavam dalém do Eufrates, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais." O povo responde: "Não, antes serviremos ao Senhor." Josué replicou: "Deitai, pois, agora, fora os deuses estranhos que há no meio de vós~" Portanto eles tinham incontestavelmente outros deuses além de Adonai no tempo de Moisés. É inútil refutar aqui os críticos para os quais o Pentateuco não foi escrito por Moisés. Tudo já foi dito há tempos sobre essa questão e, ainda que uma pequena parte dos livros de Moisés tivesse sido escrita no tempo dos juízes ou dos pontífices, eles não seriam menos inspirados e menos divinos. Basta, parece-me, estar provado pela Sagrada Escritura que, apesar da extraordinária punição que atraíram devido ao culto de Ápis, os judeus conservaram por muito tempo uma completa liberdade. É possível até que o massacre de vinte e três mil homens provocado por Moisés por causa do bezerro erigido por seu irmão, o tenha feito compreender que nada se ganhava com o rigor, obrigando-o a fechar os olhos sobre a paixão do povo pelos deuses estrangeiros. O próprio Moisés80 parece em seguida transgredir a lei que ditou. Proibiu todo simulacro, não obstante erigiu uma serpente de bronze. A mesma exceção à lei verificase depois no templo de Salomão: esse príncipe manda esculpir 81 doze bois que sustentam a grande nave do
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templo; querubins são colocados na arca; têm uma cabeça de águia e outra de bezerro; e foi aparentemente essa cabeça de bezerro mal-feita, encontrada no templo por soldados romanos, que fez pensar por muito tempo que os judeus adoravam um asno. Em vão o culto dos deuses estrangeiros foi proibido. Salomão é pacificamente idólatra. Jeroboão, a quem Deus concedeu dez partes do rein0 82 , manda erigir dois bezerros de ouro e reina por vinte e dois anos, reunindo em sua pessoa as dignidades de monarca e pontífice. O pequeno reino de Judá ergue, sob Roboã0 83 , altares e estátuas a deuses estrangeiros. O santo rei Asa não destrói os altos 84 • O grande sacerdote Urias erige no templo, em lugar do altar dos holocaustos, um altar do rei da Síria8s • Não se vê, em uma palavra, nenhuma coerção sobre a religião. Sei que a maior parte dos reis judeus exterminaram-se, assassinaram-se uns aos outros; mas isso foi sempre por causa de seus interesses, e não de suas crenças. É verdade que, entre os profetas86 , houve aqueles que invocaram o céu em sua vingança: Elias fez descer o fogo celeste para consumir os sacerdotes de Baal; Eliseu mandou vir ursas87 para devorarem quarenta e duas crianças que o haviam chamado de careca. Mas são milagres raros, e fatos que seria um pouco duro querer imitar. Objetam-nos, ainda, que o povo judeu foi muito ignorante e muito bárbaro. É dito 88 que, na guerra contra os madianitas89 , Moisés ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino e todas as mães, e que os despojos fossem partilhados. Os vencedores encontraram no camp090 675 mil ovelhas, 72 mil bois, 61 mil burros e 32 mil meninas; fizeram a partilha e mataram o resto. Vários comentadores afirmam inclusive que trinta
e duas meninas foram imoladas ao Senhor: Cesserunt in partem Domini triginta duae animae. 91 Na verdade, os judeus imolavam homens à divindade. Testemunham-no os sacrifícios de Jefté92 e do rei Agag93 , cortado em pedaços pelo sacerdote Samuel. O próprio Ezequiel promete-Ihes94 , para encorajá-los, que comerão carne humana: "Vós vos fartareis de cavalos e de cavaleiros; bebereis o sangue dos príncipes." Vários comentadores aplicam dois versículos dessa profecia aos próprios judeus, e os demais aos animais carnívoros. Não se encontra, em toda a história desse povo, nenhum traço de generosidade, de magnanimidade, de beneficência; mas sempre escapam, na nuvem dessa barbárie tão longa e tão terrível, raios de uma tolerância universal. Jefté, inspirado por Deus, e que lhe imolou sua filha, diz aos amonitas 9s : "Não é certo que aquilo que Camos, teu deus, te dá, consideras como tua possessão? Assim possuiremos nós o território de todos quantos o Senhor nosso Deus expulsou de diante de nós." Essa declaração é precisa: pode levar muito longe; mas, ao menos, é uma prova evidente de que Deus tolerava Camos. Pois a Sagrada Escritura não diz: julgais ter direito sobre as terras que dizeis vos terem sido dadas pelo deus Camos. Mas diz, positivamente: "Tendes direito, tibi jure debentur", o que é o verdadeiro sentido das palavras hebraicas otho thirasch. A história de Mica e do levita, relatada nos capítulos XVII e XVIII do livro dos Juízes, é também uma prova incontestável da tolerância e da maior liberdade admitida então entre os judeus. A mãe de Mica, esposa muito rica de Efraim, havia perdido mil e cem peças de prata; seu filho lhas devolveu; ela consagrou essa prata ao
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Senhor e mandou fazer ídolos com ela; construiu uma pequena capela. Um levita encarregou-se do serviço da capela, mediante dez peças de prata, uma túnica, um manto por ano e sua alimentação. E Mica disse consigo mesmo96 ; "Sei agora que o Senhor me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote." Nesse ínterim, seiscentos homens da tribo de Dã, que buscavam apoderar-se de alguma aldeia da região e nela estabelecer-se, mas não tendo sacerdote levita consigo e necessitando de um para que Deus favorecesse sua empresa, foram à casa de Mica e tomaram seu éfode, seus ídolos e seu levita, apesar dos protestos desse sacerdote e apesar dos gritos de Mica e sua mãe. Foram, então, com segurança atacar a aldeia chamada Laís e ali espalharam fogo e sangue por tudo, como era seu costume. Deram o nome de Dã a Laís, em memória de sua vitória; colocaram o ídolo de Mica num altar. E, o que mais chama a atenção, ]ônatas, neto de Moisés, foi o grande sacerdote desse templo, onde era adorado o Deus de Israel e o ídolo de Mica. Após a morte de Gedeão, os hebreus adoraram BaalBerite durante cerca de vinte anos e renunciaram ao culto de Adonai, sem que nenhum chefe, nenhum juiz, nenhum sacerdote clamasse por vingança. Seu crime era grande, reconheço-o; mas se mesmo essa idolatria foi tolerada, como devem tê-lo sido as diferenças no verdadeiro culto! Alguns dão como prova de intolerância que o próprio Senhor, tendo permitido que sua arca fosse tomada pelos filisteus num combate, puniu estes últimos apenas com uma doença secreta parecida com hemorróidas, derrubando a estátua de Dagon e enviando grande quanti-
dade de ratos a seus campos; mas, quando os filisteus, para abrandar sua cólera, devolveram a arca puxada por duas vacas que nutriam seus bezerros e ofereceram a Deus cinco ratos de ouro e cinco asnos de ouro, o Senhor fez morrer setenta anciãos de Israel e cinqüenta mil homens do povo por terem olhado a arca. Respondemos que o castigo do Senhor não incide sobre uma crença, sobre uma diferença no culto, nem sobre uma idolatria. Se o Senhor tivesse querido punir a idolatria, teria feito perecer todos os filisteus que ousaram tomar sua arca e que adoravam Dagon; mas fez perecer cinqüenta mil e setenta homens de seu povo, unicamente porque haviam olhado a arca, que não deviam olhar. Assim, as leis, os costumes dessa época, a economia judaica diferem de tudo o que conhecemos; assim, também, os caminhos inescrutáveis de Deus encontram-se acima dos nossos. "O rigor exercido contra esse grande número de homens, diz o judicioso dom Calmet, só parecerá excessivo aos que não compreenderam até que ponto Deus queria ser temido e respeitado entre seu povo e que julgam os propósitos e os desígnios de Deus apenas segundo as fracas luzes de sua razão." Portanto, Deus não pune um culto estrangeiro, mas uma profanação do seu, uma curiosidade indiscreta, uma desobediência, talvez até um espírito de revolta. Percebe-se bem que tais castigos só competem a Deus na teocracia judaica. Nunca é demais repetir que esses tempos e costumes não têm nenhuma relação com os nossos. Enfim, quando, nos séculos posteriores, Naamã, o idólatra, pergunta a Eliseu se teria permissão de seguir seu rei 97 no templo de Rimon e ali adorar com ele, esse mesmo Eliseu, que havia feito as crianças serem devoradas pelas ursas, não lhe responde: Vai em paz?
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Há mais ainda: o Senhor ordenou a Jeremias que pusesse cordas no pescoço, cabrestos 98 e cangas, e os enviasse aos reizinhos, ou melchim, de Moabe , Amom , Edom, Tiro e Sidom; e Jeremias transmitiu-lhes estas palavras do Senhor: "Agora eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei de Babilônia, meu serVO."99 Eis aí um rei idólatra declarado servidor de Deus e seu favorito. O mesmo Jeremias, que o melk ou régulo judeu Sedecias havia mandado encarcerar, tendo obtido deste o perdão, aconselha-o, da parte de Deus, a entregar-se ao rei da Babilônia!oo: "Se te renderes voluntariamente aos príncipes do rei de Babilônia, então viverá tua alma." Deus, portanto, toma enfim o partido de um rei idólatra; entrega-lhe a arca, cuja mera visão havia custado a vida de cinqüenta mil e setenta judeus; entrega-lhe o Tabernáculo e o resto do templo, cuja construção havia custado cento e oito mil talentos de ouro, um milhão e dezessete mil talentos de prata e dez mil dracmas de ouro, deixados por Davi e seus ministros para a construção da casa do Senhor; o que, sem contar os denários empregados por Salomão, eleva a quantia a aproximadamente dezenove bilhões e sessenta e dois milhões nos valores da época. Idolatria nenhuma foi melhor recompensada. Sei que essa conta é exagerada, que houve provavelmente erro de copista; mas reduzi a soma pela metade, à quarta parte, à oitava inclusive, ela ainda vos espantará. Não menos surpreendentes são as riquezas que Heródoto diz ter visto no templo de Éfeso. Mas, enfim, os tesouros não são nada aos olhos de Deus, e o nome de seu servidor, dado a Nabucodonosor, é o verdadeiro tesouro inestimável.
Deus!O! não favorece menos Kir, Koresch, ou Kosroes, que nós chamamos Ciro; chama-o seu cristo, seu ungido, embora ele não fosse ungido, segundo a significação comum dessa palavra, e seguisse a religião de Zoroastro; chama-o seu pastor, embora fosse usurpador aos olhos dos homens. Não há, em toda a Sagrada Escritura, um sinal maior de predileção. Lemos em Malaquias lO2 que "desde o nascente do sol até ao poente é grande entre as nações o meu nome [de Deus); e em todo lugar lhe é queimado incenso e trazidas ofertas puras". Deus preocupa-se tanto com os ninivitas idólatras como com os judeus; ele os ameaça, e os perdoa. Melquisedeque, que não era judeu, foi sacrificante de Deus. Balaão, idólatra, era profeta. A Escritura nos ensina, portanto, que Deus não somente tolerava todos os outros povos, como tinha por eles um cuidado paterno. E nós ousamos ser intolerantes!
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CAPÍTULO XIII
Extrema tolerância dos judeus
Portanto, sob Moisés, sob os juízes, sob os reis, vemos sempre exemplos de tolerância. Há muitos outros103: Moisés diz várias vezes que "Deus pune os pais nos filhos até a quarta geração"; essa ameaça era necessária a um povo a quem Deus não havia revelado a imortalidade da alma, nem os castigos e recompensas numa outra vida. Essas verdades não lhe foram anunciadas nem no Decálogo, nem em alguma lei do Levítico e do Deuteronômio. Eram os dogmas dos persas, dos babilônios, dos gregos, dos cretenses; mas não constituíam de modo algum a religião dos judeus. Moisés não diz: "Honra teu pai e tua mãe, se queres ir ao céu", mas: "Honra a teu pai e a tua mãe ... para que se prolonguem os teus dias."I04 Ele só os ameaça com males corporais lOS, com a sarna seca, a sarna purulenta, úlceras malignas nos joelhos e na barriga da perna, com serem expostos às infidelidades de suas mulheres, tomarem empréstimo a juros dos estrangeiros e não poderem emprestar a juros; com morrerem de fome e serem obrigados a comer seus filhos; mas em lugar nenhum lhes diz que suas almas imortais sofrerão tormentos após a morte, ou gozarão da felicidade. Deus, que conduzia pessoalmente seu povo, punia-o e 79
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recompensava-o imediatamente após suas boas ou más ações. Tudo era temporal, e esta é uma verdade que Warburton usa indevidamente para provar que a lei dos judeus era divina 106 , porque, sendo o próprio Deus seu rei, fazendo justiça imediatamente após a transgressão ou a obediência, não havia necessidade de lhes revelar uma doutrina que reservava para o momento em que não governasse mais seu povo. Os que, por ignorância, pretendem que Moisés ensinava a imortalidade da alma, retiram do Novo Testamento uma de suas maiores vantagens sobre o Antigo. Está escrito que a lei de Moisés anunciava apenas castigos corporais até a quarta geração. No entanto, apesar do enunciado preciso dessa lei, apesar da declaração expressa de Deus de que puniria até a quarta geração, Ezequiel anuncia exatamente o contrário aos judeus e lhes diz 107 que o filho não carregará a iniqüidade de seu pai; chega até a fazer Deus dizer que lhes havia dado 108 "estatutos que não eram bons"I09. Mesmo assim, o livro de Ezequiel foi incluído no dnone dos autores inspirados por Deus. É verdade que a sinagoga não permitia sua leitura antes da idade de trinta anos, como nos informa São Jerônimo; mas era por receio de que a juventude abusasse das descrições muito ingênuas da libertinagem das duas irmãs Oolá e Oolibá, que se encontram nos capítulos XVI e XXIII. Em uma palavra, seu livro foi sempre aceito, apesar da contradição formal com Moisés. Enfimllo, quando a imortalidade da alma foi um dogma aceito, o que provavelmente começara já no tempo do cativeiro da Babilônia, a seita dos saduceus continuou acreditando que não havia castigos nem recompensas após a morte e que a faculdade de sentir e de pensar
perecia conosco, como a força ativa, a capacidade de andar e de digerir. Eles negavam a existência dos anjos. Divergiam muito mais dos outros judeus do que os protestantes divergem dos católicos; não obstante, permaneceram na comunidade de seus irmãos. Houve inclusive sumos sacerdotes de sua seita. Os fariseus acreditavam na fatalidade 1l1 e na metempsicose ll2 . Os essênios pensavam que as almas dos justos iam para as ilhas afortunadas ll3 e as dos maus, para uma espécie de Tártaro. Não faziam sacrifícios; reuniam-se entre si numa sinagoga particular. Em uma palavra, se quisermos examinar mais de perto o judaísmo, ficaremos espantados de encontrar a maior tolerância em meio aos horrores mais bárbaros. É uma contradição, é verdade; mas quase todos os povos foram governados por contradições. Feliz aquela que produz costumes suaves quando se tem leis de sangue!
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CAPÍTULO XIV
Se a intolerância foi ensinada porJesus Cristo
Vejamos agora se Jesus Cristo estabeleceu leis sanguinárias, se ordenou a intolerância, se mandou construir os cárceres da Inquisição, se instituiu os carrascos dos autos-de-fé. Há, se não me engano, poucas passagens nos Evangelhos a partir das quais o espírito perseguidor pudesse inferir que a intolerância, a coerção, são legítimas. Uma é a parábola em que o reino dos céus é comparado a um rei que chama os convidados às bodas de seu filho; manda-lhes dizer através de seus servidores 114 : "Os meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo está pronto; vinde para as bodas." Uns, sem se importarem com o convite, saem para suas casas de campo, outros para seus negócios; alguns ultrajam os servidores do rei, e os matam. O rei envia seus exércitos contra esses assassinos e destrói sua cidade; ordena que seus servidores saiam pelas estradas a convidar ao banquete todos os que encontrarem. Um desses, estando à mesa sem a veste nupcial, é manietado e lançado nas trevas exteriores. Como essa alegoria refere-se apenas ao reino dos céus, é evidente que não autoriza a nenhum homem o direito de manietar e jogar no cárcere o vizinho que teria 83
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vindo comer em sua casa sem a veste nupcial adequada, e não conheço na história príncipe nenhum que tenha mandado enforcar um cortesão por tal motivo. Tampouco há que temer, quando o imperador, após matar seus cevados, envia seus pajens aos príncipes do império convidando-os a cear, que esses príncipes matem os pajens. O convite ao banquete significa a pregação da salvação; o assassinato dos enviados do rei simboliza a perseguição contra os que pregam a sabedoria e a virtude. A outra 115 parábola é a de um homem que convida seus amigos para uma grande ceia e, estando tudo preparado, manda seu servo chamá-los. Um desculpa-se dizendo que comprou uma terra e que precisa vê-la: essa desculpa não parece justificada, pois não é à noite que se vai inspecionar sua terra; outro diz que comprou cinco juntas de bois e que deve experimentá-las; um terceiro responde que acaba de se casar e seguramente sua desculpa é admissível. O pai de família, irado, manda vir a seu banquete os cegos e os aleijados, e, vendo que ainda sobram lugares, diz a seu criado 1l6: "Sai pelos caminhos e atalhos, e obriga todos a entrar." É verdade que não é dito expressamente que esta parábola seja um símbolo do reino dos .céus. Abusaram demais destas palavras: obriga-os a entrar. Mas é evidente que um só criado não pode obrigar à força quem ele encontra para vir cear na casa de seu senhor, e , ademais, convivas assim forçados não tornariam a ceia muito agradável. Obriga-os a entrar não quer dizer outra coisa, segundo os comentadores mais autorizados, senão: roga, suplica, insiste, esforça-te ao máximo. Qual a relação, vos pergunto, dessa súplica e dessa ceia com a perseguição?
Tomando as coisas ao pé da letra, seria preciso ser cego, aleijado e conduzido à força, para estar no seio da Igreja? Jesus diz na mesma parábola 1l7 : "Não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos." E por acaso alguma vez se inferiu daí que não se devesse de fato jantar com seus parentes e amigos tão logo tenham um pouco de fortuna? Jesus Cristo, após a parábola do banquete, diz 1l8 : "Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda sua própria vida, não pode ser meu discípulo ... Qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro para calcular a despesa?" Há alguém no mundo tão desnaturado para concluir que se deve odiar seu pai e sua mãe? E não é fácil compreender que tais palavras significam: Não oscilai entre mim e tuas afeições mais caras? Citam a passagem de São Mateus 1l9 : "E se recusar também ouvir a Igreja, considera-o como gentio e publicano." Isso não diz absolutamente que se deva perseguir os pagãos e os coletores de impostos do rei: eles são amaldiçoados, é verdade, mas não entregues ao braço secular. Longe de retirar desses coletores de impostos qualquer prerrogativa de cidadão, foram-lhes dados os maiores privilégios; é a única profissão condenada na Escritura, e a mais favorecida pelos governos. Portanto, por que não teríamos por nossos irmãos errantes uma indulgência equivalente à consideração prodigalizada a nossos irmãos coletores de impostos? Uma outra passagem de que se abusou grosseiramente é a de São Mateus 120 e de São Marcos l2l , onde é dito que Jesus, tendo fome de manhã, aproximou-se de uma figueira na qual encontrou apenas folhas, pois não era
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época dos figos: ele amaldiçoa a figueira, que seca em seguida. São dadas várias explicações diferentes desse milagre; mas há uma só que possa autorizar a perseguição? Uma figueira não pôde dar figos no começo de março e foi tornada seca: será uma razão para fazer secar nossos irmãos de dor em todas as épocas do ano? Respeitemos na Escritura tudo o que pode fazer surgir dificuldades em nossos espíritos curiosos e vãos, mas não abusemos disso para sermos duros e implacáveis. O espírito perseguidor, que abusa de tudo, busca ainda sua justificativa na expulsão dos mercadores do templo e na legião de demônios enviada do corpo de um possuído ao corpo de dois mil animais imundos. Mas quem não vê que esses dois exemplos são apenas uma justiça feita pelo próprio Deus a uma contravenção da lei? Era uma falta de respeito à casa do Senhor transformar seu adro numa loja de mercadores. Em vão o sinédrio e os sacerdotes permitiam esse comércio para a comodidade dos sacrifícios: o Deus a quem sacrificavam podia certamente, embora oculto sob a figura humana, destruir essa profanação; podia do mesmo modo punir aqueles que introduziam no país rebanhos inteiros proibidos por uma lei que ele próprio havia estabelecido. Tais exemplos nada têm a ver com perseguições relativas ao dogma. O espírito de intolerância deve estar apoiado em razões muito más, já que por toda parte busca os menores pretextos. Praticamente o restante das palavras e ações de Jesus Cristo prega a doçura, a paciência, a indulgência. É o pai de família que acolhe o filho pródigo 122 ; é o operário que vem na última hora 123 e que é pago como os demais;
é o samaritano caridoso 12\ o próprio Jesus justifica seus discípulos por não jejuarem125 ; perdoa a pecadora 126 ; contenta-se em recomendar fidelidade à mulher adúltera 127; condescende inclusive à inocente alegria dos convivas das bodas de Caná 12B que, estando já afogueados de vinho, pedem ainda mais: consente em fazer um milagre em favor deles, transformando água em vinho. Não se enfurece sequer contra Judas, que deve traílo; ordena a Pedro jamais servir-se da espada 129 ; repreende 130 os filhos de Zebedeu que, a exemplo de Elias, queriam fazer descer o fogo do céu sobre uma cidade que não quisera acolhê-lo. Enfim, morre vítima da inveja. Se ousarmos comparar o sagrado com o profano, e um Deus com um homem, sua morte, humanamente falando, tem muita semelhança com a de Sócrates. O filósofo grego perece pelo ódio dos sofistas, dos sacerdotes e dos mandatários do povo: o legislador dos cristãos sucumbe sob o ódio dos escribas, dos fariseus e dos sacerdotes. Sócrates podia evitar a morte, e não o quis; Jesus Cristo ofereceu-se voluntariamente. O filósofo grego não apenas perdoou seus caluniadores e seus juízes iníquos, como pediu-lhes que tratassem seus filhos da mesma forma, se estes fossem um dia suficientemente felizes para merecer seu ódio como ele; o legislador dos cristãos, infinitamente superior, pediu a seu pai que perdoasse seus inimigos l3l • Se Jesus Cristo pareceu temer a morte, se a angústia que sentiu foi tão extrema que chegou a suar sangue 132 , o que é o sintoma mais violento e mais raro, foi porque dignou-se aceitar toda a fraqueza do corpo humano, que havia assumido. Seu corpo tremia e sua alma era inabalável; ele nos ensinava que a verdadeira força, a verda-
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deira grandeza consistem em suportar males sob os quais nossa natureza sucumbe. Há uma extrema coragem em dirigir-se à morte temendo-a. Sócrates havia chamado os sofistas de ignorantes e acusara-os de que tinham má-fé; Jesus, usando de seus direitos divinos, chamou os escribas 133 e os fariseus de hipócritas, insensatos, cegos, maldosos, serpentes, raça de víboras. Sócrates não foi acusado de querer fundar uma nova seita; também não acusaram Jesus Cristo de ter querido introduzir uma 134. É dito que os príncipes dos sacerdotes e todo o conselho buscavam um falso testemunho contra Jesus para fazê-lo perecer. Ora, se buscavam um falso testemunho, logo não o censuravam de haver pregado publicamente contra a lei. De fato, Jesus submeteu-se à lei de Moisés desde sua infância até sua morte. Circuncidaram-no no oitavo dia , como todas as outras crianças. Se, depois, foi batizado no Jordão, tratava-se de uma cerimônia consagrada entre os judeus, como entre todos os povos do Oriente. Todas as máculas legais limpavam-se pelo batismo. Era assim a consagração dos sacerdotes: mergulhavam-nos na água na festa de expiação solene, batizavam-se os prosélitos. Jesus observou todos os pontos da lei: festejou todos os dias de sabá; absteve-se das carnes proibidas; celebrou todas as festas e, inclusive, antes de sua morte, havia celebrado a Páscoa; não o acusaram de nenhuma opinião nova, nem de haver observado algum rito estranho. Nascido israelita, viveu constantemente como israelita. Duas testemunhas que se apresentaram o acusaram de haver dito 135 que poderia "destruir o santuário de Deus
e reedificá-Io em três dias". Tal discurso era incompreensível para os judeus materialistas; mas não era uma acusação de querer fundar uma nova seita. O sumo sacerdote o interrogou e disse-Ihe 136 : "Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos diga se és o Cristo, o Filho de Deus." Não nos informam o que o sumo sacerdote entendia por filho de Deus. Algumas vezes essa expressão era utilizada para designar um justo137 , assim como empregavam-se as palavras filho de Belial para significar um homem mau. Os judeus grosseiros não tinham a menor idéia do mistério sagrado de um filho de Deus, ele próprio Deus, descendo à terra. Jesus responde-lhe 138 : "Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso, e vindo sobre as nuvens do céu." Essa resposta foi considerada uma blasfêmia pelo sinédrio irritado. Como este não tinha o direito de justiçar, Jesus foi levado ao governador romano da província e acusado caluniosamente de ser um perturbador da ordem pública, que dizia não ser preciso pagar o tributo a César e que, além do mais, se dizia rei dos judeus. É da maior evidência, portanto, que foi acusado de um crime de Estado. O governador Pilatos, sabendo que ele era galileu, primeiro o enviou a Herodes, tetrarca da Galiléia. Herodes julgou impossível que Jesus pudesse aspirar a ser chefe de partido e pretender a realeza; tratou-o com desprezo e mandou-o de volta a Pilatos, que teve a indigna fraqueza de condená-lo para apaziguar o tumulto excitado contra si próprio, tanto mais que já havia enfrentado uma revolta dos judeus, pelo que nos conta Josefo. Pila-
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tos não teve a mesma generosidade manifestada depois pelo governador Festo 139. Pergunto, agora, se é a tolerância ou a intolerância que é de direito divino? Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires e não carrascos.
CAPÍTULO
xv
Testemunhos contra a intolerância
É um sacrilégio tirar, em matéria de religião, a liberdade aos homens, impedir que escolham uma divindade: nenhum homem, nenhum deus gostaria de um serviço forçado. (Tertuliano, Apologética, capo XXIV.) Se usassem de violência para a defesa da fé, os bispos se oporiam a ela. (Santo Hilário, liv. I.) A religião forçada não é mais religião; é preciso persuadir, e não coagir. A religião não se impõe. (Lactâncio, liv. 111.) É uma execrável heresia querer atrair pela força, à base de pancadas e encarceramento, os que não puderam ser convencidos pela razão. (Santo Atanásio, liv. I.) Nada é mais contrário à religião do que a coerção. (São Justino, mártir, liv. V) Haveremos de perseguir aqueles que Deus tolera?, indaga Santo Agostinho, antes que sua querela com os donatistas o tornasse demasiado severo. Que nenhuma violência seja praticada contra os judeus. (Quarto concílio de Toledo, qüinquagésimo-sexto cânone.) Aconselhai, e não forçai. (Carta de São Bernardo.) Não pretendemos destruir os erros pela violência.
(Discurso do clero da França a Luís XIII.) 90
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Sempre desaprovamos as vias de rigor. (Assembléia do clero, 11 de agosto de 1560.) Sabemos que a fé se persuade e não se impõe. (Fléchier, bispo de Ní'mes, carta 19.) Não devemos sequer empregar termos insultantes. (Bispo Ou Bellai, numa Instrução pastoral.) Lembrai-vos que as doenças da alma não se curam pela coerção e pela violência. (Cardeal Le Camus, Instrução pastoral de 1688.) A cobrança forçada de uma religião é uma prova evidente de que o espírito que a conduz é um espírito inimigo da verdade. (Oirois, doutor da Sorbonne, liv. VI, capo iv.) A violência é capaz de gerar hipócritas; não se persuade quando por toda parte se fazem ressoar ameaças. (Tillemont, História eclesiástica, tomo VI.) Pareceu-nos conforme à eqüidade e à correta razão seguir o exemplo da antiga Igreja, que jamais usou de violência para estabelecer e expandir a religião. (Advertência do parlamento de Paris a Henrique lI.) A experiência nos ensina que a violência é mais capaz de irritar do que de curar um mal que tem sua raiz no espírito, etc. (Oe Thou, Epístola dedicatória a Henrique IV) A fé não se incute a golpes de espada. (Cerisiers, Sobre os reinados de Henrique IVe Luís XIIL) É um zelo bárbaro pretender plantar a religião nos corações, como se a persuasão pudesse ser o efeito da coerção. (Boulainvilliers, Estado da França.) Com a religião ocorre o mesmo que com o amor: a imposição nada consegue, a coerção muito menos; não há nada mais independente do que amar e crer. (Amelot de la Houssaie, a propósito das Cartas do cardeal d'Ossat.)
Se o céu vos amou o bastante para vos fazer ver a verdade, ele vos proporcionou uma grande graça; mas cabe aos fllhos que têm a herança do pai odiar os que não a tiveram? (Montesquieu, O espírito das leis, liv. XX\fl40.) Poderíamos fazer um livro enorme, composto apenas de semelhantes passagens. Nossas histórias, nossos discursos, nossos sermões, nossas publicações de moral, nossos catecismos, respiram todos, ensinam todos atualmente esse dever sagrado de indulgência. Por qual fatalidade, por qual inconseqüência desmentiríamos na pfática uma teoria que anunciamos todos os dias? Quando nossos atos desmentem nossa moral, é que acreditamos haver alguma vantagem em fazer o contrário do que ensinamos; mas certamente não há vantagem alguma em perseguir os que não são de nossa opinião e em fazernos odiar por isso. Há, portanto, mais uma vez, absurdo na intolerância. Mas, dirão, os que têm interesse em atormentar as consciências não são absurdos. É a esses que se destina o capítulo seguinte.
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CAPÍTULO XVI
Diálogo entre um moribundo e um homem saudável
Um cidadão estava agonizando numa cidade da província; um homem em bom estado de saúde veio insultá-lo em seus últimos momentos, dizendo-lhe: O bárbaro
Miserável! pensa como eu imediatamente: assina este papel, confessa que cinco proposições encontram-se num livro que nem tu nem eu jamais lemosl41 ; admite já a opinião de Lanfranc contra Bérenger, de Santo Tomás contra São Boaventura; adota o segundo concílio de Nicéia contra o concílio de Frankfurt; explica-me agora mesmo de que maneira estas palavras: "Meu pai é maior do que eu"142 significam expressamente: "Sou tão grande quanto ele."
Omorlbundo Mal escuto o que me dizes; as ameaças que me fazes chegam confusamente aos meus ouvidos, perturbam minha alma, tornam minha morte medonha. Pelo amor de Deus, tem piedade de mim. 9S
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O bárbaro
O moribundo
Piedade! não posso tê-la se não fores da minha opinião em tudo.
Ai! desprezas a Deus ou não o reconheces, já que me pedes uma mentira na hora da morte, tu que em breve serás julgado por ele e responderás por essa mentira.
Omorlbundo Ai! percebe que nestes últimos momentos todos os meus sentidos estão abalados, todas as portas do meu entendimento fechadas, minhas idéias fogem, meu pensamento extingue-se. Tenho condições de discutir? O bárbaro
Pois bem, se não podes crer o que quero, diz que crês, e isso me basta.
Ornaribundo Como posso perjurar para te agradar? Em breve estarei diante de Deus, que pune o perjúrio. O bárbaro
Não importa; terás o prazer de ser enterrado num cemitério, e tua mulher, teus filhos, terão do que viver. Morre como hipócrita; a hipocrisia é algo bom: é, como dizem, uma homenagem que o vício presta à virtude 143 . Um pouco de hipocrisia, meu amigo, o que isso custa?
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O bárbaro
o que dizes, insolente! Que não reconheço Deus? O moribundo
Perdão, meu irmão, receio que não o conheças. Aquele que eu adoro reanima neste momento minhas forças para dizer-te com uma voz moribunda que, se acreditas em Deus, deves ter caridade para comigo. Ele me deu minha mulher e meus filhos, não faças com que morram de miséria. Quanto ao meu corpo, faz dele o que quiseres: entrego-o a ti. Mas crê em Deus, eu te suplico. O bárbaro
Faz , sem discutir, o que te disse. Estou te mandando!
o moribundo E que interesse tens em me atormentar tanto? O bárbaro
Como! que interesse? Se tiver tua assinatura, ela me valerá um bom canonicato.
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Ornarlbunda Ah! meu irmão, eis meu último momento; peço a Deus, ao morrer, que ele te toque e te converta. Obdrbaro
CAPÍTULO XVII
Carta escrita ao jesuíta Le TeUier, por um bene.ficiado, em 6 de maio de 1714 145
o diabo carregue o impertinente, que não assinou! Vou assinar por ele e falsificar sua letra l44 • A carta a seguir é uma confirmação da mesma moral.
Meu reverendo padre, Obedeço às ordens que recebi de Vossa Reverência para apresentar-lhe os meios mais convenientes de livrar Jesus e sua Companhia de seus inimigos. Creio que não restam mais de quinhentos mil huguenotes no reino, alguns dizem um milhão, outros um milhão e quinhentos mil. Mas, seja qual for o número, eis aqui minha opinião, que submeto humildemente à vossa, como é meu dever. 1º É fácil pegar num só dia todos os pastores protestantes e enforcá-los juntos numa mesma praça, não somente para a edificação pública, mas pela beleza do espetáculo. 2º Eu mandaria assassinar em seus leitos todos os pais e mães, porque se os matássemos nas ruas isso poderia causar algum tumulto; vários inclusive poderiam escapar, o que deve ser evitado acima de tudo. Essa execução é um corolário necessário de nossos princípios; pois, se devemos matar um herege, como tantos grandes teólogos o provam, é evidente que devemos matar todos. 3º Após a execução, eu faria todas as jovens serem desposadas por bons católicos, visto que não convém
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despovoar demasiadamente o Estado depois da última guerra; mas em relação aos rapazes de 14 e 15 anos, já imbuídos de maus princípios, que não podemos vangloriar-nos de destruir, minha opinião é que todos devem ser castrados, a fim de que essa corja não mais se reproduza. Quanto aos garotos menores, serão educados em vossos colégios e açoitados até que saibam de cor as obras de Sanchez e de Molina. 4º Penso, a menos que esteja enganado, que o mesmo deve ser feito a todos os luteranos da Alsácia, visto que, no ano de 1704, notei duas velhas daquela região que riam no dia da batalha de Hochstedt. 5º A questão dos jansenistas parecerá talvez um pouco mais embaraçosa. Calculo que são uns seis milhões pelo menos; mas um espírito como o vosso não se deve assustar com isso. Incluo entre os jansenistas todos os parlamentos, que tão indignamente apóiam as liberdades da Igreja galicana. Cabe à Vossa Reverência examinar, com vossa costumeira prudência, os meios de submeter esses espíritos indesejáveis. A conspiração dos barris de pólvora, na Inglaterra, não teve o sucesso desejado, porque um dos conjurados teve a indiscrição de querer salvar a vida de um amigo; mas, como não tendes amigo, não há que temer tal inconveniente: vos será muito fácil fazer explodir todos os parlamentos do reino com a invenção do monge Schwartz, chamada pulvis pyrius l46 • Calculo que serão precisos, um acionando o outro, trinta e seis barris de pólvora para cada parlamento, logo, multiplicando doze parlamentos 147 por trinta e seis barris, isso perfaz apenas quatrocentos e trinta e dois barris, que, a cem escudos a peça, compõem a soma de cento e vinte e nove mil e seiscentas libras: é uma bagatela para o reverendo padre geral.
Uma vez destruídos os parlamentos, dareis seus cargos aos membros de vossa congregação, que estão perfeitamente a par das leis do reino. 6º Será fácil envenenar o cardeal de Noailles, que é um homem simples e não desconfia de nada. Vossa Reverência empregará os mesmos meios de conversão junto a alguns bispos renitentes; seus bispados passarão para as mãos dos jesuítas, mediante uma carta do papa. Sendo, então, todos os bispos do partido da boa causa e todos os párocos habilmente escolhidos pelos bispos, eis o que sugiro ao bom arbítrio de Vossa Reverência. 7º Como dizem que os jansenistas comungam pelo menos na Páscoa, não seria difícil salpicar as hóstias com a droga utilizada para fazer justiça ao imperador Henrique VII. Um crítico me dirá talvez que se correria o risco, nessa operação, de envenenar também os molinistas. A objeção é forte; mas não há projeto que não tenha inconvenientes, não há sistema que não cause danos sob algum aspecto. Se nos detivéssemos diante dessas pequenas dificuldades, jamais conseguiríamos nada. E, aliás, como se trata de buscar o maior bem possível, não convém escandalizar-se se esse grande bem arrasta consigo algumas más conseqüências, que não merecem consideração alguma. Nada temos a nos censurar. Está demonstrado que todos os pretensos reformados, todos os jansenistas, estão prometidos ao inferno; assim, não fazemos mais que apressar o momento em que devem tomar posse. Não é menos claro que o paraíso pertence de direito aos molinistas; logo, fazendo-os perecer inadvertidamente e sem nenhuma má intenção, aceleramos sua
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alegria. Em ambos os casos, somos ministros da Providência. Quanto àqueles que poderiam ficar um pouco assombrados com o número, Vossa Paternidade poderá explicar-lhes que, desde os dias florescentes da Igreja até 1707, isto é, em cerca de catorze séculos, a teologia provocou o massacre de mais de cinqüenta milhões de homens; e não proponho enforcar, degolar, ou envenenar senão uns seis milhões e quinhentos mil. Poderão ainda contrapor, talvez, que minha conta não é justa e que violo a regra de três; pois, dirão, se em catorze séculos só pereceram cinqüenta milhões de homens por distinções, dilemas e antilemas teológicos, isso representa apenas trinta e cinco mil e setecentas e catorze pessoas por ano, logo, eu mato seis milhões, quatrocentas e sessenta e quatro mil e duzentas e oitenta pessoas a mais na fração correspondente ao presente ano. Mas, em verdade, essa contenda é bastante pueril; pode-se mesmo dizer que é ímpia, pois não percebem, por meu procedimento, que salvo a vida de todos os católicos até o fim do mundo? Jamais se faria nada, se se quisesse responder a todas as críticas. Sou, com um profundo respeito a Vossa Paternidade, seu mui humilde, devoto e benigno R... 148 (natural de Angoulême, prefeito da Congregação)
do correspondente do padre Le Tellier. Parece que seria difícil executar o projeto em todos os pontos; mas convém examinar em que ocasiões deve-se aplicar o suplício da roda ou da forca, ou condenar às galés pessoas que não são da nossa opinião. Esse é o objeto do próximo artigo.
Esse projeto não pôde ser executado porque o padre Le Tellier viu nele algumas dificuldades e porque Sua Paternidade foi exilada no ano seguinte. Mas, como é preciso examinar os prós e os contras, vejamos em que casos se poderia legitimamente seguir em parte as idéias 102
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CAPÍTULO XVIII
Únicos casos em que a intolerância é de direito humano
Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes quando perturbam a sociedade; perturbam a sociedade a partir do momento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens comecem por não ser fanáticos para merecer a tolerância. Se alguns jovens jesuítas, sabendo que a Igreja os reprovou com horror, que os jansenistas são condenados por uma bula e que, portanto, os jansenistas são reprovados, decidem queimar uma casa dos padres do Oratório porque Quesnel, teólogo dessa congregação, era jansenista, é claro que será necessário punir esses jesuítas. Do mesmo modo, se eles divulgaram máximas censuráveis, se sua instituição é contrária às leis do reino, não há como não dissolver sua companhia e abolir os jesuítas para fazer deles cidadãos, o que, no fundo, é um mal imaginário e um bem real para eles. Pois onde está o mal de vestir um hábito curto em vez de uma batina, e de ser livre ao invés de ser escravo? Nos períodos de paz, regimentos inteiros são reformados sem queixas; por que os jesuítas fazem tamanha gritaria quando os reformamos para obter a paz? 105
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Se os franciscanos, tomados de um santo zelo pela Virgem Maria, forem demolir a Igreja dos dominicanos, que pensam que Maria nasceu no pecado original, seremos obrigados a tratar os franciscanos mais ou menos como os jesuítas. O mesmo diremos dos luteranos e dos calvinistas. Não importa que digam: Seguimos os movimentos de nossa consciência; é preferível obedecer a Deus do que aos homens 149 ; somos o verdadeiro rebanho, devemos exterminar os lobos. Nesse caso, é evidente que são eles próprios os lobos. Um dos mais espantosos exemplos de fanatismo foi uma pequena seita na Dinamarca, cujo princípio era o melhor do mundo 150 • Esses crentes queriam obter a salvação eterna de seus irmãos; mas as conseqüências desse princípio eram singulares. Eles sabiam que todos os recém-nascidos que morrem sem batismo são condenados e que os que têm a felicidade de morrer imediatamente após receberem o batismo gozam da glória eterna. Saíam, pois, a estrangular os meninos e meninas recém-batizados que encontrassem. Certamente, era fazer-lhes o maior bem possível: a uma só vez eram preservados do pecado, das misérias desta vida e do inferno, e enviados infalivelmente ao céu. Mas essas pessoas caridosas não consideravam que não é permitido fazer um pequeno mal tendo em vista um grande bem; que não tinham nenhum direito sobre a vida dessas criancinhas; que a maior parte dos pais e mães são suficientemente materialistas para preferirem ter junto deles seus filhos e filhas do que vêlos estrangulados para ir ao paraíso, e que, em uma palavra, o magistrado deve punir o homicídio, ainda que feito com boa intenção.
Os judeus aparentemente teriam mais do que ninguém o direito de nos roubar e nos matar, pois, embora haja centenas de exemplos de tolerância no Antigo Testamento, há também alguns casos e algumas leis de rigor. Deus ordenou-lhes às vezes matar os idólatras, e não poupar senão as jovens núbeis; eles nos consideram idólatras e, embora hoje os toleremos, poderiam, de fato, se dominassem, deixar no mundo apenas nossas filhas. Teriam sobretudo a obrigação indispensável de assassinar todos os turcos, não resta a menor dúvida. Pbis os turcos possuem o país dos eteus, jebuseus, amorreus, jerseneus, heveus, araceus, cineus, hamateus, samaritanos, e todos esses povos foram votados ao anátema; suas terras, que tinham mais de vinte e cinco léguas de comprimento, foram dadas aos judeus por vários pactos consecutivos; estes devem retomar o que é seu e que foi usurpado pelos turcos maometanos há mais de mil anos. Se os judeus pensassem deste modo hoje, é claro que não haveria outra resposta a dar-lhes senão mandálos às galés. Estes são praticamente os únicos casos em que a intolerância parece razoável.
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CAPÍTULO XIX
Relato de uma disputa de controvérsia na China
Nos primeiros anos do reinado do grande imperador Kang-hi, um mandarim da cidade de Cantão ouviu de sua casa uma grande gritaria vinda da casa vizinha. Mandou averiguar se matavam alguém; disseram-lhe que era o capelão da companhia dinamarquesa, um capelão da Batávia e um jesuíta que discutiam; o mandarim chamou os três à sua presença, mandou servir-lhes chá e doces, e perguntou-lhes qual o motivo da discussão. O jesuíta respondeu-lhe que era muito doloroso para ele, que sempre tinha razão, ter de lidar com gente que sempre estava errada; que a princípio havia argumentado com a maior calma, mas que no final perdera a paciência. O mandarim fez-lhes ver, com toda a discrição possível, o quanto a polidez é necessária na disputa, disselhes que na China jamais se irritavam e perguntou-lhes do que se tratava. Respondeu-lhe o jesuíta: "Excelência, faço-vos juiz da questão; estes dois senhores recusam-se a submeterse às decisões do concílio de Trento. - Isso me espanta - fez o mandarim. E voltando-se para os dois refratários: "Parece-me que deveríeis respei109
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tar as opiniões de uma grande assembléia. Não sei o que vem a ser o concílio de Trento; mas várias pessoas são sempre mais instruídas do que uma só. Ninguém deve acreditar que sabe mais do que os outros e que a razão só habita em sua cabeça. É assim que ensina nosso grande Confúcio. E se acreditais em mim, fareis muito bem em confiar na autoridade do concílio de Trento." O dinamarquês tomou então a palavra e disse: "Vossa Excelência fala com a maior sabedoria. Respeitamos as grandes assembléias como é nosso dever; assim, estamos inteiramente de acordo com várias assembléias realizadas antes da de Trento." - Oh! se é assim - tornou o mandarim -, peço-vos perdão, poderíeis ter razão. Sois, portanto, da mesma opinião, vós e vosso colega holandês, contra esse pobre jesuíta? - Em absoluto - respondeu o holandês. - Este homem tem opiniões quase tão extravagantes quanto as desse jesuíta, que procura aqui ser gentil convosco. Não há como concordar com eles. - Não vos entendo - disse o mandarim. - Não sois todos os três cristãos? Não viestes todos os três ensinar o cristianismo em nosso império? E não deveis por conseguinte ter os mesmos dogmas? - Vede, Excelência - falou o jesuíta. - Esses dois aí são inimigos mortais, e ambos disputam contra mim; é evidente que ambos estão errados, e que a razão está apenas do meu lado. - Isso não é tão evidente - asseverou o mandarim. Poderia perfeitamente ocorrer que estivésseis todos os três errados; eu teria curiosidade de vos ouvir um após o outro.
O jesuíta fez então um longo discurso, durante o qual o dinamarquês e o holandês davam de ombros; o mandarim não compreendeu nada. Foi a vez de o dinamarquês falar; seus adversários olharam-no com piedade, e o mandarim continuou sem compreender. O holandês teve a mesma sorte. Enfim falaram os três juntos, disseram-se grosseiras injúrias. O honesto mandarim com muita dificuldade conseguiu apaziguá-los e disse-lhes: "Se quereis que tolerem aqui vossa doutrina, começai por não serem intolerantes nem intoleráveis." Ao sair da audiência, o jesuíta encontrou um missionário dominicano; disse-lhe que havia ganho sua causa, assegurando que a verdade triunfava sempre. O dominicano respondeu: "Se eu estivesse lá, não a teríeis ganho; eu vos teria persuadido de mentira e idolatria." A querela esquentou; o dominicano e o jesuíta agarraram-se pelos cabelos. O mandarim, informado do escândalo, mandou os dois para a prisão. Um de seus ministros perguntou-lhe: "Quanto tempo Vossa Excelência quer que eles fiquem detidos? - Até que estejam de acordo, respondeu o mandarim. - Ah!, fez o ministro, então ficarão na prisão pelo resto da vida. - Pois bem, replicou o mandarim, até que se perdoem. - Eles jamais se perdoarão, disse o outro; eu os conheço. - Pois então, concluiu o mandarim, até que finjam perdoar-se."
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CAPÍTULO XX
Se é útil manter o povo
na superstição
Tal é a fraqueza do gênero humano e tal sua perversidade, que, para ele, certamente é preferível ser subjugado por todas as superstições possíveis, contanto que não sejam mortíferas, do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidade de um freio e, ainda que fosse ridículo fazer sacrifícios aos faunos, aos silvanos, às náiades, era bem mais útil e razoável adorar essas imagens fantásticas da divindade do que entregar-se ao ateísmo. Um ateu argumentador, violento e poderoso seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário. Quando os homens não têm noções corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa. O pagão deixava de cometer um crime, com medo de ser punido pelos falsos deuses; o mala bar teme ser punido por seu pagode. Onde quer que haja uma sociedade estabelecida, uma religião é necessária: as leis protegem contra os crimes conhecidos, e a religião, contra os crimes secretos. Mas, quando os homens abraçam uma religião pura e santa, a superstição torna-se não apenas inútil como 113
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muito perigosa. Não se deve querer alimentar com bolotas aqueles que Deus digna-se alimentar com pão. A superstição é, em relação à religião, o que a astrologia é em relação à astronomia, a filha muito insensata de uma mãe muito sensata. Essas duas filhas subjugaram por muito tempo a terra inteira. Quando, em nossos séculos de barbárie, havia apenas dois senhores feudais que tinham em sua casa um Novo Testamento, podia ser perdoável apresentar fábulas ao vulgo, isto é, a esses senhores feudais, a suas mulheres imbecis e aos brutos, seus vassalos; faziam-nos acreditar que São Cristóvão havia levado o Menino Jesus de uma margem do rio à outra; alimentavam-nos com histórias de feiticeiros e possuídos; eles imaginavam facilmente que São Genou curava a gota e que Santa Clara curava os olhos enfermos. As crianças acreditavam no lobisomem, e os adultos, no cordão de São Francisco. O número de relíquias e{a incontável. A ferrugem de tantas superstições subsistiu ainda algum tempo entre os povos, mesmo depois de a religião ter sido finalmente depurada. Sabe-se que, quando o bispo Noailles mandou retirar e lançar no fogo a suposta relíquia do umbigo santo de Jesus Cristo, toda a cidade de Châlons moveu-lhe um processo; mas ele teve coragem e devoção, e acabou convencendo os habitantes da região de que era possível adorar Jesus Cristo em espírito e em verdade, sem ter seu umbigo numa igreja. Os chamados jansenistas contribuíram bastante para desenraizar insensivelmente no espírito da nação a maior parte das falsas idéias que desonravam a religião cristã. Deixou-se de acreditar que bastava recitar a oração dos trinta dias à Virgem Maria para obter tudo o que se queria e para pecar impunemente.
Enfim a burguesia começou a suspeitar que não era Santa Genoveva quem trazia ou parava a chuva, mas que o próprio Deus dispunha dos elementos. Os monges ficaram espantados de que seus santos não fizessem mais milagres; e, se os escritores da Vida de São Francisco Xavier voltassem ao mundo, não ousariam escrever que este santo ressuscitou nove mortos 151 , que foi visto ao mesmo tempo no mar e em terra, e que, tendo seu crucifixo caído no mar, um caranguejo o veio trazer-lhe de volta. O mesmo aconteceu com as excomunhões. Nossos historiadores nos dizem que, quando o rei Roberto foi excomungado pelo papa Gregório V, por ter desposado sua comadre, a princesa Berta, seus criados lançavam pelas janelas as carnes que haviam servido ao rei e que a rainha Berta deu à luz um ganso, em punição desse casamento incestuoso. É improvável hoje que os mordomos de um rei da França excomungado lançassem seu jantar pela janela e que a rainha trouxesse ao mundo um gansinho em semelhante caso. Se persistem alguns convulsionários em alguma esquina de arrabalde 152, trata-se de uma pediculose que só afeta a mais vil populaça. A cada dia a razão penetra na França, tanto nas lojas dos comerciantes como nas mansões dos senhores. Cumpre, pois, cultivar os frutos dessa razão, tanto mais por ser impossível impedi-los de nascer. Não se pode governar a França, depois de ela ter sido esclarecida pelos Pascal, os Nicole, os Arnauld, os Bossuet, os Descartes, os Gassendi, os Bayle, os Fontenelle, etc., como a governavam no tempo dos Garasse e dos Menot. Se os mestres de erros, refiro-me aos grandes, por tanto tempo pagos e honrados para embrutecer a espé-
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cie humana, ordenassem hoje que o grão deve apodrecer para germinarl53 ; que a terra está imóvel sobre seus fundamentos, que ela não gira ao redor do Sol; que as marés não são um efeito natural da gravitação, que o arcoíris não é formado pela refração e a reflexão dos raios luminosos, etc., e se se baseassem em passagens mal compreendidas da Sagrada Escritura para fundamentar suas ordens, como seriam vistos por todos os homens instruídos? O termo animais seria demasiado forte? E se esses sábios mestres empregassem a força e a perseguição para fazer reinar sua ignorância insolente, o termo animais ferozes seria descabido? Quanto mais as superstições dos monges forem desprezadas, tanto mais os bispos serão respeitados e os padres considerados; estes fazem apenas o bem, enquanto as superstições monacais ul~montanas causam muito mal. Mas, de todas as superstições, a mais perigosa não é a de odiar o próximo por suas opiniões? E não é evidente que seria ainda mais sensato adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, o leite e o manto da Virgem Maria, do que detestar e perseguir seu irmão?
CAPÍTULO XXI
É preferível a virtude à ciência
Quanto menos dogmas, menos disputas; e quanto menos disputas, menos infelicidades. Se isso não for verdade, estou errado. A religião é instituída para nos tornar felizes nesta e na outra vida. O que é preciso para ser feliz na vida futura? Ser justo. Para ser feliz nesta, dentro do que permite a miséria de nossa natureza, o que é preciso? Ser indulgente. Seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica. Seria bem mais fácil subjugar o universo inteiro pelas armas do que subjugar todos os espíritos de uma única cidade. Euclides conseguiu sem dificuldade persuadir todos os homens sobre as verdades da geometria. Por quê? Porque não há uma só que não seja um corolário :vident: deste pequeno axioma: dois e dois são quatro. ~~o se da exatamente a mesma coisa na mistura da metaflslca com a teologia. . . Quando o bispo Alexandre e o padre Anos, ou Anus, começaram a discutir sobre a maneira como o. Logos era uma emanação do Pai, o imperador Constantmo escre-
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veu-Ihes estas palavras inspiradas em Eusébio e em Sócrates: "Sois uns grandes tolos em discutir sobre coisas que não podeis entender." Se as duas partes tivessem sido bastante sensatas para admitir que o imperador tinha razão, o mundo cristão não teria se ensangüentado durante trezentos anos. Com efeito, que pode haver de mais tolo e mais terrível do que dizer aos homens: "Meus amigos, não basta sermos súditos fiéis, filhos submissos, pais amorosos, vizinhos equitativos, praticar todas as virtudes, cultivar a amizade, evitar a ingratidão, adorar Jesus Cristo em paz. Cumpre ainda saber como fomos engendrados por toda a eternidade e, se não souberdes distinguir o omousion na hipóstase, afirmamos que havereis de arder no fogo eterno; e, enquanto não chega esse momento, começaremos por vos degolar?" Se tivessem aprese~ado uma tal resolução a um Arquimedes, a um Posidônio, a um Varrão, a um Catão, a um Cícero, o que eles teriam respondido? Constantino não perseverou em sua resolução de impor silêncio aos dois antagonistas. Podia ter chamado esses campeões do ergotismo a seu palácio; podia ter-lhes perguntado com que autoridade perturbavam o mundo: "Acaso possuís os títulos da família divina? Que vos importa se o Lagos é produzido ou engendrado, contanto que lhe sejamos fiéis, contanto que preguemos uma boa moral e a pratiquemos dentro do possível? Cometi muitas faltas em minha vida, e vós também; sois ambiciosos, e eu também; o império custou-me patifarias e crueldades; assassinei quase todos os meus próximos; arrependo-me disso: quero expiar meus crimes tornando o império romano tranqüilo. Não me impeçais de fazer o úni-
co bem capaz de apagar minhas antigas barbáries; ajudai-me a acabar meus dias em paz." Talvez não obtivesse nada dos contendores; talvez fosse convidado a presidir um concílio com a longa túnica vermelha, com a cabeça coberta de pedrarias. Eis, no entanto, o que abriu a porta a todos os flagelos que vieram da Ásia inundar o Ocidente. De cada versículo contestado brotou uma fúria armada de um sofisma e de um punhal, que tornou os homens insensatos e cruéis. Os hunos, os hérulos, os godos e os vândalps, que surgiram depois, fizeram infinitamente menos mal, e o maior que fizeram foi finalmente prestarem-se eles também a essas disputas fatais.
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CAPÍTULO XXII
Acerca da tolerância universal
Não é preciso uma grande arte, uma eloqüência muito rebuscada, para provar que os cristãos devem tolerarse uns aos outros. Vou mais longe: afirmo que é preciso considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê! O turco, meu irmão? O chinês? O judeu? O siamês? Sim, certamente; porventura não somos todos filhos do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus? Mas esses povos nos desprezam; mas eles nos tratam de idólatras! Pois bem, eu lhes direi que estão errados! Penso que poderia ao menos surpreender a orgulhosa obstinação de um imã ou de um monge budista, se lhes falasse mais ou menos assim: "Este pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos outros globos; estamos perdidos nessa imensidão. O homem, com cerca de um metro e sessenta de altura, é seguramente algo pequeno na criação. Um desses seres imperceptíveis diz a alguns de seus vizinhos, na Arábia ou na Cafraria: Escutem-me, pois o Deus de todos esses mundos me falou: há novecentos milhões de pequenas formigas como nós sobre a terra, mas apenas o meu formigueiro é bem-visto por Deus; todos os outros lhe causam horror desde toda 121
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a eternidade; meu formigueiro será o único afortunado, e todos os outros serão desafortunados." Eles me agarrariam então e me perguntariam quem foi o louco que disse essa besteira. Eu seria obrigado a responder-lhes: "Foram vocês mesmos." Procuraria em seguida acalmá-los, mas seria bem difícil. Depois falaria aos cristãos e ousaria dizer, por exemplo, a um dominicano inquisidor em nome da fé: "Meu irmão, sabeis que cada província da Itália tem seu linguajar e que não se fala em Veneza e em Bérgamo como em Florença. A Academia da Crusca fixou a língua; seu dicionário é uma norma que deve ser respeitada, e a Gramática de Buonmattei um guia infalível a ser seguido; mas julgais que o cônsul da Academia e, na sua ausência, Buonmattei, poderiam em sã consciência mandar cortar a língua de todos os venezianos e bergamascos que persistissem no seu patoá?" O inquisidor me responde: "Há uma grande diferença. Trata-se aqui da salvação de vossa alma; é para o vosso bem que o diretório da Inquisição ordena que vos prendam por denúncia de uma única pessoa, ainda que ela seja infame e já condenada pela Justiça; que não tenhais advogado para vos defender; que o nome de vosso acusador nem sequer vos seja conhecido; que o inquisidor vos prometa perdão e, em seguida, vos condene; que ele vos submeta a cinco torturas diferentes e que, depois, sejais chicoteado, ou mandado às galés, ou queimado em cerimônia 154 . O padre Ivonet, o doutor Cuchalon, Zanchinus, Campegius, Roias, Felynus, Gomarus, Diabarus e Gemelinus 155 são claros nesse ponto e essa piedosa prática não pode sofrer contradição." Eu tomaria a liberdade de responder-lhe: "Meu irmão, talvez tenhais razão; estou convencido do bem que
quereis me fazer; mas eu não poderia ser salvo sem tudo isso?" É verdade que esses horrores absurdos não mancham todos os dias a face da terra; mas foram freqüentes, e com eles facilmente se faria um volume bem mais grosso do que os evangelhos que os reprovam. Não só é cruel perseguir nesta curta vida os que não pensam como nós, como também suponho ser ousado demais pronunciar sua condenação eterna. Parece-me que não compete a átomos de um momento, tais como somos, antecipar as decisões do Criador. Estou longe de combater esta sentença: "Fora da Igreja não há salvação." Respeito-a, assim como tudo o que ela ensina, mas, em verdade, conhecemos todos os caminhos de Deus e a extensão de sua misericórdia? Não é lícito confiar nele tanto quanto temê-lo? Não nos basta ser fiéis à Igreja? Será preciso que cada indivíduo usurpe os direitos da Divindade e decida por sua conta a sorte eterna de todos os homens? Quando vestimos luto por um rei da Suécia, da Dinamarca, da Inglaterra ou da Prússia, dizemos que vestimos luto por um réprobo que arde eternamente no inferno? Há na Europa quarenta milhões de habitantes que não pertencem à Igreja de Roma; diremos a cada um deles: "Senhor, como estais infalivelmente condenado, não quero comer, nem negociar, nem conversar convosco?" Qual o embaixador da França que, estando presente à audiência do Grande Senhor, dir-se-á no fundo de seu coração: Sua Alteza arderá infalivelmente no inferno por toda a eternidade, por ter-se submetido à circuncisão? Se acreditasse realmente que o Grande Senhor é inimigo mortal de Deus e objeto de sua vingança, acaso poderia
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falar-lhe? Deveria ser enviado até ele? Com que homem poderíamos negociar, que dever da vida civil poderíamos jamais cumprir, se de fato estivéssemos convencidos da idéia de que conversamos com um réprobo? Ó partidários de um Deus clemente! Se tivésseis um coração cruel; se, adorando aquele cuja única lei consistia nestas palavras: "Amai a Deus e a vosso próximo" 156, tivésseis sobrecarregado essa lei pura e santa de sofismas e disputas incompreensíveis; se tivésseis semeado a discórdia, ora por causa de uma palavra, ora por causa de uma simples letra do alfabeto; se considerásseis merecedora de castigos eternos a omissão de algumas palavras, de algumas cerimônias que tantos outros povos não podiam conhecer, eu vos diria, derramando lágrimas sobre o gênero humano: "Transportai-vos comigo ao dia em que todos os homens serão julgados e em que Deus dará a cada um conforme suas obras." "Vejo todos os mortos dos séculos passados e do nosso comparecerem à sua presença. Acreditais realmente que nosso Criador e nosso Pai dirá ao sábio e virtuoso Confúcio, ao legislador Sólon, a Pitágoras, a Zaleuco, a Sócrates, a Platão, aos divinos Antonino, ao bom Trajano, a Ti~, às maravilhas do gênero humano, a Epicteto e a tantos outros, modelos dos homens: Ide, monstros, sofrer castigos infinitos em intensidade e duração; que vosso suplício seja eterno como eu! E vós, meus bemamados Jean Châtel, Ravaillac, Damiens, Cartouche, etc., que morrestes com as fórmulas prescritas, partilhai para sempre à minha direita meu império e minha felicidade?" Recuais de horror a essas palavras e, depois que elas me escaparam, nada mais tenho a vos dizer.
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CAPÍTULO XXIII
Oração a Deus
Não é mais aos homens que me dirijo, é a ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos. Se é permitido a frágeis criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do universo, ousar te pedir alguma coisa, a ti que tudo criaste, a ti cujos decretos são imutáveis e eternos, digna-te olhar com piedade os erros decorrentes de nossa natureza. Que esses erros não venham a ser nossas calamidades. Não nos deste um coração para nos odiarmos e mãos parà nos matarmos. Faz com que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida difícil e passag~ira; que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem nossos corpos diminutos, entre nossas linguagens insuficientes, entre nossos costumes ridículos, entre nossas leis imperfeitas, entre nossas opiniões insensatas, entre nossas condições tão desproporcionadas a nossos olhos e tão iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam sinais de ódio e perseguição; que os que acendem velas em pleno meio-dia para te celebrar suportem os que se contentam com a luz de teu sol; que os que cobrem suas vestes com linho branco para dizer que devemos te amar não detes125
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tem os que dizem a mesma coisa sob um manto de lã negra; que seja igual te adorar num jargão formado de uma antiga língua, ou num jargão mais novo; que aqueles cuja roupa é tingida de vermelho ou de violeta, que dominam sobre uma pequena porção de um montículo da lama deste mundo e que possuem alguns fragmentos arredondados de certo metal usufruam sem orgulho o que chamam de grandeza e riqueza, e que os outros não os invejem, pois sabes que não há nessas vaidades nem o que invejar, nem do que se orgulhar. Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que abominem a tirania exercida sobre as almas, assim como execram o banditismo que toma pela força o fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos dilaceremos uns aos outros em tempos de paz e empreguemos o instante de nossa existência para abençoar igualmente em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, tua bondade que nos deu esse instante.
CAPÍTULO XXIV
Pós-escrito
Enquanto trabalhávamos nesta obra, com o único propósito de tornar os homens mais compassivos e mais doces, um outro homem escrevia com um propósito inteiramente contrário, pois cada um tem sua opinião. Esse homem imprimia um pequeno código de perseguição, intitulado A concordância da religião e da humanidade 157 Cé uma falha do impressor: leia-se da desumanidade). O autor desse santo libelo apóia-se em Santo Agostinho, o qual, após ter pregado a doçura, acabou pregando a perseguição, visto que era então o mais forte e que mudava freqüentemente de opinião. Cita também o bispo de Meaux, Bossuet, que perseguiu o célebre Fénelon, arcebispo de Cambrai, culpado de ter escrito que Deus merece ser amado por si mesmo. Bossuet era eloqüente, admito; o bispo de Hipona, às vezes inconseqüente, era mais diserto que os outros africanos, admito-o também; mas tomarei a liberdade de dizer ao autor desse santo libelo, com Armando, em Les femmes savantes*: • As sabicbonas, Moliere.
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Quand sur une personne on prétend se régler, C'est par les beaux côtés qu 'illui faut ressembler.
Direi ao bispo de Hipona: Eminência, mudastes de idéia, concedei-me o direito de ater-me à vossa primeira opinião; em verdade, considero-a melhor. Direi ao bispo de Meaux: Eminência, sois um grande homem; julgo-vos tão sábio, pelo menos, quanto Santo Agostinho, e muito mais eloqüente; mas por que atormentar tanto vosso confrade, que era tão eloqüente quanto vós num outro gênero e era mais amável? O autor do santo libelo sobre a desumanidade não é nem um Bossuet, nem um Agostinho. Parece-me o tipo capaz de ser um excelente inquisidor; gostaria que estivesse em Goa encabeçando esse belo tribunal. Além disso, é homem de Estado e demonstra grandes princípios de política. "Se houver entre vós, diz ele, muitos heterodoxos, tratai-os com deferência, persuadi-os; se não forem mais que um pequeno número, empregai a forca e as galés, e estareis agindo bem"; é o que ele aconselha nas páginas e 90. Graças a Deus sou bom católico, não preciso temer o que os huguenotes chamam de martírio; mas se esse homem algum dia for primeiro-ministro, como parece pretender em seu libelo, aviso que parto para a Inglaterra no dia em que tiver suas cartas patentes. Enquanto isso, posso apenas agradecer à Providência por permitir que gente de sua espécie seja sempre
má argumentadora. Ele chega a citar Bayle entre os partidários da intolerância. Isso é razoável e correto; e do fato de Bayle admitir que os revoltosos e os larápios devam ser punidos, nosso homem conclui que devemos perseguir a ferro e fogo gente pacífica e de boa-fé. Quase todo o seu livro é uma imitação da Apologia da Noite de São Bartolomeu158 • É o mesmo apologista ou seu eco. Num ou noutro caso, cumpre esperar que nem o mestre, nem o discípulo venham a governar o Estado. Mas, se isso acontecer, apresento-lhes desde já este arrazoado, a propósito de duas linhas da página 93 do santo libelo: "Caberá sacrificar à felicidade da vigésima parte da nação a felicidade da nação inteira?" Supondo-se, com efeito, que haja vinte católicos romanos na França contra um huguenote, não pretendo que o huguenote coma os vinte católicos; mas por que esses vinte católicos haveriam de comer o huguenote e por que impedir esse huguenote de casar? Não há bispos, abades, monges que têm terras no Dauphiné, no Gévaudan, nos arredores de Agde, de Carcassone? Esses bispos, abades e monges não possuem colonos que têm a infelicidade de não crer na transubstanciação? Não é do interesse dos bispos, dos abades, dos monges e do público que esses colonos tenham famílias numerosas? Somente àqueles que comungarem de uma única forma será permitido ter filhos? Em verdade isso não é justo nem conveniente. "A revogação do edito de Nantes não produziu tantos inconvenientes quanto lhe atribuem", diz o autor. Se de fato lhe atribuem mais do que produziu, exageram, e o erro de quase todos os historiadores é exage-
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Quando por alguém nos queremos pautar, É o seu lado bom que convém imitar. (Ato I, cena 1.)
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rar; mas é também o erro de todos os controversistas reduzir a nada o mal que lhes censuram. Não creiamos nem nos doutores de Paris, nem nos pregadores de Amsterdam. Tomemos por juiz o conde d'Avaux, embaixador na Holanda de 1685 a 1688. Ele diz, na página 181, tomo V1S9, que um único homem propusera descobrir mais de vinte milhões que os perseguidos faziam sair da França. Luís XIV responde ao conde d'Avaux: "As notícias que recebo diariamente de um número infinito de conversões não me deixam mais duvidar de que os mais obstinados seguirão o exemplo dos outros." Vê-se, por essa carta de Luís XIV, que ele era muito crédulo sobre a extensão de seu poder. Diziam-lhe todas as manhãs: Majestade, sois o maior rei do universo; todo o universo se vangloriará de pensar como vós assim que tiverdes falado. Pelisson, que enriquecera no cargo de primeiro funcionário das finanças; Pelisson, que passara três anos na Bastilha como cúmplice de Fouquet; Pelisson, que de calvinista tornara-se diácono e beneficiado, que mandava imprimir orações para a missa e versos galantes para damas, que obtivera o cargo de ecônomo e de convertedor; Pelisson, dizia eu, trazia a cada três meses uma grande lista de abjurações a sete ou oito escudos cada, e fazia seu rei acreditar que, na hora que quisesse, converteria todç>s os turcos ao mesmo preço. Revezavamse para enganá-lo. Podia Luís XIV resistir à sedução? No entanto, o mesmo conde d'Avaux notifica ao rei que certo Vincent emprega mais de quinhentos operários perto de Angoulême e que sua saída causará prejuízos (tomo V, página 194). O mesmo d'Avaux fala de dois regimentos que o príncipe de Orange já mandou os oficiais franceses refugia-
dos recrutarem, fala de marujos que desertaram de três navios para servirem nos do príncipe de Orange. Além desses dois regimentos, o príncipe de Orange forma ainda uma companhia de cadetes refugiados, comandados por dois capitães (página 240). O embaixador escreve ainda, em 9 de maio de 1686, ao sr. de Seignelai, "que não pode lhe dissimular o dó de ver as manufaturas da França estabelecerem-se na Holanda, de onde não sairão jamais". Juntai a esses testemunhos os de todos os intendentes do reino em 1699 e considerai se a revogação do edito de Nantes não produziu mais mal do que bem, apesar da opinião do respeitável autor de A concordância da religião e da desumanidade. Um marechal da França conhecido por seu espírito superior dizia há alguns anos: "Não sei se a dragonada foi necessária; mas é necessário que não se repita." Confesso que julguei ir um pouco longe demais, ao tornar pública a carta do correspondente do padre Le Tellier, na qual o membro da congregação propõe uma operação com barris de pólvora l6o . Dizia-me a mim mesmo: Não me acreditarão, julgarão esta carta uma peça forjada. Meus escrúpulos felizmente dissiparam-se quando li em A concordância da religião e da desumanidade, página 149, estas doces palavras: "A extinção total dos protestantes não debilitaria mais a França do que uma sangria o faria com um doente bem constituído. " Esse cristão compassivo, que disse há pouco que os protestantes compõem a vigésima parte da nação, quer, portanto, espalhar o sangue dessa vigésima p~rte e considera essa operação apenas como uma sangna na omoplata! Deus nos preserve com ele dos três vigésimos!
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Pois, se esse homem honrado propõe matar a vigésima parte da nação, por que o amigo do padre Le Tellier não teria proposto explodir, enforcar e envenenar a terça parte? Portanto, é bem provável que a carta ao padre Le Tellier tenha sido realmente escrita. O santo autor irá finalmente concluir que a intolerância é algo excelente, "porque não foi, diz ele, expressamente condenada por Jesus Cristo". Mas Jesus Cristo tampouco condenou os que ateariam fogo nos quatro cantos de Paris; é uma razão para canonizar os incendiários? Assim, pois, quando a natureza faz ouvir de um lado sua voz doce e benfazeja, o fanatismo, esse inimigo da natureza, solta uivos; e quando a paz apresenta-se aos homens, a intolerância forja suas armas. Ó vós, árbitro das nações, que destes a paz à Europa, decidi entre o espírito pacífico e o espírito assassino!
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CAPÍTULO
xxv
Continuação e conclusão
Tomamos conhecimento de que, em 7 de março de 1763, perante o conselho de Estado reunido em Versalhes, na presença dos ministros e sob a presidência do chanceler, o sr. de Crosne, promotor de justiça, reapresentou o caso dos Calas com a imparcialidade de um juiz, a exatidão de um homem perfeitamente instruído, a eloqüência simples e verdadeira de um orador do Estado, a única que convém numa tal assembléia. Uma quantidade enorme de pessoas de todas as classes aguardava na galeria do castelo a decisão do conselho. Logo anunciaram ao rei que todas as vozes, sem exceção, haviam ordenado que o parlamento de Toulouse enviasse ao conselho todas as peças do processo e os motivos de sua sentença que fizera Jean Calas morrer no suplício da roda. Sua Majestade aprovou a decisão do conselho. Portanto, há humanidade e justiça entre os homens e, principalmente, no conselho de um rei amado e digno de sê-lo. O caso de uma infortunada família de obscuros cidadãos ocupou Sua Majestade, seus ministros, o chanceler e todo o conselho, e foi discutido com a mesma atenção dedicada às maiores questões da guerra e da paz. O amor pela eqüidade, o interesse pelo gênero humano
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conduziram todos os juízes. Graças sejam dadas ao Deus da clemência, o único a inspirar a eqüidade e todas as virtudes! Atestamos que jamais conhecemos esse infortunado Calas que oito juízes de Toulouse fizeram perecer com base nos mais frágeis indícios, contra as ordens de nossos reis e contra as leis de todas as nações; nem seu filho Marc-Antoine, cuja estranha morte lançou esses oito juízes no erro; nem a mãe, tão respeitável quanto infeliz; nem suas inocentes filhas, que percorreram com ela duzentas léguas para deporem aos pés do trono seu infortúnio e sua virtude. Deus sabe que fomos movidos apenas por um espírito de justiça, de verdade e de paz, quando escrevemos o que pensamos da tolerância, a propósito de Jean Calas, que o espírito de intolerância fez morrer. Não julgamos ofender os oito juízes de Toulouse ao dizer que eles se enganaram, assim como todo o conselho presumiu; ao contrário, abrimos-lhes um caminho para se justificarem perante a Europa inteira. Esse caminho é reconhecer que indícios equívocos e os gritos de uma multidão insensata os desviaram da justiça, pedir perdão à viúva e reparar, tanto quanto possível, a ruína inteira de uma família inocente, juntando-se àqueles que a amparam na sua aflição. Esses juízes fizeram o pai morrer injustamente; cabe a eles substituir o pai junto aos filhos, supondo-se que os órfãos queiram aceitar uma pequena prova de"um justo arrependimento. Cabe aos juízes oferecê-la, e à família aceitar ou não. Compete sobretudo ao senhor David, magistrado de Toulouse, se foi o primeiro perseguidor da inocência, dar o exemplo do arrependimento. Ele insultou um pai de
família agonizante no cadafalso. Essa crueldade é bastante inédita; mas já que Deus perdoa, os homens devem também perdoar quem repara suas injustiças. Escreveram-me do Languedoc esta carta de 20 de fevereiro de 1763. "(. ..) Vossa obra sobre a tolerância me parece repleta de humanidade e de verdade; mas receio que faça mais mal do que bem à família Calas. Poderá magoar os oito juízes que opinaram pelo suplício; eles pedirão ao parlamento que vosso livro seja queimado, e os fanáticos (pois sempre os há) responderão com gritos de furor à voz da razão, etc." Eis minha resposta: "Os oito juízes de Toulouse podem mandar queimar meu livro, se ele é bom; não há nada mais fácil; também queimaram as Cartas provinciais, que certamente valiam bem mais; cada um pode queimar em sua casa os livros e papéis que desejar. Minha obra não pode fazer nem bem nem mal aos Calas, que não conheço. O conselho do rei, imparcial e firme, julga segundo as leis, segundo a eqüidade, com base em peças e processos judiciais, e não num texto que não é jurídico e cujo fundo é absolutamente alheio ao caso em questão. Por mais que se imprimam in-fólios a favor ou contra os oito juízes de Toulouse e a favor ou contra a tolerância, nem o conselho, nem um tribunal qualquer considerará esses livros como peças do processo. Esse texto sobre a tolerância é uma petição que a humanidade apresenta muito humildemente ao poder e à prudência. Semeio um grão que algum dia poderá pro-
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duzir uma grande colheita. Esperemos tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e do espírito de razão que começa a espalhar por toda parte sua luz. A natureza diz a todos os homens: Fiz todos vós nascerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minutos na terra e adubarem-na com vossos cadáveres. Já que sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruívos e tolerai-vos. Ainda que fôsseis todos da mesma opinião, o que certamente jamais acontecerá, ainda que só houvesse um único homem com opinião contrária, deveríeis perdoá-lo, pois sou eu que o faço pensar como ele pensa. Eu vos dei braços para cultivar a terra e um pequeno lume de razão para vos guiar; pus em vossos corações um germe de compaixão para que uns ajudem os outros a suportar a vida. Não sufoqueis esse germe, não o corrompais, compreende i que ele é divino e não troqueis a voz da natureza pelos miseráveis furores da escola. Sou eu apenas que vos une, sem que o saibais, por vossas necessidades mútuas, mesmo em meio a vossas guerras cruéis tão levianamente empreendidas, palco eterno das faltas, dos riscos e das infelicidades. Sou eu apenas que, numa nação, detém as conseqüências funestas da divisão interminável entre a nobreza e a magistratura, entre esses dois corpos e o do clero, e também entre o burguês e o agricultor. Todos ignoram os limites de seus direitos; mas contra sua vontade acabam por escutar, com o te)l1po, minha voz que fala a seu coração. Apenas eu conservo a eqüidade nos tribunais, onde, sem mim, tudo seria entregue à indecisão e aos caprichos, em meio a um amontoado confuso de leis feitas geralmente ao
acaso e por uma necessidade passageira, diferentes de província a província, de cidade a cidade e quase sempre contraditórias entre si numa mesma localidade. Só eu posso inspirar a justiça, quando as leis inspiram apenas a chicana. Aquele que me escuta julga sempre bem; e aquele que busca somente conciliar opiniões que se contradizem acaba por se perder. Com minhas mãos plantei os alicerces de um prédio imenso; ele era sólido e simples, todos os homens nele podiam entrar com segurança; quiseram acrescentar os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; e o prédio começa a desmoronar por todos os lados; os homens pegam as pedras e as atiram uns contra os outros; grito-lhes: Parai, afastai esses escombros funestos que são vossa obra e habitai comigo em paz no prédio inabalável que é o meu 161 ."
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Artigo posteriormente acrescentado, no qual se fala da última sentença pronunciada em favor da famüia Calas
De 7 de março de 1763 até o julgamento definitivo, passaram-se mais dois anos: tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência, como é difícil à razão restituir-lhe a justiça. Foi preciso suportar demoras inevitáveis, necessariamente ligadas às formalidades. Quanto menos essas formalidades foram observadas na condenação de Calas, tanto mais deviam sê-lo rigorosamente pelo conselho de Estado. Um ano inteiro não é suficiente para forçar o parlamento de Toulouse a fazer chegar ao conselho toda a documentação, para examiná-la, para relatar o processo. O sr. de Crosne foi mais uma vez encarregado desse trabalho penoso. Uma assembléia de cerca de oitenta juízes anulou a sentença de Toulouse e ordenou a revisão completa do processo. Outras questões importantes ocupavam, então, quase todos os tribunais do reino. Expulsavam-se os jesuítas; aboliam sua sociedade na França: eles haviam sido intolerantes e perseguidores, foram perseguidos por sua vez. A extravagância dos bilhetes de confissão, dos quais supunha-se serem os autores secretos e dos quais eram publicamente partidários, já havia despertado o ódio da nação contra eles. Uma bancarrota imensa de um de seus 139
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missionários1 62 , bancarrota tida em parte como fraudulenta, acabou por arruiná-los. As simples palavras missionários e bancarroteiros, pouco adequadas para estarem juntas, incitaram em todos os espíritos a decisão de sua condenação. Enfim, as ruínas de Port-Royal e as ossadas de tantos homens célebres insultados por eles em suas sepulturas e exumados no começo do século por ordens que apenas os jesuítas haviam ditado levantaram-se todas contra sua autoridade finda. Pode-se ver a história de sua proscrição no excelente livro intitulado Sur la destruction des jésuites en France 163 , obra imparcial, porque de um filósofo, escrita com a fineza e a eloqüência de um Pascal e, sobretudo, com uma superioridade de luzes que não é ofuscada, como em Pascal, por preconceitos que às vezes seduziram grandes homens. Essa grande questão, na qual alguns partidários dos jesuítas diziam que a religião era ultrajada e em que o maior número a considerava vingada, fez com que, durante vários meses, o público perdesse de vista o processo Calas; mas, tendo o rei atribuído ao tribunal chamado das questões do palácio o julgamento definitivo, o mesmo público, que adora passar de uma cena a outra, esqueceu os jesuítas, e os Calas prenderam toda a sua atenção. A câmara das questões do palácio é uma corte soberana composta de promotores de justiça, para julgar os processos entre os funcionários da corte e as causas que o rei lhes envia. Não se podia ter escolhido um tribunal mais instruído sobre o assunto: eram precisamente os mesmos magistrados que haviam julgado duas vezes as preliminares da revisão e que estavam perfeitamente informados quanto ao fundo e à forma. A viúva de Jean
Calas, seu filho e o jovem Lavaisse voltaram à prisão. Fizeram vir do interior do Languedoc aquela velha empregada católica que em instante algum abandonara seus patrões e sua patroa, num momento em que se supunha, contra toda a verossimilhança, que haviam estrangulado o jovem Marc-Antoine. Deliberou-se enfim com base nas mesmas peças que haviam servido para condenar Jean Calas ao suplício da roda e seu filho Pierre ao banimento. Foi então que surgiu uma nova memória do eloqüente sr. de Beaumont l64 , e outra do jovem Lavaisse, tão injustamente implicado nesse processo criminal pelos juízes de Toulouse, que, por cúmulo de contradição, não o haviam declarado absolvido. Esse jovem fez pessoalmente uma exposição que todos consideraram tão boa quanto a do sr. de Beaumont. Tinha a dupla vantagem de falar a seu favor e a favor de uma família com quem partilhara os grilhões. Dependera apenas dele destruir seus amigos e sair da prisão de Toulouse: bastaria ter dito que se afastara dos Calas por um momento, aquele em que se supunha que o pai e a mãe haviam assassinado seu filho. Ameaçaram-no com o suplício; a tortura e a morte haviam se apresentado a seus olhos; uma palavra poderia devolver-lhe a liberdade, mas ele preferiu expor-se ao suplício do que pronunciar essa palavra, que teria sido uma mentira. Narrou esses detalhes em sua exposição, com uma candura tão nobre, tão simples, tão distante de qualquer ostentação, que sensibilizou aqueles que desejava apenas convencer e fez-se admirar sem pretender a reputação. Seu pai, famoso advogado, não teve participação nenhuma nessa apresentação; viu-se, de repente, igualado pelo filho, que jamais cursara a advocacia.
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Enquanto isso, pessoas da maior consideração vinham em grande número à prisão onde a senhora Calas e suas filhas estavam encerradas. Comoviam-se com elas até ãs lágrimas. A humanidade, a generosidade, prodigalizavam-lhes amparos. O que chamam de caridade não lhes dava nenhum. A caridade, aliás geralmente tão mesquinha e insultante, é o quinhão dos devotos, e os devotos ainda se opunham aos Calas. Chegou o dia (9 de março de 1765) em que a inocência triunfou plenamente. Tendo o sr. Baquencourt apresentado todo o processo, inclusive em suas menores circunstâncias, os juízes por unanimidade declararam a família inocente, julgada de forma iníqua e abusiva pelo parlamento de Toulouse. Reabilitaram a memória do pai. Autorizaram a família a recorrer a quem de direito para responsabilizar seus juízes e para reparar as despesas, perdas e danos que os magistrados tolosanos deveriam suprir por conta própria. Foi uma grande festa em Paris; as pessoas reuniamse nas praças públicas, nos passeios; todos queriam ver essa família tão infortunada e tão bem justificada; os juízes eram aplaudidos, cumulados de sentimentos de gratidão. O que torna esse espetáculo ainda mais comovente é que aquele dia, 9 de março, era o mesmo em que Calas perecera pelo mais cruel suplício (três anos antes). Os senhores promotores de justiça haviam prestado à família Calas uma justiça completa, e nisto não fizeram mais do que seu dever. Há um outro dever, o da beneficência, mais raramente cumprido pelos tribunais, que parecem julgar-se destinados a serem apenas eqüitativos. Os promotores de justiça decidiram que escreveriam em conjunto à Sua Majestade para rogar-lhe reparar por suas
dádivas a ruína da família. A carta foi escrita. O rei respondeu mandando entregar trinta e seis mil libras à mãe e aos filhos; e, dessas trinta e seis mil libras, três mil para a virtuosa empregada que defendera constantemente a verdade ao defender seus patrões. O rei, por essa bondade, mereceu, como por tantos outros atos, o cognome que o amor da nação lhe outorgou 165. Possa esse exemplo servir para inspirar aos homens a tolerância, sem a qual o fanatismo devastaria a terra, ou pelo menos a afligiria sempre! Sabemos que se trata, aqui, de apenas uma única família e que o furor das seitas fez perecer milhares; mas, hoje que uma sombra de paz deixa repousar todas as sociedades cristãs, após séculos de carnificina, é nesse tempo de tranqüilidade que o infortúnio dos Calas deve causar maior impressão, algo como o trovão irrompendo na serenidade de um belo dia. Esses casos são raros , mas acontecem , e são o efeito dessa triste superstição que leva as almas fracas a imputarem crimes a todo aquele que não pensa como elas.
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Notas
1. 12 de outubro de 1761. (Nota de Voltaire.) 2. Não lhe encontraram, após o transporte do cadáver ã câmara municipal, senão um pequeno arranhão na ponta do nariz, e uma pequena mancha no peito, causada por algum descuido no transporte do corpo. (Nota de Voltaire.) 3. Em realidade, essa procissão ocorria não em 10 de março como supunha Voltaire, mas em 17 de maio, em memória à vitória obtida pelos católicos sobre os protestantes em maio de 1562. (M.) Designamos por (B.) uma nota de Beuchot, Oeuvres de Voltaire, 18291834, e por (M.) uma nota de Moland, Oeuvres completes de Voltaire, 1877-1885. 4. O pároco de Saint-Étienne não protestou de modo algum e disputou inclusive o direito de inumação com o pároco de Taur, na circunscrição do qual encontrava-se a câmara municipal. (M.) 5. Veja-se a nota 3. (M.) 6. Lasalle. (M.) 7. Laborde. (M.) 8. Conheço apenas dois exemplos, na história, de pais acusados de terem assassinado seus filhos por causa da religião. O primeiro é o do pai de Santa Bárbara. Ele mandara construir duas janelas em sua sala de banhos; Bárbara, em sua ausência, construiu uma terceira em honra da Santíssima Trindade; com a ponta do dedo, ela fez o sinal da cruz sobre colunas de mármore e esse sinal gravou-se profundamente nas colunas. Seu pai, furioso, investiu contra ela de espada na mão; mas Bárbara fugiu através de uma montanha que se abriu para si. O pai deu a volta à montanha e alcançou a
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filha; ela foi chicoteada completamente nua, mas Deus cobriu-a com uma nuvem branca; seu pai, enfim, cortou-lhe a cabeça. Eis o que relata a Flor dos santos. O segundo exemplo é o do príncipe Hermenegildo. Revoltou-se contra o rei, seu pai, enfrentou-o numa batalha em 584, foi vencido e morto por um oficial: fizeram dele um mártir, porque seu pai era ariano. (Nota de Voltaire.) 9. Um dominicano veio até meu cárcere e me ameaçou com o mesmo tipo de morte se eu não abjurasse. É o que atesto perante Deus. 23 de julho de 1762. PIERRE CALAS. (Nota de Voltaire.) 10. Ela foi acolhida em casa dos senhores Dufour e Mallet, banqueiros, e depois por d'Argental e Damilaville. (M.) 11. Mémoire à consulter, et Consultation pour la da me AnneRose Cabibel, veuve Calas, et pour ses enfants, 23 aout 1 762. (M.) 12. Mémoire pour Donat, Pierre et Louis Calas. (M.) 13. Mémoire paur dame Anne-Rose Cabibel, veuve du sieurJean Calas, L. et L.-D. Calas, leurs fils, et Anne-Rose et Anne Calas, leurs filIes, demandeurs en cassation d'un arrêt du parlament de Toulouse, du 9 mars 1762. (M.) 14. Eles foram imitados em várias cidades e a senhora Calas perdeu a vantagem dessa generosidade. (Nota de Voltaire.) 15. Choiseul ocupava-se, então, em fazer a paz com a Inglaterra. (M.) 16. Devoto vem da palavra latina devotus. Os devoti da antiga Roma eram os que se dedicavam à salvação da república: eram os Curtius, os Decius. (Nota de Voltaire.) 17. Alusão à obra apologética do abade Houtteville, La religion chrétienne prouvée par les faits, Paris, 1722. 18. Ou seja, conselheiros do parlamento. (M.) 19. As anatas eram a taxa que pagavam ã Santa Sé os detentores de um benefício eclesiástico. Foram abolidas pela Assembléia Constituinte em 1789. 20. Eles reiteravam a opinião de Bérenger sobre a Eucaristia; negavam que um corpo pudesse estar em cem mil lugares diferentes, mesmo com a onipotência divina; negavam que os atributos pudessem subsistir sem sujeito; acreditavam que era absolutamente impossível que -;;-que é pão e vinho para os olhos, o paladar e o estômago, desaparecesse de uma hora para outra; sustentavam todos esses erros,
condenados outrora em Bérenger. Baseavam-se em várias passagens dos primeiros padres da Igreja, sobretudo de São Justino, que diz expressamente em seu diálogo contra Trífon: "A oblação da farinha pura ... é a figura da eucaristia que Jesus Cristo nos ordena fazer em memória de sua Paixão." (Página 119, Edit. Londinensis, 1719, in-8º.) Lembravam tudo o que se dissera nos primeiros séculos contra o culto das relíquias; citavam estas palavras de Vigilantius: "É necessário que respeiteis ou mesmo adoreis uma vil poeira? As almas dos mártires animam ainda suas cinzas? Os costumes dos idólatras introduziram-se na Igreja; começam a acender tochas em pleno meio-dia. Durante nossa vida podemos rezar uns pelos outros, mas, após. a morte, de que servem essas preces?" Mas não diziam o quanto São Jerônimo se insurgira contra essas palavras de Vigilantius. Enfim, queriam fazer tudo voltar aos tempos apostólicos, sem admitir que, tendo a Igreja se ampliado e fortalecido, fora também necessário ampliar e fortalecer sua disciplina: condenavam as riquezas, que pareciam não obstante necessárias para sustentar a majestade do culto. (Nota de Voltaire.) 21. O verídico e respeitável magistrado De Thou fala assim desses homens tão inocentes e tão infortunados: "Homines esse qui trecentis circiter abhinc annis asperum et incultum solum vectigale a dominis acceperint, quod improbo labore et assiduo cultu frugum ferax et aptum pecori reddiderint; patientissimos eos laboris et inediae, a litibus abhorrentes, erga egenos munificos, tributa principi et sua jura dominis sedulo et summa fide pendere; Dei cultum assiduis precibus et morum innocentia prae se ferre, caeterum raro divorum templa adire, nisi si quando ad vicina suis finibus oppida mercandi aut negotiorum causa divertant; quo si quandoque pedem inferant, non Dei divorumque statuis advolvi, nec cereos eis aut donoria ulla ponere; non sacerdotes ab eis rogari ut pro se aut propinquorum manibus rem divinam faciant: non cruce frontem insignire uti aliorum moris est; cum coelum intonat, non se lustralit aqua aspergere, sed sublatis in coelum oculis Dei opem implorare; non religionis ergo peregre proficisci, non per vias ante cruciam sjmula~ra caput ~r:e.rire; sacra alio rito et populare lingua celebrare; non demque pontlflcl aut episcopis honorem deferre, sed quosdam e suo n~mero delectos p.ro antistitibus et doctoribus habere. Haec uti FranClscum relata VI Id. feb., anni, etc." (THUANI, Hist., liv. VI.)
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Madame de Cental, a quem pertencia uma parte das terras devastadas e sobre as quais só se viam os cadáveres de seus habitantes, pediu justiça ao rei Henrique II, que a enviou ao parlamento de Paris. O procurador-geral da Provença, chamado Guérin, principal autor dos massacres, foi o único condenado à morte. De Thou diz que arcou sozinho com a pena dos outros culpados, quod aulicorum lavore destitueretur, porque não tinha amigos na corte. (Nota de Voltaire.) 22. Ravaillac não havia sido frade bernardo. (M.) 23. François Gomar era um teólogo protestante; sustentou, contra Arminius, seu colega, que Deus destinara desde toda a eternidade a maior parte dos homens ao fogo eterno. Esse dogma infernal foi apoiado, como era de esperar, pela perseguição. O grande pensionista Barneveldt, que era do partido contrário a Gomar, teve a cabeça cortada aos 72 anos, no dia 13 de maio de 1619, "por haver contristado ao máximo possível a Igreja de Deus". (Nota de Voltaire.) 24. Um pregador, na apologia da revogação do edito de Nantes, diz, ao falar da Inglaterra: "Uma falsa religião devia produzir necessariamente semelhantes frutos; restava um por amadurecer e esses insulares o recolhem: é o desprezo das nações. " Cumpre reconhecer que o autor escolhe bem mal a ocasião de dizer que os ingleses são desprezíveis e desprezados pela terra inteira. Quando uma nação demonstra sua bravura e sua generosidade, quando é vitoriosa nos quatro cantos do mundo, parece-me não ser lícito afirmar que ela é desprezível e desprezada. É num capítulo sobre a intolerância que se encontra essa singular passagem; os que pregam a intolerância merecem escrever assim. Esse abominável livro, que parece feito pelo louco de Verberie, é de um homem sem vocação; pois, que religioso escreveria deste modo? O furor é levado até a justificar a Noite de São Bartolomeu. Chegamos a pensar que semelhante obra, repleta de tão terríveis paradoxos, deveria ser lida por todo o mundo, ao menos por sua singularidade; no entanto ela é pouco conhecida. (Nota de Voltaire.) - O pregador objeto dessa nota é o abade de Caveyrac, que, na--página 362 de sua Apologia de Luís XIV quanto à revogaçào do edito de Nantes, com uma dissertação sobre a jornada de São Bartolomeu, 1758, escreveu de fato a frase citada por Voltaire. Os franceses, na Guerra dos Sete Anos, sofreram derrotas nos quatro cantos do mundo. (M.) - Segundo Voltaire, o "louco de Verberie" era um pobre
coitado, de espírito perturbado, "que durante uma refeição num mosteiro proferiu palavras insensatas e foi enforcado, em vez de ser exorcizado e purificado". (Dictionnaire philosophique, "Suplícios".) 25. A província da Alsácia foi anexada ao reino da França após a promulgação do edito de Nantes. O edito não era ali aplicado e, portanto, jamais foi "revogado". Além disso, o rei tinha a preocupação de não perder para a Alemanha vizinha seus aliados protestantes. Assim, a perseguição poupou os luteranos da Alsácia. 26. Veja-se Rycaut. (Nota de Voltaire.) - Rycaut é o autor de uma História da situação atual da Igreja grega, 1696. 27. Os descendentes de Noé, ou noáchidas, eram tidos como praticantes de uma religião natural primitiva, anterior a toda Revelação, que teria se conservado na China. 28. O budismo, sendo Fô o nome chinês de Buda. 29. As Cartas edificantes e curiosas, periódico dos jesuítas, publicavam (após censura) as cartas dos missionários da sociedade. Elas são, na Europa do século XVIII, a principal fonte de informação sobre a China. 30. Voltaire relata no capítulo 179 do Essai sur les moeurs [Ensaio sobre os costumes] a conspiração dos barris de pólvora contra o rei da Inglaterra (1605). Católicos fanáticos, descontentes com Jaime I, decidiram matar, num único atentado, o rei, a família real e todos os pares do reino. Trinta e seis toneladas de pólvora foram dispostas sob a sala do parlamento onde Jaime I devia fazer uso da palavra. Mas a máquina infernal foi descoberta a tempo. 31. Vejam-se Kempfer e todos os relatos do Japão. (Nota de Voltaire.) 32. As duas palavras gregas que deram origem a esse nome significam amigo e irmão. (M.) 33. Alusão ao julgamento de Salomão. (M.) 34. O sr. de La Bourdonnaie, intendente de Rouen, diz que a manufatura de chapéus caiu em Caudebec e em Neuchâtel por causa da evasão dos refugiados. O sr. Foucaut, intendente de Caen, diz que o comércio em geral diminuiu pela metade. O sr. de Maupeou, intendente de Poitiers, diz que a manufatura de droguete acabou. O sr. de Bezons, intendente de Bordéus, queixa-se de que o comércio de Clérac e de Nérac praticamente não existe mais. O sr. de Miroménil, intendente de Touraine, diz que o comércio de Tours foi reduzido em
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dez milhões por ano; e tudo isto por causa da perseguição. (Vejamse os relatórios dos intendentes, em 1698.) Leve-se em conta sobretudo o número de oficiais de terra e mar, e marinheiros, que foram obrigados a ir servir contra a França, geralmente com uma funesta vantagem, e vejam se a intolerância não causou mal nenhum ao Estado. Não se tem aqui a temeridade de propor idéias a ministros cujo gênio e opiniões abalizadas são bem conhecidos e cujo coração é tão nobre quanto seu nascimento. Eles perceberão muito bem que o restabelecimento da marinha demanda alguma indulgência para com os habitantes das nossas costas. (Nota de Voltaire.) - Os dois ministros elogiados por Voltaire são o duque de Choiseul-Stainville e seu primo, o duque de Praslin. (M.) 35. Voltaire não menciona os judeus de Avignon e do condado Venaissin. Esses territórios, pertencentes ao papa, não faziam parte do reino da França antes da Revolução. 36. Por volta de 1730, em Paris, no cemitério Saint-Médard, o túmulo do diácono Pâris, muito popular no pequeno grupo jansenista, era palco de manifestações histéricas: as "convulsões". Os "profetas calvinistas": os da revolta dos protestantes. 37. Voltaire supõe que a Apologia de Sócrates, de Platão, constitua o discurso realmente pronunciado diante dos juízes. 38. Este homem é o abade de Malvaux, que publicou, em 1762, L'accord de la religion et de l'humanité sur l'intolérance, obra que é comentada no pós-escrito (cap. XXIV do Tratado sobre a tolerância), e que fez repercutir sobre o autor uma parte da justa indignação que seu predecessor, o abade de Caveyrac, havia despertado, ao fazer-se apologista da Noite de São Bartolomeu. É a este último que alguns atribuem a autoria de L'accord, etc. Segui a opinião de Hébrail. (B.) 39. Eis o texto de Cícero: "Quaeve anus tam excors inveniri potest, quae illa, quae quondam credebantur, apud inferos portenta extimescat". (De natura deornm, liv. 11, capo ii.) (M.) 40. Capítulos XXI e XXIV. (Nota de Voltaire.) 41. Atos, capítulo XXV, V. 16. (Nota de Voltaire.) 42. Atos, capítulo XXVI, V. 24 (Nota de Voltaire.) 43. Embora os judeus não tivessem o direito de fazer justiça desd e que Arquelau fora relegado entre os alóbrogos e a Judéia era governada como província do império, os romanos freqüentemente fechavam os olhos quando os judeus exerciam o julgamento do zelo,
ou seja, quando, numa sublevação repentina, lapidavam por zelo aqueles que julgavam ter blasfemado. (Nota de Voltaire.) 44. Atos, capo VII, V. 57. (M.) 45. Ulpianus, Digest., liv. I, tit. ii. "Eis qui judaicam superstitionem sequuntur honores adipisci permiserunt, etc." (Nota de Voltaire.) 46. Tácito diz (Annales, XV, 44): "Quos per flagitia invisos vulgus christianos appellabat." Era pouco provável que o nome "cristão" fosse já conhecido em Roma. Tácito escrevia sob Vespasiano e sob Domiciano; falava dos cristãos como falavam a respeito deles em sua época. Eu ousaria dizer que as palavras adio humani generis convicti poderiam perfeitamente significar, no estilo de Tácito, acusados de serem odiados pelo gênero humano, tanto quanto acusados de odiar o gênero humano. Com efeito, o que faziam em Roma esses primeiros missionários? Procuravam ganhar algumas almas, ensinavam-lhes a moral mais pura; não se insurgiam contra nenhum poder; a humildade de seu coração era tão extrema como a de suas posses e de sua situação; mal eram conhecidos; mal haviam se separado dos outros judeus. De que maneira o gênero humano, que os ignorava, podia odiá-los? E de que maneira podiam ser acusados de detestar o gênero humano? Quando Londres foi incendiada, acusaram os católicos; mas isso foi depois das guerras de religião, foi depois da conspiração dos barris de pólvora, na qual vários católicos, indignos de sê-lo, haviam se envolvido. Os primeiros cristãos do tempo de Nero seguramente não se encontravam na mesma situação. É muito difícil penetrar nas trevas da história. Tácito não dá nenhuma razão da suspeita levantada de que o próprio Nero quis reduzir Roma a cinzas. Teríamos bem mais razões para suspeitar de Carlos 11 de ter incendiado Londres: o sangue do rei, seu pai, executado num cadafalso aos olhos do povo que pedia sua morte, podia ao menos servir de escusa a Carlos 11. Mas Nero não tinha escusa, nem pretexto, nem interesse. Esses rumores insensatos podem ser, em qualquer lugar, o quinhão do povo: sabemos de alguns, tão dementes e injustos, espalhados nos dias de hoje. Tácito, que conhece tão bem o caráter dos governantes, devia conhecer o do povo, sempre vão, sempre exagerado em suas opiniões violentas e passageiras, incapaz de perceber alguma coisa e capaz de tudo afirmar, de tudo crer e de tudo esquecer.
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Fílon (De Virtutibus, et Legatione ad Caium) diz que "Sejano os perseguiu sob Tibério, mas que, após a morte de Sejano, o imperador os restabeleceu em todos os seus direitos." Tinham o direito à cidadania romana, embora desprezados pelos cidadãos romanos, participavam das distribuições de trigo; e, mesmo quando a distribuição era feita num dia de sabá, adiavam a deles para um outro dia, provavelmente em consideração às quantias em dinheiro que haviam dado ao Estado, pois em todo lugar eles compraram a tolerância e em pouco tempo foram ressarcidos do que ela havia custado. Essa passagem de Fílon explica perfeitamente a de Tácito, que diz que quatro mil judeus ou egípcios foram enviados à Sardenha e que, se a intempérie do clima os fizesse perecer, seria uma perda leve, vile damnum (Annales, II, 85). Acrescentarei a essa nota que Fílon vê Tibério como um governante sábio e justo. Presumo que só era justo na medida em que essa justiça correspondia a seus interesses; mas o bem que Fílon diz dele me faz duvidar um pouco dos horrores que Tácito e Suetônio lhe atribuem. Não me parece verossímil que um velho doente, de 70 anos, tenha se retirado à ilha de Capri para ali entregar-se a orgias requintadas, que mal são naturais e que eram inclusive desconhecidas da juventude mais desenfreada de Roma; nem Tácito nem Suetônio conheceram esse imperador; eles recolhiam com prazer os boatos populares. Otávio, Tibério e seus sucessores foram odiados, porque reinavam sobre um povo que devia ser livre. Os historiadores compraziam-se em difamá-los, e acreditava-se na palavra desses historiadores porque, então, não havia anais, jornais da época, documentos; assim, os historiadores não citam ninguém; era impossível contradizê-los; difamavam quem queriam e decidiam a seu bel-prazer o julgamento da posteridade. Cabe ao leitor sensato perceber até que ponto deve-se desconfiar da veracidade desses historiadores, qual o crédito que merecem fatos públicos atestados por autores sérios, nascidos numa nação esclarecida, e quais os limites que devemos impor à credulidade em anedotas que esses mesmos autores relatam sem a menor prova. (Nota de Voltaire.) 47. Evidentemente, respeitamos tudo o que a Igreja torna respeitável; invocamos os santos mártires, mas, mesmo reverenciando São Lourenço, podemos duvidar que São Sisto lhe tenha dito: Você me seguirá dentro de três dias; que nesse curto intervalo de tempo o pre-
feito de Roma lhe tenha exigido o dinheiro dos cristãos; que o diácono Lourenço tenha tido tempo de reunir todos os pobres da cidade; que tenha ido até o prefeito para levá-lo ao lugar onde estavam esses pobres; que lhe tenham aberto um processo e feito um interrogatório; que o prefeito tenha encomendado a um ferreiro uma grelha bastante grande para assar um homem; que o primeiro magistrado de Roma tenha assistido pessoalmente a esse estranho suplício; que São Lourenço, nessa grelha, lhe tenha dito: "Estou bastante assado de um lado, podes me virar do outro se queres me comer." Essa grelha não faz muito o gênero dos romanos. E como se explica que nenhum autor pagão tenha falado dessas aventuras? (Nota de Voltaire.) 48. Basta abrir Virgílio para ver que os romanos reconheciam um deus supremo, soberano de todos os seres celestes. ... O! qui res hominunque deumque Aeternis regis imperiis, et fulmine terres. (Eneida, I, 233-34.) O pater, o hominum divumque aeterna potestas, etc. (Eneida, X, 18.) Horácio exprime-se bem mais enfaticamente: Unde nil majus generatur ipso, Nec viget quidquam simile, aut secundum. (Lib. I, od. xii, 17-18.) Não se cantava outra coisa, senão a unidade de Deus nos mistérios em que quase todos os romanos eram iniciados. Veja-se o belo hino de Orfeu; leia-se a carta de Máximo de Madaurus a Santo Agostinho, na qual diz que "somente imbecis poderiam não reconhecer um Deus soberano". Mesmo sendo pagão, Longino escreve ao mesmo Agostinho que Deus "é único, incompreensível, inefável"; o próprio Lactâncio, que não pode ser acusado de demasiado indulgente, admite em seu livro V (Divin. Institut., c. I1I), que "os romanos submetem' todos os deuses ao Deus supremo; illos subjicit et mancipat Deo". Mesmo Tertuliano, em sua Apologética (c. XXIV), afirma que todo o Império reconhecia um deus senhor do mundo, cuja potência e
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majestade são infinitas, principem mundi, perfectae potentiae et majestatis. Sobretudo em Platão, o mestre de Cícero na filosofia, lêse que "há um só Deus; cumpre adorá-lo, amá-lo e procurar assemelhar-se a ele pela santidade e pela justiça". Epicteto na prisão, Marco Antônio no trono, dizem a mesma coisa em várias passagens. (Nota de Voltaire.) 49. Capítulo XXXIX. (Nota de Voltaire.) 50. Capítulo XXXV. (Nota de Voltaire.) 51. Capítulo III. (Nota de Voltaire.) 52. Essa asserção deve ser provada. É preciso convir que, desde que a história sucedeu ã fábula, os egípcios são vistos apenas como um povo covarde e supersticioso. Cambises apodera-se do Egito mediante uma única batalha; Alexandre lhe dita leis sem experimentar um só combate, não encontrando uma cidade que ouse resistir a um assédio; os Ptolomeus o subjugam sem resistência; César e Augusto o fazem também facilmente; Ornar ocupa todo o Egito numa única campanha; os mamelucos, povo da Cólquida e dos arredores do monte Cáucaso, são seus senhores após Ornar; são eles, e não os egípcios, que derrotam o exército de São Luís e fazem esse rei prisioneiro. Enfim, tendo os mamelucos se tornado egípcios, ou seja, indolentes, covardes, relapsos e volúveis, como os habitantes naturais desse clima, em pouco tempo caem sob o jugo de Selim I, que manda enforcar seu sultão e anexa essa província ao império dos turcos, até que outros bárbaros apoderem-se dela um dia. Heródoto relata que, nos tempos fabulosos, um rei egípcio chamado Sesóstris saiu de seu país com o propósito fonual de conquistar o universo. Percebe-se que tal propósito só é digno de um Picrochole [personagem do Gargântua de Rabelaisl ou de dom Quixote, sem contar que o nome Sesóstris não é egípcio, pode-se colocar esse acontecimento, bem como todos os fatos anteriores, na conta das Mil e uma noites. Nada é mais comum entre os povos conquistados do que recitar fábulas sobre sua antiga grandeza, do mesmo modo que, em certas regiões, certas famílias miseráveis se fazem descender de antigos soberanos. Os sacerdotes do Egito contaram a Heródoto que esse rei chamado Sesóstris fora subjugar a Cólquida: é como se disséssemos que um rei da França partiu de Touraine para subjugar a Noruega. Por mais que repitam todas essas histórias em milhares e milhares de volumes, elas não se tornam mais verossímeis. É bem mais
natural que os habitantes robustos e ferozes do Cáucaso, os cólquidas e os citas, que vieram tantas vezes devastar a Ásia, tenham penetrado no Egito; e se os sacerdotes de Colcos adotaram a moda da circuncisão, isso não é uma prova de que tenham sido subjugados pelos egípcios. Diodoro de Sicília conta que todos os reis vencidos por Sesóstris vinham anualmente de seus reinos distantes pagar-lhe os tributos e que Sesóstris servia-se deles como de cavalos atrelados ã sua carruagem para levá-lo ao templo. Essas histórias de Gargântua são todos os dias fielmente copiadas. Obviamente, os reis eram muito bondosos para virem de tão longe servir de cavalos. Quanto às pirâmides e outras antiguidades, não provam outra coisa senão o orgulho e o mau gosto dos príncipes do Egito, bem como a escravidão de um povo imbecil, empregando seus braços, que eram seu único bem, para satisfazer a grosseira ostentação de seus senhores. O governo desse povo, mesmo nos períodos mais enaltecidos, parece absurdo e tirânico; dizem que todas as terras pertenciam aos monarcas. E competia a tais escravos conquistar o mundo! A profunda ciência dos sacerdotes egípcios é também uma das coisas mais ridículas da história antiga, isto é, da fábula. Gente que afirmava que, num período de onze mil anos, o sol havia surgido duas vezes no poente e se posto duas vezes no nascente, recomeçando seu curso, estava certamente muito abaixo do autor do Almanaque de Liege. A religião desses sacerdotes, que governavam o Estado, não se comparava sequer à dos povos selvagens da América. Sabe-se que adoravam crocodilos, macacos, gatos, cebolas; talvez, hoje, em toda a terra, só o culto do grande lama seja tão absurdo. Suas artes não valem muito mais que sua religião: não há uma única estátua egípcia que seja suportável, e tudo o que tiveram de bom foi feito em Alexandria, sob os Ptolomeus e os Césares, por artistas da Grécia. Precisaram de um grego para aprender geometria. O ilustre Bossuet extasia-se com o mérito egípcio, em seu Discours sur I'Histoire universelle dirigido ao filho de Luís XlV. O discurso é capaz de deslumbrar um jovem príncipe; mas satisfaz muito pouco os estudiosos: trata-se de uma declamação eloqüente, mas um historiador deve ser mais filósofo do que orador. De resto, essa reflexão sobre os egípcios é dada apenas como uma conjetura. Que outro nome pode dar-se a tudo o que se diz da Antiguidade? (Nota de Voltaire.)
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53. Não se contesta a morte de Santo Inácio. Mas ao ler o relato de seu martírio, um homem de bom senso não sentirá algumas dúvidas surgirem em seu espírito? O autor desconhecido desse relato diz que "Trajano julgou que faltaria algo à sua glória se não submetesse a seu império o deus dos cristàos". Que idéia! Acaso Trajano era um homem que quisesse triunfar dos deuses? Quando Inácio apareceu diante do imperador, este lhe disse: "Quem és tu, espírito impuro?" É pouco provável que um imperador falasse a um prisioneiro e que ele próprio o condenasse; não é assim que os soberanos costumam agir. Se Trajano mandou vir Inácio à sua presença, não podia ter-lhe perguntado: Quem és tu? Ele o sabia perfeitamente. E a expressào espírito impuro poderia ter sido pronunciada por um homem como Trajano? Nào se percebe que é uma expressão de exorcista, que um cristão põe na boca de um imperador? Será este, santa ingenuidade, o estilo de Trajano? Pode-se conceber que Inácio lhe tenha respondido chamar-se Teóforo, porque trazia Jesus em seu coraçào, e que Trajano tivesse dissertado com ele acerca de Jesus Cristo? Fazem Trajano dizer, ao final da conversaçào: "Ordenamos que Inácio, que se glorifica de trazer em si o crucificado, seja acorrentado, etc." Um sofista inimigo dos cristãos podia chamar Jesus Cristo de crucificado; mas é pouco provável que, ao declarar a sentença, empregasse esse termo. O suplício da cruz era tão comum entre os romanos que era impossível, no estilo das leis, designar por crucificado o objeto do culto dos cristãos; e não é assim que as leis e os imperadores pronunciam seus julgamentos. A seguir fazem Santo Inácio escrever uma longa carta aos cristãos de Roma: "Eu vos escrevo - diz ele - completamente acorrentado." Por certo, se lhe foi permitido escrever aos cristãos de Roma, estes não eram procurados; Trajano, portanto, não tinha o propósito de submeter o Deus deles a seu império; caso contrário, se esses cristãos estivessem sob o flagelo da perseguição, Inácio cometia uma grande imprudência ao escrever-lhes: significava expor-lhes, entregar-lhes, significava tornar-se seu delator. Penso que os que redigiram esses atos deviam dar mais atenção às verossimilhanças e às conveniências. O martírio de São Policarpo faz surgir mais dúvidas. É dito que uma voz gritou do alto do céu: Coragem, Polica/pol, que os cristãos a ouviram, mas os outros não. É dito que, quando amarraram Policarpo no poste e a fogueira ardeu
em chamas, essas chamas afastaram-se dele e formaram um arco-íris acima de sua cabeça; que uma pomba surgiu desse arco-íris; que o santo, respeitado pelo fogo, exalou uma fragrância aromática que perfumou todo o ambiente; mas aquele de quem o fogo não ousava aproximar-se não pôde resistir ao golpe da espada. É preciso reconhecer que devemos perdoar os que vêem nessas histórias mais piedade do que verdade. (Nota de Voltaire.) 54. Histoire ecclésiastique, liv. VIII. (Nota de Voltaire.) 55. Daniel, capítulo m. (M.) 56. Veja-se nota 3, retro. 57. A Guerra dos Sete Anos, terminada pelo tratado de 10 de fevereiro de 1763. (M.) 58. A grande lei da atração. (M.) 59. O parlamento de Paris havia, em 8 de junho de 1763, aprovado um decreto contra a inoculação. (M.) 60. Veja-se a excelente carta de Locke sobre a tolerância. (Nota de Voltaire.) 61. O jesuíta Busembaum, comentado pelo jesuíta Lacroix, diz que "é permitido matar um príncipe excomungado pelo papa, em qualquer país onde se encontre esse príncipe, porque o universo pertence ao papa, e aquele que aceita essa incumbência faz uma obra caridosa". Foi essa proposição, inventada nos manicômios do inferno, que mais mobilizou a França contra os jesuítas. Mais do que nunca, reprovaram-lhes então esse dogma, por eles ensinado tantas vezes e tantas vezes negado. Acreditaram justificar-se mostrando aproximadamente as mesmas decisões em Santo Tomás e em vários dominicanos (leiam, se puderem, a Carta de um homem do mundo a um teólogo, sobre Santo Tomás; é uma brochura de jesuíta, de 1762). Com efeito, Santo Tomás de Aquino, doutor angélico, intérprete da vontade divina (são seus títulos), afirma que um príncipe apóstata perde seu direito à coroa e que não se deve mais obedecer-lhe; que a Igreja pode puni-lo com a morte (livro lI, parto 2, quest. 12); que o imperador Juliano foi tolerado apenas porque era o mais forte (livro lI, parto 2, quest. 12); que é legítimo matar todo herético (livro II, parto 2, quest. 11 e 12); que os que libertam o povo de um príncipe que governa tiranicamente são muito louváveis, etc., etc. Respeita-se muito o anjo da escola; mas se, na época de Jacques Clément, seu confrade e do bernardo Ravaillac ele viesse sustentar na França tais proposiçÕes, de que maneira teri~m tratado o anjo da escola?
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Cumpre reconhecer que Jean Gerson, chanceler da Universidade, foi ainda mais longe que Santo Tomás, e o franciscano Jean Petit, infinitamente mais longe ainda. Vários franciscanos sustentaram as horríveis teses de Jean Petit. É preciso dizer que essa doutrina diabólica do regicídio advém unicamente da idéia maluca partilhada há muito tempo por quase todos os monges, segundo a qual o papa é um Deus na terra, podendo dispor à vontade do trono e da vida dos reis. Nesse ponto estamos muito abaixo dos tártaros que crêem no grande lama imortal; este entrega-lhes sua cadeira de retrete; eles fazem secar essas relíquias, guardam-nas em relicário e as beijam devotamente. De minha parte, confesso que preferiria, para o bem da paz, levar no pescoço tais relíquias do que acreditar que o papa tenha o menor direito sobre o temporal dos reis, ou mesmo sobre o meu, em que circunstância for. (Nota de Voltaire.) 62. Joào, XIV, 28. (M,) 63. lI, 14. (M.) 64. I, 17. (M.) 65. III, 23-31. (M,) 66. Católicos e protestantes. (M.) 67. Êxodo, XII, 8. (M.) 68. Ibid., lI. (M.) 69. Pascha, a Páscoa, festa anual dos judeus, em memória de sua saída do Egito. (M,) 70. Levítico, XIII, 23. (M.) 71. Ibid., XVI, 22. (M.) 72. Deuteronômio, capo XIV. (Nota de Voltaire.) 73. Dentro de nossa idéia de fazer sobre esta obra algumas notas úteis, assinalaremos aqui que é dito ter feito Deus uma aliança com Noé e com todos os animais. No entanto, ele permite a Noé comer de tudo o que tenha vida e movimento; excetua apenas o sangue, do qual não permite que se alimentem. Deus acrescenta (Gênesis, IX, 5) "que se vingará de todos os animais que derramaram o sangue do homem". Pode-se inferir dessas passagens e de várias outras o que toda a Antiguidade sempre pensou até os nossos dias e o que todos os homens sensatos pensam: que os animais têm algum conhecimento. Deus não faz um pacto com as árvores nem com as pedras, que não têm sentimento; mas faz com os animais, que ele houve por bem
dotar de um sentimento não raro mais delicado que o nosso e de algumas idéias necessariamente associadas a esse sentimento. Por isso ele não quer a barbárie de nos alimentarmos do sangue desses animais, porque o sangue é a fonte da vida e, conseqüentemente, do sentimento. Prive-se um animal de seu sangue e todos os seus órgãos ficam sem ação. É, pois, com muita razão que a Escritura diz em várias passagens que a alma, isto é, o que era chamado de alma sensitiva, está no sangue; e essa idéia tào natural foi a de todos os povos. É sobre essa idéia que se fundou a comiseração que devemos ter para com os animais. Dos sete preceitos dos noáchidas, adotados pelos judeus, há um que proíbe comer o membro de um animal em vida. Esse preceito prova que os homens tiveram a crueldade de mutilar os animais para comer seus membros e que os deixavam viver para se alimentar sucessivamente das partes de seu corpo. Esse costume subsistiu, com efeito, entre alguns povos bárbaros, como vemos pelos sacrifícios da ilha de Quios, a Baco Omadios, o comedor de carne crua. Deus, ao permitir que os animais nos sirvam de comida, recomenda portanto humanidade para com eles. É preciso convir que há barbárie em fazê-los sofrer; certamente só o costume é capaz de diminuir em nós o horror natural de degolar um animal que nutrimos com as nossas màos. Sempre houve povos que tiveram um grande escrúpulo disso. Esse escrúpulo subsiste ainda em quase toda a Índia; toda a seita de Pitágoras, na Itália e na Grécia, sempre se absteve de comer carne. Porfírio, em seu livro da Abstinência, censura um discípulo por ter abandonado sua seita apenas para entregar-se a seu apetite bárbaro. É preciso, penso eu, ter renunciado à luz natural, para ousar afirmar que os animais são somente máquinas. Há uma contradição manifesta em admitir que Deus deu aos animais todos os órgàos do sentimento e em sustentar que não lhes deu sentimento. Parece-me também que é preciso não ter jamais observado os animais para não distinguir neles as diferentes vozes da necessidade, da alegria, do temor, do amor, da cólera e de todos os seus afetos; seria muito estranho que exprimissem tão bem o que não sentem. Essa nota pode fornecer muitas reflexões aos espíritos sabedores do poder e da bondade do Criador, que se digna conceder a vida, o sentimento, as idéias, a memória, aos seres que ele próprio organizou com sua mào onipotente. Não sabemos nem como esses órgãos
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se formaram, nem como se desenvolveram, nem como se recebe a vida, nem por que leis os sentimentos, as idéias, a memória, a vontade ligam-se a essa vida; e nessa profunda e eterna ignorância, inerente ã nossa natureza, não cessamos de discutir, perseguimo-nos uns aos outros, como os touros que se batem com seus chifres sem saber por que e como têm chifres. (Nota de Voltaire.) 74. Amós, V, 26. (Nota de Voltaire.) 75. jeremias, VII, 22. (Nota de Voltaire.) 76. Atos, VII, 42-43. (Nota de Voltaire.) 77. Deuteronômio, XII, 8. (Nota de Voltaire.) 78. Vários escritores concluíram temerariamente dessa passagem que o capítulo concernente ao bezerro de ouro (que não é senão o deus Ápis) foi acrescentado aos livros de Moisés, bem como vários outros capítulos. Aben-Hezra foi o primeiro que julgou demonstrar que o Pentateuco fora redigido no tempo dos reis. Wollaston, Collins, Tindal, Shaftesbury, Bolingbroke e muitos outros alegaram que a arte de gravar os pensamentos na pedra polida, na argila, no chumbo ou na madeira era, então, a única maneira de escrever; dizem que, no tempo de Moisés, os caldeus e os egípcios não escreviam de outro modo; que, portanto, só podiam gravar de forma muito abreviada, e em hieróglifos, a substância das coisas que queriam transmitir ã posteridade, e não histórias detalhadas; que não era possível gravar livros volumosos num deserto onde se mudava freqüentemente de lugar, onde não havia ninguém que pudesse produzir roupas, nem cortá-las, nem sequer consertar as sandálias, e onde Deus foi obrigado a fazer um milagre de quarenta anos (Deuteronômio, VIII, 5) para conservar as roupas e os calçados de seu povo. Dizem que não é verossímil que houvesse tantos gravadores de caracteres, quando faltavam os ofícios mais necessários e nem mesmo se podia fazer pão; e, se lhes dizem que as colunas do tabernáculo eram de bronze e os capitéis de prata maciça, respondem que a ordem pode ter sido dada no deserto, mas que só foi executada em épocas mais favoráveis. Não conseguem conceber que esse povo pobre tenha exigido um bezerro de ouro maciço (Êxodo, XXXII, 1) para adorá-lo ao pé da mesma montanha em que Deus falava a Moisés, em meio a raios e relâmpagos que o povo avistava (Êxodo, XIX, 18-19) e ao som da trombeta celeste que ouvia. Espantam-se de que exatamente na véspe-
ra do dia em que Moisés desceu da montanha, todo esse povo tenha se dirigido ao irmão de Moisés para obter o bezerro de ouro maciço. Como pôde Aarão fundi-lo num só dia (Êxodo, XXXII, 4)? E como Moisés o reduziu a pó em seguida (Êxodo, XXXII, 20)? Dizem ser impossível a qualquer artista fazer em menos de três meses uma estátua de ouro, e que, para reduzi-la a pó, a arte da química mais erudita não é suficiente. Assim, tanto a prevaricação de Aarão como a operação de Moisés teriam sido milagres. A humanidade, a bondade de coração, que os enganam, os impedem de acreditar que Moisés tenha mandado matar vinte e três mil pessoas (Êxodo, XXXII, 28) para expiar esse pecado; não concebem que vinte e três mil homens tenham se deixado deste modo mas~a crar por levitas, a menos que se trate de um terceiro milagre. Enfim, acham estranho que Aarão, de todos o mais culpado, tenha sido recompensado do crime que causou tão terrível punição aos demais (Êxodo, XXXIII, 19; e Levítico, VIII, 2), tornando-se grande sacerdote, enquanto os cadáveres ensangüentados de vinte e três mil de seus irmãos eram empilhados ao pé do altar onde foi oferecer sacrifícios. Levantam os mesmos problemas em relação aos vinte e quatro mil israelitas massacrados por ordem de Moisés (Números, XXV, 9), para expiar a falta de um só que fora surpreendido com uma jovem madianita. Vêem-se tantos reis judeus, sobretudo Salomão, esposar impunemente estrangeiras, que esses críticos não conseguem admitir que a união com uma madianita fosse tão grande crime: Rute era moabita, embora sua família fosse originária de Belém; a Sagrada Escritura designa sempre Rute, a moabita; no entanto, ela foi ter ao leito de Boaz a conselho de sua mãe; dele recebeu seis alqueires de cevada, o desposou em seguida e foi a avó de Davi. Raabe era não apenas estrangeira, mas uma mulher pública; a Vulgata não lhe dá outro título senão o de meretrix (Josué, VI, 17); ela esposou Salmom, príncipe de Judá; e é ainda desse Salmom que Davi descende. Consideram inclusive Raabe como a figura da Igreja cristã: é a opinião de vários padres, e sobretudo de Orígenes em sua sétima homilia sobre Josué. Betsabé, mulher de Urias, da qual Davi teve Salomão, era etéia. Se remontarmos mais acima, o patriarca Judá esposou uma mulher cananéia; seus filhos tiveram por mulher Tamar, da raça de Aram. Essa mulher, com quem Judá cometeu, sem saber, um incesto, não era da raça de Israel.
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Assim, nosso Senhor Jesus Cristo dignou-se encarnar entre os judeus uma família com cinco estrangeiras em sua árvore genealógica, para fazer ver que as nações estrangeiras teriam parte na sua herança. O rabino Aben-Hezra foi, como disse, o primeiro a ousar afirmar que o Pentateuco fora redigido muito tempo depois de Moisés. Ele baseia-se em várias passagens. "O cananeu (Gênesis, IX, 6) estava então nesse país. A montanha de Moriá (lI Paralip., I1I, 1), chamada a montanha de Deus. O leito de Og, rei de Bazan, se vê ainda em Rabat, e ele denominou toda essa região de Bazan aldeias de Jair, até hoje. Jamais se viu, em Israel, profeta como Moisés. São estes os reis que reinaram em Edom (Gênesis, XXXVI, 31) antes que algum reinasse sobre Israel." Aben-Hezra afirma que essas passagens, em que se fala de coisas acontecidas depois de Moisés, não podem ser de Moisés. Objetam-lhe que tais passagens são notas acrescentadas muito tempo depois pelos copistas. Newton, cujo nome aliás só merece ser pronunciado com respeito, mas que pode ter-se enganado por ser homem, atribui, na introdução a seus comentários sobre Daniel e São João, os livros de Moisés, Josué e dos Juízes a autores sagrados muito posteriores: baseia-se no capítulo XXXVI do Gênesis, em quatro capítulos dos Juízes, XVII, XVIII, XIX, XXI; em Samuel, capo VIII; nas Crônicas, capo 11; no livro de Rute, capo IV. Com efeito, se no capo XXXVI do Gênesis se fala dos reis, se eles são mencionados no livro dos Juízes, se no livro de Rute há referência a Davi, tudo leva a crer que esses livros foram escritos no tempo dos reis. É também a opinião de alguns teólogos, a começar pelo famoso Leclerc. Mas essa opinião tem apenas um pequeno número de adeptos cuja curiosidade sonda tais abismos. Essa curiosidade, por certo, não faz parte dos deveres do homem. Quando os sábios e os ignorantes, os príncipes e os pastores apresentarem-se após esta curta vida perante o senhor da eternidade, todos desejarão ser justos, humanos, compassivos, generosos; ninguém se vangloriará de ter sabido precisamente em que ano o Pentateuco foi escrito e de ter decifrado o texto de notas que os escribas costumavam tomar. Deus não nos perguntará se fomos a favor dos massoretes contra o Talmude, se alguma vez tomamos um caph por um beth, um yod por um vaü, um daleth por um res; com toda a certeza, ele nos julgará por nossas ações, e não pela compreensão da língua
hebraica. Atemo-nos firmemente à decisào da Igreja, conforme o dever razoável de um fiel. Encerramos esta nota com uma passagem importante do Levítico, livro composto após a adoração do bezerro de ouro. Ele ordena os judeus a não mais adorar os lanosos, "os bodes, com os quais inclusive praticaram abominações infames". Não se sabe se esse estranho culto vinha do Egito, pátria da superstição e do sortilégio; mas acredita-se que o costume de nossos supostos feiticeiros de adorar um bode no sabá e de com ele entregar-se a infâmias inconcebíveis, cuja idéia causa horror, proveio dos antigos judeus. Com efeito, foram eles que ensinaram, numa parte da Europa, a feitiçaria. Que povo! Tão estranha infâmia parecia merecer um castigo comparável ao ocasionado pelo bezerro de ouro; no entanto, o legislador contenta-se em fazer-lhe uma simples defesa. Relatamos aqui esse fato apenas para fazer conhecer a nação judaica: nela, a bestialidade devia ser comum, por ser a única nação conhecida na qual as leis foram forçadas a proibir um crime jamais suspeitado alhures por algum legislador. É de supor que nas fadigas e na penúria que os judeus experimentaram nos desertos de Farã, Oreb e Cades-Barné, a espécie feminina, mais frágil que a outra, tenha sucumbido. É provável, de fato, que os judeus carecessem de mulheres, já que sempre lhes foi ordenado, quando se apoderavam de uma cidade ou aldeia, seja à esquerda, seja à direita do lago Asfaltite, matar todos, exceto as jovens núbeis. Os árabes que habitam ainda uma parte desses desertos estipulam sempre, nos tratados que fazem com as caravanas, que lhes darão jovens núbeis. É possível que os rapazes, nessa região terrível, levassem a depravação da natureza até acasalarem-se com cabras, como é dito de alguns pastores da Calábria. Resta saber se esses acasalamentos produziram monstros e se há algum fundamento nos antigos contos de sátiros, faunos, centauros e minotauros; a história o afirma, mas a física não nos esclareceu ainda sobre esse assunto monstruoso. (Nota de Voltaire.) 79. Josué, capo XXIV, V. 15 sS. (Nota de Voltaire.) 80. Números, capo XXI, V. 9. (Nota de Voltaire.) 81. lI. paralip., capo IV. (M.) 82. lI. Reis, XII, 28. (M.) [Corresponde a I Reis.) 83. Ibid., 31. eM.)
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84. Reis, liv. m, capo XV,
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85. Reis, liv. IV, capo XVI. (Id.) [II Reis) 86. Ibid., liv. m [I Reis], capo XVIII, V. 38 e 40; ibid., liv. IV, capo II, V. 24. (Id.) 87. Iv. Reis [II Reis], II, 24. (M.) 88. Números, capo XXXI. (Nota de Voltaire.) 89. Mádian não fazia parte da terra prometida. Era um pequeno cantão da Iduméia, na Arábia Pétrea; começa ao norte no curso do rio Arnon e vai até o Zared, em meio aos rochedos e na margem oriental do lago Asfaltite. Essa região é hoje habitada por uma pequena horda de árabes; deve ter cerca de oito léguas de comprimento e um pouco menos de largura. (Id.) 90. Números, XXXI, 32 sS. (M.) 91. Números, XXXI, 40. (M.) 92. É certo pelo texto (juízes, XI, 39) que Jefté imolou sua filha. "Deus não aprova esses sacrifícios, diz dom Calmet em sua Dissertação sobre o juramento de jefté; mas quando foram oferecidos, ele quer que os executem, ainda que para punir aqueles que os faziam, ou para reprimir a leviandade com que seriam feitos se não temessem a execução." Santo Agostinho e quase todos os padres condenam a ação de Jefté. É verdade que a Escritura (juízes, XI, 29) diz que ele foi tomado pelo espírito de Deus, e São Paulo, em sua Epístola aos hebreus, capo XI, V. 32, faz o elogio de Jefté; equipara-o a Samuel e Davi. São Jerônimo, em sua epístola a Juliano, diz: "Jefté imolou sua filha ao Senhor, e é por isso que o apóstolo o inclui entre os santos." Eis aí, de um lado e de outro, julgamentos sobre os quais não nos é permitido acrescentar o nosso; deve-se temer inclusive ter uma opinião. (Nota de Voltaire.) 93. Pode-se considerar a morte do rei Agag como um verdadeiro sacrifício. Saul havia feito esse rei dos amalecitas prisioneiro de guerra e aceitara negociar com ele; mas o sacerdote Samuel ordenoulhe nada poupar; disse-lhe com estas palavras (J. Samuel, XV, 3): "Nada lhe poupes, porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito." "E Samuel despedaçou a Agague perante o Senhor em Gilgal." "O zelo que animava o profeta", diz dom Calmet, "pôs-lhe a espada na mão nessa ocasião para vingar a glória do Senhor e para humilhar Saul."
Vemos, nessa fatal aventura, uma devoção, um sacerdote, uma vítima: tratava-se, pois, de um sacrifício. Todos os povos cuja história conhecemos sacrificaram homens à Divindade, exceto os chineses. Plutarco (Quest. rom. LXXXII) conta que os próprios romanos fizeram imolações na época da república. Nos Comentários de César(De bello gall., I, xxiv), lemos que os germanos imolaram os reféns que ele lhes devolvera após sua vitória. Observei alhures que essa violação do direito das pessoas para com os reféns de César, e essas vítimas humanas imoladas, para cúmulo do horror, pela mào de mulheres, desmente um pouco o panegírico que Tácito faz dos germanos, em seu tratado De moribus germanorum. Parece que, nesse tratado, Tácito preocupa-se mais em fazer a sátira dos romanos do que o elogio dos germanos, que ele não conhecia. Diga-se de passagem que Tácito gostava mais da sátira do que da verdade. Ele quer tornar tudo odioso, inclusive as ações indiferentes, e sua malignidade nos agrada quase tanto quanto seu estilo porque gostamos da maledicência e do engenho. Voltemos às vítimas humanas. Nossos antepassados as imolavam da mesma forma que os germanos: é o último grau da estupidez de nossa natureza abandonada a si mesma e é um dos frutos da fragilidade de nosso julgamento. Dizemos: Cumpre oferecer a Deus o que temos de mais precioso e de mais belo; o que temos de mais precioso são nossos filhos; logo, cumpre escolher os mais belos e os mais jovens para sacrificá-los à Divindade. Fílon diz que, na terra de Canaà, imolavam-se às vezes crianças, antes que Deus ordenasse a Abraão sacrificar-lhe seu filho único, Isaque, para provar sua fé. Sanchoniathon, citado por Eusébio, conta que os fenícios sacrificavam, nas situações de maior perigo, o mais querido de todos os seus filhos, e que Ilus imolou seu filho Jehud mais ou menos na época em que Deus pôs à prova a fé de Abraào. É difícil penetrar nas trevas dessa antiguidade; mas nào resta dúvida de que esses horríveis sacrifícios eram praticados quase por toda parte; os povos só os abandonaram à medida que se civilizaram: a civilidade traz a humanidade. (Nota de Voltaire.) 94. XXXIX, 20, 18. (M.) 95. juízes, capo XI, V. 24. (Nota de Voltaire.)
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14 [corresponde a I Reis); ibid., capo
XXII, v. 44. (Nota de Voltaire.)
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96. juízes, capo XVII, último versículo. (Nota de Voltaire.) 97. Reis, liv. IV [lI. Reis], capo V, v. 18 e 19. (Nota de Voltaire.) 98. Os que estão pouco a par dos costumes da Antiguidade e que só julgam segundo o que vêem a seu redor podem ficar espantados com essas singularidades; mas é preciso pensar que, então, no Egito e numa grande parte da Ásia, a maior parte das coisas exprimiase por figuras, hieróglifos, sinais, modelos. Os profetas, que eram chamados videntes entre os egípcios e os judeus, não apenas se exprimiam em alegorias, como também representavam por sinais os acontecimentos que anunciavam. Assim, Isaías, o primeiro dos quatro grandes profetas judeus, pega um rolo (cap. VIII) e escreve: "Shas bas, toma depressa os despojos"; depois aproxima-se da profetisa. Ela dá à luz um menino que ele chama de Maher-chalal-shas-bas: é uma figura dos males que os povos do Egito e da Assíria farão aos judeus. Esse profeta diz (VII, 15, 16, 18, 20} "Ele comerá manteiga e mel quando souber desprezar o mal e escolher o bem. Na verdade, antes que este menino saiba desprezar o mal e escolher o bem, será desamparada a terra, ante cujos dois reis tu tremes de medo ... Porque há de acontecer que naquele dia assobiará o Senhor às moscas que há no extremo dos rios do Egito, e às abelhas que andam na terra da Assíria ... Naquele dia rapar-te-á o Senhor com uma navalha alugada doutro lado do rio, a saber, por meio da Assíria, a cabeça e os cabelos das vergonhas, e tirará também a barba." Essa profecia das abelhas, da barba e dos cabelos das vergonhas raspados, só pode ser entendida por aqueles que sabem que era costume chamar os enxames com o som da flauta ou de algum outro instrumento campestre; que a maior afronta que se podia fazer a um homem era cortar-lhe a barba; que se chamava de cabelos das vergonhas o pêlo do púbis; que esse pêlo só era raspado nas doenças imundas, como a lepra. Todas essas figuras estranhas ao nosso estilo não significam senão que o Senhor, dentro de alguns anos, libertará seu povo da opressão. O mesmo Isaías (cap. XX) marcha completamente nu, para assinalar que o rei da Assíria levará uma multidão de cativos do Egito e da Etiópia, que não terão com que cobrir sua nudez. Ezequiel (cap. IVe seguinte) come o volume de pergaminho que lhe é apresentado; em seguida cobre seu pão de excrementos e per-
manece deitado sobre seu lado esquerdo trezentos e noventa dias, e sobre seu lado direito quarenta dias, para dar a entender que os judeus não terão pão e para indicar quantos anos haveria de durar o cativeiro. Prende-se com correntes, que representam as do povo; corta seus cabelos e sua barba e os divide em três partes: o primeiro terço designa os que devem perecer na Cidade; o segundo, os que serão mortos fora das muralhas; o terceiro, os que serão levados à Babilônia. O profeta Oséias (cap. 111) une-se a uma mulher adúltera, que ele adquire por quinze peças de prata e um saco e meio de cevada: "Tu esperarás por mim muitos dias, diz-lhe Oséias; não te prostituirás, nem serás de outro homem; assim também esperarei por ti. Porque os filhos de Israel ficarão por muitos dias sem rei, sem príncipe, sem sacrifício, sem coluna, sem estola sacerdotal ou ídolos do lar." Em uma palavra, os na bis, os profetas, os videntes, quase nunca predizem sem representar por um sinal a coisa predita. Jeremias, portanto, não faz senão seguir o costume ao amarrarse com cordas e colocar cabrestos e jugos nas costas, para significar a escravidão daqueles aos quais envia esses modelos. Se prestarmos bem atenção, esses tempos são como os de um mundo antigo, que em tudo difere do novo: a vida civil, as leis, a maneira de fazer a guerra, as cerimônias da religião, tudo é absolutamente diferente. Basta abrir Homero e o primeiro livro de Heródoto para nos convencermos de que não temos nenhuma semelhança com os povos da alta Antiguidade e de que devemos desconfiar de nosso julgamento quando buscamos comparar seus costumes com os nossos. A própria natureza não era o que é hoje. Os magos tinham sobre ela um poder que não têm mais: encantavam serpentes, evocavam os mortos, etc. Deus enviava sonhos, e homens os explicavam. O dom da profecia era comum. Viam-se metamorfoses como as de Nabucodonosor transformado em boi, da mulher de Ló em estátua de sal, de cinco cidades num lago betuminoso. Havia espécies de homens que não mais existem. A raça dos gigantes Refaím, Enim, Nefilim, Enacim, desapareceu. Santo Agostinho, no livro V da Cidade de Deus, diz ter visto o dente de um antigo gigante cem vezes maior que os nossos molares. Ezequiel (XXVII, 11) fala dos pigmeus gamaditas, da altura de um côvado, que combatiam no cerco de Tiro. E em quase tudo isto os autores sagrados estão de
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acordo com os profanos. As doenças e os remédios não eram os mesmos de nossos dias: os possessos eram curados com a raiz barad engastada num anel que lhes punham sob o nariz. ' E~fim, todo esse mundo antigo era tão diferente do nosso, que de~e nao se pode tirar nenhuma regra de conduta; e se, nessa AntigUidade recuada, os homens se perseguiram e oprimiram sucessivamente a propósito de seu culto, não deveríamos imitar essa crueldade sob a lei da misericórdia. (Nota de Volta ire.) 99. jeremias, capo XXVII, V. 6. (Nota de Voltaire.) 100. jeremias, capo XXVIII, V. 17. (Nota de Voltaire.) 101. Isaías, capo XLIV e XLV. (Nota de Voltaire.) 102. I, V. 11. (M.) 103. Êxodo, capo XX, V. 5. (Nota de Voltaire.) 104. Deuteronômio, V, V. 16. (M.) 105. Deuteronômio, XXVIII. (Nota de Voltaire.) . 106. ~á uma única passagem nas leis de Moisés da qual se podena conclUir q~e ele conhecia a opinião reinante entre os egípcios, de que a alma nao morre com o corpo; essa passagem é muito importante, e se encontra no capítulo XVIII do Deuteronômio: "Não se achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro: nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consult~ os mortos." Essa passagem parece indicar que, se evocavam as almas dos mortos, tal sortilégio supunha a permanência das almas. Pode ser ta_mb~m que os magos de que fala Moisés, sendo apenas trapaceiros nao tivessem uma idéia clara do sortilégio que julgavam operar. Ele~ faZiam crer que ~orçavam os mortos a falar, que os repunham, por sua magia, na sltuaçao em que esses corpos tinham estado em vida sem ~x:minar ao menos se era possível inferir ou não de suas oper~ções ndlcula~ ,o dogma da imortalidade da alma. Os feiticeiros jamais foram filosofos, sempre foram charlatães que representavam diante de imbecis. Pode-se observar ainda que é bastante estranho a palavra Píton encontrar-se no Deuteronômio, muito tempo antes que essa palavra grega pudesse ser conhecida pelos hebreus: assim, Píton não tem nenhuma tradução exata na língua hebraica. Essa língua tem dificuldades insuperáveis: é uma mistura de fenício, egípcio, sírio e árabe; e essa mistura encontra-se hoje muito al-
terada. O hebraico sempre teve apenas dois modos para os verbos, o presente e o futuro: é preciso adivinhar os outros modos pelo sentido. Vogais diferentes eram com freqüência expressas pelos mesmos caracteres; ou, então, não se expressavam as vogais, e os inventores dos pontos só fizeram aumentar a dificuldade. Cada advérbio tem vinte significados diferentes. A mesma palavra é tomada em sentidos
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contrários. Acrescente-se a isso a secura e a pobreza da linguagem: os judeus, privados das artes, não podiam exprimir o que ignoravam. Em uma palavra, o hebraico está para o grego assim como a linguagem de um camponês para a de um acadêmico. (Nota de Voltaire.) Voltaire tem em vista o livro do teólogo inglês W. Warburton, The divine legation of Moses demonstrated. 107. Ezequiel, capo XVIII, V. 20. (Nota de Voltaire.) 108. Ibid., capo XX, V. 25. (Nota de Voltaire.) 109. A opinião de Ezequiel prevaleceu enfim na sinagoga; mas houve judeus que, acreditando nos castigos eternos, acreditavam também que Deus perseguia nos filhos as iniqüidades dos pais; hoje eles são punidos para além da qüinquagésima geração e têm ainda a temer os castigos eternos. Pergunta-se de que maneira os descendentes dos judeus, que não eram cúmplices da morte de Jesus Cristo, os que, estando em Jerusalém, não participaram dela e os que se espalharam pelo resto da terra podem ser temporalmente punidos em seus filhos, tão inocentes quanto seus pais. Essa punição temporal, ou, antes, essa maneira de existir diferente de outros povos e de praticar o comércio sem ter pátria, pode não ser vista como um castigo em comparação com as penas eternas que eles atraem sobre si por sua incredulidade e que são capazes de evitar através de uma conversão sincera. (Nota de Voltaire.) 110. Os que quiseram encontrar no Pentateuco a doutrina do inferno e do paraíso, tais como os concebemos, equivocaram-se estranhamente. Seu erro baseou-se apenas numa vã disputa de palavras; tendo a Vulgata traduzido o termo hebraicO sheol, fossa, pelo latino infernum, inferno, serviram-se desse equívoco para fazer crer que os antigos hebreus tinham a noção de Hades e de Tártaro dos gregos, que outras nações conheceram antes sob nomes diferentes. É dito no capítulo XVI dos Números (31-33) que a terra abriu sua boca sob as tendas de Coré, Datã e Abirã, que os devorou com
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suas tendas e seus bens, e que eles foram precipitados vivos na morada dos mortos. Certamente esse lugar não se refere ãs almas desses três hebreus, nem aos tormentos do inferno, nem a uma punição eterna. É estranho que, no Dictionnaire encyclopédique, no termo INFERNO, seja dito que os antigos hebreus reconheceram sua realidade. Se fosse assim, haveria uma contradição insustentável no Pentateuco. Como se explicaria que Moisés tivesse falado numa passagem isolada e única dos castigos após a morte e que deles não tivesse falado em suas leis? Cita-se o trigésimo segundo capítulo do Deuteronômio (versículos 21-24), mas de maneira truncada; ei-lo aqui na íntegra: "Provocaram-me com aquilo que não era Deus, e irritaram-me com sua vaidade; também eu os provocarei naquilo que não é um povo, e os irritarei com uma nação insensata. Porque se acendeu o fogo de minha cólera, e ele arderá até ao fundo da terra; devorará a terra com seus produtos e abrasará os fundamentos das montanhas' e acumularei sobre eles os males, e empregarei contra eles minha~ flechas; serão consumidos pela fome, as aves os atacarão com bicadas dolorosas; mandarei sobre eles os dentes das feras e das serpentes que se arrastam com furor sobre a terra.'" Acaso existe alguma relação entre essas expressões e a idéia das punições infernais tais como as concebemos? Parece antes que essas palavras só tenham sido mencionadas para tornar evidente que nosso inferno era ignorado pelos antigos judeus. O autor desse artigo no Dictionnaire encyclopédique cita ainda a passagem de Jó, no capítulo XXIV (15-19). "Aguardam o crepúsculo os olhos do adúltero; este diz consigo: Ninguém me reconhecerá; e cobre o rosto. Nas trevas minam as casas, de dia se conservam encerrados, nada querem com a luz. Pois a manhã para todos eles é como sombra de morte; mas os terrores da noite lhes são familiares. Vós dizeis: Os perversos são levados rapidamente na superfície das águas; maldita é a porção dos tais na terra; já não andam pelo caminho das vinhas. A secura e o calor desfazem as águas da neve; assim faz a sepultura dos que pecaram." Ou então: "O túmulo dissipou os
• Esta citação é traduzida de Voltaire. A tradução de João Ferreira de Almeida, aqui empregada, apresenta diferenças. Notadamente, diz "ao mais profundo do inferno", onde está "ao fundo da terra". (N. do T.)
que pecam"; ou ainda, segundo a versão dos Setenta, "Seu pecado foi trazido ã memória". Cito as passagens inteiras, e literalmente, sem o quê é sempre impossível formar-se a respeito delas uma idéia verdadeira. Existe aí, eu vos pergunto, a menor palavra a partir da qual se possa concluir que Moisés ensinou aos judeus a doutrina clara e simples dos castigos e recompensas após a morte? O livro de Jó não tem relação com as leis de Moisés. Ademais, é muito provável que JÓ não fosse judeu: é a opinião de São Jerônimo em suas questões hebraicas sobre o Gênesis. A palavra Satanás, que está em JÓ O, 1, 6, 12), não era conhecida dos judeus, e jamais aparece no Pentateuco. Os judeus só ficaram sabendo desse nome 'na Caldéia, assim como os nomes Gabriel e Rafael, desconhecidos antes de sua escravidão na Babilônia. Portanto Jó é muito mal citado a esse respeito. Cita-se ainda o último capítulo de Isaías (23, 24): "E de uma lua nova ã outra, e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante mim, diz o Senhor. Eles sairão, e verão os cadáveres dos homens que prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e eles serão um horror para toda a carne." Certamente, se são expostos ã visão dos passantes e comidos pelos vermes, isso não quer dizer que Moisés ensinou aos judeus o dogma da imortalidade da alma; e as palavras O fogo não se apagará não significam que cadáveres expostos ã visão do povo sofram as penas eternas do inferno. Como se pode citar uma passagem de Isaías para provar que os judeus do tempo de Moisés receberam o dogma da imortalidade da alma? Isaías profetizava, segundo o cálculo hebraico, no ano 3380 do mundo. Moisés viveu por volta do ano 2500; transcorreram oito séculos entre um e outro. É um insulto ao senso comum, ou uma simples brincadeira, abusar assim da permissão de citar e pretender provar que um autor sustentou tal opinião através de uma passagem de um autor vindo oitocentos anos depois e não falou dessa opinião. É indubitável que a imortalidade da alma, os castigos e as recompensas após a morte são anunciados, reconhecidos, constatados no Novo Testamento, e é indubitável que não se encontram em nenhum lugar do Pentateuco; e isto é o que o grande Arnauld diz claramente e com vigor em sua apologia de Port-Royal.
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Os judeus, acreditando depois na imortalidade da alma, não foram esclarecidos sobre sua espiritualidade; pensaram, como quase todas as outras nações, que a alma é algo de solto, aéreo, uma substância leve, que conservava alguma semelhança com o corpo que havia animado; é o que chamam de sombras, os manes dos co1pos. Essa opinião foi a de vários padres da Igreja. Tertuliano, em seu capítulo XXII de Acerca da alma, exprime-se assim: "Definimus animam Dei flatu natam, immortalem, corporal em, effigiatam, substantia simplicem. - Definimos a alma nascida do sopro de Deus, imortal, corporal, figurada, simples em sua substância." Santo Irineu diz, em seu livro II, capo XXXIV: "Incorporales sunt animae quantum ad comparationem mortalium corporum. - As almas são incorpóreas em comparação com os corpos mortais." Ele acrescenta que "Jesus Cristo ensinou que as almas conservam as imagens do corpo - caracterem corporum in quo adoptantur, etc." Ao que se saiba, Jesus Cristo jamais ensinou essa doutrina, e é difícil adivinhar o sentido de Santo Irineu. Santo Hilário é mais formal e mais positivo em seu comentário sobre Santo Mateus. Atribui claramente uma substância corporal à alma: "Corpoream naturae suae substantiam sortiuntur." Santo Ambrósio, acerca de Abraão, livro II, capo VIII, afirma que não há nada de separado da matéria, a não ser a substância da Santíssima Trindade. Poder-se-ia censurar esses homens respeitáveis de fazerem má filosofia; mas é de supor que, no fundo, sua teologia fosse bastante correta, uma vez que, não conhecendo a natureza incompreensível da alma, asseguravam-na imortal e a queriam cristã. Sabemos que a alma é espiritual, mas não sabemos em absoluto o que vem a ser o espírito. Conhecemos muito imperfeitamente a matéria, e nos é impossível ter uma idéia clara do que não é matéria. Muito pouco informados sobre o que afeta nossos sentidos, nada podemos conhecer por nós mesmos acerca do que está além dos sentidos. Transportamos algumas palavras de nossa linguagem comum aos abismos da metafísica e da teologia, para termos uma vaga idéia das coisas que não podemos conceber nem exprimir; procuramos nos apoiar nessas palavras, para sustentar, se possível, nosso frágil entendimento nessas regiões ignoradas. Assim, utilizamo-nos da palavra espírito, que corresponde a sopro e vento, para exprimir algo que não é matéria; e dessas palavras
sopro, vento, espírito, remetendo-nos involuntariamente à idéia de uma substância solta e leve, nós ainda tiramos o que podemos, para chegar a conceber a espiritualidade pura. Mas não chegamos jamais a uma noção distinta; não sabemos sequer o que dizemos ao pronunciarmos a palavra substância; significa, literalmente, o que está abaixo e, por isso mesmo, nos adverte que é incompreensível: pois o que vem a ser, de fato, o que está abaixo? O conhecimento dos segredos de Deus não está destinado a esta vida. Mergulhados em trevas profundas, batem-nos uns contra os outros e atingimo-nos ao acaso em meio a essa noite, sem saber precisamente por que combatemos. Se quisermos refletir atentamente sobre tudo isso, não haverá homem razoável que não conclua que devemos ter indulgência para com as opiniões dos outros, e reconhecer seu direito. Todas essas observações não são alheias ao fundo da questão, que consiste em saber se os homens devem se tolerar; pois, se elas provam o quanto houve de enganos de parte a parte em todos os tempos, provam também que os homens precisaram, em todos os tempos, tratar-se com indulgência. (Nota de Volta ire.) 111. O dogma da fatalidade é antigo e universal; encontra-se a todo momento em Homero. Júpiter queria salvar a vida de seu filho Sarpédon; mas o destino o condenou à morte e Júpiter teve de obedecer. Entre os filósofos, o destino era, ou o encadeamento necessário das causas e dos efeitos necessariamente produzidos pela natureza, ou esse mesmo encadeamento ordenado pela Providência, o que é bem mais razoável. Todo o sistema da fatalidade está contido nesta frase de Sêneca (epístola CV1I): Ducunt volentem fata, nolentem trahunt [Os fatos guiam a quem se deixa levar, arrastam a quem resiste]. Sempre se esteve de acordo com que Deus governava o universo por leis eternas, universais, imutáveis. Essa verdade foi a origem de todas as disputas ininteligíveis sobre a liberdade, porque jamais se definiu a liberdade, até surgir o sábio Locke. Este demonstrou que a liberdade é o poder de agir. Deus concede esse poder; e o homem, agindo livremente segundo as ordens eternas de Deus, é uma das rodas da grande máquina do mundo. Toda a Antiguidade discutiu sobre a liberdade; mas até os nossos dias ninguém foi perseguido por isso. Que horror absurdo terem aprisionado, exilado, por causa dessa disputa, um Arnauld, um Sacy, um Nicole e tantos outros que foram a luz da França! (Nota de Voltaire.)
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112. O romance teológico da metempsicose vem da Índia, da qual recebemos muitas outras fábulas sem que geralmente o saibamos. Esse dogma é explicado no admirável décimo quinto livro das Metamorfoses de Ovídio. Foi aceito em quase toda a terra e sempre foi combatido; mas não sabemos de nenhum sacerdote da Antiguidade que alguma vez tenha dado uma ordem de prisão a um discípulo de Pitágoras. (Nota de Voltaire.) 113. Nem os antigos judeus, nem os egípcios, nem seus contemporâneos gregos acreditavam que a alma do homem fosse para o céu após a morte. Os judeus pensavam que a Lua e o Sol estavam a algumas léguas acima de nós, no mesmo círculo, e que o firmamento era uma abóbada espessa e sólida que sustentava o peso das águas, que escapavam por algumas aberturas. O palácio dos deuses, entre os antigos gregos, encontrava-se no monte Olimpo. A morada dos heróis após a morte situava-se, no tempo de Homero, numa ilha além do oceano, e era esta a opinião dos essênios. Desde Homero, atribuíram-se planetas aos deuses, mas para os homens não havia mais razão de colocar um deus na Lua do que para os habitantes da Lua de colocar um deus no planeta Terra. Juno e Íris não tiveram outros palácios, a não ser as nuvens; lá não havia onde repousar o pé. Entre os sabeus, cada deus tinha sua estrela; mas sendo uma estrela um sol, não há como habitá-la, a menos que se tenha a natureza do fogo. Portanto é uma questão bastante inútil perguntar o que os antigos pensavam do céu. A melhor resposta é que não pensavam. (Nota de Voltaire.) 114. São Mateus, capo XXII, V. 4. (Nota de Voltaire.) 115. São Lucas, capo XIV. (Nota de VoltaireJ 116. Versículo 23. eM.) 117. Lucas, XIV, 12. (M.) 118. São Lucas, capo XIV, V. 26 e ss. (Nota de Voltaire.) 119. São Mateus, capo XVIII, V. 17. (Nota de Voltaire.) 120. Mateus, XI, 19. (M.) 121. Marcos, XI, 13. (M.) 122. Lucas, XV. (M.) 123. Mateus, XX. (M.) 124. Lucas, X. (M.) 125. Mateus, IX, 15. (M.) 126. Lucas, VII, 48. eM.)
127. João, VIII, 11. (M.) 128. João, lI, 9. (M.) 129. Mateus, XXVI, 52; João, XVIII, 11. (M.) 130. Lucas, IX, 55. (M.) 131. Lucas, XXIII, 34. (M.) 132. Lucas, XXII, 44. (M.) 133. São Mateus, capo XXIII. (Nota de Voltaire.) 134. Ibid., capo XXVI, V. 59. (Nota de Voltaire.) 135. Mateus, capo XXVI, V. 61. (Nota de Voltaire.) 136. Mateus, capo XXVI, V. 63. (M.) 137. Era de fato muito difícil aos judeus, para não dizer impossível, compreender, sem uma revelação particular, esse mistério int~ fável da encarnação do Filho de Deus, do próprio Deus. O Gênesis (cap. VI) chama filhos de Deus os filhos dos homens poderosos; do mesmo modo, os grandes cedros, nos salmos (LXXIX, 11), são chamados cedros de Deus. Samuel (J. Reis, XVI, 15) diz que um terror de Deus tomou conta do povo, ou seja, um grande terror; um grande vento, um vento de Deus; a doença de Saul, melancolia de Deus. No entanto, parece que os judeus entenderam literalmente que Jesus se disse filho de Deus no sentido próprio; mas, se consideraram essas palavras uma blasfêmia, talvez seja uma prova a mais de sua ignorância a respeito do mistério da encarnação e de Deus, filho de Deus, enviado ã terra para a salvação dos homens. (Nota de Voltaire.) 138. Mateus, XXVI, 64. (M.) 139. Acta apost., XXV, 16. (M.) 140. Capítulo 13, "Admoestação mui respeitosa aos Inquisidores da Espanha e Portugal". 141. Em 1653, o papa havia condenado no Augustinus de Jansenius cinco proposições. Os jansenistas opuseram uma longa resistência, baseando-se no fato de que elas não aparecem literalmente no Augustinus. 142. João, XIV, 28. (M.) 143. La Rochefoucauld, máxima 223. 144. Quando escrevíamos assim, em 1762, a ordem dos jesuítas não havia sido abolida na França. Se eles tivessem sido injustiçados, o autor certamente os teria respeitado. Mas que se saiba para sempre que foram perseguidos apenas porque haviam sido perseguidores; e
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que seu exemplo faça tremer aqueles que, sendo mais intolerantes que os jesuítas, gostariam de oprimir um dia os concidadãos que não abraçassem suas opiniões duras e absurdas. (Nota de Voltaire.) Essa nota foi acrescentada em 1771. (M.) 145. O padre Le Tellier foi o confessor de Luís XIV ao final de sua vida. Acusavam-no de haver inspirado a política intolerante do rei. 146. A pólvora de canhão. (M.) 147. Em 1714, ano em que Voltaire supõe ter sido escrita a carta que forma esse capítulo, só existiam na França doze parlamentos. (M.) 148. Essa inicial é a do nome de Ravaillac; é o próprio Voltaire que o informa em seu Avis au public sur les parricides imputés aux Calas e aux Sirven [Esclarecimento ao público sobre os parricídios imputados aos Calas e aos Sirvenl. (M.) 149. Act., v. 29. (M.) 150. Voltaire fala também dessa seita, sem dar seu nome, num adendo ao artigo "Batismo" do Dictionnaire philosophique (1767) e no capítulo 42 de Dieu et les hommes (1769). 151. Voltaire refere-se a oito crianças ressuscitadas, em seu verbete sobre São Francisco Xavier do Dictionnaíre philosophique. (M.) 152. O arrabalde Saint-Marceau, no bairro que conserva ainda hoje esse nome, um dos bairros mais miseráveis de Paris no século XVIII, onde se encontravam o cemitério de Saint-Médard e o túmulo do diácono Pâris, local de reunião dos "convulsionários" jansenistas. Uma pediculose é uma doença "na qual se forma um grande número de piolhos" (Littré). 153. I. Cor., XV, 36. (M.) 154. Veja-se o excelente livro intitulado Le manuel de I1nquísition. (Nota de Voltaire.) - O livro que Voltaire recomenda aqui, com razão, é Le manuel des inquísiteurs à l'usage des Inquisitions d'Espagne et de Portugal, ou Abrégé de l'ouvrage intitulé Directorium inquisitorum, composé, vers 1358, par Nicolas Eymerie, etc., 1762, in12; o autor do Manual é o abade Morellet. (B.) 155. É de acordo com a obra do abade Morellet, citada na nota precedente, que redijo os nomes Cuchalon, Roias e Felynus (em vez de Chucalon, Royas e Telinus que se lêem em outras edições). Os nomes Gomarus, Diabarus e Gemelinus me parecem também alterados; procurei-os em vào, não somente na obra de Morellet, mas ainda em vários bibliógrafos nacionais e profissionais; em vez de Gomarus,
Gemelinus, talvez devêssemos ler Gomez e Geminianus, mas não posso explicar Diabarus. (B.) 156. Lucas, X, 27. (M.) 157. O abade Malvaux. Veja-se a nota 38. (M.) 158. Do abade de Caveyrac. 159. Négociations en Hollande, 6 vol., 1752-53. (M.) 160. Veja-se acima, capítulo XVII. (M.) 161. Aqui termina o Traité de la tolérance na edição de 1763; o artigo que segue foi acrescentado, em 1765, na impressão que faz parte do segundo tomo de Nouveaux mélanges. (M.) 162. O arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, imitado por alguns bispos de província, decidiu recusar os últimos sacramentos aos agonizantes que não apresentassem um bilhete de confissão assinado por um padre não jansenista; a conseqüência era que o defunto não obtinha a sepultura cristã. Disso resultou uma forte agitação popular, apoiada pelo parlamento de Paris. Luís XV só conseguirá pôr fim a ela, mediante um compromisso, em 1757. - O padre La Valette, missionário jesuíta nas Antilhas, havia se lançado, sem o conhecimento dos superiores, em vastas operações comerciais. Foi à bancarrota, arrastando em sua ruína banqueiros de Marselha. A Companhia recusou-se a reembolsar os credores do padre La Valette e preferiu levar o caso ao parlamento de Paris, muito hostil aos jesuítas. As medidas tomadas pelo parlamento culminaram na supressão da Companhia de Jesus na França (1764) e em seu banimento (1767). 163. Por d'Alembert, 1765, in-12; 1767, in-12; e nas Obras deste autor. (M.) 164. Mémoire à consulter et Consultation pour les enfants du défuntj. Calas, marchand à Toulouse. Deliberado em Paris, em 22 de janeiro de 1765. Assinado: Lambon, Mallard, d'Outremont, Mariette, Gerbier, Legouvé, Loyseau de Mauléon, Élie de Beaumont. (M.) 165. Em 1744, os exércitos ingleses e austríacos invadiam a Lorena e a Alsácia. Luís XV assumiu pessoalmente o comando do exército. Chegando a Metz, cai gravemente enfermo. Teme-se por sua vida. Esse acontecimento suscitou em todo o reino uma emoção intensa. O povo afluía às igrejas para pedir a Deus a cura do rei. Foi então que Luís XV recebeu o cognome de Bem-Amado.
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Bibliografia
1. Outros textos de Voltaire sobre a tolerância:
La Henriade (1728), em Oeuvres completes, The Volta ire Foundation, Oxford, 1970, t. II, em particular cantos II (a Noite de São Bartolomeu) e V (assassinato de Henrique IIO. Zafre, tragédia (1732), em Oeuvres completes, The Voltaire Foundation, Oxford, 1988, t. VIII. Lettres pbilosopbiques(1734), ed. Lanson, nova tiragem, Paris, Didier, 1964,2 vol. Mabomet, tragédia (1741), em 1béâtre do XVII!' siecle, t. I, p. p. J. Truchet, Bibliotheque de la Pléaide, 1972. La loi naturelle (1752), em Oeuvres completes, ed. L. Moland, Paris, Garnier, 1877, t. IX. Textos de Voltaire em favor dos Calas (1762) em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XXIV, pp. 365-411. Dictionnaire pbilosopbique (1764-1765), art. "Tolérance", Paris, GF, 1964. Relation de la mort du cbevalier de La Barre (1766), em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. xxv, pp. 503-16. Avis au public sur /es parricides imputés aux Calas et aux Sirven (1766), em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XXV, pp. 517-37. Questions sur l'Encyclopédie, art. "Tolérance" (1772), em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XX. Le cri du sang innocent (1775), a Luís XVI, por uma revisão do processo La Barre, em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XXIX, pp.375-89.
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Voltaire, L'aifaire Calas, prefácio de ). Van den Henvel, Paris, Folio, 1975 (textos de Voltaire sobre os casos Calas, Sirven, Lally, La Barre).
2. Sobre o caso Calas: BIEN (David D.), 1be Calas Affair, Princeton, 1960. CHOSSAIGNE (Marc), L'aifaire Calas, Paris, Perrin, 1929. ORSONI Qean), L'aifaire Calas avant Voltaire, tese de Terceiro Ciclo, Université de Paris-Sorbonne, 3 vol., exemplares datilografados, 1981. POMEAU (René), "Nouveau regard sur le dossier Calas", Europe, junho de 1962. POMEAU (René), "Volta ire et Rousseau devant l'affaire Calas", em Voltaire, Rousseau et la toleránce, Amsterdam, Maison Descartes, 1980.
3. Sobre a questão da tolerância: BAYLE (Pierre), Oeuvres diverses, p. p. Alain Niderst, Paris, "Les classiques du peuple", 1971. BAYLE (Pierre), Ce que c'est que la France toute catholique, Paris, Vrin, 1973, ed. por E. Labrousse com a colaboração de H. Himelfarb e R. Zuber. LOCKE (John), Lettre sur la tolérance, texto latino e tradução francesa, introdução e tradução de R. polin, Paris, P.u.F., 1965. Número especial da Revue de la Société d'histoire du protestantisme jrançais: atas do colóquio sobre o segundo centenário do Edito de Tolerância de 1787, Paris, 9-11 de outubro de 1987. La tolérance, république de l'esprit, atas do colóquio "Liberté des consciences, conscience des libertés", Toulouse, 26-28 de novembro de 1987, Paris, "Les Bergers et les Mages", 1988. POMEAU (René), La religion de Voltaire, Paris, Nizet, 1969. POMEAU (René), "Une idée neuve au XVIII< siêcle, la tolérance", na Revue de la Societé d'histoire du protestantisme jrançais, acima. POMEAU (René), "Voltaire et la tolérance", em La tolérance, réPublique de l'esprit, acima.
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