PECADO ORIGINAL INTRODUÇÃO Uma antropologia completa deve levar em conta os dados da Revelação, porque o homem não é só um ser criado como os outros, mas tem um fim próprio (uma teleologia própria) ligado à natureza de ser inteligente. Todo ser criado tem uma teleologia que o transcende, pelo próprio fato de ser obra de um Deus transcendente. Instruídos, no entanto, pela Revelação Divina, sabemos que o homem foi chamado, já desde suas origens, a participar intimamente da vida divina e da familiaridade com Deus (justiça original); e que, por uma livre e pessoal transgressão do plano divino, ele se tornou réu de culpa, perdendo com isso os direitos de filho, que, muito acima dos dons puramente naturais, Deus lhe concedera (pecado original originante). Esta perda voluntária e responsável da adoção inefável no seio da família divina é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem (pecado original originado). Com efeito, por este pecado pessoal primitivo, toda a humanidade nasce ferida na sua íntima elevação sobrenatural, isto é, nasce privada do que de mais sublime pôs nela a livre bondade criadora de Deus: a condição de filho adotivo. Tal privação, causada pelo pecado pessoal do primeiro homem, torna-se, em cada um de seus descendentes, pecado da natureza, próprio de cada indivíduo, pelo fato mesmo de ser homem. Sendo esta condição de filho um dom gratuito de Deus, é evidente que, por suas próprias forças, jamais poderia o homem recuperá-la. Sem dúvida, isto não se pode conhecer pela razão, nem existe documento histórico capaz de dissipar as névoas que envolvem a origem da humanidade. Mas o dogma do pecado original é o núcleo da antropologia revelada, sem o qual não se pode compreender a antiga esperança de um Redentor, nem Sua vinda na pessoa de Cristo, nem a existência da Igreja e dos sacramentos instituídos pelo Senhor Jesus para recuperar, conservar e aperfeiçoar aquele estado de justiça original. O dogma do pecado original projeta sobre o homem uma visão ao mesmo tempo realista e otimista. Realista, ou seja, o homem não é onipotente: por mais que se exalte sua dignidade, sua poderosa inteligência, seu domínio sobre o mundo, toda a sua atividade humana é insuficiente para lhe devolver a condição perdida de filho de Deus a que foi chamado e em que consiste a vida eterna. A Igreja, desde os tempos de Pelágio, teve sempre que defender esta verdade contra o naturalismo racionalista, que reduz a ordem sobrenatural da salvação ao esforço da vontade humana. Além disso, o pecado original explica, de modo coerente e realista, o estado atual da natureza humana: porque o pecado original debilitou a vontade e obscureceu a inteligência do homem de tal modo que, ainda quando se decide pelo bem, continua atraído para o mal; isto é o que se chama concupiscência. Não é pessimista esta visão realista do homem. Embora inclinada ao mal, a natureza humana não é intrinsecamente corrompida, como pensava Lutero (que se pôs nos antípodas de Pelágio). Pelo contrário, afirma a doutrina católica que o homem, mesmo no estado atual, pode conhecer com certeza as verdades religiosas de ordem natural, e ser transformado interiormente pela graça de Cristo para recuperar a justiça original. Sem correta concepção do dogma do pecado original, é impossível compreender a doutrina católica sobre a justificação, defendida pelo Concílio de Trento contra as posições luteranas. Entre estes dois desvios extremos – o otimismo pelagiano, que identifica as possibilidades da natureza com a graça de Deus, e o pessimismo luterano, que exalta a graça divina sobre as ruínas da liberdade humana -, a Fé católica mantém um equilíbrio realista que pode ser resumido nestes cinco pontos: 1) Adão foi constituído em justiça e santidade.
2) Houve uma falta original cometida por Adão; como conseqüência desta falta, Adão foi privado da justiça e santidade, ferido na própria natureza e sujeito à morte. 3) Por causa deste pecado de Adão, perderam seus descendentes a justiça original, e cada pessoa herda esta culpa com verdadeiro caráter de pecado próprio em cada um, transmitido por geração e não por mera imitação [propagatione, non imitatione, transfusum omnibus inest unicuique proprium], e ficaram sujeitos à morte. 4) Este pecado (original) só pode ser remido pelos méritos de Jesus Cristo e sua remissão se aplica também aos recém-nascidos por meio do Batismo, que lhes restitui a santidade e o direito à vida eterna. Mas o Batismo não os livra da concupiscência, que, aliás, não se identifica com o pecado. 5) Só o monogenismo é compatível com o dogma do pecado original [de pecato originali, quod procedit ex peccato vere commisso ab uno Adamo].
Concílio de Cartago O primeiro ataque sério, dentro da Igreja, contra a doutrina do pecado original proveio do pelagianismo. Pelágio, monge de origem irlandesa, vivia em Roma no começo do século V. Seu severo ascetismo e as duras pregações que fazia contra a dissolução dos costumes na capital de um império decadente deramlhe grande prestígio entre seus discípulos. Ao entrarem em Roma as tropas de Alarico (410), fugiu para a Sicília e depois para Cartago, junto com o advogado Celéstio, continuando a pregar com ardor o mais rigoroso moralismo, baseando-se nas exigências da natureza e insistindo na eficácia do esforço humano, para conseguir a virtude, deixando pouco ou quase nada à ação de Deus na conquista da salvação. É claro que esta ascética dependia de uma teologia que implicava a reinterpretação da doutrina católica do pecado original. Segundo Pelágio, o pecado de Adão não teve outra conseqüência para seus descendentes senão a de ter dado um mau exemplo. Além disso, um e outros eram mortais antes do pecado e nascem em igualdade de condições. Adão e seus descendentes – para Pelágio – podiam salvarse só com o esforço da vontade, sem que, para Adão, fosse necessária a graça, e, para as crianças, necessário o Batismo. Santo Agostinho (354-430) percebeu logo a gravidade de tais afirmações e imediatamente foram elas condenadas num sínodo em Cartago (411). Cinco anos depois (416) ocuparam-se da doutrina pelagiana outros dois novos sínodos: um em Cartago (63 bispos), outro em Milevi (59 bispos). Ambos foram confirmados pelo Papa Inocêncio I. A esta confirmação alude Santo Agostinho quando exclamou: “Causa finita est!” Mas o assunto não se encerrou. Vai a Roma Celéstio e consegue fingidamente, com rodeios à doutrina pelagiana, que o Sucessor de Inocêncio I, o Papa Zózimo (417-418), absolva Pelágio. Insistem os bispos africanos e o Papa lhes responde que está disposto a ouvi-los e que sua decisão anterior não fora definitiva. Chega a Cartago a carta de Zózimo no dia 29.04.418. A 1º de maio se reúnem mais de 200 bispos e suas decisões mais importantes sobre o pecado original e a graça foram confirmadas pelo Papa, e integradas, vinte anos depois, numa coleção, recolhida provavelmente por São Próspero de Aquitânia, conhecida pelo nome de Indiculus e aceita pela Igreja como expressão de sua Tradição. O cânon 1 recorda que a morte de Adão foi conseqüência do pecado e não uma necessidade já predisposta; o cânon 2 confirma: a) que as crianças podem ser batizadas; b) que o Batismo das crianças redime o pecado original, no sentido verdadeiro e próprio. Ainda que não trate de precisar uma interpretação de Rm 5, 12, fundamenta, no entanto, na exegese tradicional e universal de tal texto a Fé da Igreja sobre o pecado original. O conteúdo deste cânon 2 é expressamente referendado pelo Papa
Zózimo e pelo Indiculus. Quanto ao cânon 1, é mais difícil encontrar uma confirmação oficial com valor universal. Texto: Hrd 1, 926-927; PL 56, 486-487 Cânon 1. Foi decidido [placuit] por todos os bispos (…), reunidos no santo Concílio da Igreja em Cartago, que: quem disser que Adão, o primeiro homem, foi criado mortal, de modo que, pecasse ou não pecasse, teria de morrer corporalmente [in corpore], isto é, que sairia do corpo não por castigo do pecado mas por necessidade da natureza, – seja anátema. Cân. 2. Igualmente, foi decidido [placuit]: quem negar que as crianças recém-nascidas [parvulos recentes ab uteris matrum] devam ser batizadas, ou disser que, efetivamente, são batizadas para a remissão dos pecados, mas que de Adão nada herdaram do pecado original que tenha de ser expiado pelas águas do Batismo [lavacro regenerationis], donde se conclua que nelas a fórmula batismal “para a remissão dos pecados” deva ser entendida não como verdadeira, mas falsa – seja anátema. Porque aquilo que diz o Apóstolo: “Por um só homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram” (Rm 5, 12), não deve ser entendido de modo diferente de como sempre o entendeu toda a Igreja Católica. E é, com efeito, por esta regra de Fé que também as criancinhas, incapacitadas ainda de cometer pecados pessoais, são verdadeiramente batizadas para a remissão dos pecados, a fim de que, na regeneração [batismal], se purifique [mundetur] nelas o que pela geração contraíram.
Indiculus (séc. V) Este documento é uma espécie de Syllabus, no qual se expõe a Fé tradicional sobre a graça, para defender Santo Agostinho de seus adversários. Foi atribuído ao papa Celestino I, porque desde o século VI aparece junto com a carta que este dirigiu aos bispos das Gálias (431), a pedido de São Próspero de Aquitânia e de Santo Hilário de Poitiers, grandes defensores do bispo de Hipona. O indiculus foi provavelmente composto por São Próspero e seu valor foi em toda a parte reconhecido como expressão da Tradição da Igreja sobre a graça. Assim o afirma o Papa São Hormisdas numa carta a Possessor de 13.08.520. Cap. 1. Na desobediência de Adão todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocência, e ninguém teria podido, pelo livre-arbítrio, erguer-se do abismo daquela ruína, se a graça do Deus misericordioso não o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocência, de feliz memória, na carta ao Concílio de Cartago: “Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbítrio, ao usar insensatamente seus próprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opressão desta ruína se mais tarde não o tivesse levantado, com Sua graça, a vinda de Cristo, que, por meio da purificação de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as águas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada”. Carta Sicut rationi do Papa Hormisdas (13.8.520) A autoridade do Indiculus foi confirmada pelo Papa Hormisdas nesta carta ao bispo africano Possessor. 5. O que crê e professa a Igreja Romana, isto é, a Igreja Católica, sobre o livre-arbítrio e a graça de Deus – ainda que possa ser abundantemente conhecido por vários livros do Bem-Aventurado Agostinho,
principalmente os dirigidos a Hilário e a Próspero – está contido também em documentos específicos dos arquivos eclesiásticos; se não os tendes e os credes necessários, vo-los enviaremos (…). Concílio de Orange (3.7.529) Reuniu-se este concílio provincial, presidido por São Cesário de Arles (470-543), para acabar com as controvérsias semipelagianas. Ainda que o objeto primeiro do concílio fosse o problema da graça, seus dois primeiros cânones reafirmaram a doutrina tradicional sobre o pecado original. O primeiro trata dos efeitos malignos que a culpa de Adão trouxe ao homem, inclusive em suas faculdades espirituais; o segundo volta a condenar a doutrina pelagiana, como já o fizera o XVI Concílio de Cartago. TEXTO: Msi 8,712. Cânon 1. Se alguém disser que, pelo pecado de Adão, o homem todo não “foi mudado para pior”, isto é, segundo o corpo e a alma, mas, seduzido pelo erro de Pelágio, julgar que, ficando ilesa a liberdade da alma, só o corpo está sujeito à corrupção, contradiz a Escritura, que diz: “A alma que pecar morrerá” (Ez 18, 20) e “Não sabeis que, se vos entregais a alguém como escravos para obedecer, ficais escravos daquele a quem obedeceis?” (Rm 6, 16) e “pois fica-se escravo daquele por quem foi vencido” (2 Pd 2, 19). Cân. 2. Se alguém afirmar que o pecado de Adão prejudicou só a ele e não também a sua descendência, ou declarar que por um só homem passou a todo o gênero humano só a morte do corpo, que certamente é pena do pecado, mas não também o pecado, que é a morte da alma, atribuirá a Deus injustiça, contradizendo o Apóstolo, que diz: “Por um só homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram” (Rm 5, 12).
Concílio de Trento – Decreto Ut fides (sess. V – 17.6.1546) Os decretos da quinta sessão contêm normas para o ensino da Sagrada Escritura nas catedrais, nos mosteiros e na pregação ao povo. A única parte dogmática é dedicada ao pecado original, tendo em vista particularmente a identificação luterana entre pecado original e concupiscência inata e constante do homem. Como o Batismo não apaga a concupiscência, Lutero entendia que ele também não destrói o pecado, nem haveria por que administrá-lo às crianças, porque elas não precisariam dele para entrar na vida eterna. Concordava, portanto, com os pelagianos ao declarar inútil o Batismo das crianças, mas por motivos opostos: os pelagianos, porque, segundo eles, Adão não teria transmitido a seus descendentes senão um mau exemplo; Lutero, porque as crianças são incapazes de concupiscência. Outros, como Erasmo, negavam que a passagem de Rm 5, 12 se referisse ao pecado original; outros ainda, hereges antigos (valentinianos, maniqueus e priscilianistas) negavam que o pecado original fosse transmitido aos filhos de pais cristãos. Por tudo isso, não quis limitar-se o concílio aos erros particulares de Lutero, mas examinou a questão de modo global, em cinco densos cânones, aos quais juntou uma declaração que renova as constituições de Sixto IV (27.2.1477 e 4.9.1483) sobre a Imaculada Conceição, para manifestar explicitamente que não era sua intenção incluir no decreto sobre a universalidade do pecado original a Bem-Aventurada e Imaculada Virgem Maria. DECRETO UT FIDES
Proêmio Para que nossa fé católica, “sem a qual é impossível agradar a Deus” (Hb 11, 6), extirpados os erros, permaneça íntegra e incorrupta em sua pureza, e o povo cristão “não seja levado ao sabor de qualquer vento de doutrina” (Ef 4, 14) uma vez que aquela “antiga serpente” (Ap 12, 9; 20, 2), perpétua inimiga do gênero humano, entre os muitíssimos males que afligem a Igreja de Deus em nosso tempo, suscitou não só novas mas até velhas dissenções também sobre o pecado original e seu remédio: o sacrossanto, ecumênico e universal Concílio de Trento, legitimamente reunido no Espírito Santo, sob a presidência dos mesmos três Legados da Sé Apostólica, querendo desde já chamar novamente os extraviados e fortalecer os vacilantes, seguindo o testemunho da Sagrada Escritura, dos Santos Padres e dos mais autorizados Concílios, e o juízo e sentir [consensum] da própria Igreja, estabelece, confessa e declara o que segue sobre o pecado original. Das conseqüências do pecado de Adão 1. Se alguém não confessar que Adão, o primeiro homem [primum hominem Adam], ao transgredir o mandamento de Deus no paraíso, perdeu imediatamente a santidade e justiça em que tinha sido constituído, e que, pela ofensa deste pecado de desobediência [praevaricationis], incorreu na ira e indignação de Deus, e portanto na morte com a qual Deus o ameaçara antes (cf. Gn 3, 3), e, com a morte, no cativeiro sob o poder daquele que depois “teve o império da morte” (Hb 2, 14), isto é, o diabo, e que toda a pessoa de Adão, segundo o corpo e segundo a alma, por aquele pecado de desobediência foi mudada para pior [totumque Adam per illam praevaricationis offensam secundum corpus et animam in deterius commutatum fuisse] – seja anátema. Da transmissão à sua descendência 2. Se alguém afirmar que o pecado [praevaricationem] de Adão prejudicou só a ele e não à sua descendência; que a santidade e justiça recebida de Deus, que ele perdeu, a perdeu só para si e não também para nós; ou que, manchado pelo pecado de desobediência [per inobedientiae peccatum], “só transmitiu a todo o gênero humano a morte e as penalidades do corpo, mas não o pecado, que é a morte da alma” – seja anátema, pois contradiz o Apóstolo, que afirma: “Por um só homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e, com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram” (Rm 5, 12). Do remédio contra o pecado original 3. Se alguém afirmar que o pecado de Adão, que, por sua origem, é um só, transmitido a todos com a geração [propagatione] e não por imitação, inerente a cada um como próprio [propagatione, non imitatione, transfusum omnibus inest unicuique proprium], possa ser tirado [tolli] pelas forças da natureza humana ou por outro meio [remedium] que não seja pelos méritos do único Mediador [unius mediatoris], Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual, “feito justiça, santificação e redenção para nós” (1 Cor 1, 30), nos reconciliou com Deus em Seu sangue (cf. Rm 5, 9-10); ou negar que os próprios méritos de Jesus Cristo se aplicam tanto aos adultos como às crianças por meio do sacramento do Batismo, devidamente conferido segundo as diretrizes da Igreja – seja anátema. Porque “não há sob o céu outro Nome, dado aos homens, pelo Qual [in quo] devamos ser salvos” (At 4, 12). Daí aquela palavra: “Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira o pecado mundo” (Jo 1, 29). E a outra: “Todos os que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Gl 3, 27). Da necessidade do Batismo
4. Se alguém negar que devam ser batizadas as crianças recém-nascidas [recentes ab uteris matrum], ainda quando filhos [fuerint ... orti] de pais batizados, ou disser que são batizados para a remissão dos pecados, mas que de Adão nada contraem do pecado original que tenha necessidade de ser purificado [expiari] nas águas do Batismo [regenerationis lavacro], para alcançar a vida eterna, donde se conclua que a forma do Batismo para a remissão dos pecados se entende nelas, não como verdadeira, mas como falsa – seja anátema. Porque o que diz o Apóstolo: “Por um só homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte; e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram” (Rm 5, 12) não se deve entender de outro modo, mas como sempre o entendeu toda a Igreja Católica. Assim, por esta regra de Fé, recebida da Tradição Apostólica, até as crianças, que nenhum pecado pessoal puderam ainda cometer [nihil peccatorum in semetipsis adhuc committere potuerunt], são verdadeiramente batizadas para a remissão dos pecados, para que nelas, pela regeneração [batismal], se purifique o que pela geração contraíram [ut in eis regeneratione mundetur, quod generatione contraxerunt]. Porque “quem não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3, 5). Da natureza do pecado original 5. Se alguém negar que, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, conferida no Batismo, se dá a remissão [reatum (...) remitti] do pecado original, ou então afirmar que não se destrói [tolli] tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado, mas [disser] que apenas se risca [radi] ou não se leva em conta [imputari] – seja anátema. Pois nos batizados [in renatis] nada aborrece a Deus [nihil odit Deus], porque “nada há de condenação naqueles” (Rm 8, 1) que verdadeiramente “pelo Batismo estão sepultados com Cristo na morte” [consepulti sunt cum Christo per baptism in mortem] (cf. Rm 6, 4), que “não andam segundo a carne” (Rm 8, 1), mas, despojando-se “do homem velho e revestindo-se do homem novo, criado segundo Deus” [veterem hominem exuentes et novum, qui secundum Deum creatus est, induentes] (cf. Ef 4, 24; Cl 3, 9-10), se tornaram [effecti sunt] inocentes, imaculados, puros, sem mancha e filhos amados de Deus, “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” [heredes quidem Dei, coheredes autem Christi] (Rm 8, 17), de tal modo que nada há absolutamente que lhes possa retardar a entrada no céu. Ora, que a concupiscência ou inclinação ao pecado [concupiscentiam vel fomitem] permaneça nos batizados, confessa-o e reconhece [sentit] este santo concílio, concupiscência que, deixada para o combate, não pode causar dano aos que nela não consentem e virilmente resistem pela graça de Jesus Cristo. Pelo contrário, “quem tiver combatido segundo as regras receberá a coroa” (2 Tm 2, 5). Esta concupiscência – algumas vezes chamada “pecado” pelo Apóstolo (cf. Rm 6, 12-20; 7, 14.17.20) – declara o santo concílio que a Igreja Católica nunca a entendeu como pecado, como se, verdadeira e propriamente dito, fosse pecado nos [que são] batizados [in renatis], mas porque procede do pecado e ao pecado inclina [sed quia ex peccato est ad peccatum inclinat]. Se alguém, pois, pensar o contrário – seja anátema. Da isenção de Maria 6. Declara, no entanto, este concílio que não é intenção sua incluir neste decreto (em que trata do pecado original) a Bem-Aventurada e Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, mas que devem ser observadas as constituições do Papa Sixto IV, de feliz memória, sob pena de se incorrer nas sanções nelas contidas, que [agora] o concílio renova.
Erros de Miguel Baius Baius (Michel de Bay: 1513-1589), professor de teologia na Universidade de Louvain desde 1551, foi mandado como teólogo ao Concílio de Trento em maio de 1563. Assistiu às três últimas sessões e
colaborou na redação do decreto sobre o purgatório e na elaboração do Catecismo Romano. Tinha um sugestivo método de ensino: reduzia ao máximo a parte escolástica, com preferência para o estudo da Escritura e dos Santos Padres, principalmente Santo Agostinho. Mas frequentemente esquecia a Tradição da Igreja e o desenvolvimento do dogma para deter-se muito literalmente em certas afirmações agostinianas, sem levar em conta a unidade harmônica do pensamento do santo. Não é de estranhar, portanto, que logo viesse a ter dificuldades com as autoridades eclesiásticas. O erro fundamental de Baius está na concepção excessivamente otimista do estado primitivo do homem. O teólogo de Louvain reconhecia que a justificação e os dons concedidos a Adão não eram parte integrante da natureza humana, mas acrescentava que uma coisa e outra eram exigências da própria natureza do homem (cf. as proposições de n. 21, 23, 24, 26 e 78), e por isso pode-se dizer que eram naturais. Sem elas Deus não poderia criar o homem (prop. 55). Ora, Adão, por seu pecado pessoal, perdeu estes dons, e perdeu-os também para sua descendência, porque todo pecado pode ser transmitido (prop. 52), já que o voluntário não é da essência do pecado (prop. 46). Aqui Baius reage contra Pighi e Contarini, que identificavam o pecado original com o castigo nos descendentes de Adão. Segundo Baius, o pecado original é um pecado pessoal que se identifica com a concupiscência, porque o caráter de voluntário não é requisito para que haja pecado. Não é um mero castigo pela culpa de Adão, mas verdadeiro pecado pessoal. Como poderia Baius defender, depois do Concílio de Trento, que o pecado original se identificasse com a concupiscência? Respondia ele que o concílio negava a identificação nos batizados, in renatis, mas não nos outros. E acrescentava: se o Batismo apaga o pecado original e a concupiscência continua, é porque o Batismo perdoa o pecado original quanto à culpabilidade, mas não quanto ao ato: “transit reatu, manet actu”. Datam de 1552 as primeiras reclamações contra Baius, e as denúncias ocorreram na Sorbonne, na corte de Filipe II e em Roma. Em 27.6.1560 a Sorbonne condenou 18 proposições de Baius; em 1564, as Universidades de Alcalá e Salamanca impugnaram 9; e em 1.10.1567, depois de minucioso exame dos escritos de Baius, no qual tomou parte Francisco de Toledo, o Papa Pio V condenou 70 proposições do professor de Louvain com a Bula Ex omnibus afflictionibus. Por consideração à pessoa de Baius, a bula foi dirigida à Universidade de Louvain, mas não foi impressa nem afixada em público, o que deu margem a que alguns a considerassem apócrifa. Por isso, a pedido dos bispos dos Países Baixos, ela foi confirmada doze anos depois, por Gregório XIII, com a Bula Provisionis nostrae, de 29.1.1579. Os erros de Baius sobre o pecado, a graça, a liberdade, as relações entre a graça e a natureza foram condenados globalmente, sem especificação da correspondente censura teológica. . Bula Ex omnibus afflictionibus de Pio V (1.10.1567) [Proposições condenadas]
Do estado original 21. A elevação e exaltação da natureza humana à participação da natureza divina foi devida à integridade do estado original [primae conditionis], e, por isso, deve-se dizer que é natural, e não sobrenatural. 23. É absurda a sentença daqueles que dizem que o homem, originalmente [ab initio], foi elevado, por um especial dom sobrenatural e gratuito, acima do estado de sua própria natureza, a fim de que, pela Fé, Esperança e Caridade, prestasse sobrenaturalmente culto a Deus.
24. Homens inconsistentes [vanis] e ociosos, seguindo a tolice dos filósofos, inventaram a idéia, que deve ser atribuída ao pelagianismo, de que o homem foi de tal modo constituído desde o início que, por dons acrescentados à sua natureza, foi [sobrenaturalmente] elevado pela liberalidade do Criador e adotado como filho de Deus. [NOTA: Estes filósofos de que fala Baius, com tanto desprezo, são os Escolásticos.] 26. A integridade da primeira criação não foi uma elevação [exaltatio] não devida à natureza humana, mas [era] seu estado natural [naturalis eius conditio]. 55. Deus não poderia criar o homem no início, no estado em que agora nasce. 78. A imortalidade do primeiro homem não era benefício da graça, mas sua condição natural. Do pecado original 46. O [caráter de] voluntário [voluntarium] não pertence à essência e à definição do pecado, e nem é questão de definição, mas de causa e origem, [saber] se todo pecado deve ser voluntário. 47. Por isso o pecado original [peccatum originis] verdadeiramente tem caráter [rationem] de pecado, sem nenhuma relação ou referência à vontade, da qual teve origem. 48. O pecado original [peccatum originis] é voluntário na criança por [sua] vontade habitual, e habitualmente [habitualiter] a domina, porque ela não interpõe [non gerit] um ato de vontade contrário. 49. Da vontade habitual dominante segue-se que a criança que morre sem o sacramento do Batismo [regenerationis], se tivesse chegado ao uso da razão, teria odiado a Deus em ato [actualiter], blasfemado contra Ele e resistido à sua lei. 52. Todo pecado [scelus] é de tal natureza que pode corromper seu autor e todos os seus descendentes, do mesmo modo como o fez a primeira transgressão.
Profissão de Fé de Paulo VI (30.06.1968) A Profissão de Fé, ou Credo do Povo de Deus, encerrou o Ano da Fé proclamado por Paulo VI (19671968) e pretendia expressar a Fé Católica “levadas em conta as circunstâncias atuais”. Era lógico, portanto, que o Papa tratasse, com especial atenção, do dogma do pecado original, expondo as verdades fundamentais a que já nos referimos. Do pecado original 16. Cremos que em Adão todos pecaram, o que significa que a falta original, cometida por ele, fez com que a natureza humana, comum a todos os homens, caísse num estado tal em que padece as conseqüências dessa culpa. Este estado já não é aquele em que ela se encontrava antes em nossos primeiros pais, constituídos que foram em santidade e justiça, estado em que o homem não conhecia o mal nem a morte. A natureza humana assim decaída, despojada do dom da graça que a revestia, ferida nas suas próprias forças naturais e subjugada ao domínio da morte é que é transmitida a todos os homens; e neste sentido é que cada homem nasce em pecado. Professamos, pois, com o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza humana, “por propagação [com a geração],
não por imitação” e que, portanto, “é inerente a cada um como próprio” [propagatione, non imitatione, idque inesse unicuique proprium]. 17. Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Sacrifício da Cruz, nos resgatou do pecado original e de todos os pecados pessoais cometidos por cada um de nós, de modo que é verdadeira a sentença do Apóstolo: “Onde abundou o pecado superabundou a graça” (Rm 5, 20). 18. Cremos num só Batismo, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo para a remissão dos pecados, e que o Batismo deve ser conferido também “às criancinhas, que ainda não foram capazes de cometer algum pecado pessoal”, de modo que, tendo nascido privadas da graça sobrenatural, renasçam “da água e do Espírito Santo” (Jo 3, 5) para a vida divina em Jesus Cristo. A GRAÇA INTRODUÇÃO A lei da graça é como a atmosfera que dá oxigênio a toda a teologia católica; mais: o próprio conceito de teologia inclui o da graça, porque o cristianismo é uma religião revelada: não um produto da razão humana, mas um dom de Deus comunicado ao homem para lhe confidenciar Sua vontade misericordiosa. A teologia cristã, propriamente dita, nasce do estudo da Revelação, isto é, do debruçar-se sobre o que Deus revelou, de modo inteiramente gratuito, sobre Si mesmo, sobre o homem, sobre seu destino e do mundo. Sem esta mensagem vinda dos céus, e portanto sem a graça, é inconcebível a existência da teologia cristã, porque a Revelação, a que deve corresponder, da parte do homem, a humilde aceitação dos mistérios da Fé, é um conhecimento sobrenatural que eleva a humanidade a um novo modo de existir superior, intangível só por seus recursos naturais. É ainda a Revelação que nos diz o que Deus quis ser para nós e o que quis que fosse o homem para Ele: um amigo pessoal e próximo, que Se comunica no amor e na familiaridade recíproca, que Se dá ao homem numa doação absolutamente insuspeitada que penetra até o íntimo da natureza humana para elevá-lo às alturas inacessíveis em que habita a Trindade, onde então participará eternamente de uma vida semelhante à de Deus. Esta antropologia cristã é ensinada pela Sagrada Escritura quando narra que o homem foi constituído na justiça original, mas que a perdeu pelo pecado. Sem a noção da graça é impossível compreender esta antropologia e os problemas que lhe são inerentes na dialética cristã do natural-sobrenatural, da natureza-graça, muito menos ainda se pode compreender o que seja o pecado como ruptura transcendental das relações de amizade com um Deus que Se tinha dado gratuitamente ao homem. O Deus que infunde a graça não é, porém, um ser abstrato, um motor imóvel: é o único Deus verdadeiro e pessoal: Pai, Filho e Espírito Santo. Donde se conclui que a graça traz consigo a vida íntima do grande mistério da Trindade, porque ela é, na sua essência profunda, a doação das três Pessoas divinas, que penetram no homem transformando-o num templo. O pecado rompe esta comunhão sobrenatural com Deus: consumado o pecado, jamais poderia o homem, por suas próprias forças, restabelecer uma relação a que não tinha direito e que por culpa sua perdeu, tanto para si como para os seus descendentes. Por isso, já desde o início dos tempos se delineia a expectativa de um Salvador, que outro não é senão o próprio Filho de Deus, que Se encarna para reintegrar a humanidade na intimidade com Deus por meio de Sua morte e ressurreição: “Mas quando chegou a plenitude dos tempos Deus enviou Seu Filho [...] para que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4, 4.5). A graça toma assim uma coloração essencialmente cristológica e, desde as origens da humanidade, é conexa com a Obra de Cristo Salvador. Outra finalidade não tem qualquer ação de Jesus senão o superabundante restabelecimento da primitiva comunhão sobrenatural com Deus: “Mas onde
abundou o pecado superabundou a graça” (Rm 5, 20). Consuma-se a doação de Deus por meio da doação filial do Verbo Encarnado, o primeiro de uma multidão de irmãos que constituem a grande família dos filhos de Deus, da qual Ele é a Cabeça: esta é a Igreja, povo de Deus, constituída visivelmente, como convém ao mundo material em que se desenrola a vida humana, mas ao mesmo tempo instrumento eficaz da graça divina, que é, na realidade, a graça de Cristo. Jesus fundou a Igreja dando-lhe o caráter sacramental, capaz de alcançar o homem em cada instante de sua vida: tais são os sacramentos. Os santos que a Igreja venera são pessoas que foram dóceis ao dom de Deus: neles se contempla o modelo original do que pode ser a alma humana que não interpõe obstáculos à graça, porque a santidade, a que todos são chamados, outra coisa não é senão o fruto pleno da graça, que no seu desenvolvimento harmônico alicerça as grandes virtudes cristãs. Finalmente, a graça tem uma consumação final, individual, social e até cósmica na vida sem fim e na bem-aventurança eterna, com a dimensão corporal na ressurreição da carne. A graça, portanto, envolve toda a história da salvação, que conhecemos pela Revelação; ao mesmo tempo pressupõe a colaboração do homem: aqui nascem os delicados problemas do harmonioso equilíbrio que protege a liberdade humana. Surge também a questão de saber se o homem pode chegar, por si só, a estes fins sobrenaturais: “E se foi pela graça, não foi pelas obras; do contrário, a graça já não seria graça” (Rm 11, 6). Por tudo isso, voltamos à verdade inicialmente afirmada: a teologia católica respira inteiramente numa atmosfera de graça.
O Pelagianismo e o XVI Concílio de Cartago I. O PELAGIANISMO O primeiro ataque perigoso ao dogma católico do pecado original proveio do pelagianismo, que deitava raízes bem mais profundas: na negação da ordem sobrenatural e, portanto, da graça. Segundo os pelagianos Adão foi criado nas mesmas condições em que agora se acha o homem, ou seja, mortal e com todas as qualidades inerentes à natureza humana, sem nenhuma elevação sobrenatural à adoção divina e à participação da vida do Criador. Pelo pecado se tornou merecedor de castigo, mas a culpa – afirmam os pelagianos – permanece circunscrita só a ele, Adão, e não a seus descendentes, a não ser pelo mau exemplo. Além disso, tanto Adão como os seus descendentes possuem uma vontade livre, absolutamente independente de Deus e dotada de poderes ilimitados, quer para o bem, quer para o mal. São dois, portanto, os pilares e linhas mestras desta heresia: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural e a independência da vontade humana com relação a Deus. É claro que os pelagianos falam também da graça, mas para eles ela não passa de dons externos, como a Revelação, a lei, o exemplo de Cristo e sobretudo a liberdade, que é a capacidade de fazer o bem, que Pelágio chama graça por excelência.
XVI Concílio de Cartago (1.5.418)
Depois da denúncia de Santo Agostinho, foi trabalho deste concílio mostrar a inconsistência das teses pelagianas. 3. Igualmente foi decisão [deste concílio] que quem disser que a graça de Deus, pela qual o homem recebe a justificação [iustificatur] por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, só vale para a remissão dos pecados já cometidos, mas não como ajuda para não cometê-los – seja anátema**. [NOTA: Aqui a graça é designada por gratia qua iustificatur homo; no cânon 5, por gratia iustificationis. Pelo contexto deve-se entender a graça como um auxílio sobrenatural de Deus, essencialmente diferente da natureza. Compreende, portanto, a graça santificante e a graça atual.]
Graça e conhecimento 4. Igualmente, quem disser que a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor só nos ajuda a não pecar, porque por ela nos é revelado e manifestado o sentido dos preceitos [intellegentia mandatorum] para sabermos o que devemos desejar, o que evitar, mas que por ela não nos é dado amar também e fazer o que sabemos que deve ser feito – seja anátema. Porque, uma vez que diz o Apóstolo: “A ciência infla, mas a Caridade edifica” (1 Cor 8, 2), é terrivelmente ímpio crer que temos a graça de Cristo para obtermos a ciência que infla e não para obtermos a Caridade que edifica, uma vez que saber o que devemos fazer e o que devemos amar para fazê-lo são dons de Deus, porque a Caridade que edifica impede que a ciência possa inflar. E como de Deus está escrito: “Ele que dá [docet] ao homem a ciência” (Sl 93, 10), assim também está escrito: “O amor [Caritas] vem de Deus” (1 Jo 4, 7). 5. Igualmente foi decisão [deste concílio] que quem disser que a graça da justificação nos é dada para que mais facilmente possamos cumprir, pela graça, o que com o livre-arbítrio nos é mandado fazer, como se, ainda que não nos fosse dada a graça, pudéssemos sem ela, embora não facilmente, mas pudéssemos cumprir os mandamentos de Deus – seja anátema. Na verdade, o Senhor, ao falar dos frutos dos mandamentos, não diz: “Sem Mim mais dificilmente podeis fazer”, mas diz: “Sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 15). A graça faz evitar o pecado 6. Igualmente foi decisão [deste concílio] que – a propósito do que diz o Apóstolo São João: “Se dissermos que não temos pecado enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós” (1 Jo 1, 8) – quem o interpretar no sentido de que é preciso dizer que por humildade temos pecado, não porque verdadeiramente assim o seja – seja anátema. Porque o Apóstolo prossegue e acrescenta: “Mas se confessarmos os nossos pecados, [Deus] é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda iniqüidade (1 Jo 1, 9). Donde suficientemente se vê que isto não dizemos só por humildade, mas também por veracidade, já que o Apóstolo podia dizer: “Se dissermos ‘não temos pecado’ a nós mesmos nos exaltamos e a humildade não está em nós”. Mas assim como, ao contrário, disse: “Enganamo-nos anos mesmos e a verdade não está em nós”, mostra satisfatoriamente que quem disser que não tem pecado não diz a verdade, mas a falsidade. 7. Igualmente foi decisão [deste concílio] que quem disser que os santos na oração dominical dizem: “Perdoai as nossas ofensas” [debita nostra] (Mt 6, 12) não se referindo a si mesmos, porque já não têm necessidade deste pedido, mas aos outros de sua comunidade, que são pecadores, e que por isso cada santo individualmente não diz “Perdoai-me as minhas ofensas” [debita meã], mas “Perdoai-nos as
nossas ofensas” [debita nostra], de modo a entender que o justo não pede isto para si, mas antes para os outros – seja anátema. Santo e justo era de fato o apóstolo São Tiago quando dizia: “Com efeito, cometemos todos muitas faltas” (Tg 3, 2). Por que motivo, pois, acrescentou “todos” senão porque esta sentença se conciliava com o salmo, onde se lê: “Não chames a juízo o Teu servo, porque na Tua presença nenhum vivente é justo” (Sl 142, 2)? E na oração da sapientíssimo Salomão: “Não há ninguém que não peque” (3 Rs 8, 46). E no livro do santo Jó: “Na mão de todo homem Ele põe um selo para que o homem conheça suas obras” (Jó 37, 7). Por isso, também Daniel, santo e justo, ao dizer no plural sua oração: “Pecamos, cometemos iniqüidades” (Dn 9, 5.15), e tudo o mais que ali confessa com sinceridade e humildade, para que ninguém pensasse, como pensam alguns, que ele falasse não de seus pecados, mas antes dos pecados do seu povo, acrescenta: “Quando (…) orava e confessava os meus pecados e os pecados do meu povo” (Dn 9, 20) ao Senhor meu Deus, não queria dizer “os nossos pecados”, mas disse os seus pecados e os do povo, porque, como profeta, previu estes [hereges] que haveriam de entendê-lo tão mal. 8. Igualmente foi decisão [deste concílio] que todo aquele que pretender que as próprias palavras da oração dominical: “Perdoai-nos as nossas ofensas” [debita nostra] são ditas pelos santos por humildade e não para confessar uma realidade [ut humiliter, non veraciter hoc dicat] – seja anátema. Quem de fato pode admitir que se faça oração mentindo, não aos homens, mas ao próprio Deus, dizendo com os lábios que se quer ser perdoado, enquanto no coração se afirma não ter faltas [debita] a serem perdoadas? Embora o pelagianismo, como tendência a negar o mundo sobrenatural e a graça, sobreviva ainda em muitos espíritos, como problema dogmático a questão foi definitivamente liquidada nos concílios africanos do séc. V, aprovados pela Igreja universal, de tal modo que o pelagianismo propriamente dito acabou no séc. V. Outra coisa é o que chamaríamos semipelagianismo. O termo é relativamente moderno e seria melhor falar de antiagostinismo, porque na prática foi uma reação excessiva contra algumas frases de Santo Agostinho sobre a economia da graça e sobre a relação entre a livre vontade do homem e a ação de Deus na ordem da salvação. Santo Agostinho sempre defendeu a supremacia da graça ao sustentar quatro teses: 1. Todos os atos que conduzem à salvação são praticados com a ajuda da graça; 2. A salvação é um dom gratuito de Deus; 3. Deus quer a salvação de todos; 4. A liberdade humana permanece intacta, mesmo sob o influxo da graça. Quatro verdades que, já em vida de Santo Agostinho, parecia difícil conciliar. A resistência mais obstinada veio dos monges do sul da França: contra Santo Agostinho levantaram-se em particular João Cassiano e São Vicente de Lérins, que escreveu o Commonitorium, provavelmente dirigido, em polêmica, ao santo Doutor. Enquanto a tese agostiniana era de que Deus predestinava gratuitamente a quem Ele quisesse, a objeção dos adversários era de que pela graça inicial se exigem e bastam os próprios méritos, porque Deus geralmente concede a graça santificante àqueles que, no exercício da própria liberdade, dela se tornaram merecedores; caso contrário, nem haveria igualdade de condições para todos, nem se respeitaria a liberdade humana. São Próspero de Aquitânia e Santo Hilário de Poitiers, este de origem africana, ambos de vasta cultura, avisaram a Santo Agostinho e pediram ao Papa São Celestino I que defendesse o santo bispo com uma carta circular dirigida aos bispos das Gálias (431), mas Santo Agostinho já estava morto (430). Limitouse o Papa a defender a autoridade do santo bispo de Hipona, mas sem tomar posição em favor de todas as suas afirmações. No século seguinte São Cesário de Arles (501-542) conseguiu realizar um concílio em Orange (Arausicano II) e fazer condenar a teologia semipelagiana. As decisões do concílio foram depois aprovadas por Bonifácio II (530-532).
O Indiculus foi inicialmente atribuído a Celestino I porque desde o séc. VI aparece nos manuscritos junto com a citada carta aos bispos gauleses; hoje a tendência é atribuir sua autoria a São Próspero de Aquitânia. É fora de dúvida que o Indiculus é expressão da Fé tradicional da Igreja; tanto assim que foi inserido nas Decretais por Dionísio, o Pequeno (por volta do ano 500), e assim o recomenda o Papa São Hormisdas (514-523) ao bispo africano Possessor como um testemunho que reflete a autêntica Fé da Igreja. Porque alguns, que se gloriam do nome de católicos, persistindo, por malícia ou ignorância, nas idéias [já] condenadas dos hereges, ousam contradizer os pensadores de comprovada piedade [piissimis disputatoribus]; e embora não hesitem em anatematizar Pelágio e Celéstio, censuram, no entanto, nossos mestres como se tivessem exagerado e declaram que seguem e aprovam exclusivamente o que prescreveu e ensinou a sacratíssima Sé do Bem-Aventurado Apóstolo Pedro, pelo ministério de seus Pontífices, contra os que negam [contra inimicos] a graça de Deus: por isso, foi necessário averiguar diligentemente qual foi o juízo dos chefes da Igreja Romana sobre a heresia surgida em seu tempo e o que determinaram se devesse saber sobre a graça de Deus contra os perniciosos defensores do livrearbítrio. Acrescentaremos também algumas decisões dos concílios africanos, que sem dúvida as fizeram suas os bispos apostólicos, quando as aprovaram. Por isso, para que os que duvidam possam mais plenamente ser instruídos, damos a público num breve [indiculo], a modo de compêndio, as constituições dos Santos Padres, por meio do qual todo aquele que não for por demais obstinado identifique o ponto central nestas breves mas autorizadas citações que damos aqui e que, portanto, já não lhe sobra razão alguma para contestar, se quisermos pensar e falar de católicos.
Do pecado original e do livre-arbítrio Cap. 1. Na desobediência de Adão todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocência, e ninguém teria podido, pelo livre-arbítrio, erguer-se do abismo daquela ruína, se a graça do Deus misericordioso não o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocência, de feliz memória, na carta ao Concílio de Cartago: “Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbítrio, ao usar insensatamente seus próprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opressão desta ruína se mais tarde não o tivesse levantado, com Sua graça, a vinda de Cristo, que, por meio da purificação de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as águas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada”. Da necessidade da graça 2. Ninguém é bom por si mesmo se não lhe der a participação de Si Aquele que é o único Bom [qui solus est bônus] (cf. Mt 19,17; Mc 10,18; Lc 18,19). Isto é declarado no trecho da mesma carta do mesmo Pontífice, que diz: “Acaso podemos, daqui para a frente, esperar algo de bom daqueles espíritos que pensam que seja por mérito próprio que são justos, sem levar em consideração Aquele de quem recebem diariamente a graça e que confiam poderem conseguir tão grande coisa sem Ele? (Inocêncio I, Epistola In requirendis) 3. Ninguém, nem mesmo depois de ter sido renovado pela graça do Batismo, é capaz de escapar das ciladas do demônio e dominar as concupiscências da carne, se não receber de Deus a ajuda diária da perseverança na boa conduta. Isso é confirmado pelo ensinamento do mesmo bispo quando diz na mesma carta: “Porque embora tenha Ele redimido o homem dos pecados passados, mas sabendo que de novo podia pecar, muitos meios reservou para soerguê-lo, de modo que, ainda depois destes pecados, pudesse corrigi-lo, oferecendo-lhe diariamente remédios, sem cujo auxílio e sustentação jamais podemos
vencer os erros humanos. É de fato inevitável que, se vencermos com Seu auxílio, sejamos vencidos se Ele não nos ajudar”. 4. Que ninguém faça bom uso do livre-arbítrio senão pela graça de Cristo [per Christum] declara-o o mesmo doutor na carta ao Concílio de Milevi: “Ó doutrina perversa de mentes degeneradas, pensa também nisto: foi precisamente a liberdade que enganou o primeiro homem, de tal modo que, afrouxando com excessiva indulgência os freios, por presunção caiu no pecado. E dele não teria podido sair se a Providência não o tivesse restituído ao primeiro estado de liberdade com a regeneração da advento de Cristo” (Epístola Inter ceteras) 5. todo o empenho e todas as obras e méritos dos santos devem ser referidos à glória e louvor de Deus, porque ninguém O agrada senão por aquilo que Ele mesmo lhe dá. A esta afirmação nos dirige a legítima autoridade do Papa Zózimo, de feliz memória, quando, escrevendo aos bispos de todo o mundo, diz: “Nós, porém, por moção de Deus [instinctu Dei], tudo referimos à consciência dos nossos irmãos bispos, porque todos os bens devem ser atribuídos a seu Autor, donde provêm” (Zózimo, Tractoria 3). E os bispos africanos veneraram com tal honra estas palavras, que irradiam luz da mais pura verdade, que assim lhe responderam: “O que puseste na carta, que tiveste o cuidado de enviar a todas as províncias, dizendo ‘Nós, porém, por moção de Deus etc.’ compreendemos como se tu, ao atalhar rapidamente, tivesses decapitado com a espada da verdade aqueles que, contra o auxílio de Deus, exaltam a liberdade do arbítrio humano. O que, pois, fizeste com um arbítrio tão livre senão gravá-lo inteiramente na nossa consciência [in nostrae humilitatis conscientizam retulistis]? E no entanto, com Fé e sabedoria, compreendeste e com veracidade e confiança declaraste que isto foi feito por moção de Deus. E verdadeiramente assim é, porque “a vontade é preparada pelo Senhor” (Pr 8,35) e Ele move o coração de Seus filhos com paternais inspirações, para que façam algum bem [boni aliquid]. “Porque todos aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14), e assim nem pensemos que falta nosso arbítrio, nem duvidemos que em cada bom movimento da vontade humana tem mais força o Seu auxílio [magis illius valere non dubitemus auxilium]. 6. De tal modo Deus age nos corações dos homens e no próprio livre-arbítrio que um santo pensamento, um piedoso propósito e todo o movimento de boa vontade vêm de Deus, porque por Ele podemos algum bem, sem Ele nada podemos (cf. Jo 15,5). Para “fazer” esta profissão nos instrui o mesmo doutor Zózimo quando fala aos bispos do mundo inteiro sobre o socorro da graça divina: “Que tempo, pois, existe – diz ele – em que não necessitemos de Sua ajuda? Por conseguinte, em todos os nossos atos, dúvidas, pensamentos e sentimentos, deve ser invocado nosso Auxiliador e Protetor. Seria soberba, portanto, que a natureza humana, presumisse algo de si, quando clama o Apóstolo: “Nossa luta não é [só] contra a carne e o sangue, mas contra os principados e potestades [do inferno] (…), contra os espíritos malignos [espalhados] pelos ares” (Ef 6,12). E como ele mesmo diz outra vez: “Infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte? A graça de Deus por meio de Jesus Cristo Nosso Senhor” (Rm 7,24-25). E de novo: “Pela graça de Deus sou o que sou e Sua graça em mim não foi estéril; antes, tenho trabalhado mais que todos eles; não eu, mas a graça de Deus, que está comigo” (1 Cor 15,10).