2007-2

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  • Words: 65,132
  • Pages: 167
BOCA

LARGA caderno dos Doutores da Alegria

outubro 2007

Doutores da Alegria Arte, Formação e Desenvolvimento Gestão 2006-2008 conselho diretor Paulo Roberto Pereira - Presidente Claudia (Lala) Deheinzelin - Secretária Nicolas Schaeffter - Tesoureiro conselho fiscal Carmem Rittner Osvaldo de Alvarenga Roberto Mônaco grupo executivo coordenador geral Wellington Nogueira diretores Luis Vieira da Rocha Norma-Lyds Thais Ferrara coordenadores Ângelo Brandini Morgana Masetti Soraya Saide Tatiana Ramos

Boca Larga: Caderno dos Doutores da Alegria / n º 3 (outubro de 2007).- São Paulo: Doutores da Alegria, 2007 - anual. ISSN 1808-5083 1. Artes Cênicas- Periódicos. 2. Palhaços. 3. História de vida. 4. Saúde. CDU 792

supervisoras Daiane Carina Maeda Barbosa Renata Truzzi Simone Ribeiro ** * Caderno Boca Larga Redação organização Edson Lopes, Morgana Masetti & Beatriz Sayad

BOCA LARGA Caderno dos Doutores da Alegria outubro - 2007

edição e projeto gráfico Edson Lopes ilustração Edson Lopes & Orlando Pedroso (vinhetas) transcrições Global Translations revisão Dimas Munhoz Gomez & Edson Lopes diagramação e editoração Thaís Lari Braga CMN Arte Digital mobilização de recursos Edson Lopes, Maeda Barbosa e Milena Marques impressão e acabamento SR Gráfica papéis Cartão supremo & Reciclato/Suzano

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem autorização expressa dos organizadores e do editor. Boca Larga não se responsabiliza pelas opiniãoes emitidas pelos seus articulistas, colunistas e entrevistados Doutores da Alegria - Arte, Formação e Desenvolvimento Rua Alves Guimarães, 73 - Jardim América 05410-000 - São Paulo-SP Tel.: (11) 30615523 Fax: (11) 30615523 E-mail: [email protected] www.doutoresdaalegria.org.br

Impresso no Brasil - outubro de 2007.

Apresentações Beatriz Sayad histórias, máscaras e picadeiros... edson lopes vida em cena morgana masetti

Memórias de Palhaços e Comediantes entrevista com Nelson Garcia por edson lopes e maria rita oliveira

19

entrevista com Anchizes Pinto por morgana masetti, danielle barros e flávia reis

27

entrevista com Benedito Esbano por ângelo brandini, edson lopes e maria rita oliveira

37

entrevista com Walter di Carlo por morgana masetti

57

entrevista com Brasil João Carlos Queirollo por edson lopes e maria rita oliveira

71

entrevista com Walmir Chagas por luciano pontes e marcelino dias

85

entrevisa com Pirajá Bastos de Azevedo por morgana masetti e danielle barros

103

entrevista com Agostinho Blaske por ângelo brandini, edson lopes e maria rita oliveira

129

entrevista com José Barroso por edson lopes e maria rita oliveira

149

Agradecimentos

agostinho blaske, alexandre mathias, alice viveiros de castro, andré leite dos santos, ariel paulo rangel, arilson lopes, brasil joão carlos queirollo, beatriz pereira gonçalves, camila de almeida leal, carlos albuquerque, cira ramos, chico ribeiro, dani barros, diogo cardoso, dimas munhoz, emerson basso, erick s. krulikowski, fátima gaglianone, felipe de abreu alcântara, fernando escrich, fernando lobo, gabriel monteiro, josé barroso, josé ribamar bílio torres, juliana de moraes barbosa, marco antônio pereira gonçalves, marcos camelo, marcos. camilo, nice vasconcelos, pirajá bastos, raul hernando robayo, renato de abreu, sônia fátima beltram diaz, teófanes antônio leite da silveira, tiago malafaia marques da silva, thaís lari, thiago augusto santos silva, ulisver joão batista linhares, virgínia randmer, walmir chagas.

Quando pensamos em fazer uma introdução para esta edição do caderno Boca Larga, toda baseada em depoimentos, pensei: a introdução deve ser também um depoimento. A idéia de realizar entrevistas que contém um pouco da vida e do trabalho dos comediantes, e de construir, assim, uma matéria que não encontramos facilmente quando procuramos referências de palhaços brasileiros, nasce de duas fortes constatações que despontam do nosso dia a dia como palhaços em hospitais: a de que o registro atua determinantemente na transformação de uma experiência em algo a ser transmitido; e de que o trabalho dos Doutores da Alegria, malgrado a sua natureza efêmera, volátil, e a sua forte inclinação a escapar de tudo aquilo que categoriza, que fixa, que explica, provoca em nós, que o realizamos, talvez por tudo isso mesmo, uma imensa “vontade de contar”. E uma imensa vontade de ouvir. Aprendemos que falar sobre, escrever sobre (e o nosso trabalho tem muito a ver com isso) não só redimensiona a experiência vivida como também inspira a experiência por viver. Fazer e refletir (e considero aqui reflexão não

6 Doutores da Alegria

só como aquilo que se depreende da experiência mas, simplesmente, como aquilo que se escolhe para contar, aquilo que resta na memória) são coisas distintas mas nossa meta, muitas vezes, é encontrar essas intersecções. Para o palhaço, mesmo que essa não seja uma intersecção fácil, ela é necessária. Thinking in mouvement é o lema do ator, do palhaço, do performer, sobretudo quando o ambiente requer escolhas a cada instante de sua atuação, escolhas artísticas, éticas, poéticas. Assim, as histórias que formam este volume do Boca Larga, parte do projeto Memórias de Palhaços e Comediantes e que nos foram contadas, têm menos uma função histórica ou documental. Se fundam, na realidade, na crença de que o relato é algo que deve ser recuperado como possibilidade de transmissão de uma experiência cara, que não se esgota na pele de quem a viveu. E mais, de que o relato é, ele mesmo, um modo de perpetuar. Ele não repete a experiência, ele a perpetua mesmo ao modifica-la, ao transformá-la, justamente, em relato. Quem conta um conto aumenta um ponto, não é assim que se diz? A memória se

apresentação

cria, fortemente, na fala, na conversa, naquilo que fazemos quando nos encontramos para contar aos nossos, ou aos que chegam a nós, quem somos, de onde viemos, nossas pequenas peripécias, nossos grande sonhos. Donde a vontade de deixar que as entrevistas não perdessem esse caráter, que por vezes pode ser caótico, fragmentado, mas que, na medida em que nos familiarizamos com ele, nos habituamos, leitores-ouvintes que somos, a reconstruir as partes que faltam, a deduzir o que não está dito, a imaginar na palavra, na costura, aquilo que está implícito. Assim como no teatro, esperamos que as lacunas sejam antes um estímulo à imaginação do que uma impossibilidade de penetração neste mundo das memórias. Recolher depoimentos revelou-se para nós uma atividade quase teatral. Fadada ao instante, imprevisível (malgrado a estrutura que nos guiava), emocionante, transformadora. Para os que recolheram, para os que entregaram generosamente suas lembranças em falas organizadas, em histórias pessoais, em lapsos de cenas preciosas que não têm outro registro senão o corpo de

quem as inventou e viveu, em lágrimas, em risadas, em uma hora de conversa que não sintetiza mas anuncia toda uma vida, dedicamos esse caderno. E anunciamos, construtores de acervos de memórias que nos tornamos depois desta aventura que se prolonga até o próximo ano, com novas entrevistas interessadas em outras histórias de palhaços e comediantes, que em 2008 o Boca Larga será dedicado à pesquisa de linguagem que os palhaços dos Doutores da Alegria desenvolvem. O espaço da pesquisa é, para nós, o de uma investigação que não temos certeza de onde vai dar mas cujas perguntas se mostram efetivamente mobilizadoras de novos rumos. A idéia de que o registro altera nossa prática, de que ao contarmos aquilo que vivemos reencontramos de modo enriquecedor, formador, a experiência outrora efêmera do cotidiano, não para eternizá-la, mas para reavivá-la, nos convida a estender essa prática a nós mesmos, na certeza de que nossa experiência merece a multiplicidade das vozes que a constituem.

Beatriz Sayad

Doutores da Alegria

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histórias, máscaras e picadeiros... Reservamos um espaço especial da coleção Boca Larga, lançada anualmente, às histórias e narrativas — atividades de reconstrução do vivido — contadas por palhaços e comediantes, gravadas, transcritas e colecionadas a partir da generosidade daque-

zado, que uma história são muitas histórias e desdobramentos sócio-culturais que permaneceriam ocultos em lacunas na tentativa de se construir uma história “no singular” da trajetória do circo através de precários acervos e fontes. Esta é uma publicação de versões de palhaços e comediantes2.

les que cederam voluntariamente suas entrevistas, parcerias e apoios singulares — Global

Segundo Bachelard o conhecimento da intimidade pessoal, por meio das memórias, dá-

Translations, SR Gráfica, Museu da Pessoa.net e ESPM-RJ — e esforços conjuntos de integran-

se pela recordação dos espaços em que se passaram as vivências,pelo corpo marcado, e não

tes dos Doutores da Alegria das sedes de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.

do tempo. Por mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O tempo não anima a me-

A tentativa de coletar e reunir histórias de

mória tanto quanto o espaço e a cicatriz. A memória, para Bachelard3 não registra a duração

vida de palhaços e comediantes, algumas delas apresentadas neste volume, aparta-se da

concreta, bergsoniana4. Assim, pelo espaço é que se encontra os fósseis de uma duração concreti-

pretensão crítico-teórico, da construção de biografias e das pretensões de uma “política da

zados em longos estágios. Por isso o circo, a roda de pano, os shows de palhaços e principalmen-

justa memória”, relacionadas aos problemas da transmissão da história, no interior da história

te o circo-teatro, suas condições, aspectos, elementos culturais, relações sociais aparecem

oficial e ideológica, aos modos de Ricoeur1, para embasar argumentos sobre a importân-

como marcas muito fortes nas rememorações dos palhaços aqui representados.

cia, do espaço do circo, dos pavilhões, das burletas, das variedades, dos circos-teatro e do

Pesquisadores como Mário Fernando

circo e nobilitar o painel das artes e do teatro popular, das dramaturgias no Brasil. Os rela-

Bolognesi, Alice Viveiros de Castro, Verônica Tamaoki e Ermínia Silva, referem-se igualmen-

tos encontrados neste número anunciam versões, crônicas e, por vezes, saudosismos anun-

te a vieses históricos e olhares antropológicos; lançam problematizações que se referem tanto

ciando que o passado também pode ser ideali-

ao palhaço — que não é personagem exclusiva

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do circo — e ao corpo do palhaço como figura

blico que o consulta formule outras novas pes-

catalisadora da condição fluída do universo circense, do sublime e do grotesco; ora referem-se

quisas e por conseguinte novas publicações. Assim, coletamos, reunimos e apresentamos

ao palhaço como figura cômica por excelência, ou tentam entendê-los, uns através de arquéti-

histórias de vidas submetidas à seletividade da memória ou à vontade de abrir ou ocultar se-

pos e repertórios clownescos e outros através da penetração à realidade daqueles que habitaram

gredos daquele que narra, como tentativa de criar um acervo público, aberto e digitalizado.

as lonas, compondo, mimetizando apresentações e narrativas. Cada pesquisa, em seus por-

O Memórias de Palhaços e Comediantes. Cada história com sua força, contundência, versão,

menores de construção, embasou-se em fontes como jornais, revistas, propagandas de circos,

com as transformações no modo como cada um produziu suas artes. Cada história para uma

programas e folhetos, textos raros de cronistas e críticos, textos de memorialistas, discografias,

consulta, um atento leitor.

textos de peças, álbuns de fotografias, observação participante, teses e entrevistas que entoam vozes singulares e reveladoras. Cada um que se aventure na pesquisa sobre o circo ou sobre palhaços no Brasil constata a precariedade que cerca muitos dos acervos e dos vestígios como cartazes, fotografias, discografia, filmografia, cenários, vestimentas, cartas, documentos e boletins como da Federação Circense de 1925 a 19385. Estas pesquisas lançam novos repertórios, abordagens e questões — que se sobrepõem, contestam e dialogam com produções anteriores como de José Cláudio Barriguelli, Pedro Della Paschoa, Maria Lúcia Martes, entre outros — e dão novos sentidos a fontes que poderiam ser recolhidas e guardadas a esmo em acervos particulares e públicos; e requerem a organização, digitalização de novos acervos, para que o pú-

As histórias de Nelson Garcia, Anchizes Pinto, Benedito Esbano, Walter di Carlo, Brasil João Carlos Queirollo, Walmir Chagas, Pirajá Bastos de Azevedo, José Barroso e Agostinho Blask, neste volume, expõem a presença ampla e constante de companhias circenses volantes e seus integrantes por todo o Brasil, nas capitais e em seus bairros, aventuras, descrições, resultados de pequenas e grandes paixões, afeições familiares e muita produção artística daqueles que formam uma categoria profissional desde o século XVIII. Figuras em torno das quais se teciam relações de trabalho e relações sociais fomentadoras de alterações no cenário das cidades, tensões sociais e culturais provocadas pela itinerância e que seriam abordadas em jornais, folhetins e boletins por críticos e memorialistas e repercutiria na

Doutores da Alegria

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produção intelectual da década de 1970 sob

so de formação artística, de educação, de trans-

os paradigmas, da cultura popular, do conflito entre cidade e campo; e influência dos mei-

missão voltada para os que nasciam no circo, àqueles que fugiam ou se incorporavam às fa-

os de comunicação de massa.

mílias e circos. Formação geral, solidária, envolvida com a necessidade, com as experiên-

As entrevistas, em sua maioria, referemse ao circo que produzia também teatro em larga escala — afirmando que essa é uma base do circo, que se sobrepõe à formação do palhaço, que o circo estava comprometido com o circo-teatro — com artistas polivalentes, acrobatas, músicos, palhaços, dançarinos, atores, autores de peças e criadores de números e até ginastas. Desde o final do século XIX no Rio de Janeiro são encontradas fontes jornalísticas que descrevem a utilização do picadeiro e palco para apresentação de peças jocosas, pantomimas, dramas e comédias, desde lá muitos empresários já nomeavam seus espetáculos ou lonas como circo-teatro, como o Teatro de Variedades ou Circo-Teatro de Albano Pereira, construído em Porto Alegre em 1875. Esboçam tipos e profissionais e um campo de trabalho singular que absorvia artistas que se apresentavam no teatro, nos cafés, nos cabarés e pagodes. O circo era o lugar de um tipo de contratação, lugar de trabalho e atuação. O circo como se vê nas entrevistas deste volume colocava em jogo relações culturais, transmissão de saberes e práticas que possibilitavam as relações de trabalho e a criação da figura do artista circense. Nele cabia um complexo proces-

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cias. A necessidade, a substituição, a continuidade do espetáculo fez com que cada entrevistado se tornasse escada, tony de soirée, clown e palhaço. Integrar-se ou viver no circo é integrar-se a um modo de organização, a um modo de vida, ao conjunto de memórias gestuais, orais, sonoras, sociais e culturais, relações sociais e de trabalho que definiram a produção do circo e a produção do palhaço. Ermínia Silva especifica que “aprender a fazer circo” é uma atividade cultural, artística e esportiva permanente, “pois quando um jovem tornava-se muito bom num determinado número — malabares, salto, trapézio, etc. — o campo de oferta na área era tão amplo que se lhe colocava um novo desafio, tornando-o aprendiz em outra área, como tocar um instrumento, representar no teatro ou mesmo ser autor das peças e músicas, participar da confecção do guarda-roupa, da cenografia, da iluminação, da própria produção de espetáculo.(...) na tradição do circo-família, não havia nenhum adulto — jovem ou idoso — que também não tivesse o que fazer”7. O circo é revelado em cada entrevista como grande empreendimento da vida de

cada um e o palhaço como grande estilo e for-

de entretenimento —, às cidades e aos bairros

ma artística, fosse dono, ou apresentasse seus números como contratado. Neste empreendi-

na cidade. Daí a importância dos circos junto à história de bairros da cidade de São Paulo,

mento o circo-teatro aparece como ambiente de produção em larga escala, com peças ela-

como Brás, Bexiga, Móoca e Santa Efigênia, largo São Bento, Praça da República, a partir

boradas, grande número de artistas, com músicos e grandes aparatos cômicos, cênico e até

do entendimento de que o circo instalava-se também (mesmo em cidades menores) em ter-

maquinários ousados dentro dos próprios espetáculos, como recursos cênicos e

renos próximos a regiões movimentadas, zonas de comércio e de transporte por bondes e

cenográficos. Cada entrevistado revela-se ator e especialista em tipos físicos, galã, ingênuo,

trens. Ligando-se a um fluxo de transportes, comércio, circulação, concentração e

cômico, cínico, cuja denominação informava sobre uma função dramática e não sobre um

contratação de pessoas.

personagem. Incorporavam o mais atual em experimentações, iluminações, invenções técnicas e habilidades em espaços que muitas vezes não camuflavam os instrumentos de trabalho, as prestidigitações, os truques e até os pontos6. No circo permitia-se testar novos formatos de espetáculos — com adaptações aos textos originais, alterações àqueles transmitidos oralmente, personalizações e até novas criações e escriturações — e combinações das atrações e das gentes de circo, de acordo com as cidades por onde se passava, dos dias de espetáculo e da receita do circo visada pelo empresário, pelo dono. Assim, o circo enfileirou muitos sucessos teatrais, autores, ensaiadores e cenas que pretendiam meios de divulgação dos espetáculos e do formato final das produções, com a penetração junto à população — principalmente nas cidades privadas de estruturas variadas

Segundo Ermínia Silva (2007) o circo foi “um dos importantes veículos de produção, divulgação e difusão dos mais variados empreendimentos culturais”(nota - idem, p.20) que atualizava o cotidiano das cidades, suas mazelas, os recursos impressos, os problemas das cidades, dos comércios, as tensões em torno de valores morais, diversões e variedades. Ainda, como cada entrevista demonstra, os circos e companhias volantes, incorporavam um vetor de comunicação entre as cidades e um vetor de formação e incorporação de artistas e profissionais nas novas mídias que surgiam no Brasil na segunda metade do século XX, forjou artistas, galãs e cômicos no circo-teatro e para palcos, boates, cinema e TV. A coleta de rememorações e narrativas de palhaços e comediantes não realiza uma mera

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reconstrução saudosa, embora reconheçamos que também se idealize o passado. Cada entrevistado, convidado e voluntário, a partir do espaço do circo sob a máscara do palhaço, descreve o circo, o palco, o picadeiro, o estúdio de

brávamos o quanto a digitalização e disponibilização de acervos de TVs são fontes indispensáveis, mas que contam apenas partes, ocultando pequenas histórias e tantos outros nomes que escapavam ou que passaram longe dos estúdios e programas de televisão na segunda metade do século XX.

filmagens, entende seus percursos, fracassos, motivos, acham qualificações e explicações para

Cf. Gaston Bachelard. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

a vida social, para a produção cultural e o estilo de vida que assumiram, repercutiram e questio-

Cf. Henri Bérgson. Matière et mémoire. Paris, Presses Universitaires de France, s/d.

naram como circenses, criadores, provocando suas gerações subseqüentes e o presente. É assim, com este volume inaugural, que damos um passo inicial para criar um acervo, entender e traçar perspectivas sobre a diversidade cômica.

(3)

(4)

Tamaoki organiza e recupera acervo referente aos boletins mensais da Federação Circense fundada em 20 de março de 1925 sob o tema Unidos Seremos Fortes, com recursos da Funarte e apoio do DPH-PMSP/ Depto. Do Patrimônio Histórico/ prefeitura municipal de São Paulo e ASFAC- Associação de Famílias e Artistas de Circo. (5)

Edson Lopes. A função do ponto era cumprida por uma pessoa que conhecia ou tinha o texto completo de cada peça a ser apresentada. Sua presença era considerada essencial nas representações teatrais graças à grande quantidade de peças e variações nos repertórios das companhias. (6)

Notas Paul Ricoeur. “Entre mémoire et histoire”, in Project. Paris, número 248, p.11, 1996. (1)

Este projeto surgiu de um modo simples, coloquial, banal, durante uma conversa com Thaís Ferrara (atriz, besteirologista e diretora artística dos Doutores da Alegria) em que lembrávamos da atuação, dos bordões de alguns comediantes, de suas criações, constatando que a lembrança de seus nomes talvez se dissolvessem com a ausência de suas histórias. Naquela situação, lem(2)

12 Doutores da Alegria

cf. Amínia Silva. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil. São Paulo, Ed. Altana LTDA, 2007, p 291. (7)

Doutores da Alegria

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Vida em cena Eles chegaram: senhores com olhar de meninos. Tinham uma vivacidade contagiante.

aventureira, sonhadora, trabalhadora, sofredora. Homens múltiplos que se exercitam em tudo

Sentaram e contaram suas histórias nem sempre alegres mas potentes. Tinham a força nar-

que a lona pede: dirigir caminhões, montar, desmontar, consertar. O multiartista, como diz

rativa que se cola novamente à experiência vivida. Falaram da primeira vez que viram o cir-

Sr. Walmir, se define assim: na terra de cego quem tem um olho é rei. Em um mundo de especialis-

co e das brincadeiras de menino. O Sr. José Barroso, o Gachola, montava cirquinho com

tas, estes homens de circo nos ensinam a cortejar a multiplicidade. Debaixo desse céu de

lençóis no quintal de casa. Os ingressos eram as balas Piolim. Sem dinheiro e louco para as-

pano eles nascem, crescem, casam, multiplicam-se, celebram a passagem do tempo. Mon-

sistir a um espetáculo, passou por baixo da lona e perdeu um sapato. Quando voltou com seu

tam suas famílias por gerações. O Sr. Pirajá sonhava também em ter seu velório dentro do

pai para pedir seu sapato de volta foi convidado a vender doces no circo. Walmir Chagas, o

picadeiro. Mas a quinta geração de circo de sua família foi para a universidade e seu circo

Véio Mangaba, conta que gostava de se fantasiar e dublar os discos de 78 rotações com

fechou. Hoje ele mata as saudades do picadeiro indo para o seu trailer que fica estacionado

Carmem Miranda e Jackson do Pandeiro. O primeiro espetáculo que viu foi em um circo

no quintal da sua casa.]

sem lona, no estilo Deus tomara que não chova. Foi no bairro de São José, no carnaval de Recife, que viu os primeiros palhaços de sua vida: Arlequim, Colombina e Pierrô. O circo abriga modos de vida : cigana,

14 Doutores da Alegria

Esses homens em seu cortejos circenses despertavam a cidade: na chegada os moradores ajudavam a montar o circo e ganhar carimbo na mão para ter passagem livre para os espetáculos. Na relação com a cidade o circo abrigava novas formas: em Belford Roxo, na

época da gripe espanhola, o avô de Anchizes Pinto transformou o circo em hospital para distribuir comida e remédios. Na partida de trem vinha a choradeira dos amigos e amores construídos. Como conta o Sr. Esbano: artista de circo é que nem marinheiro, um porto novo, tudo novo. E o circo também leva gente por onde passa. Nelson Garcia, o Figurinha, conta que seu tio, Antolim Garcia fugiu com o circo. Seu pai foi resgatá-lo em Minas Gerais. O avô de Ankito, bacharel em direito, fugiu com o circo atrás de uma eqüestre atiradora, que se tornou sua esposa.

a nado com as roupas amarradas nas costas para trabalhar como pedreiro. Do cassino da Urca, TV Tupi, Cinelândia. Época em que a censura do teatro era 22 anos e da lei de Getúlio Vargas onde todo colégio tinha uma cadeira livre para o artista de circo. Época em que as pessoas viravam desaparecidos políticos como o irmão do Sr. Walmir Chagas. Que se fazia espetáculo no Retiro dos Artistas para o Presidente Médici. Histórias que guardam na garagem de casa objetos da recordação: a bengala do Piolim, os 56 filmes de Ankito, fotografias de circo, teatro e televisão. Histórias que contemplam a magia do espetáculo. Tan-

Estas histórias mostram que a força do circo se faz pelo espetáculo e pela estrutura des-

tas, tão diversas e fantásticas que nos fazem aplaudir, fora do picadeiro, esses homens, fi-

tes homens, mulheres e crianças que se desenvolvem através da filosofia de vida do circo.

lhos e pais de circo, guardiões das paródias de cem anos, redatores da história de uma

Elas são também retrato de uma época: época em que o circo-teatro tinha três camarotes: um

época, senhores e meninos.

para o prefeito, um para o juiz e um para o delegado. Em que Roberto Carlos ia de

Morgana Masetti.

lambreta cantar no Circo do Sr. Pirajá. Época em que o pai de Gachola atravessava o rio Tietê

Doutores da Alegria

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Memórias de Palhaços e Comediantes

TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 00:46:00

Nelson Garcia: Meu nome de batismo é

Acabou fugindo com o circo. Foi um escânda-

Nelson Garcia. Pertenci à família Garcia, do Circo Garcia. Nasci em São Paulo, na Rua

lo danado. Então, houve uma reunião familiar para escolher qual dos irmãos ia buscá-lo. Esse

Maestro Cardim, na Liberdade, no ano de 1921.

irmão foi justamente o meu pai que era cinco anos mais velho que ele. Foi buscá-lo lá em Minas Gerais e o trouxe.

Doutores da Alegria: Seus pais eram brasileiros?

DA: Na marra?

N: Meu pai era brasileiro, filho de espanhol. Por parte de mãe, meus familiares são

N: Na marra. Ele era garotão, meninote. Assim é a história. Depois ele acabou fugindo

portugueses. Minha mãe era portuguesa. Minha avó paterna tinha oito filhos: seis espanhóis

novamente com o circo. Era a loucura dele. Em 1932 ele apareceu aqui em São Paulo com um

e dois brasileiros, que eram meu pai e meu tio Antolim Garcia, fundador do Circo Garcia.

circo de categoria, grande. Na época a força artística do circo era o teatro. E naquela vez

Não éramos de circo. Meu tio Antolim Garcia, quando menino, tinha loucura por cir-

ele acabou carregando um irmão, o meu pai, a minha mãe, eu e uma irmã para o circo. Assim começamos a trabalhar.

co e a minha avó tinha um armazém de secos e molhados no Paraíso, lá ele fazia e brincava

DA: E você tinha quantos anos na época?

de cirquinho. Era moleque, garoto ainda, e já fazia cirquinho no quintal da venda da mãe.

N: Doze anos e trabalhava como ator mirim. Fazia peças, as comédias. Fazíamos de tudo

Entrevistadores: Edson Lopes e Maria Rita Pires do Rio

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Nelson Garcia a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 20 de Abril de 2007, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração desta gravação: 00:46:00. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

19

Figurinha

História de Vida: Nelson Garcia

BOCA LARGA

no picadeiro, tudo de cor. As peças não tinham

Eu me lembro dessa cena porque, sem que-

ponto. Comecei a fazer um pouquinho de ginástica, o “abecê” do artista circense: aquelas

rer, de longe, um jogava no outro e acertei o olho de um amiguinho meu. Ficou grudado nos

cambotinhas, envergadas, volta de mão, saltos, depois o flip-flap e o salto mortal. Esse era o

olhos dele! Levei um susto danado. Que susto! Minha mãe me deu uma surra. Mas nós jogá-

“abecê” dos artistas circenses daquela época. No próprio circo, os artistas antigos ensinavam a

vamos bolinha de gude, também. E pião, muito pião... Hoje não tem mais nem isso, jogar

gente. Daí comecei a aprender outras coisas, malabares, equilíbrio e escada livre que é um

pião, prego... Acabou tudo isso. Ninguém sabe jogar bolinha de gude, não sabe jogar pião,

número que a escada fica livre e a gente sobe na escada balançando, desce de costas, sobe de

arrebentar o pião do colega. Quem arrebentasse o pião do colega, ganhava o pião.

costas, joga malabares ou toca um instrumento. Eu fiz esse número. Fiz também o globo da morte quando já era moço e assim por diante. DA: Antes dos doze anos você morava aqui em São Paulo? N: Sempre morei na Vila Mariana.

DA: E você também ajudava no armazém do seu pai? N: Não, era muito pequeno. Tinha seis anos naquela época. DA: E como foi essa mudança para o cir-

DA: E como foi esse período de moleque

co? Como a família resolveu mudar? N: O meu tio Antolim Garcia nos levou

antes do circo? N: Meu pai tinha um armazém na Penha.

para o circo. Meu pai também era ator, minha irmã era atriz. Uma grande atriz, por sinal.

Gostava de brincar como toda a garotada. Eu morava em frente ao cemitério. Me lembro de

Minha irmã e eu fomos atores mirins, e assim fomos lutando com a vida.

uma brincadeira de moleque. Naquele tempo não existiam essas brincadeiras de hoje, os brinquedos a gente mesmo construía. Fazia patinetes, carrinho de mão, carrinho de “rolimã”. Não existiam brinquedos fabricados. Quando chovia, amassávamos o barro e ficávamos fazendo guerra.

20 Doutores da Alegria

DA: O nome do circo já era Garcia? N: Era Circo Garcia. DA: Como era o circo? N: Já era grande, de categoria. Tive o prazer de pertencer a três circos: Circo Garcia, Piolim

- História de Vida: Nelson Garcia -

— porque fui genro do Piolim —, e Circo Nerino,

eu vou fazer o palhaço. Eu faço o palhaço".

do palhaço Picolino. Três circos de categoria.

"Ah, você faz?". "Faço, pode deixar". Aí comecei a fazer o palhaço. O meu pai foi quem me

DA: São os três maiores circos do Brasil. N: Na época eram. Depois o Garcia continuou sendo o maior do Brasil. Só que agora

apelidou de Figurinha. DA: Por que?

fechou, faliu. Paciência!

N: Porque quando ele levava os caminhões do circo nas oficinas mecânicas, havia aqueles

DA: O Circo Piolim era de São Paulo. Uma grande atração no Centro da cidade.

meninos que ajudavam os mecânicos com as ferramentas. E esses meninos sempre recebi-

N: Fazia os bairros também, mas depois ficou na Rua Paraíso por muito tempo. Dali

am apelidos. Rebite, Chupeta de Galo, uns apelidos assim esquisitos. Numa dessas oficinas

ele mudou para a Praça Marechal Deodoro. Ficou por lá por 20 anos. Ele fez uma cobertu-

havia um rapazinho a quem os mecânicos apelidaram de Figurinha. Figurinha difícil: "Ô,

ra de alumínio. O único circo com cobertura de alumínio. Na época, era pano ou lona.

Figurinha... me dá a chave número tal e a chave ..." ... "Traz o pé de cabra!" ... "Traz aí aquelas ferramentas de oficina" Aí meu pai lembrou-

DA: Como o senhor passou de ator a palhaço? N: Fui ator mirim. Depois passei a ser palhaço, já no circo do meu pai, o Circo Cruzeiro do Sul. Na época, o chamariz dos circos era o palhaço. O palhaço tinha que agüentar o rojão. Por causa disso, quando o circo começava a ganhar dinheiro, os palhaços se sentiam os

se desse nome e "botou" o nome de palhaço Figurinha. Fiquei como Figurinha, Figurinha difícil, a vida é essa... DA: Isso aconteceu no Cruzeiro do Sul? Quantos anos você tinha? N: Já era moço. Foi em 1943. Eu tinha 22 anos.

donos da situação, os donos do circo. Como jogador de futebol. Queriam ganhar mais, se-

DA: Você fazia o palhaço. Mas continuava fazendo teatro?

não iam embora. Eu fazia o escadinha dos palhaços que entravam no circo do meu pai. Era

N: Sim! O teatro era a força do circo. Como hoje é a novela para a televisão, naquela épo-

o escadinha, o clown, com aquelas roupas bonitas. Adquiri prática como palhaço e falei

ca o teatro era para o circo.

para o meu pai: "Pai, o negócio é o seguinte:

DA: As pessoas iam para o circo ver o teatro?

Doutores da Alegria

21

BOCA LARGA

N: O meu tio Antolim, meu pai e minha irmã foram grandes artistas de teatro. DA: E que peças você fizeram? Você lembra de alguma? N: Comecei com um papel em O Gaiato

Roberto Carlos ganhava isso! Foi um estouro no meio artístico quando souberam! Nossa Senhora...! "Figurinha, meus parabéns!". Fiquei 20 anos trabalhando para Monark e me aposentei pela Biciletas Monark.

de Lisboa. Tinha 52 páginas de cor. Foi o primeiro papel que eu fiz. Assim, de cara. Fiquei

DA: Era garoto-propaganda da marca de bicicletas?

doido. Meu pai era ator também, meu tio um grande ator e a minha irmã uma grande atriz.

N: De maneira que com a Monark, por exemplo, é que rodei o Brasil todo e uns países

Sobre mim, não vou falar porque sou suspeito, mas eu agradava, não sei por que razão. Quan-

da América do Sul. Rodei com eles, de carro, de Kombi, de avião, de navio... Eu ia em tudo

do moço, comecei a fazer os papéis de galã cômico e assim fui me ambientando. Quando fiz

quanto era cidade. Uma cidade por dia, e às vezes mais. Quando as cidades eram perto, de

palhaço, já era ator cômico, galã cômico. Eu fazia galã até para a minha mãe e para a mi-

manhã, eu fazia o show em uma e depois passava para outra. Às 2 horas da tarde, fazia um

nha irmã. É assim a vida circense.

show em outra cidade e à noite em outra. Aqui, no Estado de São Paulo, que têm cidades

DA: E você fazia sucesso também com o público? As meninas gostavam do galã?

pertinho umas das outras, era assim. Fazia quatro ou cinco shows e, ainda, em algumas

N: Eu conseguia fazer o povo rir. E ninguém acreditava que eu conseguisse, porque era meio

cidades que tinham canais de televisão, fazia a TV local. Agora estou chegando aos 86 anos,

tímido, retraído. Mas consegui, de maneira que a vida foi progredindo, até que em 1958 os promo-

exatamente no dia 20 de maio. Meu pai, Agenor Garcia, faleceu aos 97 anos. Foi o que morreu

tores de propaganda das Bicicletas Monark me viram fazer uma apresentação no Circo Bombril

mais velho na família inteira.

do Valter Stuart, que aliás faleceu. Era muito meu amigo. Ali me viram fazer a apresentação. A fábrica de bicicletas achou interessante me chamar para fazer promoções e eu fui. Fiz um contrato experimental de um mês com as Bicicletas Monark, ganhando 45 mil Cruzeiros. Nem o

22 Doutores da Alegria

DA: E sempre trabalhou no circo? N: Não. Trabalhou em várias e muitas coisas. DA: Você disse também que trabalhou na televisão. Abriu a televisão aqui no Brasil. N: Ah, sim.

- História de Vida: Nelson Garcia -

DA: Como foi essa história?

qualquer coisa diferente. Foi difícil, ela não

N: Havia aquele Cirquinho Bombril, o famoso Cirquinho Bombril. O primeiro progra-

acreditava. Brincávamos, vivíamos juntos. Ela fazia também número de bicicleta, fazia junto

ma de circo que houve na televisão brasileira. Eles me chamavam para fazer números. Fazia

comigo. Fazíamos acrobacias em dupla nas bicicletas.

vários números de bicicleta. Não fui o maior ciclista em dificuldade, mas fui em qualidade e em quantidade de aparelhos, porque tinha nove tipos de bicicleta, vários monociclos. Cheguei a fazer, também, uns programas de palhaço na TV Tupi. Depois, trabalhei também nas outras emissoras. E quando saía para o interior, nas capitais de outras cidades que tinham programas infantis, ia lá e me encaixava. Eles me encaixavam em um programa deles, da cidade. Já era patrocinado. Não ficava custoso para eles.

DA: E quando o senhor percebeu que gostava dela? N: Estava gostando dela sem querer. Engraçado, nasceu um negócio e ela custou a acreditar. Ela ria e não acreditava que eu estava gostando dela. Aí fui... fui... fui... consegui. Você imagina? O meu casamento foi tão feliz que, em quatro anos de casados ela teve seis filhos. Duas vezes gêmeos. Só aí são quatro. Depois, com a idade, os filhos não casavam e ela estava com saudade de criança coitada e quis adotar uma menina. Adotamos uma menina. Hoje,

Graças a Deus! Eu posso morrer amanhã, mas tenho o prazer de conhecer o meu Brasil

essa minha filha está com 35 anos. Me deu duas netinhas. Eu sou avô, com uma netinha de

de norte a sul, de leste a oeste, sudoeste a sudeste. É assim. Eu fiz tudo! As capitais, interiores...

quatro anos de idade.

DA: E quando você trabalhou com o

DA: E você criou os seus filhos no circo também?

Piolim? N: Bom, eu trabalhei com ele antes de ca-

N: Não, não foram criados no circo. Porque, na época, a gente queria que eles estudas-

sar com a filha dele. Fazia escadinha para ele, no lugar do filho, meu cunhado.

sem, porque o estudo é tudo. Eu já tinha como exemplo dois irmãos advogados, formados,

DA: Conheceu sua companheira no circo? N: Era minha colega. Eu nunca pensei que ia casar com ela. Nunca pensei, mas nasceu

com uma vida bem melhor que a minha. Tive um irmão que foi um brilhante advogado criminalista e outro chefe da procuradoria do Estado, aqui em São Paulo. Portanto, achava

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

que eles deveriam estudar. Uma acabou se for-

cama definhou. Acabou falecendo. Era uma

mando em técnica contábil. O filho que eu queria que se formasse, não se formou. Andou fa-

atleta. Fazia números de ginástica no circo. Saltava muito bem, saltos mortais, ginástica em

zendo umas falcatruas e não se formou. Assim é a vida. A minha filha adotiva se formou

geral. Era uma atleta. Eu também fui atleta. Mas ela foi uma grande artista e no teatro era

no magistério. É professora. É a vida. Estou aqui. Um velho alquebrado.

muito boa também... É assim a vida... DA: Você foi escada do Picolino também?

DA: E o senhor não trabalha mais como palhaço?

N: Trabalhei com ele no circo. Os pais dele tinham o Circo Nerino , e me contrataram para

N: Não, não tenho mais pique. Hoje faço uma coisa que gosto muito de fazer: cozinhar.

o Nordeste brasileiro. Eles se ambientaram por lá, de maneira que eu fui contratado para ser

Mas cozinho desde menino. Às vezes, quando era menino, coincidia, na mudança do circo,

o palhaço do circo, porque o pai dele já não trabalhava mais, pois era muito idoso. O tio

de eu ir na frente. Naquele tempo, se alugavam casas. Era fácil alugar casas por um mês

também tinha problema de voz, rouquidão na voz. Fazia os palhaços lá e não dava certo. Por

ou 20 dias. Alugava nas cidades e, às vezes, ia na frente dos meus pais. Quando meus pais

isso me contrataram. Aí o Picolino ficou como meu escadinha. Fazia dupla comigo.

chegavam, em uma outra viagem de caminhão, eu já tinha arroz feito e ovos fritos. Des-

Mas infelizmente a minha senhora ficou

de menino! Eu era menino ainda e sempre gostei de cozinha. Cozinho até hoje. É uma lou-

doente, não se ambientou no Nordeste e eu tive que sair do Circo Nerino. Aí é que o Picolino

cura. Comecei a fazer de tudo, feijoada, macarronada...

passou a fazer o palhaço. Então, quando ele começou a fazer o palhaço, fazia uma mescla

DA: Ainda vive com a sua senhora?

do meu modo com o do pai dele. Juntava os dois. Depois pegou a linha, o estilo dele. Só que

N: Não. Sou viúvo. Ela faleceu, infelizmente. Já faz 5 anos e meio. Faleceu com 79 anos.

o pai dele era Picolino, porque Picolino é pequeno em italiano. O Roger Avanzi não é pe-

É a vida. Paciência... Teve uma queda na sala, quando foi pegar o controle para desligar a

queno. É altão. Tinha que ser Picolão.

televisão. Caiu e fraturou o fêmur. Depois não conseguiu andar mais, foi para a cama e na

24 Doutores da Alegria

DA: As viagens eram todas feitas de caminhão. Qualquer imprevisto, tinha que voltar...

- História de Vida: Nelson Garcia -

N: O Nerino também tinha vários caminhões. Aprendi a dirigir em caminhão. No circo do meu tio Garcia havia dez caminhões para transportar o circo. Levava tudo de uma vez só. Eram caminhões-carreta. Enquanto o circo estava estacionado, às vezes, eu ia no caminhão e dava umas marchas a ré no terreno... Tudo que aprendi foi por curiosidade.

princípio católico. Entro na igreja quando me dá vontade, não por obrigação. DA: Chegou a fazer a Paixão de Cristo no circo? N: Adivinha qual o papel que fazia? DA: Jesus? N: Eu, cômico — palhaço tem que ser sim-

Não tive mestre para ensinar isso ou aqui-

pático —, fazia o Judas. Um papel antipático. Meu pai fazia Jesus, o meu tio Antolim tam-

lo. Gosto de olhar, sou curioso. Sempre fui curioso. Aprendi de tudo: mecânica, pintura,

bém e eu o Judas; a minha irmã fazia a Maria, a virgem.

carpintaria. Fazia cenografia, cenários do circo, das peças teatrais. Eu é que fazia! Aprendi com meu tio Garcia, de vê-lo fazer. Aprendi carpintaria, eletricidade... o meu negócio eram serviços manuais. DA: Qual palhaço você mais gostava de ver trabalhar?

DA: Aos 86 anos, quais os seus planos? N: O que eu penso agora na vida é ganhar na mega-sena, deixar meus filhos em boa situação. Isso é o que eu penso. De resto, a minha moradia vai ser em Pinheiros, no cemitério São Paulo, onde está meu pai, minha mãe, um irmão e minha esposa.

N: Bom, modéstia à parte, o meu sogro Piolim. Imagine que o Piolim trabalhava de um

DA: Depois que a sua esposa faleceu, não

jeito que, enquanto ele soltava piada, que o povo estava rindo, ele tinha sempre uma pia-

teve outra companheira? N: Não. Já tinha idade. Quando ela fale-

da para fazer para a gente [companheiros de picadeiro], para contar, para cochichar com a

ceu, já estava com 80 anos. Para quê?

gente. Era danado, nasceu para fazer aquilo. Mas era também uma pessoa bastante calada. Evitava conversa fiada, era reservado. DA: E você é religioso? N: Eu não pratico religião, mas tenho um

DA: E nunca quis ter um circo seu? N: Não, sou ruim em dirigir. Prefiro ser dirigido. Mandar não é comigo. DA: Agradeço sua disposição, o tempo que você reservou para conversar com a gente. Nós

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

também somos um pouco mais jovens e bastante curiosos. Aprendemos um monte sobre o circo e as andanças dos palhaços no Brasil. N: Pois é, eu também tenho que agradecer a vocês. Foi uma manhã bastante bacana, de modo que estou satisfeito.

26 Doutores da Alegria

Notas Esta entrevista foi gravada no dia 20 de abril de 2007. (1)

CF. Roger Avanzi e Verônica Tamaoki. Circo Nerino. São Paulo, Pindorama Circus & Códex, 2004 & entrevista de Edson Lopes a Roger Avanzi (Picolino Segundo) publicada no Boca Larga, primeiro volume, de 2005, entre as páginas 87 e 95. (2)

Ankito

História de Vida: Anchizes Pinto

Anchizes Pinto: Meu nome é Anchizes Pinto. Nasci em São Paulo, capital, no Brás, no dia 26 de novembro de 1924.

soirée, aquele palhaço que fica na pista imitando os artistas, fazendo errado, enquanto trocam os aparelhos, tiram o trapézio, botam uma barra. Eu fiz isso com 5 anos, na verdade. Daí em

DA: Seus avós e pais são de onde? A: Do circo! Quer dizer, cada um nasceu

diante, fiz de tudo. Era volante de acrobacia, cômico e também galã nas peças. Fazia drama

em um lugar. O meu pai nasceu em Palmas. Meu avô era de Barra do Piraí. Minha avó de

e comédia. Meu avô tinha a mania de ensinar tudo de circo para todo mundo. Tínhamos pro-

Uberaba.

fessores. Inclusive, a gente fazia os exames de colégio e, nas datas dos exames, a gente vinha

DA: Todos de circo? A: Sim. Meu avô tinha cinco circos. Sou sobrinho do Piolim. Tenho uma bengala que era do meu pai, irmão do Piolim. A dupla era Faísca e Piolim. Tenho essa bengala guardada comigo, porque papai a usava. Meu Avô paterno tinha cinco circos. Chamava-se Galdino Firmiano Pinto. Tinha um circo fixo em São Paulo, na Praça Marechal Deodoro, o Circo Piolim, cuja cobertura era de alumínio. Praticamente um teatro, mas tinha picadeiro e palco. Nasci lá. Aos sete anos já era profissional. Entrei com quatro e já fazia tony

para São Paulo. O circo viajava e tínhamos que viajar junto, porque a gente trabalhava. Eu, por exemplo, era volante de acrobacia. Fazia inclusive o globo da morte com motocicleta. Fiz tudo em circo. Aprendi até acrobacias ligeiras. Essa ginástica de solo, de saltos, que hoje essas meninas atletas fazem, aprendi e fazia. Vencemos um campeonato sul-americano, Carequinha, Franklin Azevedo e eu. Os três representavam o Brasil naquela ocasião. DA: Antes do seu avô, a sua família já tinha circo? Ou começou com ele?

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Anchizes Pinto a Morgana Masetti e Dani Barros no dia 13 de junho de 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. Duração da gravação: 01:14:25. Transcrição por Global Translations.

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BOCA LARGA

A: O meu bisavô era fazendeiro em Barra do Piraí. DA: Começou com o seu avô? A: Sim. O meu avô fugiu atrás do circo por causa da minha avó... Meu avô era bacharel em direito, filho de um milionário, meu bisavô. Ele se apaixonou e fugiu. DA: O que sua avó fazia no circo? A: Minha avó era eqüestre atiradora. Fazia tiro ao alvo na anca de um cavalo. Corria ao redor do picadeiro, com uma pistola. Uma grande atração. Pelo que me lembro, fazia coisas assim. Um negócio, que me impressionava muito: pegava uma tábua envernizada e uma moeda de 400 Réis. Mostrava para a platéia. Ela a colocava sobre uma mesa, deitava e tirava a moeda de cima da mesa sem riscar a tábua, à bala. Era uma coisa engraçada. Meu avô corria um risco...! Botava uma batata inglesa na cabeça e a minha avó, com o espelho, atirava e tirava a batatinha da cabeça dele... Um dia, ela dizia para ele: "levante a cabeça". E ele, lá de trás: "atira". "Levanta a cabeça". "Atira". "Você quer, né?" Ajeitou e pum... pegou a batata, mas riscou a cabeça dele... Ele tem a marca até hoje. Lembro, eles contavam, mas não vi. Contavam muita coisa engraçada. A minha avó era matriarca mesmo, mandava e desmandava em tudo.

DA: Quantos filhos eles tiveram? A: Três. Piolim (Abelardo Pinto), Raul Pinto e meu pai Anchizes. Casaram-se com moças da cidade, que depois passaram a ser artistas também. A minha tia, esposa do Piolim, Benedita, era de Guaratinguetá. Minha mãe de Rio Novo. A Alice foi da trupe imperial japonesa, porque meu avô montou o Circo Imperial Japonês. Montou o Imperial Japonês Temperani, o Queirollo, tudo era dele. Circo geralmente é uma família só, tanto que preferem que se case com uma pessoa de circo, mas as moças passavam a ser artistas também. Minha mãe passou a entrar nas comédias, minha tia Benedita também. Assim era a vida. Muito boa, ainda sinto falta. Dei então uma fugida do circo, porque ouvia falar do Cassino da Urca. Eu, modéstia à parte, saltava muito. O Carequinha e o Franklin Azevedo também. Isso que fazem hoje as meninas, a família Hipólito... ginástica de solo... a gente saltava muito. Eu sonhava em trabalhar no Cassino da Urca, mas não podia sair do circo, porque fazia de tudo. Era volante de acrobacia. O volante é aquele que, na trupe de acrobatas, fica na tábua, na báscula, pula, salta, volta, cai sentado em uma cadeira que o outro pega lá em cima... Era tudo da família. Era o volante, fazia o globo da morte, palhaço, ponto, tudo. Eles não queriam que abandonasse... meus pais que pediam. Eu perdi meu pai com 13 anos.

28 Doutores da Alegria

- História de Vida: Anchizes Pinto

-

DA: O que aconteceu? A: Com papai? Coração. Então fugi. Papai

não tinha idade. Assim mesmo, dava umas fugidas e saía, então fiz mamãe assinar um

faleceu, fiquei só eu e minha mãe... Quer dizer, a família toda. Vovó é que mandava mesmo.

papel que um amigo advogado me deu. Ela nem sabia o que era direito, assinou um papel me emancipando. Então, era maior de idade.

DA: Tinha irmãos? A: Não. Era filho único de mãe viúva. Por

DA: Ah, mas o senhor a enganou?

isso estou no Brasil. Porque nunca deixei minha mãe. Enquanto a minha avó foi viva, dei-

A: Não, o rapaz, que era meu amigo fez o papel e eu chamei mamãe: “assina aqui para

xei minha mãe com a minha avó... Estava acostumada. A minha mãe completou 13 anos de-

mim. Isso aqui é...” E ela assinou. Guardei o papel. Foi o que valeu para trabalhar na Urca.

pois de seis dias de casada. DA: 13 anos? Seis dias depois de casada?

DA: Foi trabalhar na Urca? A: Fugi e fui para a Urca. Quer dizer, che-

A: É. Na época da gripe espanhola, que dizimava todo mundo, meu avô em Rio Novo pas-

guei ao Rio de Janeiro e não conhecia nada. Tinha 16 anos, quase 17. Foi em setembro e eu

sou, parou o circo e botou os artistas todos para distribuir comida... O meu pai conheceu a minha

aniversario em novembro. Desembarquei na Central do Brasil. Não conhecia nada. Eu só

mãe entregando comida e remédios na casa dela.

sabia de uma pensão onde moravam artistas que trabalhavam com o meu avô. Faziam

DA: Por causa da gripe espanhola? A: E transformou o circo em um hospital. Botou os artistas todos para fazer as entregas, os Temperanis, os Queirollos, todos os que trabalhavam no circo carregavam comida... As mulheres cozinhavam. Salvou a cidade. Até hoje há uma fotografia de 2 metros do meu avô na Prefeitura de Rio Novo. Perdi papai. Como fazia os números de solo, queria trabalhar nos cabarés da madrugada. Não podia sair com 14, 15 anos, porque

cachê no circo. Moravam aqui [Rio de Janeiro] e trabalhavam nos circos daqui, porque existiam muitos circos nos bairros antigamente. Sabia que era a pensão Rio Lisboa, na esquina da Rua Lavradio com a Senado. Fui perguntando onde era a pensão. Vim de trem. E fui perguntando, perguntando e cheguei à pensão. Hoje é o Hotel Viçosa. Cheguei... e , antigamente, havia café da manhã, almoço e jantar. Estava todo mundo tomando café quando cheguei. Desembarquei às 8 horas e cheguei às 9:30, quase 10 horas.

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Cheguei lá. Aí me viram: “Oi, como está, Anqui?” Porque era Anqui, não Anquito. Meu nome é Anchizes, mas me chamam de Anqui. “Vim trabalhar na Urca...” Foi uma risada só, porque não tinha artista nacional na Urca. Só faziam a audição, um teste no intervalo dos balés que ensaiavam, uma vez, duas vezes por semana. Descansavam e os artistas que tinham feito ficha, faziam uma audição. Seria como na televisão hoje, a mesma coisa: “Faz a ficha, deixa o seu telefone que a gente telefona.” E o cara ficava esperando anos da vida e nunca

a portinha. Fui lá, e todo mundo passava e dizia: "Vim falar com o Sr. 'Fulano' Garcia". Fiz a mesma coisa. Entrei na fila, chegou na roleta e o segurança: "E o senhor"? “O Sr. 'Fulano' Garcia está me esperando”, abriram a porta e eu entrei. Fiz uma audição e fui contratado no mesmo dia. DA: Para fazer o que? A: Estreei como um grilo... DA: Grilo?

telefonavam. Aí riram e falaram assim: "Ninguém trabalha lá. Não faz isso, porque nin-

A: Porque saltava muito. Comecei a saltar... saltava para lá, para cá e o Sr. Garcia,

guém...” Eu disse: "Mas eu vou trabalhar lá." "Não dá para você trabalhar". "Mas eu vou. Tenho que trabalhar". Pedi que me ensinassem

que era o diretor geral falou: "Poxa, eu tenho visto gente da Europa toda — ele era portugu-

a chegar: "Pegue um ônibus ali... Forte Naval, São João, Largo da Carioca." Ensinaram-me como ir pelo Largo da Carioca. Cheguei lá às 11 horas, meio dia. Desci na Urca, porque o motorista me disse: "É aqui a Urca". Era aquela imensidão, aquele troço que tem até hoje, infelizmente abandonado. A Urca era indescritível. Coisa de cinema... de cinema é pouco. Eu fiquei olhando para aquela porta de vidro enorme, aqueles degraus que tem até hoje... Entrar como? Via descer. Parava um carro e descia lá na frente... entrava. O cara descia do ônibus e ia direto para aquela portinha. Fiquei olhando lá para longe. Tem até hoje

30 Doutores da Alegria

ês — mas nunca vi ninguém saltar desse jeito. Você é muito bom. É de onde?" Começou a perguntar, e eu falei que tinha vindo de São Paulo. E ele falou: "você veio..." "Vim trabalhar aqui." "Ah, você veio trabalhar aqui? Está bem, quantos anos você tem?" Eu disse: "16". Ele disse: "Poxa vida, não dá". Eu disse: "Mas fui emancipado". Aí mostrei o papel. Ele falou lá com o advogado, Dr. Fernando Robson. "Pode trabalhar". Fizeram a minha roupa e estreei como um grilo no show Canta Brasil. DA: Por tempo o senhor trabalhou lá? A: Ah, de 1941 a 1945, quando fechou. Fazia ciclismo. Montei um número de ciclis-

- História de Vida: Anchizes Pinto

tas, cômico-acrobático. Sempre acrobático. A base do meu negócio era acrobacia, porque era o que eu sabia fazer bem. Fiquei lá.

-

Fui para casa. Fiquei trabalhando nos circos e comecei a trabalhar... — eu tenho até propaganda disso —...no Maravilhoso [boa-

DA: E a sua mãe ficou em São Paulo?

te]... era um dancing, fazia shows lá. Trabalhava também no OK, que era outro Cabaré.

A: A mamãe estava lá em São Paulo, com a minha avó. Enquanto a minha avó viveu, eu

O Príncipe, que era um empresário que tinha contato com o Campo de Villes de Buenos

deixei a minha mãe. Depois que a minha avó faleceu, fui buscar mamãe e a trouxe...

Aires, mandou umas fotos, uns negócios, e fui contratado em Buenos Aires também. Fiquei

DA: Para o Rio...? A: E aí tive... nossa... convites pelo Cantinflas. O Cantinflas viu uns filmes meus e quis me contratar. Cinco anos de contrato para ir para... mas eu tinha que levar mamãe. Ele disse: "Não pode, você tem que ir sozinho primeiro, porque tem uma maneira de propaganda, tem não sei o quê... depois você pode mandar". Aí eu disse: "Está bom. Então estou fora". E não fui. Fui para onde ia a velha. Ela esteve comigo até os 94 anos de idade. Faleceu há 8 anos, ali na minha chácara. Estávamos lá, onde eu estou hoje. Fiquei na Urca, mas fechou... DA: Quando fechou, o que o senhor foi fazer? A: Voltei para São Paulo. Eu falei: "vou voltar para São Paulo". Estava desempregado, ué! Voltei para São Paulo e fui trabalhar nos circos de lá, porque, além dos circos, havia o Piolim e o Arrlia...

lá por 5 anos. Vinha todo ano ver mamãe e a família. Passava um mês, dois meses aqui e voltava para Buenos Aires. Fazia peão em Buenos Aires, Viajava pela Europa, fazendo acrobacia. Em 1952, um barão que era superintendente do Copacabana Palace me viu em Frankfurt. Já não tinha mais jogo [referência ao cassino do hotel], mas havia shows e esse seria um especial com a Lady... um show bonito. Era a primeira bailarina do Municipal e eu fazia um tigre saltando por cima dela. Aí então o barão me contratou para fazer um show aqui [Rio de Janeiro]. Eu falei: "eu vou, e ainda vou ganhar dinheiro nas férias." Vinha mesmo e vim. DA: No Copacabana? A: Fiz o show no Copacabana Palace. Então, João Daniel montou um tira-teima... aqueles teatrinhos pequenininhos de 200 lugares. Mini-teatros tinham uma porção e o João Daniel me contratou como atração. Só

Doutores da Alegria

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fazia um show no Copacabana à meia-noite. Ele pediu a licença e eu ganhava mais uma

o Oscarito"? Eu digo ainda: "força eu fiz, mas não, nunca consegui". Ele era bom demais. Mas

nota lá e trabalhava porque gostava. Trabalhava no Copacabana e no teatro. Adoeceu o

porque nunca vi trabalhar. Nem falo isso. Estou falando hoje para vocês aqui, mas nem

cômico e me pediram para fazer. Fui fazer de sacanagem no picadeiro. Fui substituir em uma

falo. Fiz 56 filmes, mais ou menos 60, 62, 63, porque têm uns à parte aí.

revista. Watson Macedo tinha saído da Atlântida e estava montando um filme dele:

DA: Todos para o cinema?

"Fogo na Roupa", me viu trabalhando e contratou para dois dias de filmagem. Fomos em

A: Só cinema. Não podia fazer televisão. Quando podia, fazia a Tupi de São Paulo.

1939 e eu passei a ser o primeiro ator do filme.

Quando a primeira televisão inaugurou fui fazer um quadrinho e, depois, a TV Rio. De-

DA: Esse foi o primeiro filme que o senhor fez? A: Foi "Fogo na Roupa". Passei de acroba-

pois a TV Globo. De vez em quando faço ainda. Foi assim... Surgiu então o Cinema Novo.

ta para cômico e não consegui sair mais. Estreou o filme e foi um sucesso. Fui contratado

Nas entrevistas me perguntam: "o que o senhor acha do Cinema Novo"? Eu digo: "Cine-

pela Cinelândia para fazer três filmes.

ma Novo? Primeiro que para mim não existe Cinema Novo. Existe gente nova fazendo ci-

DA: Que idade o senhor tinha quando fez o primeiro filme? A: Bom, eu já tinha... 1941, 1945... eu tinha 30 anos. DA: E começou... A: Em 1952. Foi isso. 30 anos de idade, eu acho. Mas não sabia nada de cinema, nem de coisa nenhuma... Fui fazendo aquela coisa de circo. Disseram que eu parecia muito com o Oscarito, que já era um grande sucesso. Nunca tinha visto o Oscarito, porque quando trabalhava com o Walter Pinto eu não estava aqui. Perguntam de vez em quando: "você imitava

32 Doutores da Alegria

nema." O cinema é o mesmo, né? Não existe cinema novo. A aparelhagem é nova? O pessoal é novo? Quer dizer, tem gente nova fazendo cinema, que por sinal são muito bons. Bons filmes... Um monte de porcaria também, como na época. Mas o Oscarito é que foi o precursor do cinema. Depois fui saber a história dele. Veio para cá muito cedo. Era espanhol, veio bebê... Oscar Teresa... o nome dele é enorme. Se existe cinema no Brasil, deve-se a ele. Fazia cinema em cima de caixote. O cara não era fácil não. Estou falando porque só soube disso depois. Teve o Zé Trindade, o Mazzaropi, o Otelo, que trabalhou muito com o Oscarito.

- História de Vida: Anchizes Pinto

Depois, quando o sujeito estava quase parando —porque também me disseram: "passou o Oscarito para trás?" Eu disse: "Dois cavalos correndo. Um pára. Quem ganha?" Cada pergunta estúpida... DA: O senhor parou de fazer circo? Parou de atuar no circo ou continuou? A: Parei com o circo e não fiz mais. Não dava...Fui para Buenos Aires, fazendo acrobacia e fui para o Liverger, o Astor, viajei um bocado.

-

se a ela: "contar a história qualquer um pode contar, mas provar, pouca gente pode". DA: Esse livro está publicado? A: Ah, ela estava escrevendo... Agora só depende de um patrocínio, tanto que está para ser lançado. Mas sempre dizia a ela que precisa comprovar o que faz. Então ela comprova. O livro tem 170 fotografias, fora contratos e coisas... DA: É sua terceira esposa? A: É.

DA: Mas antes de começar no cinema, você fazia mais acrobacia, é isso? A: Ah, sim, sempre fiz acrobacia. Era acrobata até 1952, no Copacabana Palace. Depois fui fazer publicidade por acaso. Gostaram e fiquei fazendo, como faço até hoje. Ligo muito e não ligo nada... Sempre fui da teoria que a vida são dois dias. DA: A vida é feita em dois dias?

DA: Como o senhor conheceu as suas esposas? Conta um pouquinho... A: Ela? Essa? DA: Não, todas. A: Ah, todas? É difícil, porque tem algumas casadas, não dá para contar. Eram dois, três meses com uma, montava a casa, e sempre saía com a escova de dentes. Por isso não

A: A vida são dois dias: ontem e hoje. De manhã você não sabe de nada, sabe? O que

tenho nada. Gasto tudo. Não tenho nada, dinheiro nenhum. Um apartamento, uma

vai fazer amanhã? Você pode fazer seus planos, mas certeza você não tem.

chacrinha, uma besteira, e o suficiente para viver. Não ligo para nada, nunca liguei. Cai-

DA: E o senhor casou? A: Tive algumas casas montadas e três casamentos. Minha mulher até botou no livro. É uma biografia com detalhes. Eu sempre dis-

xão não tem gaveta! Levar para onde? Tenho um monte de filhos por aí. DA: Quantos filhos o senhor tem? A: Registrados, que eu saiba, com certe-

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BOCA LARGA

za? Três. Tinha três. Uma faleceu aos 35 anos,

muito. Vitor Lima, Betanco, Eurides Ramos ...

na noite de Natal de 1982, mãe de três filhos. Deixou-me três netas lindas e bisnetas...

conheciam muito cinema... Hélio Barrozo Neto. Eu perguntava muito e eles me ensinavam. Sei

De vez em quando aparecem homenagens. O que fazer?! É o reconhecimento, pelo menos, do que eu fiz. O livro da minha mulher foi aceito logo de cara por causa dos detalhes. Desde detalhes como de quando meu pai conheceu a minha mãe... Ela começou por aí, com casos contados por minha mãe. Tem fotografias minhas no circo com o meu pai, com a minha mãe.

algumas coisas de cinema. Por isso que eu te digo que a Super Power era uma máquina com uma máscara. Se colocava uma máscara na lente, de um lado e você fazia o personagem aqui, cortava, voltava a máquina... A única que volta no lugar certo, no corte certo. Então voltava, trocava a máscara, de roupa, e fazia o outro personagem.

Cada coisa que ela conta tem uma fotografia ao lado... Tem até um contrato da Urca. Ainda

Era difícil... Um trabalho difícil. Fiz dois filmes assim. O "Metido a bacana", em que fa-

há uma curiosidade sim pela minha vida... a Telemar me fez recentemente uma homenagem

zia um príncipe e um pipoqueiro, e o "Pistoleiro Bossa-Nova", em que fazia os dois... O que con-

muito bonita; os Correios, os telégarfos e até professor de faculdade também.

fundia o pistoleiro... Aquela mesma história de todos. Foram esses dois. Agora... sucesso mes-

DA: Qual filme o senhor mais gostou

mo foi o que fez menos dinheiro. Marquei esse porque fez menos dinheiro.

de fazer? A: Gostei de todos. Como trabalho, tem

DA: Qual foi?

alguns melhorzinhos. Foram todos de grande sucesso de bilheteria. No "Metido a bacana"

A: O "Boca de Ouro". Não o do Nelson Rodrigues, outro. Uma paródia feita para o

eu fazia dois personagens... Hoje fazem dois personagens com duas câmeras de televisão.

Mazzaropi, que se mandou, fugiu. Foi para São Paulo fazer os negócios dele. Largou faltando

Três câmeras fazem três, quatro personagens, mas na época não. Só tinha uma máquina de

quatro dias para começar a filmagem. Já tinha tudo montado. Então o Dr. Alípio chegou: "Kito,

cinema que fazia dois personagens, porque se usava o reflexo. Havia a Super Power. Me en-

está tudo montado, não tem como. Você faz?" Eu disse: "Eu faço sim". Não é o meu caso. Foi

sinaram muito nesses 56 filmes, porque sou curioso, trabalhando com gente que conhecia

escrito para um caipira. Eu não sabia fazer caipira, mas fiz. Fez mais renda do que "O Manto

34 Doutores da Alegria

- História de Vida: Anchizes Pinto

-

Sagrado." Na mesma época que o "Metido a Bacana", que já era produção do Herbert Richard.

Mentira não tem graça. Você vê essa novela, Pé na Jaca: agrada. Não sei como agrada, mas

Todo mundo pensa que eu trabalhava na Atlântida. Nunca trabalhei na Atlântida. Sem-

agrada. E tem uns atores que são meus amigos. Mas não gosto, com exceção do Murilo

pre fui da Cinelândia e comecei depois com o Herbert. Só. E fiz aí os 56 filmes, com esses dois.

Benício, que sabe fazer graça muito bem. Aquelas caras dele, aqueles cacoetes são bons. Diz a piada na hora certa, no lugar certo.

DA: O que é preciso para ser um bom palhaço? A: Ser engraçado. Você precisa... se você gosta de ser palhaço, faz palhaço. Precisa saber apenas o seguinte: o humor é um negócio muito sério. Não é brincadeira. É sério demais. Drama qualquer um faz. Comédia não. Você vê os caras que tentam fazer cinema, comédia, não conseguem, mesmo que sejam excelentes atores de teatro ou televisão.

Como dizia, não se pode contar uma anedota no velório que não vai funcionar... Preste atenção, se você bater com esse mesmo pastelão no rosto de uma senhora de idade, não tem graça... mas, se você bater na cara de um galã metido a besta que está botando banca de todo lado o povo morre de rir. O expectador se identifica com a gente, com o personagem. Estão me chamando de falecido

O humor tem um tempo para você fazer, mas isso está dentro da pessoa. Você deve ter,

na rua até agora. Pulam em mim, uma vez deram um pulo em cima de mim, quase me

porque você faz o palhaço, e tem que ser verdade. Sendo verdade, tem graça. Se não for

derrubaram. Saia do supermercado com a minha mulher, a Denise. Uma mulher correu:

verdade, não tem graça. Por exemplo, não sei como é que eu posso te explicar. Você pega um

"o falecido", e pulou em cima de mim. Quase caí. Não caí porque a Denise me segurou. O

pastelão... simplesmente bate na cara do outro, não tem graça nenhuma... Não tem graça, se

falecido foi um personagem que fiz na novela Alma Gêmea. Se identificam de tal maneira

não tiver o porquê. Agora, se o outro estiver mexendo com você, cutucando você... você

que passa a ser realidade... Graça para criança é uma, graça para adulto é outra. Então

olha e faz um "beng" [voz forte] na cara dele. Aí tem graça, porque teve uma verdade... tem

você deve ficar no meio.

que ter o porquê bater com um pastelão. Não sei se eu estou me explicando bem. O humor

DA: Muito obrigado pela entrevista.

tem que ser verdadeiro, não pode ser mentira.

Doutores da Alegria

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Picoli

História de Vida: Benedito Esbano TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 00:40:58

Benedito Esbano: O meu nome é Benedito

andanças, assim: Tudo começou em 1890, com

Esbano. Sou filho de Eduardo Esbano e de Antônia Pereira Esbano. Nasci em Guaratinguetá

a chegada ao Brasil, vindo de Gênova, de um jovem italianinho de 23 anos de idade, cha-

em 23 de agosto de 1927. Estou com 79 anos.

mado Josepe Esbano. Somos de Guaratinguetá porque Josepe Esbano, quando veio da Itália,

O meu pai chegou bebezinho da Itália. Veio com meu avô, mas foi registrado em Guaratinguetá. Tanto meu pai quanto minha mãe são de Guaratinguetá. A minha mãe não era circense, mas casou-se e acabou se tornando. Vivi em Guaratinguetá até os 15 anos. Da minha avó materna eu tenho uma grata recordação. Como a maioria dessas pessoas antigas, era muito conservadora, mas muito alegre! Eu não sei se todos os portugueses são assim, mas ela tinha muita raça. Era muito alegre! Aos meus 15 ou 16 anos, faleceu. Não conheci meu avô por parte de mãe, nem por parte de pai, que faleceu no ano em que nasci, em 1927. Meu avô era da Itália. Começo o livro que eu estou escrevendo 1 , sobre as nossas

depois de andar muito por Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, se fixou em Guaratinguetá. O meu pai nasceu ali e eu também. E fiquei por lá até os 15 anos de idade. Doutores da Alegria: Conhece a história do encontro de seus pais? BE: Meu pai era filho de ciganos que se fixaram em Guaratinguetá e continuaram fazendo aquilo que o grupo deles fazia, trabalhos com metais, tachos, todo tipo de funilaria. Quando a gente se fixa num lugar, acaba até esquecendo um pouco das origens. Meu pai trabalhou numa fábrica como funileiro e foi barbeiro. O interessante é que descobriram um dom para o teatro. Meu pai e meu irmão eram atores. Se fizeram atores, gostavam daquilo. Isso foi naquele tempo do mambembe, daque-

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Benedito Esbano a Ângelo Brandini, Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 05 de março de 2007, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa. Net. Duração da gravação: 00:40: 58. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

le teatro de aventura, em que se formava um

Iorque, a família Mastandréia deixou o circo.

grupo que saía fazendo espetáculos pelo interior. Naquele tempo toda cidade de interior ti-

Quando um artista que fazia só um número no picadeiro, um trapezista, um malabarista,

nha um cinema que era cine-teatro.

saía do circo, não tinha importância, mas quando saíam artistas que participavam das

Cresci em Guaratinguetá e acabei trabalhando desde criança. Em 1942, eu já tinha 15 anos, apareceu na cidade um circo-teatro, o Circo Nova Iorque, da família Augusto. O dono do circo foi o famoso palhaço Pelado. Era um

peças, atores e atrizes, era um problema, devido ao teatro e porque desmontava-se todo o repertório de peças. Então, o Pelado nos convidou para acompanhar o circo. Já nos conhecia. Sabia que a família toda era de teatro.

palhaço muito bom. Esse palhaço chamou meu pai para fazer um conserto de funilaria, lataria

Não pensamos duas vezes, em uma sema-

e folhas, no circo. Ele foi, é claro. Teatro e circo, era tudo a mesma coisa. Acompanhei meu

na pegamos as nossas coisas e fomos embora para o circo. Meu pai estava empregado numa

pai para conhecer o circo. Eu me lembro que antes do final da temporada meu irmão pediu

fábrica, fazia serviço de funilaria. Teve que ficar para trás por mais alguns dias, para de-

para o dono do circo para apresentar uma peça de teatro ali e ele cedeu. Lembro-me até da

pois nos acompanhar. Este foi o nosso início na vida de circo. Mas já éramos de teatro.

peça: "O Gaiato de Lisboa", aonde eu fazia o Gaiato, o papel do menino. DA: Era uma comédia? BE: Era uma comédia portuguesa. Muito bonita. Pela peça, o menino deveria ter 12 anos, inclusive, certa vez, Adelaide Abranches — acho que é esse o nome dela —, aos 60 anos, representou esse "Gaiato de Lisboa". O teatro tem essa facilidade, não é? Como eu, por exemplo, com quase 80 anos, ainda faço Jesus Cristo na peça "A Paixão de Cristo." Ao final da temporada do Circo Nova

38 Doutores da Alegria

DA: Quem foi para o circo? BE: A família era: meu pai, minha mãe, eu e meu irmão. Mas nós levamos, também, mais três pessoas que faziam parte do grupo de teatro. Duas moças e um rapaz. Fomos em sete pessoas. DA: "O Gaiato de Lisboa" foi a primeira vez em que você representou no teatro? BE: Não, a primeira peça que fiz no teatro, aos 12 anos, foi uma comediazinha chamada "Uma Anedota". DA: Eram todos textos portugueses?

- História de Vida: Benedito Esbano -

BE: A maior parte das peças de circo eram

em apuros com a graça dele. Esse era o clown. Te-

portuguesas e espanholas. Algumas francesas. Não eram peças feitas para o circo. Eram dra-

nho uma foto em que estou de clown, em um cirquinho pequeno e meu pai de palhaço. Fiz clown

mas, comédias, levadas antigamente aos grandes teatros. Tinha uma tragédia portuguesa

para ele durante toda a sua vida de palhaço. Foi quando, em 1956, ele nos deixou.

que agradava muito quando a gente montava: "Ferro em Brasa", muito boa! E foi aí que iniciou a nossa entrada na vida circense. Já éramos de teatro e como o circo era circo-teatro, então não houve o que estranhar.

DA: Assim, você se tornou o palhaço? BE: É, passei a ser palhaço aos trancos e barrancos, numa necessidade que eu agradeço. Não à necessidade, porque meu pai fale-

O meu pai era um belo ator, tinha mais

ceu, mas foi uma necessidade. Meu pai era o único palhaço dali, o circo-teatro sempre teve

tendência para a parte cômica nas peças. Sempre os comediantes eram dele. Não foi difícil

um palhaço só. Não é como circo de tiro que tem vários palhaços. O circo-teatro era de um

para ele passar de comediante a palhaço Picoli. E eu, então, passei a fazer o clown para ele.

palhaço só e de uma responsabilidade tremenda. Se o palhaço não pegasse na praça, o circo

DA: O que é esta figura que você chama

fracassava. Então meu pai faleceu e nós contratamos um outro palhaço, da família Polito,

de clown? BE: Bom, o clown quer dizer palhaço tam-

para fazer a estréia conosco.

bém. O clown era o "bem vestido", que entrava com aquela espécie de macacão de cetim, com

DA: A essa altura vocês já eram os donos do circo?

aplicações muito bonitas, cartola, bengala, luvas brancas e sapatos de verniz, era o elegante.

BE: Sim. Estivemos no circo do Pelado, Circo Nova Iorque, por três anos. No final de

DA: Também era o "inteligente" da dupla? BE: Isso. Esse clown foi o primeiro palhaço do circo. Uns o faziam de bengala e outros como pierrô. Depois é que entrou o excêntrico todo maquiado. Então ele era o elegante e o palhaço era aquele engraçado, bonachão, o bobo que fazia tudo errado, mas que, às vezes, deixava o clown

1944 saímos do circo, em Machado, Minas Gerais, tínhamos a nossa trupe de sete pessoas e também a experiência do mambembe. Então nós pegamos só um amador, ali de Machado, e saímos em oito pessoas, trabalhando pelas cidadezinhas. A gente chegava na cidade e depois que chegava íamos procurar um lugar para trabalhar. Sempre foi de forma mambem-

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

be, como aventura. Trabalhamos em cinemas

vam na moda os pavilhões de teatro, cobertos

e em clubes. Assim fizemos por sete meses. Em 1945, no término da guerra, um pessoal do

de zinco. Então fizemos também o nosso em Santo André, chamou-se Teatro Popular Volan-

Circo Irmãos Martins nos chamou, nos conheceram no circo do Pelado e nos chamaram para

te. Continuamos com as peças, meu pai continuou fazendo palhaço e eu o clown. Só não tí-

ver se queríamos deixar aquela aventura e seguir no circo deles. Também não pensamos

nhamos aquele número de trapézio, não dava. Era só palco. Mas o circo e o malabarismo, esta-

muito. Fomos para o Circo-Teatro Irmãos Martins, em São João da Boa Vista. Ficamos

vam ali. Em 1957 meu pai faleceu. Contratamos um palhaço para estrear com a gente, e na

dois anos com eles. Em Jundiaí, em 1947, fomos para o Circo Simões. O dono não era ar-

véspera da estréia ele mandou dizer que não podia ir, que tinha que viajar para o interior.

tista, era só um empresário, mas tinha um grande circo. Foi quando chegamos em São Paulo,

Meu irmão olhou para mim, levantando aquela conversa: "E agora?" Me lembro até das pala-

em 1947, em São Caetano. Fizemos uma temporada com eles e foi quando apareceu um

vras dele: "É você!". Eu disse: "Eu o quê?" "Você vai ser o palhaço." Ele estava certo, eu conhecia

artista tradicional do Circo Lucy que queria parar com o circo e vender a lona. Compra-

as entradas cômicas fazendo o clown, elegante, certinho, que tinha sempre razão. O palhaço é

mos o circo, era pequeno, lutamos com um pouco de dificuldade.

outra coisa. "Não, mas você já conhece! E depois não tem outro!". Foi na véspera. Eu esco-

DA: E foram os oito? A companhia toda? Eram coesos? BE: A companhia toda. Sim, éramos. Pegamos outros artistas também. O elenco era muito certinho, porque estavam todos ali dentro, e os principais papéis das peças estavam com a gente. Então, mesmo se saísse um ou outro, sempre se dava um jeito. Tocamos o circo por nossa conta. Em 1953 ou 1954, resolvemos fazer um pavilhão. Esta-

40 Doutores da Alegria

lhi, então, uma das entradas cômicas que desse mais campo para fazer graça. Eu não me lembro qual foi, mas eu sei que escolhi a que mais dava oportunidade de graça, que fosse mais fácil para fazermos, e acabei entrando. Meu irmão fez o clown para mim. Fiz a estréia muito nervoso, com muito medo, apesar de saber que o público não sabia que eu estava estreando. Mas entrei por necessidade. Eu sempre digo: "Bendita necessidade!", amo ser palhaço. Depois fui pegando o jeito. Já sabia tudo como meu pai fazia. O meu pai agradava muito como pa-

- História de Vida: Benedito Esbano -

lhaço. E o nome do palhaço? Eu dizia: "Para

partes. A 1ª parte, no picadeiro, levava sempre

quê arrumar um outro se eu já tenho o nome do palhaço do meu pai?"

uns 2 ou 3 números. Não podia alongar muito. DA: Quais eram os tipos de números?

DA: Era palhaço e continuou como ator? BE: Sim! Sempre estivemos em circo-teatro.

BE: Era circo. Qualquer número: trapézio, malabares, números de altura, de solo e a en-

Era muito bom, muito gostoso, porque o circoteatro apresentava uma peça por dia, tinha um

trada do palhaço. Quando terminava o picadeiro, abria-se a cortina do palco imediatamen-

repertório grande. Quando terminamos, tínhamos um repertório de 90 peças. Estreávamos

te, sem intervalo, e aparecia então o humorista. Era um humorista caipira ou qualquer tipo de

sempre com uma peça espanhola intitulada "Terra Baixa" ou "O matador de Lobos". Estre-

humorismo. Então apresentávamos no palco um ato de variedades, como chamávamos.

ávamos no sábado. No domingo levávamos uma alta comédia intitulada "Hotel dos Amores". Na

Com cantores, cantoras e esquetes com o humorista. Quando terminava o ato de varie-

segunda-feira levávamos a tragédia portuguesa da qual falei: "Ferro em Brasa".

dades vinha o intervalo, de 10 ou 15 minutos, era para os artistas se trocarem para o drama

DA: Como era a estrutura do espetáculo?

ou para a comédia. A gente levava somente a peça, quando era muito longa. Nós levávamos

Primeiro apresentavam o espetáculo de picadeiro (o show de variedades) e depois os dra-

uma peça, que era "Conselho e Guerra", de 14 atos. Então o circo era assim, dividido em 3

mas? Como era? BE: Era dividido em três partes, mas nós

partes: picadeiro, variedades no palco e depois drama ou comédia (o teatro).

chamávamos sempre de 1ª e 2ª, tanto que quando um artista que não conhecíamos chegava lá,

DA: E você era de 1ª e de 2ª?

para ser contratado pelo nosso circo, a gente perguntava: "Você é de 1ª ou de 2ª?". O artista

BE: 1ª e 2ª. Além de palhaço, fui equilibrista e atirador de facas, mas me dediquei mais ao

já sabia. O de 1ª era do picadeiro, eram os números, e o de 2ª era de teatro. Então ele falava

palhaço mesmo.

"Sou de 1ª ou de 2ª" ou "Sou de 1ª e de 2ª". A maior parte deles era sempre de 1ª e de 2ª. O circo mesmo, o espetáculo, era dividido em 3

DA: E seus personagens no teatro eram sempre cômicos, ou faziam os dramáticos também? BE: Não! O gostoso era isso! O primeiro

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

papel que eu fiz depois de adulto, foi numa peça francesa: "Aimer" ou, "Assassino por amor". Eu fazia um conde. Eu não me lembro agora o nome do personagem, mas foi o primeiro. Então o gostoso era isso, porque num dia eu fazia um conde e no outro um mendigo, um cômico e um dramático. O gostoso era isso. Eu fazia um galã, fazia o cínico, como era chamado o vilão. Fazia o cômico e não havia dificuldade porque também fazia o palhaço. O bom era isso, o gostoso era isso.

saiava uma peça nova e com cinco ou seis ensaios, já a levávamos ao palco. DA: Não tinha tempo de decorar texto. BE: Não, não se decorava. Às vezes acontecia de um artista ficar doente no dia do espetáculo, mas a companhia era sempre grande e tinha sempre o reserva, o que ficava no banco sentado para isso. O outro artista entrava, pegava a peça no dia, lia a peça durante o dia, "enfronhávamos", como costumávamos dizer, e dava uma conversinha com o ponto: "Olha,

DA: E o teatro sempre tinha a figura do ponto?

cuidado comigo". E ia assim, sem saber nada! Eu me lembro de uma vez que eu estava traba-

BE: Eu fiz ponto durante muitos anos. O ponto era que nem o goleiro em time de futebol.

lhando no Circo Bibi, um circo de teatro muito bom. Trabalhava também um artista de um cir-

Qualquer coisa que o artista não pegasse muito bem, que vacilasse, o ponto era o responsável.

co Liendo, outro circo também muito bom, Cícero Liendo. E a dona do circo deu um papel

Eu fui ponto e sei disso. Tínhamos o sinal. Não podia falar muito alto, tinha aquela cupulazinha

para esse artista, o Cícero, na peça "O segredo do mordomo". Eu não conhecia a peça. Deu a

na frente e não podia falar alto senão o público escutava. Mas, às vezes a gente abaixava de-

peça para o Cícero na quinta-feira para apresentar no domingo. No sábado à noite (era aqui

mais, então, quando o artista não estava escutando, fazia assim: "toc, toc, toc" no chão, com

em São Paulo mesmo) — não morávamos no circo, íamos à noite e voltávamos —, o Cícero

o pé. Ele batia o pé no chão. Esse era o sinal de que não estava escutando o ponto.

chegou lá e falou: "Escuta..." e entregou o papel, "é muita responsabilidade esse papel para

Aí a gente alterava um pouco a voz. E não

a senhora me dar na quinta e eu fazer no domingo. A senhora, por favor, muda de peça".

era fácil o ponto não e também não era fácil para o artista trabalhar o ponto, ter a prática

Quando terminou o espetáculo, ela veio a mim e disse: "Sr. Esbano, está aqui o papel. O senhor

de trabalhar com o ponto. Porque a gente en-

vai fazer para amanhã". E eu já sabia dele e

42 Doutores da Alegria

- História de Vida: Benedito Esbano -

disse: "Mas um momentinho... eu não conheço

o artista que estava a três, passava a estar a dois...

a peça e é o papel principal, é o centro...", o chamado papel central da peça, o centro dramáti-

Tinha marcação... eu não sei o teatro de hoje como é...Ela disse: "Não precisa." Eu disse: "Mas

co... "e o Cícero leu a peça na quinta-feira e falou que não pode, e a senhora vem me dar ago-

escuta, e a marcação? Eu vou atrapalhar a marcação de outro, vou ficar vendido..." "Onde o

ra, sábado à noite, para amanhã?". Eu lembro o que ela disse: "O senhor faz!", e bateu a mão no

senhor ficar está bom." E aconteceu a peça e eu tive muita sorte, graças a Deus. Responsabili-

meu ombro. Eu peguei a peça, cheguei ali em casa, não fui dormir naquela hora. Li umas duas

dade demais eu sempre tive, e sabia. Entrei nervoso, talvez mais responsável do que nervoso,

vezes, porque não adiantava ler só o meu papel, tinha que conhecer a peça inteira. Ama-

porque eu sabia que eu pegava o ponto. Eu me lembro que no final da peça, nessa discussão,

nheceu no domingo, levantei cedo, li a peça todinha e me lembro que no final da peça tinha

descobria-se que esse mordomo era irmão de um fulano. E o mordomo começava a falar, contar

uma discussão desse personagem com o mordomo. Eu pensava: "Nessa discussão eu não

tudo para ele, aquela coisa: "Você fez isso..." e ele, então, vindo de cabeça baixa. Quando o

posso vacilar!". Porque com o ponto, a gente faz. Às vezes não pegava e dava uma risada, isso e

mordomo acabava de falar, ele erguia a cabeça, aproximava-se do mordomo e dizia: "Dá-me um

aquilo, e olhava para o ponto e batia o pé no chão, e tinha-se facilidade. Agora, numa dis-

abraço, meu irmão!". Então, o circo todo aplaudia. A platéia se entusiasmava muito. Isso era

cussão, numa conversa rápida, não dava. Então procurei decorar, tinha facilidade. E deco-

do circo-teatro, o público aplaudia mesmo, participavam de tudo. "Deixe-me abraçá-lo, meu

rei. E, no mais, ia com o ponto, porque eu tinha prática de pegar ponto. Entrei nervoso, é claro.

irmão."

Quando um artista era novo na peça, o ensaiador dava uma passada do texto, como costumava-se dizer. Não ia provocar um ensaio com todo mundo só por causa daquele artista. Aí eu falei para ela: "Vamos dar uma passadinha mesmo por causa da marcação". Tinha marcação que antigamente era: "Você está a um", "Você está a três". E em dado momento

DA: É a última fala da peça? BE: Sim, é o final. Então aplaudiram e a peça terminou logo. Quando terminou, ela veio em mim: "O papel é seu, Esbano!". Mas isso acontecia! Não era só comigo não, acontecia várias vezes. DA: Voltemos ao pavilhão teatro lá de Santo André.

Doutores da Alegria

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BE: Depois o teatro deu uma caída. Na década de 1960, mais ou menos, começou a cair e o circo-teatro acabou, infelizmente.

BE: Lembra o nome de algum circo? DA: Eu não lembro os nomes dos circos. Tinha um chamado Panamericano, mas acho que

DA: Acha que isso aconteceu com o circoteatro ou com o circo em geral? Por quê?

não era teatro. Tem umas falas que até hoje recordo, a gente repetia na cidade. Tinha um vilão

BE: Não, foi o circo-teatro que acabou. Eu vou lhe dizer uma coisa. Não é que o público

de "O céu uniu dois corações", cuja fala era ótima: "Vai indo tudo maravilhosamente bem".

desgostou e não quis mais o circo-teatro. Não é isso. O que teve um pouco de culpa foi o rá-

BE: No começo, eu fiz o galã de "O céu uniu dois corações" e depois fiz o cínico, De La

dio e a televisão. Naquela época, mais ou menos entre 1960 e 1970, os artistas de rádio co-

Torre: "Vai indo tudo maravilhosamente bem."

meçaram a ir ao circo, a dar espetáculos no circo. E lotava! Depois, então, com a televisão, mais ainda. Então, o dono do circo, que tinha sempre a sua companhia grande e que pagava, começou: "Mas espera aí, eles vêm aqui, enchem o circo." Começou a dispensar companhia e a ficar com uma família só, para fazer uma comediazinha e o palhaço, que era necessário. Então o palhaço apresentava uma comédia, uma chanchada, e depois então se apresentavam os artistas do rádio e da televisão. O próprio dono do circo acabou com o circo-teatro. Olha, nós ainda continuamos. Acho que fomos os últimos, porque o circo-te-

DA: É! Em cada malvadeza que ele fazia, falava isso. BE: De tanto falar aquilo, o público, às vezes, repetia no próprio espetáculo. O circo de tiro já existia, em menor quantidade. A maior parte era circo-teatro. O Garcia era circo-teatro no começo. Mas o circo de tiro continua até hoje. Não com a freqüência que tinha antigamente. Mas nós, depois que terminou o circo-teatro, também fizemos um circo de tiro e era só picadeiro. DA: Já era Circo Esbano? BE: Sim, o circo-teatro era circo Esbano

atro era maravilhoso, era muito bonito!

também. Era só teatro popular volante, mas sempre foi Circo Esbano. Ainda existe um cir-

DA: Eu não sou muito velho e vi o circoteatro quando era criança no final dos anos de

co Esbano por aí, de um sobrinho meu. É circo de tiro também: sem teatro, só de números.

1960, começo dos 1970. Ainda havia muito circo-teatro no interior de Minas Gerais.

No Norte ainda existem alguns circos-tea-

44 Doutores da Alegria

- História de Vida: Benedito Esbano -

tro. Outro dia estive conversando com uma

am. Era normal chover no circo. Nós tínhamos

senhora cuja família tem circo-teatro e era do Norte também. Nós até começamos a relembrar

também outra lei. Não sei como apareceu: quando chovesse, se já tivéssemos levado cinco nú-

as peças de antigamente. No circo-teatro, é engraçado, e no circo em si, havia muitas par-

meros no picadeiro, não precisava devolver o ingresso para o público. Se tivesse levado dois ou

ticularidades. O que era interessante era o respeito que existia. O circense não era tido, anti-

três, o público entendia e saía. "Olha, a chuva está demais, não dá, por favor, ao passar pela

gamente, como profissional. Ele não tinha carteira, não se assinava carteira para entrar no

porta, pegue sua senha e vamos marcar o dia para voltar." Existia tudo isso.

circo, não existia isso para o circo. O artista vinha para ser contratado e perguntávamos: "O que é que você faz?", "Bom, eu faço tal número, sou malabarista", "E quanto é que você quer ganhar?", "Eu trabalhava com outro e ganhava tanto", "Está bem, está certo, você estréia amanhã." Ninguém pensava em assinar compromisso nenhum. Mas existia o respeito. O artista, para sair do circo, tinha que pagar 15 dias para o diretor. O diretor do circo, o dono do circo, para mandá-lo embora também teria que pagar 15 dias. E ele sabia que era obrigado, mas obrigado por quem? Por ninguém. Era respeito que se tinha, e não existia lei nenhuma.

DA: Como era a relação com o público? Você fazia sucesso com as meninas, era assediado? BE: O palhaço era a figura principal do circo-teatro. Ele tinha que agradar. A companhia de teatro era muito importante, mas o palhaço era a figura principal. Tinha que agradar. Ficava falado na praça, na cidade. Como o De La Torre, que na peça falava: "Tudo maravilhosamente bem". Como eu, por exemplo, quando eu chego, sempre digo: "Eu sou o palhaço Picoli, que quando não está lá, está aqui". Essas coisinhas que se faz e outras coisinhas que pegam na praça... E o povo acaba usando aquilo no cotidiano. É claro que o palhaço era

DA: Era um código de ética próprio.

assediado pelas moças. Tanto que tem até esse negócio de dizer que "o palhaço é ladrão de

BE: Justamente. No circo-teatro, principalmente, não existia lona e nem o plástico, como se

mulher". E tiveram mocinhas que até chegaram a fugir com palhaços. Piolim foi um deles.

tem hoje. Era paninho de algodão. Quando chovia, varava tudo. O público aceitava isso. Tanto

Aliás, a moça era da minha terra, de Guaratinguetá.

que quando o tempo estava meio ruim, o público levava guarda-chuva para dentro do circo. Sabi-

DA: Piolim roubou mulher?

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

BE: É, roubou. Mas ela quis ser roubada.

sanitários e água. A gente chegava e via o vizi-

Foi com ele. Depois se casaram e viveram toda a vida juntos. O palhaço era assediado sim. E

nho mais próximo. A primeira coisa que se fazia era tomar o conhecimento com todo mun-

era muito gostoso, havia muito respeito naquele tempo. O artista do circo, ou o palhaço, não é

do. Isso é próprio do circense mesmo, conhecer tudo. Ele sabe que precisa dos outros. En-

porque sabia que, de repente, ia embora e acabou, que faltava com respeito à moça.

tão a gente conseguia justamente isso. A gente dava uma "permanente" para a família e pegava a água. A luz não, porque era ligada.

O artista de circo era que nem um marinheiro. Chegava num porto, era tudo novo. A

DA: Eu lembro que na montagem do cir-

gente viajava muito de trem de uma cidade para outra e na saída era aquela aglomeração.

co, por exemplo, todo mundo ajudava, não era só o pessoal do circo que ficava trabalhando.

Era circo-teatro. Podia-se ficar três, quatro meses numa cidade. Iam os filhos do prefeito,

Eu lembro que puxava aquelas cordas para subirem as lonas, a criançada, todo mundo.

filhos do delegado, todo mundo ali na partida. Era aquela choradeira na hora de ir embora.

BE: A criançada fazia questão de ajudar, porque depois eles sabiam que iam entrar de

A gente também pensava "puxa vida!". Tinha sempre muito jovem no circo, muitas mocinhas

graça. Então queriam vender pirulito, queriam vender maçã do amor. Aqueles que ajuda-

e rapazes. Mas, quando o circo chegava na outra cidade, acabavam as lamentações, por-

vam no circo tinham um carimbinho, que a gente batia na mão do menino pra que quan-

que aí vinham novas aventuras.

do chegasse à noite, ele mostrasse direto. E muitos também passavam por baixo, furavam

DA: É interessante isso no circo, porque, pelo menos no interior, quando chegava um

a lona. Isso era tradicional. É muito tradicional passar por baixo da lona. Apesar de que

circo, estabelecia-se imediatamente um vínculo ali com a vizinhança toda. Eu me lembro

circo-teatro, a maior parte deles, não era com lona de roda. Eram empanados, como a gente

que os vizinhos forneciam água para o pessoal do circo em troca de uma "permanente" para

fala. Era tudo de tábua, de zinco. Mas a gente deixava. Mesmo a criança que não tinha aju-

entrar o show. BE: É, justamente. Porque chegávamos nos

dado e que estava ali na porta do circo na hora do espetáculo e a gente via que não podia en-

terrenos... e não era como os terrenos que existem nas capitais, que já têm os banheiros, os

trar, não tinha dinheiro, a gente deixava. Então, tinha muito disso.

46 Doutores da Alegria

- História de Vida: Benedito Esbano -

Eu me lembro que o circo-teatro era obri-

artistas de rádio e de televisão que entraram

gado a ter três camarotes: um para o delegado, um para o prefeito e outro para o juiz. O

no circo. O circo de tiro existe ainda, mas com pouca freqüência. Eu sei: porque os artistas

importante é que eles compareciam: a família do delegado, a família do juiz e do prefeito. Os

sempre ganharam bem. Principalmente os artistas do circo de tiro; eles ganhavam e ganham

espetáculos podiam ser assistidos por qualquer pessoa. Hoje já é um pouquinho diferente. Às

ainda o seu cachê pela qualidade dos números. Não tem um preço só. É pela qualidade do

vezes, tem uma apelaçãozinha. Lá não tinha, nem do palhaço e nem das peças. De jeito ne-

número. E hoje a gente vê muitos artistas reclamando. Chega no fim da semana —porque

nhum. Então a gente tinha aquela satisfação de vê-los ali nos camarotes.

o circo paga por semana—, e dá apenas um vale porque não tem, porque a semana foi mal.

O circo era sempre bem acolhido. O circo Nova Iorque, o primeiro circo em que entramos, tinha a sua bandinha própria. Os músicos viajavam com o circo. Então, quando a gente descia na estação, os músicos já desciam do trem tocando, com farda, e tocando iam até o terreno do circo. A propaganda já começava na chegada. DA: Seu circo não tinha animais? BE: Não. É até curioso isso. Não me lembro de um circo-teatro que tivesse animais. Não tinha, não. Depois, quando passamos para o circo de tiro, aí sim tínhamos um número de cavalos, que era muito bom. DA: Quando você percebeu que o circo estava acabando? BE: O circo-teatro, como a gente já conversou, na década de 1960, acabou devido aos

Então, está existindo muito isso no circo. Eles continuam com o circo porque circense é mesmo de raça, aquilo é dele e ele não se conforma de, de repente, ter que deixar o circo e fazer outra coisa. Não dá pra isso. Mas continua ainda com público. Não é como antigamente, mas continua. Nunca tivemos apoio nenhum das autoridades estaduais, federais ou municipais. E tinha lugar, tinha cidade que, além de não apoiar, dificultava. Tinha cidade que o delegado não queria que o circo entrasse. Não sei se ele teve algum problema com o circo, porque dificultava. Até hoje é assim, o meu sobrinho está com um circo parado há duas semanas sem encontrar terreno para entrar. Os terrenos estão desaparecendo. E, quando se encontra algum, são muito caros. Quando é um terreno da prefeitura, é problemático porque precisa passar por tanta burocracia que quando sai a aprovação o circo

Doutores da Alegria

47

BOCA LARGA

não precisa mais do terreno. O dono do circo

de palhaço, com porta voz de lata e a criança-

não pesquisa 4 ou 5 terrenos. Quando percebe que já começou a fracassar, é que vai procurar

da atrás gritando. Às vezes, até a bandinha ia também. E o palhaço, de perna de pau, falava:

terreno. Então precisa do terreno de imediato. É uma pena, porque a prefeitura deveria coo-

"Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor. Hoje tem goiabada? Tem, sim senhor. E o palhaço é

perar com isso.

ladrão de mulher... não percam hoje, às oito e quarenta e cinco". O circo sempre começou às

DA: Hoje o movimento do circo se baseia em megaproduções, megaespetáculos. Você acha que esse tipo de evento ajudou a acabar com o circo tradicional? BE: Com isso, chegam a fugir do tradicionalismo do circo. Quer ver? Vou dar um exemplo: um mágico que fez o primeiro circo dele aqui. Saiu com um circo pequeno e voltou duas ou três vezes com um circo grande. Esqueci o nome. A última vez que veio, mais parecia um espetáculo da Broadway do que um circo. Não só a gente, os artistas de circo, notamos, como a própria imprensa. A própria im-

oito e quarenta e cinco. O circo-teatro não era oito e meia, nem nove horas, era oito e quarenta e cinco! Tem coisa que nem os próprios artistas se lembram mais: "Olha a moça na janela com sua cara de panela", "olha o jovem no portão com sua cara de mamão". Tinha coisas que eles cantavam e as crianças respondiam: "Hoje raia o sol, se esconde a lua, olha o palhaço no meio da rua". Os próprios circenses de hoje, se falar disso, não sabem. Esse tradicionalismo é que é o gostoso do circo. DA: Conheceu o Cirque du Soleil?

prensa disse o que estou lhe dizendo. Bonito, mas de número de circo mesmo tinha pouco.

BE: O espetáculo é bonito, mas decepcionou. Só trouxeram um pedaço do espetáculo,

Tinha mais bailado, aquelas coisas. Eu acho que o circo, quanto mais tradicional parece, melhor.

um pouco menos do que a gente esperava, isso decepciona. A imprensa também falou isso. Do

Eu acho que o circo não pode inovar. Se ele puder ter a bandinha ao invés do som, é me-

palhaço eu não gostei. Estava com uma bermuda, uma camiseta, sem maquiagem, sem

lhor. O gostoso do circo não pode desaparecer. Como o apresentador, que chega e diz: "Res-

nada! E a brincadeira foi chamar alguém da platéia e me lembro, foi até um senhor gordo

peitável público! A função desta noite..." —antigamente não se dizia espetáculo. Era função:

que não estava gostando muito do jogo. Até que ele ameaçou sair e o palhaço foi lá e o pu-

"não percam!". Antigamente, tinha o propagandista do circo, que saía na rua de perna de pau,

xou para trás. Coisa que eu não fiz de palhaço. E não faço nada forçado. Ele voltou, veio e

48 Doutores da Alegria

- História de Vida: Benedito Esbano -

depois saiu de uma vez. Depois o palhaço foi

DA: É só uma outra forma de trabalhar

lá e pegou aquele jornalista, o Chico Pinheiro, que deu um show! Roubou a cena do palhaço.

aquele número? BE: Sim, pela fantasia. Antigamente, o

A cena que o palhaço estava apresentando, era um tiroteio: o mocinho e o bandido. E a con-

bailado do circo antigo, quando o circo se chamava "Circo de Cavalinho", não se dizia "Che-

tra-regra muito boa! Saía "pá, pá, pá" na hora. Teve a cena final, que eles vão para atirar, o

gou o circo...", não! Era "chegou o Circo de Cavalinho!", e os senhores sabem o porquê de

Chico Pinheiro rolou no chão e sacou o suposto revolver ali e "pá, pá, pá... pá" e a contra-

"Circo de Cavalinho".

regra rápida, preparada; o rapaz que estava fazendo o palhaço o pegou e levantou os braços. Muito bom! E foi isso que ele fez. Não fez aquele palhaço que eu faço, que o Picolino faz.

DA: O que era o "Circo de Cavalinho"? BE: O circo não é uma atividade circense, porque atividade circense vem de tão longe e como os ciganos ninguém sabe de onde veio, nem nunca vai saber. É bom esse mistério. É

DA: Você reconhece nesse tipo de espetáculo alguma coisa do circo tradicional?

muito bom! Ninguém sabe quando começou a atividade circense. Há pouco tempo li que ar-

BE: Primeiro, acho que aqueles que assistiam o circo não eram ingênuos. Os circos conti-

queólogos chineses descobriram, na velha China, datadas de 5000 anos, marcas em pedra de

nuam a mesma coisa. O que o Soleil faz pode ser um circo. Eles fazem coisas que são de circo. Os

pessoas num exercício de número circense. Então vem de longe. A gente remonta sempre aos

números do circo continuam sendo os mesmos. É engraçado. O único número novo que apare-

saltimbancos, que eram também ciganos. Por isso eu digo que começou com os ciganos. Mas

ceu em circo, que eu sei, durante toda a minha vida, foi esse número de tecidos. O único!

Philip Astley, militar que tinha o seu número de cavalos, achou que poderia dar um espetá-

O Cirque du Soleil apresentou uns núme-

culo também como hoje em dia os militares dão com os cães, então uniu-se aos saltimbancos e

ros com altura muito criativos. Pode haver criatividade. Isso pode. O Soleil tem e seria bom

começou a apresentar espetáculos em galpões. Só que existiam poucos lugares. Resolveram

se os outros também tivessem. Ninguém pode ir contra a beleza. É muito bonito. E o Soleil

então fazer uma cobertura. E por que o picadeiro é redondo? Podia ser quadrado, retangu-

trouxe isso. Mas os números são os mesmos.

lar, mas o número de cavalos em liberdade faz

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

movimentos circulares. Então o picadeiro tinha que acompanhar. E o circo acompanhou o picadeiro também. O número principal do circo era o número de cavalos do senhor Philip Astley. Era o número principal, tanto que depois outros circos o fizeram e colocaram cavalos também, porque se achavam na obrigação de colocar. Daí que vem o nome "Circo de Cavalinhos"2. O que mais aparecia ali eram os cavalos. O transporte também era feito com carroças e cavalos, mas esse é o motivo dos "cavalinhos". Isso eu sei e tenho certeza. Eu acredito que o próprio bobo da corte também fazia o palhaço. O palhaço também se inspirou no bobo da corte. O primeiro palhaço era como o clown, fazia apresentações de cartola e tudo, ou como pierrô. Esse palhaço tinha que

só por mímica. O circo viajava de um país para outro e, a não ser que o artista fosse um poliglota, ou quase isso, ficava com as mímicas só. Aí eles acharam necessidade do palhaço pintar a cara, porque tinha que ter sempre aquele cômico principal. E esse que fazia o clown estava acostumado com aquilo de cantar e contar as piadas. Era mais um humorismo. Mas era chamado de palhaço. Depois as comédias passaram a ser faladas também. Como as chanchadas, que existem até hoje. Depois então, quando surgiu o palhaço cara pintada mesmo, para as comédias, aí uniram os dois: o clown e o palhaço que fazia as pilhérias. A gente não sabe de quando data essa junção. Sabem que as entradas cômicas dos circos de antigamente são as mesmas até hoje?

saber contar e tocar violão, porque a apresentação dele era com o violão. Ele cantava uma mú-

Se eu encontrar hoje, visitando um circo, um palhaço e ele me falar: "Escuta, eu estou

sica engraçada e no meio da música contava algumas pilhérias e piadinhas. Como: "Minha pri-

sem clown hoje à noite. Me faz o clown?". O que eu vou perguntar para ele? "Qual é a en-

ma Doralice, convidou para vir dançar lá no baile, então eu disse só se a mamãe deixar... Poma-

trada?", e ele fala assim: "O Filho Pródigo". E como sei, não precisa ensaio. Ou a entrada da

da, pomada, pomada de caixinha, tudo isso acontece para quem anda de pastinha... O palhaço

"Chiquinha", a entrada da "Abelhinha", que é a mais levada em circo!

deste circo, já não tem mais o que fazer, vai mexendo a tal pomada, tem pomada para mexer".

DA: A da abelhinha é maravilhosa! É uma

Essa era uma das músicas que se cantava. Isto minha mãe que me ensinou.

das melhores. BE: Eu fiz um filme com o Dedé Santana,

Depois surgiram as pantomimas, que eram

"Os Irmãos Sem Coragem", parodiando a novela da época, "Os Irmãos Coragem". Ainda não

50 Doutores da Alegria

- História de Vida: Benedito Esbano -

tinha "Os trapalhões", era o Dedé Santana e o Dino Santana, Maloca e Bonitão, e uma cena

DA: E você tem isso documentado? BE: Fica tudo na cabeça! Não tenho nada

era dentro do circo. Eu estava levando com o meu sobrinho a "Abelhinha" no picadeiro e o

documentado. O Dedé me pediu. Aí é que eu fui procurar relembrar tudo, as pilhérias... Por-

Dedé vinha correndo, entrava no circo, no picadeiro, e eu o pegava e fazia a cena com ele.

que a gente levava as entradas cômicas e, antes das entradas, as pilhérias. E as pilhérias

DA: "Abelhinha, abelhinha, joga mel na minha boquinha...". Qual dessas entradas você, como palhaço, mais gostava de fazer? Ou gosta, ainda? BE: Olha, tem tantas. As entradas eram muito boas. Essa "Abelhinha" a gente usava mais nas matinês, porque era mais infantil. Mas a do "Filho Pródigo" é muito boa. A da "Chiquinha" também é boa. A história do casamento. Aliás, eu estou escrevendo para o Comando Maluco. O Hilton Franco pediu pra mim, e eu até falei pro Dedé: "Poxa, mas você também se lembra do circo, de tudo...", "Ah, mas eu já esqueci", e eu até escrevi para ele. Pus "O Filho Pródigo", a "Chiquinha"... DA: Tinha sempre umas com assombrações que eram boas. BE: Eu uso até hoje. Outro dia fui agraciado com o prêmio "Carequinha" da FUNARTE. Tive que levar 5 espetáculos nas escolas e tinha que ser um espetáculo com criatividade. Então coloquei o nome de "O Circo no mundo da fantasia" e fiz uma interação dos palhaços com os personagens de histórias infantis. Levei uma dessas entradas da assombração.

também já eram conhecidas. "Então, qual que vai hoje?", "A pilhéria do sonho e a entrada da Chiquinha". Os artistas conheciam. Já sabiam. Fazia-se primeiro uma ou duas pilhérias e aí a entrada cômica. A gente procurava usar sempre as melhores pilhérias e entradas cômicas, logo de cara, para pegar bem. O palhaço pensava e o povo já estava dando risada. DA: Você tem filhos? BE: Eu tenho quatro. Continuam a tradição. Quando o meu irmão viajou com os Neves, eu fiquei pra cá. A minha mãe já era de idade, um pouco doente e não podia viajar mais. Já que os meus filhos estavam na idade da escola, eu aproveitei para colocá-los na escola e "estudá-los". Tanto que eles são todos formados. A minha mais velha é publicitária, tem a caçula que não chegou nem a fazer circo e está se formando em direito. Tenho um filho que estava fazendo Rádio e TV aqui e quando estava no 3º semestre, falou: "Pai, eu vou para Londres estudar inglês para voltar e ter mais campo. O senhor tranca a minha matrícula". Ele foi para lá numa segunda-feira e na terça-feira já estava estudando. Eu dei o dinheiro para ele ir, paguei

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

a passagem, 1500 dólares, e depois ele teve que se virar lá porque eu não podia bancar. Lavou

gosta daquilo! Ela é aquela que chega e cumprimenta de um jeito que é como se dissesse:

uns pratos por lá. Fala inglês perfeitamente bem, voltou e queria continuar a faculdade, mas

"Eu estou aqui. Batam palmas!", de um modo que ela gosta demais.

como passou muito tempo teria que recomeçar, perdeu tudo aquilo, então o que ele fez? Se

DA: Legal! E todos eles foram educados

formou em acupuntura. Massagista antes, depois acupuntura e, por último, fisioterapia.

em circo? Todos cresceram no circo? BE: Todos nasceram no circo, menos a mi-

É fisioterapeuta, acupunturista, fala in-

nha caçula, que foi adotada. Mas era para ser nossa filha mesmo! Então aproveitei e formei

glês perfeitamente e sabe onde está? Trabalhando em cruzeiros! Em navios, faz cinco

a todos. A época era boa. Eu ganhava pra isso, graças a Deus! Então eu tenho até orgulho de

anos, já! Ele está fora do país faz 20 anos, mas veio só nessa época e fez a faculdade. Mas o

quando posso falar: "Eu formei meus filhos", o que não quer dizer que estejam esquecendo

circo para ele é tudo! Ele faz de tudo em circo! Ele é trapezista, malabarista, equilibrista, sal-

do circo. Pelo contrário, não esquecem do circo de jeito nenhum!

ta, faz de tudo. O número de laço e chicote que é o forte da família, toda a família faz, ele faz e está lá mostrando no navio. DA: Então ele faz circo nos navios.

DA: E você nunca trabalhou em outra coisa? BE: Nunca. E não posso reclamar. Tenho a minha casa, graças a Deus. Não é um palácio, mas é uma casa boa. A minha filha mais velha

BE: Faz o show sozinho. Ele fantasia, é ator também, mistura. Tem dias que ele sai de

tem o apartamento dela, a minha caçula, que vai se casar agora, já comprou casa. E tudo com

Charles Chaplin, faz todas aquelas coisas, faz de tudo sozinho. Tenho uma outra filha. Esta

circo, com os números, com o meu palhaço.

não quis estudar. Ela é meio nervosa e para chegar até o segundo grau foi cansativo, mas em compensação, é muito atirada! Todos eles amam o circo! A minha filha mais velha é publicitária, diz: "Pai, quando o senhor parou para a gente estudar, o senhor não deveria ter parado". Ela se empolga demais no circo. Ela

52 Doutores da Alegria

DA: A sua senhora era de circo também? Como se conheceram? BE: Não. Nos conhecemos em São Judas Tadeu. Ela era mocinha ainda. Nós chegamos com o Pavilhão lá e ela era muito saidinha. Logo que chegou no circo, começou a conversar com os artistas, depois já não ia mais para

- História de Vida: Benedito Esbano -

assistir o espetáculo de graça, entrava no palco e aconteceu até um caso interessante no

DA: Hoje em dia tem pouco circo, mas tem muito palhaço de formação teatral. O que você

palco do teatro. Nós estávamos levando naquela noite "Deus lhe pague" e, engraçado, tem no

acha dos palhaços da nova geração? BE: São grupos de entusiastas da nossa arte

"Deus lhe pague" uma pontinha, como nós costumamos dizer, um papelzinho pequeno que

e é muito bom! Eles formam, organizam grupos, como os Parlapatões e outros mais. E eles então

nem nome tinha, que era "A Vizinha", que entra e fala uma coisinha de nada. No 2º ato, lem-

montam um espetáculo de circo dentro do grupo. Nunca foram de circo. Não fazem o palhaço,

brei com o meu irmão: "Escuta, e a vizinha, quem vai fazer?". Eu não sei o que tinha acon-

por exemplo, que eu faço, com a tradicional peruca careca. Se maquiam, às vezes, não tão for-

tecido com a moça que fazia. Se tinha saído... só sei que não tinha quem fizesse a vizinha. E a

te como o palhaço tradicional se maquia... às vezes, não tem muita graça. Mas eles gostam e

minha mulher, que hoje é minha mulher, estava sentada ali no palco. Aí meu irmão falou:

isso é muito bom pra gente! Eles estão conseguindo o que os artistas de circo mesmo, tradicionais,

"Escuta, vem cá, vem cá! Eu vou te explicar e você vai fazer a vizinha". "Não, mas eu nunca trabalhei...". "Não, mas você faz!" Nós explica-

nunca conseguiram! Eles conseguem tudo. Eu lutei com o meu irmão, com a secretaria da cul-

mos na hora, ela entrou e fez a vizinha, pela primeira vez. E hoje é uma bela atriz.

tura, quando o Sr. Marcos Mendonça era secretário e nos embrulhou. Nós queríamos resgatar o circo-teatro! Meu irmão fez um circo bonito, vendeu um terreno e uma casa em Mogi Mirim para

DA: Ela entrou para a companhia? BE: Entrou. Pediu para a mãe para acom-

fazer o circo. E nós não conseguíamos nada. Eles conseguem! Eles botam o circo no Anhangabaú,

panhar o circo. A mãe dela deixou. Acompanhou o circo antes de nos casarmos. Tirou nú-

armam circo em tudo quanto é lugar. É o que eu falei com o José Wilson no raso da Catarina, con-

mero de altura, aquela corda indiana, e é uma bela atriz. Hoje em dia a gente fala em levar peça

versando sobre isso: "Zé Wilson, deixai-os vir! São bem-vindos! Eles estão conseguindo pra gente

e ela não quer mais. Nesse espetáculo que eu fiz para a FUNARTE, em que eu levei o negócio da

uma porção de coisa!" E eles chamam de circo moderno, não sei porque. Mas é isso. Eles podem

Branca de Neve misturado com os palhaços, falei: "Escuta, você vai fazer a bruxa para mim".

não ter a graça do palhaço, mas fazem e conseguem. E isso é bom.

No fim ela foi. Mas é gostoso! Eu tenho certeza que ela gostou. Representar é muito bom!

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

DA: Quais são os palhaços que admirou

conhecia nem o Arrelia. Antes fazia só teatro.

em sua época? BE: Olha, os palhaços que se tornaram mais

Não tinha circo. Mas o Pelado devia ser mais velho que o Arrelia. Pela idade com que o Ar-

conhecidos foram aqueles que estiveram na mídia pela televisão, como o saudoso

relia morreu e que o Pelado morreu. Ele tinha mania de falar "Vagabundo" . Então a fala é

Carequinha, o Arrelia, o Torresmo, Fuzarca, Chicnharrão que nem chegou a fazer televisão.

igual. Existe sempre essa curiosidade da minha parte: quem será que copiou quem? Não

Chique-Chique, outro palhaço muito bom! Todos eles eram bons. O Chique-Chique, eu me

sei até hoje. Não estão aqui, então eu não sei. Sobre palhaços e admiração... bom, os palha-

lembro dele, era criança ainda quando o assisti.

ços de antigamente eram muito bons! Eles seguiam aquela mesma escola. Era uma coisa

Não é porque foi o primeiro circo que nós entramos, mas o palhaço Pelado era muito bom! Ele tinha classe, dentro daquela jocosidade dele.

muito severa e já vinha de família, de pai pra filho, pro neto e os números de circo também.

É engraçado, é uma curiosidade, porque o palhaço, para ser completo, tem que fazer desco-

DA:A tradição de circo tem um pouco essa trajetória familiar, não?

bertas. A graça não dá para ensinar. É o que eu sempre falei. O palhaço não se ensina. É possí-

BE: Iam passando de um para o outro e as coisas do circo eram levadas muito a sério. Ti-

vel orientá-los quando já têm um dom. O palhaço tem que saber usar os gestos, cair engra-

nham alguns que o pai queriam que fossem palhaços, mas que não dava para aquilo. Não adi-

çado, levantar engraçado, mímicas... e outra coisa: tudo de um modo simpático, porque às

antava. A primeira coisa que o pai e a mãe fazem para o filho, no circo, quando tem seus 3 ou

vezes a gente vê um negocinho meio agressivo. O palhaço tem que ser todo simpático! Eu acho

4 anos, é pintar a cara de palhacinho. Mandam sair e ele vai, mas depois começa a crescer e vê

e procuro fazer assim. Esses palhaços antigos, como eu estava falando, tinham tudo isso. En-

que não é aquilo e acabou. Alguns dão certo...

tão não tinha um que eu admirava mais. Mas do Pelado sempre fui fã! O modo de falar do Arrelia era o mesmo do Pelado. Primeiro conheci o Pelado, depois o Arrelia. Na época, quando entrei no circo, eu não

54 Doutores da Alegria

Já que eu estou contando sobre tudo da minha vida, eu fiz um filme também. E já que estava falando de cinema, o filme era do diretor Denoir de Oliveira, saudoso Denoir de Oliveira. Ele gostava demais de circo! Foi lá em casa. Era "Sete dias de agonia". Ele colo-

- História de Vida: Benedito Esbano -

cou a família de circo dentro do filme. Estávamos eu, minha esposa, meus filhos, todos lá. Foi tirado de um livro "O encalho dos 300".

tem alvará para falar errado", então eu falo. Eu entro e falo: "Rispeitáver Púbrico! Eu sou o palhaço Picoli, que quando não está lá, está aqui! Muito Boa noite! Ah, não! Assim não!

No filme eu fiz o palhaço Picoli. Eu tenho até a fita em casa e a família toda trabalhou.

Eu quero muita alegria, eu quero um boa noite bem arto! Boa noite! Ah, assim está bom,

Na hora da apresentação do show, ali no meio do barro, com aqueles caminhoneiros todos

assim está bom!". Aí eu cumprimento o meu clown: "Como é que vai rapaz? Tudo bem?". E

sentados em cima dos caminhões, dos tijolos, assoviando, o Denoir falou: "Esbano, eu tenho

quando tem idosos eu entro e falo: "Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor! Hoje tem goia-

o texto aqui, mas esquece o texto. Faz como você quiser". Pensei comigo: "Eu tenho que ar-

bada? Tem, sim senhor! E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!".

rumar um jeito de falar o meu nome, já que estou trabalhando aqui". Foi quando usei:

DA: Obrigado, obrigado!

"Hoje tem marmelada?", aquela coisa do circo antigo... "Eu sou o palhaço Picoli, que quando

BE: Poxa vida, eu que agradeço! Eu é que

não está lá, está aqui." Eu bolei isso na hora e depois ficou. Fiz parte como palhaço e tam-

agradeço de estar aqui!

bém, de cara limpa. DA: Qual o bordão do Picoli? BE: Nem sempre eu uso esse negócio de "Hoje tem marmelada? Hoje tem goiabada?". Em lugares especiais, que vejo principalmente idosos, eu falo. Mas quando não tem isso no circo, na apresentação, é comum. O "Respeitável Público" eu gosto de usar, só que falo já com a voz diferente. Outro dia eu fiz uma entrevista e ainda falei: "O palhaço é o único que

Notas Ao começo da entrevista, Benedito Esbano relatounos o desejo de publicar sua biografia, para qual junta material e alguns trechos. (2) Sobre o circo de cavalinhos, conferir Alice Viveiros de Castro. O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro, Editora Família Bastos, 2005; "Um jeito brasileiro de ser palhaço: apontamentos de uma história do palhaço no Brasil" in Boca Larga, vol. 1. São Paulo, Doutores da Alegria, 2005, pp. 53-65. Cf., também, Mário Fernando Bolognesi. Palhaços. São Paulo, Editora UNESP, 2003 (nota do editor). (1)

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Walter di Carlo: Meu nome é Walter Di Carlo, nasci em um dia muito florido, o mais florido do ano, no dia de Finados de novembro de 1931. Vou completar 76 anos. Nasci em circo, sempre vivi de circo e casei com uma excelente artista de circo. Nasci no Rio de Janeiro, na rua dos Invá-

Pedro II e caiu lá de cima, de casaca, dentro da lagoa. Foi um vexame danado. Já trabalhamos nesse circo do Joaquim de Araújo. Tinha muitas feras. Eu era muito pequenininho. Meu pai era muito amigo da Família Olimecha. Vivemos a maior parte da infância no Circo Olimecha. De manhã, a gente en-

lidos 177, onde hoje é um depósito de bebidas. Quando falo em circo fico emocionado.

saiava e eu adorava os palhaços. Eu ficava no camarim deles. Achava que o maior palhaço do Brasil se chamava Tomé Bartolo Olimecha. Eu

O meu pai viajava muito com o circo,

era pequeno e o que me chamava atenção era o modo como fazia o trabalho. Era interessante

possuiu um que faliu no Rio de Janeiro há muitos anos, era alemão, chamava-se Berlim,

porque ele tinha o riso gozado.

e foi comprado pelo Sr. Joaquim de Araújo, um grande equilibrista que conforme contam

Os palhaços saltavam, faziam cascatas,

os antigos de circo, certa vez fazia equilíbrio na Quinta da Boa Vista, na presença de Dom

quedas... Eu os adorava. O Alfredo não tinha uma mão. Parece que houve um problema com

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Walter di Carlo a Morgana Masetti, Dani Barros e Diogo Cardoso no dia 03 de Mario de 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. 01:32:00. Transcrição por Global Translations.

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Walter Di Carlo

História de Vida: Walter Di Carlo* TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS – ÁUDIO - 01:32:00

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explosivos. Alfredo era o clown. Havia o clown e o tony de soirée, o palhaço. Adorava o Tomé. Meu apelido era Teco. Falavam “Terecoli terecolá, escorrega aqui, escorrega lá”. Os dois irmãos trabalhavam juntos, mas não se davam e não se falavam. Falavam comigo, um ou outro falava comigo. Eu achava aquilo estranho, mas... eles colocavam o que iam fazer num papel, número da entrada do boxe... estava escrito lá. Faziam, se abraçavam em cena, mas não se falavam. Morreram sem se falar. Eu adorava os Olimechas. Naquela época, havia um número final: Árabe. É de salto. Após o circo, vinha o salto. Era pequenininho, mas fazia o número de salto também. [Sobre meu pai,] foi sempre um camarada. Não sei se sofreu muito nessa vida de circo, porque tinha um recalquezinho. Era de uma família de tradição muito boa, forte. Tinham muito dinheiro, mas perderam tudo... Doutores da Alegria: O que sabe sobre as gerações passadas? W: Meu pai não falava nada, não contava,

Argentina a história do Circo Crioulo e da Família Carlo. Quando trouxe isso para a Escola Nacional de Circo, me interessei porque meu pai não falava quase nada. Contavam que a minha avó trouxe aqui para o Brasil um número de pombas, que vinham na palma da mão. A pomba saía, levava não sei o quê, fazia uma porção de coisas. Além disso, fazia números a cavalo. Fui à Biblioteca Nacional pesquisar. Por aquele livro do Circo Crioulo, da Argentina, “puxei” 1874 aqui no Rio de Janeiro. Na Rua do Lavradio, 94 ou 96, se eu não me engano, havia o Politeama (referência a um teatro) fluminense. Lá estava escrito “Irmãos Carlo”. Nessa época, meu pai não era nascido (nasceu em 1887). Eles vieram para cá com cavalos. Ocorreu espetáculo muito grandioso. Trabalhava o Frederico, o George, que é o meu avô, e a Amélia, que trabalhava sobre o cavalo. Antigamente, fazia-se muitos números de cavalos e excêntricos... Foram para a Argentina, voltaram... DA: Os seus avós eram brasileiros?

era meio fechado. Quando pequeno, me levava na Quinta da Boa Vista onde dizia haver um

W: Não. Meu avô era estadunidense, e meu bisavô inglês. Minha avó Amélia era francesa,

esqueleto de elefante: “Esse foi do circo do seu avô”. Só que fiz pesquisas e não encontrei nada,

mas descendente de ingleses.

por enquanto, de elefante. Fiz as pesquisas através da Alice Vieira de Castro1, que levantou na

DA: E os dois provinham de famílias circenses?

58 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walter Di Carlo -

W: Famílias tradicionais de circo. Descobri, por meio de uma história que meu filho obteve na

DA: O seu avô não tinha circo próprio? W: Não. Teve um circo, mas não conheço a

internet. Depois que “puxei” na biblioteca, vi que existiam mesmo os Irmãos Carlo. Era verdade.

história. Meu pai era muito fechado, entende? Minha mãe também era de família tradicional

DA: Como seus avós se conheceram e

circense, Argentina, Vila Maior, mas veio com dois anos para o Brasil. Fazia trapézio volante

como vieram parar no Brasil? O senhor sabe? W: Não sei a história. Percorreram muito

sem rede. Etelvina. Tomava muitos remédios — ela dizia — porque já tinha quatro filhos. Eu

os Estados Unidos. Depois, foram para a Austrália. Rodaram bastante. Vieram para a Amé-

era o quinto. Não me queria. Mas este negrinho nasceu. Disse também que, grávida, chegou a

rica do Sul, depois voltaram e foram para a Argentina. Foram para Montevidéu, voltaram

fazer um número de cair de calcanhar sem rede. Por isso, tenho medo de altura. Meu negócio é

outra vez, fizeram teatro. Depois do fim, aqui na Rua do Lavradio, começaram a trabalhar no

malabarismo. Meu pai montou, depois, um número de Escada Diabólica, que adaptou de uns

Teatro São Pedro, que venceu o João Caetano. Colocavam no palco um tapete de coco para os

ingleses que trabalhavam no centro, na Av. Rio Branco. Talvez no Teatro Politeama, não sei dizer, que trazia grandes atrações internacionais.

cavalos não escorregarem. Depois, aprenderam de um inglês, chamado Frank Brown, se não me engano, um número de pantomima aquática. Um “Mata Louco” dentro do palco. Foi um sucesso. Em seguida, foram morrendo um e outro. Meu pai nasceu aqui no Rio de Janeiro, em 1887. Foi crescendo, depois se acabando, porque morreram os mais velhos. Eu sei que ele ficou sozinho, fazendo um número no Rio de Janeiro com um irmão que já faleceu. Chamava-se George Di Carlo. Sei de uma história sobre um Cassino não sei onde, na Laranjeira ou no Catete, em que faziam um número de malabarismo e um com cães, os Irmãos Carlo. Está

Viu um inglês fazer um número com barricas. Homens embriagados subiam na barrica. Depois, no final, a barrica caía. Faziam uma “cambotinha” para trás e terminavam o número. Meu pai bolou algo com escada e mesa. Fazia algumas cascatas na mesa, depois subia na escada, balançava — coisas de palhaço —, e caía. Foi um número com o qual viveu muito tempo. Minha mãe com o trapézio volante. Foram nascendo os filhos, ele foi montando um número de dança acrobática. Edgard, George e eu fazíamos um número desse tipo e malabarismo. Minha irmã, com seis anos, fazia um nú-

registrado na Biblioteca Nacional.

Doutores da Alegria

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mero de arame com malabarismo. Casou-se com esse número. DA: Vocês moravam no circo?

W: Aos sete ou oito anos, passei para o segundo ano, porque já sabia fazer prova. Meu pai era um engenheiro que não tinha formação cultural. Ele sabia fazer tudo no circo. A

W: Muita gente chegava a morar, mas houve uma fase em que a gente alugou tam-

lona, aparelhos... era muito habilidoso. Até a pasta para ir ao colégio ele fazia! A partir de

bém. Aqui, onde nasci, no 177 da Rua dos Inválidos, foi um casarão antigo. Havia muitas

uma lona “10”, ele passava um verniz e parecia couro. Cortava, ele mesmo fazia. Estudei

casas de cômodos com quartos enormes onde morava muita gente de circo, porque era pró-

muito pouco. Fiz o “tico-tico”, o primário. Na época havia latim e francês no primeiro ano,

ximo do local em que se armava o circo. Aqui no centro, na Tiradentes, na Rua do Lavradio.

mas meu pai não agüentou pagar e teve uma decepção comigo. No começo, era bom estu-

DA: Vocês moravam ali? W: Ali morei muitos anos e nasceram quatro irmãos. Norma, Edgard, Aldo e Walter. A Elza nasceu em São Paulo, é a mais velha. DA: Então, o senhor cresceu no Rio de Janeiro. W: Sim. O interessante é que meu pai... todo pai gostaria que seu filho se formasse. A gente de circo nunca... em circo não se quer saber de instrução. Instrução maior é o picadeiro. Ler e escrever são à parte. Você aprende. Nosso próprio pai ensinava a ler e escrever. Quando fui para o colégio, já sabia ler e escrever. DA: O senhor foi para o colégio com que idade?

60 Doutores da Alegria

dante, mas depois fiquei muito preguiçoso no colégio. Não gostava muito. Gostava de circo. Então pulava o muro para jogar futebol. Tinha aulas de música, uma aula chata de latim... chata pra caramba! Acabei levando “bomba”. Fiquei com recalque, porque ouvi meu pai falando com o diretor: “Então o senhor o coloca à noite! É mais barato.” Ele tinha dificuldade. Você, hoje, tem facilidade de ensino gratuito. Naquela época, não tinha tanta facilidade assim. Mesmo quando meu pai já estava doente, chegou a fazer o último pano para o Circo Olimecha. Trabalhou na Avenida Brasil onde havia uma igreja com um galpão. Eu levava até comida para ele. Tinha 13 ou 14 anos. Eu levava comida... Estava muito doentinho, mas quis terminar o pano. Terminou de fazer o pano do Olimecha, que era amigo de infância.

- História de Vida: Walter Di Carlo -

O toldo do circo era feito de algodão. Um algodão grosso que ele cortava feito um balão. Fazia gomos, depois havia o relingue, o empate, uma porção de coisas. Impermeabilizava

“Bum, bum, bum”. Escutei e corri para minha mãe. Era medroso para caramba... DA: Que idade você tinha?

com um preparado que aprendeu. Entregou o pano e adoeceu. O internaram em

W: Eu tinha 13 ou 14 anos, mas era medroso, boboca mesmo. Hoje os meninos com 9

Jacarepaguá, num hospital. O interessante, eu vou contar essa história, porque sou católico,

anos são todos vivos, mas eu era bobo. Minha mãe: “Então eu vou deitar contigo ai”. Então

mas gosto de rezar sozinho. Não sou espírita, não tenho nada, mas aconteceu um caso inte-

ela escutou a batida também, “bum, bum, bum”. Ela: “Quem é?”. Desceu e não viu nin-

ressante. Na época, meu irmão arrumou um emprego... Aprendi a bater datilografia, tra-

guém. No dia seguinte, aquele negócio na minha cabeça: “O teu pai morreu, o teu pai mor-

balhei como contador, mas fazia trabalhos de office-boy e no circo. Ganhava 300 cruzeiros.

reu”. Não sei se era aviso. Não entendo nada de espírito, mas ele morreu.

Peguei o dinheiro do primeiro mês e levei para ele. Quando coloquei a mão nas costas dele, estava magrinho... Estava com câncer no estô-

Com a morte de meu pai, eu resolvi voltar para o circo. Havia um Circo Dudu na Praça

mago. Fumava muito. Entreguei o dinheiro e ele começou a chorar à beça. Acordei com aquele pensamento ruim e fui trabalhar: “Seu pai morreu, seu pai morreu”. Foi impressionante. Quando cheguei para almoçar em casa — morava em uma casa de cômodos ainda, em Santa Teresa —, a proprietária disse: “Ó, vem cá almoçar comigo. Tenho uma notícia triste”. É como se eu já soubesse. Antes, quando tinha ido dormir... escutei uma batida na porta, “bum, bum, bum”... chamei minha mãe. Era muito corajosa: “Mãe, tem um cara batendo na porta”. “Tem nada! Vá dormir, seu bobo”.

das Bandeiras. A Cacilda Gonçalves era uma grande atriz daquele circo e ele fazia bem o número de palhaço, mas eu não gostava do estilo dele... Gosto não se discute. O Dudu fazia a coisa apimentada demais. Voltei a ensaiar com os meus irmãos malabarismo, salto, para voltar à atividade, porque tinha trabalhado em um escritório. Começamos então a trabalhar no Circo Americano do Aquiles Pinto. Trabalhamos no Coliseu Argentino, que era muito bom. Fazíamos um quarteto de malabarismo. Depois, em 1949, a Família Queirollo, que conhecia o nosso trabalho falou com An-

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tônio Garcia, o velho dono do circo, e nos convidou. Começamos então a trabalhar por cachê. Em Belo Horizonte, todos são contratados mensal ou semanalmente. Nós fomos por cachê, com o arame de minha irmã, e o quarteto apresentando dança e malabarismo. Nos hospedávamos em um hotel. DA: E sua mãe, também trabalhava? W: Ficava em Santa Teresa. Morava lá e nós viajávamos. A gente estranhava, porque estávamos acostumados ao Rio de Janeiro. Enquanto aqui se fazia número de circo, lá cachê. Voltava, gastava o dinheiro, e ia lá trabalhar. Se não tinha espetáculo, não ganhava nada, entende? Tínhamos que guardar o dinheiro para passar o mês. Às vezes, ficávamos uma semana sem trabalhar por causa da chuva. Não tinha espetáculo. Era cachê. Não havia segurança. Era controlar o dinheiro até contratar um trabalho. Um contrato com o Circo Garcia já era mais estável. Nós trabalhamos com o Coliseu Argentino... mas num determinado momento, no Rio de Janeiro, a situação ficou ruim. Meu irmão falou: “Você vai para São Paulo”. Tenho um primo que trabalhou muito com o Sílvio Santos... Não me lembro agora. Além do Claber e do Gilberto Fernandes, o Gibi, que trabalhava lá, fazia muitas pegadinhas para o Sílvio Santos. Fez muito teatro. A mãe dele é minha prima. Fomos para lá. Ela morava também em um lugarzinho meio

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ruim... Pedimos para ela: “Vamos ficar aqui, para pegar uns cachês”, eu e o meu irmão mais novo, o Aldo. Do quarteto, os dois mais novos foram para a casa da minha prima. Em São Paulo trabalhei no circo do Piolim. Estava na avenida São João. Eu trabalhava com malabares e ele me falou: “Ô, teu pai foi um grande clown”. Clown é o “escada” do palhaço. “Trabalhei com o teu pai”. Trabalhei no Piolim e no Arrelia. Fiz televisão com o Fuzarca e o Torresmo, e também com o Arrelia. Fiquei só. Morei uma temporada em São Paulo para juntar um dinheirinho. Quando voltei, trouxe um dinheirinho bom. Minha prima não quis nada. Fiz uma cesta básica, mas não quis receber. Voltei então para o Rio, começamos a trabalhar novamente, depois dividimos a trupe: dois foram para o Águias Humanas e dois para o Circo Continental, do Estevão Robattini. Eu e meu irmão fazendo dança e malabares. Comecei a trabalhar ali e num determinado número, acho que foi em Maceió, fazendo um salto em uma mesa, com duas cadeiras, quebrei a mão. Meu irmão bateu com o calcanhar, fechou, quando segurei na cadeira, quebrou minha mão. Aí eu continuei, não sei como, escorregando com um braço só e fazendo “cambota” e virando, e fazendo malabarismos ainda! Uma semana com a mão quebra-

- História de Vida: Walter Di Carlo -

da! Mandaram botar breu e ovo, desinchou e continuei trabalhando. “Vai tirar radiografia”.

Era 18 de agosto de 1958. Tinha 26 anos mais ou menos. Ela 17 para 18. E não me assis-

Estava quebrado. Fiquei só anunciando o espetáculo, enquanto meu irmão fazia o núme-

tiu trabalhando. O interessante é isso! Não me viu trabalhando, porque eu só fazia o clown,

ro da cama elástica com a esposa.

mestre de pista e anunciava o espetáculo. O pai dela era padrinho do meu irmão. Isso deu

Quando o circo chegou a Recife, fui morar em um hotel e falei com o secretário: “Tem um

muita força para o nosso namoro. Casei e ela ficou sem fazer o número, mas tinha um cara

circo aí?”. “Tem o Circo Frequete”. “Vamos lá, assistir”. “Ah, não! Eu já fui ontem”... Mas me

interessado, um empresário, dizendo que ela fizesse. Começou a fazer o número, o

levou lá. Foi quando vi minha esposa pela primeira vez. Tocava acordeão, fazia número de

“antipodismo”, que são jogos com os pés e parada de mão. Havia um conjunto e lá ela ia

parada de mão de um braço, jogos de tranco, e era a primeira atriz do palco. Logo me interessei

com o acordeão tocar também. Depois de um tempo fiquei trabalhando com o meu irmão.

por ela, mas estava noiva e a prima dela dava em cima de mim. Eu falei: “Eu quero a morena,

Depois resolvi me separar dele. Separei e comecei a fazer um número com ela de malabarismo. Viemos para o Rio e comecei a montar

essa morena bonita”. Ia lá e falava com ela, mas nada. Tinha um namorado músico. Já deve estar velhinho. Aí eles brigaram. Quando eu soube, fui lá e falei: “Olha, escuta, eu estou a fim de você. Eu queria namorar você sério, porque gostei de você”. Ela topou. A mãe dela não gostou muito não, sabe? É filha única. “Não, porque ela ainda pensa nele...”. “Não, mas ela vai esquecer. Ela vai gostar de mim”. Ficamos namorando. A mãe dela falou: “Você tem que esperar um ano”. “Um ano na conchinchina, outro lá não sei onde! Não dá um ano. Tem que ser, no máximo, quatro meses, três, porque o circo vai ficando longe e eu sou pobre”. Em três meses marquei o noivado, em quatro meses casei com ela.

esse número cômico, era um excêntrico musical. Havia um famoso excêntrico musical que se chamava Bosan. Fez muito sucesso há muitos anos. Já estava velhinho. Ele me vendeu os guizos e comecei a ensaiar com minha esposa. Ela tinha muita musicalidade, tocava sax, acordeão... montei um número que fez sucesso. E agradou à beça. Certa vez, esse velhinho Bosan trabalhou no Pequeno Jornaleiro, um show de Natal em que todo ano eu trabalhava. Fiz o mesmo número que ele com os guizos. Eram guizos nos pés, na cabeça e nas mãos. Ela com o acordeão, tudo com notas. Tocava-se uma música do folclore francês, eu com a cabeça e

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ela com o acordeão. Nesse dia, que ele foi, combinei com o contratante: “Eu entro, faço a moe-

pequenos, uma menina e um menino. Ninguém tinha máquina fotográfica. Testemunhas já

da, faço a bombinha de encher — porque tocava Jesus Cristo com a bombinha de encher pneu

morreram. Viram, podiam contar. Zé Preá e outras pessoas assistiram. O outro sócio me

e ela fazia os guizos—, aí anunciei o Bosan. No final, ao invés de eu tocar o guizo, ele tocava.

mandou anunciar. Eu falei: “Eu não tenho gabarito para anunciar ou capacidade para

Ficou até bonito: “Eu vou apresentar o meu professor Bosan, com 80 anos”. Eu fiz ele ganhar

fazer um agradecimento para uma autoridade, vice-presidente da República”. “Não! Vai

seu cachê e eu ganhei o meu.

lá e diz que ele é um amigo dos artistas”... Ai meu Deus! Respirei fundo, entrei e agradeci a

Tem uma outra história. Trabalhai no circo Piccadilly na Presidente Vargas. Estava no

presença de Sua Excelência João Goulart e sua digníssima esposa, seus filhos, o amigo dos ar-

subúrbio e aí me contrataram. O dono cantava tango. Dizia ele que era gaúcho. Era mais

tistas. Ele ficou rindo. O outro sócio deu uma bronca em mim: “Como usted fala con mi

argentino que brasileiro, mas dizia ser brasileiro, embora tinha sido criado na Argentina. Fa-

conterraneo brasilero Joaum Goulart? Yo que teria que fazer esso!”. “Não tenho culpa! Foi seu sócio que mandou. Eu não queria!”. Ele

lava espanhol e cantava tango muito bem. Era um dos sócios. Entrei para fazer malabarismo e minha mulher acompanhava no acordeão. Certa vez, eu anunciava o espetáculo, uma fraca matinê de domingo, e apareceu no circo João Goulart com Maria Teresa, sua esposa, e os filhos pequenininhos. Era 1961, se não me engano. Geralmente, quando vinha uma autoridade dessas, sempre vinham seguranças e assessores. Mas naquela ocasião não veio ninguém! Entraram no circo sem seguranças, sem ninguém. João Goulart chegava da China, Maria Teresa estava bonita, novinha, com os filhos

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arrumou umas flores para presentear e, no final, minha mulher tocou e ele cantou tango. Com o tempo e eu comecei a montar um número novamente para o Circo Nacional Teatro. Agildo Ribeiro e Roberto Freire trabalhavam na peça. Não esse Roberto Freire de Recife. Era de São Paulo. Era o diretor do Serviço Nacional de Teatro. Ele adorou nosso número musical. Trabalhamos e fomos contratados. O circo fazia aquela apresentação para encher o teatro às seis horas da tarde. Na Avenida Rio Branco ficava aquela confusão danada. O pessoal do circo fazia malabarismos e eu fazia um

- História de Vida: Walter Di Carlo -

número de palhaço excêntrico-musical com a sanfona — eu vivia desse número. O pessoal

faziam esse mesmo número, com aquela borracha só tocava Baião de Dois. Saía uma músi-

pedia bis: “Bis não! Voltem amanhã!”. Lá trabalhou todo o tipo de artista, do mais perfeito

ca de carnaval, ela tocava. Hoje a gente tem dificuldade em arrumar a borracha para fazer

ao mais “rasqueta”. Rasqueta era o artista mais “rasca”, que fazia malfeito, que tinha a roupa

isso. Não tem mais, é difícil achar. Então tinha o número da bombinha e o das moedas que

toda ruim. Dava-se oportunidade a todos. Adoraram o nosso trabalho. Quando havia um

comprei do Bosan.

trabalho fora dali, na favela, na Rocinha, íamos junto, o nosso número era incluído, o meu

DA: Com moedas? W: Eu tocava no chão e ela acompanhava.

e o da Vilma: Walter e Vilma. Depois mudei para Teco-Teco e Vilma. Então havia muita

E carregava no carro uma pedra de mármore, porque tinha lugar que, às vezes, era de terra,

ciumeira de artistas.

então como é que ia bater ali e fazer o som? Tinha que ter também um banquinho, mas eu

DA: Como era o número? W: Ela entrava tocando acordeão e sax, eu entrava com um outro instrumento, às vezes um apito e atrapalhava. Ela falava: “Você é muito egoísta. Só você quer trabalhar? Eu também sou música”. Então, havia aquela conversa toda. “Mas eu trouxe um instrumento para você tocar comigo”. Aí eu mostrava o instrumento para ela. Era uma borracha com uma bomba. Entregava a ela: “Vamos tocar a música do Roberto Carlos” — que fazia o maior sucesso na época. Começava primeiro com Baião de Dois, depois chegávamos a tocar Jesus Cristo, que era sucesso. Quando tocávamos aquilo, o pessoal aplaudia. Ela tinha uma facilidade danada para tocar. Tirava qualquer música, enquanto a maioria dos artistas que

era desorganizado. Passei para os meus sobrinhos esse número, Chuchu e Chuchuzinho. DA: Eles fazem o número? W: Fazem o número das moedas, cada um com seu estilo. Tem gente que gostava mais de mim, tem gente que gosta mais deles. Gosto não se discute. Enquanto ela tocava, eu colocava os guizos. Ela tocava uma música, dançava, e depois eu entrava. “Vou tocar agora com cinco notas”. Aí começava a tocar com os guizos e, às vezes, tinha também nove notas. Ela tocava quatro notas, quatro guizos. Eu colocava nos pés e nas mãos. Aí tocava a Valsa dos Patinadores. Era interessante esse número e não existe mais... E é

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difícil você montar isso, porque aquelas notas desafinam muito e a afinação é difícil de se fazer. E não se acha mais o metal. DA: Por quanto tempo o senhor fez esse número?

atrapalhou o negócio. Ao invés de conversar direitinho, atrapalhou. Depois veio o Arrelia, com um patrocinador, o Biscoito Aymoré e o programa saiu do ar. Sou também sócio benemérito do Retiro dos Artistas. Trabalhamos

W: Fiz por muitos anos. Desde que casei.

muito para o Retiro, ajudamos muito. No tempo de solteiro, fiz muitos shows para angariar

DA: Qual é o seu nome, como palhaço?

fundos. Nunca quis nenhum tostão. Alguns colegas recebiam, mas eu não.

W: Teco-Teco. Aliás, minha mãe deu o apelido. O meu pai escolheu William. Fazia aquele número de escada e colocou William porque o nome dele era Guilherme. Willian e Ondina. Faziam a escada diabólica. Depois meu pai começou a fazer muito clown, o “escada” do palhaço. Fez clown para o Piolim e para o João Olimecha. Eu fazia o Teco-Teco. Trabalhei muito com o Carequinha, fazendo o número musical com a minha mulher. Fizeram um programa no Rio, se eu não me engano era o Circo do Ozonito, de um colega meu, bem mais novo, um grande artista de São Paulo. Vieram para cá (Rio de Janeiro) com a tradicional família Ozon. Ele e o irmão, que faziam clown, criaram um programa na TV Rio que obteve sucesso. Eu fiz aquele (clown) que atrapalha a entrada. Trabalhamos durante algum tempo nisso, mas o irmão dele

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Trabalhei também para o Presidente Médici quando visitou o Retiro, para o Figueiredo quando esteve lá na re-inauguração. A Globo melhorou o refeitório e levou muitas autoridades. Tive de trabalhar sem maquiagem com minha esposa. Estavam o Ivon Cury, que fazia a Pensão do Salomão com o Jorge Murad. Eles, eu e minha esposa fizemos o show para o Figueiredo e para as autoridades. Fizemos a moeda e os guizos de cara limpa. Estavam presentes inclusive a Glória Pires, que devia estar grávida da Cléo, porque estava bem cheinha já. E quando há “autoridades”, os jornalistas caem em cima para saber. “Walter e Vilma! O guizo, como é isso?” Saíram muitas notícias de jornal. Guardei tudo e isso serviu para a minha aposentadoria, porque naquela época tinha que comprovar. Hoje tem que contribuir muito. Antigamente você contribuía, e o atrasado tinha de provar que

- História de Vida: Walter Di Carlo -

possuía carteira assinada, alguma coisa... algum programa, prospecto valia como prova. Aceitavam testemunhas também.

caco velho, sabe. Montei até o número do homem sapo, com a ajuda de alguns colegas.

DA: Até quando o senhor fez espetáculos?

O Edgar, que já fez contorção, lecionava com o auxílio do Zé Lingüiça, o Eberaldo. Tam-

W: Foi há uns 10 anos. Já tinha um dinheirinho de aposentadoria. Tenho a minha casi-

bém fez contorção, e ajudava, mas o aluno era meu! Tive a idéia. Fui até a família Schuman,

nha e o dinheiro. Parei de fazer shows. Foi a derrota da minha mulher. Já não dava mais

que mora em Niterói, antigos de circo e formidáveis artistas. Já estão velhinhos. Falei com

para fazer como fazíamos. Era muita correria, carregar peso, dirigir... temos um limite, mas

eles, comprei a cabeça e o corpo da fantasia de sapo e passei a ensaiar o rapaz. Levava jeito.

por ela trabalharíamos até hoje. Por ela, eu estava vivendo de circo.

Tinha 20 anos, um mulatinho simpático. Saltava bem, mas não sabia colocar o pé na cabe-

Comecei a trabalhar e, com o dinheiro, a pagar como autônomo as arrecadações da previdência e me aposentei. Não era um grande dinheiro, mas dava para viver. Paguei um plano de saúde, o que para velhos é terrível, mas para isso o dinheiro dava. Comecei a ganhar mais um dinheirinho na Escola Nacional de Circo, mas muito pouco. Realmente é pouco o que pagam lá, mas aceitei porque aquilo seria também uma terapia para ir e vir. Ficar parado em casa, um velho fica pensando um monte de besteiras. A minha mulher me incentivou. Me chamaram há um tempo atrás, porque faltavam professores. Lá já trabalhavam o Pirajá e o primo dele, o Latur Azevedo. Dei aulas de solo, acrobacia, contorção. Sabia de contorcionismo, porque quem é de circo, ma-

ça ainda, não sabia fazer o espacate e começou a treinar. Em dois anos, já fazia o número e estava agradando! Então comprei o aparelho do Schumann, um tubo. O final do número era escorregar naquele tubo. Puxava-o, ele pulava na cadeira, caía no espacate e depois saltava. Agradava muito! Esse aluno foi contratado pelo Ringle, trabalhou no picadeiro central. Já viajou para a China, foi para o festival da Hungria. Há muitos alunos fazendo sucesso na Europa, e esse foi um deles. Continuei dando aulas. Desde aquele negócio de Plano Collor o que se ganha não dá nem para pagar o plano de saúde, mas vou segurando até onde puder. Quando não puder, paro de pagar o meu plano de saúde e pago só o da minha esposa. E vou continuar até quando Deus quiser.

Doutores da Alegria

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DA: Você disse que seu filho começou a trabalhar com vocês, mas que não se aprimo-

tar, não é difícil. Mas fazer a cascata gozada, como os antigos faziam... — O Carequinha

rou e deu continuidade para outra formação. Como foi isso?

caía correndo, voltava, de um lado para o outro — isso é que é difícil. A risada gozada, a

W: Fiz um show uma vez, em uma escolinha, e o coloquei de palhaço no espetá-

fala gozada é difícil. O grande ator já nasce com o talento, está na veia. O grande palhaço

culo. Era para me ajudar, mas era muito ruim. Eu explicava para ele: “Não force a voz, fale

está na veia também. Qualquer um pode fazer o palhaço, mas o grande palhaço é difícil.

naturalmente”. Ele forçava e não saía nada. “Desisto!” Ficou bravo comigo, mas como pa-

DA: O que forma um grande palhaço?

lhaço não levava muito jeito. Certa época viajei sozinho anunciando espetáculos. Fui para

W: A risada dele tem que ser gozada, a gesticulação, o modo de falar, saber fazer as

o Amazonas, para o Acre. Sempre trabalhei com a minha esposa, mas dessa vez ela não

quedas, as cascatas. Como o Tomé Olimecha. Adorei o Piolim, gostava do Arrelia nas comé-

quis ir. Ela não gostou do empresário: “Não vou”. Eu já tinha assinado o negócio. Havia

dias. Tinha um dos Queirollos que eu gostei muito, cantava bem à beça.

muitos shows de natal no final de ano, na Marinha, na Aeronáutica... Eu possuía o número de mala misteriosa, que comprei para um indivíduo que não me pagou. Ficou para mim. Aprendi a fazer e apresentava nas boates, nos shows e ensinei meu filho. Enquanto eu viajava, ele fazia a mala misteriosa com a minha esposa nos shows. Foi só o que ele conseguiu fazer. Como palhaço era uma negação.

Todo profissional fica nervoso em dia de estréia. O Tomé chegava, dava uma rondada e salto mortal, caía de barriga no chão. Aí o outro, o clown, puxava a calça dele, brincava com o colarinho... “Seu Olimecha!”, assim dominavam o público! O pessoal ria e ele começava. Era um sucesso danado. Depois começou a fazer teatro. Os Olimechas incorporaram o pal-

Qualquer um pode ser palhaço. Um ator

co. Meu pai não gostava: “Circo é circo, palco é teatro.” Luís Olimecha tinha a Lourdes

pode ser palhaço, pode fazer o gesto. O difícil do palhaço, palhaço mesmo, aquele tradicio-

Olimecha no palco, uma grande atriz, mãe de Luís Olimecha, que fundou a Escola Nacional

nal de circo, é saber saltar. Você aprende a sal-

de Circo. Uma grande atriz, trabalhava em ca-

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- História de Vida: Walter Di Carlo -

valos, foi trapezista, Maria de Lourdes Siciliano. Era pequeno quando ela fazia o número de ca-

Esses eram grandes!

valo. A adorava, achava linda!

DA. Obrigado.

No palco, o Tomé tinha que tirar a pintura. Ia de cara limpa. Tinha muitos dentes de ouro e sem maquiagem ficava esquisito, mas se destacou nas comédias, porque era gozado. Um Oscarito. Achava o Tomé um grande cômico, para mim o melhor palhaço do Brasil, não desfazendo os demais, mas gostava demais

Notas Alice Viveiros de Castro é atriz e diretora de teatro. Desde 1985 atua na difusão e promoção das artes circenses e se dedica à pesquisa da história do circo no Brasil. Publicou em 2006 O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro, Editora Família Bastos, 2005, 267 pp. (nota do editor) (1)

dele. Não sei se era por causa da minha infância com ele.

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Brasil Queirollo: Meu nome é Brasil João

Erradicados lá, nômades. Tiveram sete filhos.

Carlos Queirollo. Nome do meu pai: Brasil José Carlos Queirollo, minha mãe: Otilia Queirollo.

Não me lembro o nome de todos. Esses sete filhos trabalhavam juntos como acrobatas em

Eu sou de São Paulo, mas do interior. Nasci em Palmital, interior de São Paulo, perto de

praças públicas. Viajaram o mundo: Rússia, Europa, Ásia, depois foram convidados para

Presidente Prudente.

os Estados Unidos, aonde se apresentaram, no picadeiro central do Ringenbross. De lá come-

A minha mãe é de origem portuguesa. O meu avô, João, pai da minha mãe, era de Portugal, veio para o Brasil jovem e foi chefe da estação da Sorocabana. Somos descendentes de portugueses e italianos genoveses, da família Queirollo, da Itália mesmo, de Gênova, de uma tradição da parte circense. O meu avô português não tinha nada a ver com o circo. Então essa é a fusão que houve pela passagem do circo do meu avô, onde meu pai trabalhava, na cidade de Palmital, aonde ele conheceu a minha mãe. Foi lá que tudo aconteceu. Doutores da Alegria: Petrona Queirollo? B: Casada com o Sr. José Carlos Queirollo.

çaram a descer para Canadá, México, Brasil, e no Brasil se erradicaram, dizem que se erradicaram, ou tiveram algum problema financeiro e ficaram. Montaram o Circo Irmãos Queirollos, em meados de 1870. O Sr. José Carlos não ficou no Brasil, voltou para a Itália porque lá ele tinha uma casa de carnes. Ficou a Dona Petrona aqui. Eles não tinham registros. Cada um dos filhos foi registrado num lugar, um no Uruguai, outro na Bolívia e outros no Brasil. Por que o meu pai, o Torresmo, tem o nome de Brasil? Porque ele foi o primeiro que nasceu no Brasil. Ele tem um primo que tem o nome de Jorge Uruguai Queirollo. Outro se chamava Antônio Argentino. Em cada lugar que passavam, registrava-

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Brasil João Carlos Queirollo a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 11 de Abril de 2007, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa. Net. Duração da gravação: 00:80:00. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

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Pururuca

História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo

BOCA LARGA

se com um nome. O nome do país era para saber onde nasceu. Com o tempo falavam Jor-

era palhaço, antes, no circo da Petrona. Os outros não, os outros eram acrobatas. Ele fa-

ge Boliviano Queirollo ou Antônio do Chile e era engraçado. Alguns tiraram isso do nome

zia dupla. Conheceu, nessa andança, a minha avó. A minha avó era Argentina, Dona

Meu pai chamava-se Brasil José Carlos Queirollo. Era Brasil do Brasil, José do pai, Carlos do meu bisavô e Queirollo que era da família. O que o meu pai fez? Falou: “Não. Vou pôr o nome do meu filho Brasil João”. João por parte do meu avô, por parte materna, Carlos pelo meu avô, Queirollo pela família e Brasil de brasileiro. O pior foi quando a minha irmã nasceu. Minha mãe teve brigas homéricas com ele, porque meu pai queria pôr o nome da minha irmã de Brasília. Na época, Brasília nem existia, nem se sonhava e cogitava em construir Brasília. A minha mãe falou: “Não”. Foram dois filhos só do meu pai e meu pai era filho único do Chincharrão. Então eles ficaram aqui e formaram um grande circo: Os Irmãos Queirollos, na época, em 1800. Morreu a matriarca, que era a minha bisavó Petrona, e houve como em toda boa família cisões. Cada um foi para um lado. Nossa família é muito grande em Curitiba, Paraná; é muito grande no sul, na Argentina. Acho que cada um montou um pequeno circo e se separaram. Meu avô passou de acrobata a palhaço. Só que meu avô

72 Doutores da Alegria

Graciana. Ela era bailarina argentina, dançava tango. Casou com o meu avô e formaram um pequeno trio, que era o meu pai, meu avô e minha avó, porque eles só tiveram um filho. Tiveram dois, mas um faleceu pequeno. Montaram o Circo Teatro Mundial, circo - cinema teatro Mundial. DA: E ele era o Chincharrão? B: O Chincharrão, que trabalhou um bom tempo com um dos irmãos, o Arres. Quando houve a dissolução o Sr. Abelardo, o Piolim, era ajudante do circo e como estava há muito tempo ali, conhecia tudo, oArres chegou ao Sr. Abelardo e falou: “Aprendeu tudo?” Dizem que ele sempre foi meio acanhadinho e magro. Aí dizem que chegou para o Sr. Abelardo e falou: “Vem cá, tu és um Piolim”. Sabe o que é? É castelhano, Piolim é barbante. Tanto que se você pegar as características de roupa do Chincharrão são as características de roupa do Piolim. Ele só mudou a imagem. E o Sr. Piolim deu certo. Agradava, ótimo, maravilhoso e trabalhou Arres e Piolim um bom tempo, até o dia que o Sr. Abelardo também quis se erradicar. Veio para São Paulo e

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

montou um circo na Av. São João. O meu avô montava o circo no Largo Anhangabaú, o Ar-

java com o circo, que era o Cine Teatro Mundial, que era o circo, o teatro e o cinema, para

relia montava o circo ali onde era o Cassino Antártica, embaixo do Viaduto Santa Efigênia.

que pudesse andar, fazer toda a região, aonde não existia nem luz.

E o Piolim montava na Av. São João, lá no finzinho, o circo dele era um pouquinho menor que os outros. A cidade era aquela região.

Minha irmã foi a primeira a nascer, nasceu na cidade de Assis. Minha mãe foi para

Televisão? Não tinha. Teatro era pequenini-

Assis, começou a caminhar com o meu pai, indo nos circos também. Quando ela ficou grá-

nho. Cinema, então, pior ainda. Mas tudo é evolução. O circo o cinema derrubou. O teatro, o ci-

vida de mim, voltou a Palmital. Nasci em Palmital, depois ela continuou acompanhan-

nema derrubou. A televisão derrubou o cinema.

do o meu pai. Foi quando o meu pai chegou à conclusão: “Não, meus filhos precisam estu-

DA: Então ela o conheceu no circo?

dar”. Hoje existe a lei que diz que o filho de circense, onde estiver, pode freqüentar a esco-

B: Não foi bem no circo que ela o conheceu. O meu pai, o Brasil José Carlos, que é o palhaço Torresmo, tinha um serviço de alto-

la, o que eu acho um erro. Porque três meses em uma escola, três meses em outra, não resol-

falantes. Ele ficava na praça enquanto o circo ficava parado. Ele fazia aquele serviço de car-

ve nada. Mas meu pai já tinha uma visão diferente: “Eu vou estacionar, vou deixar o meu

ta do amor. Coisa muito antiga, onde um admirador oferecia carta para alguém.

pai e minha avó, e vou me estacionar em uma cidade grande, para que os meus filhos pos-

Vendia as propagandas pela cidade, como se fosse uma rádio local. Não sei se foi no circo ou se foi lá, andando na praça, alguma coisa deve ter acontecido. Perguntei para a minha mãe e ela falou: “Nós nos conhecemos em Palmital” e daí para frente, ela não falou mais nada. Ele ofereceu para a Otilia uma música, acabaram se conhecendo, casaram-se, mas minha mãe permaneceu em Palmital. Ele via-

sam ter uma vida”. Foi aí, acho, que começou toda aquela mudança do famoso tradicional. Estacionou e falou: “Eles precisam estudar, precisam se formar”. Acho que foi no advento de 1950, aonde começou a TV Tupi. O Assis Chateaubriand voltou dos Estados Unidos dizendo que ia ter um grande sucesso, que seria no Brasil a TV, a imagem refletida pela televisão. Foi quando meu pai estacionou mesmo, começou a fazer alguns programas, já era

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

muito amigo da família Pereira, do Sr. Albano Pereira, que era o Fuzarca. Juntaram-se e for-

Eu tenho, em casa, guardado, um livrinho das reprises que o meu pai fazia na televisão

maram uma grande dupla, de grande sucesso. Aí começou a parte mais sossegada da tradi-

com o Fuzarca, marcado à mão. Está lá: “Inauguração da TV Tupi, PRF3TV Canal 3, primei-

ção circense. O Arrelia foi para a TV Record, inaugurada no Rio de Janeiro. Foram os dois

ro programa, dia 12 de outubro de 1950”. Era um livrinho de anotações, como um diário de

primeiros a fazerem a TV.

tudo o que ele fazia, porque ele falava que naquele veículo [na tv] não podia repetir. No caso

Meu pai foi convidado pelo professor Humberto Simões, ventrílogo. Tinha dois bonecos e andava metido nesse negócio da TV Tupi, com o Assis Chateaubriand. Acho que eles foram convidados para fazer o primeiro

de teatro o público muda, mas na TV não muda. Então ele tinha todas as reprises anotadas até 1962. Ele tinha tudo marcadinho para saber e poucas vezes repetia.

programa que ia ser transmitido. O Sr. Assis Chateaubriand mandou importar dos Estados

Fuzarca e Torresmo se separaram. Eu me lembro, já era maior, a TV Tupi separou a du-

Unidos uns dez aparelhos de televisão, que espalhou pelo centro da cidade, para que pu-

pla. O meu pai foi para a TV Cultura e o Fuzarca ainda ficou um tempo na TV Tupi,

dessem assistir. Então, era um programa por semana e esse programa era apresentado pelo

fez dupla com o filho, mas não deu certo, acabou parando, fumava demais. Morreu de cir-

Homero Silva, que eu tive o prazer de conhecer, e pela Márcia Real. Começaram a fazer

rose. O meu pai foi para a TV Cultura, me convidou para trabalhar com ele. Eu tinha 12 ou

um programa de auditório, ao vivo. Nesse programa tinha as variedades e foram convida-

13 anos. Fizemos a TV Paulista, um programa chamado Zás-Trás. Saímos de lá, fomos fechar

dos, o ventríloquo, o cantor, a dançarina e o palhaço. Era um programa de uma hora. A

a TV Excelsior. Fizemos o programa Recreio do Torresmo na TV Excelsior. De lá nós fomos

televisão começou transmitindo, no máximo, uma hora por semana, em branco e preto. Meu

convidados, voltamos para a TV Paulista, que hoje é a Globo, e da Paulista fomos para a Ban-

pai viu que aquilo seria um sucesso. Aí o Sr. Assis Chateaubriand começou a trazer os apa-

deirantes no início da tv a cores. Eu cheguei a fazer o personagem do Nacionaro Kido! O que

relhos e colocar nas lojas, os famosos RCA.

você quer mais?!

74 Doutores da Alegria

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

Fiz também peças teatrais. Na TV Tupi eu fiz várias peças, trabalhei no Teatro da Juven-

fizemos toda a América do Sul. O Brasil a gente conhece de cabo a rabo, porque quando a

tude que era um teatro da TV Tupi. Fiz Os Menores da Semana, fiz uma série de progra-

TV Bandeirantes começou, nós fomos chamados por causa do colorido do palhaço, ele foi a

mas. Comecei desfilando.

estampa da Bandeirantes durante um bom tempo, e o nosso programa foi se expandindo.

DA: Você morava em que bairro de São Paulo nessa época? B: Nós sempre moramos na Zona Norte.

A bandeirantes tinha acabado de pegar fogo, comprou o Teatro Bandeirantes. Entrou

Meu pai tinha uma casa na Rua Antônio Clemente, uma travessa da rua Dr. Zuquim. Meu

um diretor, o Sr. Waldir Bônus, e falou para o Lucas: “Vamos começar a ampliar, vamos con-

pai era meio sedentário no sistema de localização. Tanto que todos os meus negócios são na

vidar algumas crianças para virem assistir o programa”. O que nós fizemos? Montamos um

Zona Norte. Eu não consigo vir para a Zona Sul. Então ele comprou um sítio muito grande

cirquinho, pequeno circo, mas era chamado O Grande Circo. Tínhamos problemas com os

em Mairiporã. Mudou para lá e, do sítio, comprou uma casa perto dos Bancários. Foi uma

números artísticos. Por quê? Por causa daquilo que eu disse para você: a televisão queima.

das razões também de eu ter ficado lá um tempo, na Rua Isolina, porque ele andava doente.

Se você não mudar, ela acaba te queimando. Então tínhamos que fazer alguma novidade

DA: Circo você não fez?

todos os dias. Só que o nosso programa, era semanal, era de sábado e passava no domingo

B: Fiz, nós montamos um circo em São Paulo durante um ano. Não era um circo gran-

e ele era mandado para o Brasil inteiro. Então o programa que passava aqui em São Paulo

de. Achava que podia e, de fato, ganhou um bom dinheiro com o cirquinho dele, mas, infe-

em um sábado, ia passar três sábados depois em Manaus. Porque a fita tinha que ser man-

lizmente, a gente fazia muitos shows e não tinha tempo de cuidar do circo. A gente viajava

dada via correio. A gente os via fazendo os envelopes, fechar e mandar para a coligada de

demais. Como dizem os outros: eu tenho mais horas de avião, do que urubu voando. A gente

Manaus, para a coligada do Rio de Janeiro, para a coligada de Belo Horizonte. Quando

teve uma vida muito atribulada. Nós saímos do país, fizemos Portugal, fizemos a Europa,

surgiram, via Embratel, as transmissões, que a Bandeirantes montou — porque dizem que a

Doutores da Alegria

75

BOCA LARGA

Bandeirantes foi o primeiro canal a transmitir a cores, se não me engano, não tenho certeza,

lá cinco horas esperando para fazer dois minutos no ar. A gente entrava já ensaiado com

mais ou menos me lembro disso e acho que foi para a Copa de 1970. Tinha poucos aparelhos

a equipe, fazia o programa, matava o programa, gravava direto e aí eu ia para a edição. Eu

à cores. Era como começou a televisão, com poucos aparelhos a cores e caríssimos. Então,

também era o produtor. Já tinha uns 20 ou 25 anos. Tanto que eu fui até diretor da Bandei-

era feito nesse sistema. Quando entrou via Embratel, nós estouramos. A gente dava de 10

rantes. Eu editava, fiz uma série de coisas por lá, produzi programas para eles. Nós ficamos

a 0 na Globo, com o programa infantil, O Grande Circo. O que a Bandeirantes fez? Tirou-nos

lá por quase 16 anos.

do Morumbi e nos mandou para o Teatro Bandeirantes na Brigadeiro Luís Antônio. Aquilo lá era um inferno, um teatro de 1.300 lugares, lotava todos os programas, todas as gravações, acima do normal, aí começou a nossa vida de viagens, gravava-se, mas as gravações eram diferentes do que se faz hoje. Hoje se você erra, você faz de novo, mas o nosso programa para crianças não, se contasse uma piada duas, três vezes, a criança não dava mais risada.

DA: E o rádio? B: O rádio tinha grandes programas. Os de auditório, inclusive. Fiz muitos. Era a coisa pior do mundo, o palhaço e o escada do palhaço fazerem o programa de rádio. Você não estava vendo a cara do público. Não tem imagem e o palhaço precisa de imagem. O que vale hoje em dia no palhaço? O melhor do palhaço é o trejeito, é o jogo de corpo. Às vezes não é nem a piada, mas o jogo de corpo bem feito. Quando a gente diz: “Não,

Então nós fazíamos como se fosse um programa ao vivo, mesmo em respeito ao público

isso aí vem de família”, eu acredito que venha mesmo, porque não adianta nada... você pode

que estava lá. Estávamos acostumados a fazer programa ao vivo. Não existia esse negócio de

ser um bom palhaço, você pode se maquiar bem, se arrumar bem, mas será que você tem o

vídeo-tape para gravar. Hoje em dia eles dão comida para um camarada que vai assistir um

trejeito realmente? Não dá para explicar, não tem explicações. Você aprende, aprendendo o

programa de auditório, o cara erra, o outro não vem, o outro está fora. Então, leva-se o dia in-

seu trejeito. Ou então, vai fazer o trejeito do diretor: “Olha, você levanta aqui, vira para lá,

teiro para gravar aquele negócio, quando a gente é convidado para fazer isso, a gente fica

volta para cá e senta de novo”. O palhaço, se tiver um diretor, desculpa, não funciona, por-

76 Doutores da Alegria

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

que trava a pessoa. Então, o palhaço tem que ter a liberdade dele. DA: O fato de você acompanhar o seu pai, trabalhar e estar na TV, mudou um pouco a sua relação de vida de criança? Também de relação com os amigos? B: Meu pai era mais infantil do que eu. Eu era escada. Quando o Fuzarca se separou do Torresmo, eu já fazia televisão, já fazia teatro. Às vezes, a turma me perguntava: “Mas você

nha nesse sítio a piscina dele, a sauna, estava bem de vida, Graças a Deus. Disso nós não podemos reclamar. Quando construiu o galpão ele botou umas telhas desses amiantos grandes e arquivou tudo lá, aonde tinha também uma enorme maquete de trens elétricos e as garagens dos carros antigos. Então, imagina o tamanho do negócio e ele era muito organizado. Eu o ajudava muito, eu gostava. Não era muito adepto dos ferro-modelismo e nem dos carros antigos.

é de circo?”. Eu comecei mesmo como manequim, porque naquela época não tinha essa

Aquilo era um hobby dele. Mas deu um

frescura de ser gordinho ou magrinho, altinho, baixinho, bonitinho.

grande temporal lá nessa chácara e acho que 70% do material que ele tinha foi tudo embo-

Meu pai morava em uma chácara ali em Mairiporã, ali construiu um grande galpão

ra. E os outros 30% a gente ia dando a manutenção, ele estava muito doente na época, mas

aonde tinha trens elétricos, era ferro-modelista. Era o maior prejuízo que dava para a minha

demos manutenção, não foi desleixo meu com meu amigo não. Eu ia lá todo dia ver como é

mãe. Tinha maquete, tinha tudo e era colecionador de carros antigos também.

que ele estava, fazia uma viagem. Aí eu fui obrigado a trazê-lo para São Paulo porque ali

A minha mãe dizia “Que lixo”. Realmen-

na cidade não tinha médicos. O que eu fiz? Vendemos o sítio e compramos uma casa para

te todo dinheiro que ele ganhava, empatava em “tralha velha”, minha mãe falava que era

ele aqui em São Paulo; foi a última casa que ele teve, é onde mora a minha irmã hoje, ali perto

tralha velha. Mas ele tinha as coisas modernas dele também. Trocava a televisão todo ano!

dos Bancários, no Mandaqui. E ali ele veio a falecer e lá ficou muito abandonado. Nós aca-

Tinha que ter a mais moderna, a mais nova. Filmadora, gravadora, máquinas fotográficas,

bamos vendendo. Quando eu fui tentar recolher, estavam se dissolvendo cartazes, fotos,

ele tinha tudo do melhor. Só que, quando começou a ficar doente, abandonou tudo. Ele ti-

filmes, gravações; só de discos nós gravamos acho que uns dez.

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

Filho, tudo que fazem hoje, tudo o que vocês fazem hoje era feito em menor escala naquele

de ser de circo, a gente se reunia e, realmente, de vez em quando, alguém acho que bebia de-

tempo. Hoje você tem aí o seu brinquedo com o seu nome, você tem o seu disco com o seu nome,

mais e começava a falar um montão de grito e sempre tinha um porcaria de um polícia lá do

você tem os seus shows com o seu nome. Antigamente era a mesma coisa, só que em menor

exército para ficar olhando para a cara da gente e a gente falava baixo para não ter proble-

escala, porque a televisão era também menor. Não era o veículo de comunicação violento que

mas, mas mesmo assim, tivemos bastante problema. O Antônio Marcos quase que dançou,

hoje é. Era um pouco mais simples. Nós passamos por uma censura terrível...

quase sumiu do mapa. Hoje a gente pode falar. Mas foi ruim. Foi uma época politicamente ruim, mas, nós passamos.

Os meus amigos aí, Gilberto Gil, a turminha, Antônio Marcos, que era tudo da mesma

DA: E teve muita namorada na TV?

turminha nossa, porque mesmo eu trabalhando para criança eu tinha amizade com eles,

B: Cheguei a ter uma namorada por dia, em um mês, todas desconhecidas. Sempre fui

nós passamos por uma situação que vocês nem imaginam de censura violenta e de “Oh, se não

um cara muito caseiro, nunca fui da boemia. Eu não gostava. Meu pai não bebia, não fuma-

estiver legal, vai preso e vai embora”...

va, não jogava. A criação que a gente teve foi mais familiar mesmo. Eu montei uma banda

DA: Você teve programa censurado? B: Olha, sinceramente eu só tive um pe-

com quinze anos. Essa banda só não estourou porque “Os Incríveis” vieram junto. Fiquei por

queno probleminha, mas que foi ultrapassado pelo meu pai e deu mais ou menos certo, por-

12 anos fazendo os bailinhos e shows com a banda e já trabalhava com o meu pai e estuda-

que também eu não aceitava isso. Mesmo pelas companhias que eu tinha, que era a turma

va. Meu pai falava: “Trabalha durante o dia, à noite e aos sábados e domingo você tem folga

do Avesso. A gente se reunia muito ali no Chácara Souza, em Santana, na época da Jovem

para tocar no trabalho.” Mas tinha que estudar e fim de papo.

Guarda; tinha a Jovem Guarda do Rio e a Jovem Guarda de São Paulo, então, nós tínha-

Quando passamos para a TV Bandeiran-

mos uma boa amizade entre nós artistas. Ali não tinha essa de ser cantor, de ser de teatro,

tes, tive que trancar a matrícula da faculdade durante uns dois anos. Demorei para me for-

78 Doutores da Alegria

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

mar. Me fugiu um pouco o que nós estávamos conversando. DA: Como conheceu sua primeira esposa, já que foi casado mais de uma vez? B: A minha primeira esposa, por incrível que pareça, eu a conheci no Lyons Club. Meu pai era sócio do Lyons Club de São Paulo do Tucuruvi e ele me convidou para ir a um jantar. Eu era moleque, não gostava daquilo. Mas fui, sentei e a conheci. O Dr. Luciano Caseiro era presidente do Lyons Club, conheci a filha dele e ele fazia questão que eu fosse o namorado dela. Namoramos por dois anos, casamos, tivemos três filhos. Aí tive meu segundo casamento, não houve nada, foi simplesmente uma separação por divergência de pensamentos. Depois conheci a minha esposa no meu sítio, lá em Mairiporã. Era colega de estudos da minha sobrinha. Ela estudava no mesmo colégio. Depois da minha separação eu passei um ano morando no sítio.

o lugar. Montei um restaurante no sítio, ganhei dinheiro. Meu pai sempre dizia que eu era um bom empresário. Montei o restaurante e a minha sobrinha ia lá de vez em quando ajudar a olhar as crianças que iam no cirquinho, porque eu montei um cirquinho. Aí eu conheci a minha esposa. Meu pai estava vivo ainda, me ajudava bastante. Ele que me entusiasmou novamente. Eu parei, ele parou também. Eu era escada, mas ele podia arranjar outro. “Você vai parar?”, “Vou, só que tem uma coisa, não quero ninguém aqui comigo, vai lá para São Paulo”. Ele ia ao sítio só aos fins de semana. “Tudo bem? Está tudo em ordem?”. “Está”. “Quando é que nós voltamos?”. “Não sei”. A gente brincava um com o outro. Ele falava: “Está sentindo tanto a separação?” “O que o senhor quer? Três filhos, uma mulher, de repente você perde tudo e fica sozinho, você quer o quê?”. Você sente e senti mais ainda no bolso. No bolso é que foi difícil. Se fosse só a pensão eu estava feliz. Ali nin-

Lá eu montei um restaurante. Eu tinha que fazer alguma coisa. Quando me separei do

guém trabalhava. Quem trabalhava era eu. Falo brincando, mas tomara tivesse conhecido a mi-

meu primeiro casamento, virei para o meu pai e falei: “Não trabalho mais com o senhor”,

nha segunda esposa em primeiro lugar e não teria tido tanto problema. Estamos juntos quase

mesmo sendo o amigo que eu era dele, e fui virar ermitão.

há vinte cinco anos, vamos fazer bodas de prata.

Me isolei por um ano. A cabeça voltou para

DA: Como e quando deixou de ser escada? B: Foi quando meu pai faleceu. Com a

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

doença do meu pai, eu mudei para a casa que construí no interior e lá permaneci durante 14

camente criado na zona norte, eu tenho amigos demais lá. Então, ia ali, ia lá, procurava,

anos. Eu parei, meu pai faleceu, eu falei: “Chega, não há mais necessidade de...”.

pegava, formava uma equipe para poder começar a trabalhar. Fizemos um projeto cha-

Aí a minha esposa começou a perguntar: “Bom, e como é que faz?”. Ficou grávida, nasceu a menina. Tenho mania de deixar alguma coisa para cada um dos filhos. Nasceu a menininha e eu estava muito sossegado. Fiquei muito doente também, eu tive um problema renal violento e tive que vir me curar aqui em São Paulo. Conversando com a minha esposa, falei: “Estamos aqui sossegados demais para o nosso gosto. Eu vou para São Paulo e vou começar a mexer novamente na parte artística”. “Oh Meu Deus, mas você vai lá e nós vamos ficar aqui sozinhos. E o André?”. “O André vai comigo e vai prestar exame para a faculdade”. “Não, mas você vai com ele para lá e vão ficar sozinhos e eu vou ficar sozinha com a menina?”. Falei:

mado Projeto Arte Infantil, onde há uma situação de criação, uma situação de espetáculo circense, uma série de coisas. E deu certo. O que eu fiz? Peguei e comprei um apartamento aqui, eu e minha irmã. Compramos um apartamento barato, porque a minha irmã sempre dizia: “Você não vai ficar aqui e eu também não quero isso aqui, então ao invés de pagar aluguel, a gente compra e depois o dia que você quiser você volta, porque a minha intenção é voltar. Vou para o interior ou para uma praia, não quero ficar aqui”. Aí começou. “Vamos formar uma equipe para o show, né?”. Precisava formar uma equipe. “Bom, eu sou o Escada, eu preciso arrumar um palhaço”. Arrumei um palhaço, não vou citar nome.

“Olha, vamos dar um tempo até eu me acomodar em São Paulo”. Em São Paulo não tinha

DA: Tudo bem. B: Arrumei um palhacinho. Primeiro ar-

nada. Voltamos para cá, o meu sobrinho tinha um “Cafofo do Joama”, que era um porão onde

rumei um que era de teatro, muito amigo até hoje, mas bebia um pouco; então tinha proble-

a gente podia dormir. Fiquei por lá e comecei a sair a procura dos meus velhos amigos, clientes

mas sérios no dia seguinte, não deu certo. Ficou um tempo comigo, trabalhava bem, era

e velhos contatos.

bom rapaz, mas tinha esse vício e era boêmio, e você sabe que palhaço trabalha durante o dia.

E começaram a surgir as coisas, começaram a fluir, falei: “Olha, vamos lá!”. Fui prati-

Dificilmente você faz alguma coisa à noite. Trabalha em horário escolar, em festinha de

80 Doutores da Alegria

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

aniversário e precisa estar bem durante o dia. Para você estar bem durante o dia, tem que ter

meu ouvido. “Eu faço para você”. E eu: “Você nunca fez uma coisa dessas”. “Não? Vamos

uma noite boa. Então, ele tinha esse problema. Sempre trabalhei muitos anos com o Bruno,

ver o que acontece”. Aí eu peguei a roupa do meu pai, o colarinho, o nariz, as maquiagens

malabarista, com Rocan, o mágico, desde o tempo da equipe do meu pai. Chamei os dois, mas

importadas que ele tinha e que gostava. Peguei uma peruca que era do Fuzarca, um cha-

não me acertava com o palhaço! Não adiantava querer trazer o Picoli, ou o Roger, porque

péu que era do Piolim, um sapatão que era do meu pai, a meia que era não sei de quem e me

eles tinham a dupla deles.

vesti. Só que não fiz a maquiagem do meu pai. Dei uma modificada, porque eu acho que para

Eu precisava arranjar um palhacinho bom. Arrumei, por intermédio do Bruno Edson, o malabarista. Ele me apresentou o rapaz, maravilhoso, trabalhador, que sofria todas as dificuldades que sofre um artista. Falei: “Olha,

chegar aos pés dele, eu vou ter que comer muita grama. Aí me maquiei e falei: “Estou me sentindo igual ao que eu sou sempre. Vamos nós!”. Ela entrou, apresentou. O pior é que agradou.

vamos lá”. Começou indo bem, mas ele era Escada do irmão dele. O que aconteceu? Dois

Quando o rapaz voltou, eu falei: “Olha, bichão, vamos fazer uma dupla. Você passa a

Escadas. Ficou difícil. E uma vez, nós tínhamos um show marcado, eram dois shows em

ser o Escada”. E ele: “Ah, beleza! E quem vai ser o palhaço?”. “Eu”. Ele olhou para a minha

uma escola e o rapaz não apareceu por motivo de doença. Ele era um bom rapaz, nunca

cara: “O senhor vai ser?”. Eu falei: “Vou”. Então vamos fazer o primeiro show. Fomos bem.

deu mancada. Minha mulher olhou para mim e falou: “E agora? Não quer se maquiar?” Isso

Mas eu digo para você; eu, particularmente,

há uns dois anos e meio atrás. Aí eu falei: “Olha, tenho alguma outra solução?”. “Não, não

não gosto de me apresentar para público adulto. Meu negócio é criança e da faixa de quatro

tem”. “Está bem... e quem vai ser meu Escada?”. Minha mulher disse: “Eu”. Putz, assis-

aninhos até onze aninhos. Passou daí, esquece...

tiu o meu pai, assistiu a mim. Essa minha segunda mulher é aquela que gruda. Só não veio hoje porque tinha que levar a menina na escola, senão estava aqui, falando um montão no

DA: A receptividade é diferente. B: É diferente. Para adulto você tem que se preparar e dar aquela pequena apeladinha. Circo à noite é isso. Circo durante o dia é outra

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

coisa. A minha esposa, que tem muita experiência, outro dia estávamos em uma escola para

a gente se apresenta. Então, eu acho que isso é o trabalho certo, correto. Depois mudaram

fazer um espetáculo, com criançada muito levada, ou melhor, criançada muito esperta, por-

tudo. Na própria televisão. “Vamos fazer os outros trabalharem por mim”. “Para quê eu

que eu chamo de criança esperta. E ela travou. Você já viu alguém travar? Não sabe o que fala!

vou trabalhar, se eu posso fazer o Joãozinho, o Antoninho, o Zezinho dançar, estourar bexiga, correr, fazer?”

Ela entrou, começou a falar, a criançada lá embaixo: “Ah, la, la, ah”... ela travou. Eu

Para mim isso não tem valor artístico. Aque-

tive que entrar vestido de palhaço, para começar a organizar a bagunça que ela conseguiu

le que é o bonitinho que vai lá e é dirigido que nem os cabrestos do burro, “Olha, você faz isso,

fazer. Eu trabalho para a criança, não quero que a criança trabalhe para mim. Eu não cha-

isso, isso, isso. Olha, não gostei! Faz de novo, isso, isso, isso... Olha, não gostei! Faz de novo...”

mo criança para vir fazer brincadeira comigo em cima do palco. Fazer a criança trabalhar

até o cara aprender. Para mim, isso é máquina, você não acha? O diretor de novela te

no meu lugar? Isso aí eu nunca fiz, aprendi com o meu pai. Criança é como adulto: senta

condiciona. A não ser esses grandes artistas mais antigos que, às vezes, chegam para o cara e fa-

lá e assiste o que você vai fazer. Se você for um bom artista, a criança fica quietinha e te vê. Se

lam: “Deixa eu fazer a cena do meu jeito”. Já vi isso. Mas aqueles jovens que hoje participam,

você for um mau artista, a criança bagunça o coreto e sai de perto. Criança é honesta. Quan-

são muito mais maquinados e impossibilitados de realmente poderem se tornar artistas de pal-

do ela gosta, gosta. Quando ela não gosta, ela diz: “Eu não gostei”. Então eu aprendi isso.

co, sabe? Meu pai dizia, artista tem que ser estudado, tem que saber cantar, tem que saber

Dificilmente exploro alguma coisa da criança. Eu apresento um espetáculo para a criança.

tocar, tem que saber dançar e, quem sabe, falar uma língua. Então, veja quantos itens para você

Eu não vou fazer recreação com criança. Eles têm que sentar lá e assistir. Eu faço 1 hora e 15

poder chegar a ser bom artista. Eu digo, para ser palhaço precisa disso e um pouco mais.

minutos de show que não arreda um pezinho do lugar que está. Tenho cartas maravilhosas

DA: Em quem você vê um grande palha-

de escolas, tenho cartas maravilhosas da onde

82 Doutores da Alegria

ço ou comediante?

- História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo -

B: Posso ser sincero para você? Os bons morreram. Temos bons palhaços, mas sem

aquilo. Fazíamos ecologia naquele tempo. O que nós fazíamos? Pela televisão, a gente fala-

chances, porque você só pode ser alguma coisa ou mostrar o seu trabalho se você tem uma

va: “Vamos fazer uma campanha, uma angariação para o Hospital do Câncer Carmen

mídia. Se tem onde aparecer. Fazendo showzinhos não aparece. É como se dependesse

Prudente”. Eu não conhecia o Sr. Prudente, eu conhecia a Dona Carmen Prudente. Consegu-

do boca a boca. Tem aí os Parlapatões, com uma mídia, sei lá se a mídia deles é feita por

íamos sacos, toneladas daquelas tampinhas. E fediam a azedo porque a turma não lavava e

eles mesmos. Os Doutores da Alegria, estão aí, cada um no seu setor. Modernidade?

punha dentro do saco e ia juntando.

Modernidade. Apóio, acho bacana para caramba, inclusive o trabalho que vocês fazem em hospital eu também já fiz. Eu trabalhei com o meu pai no Hospital do Câncer.

A gente fazia os shows no Hospital do Câncer com histórias mirabolantes. A gente visitava antes, os leitos dos idosos, dos jovens e das crianças, muitas eram jogadas lá porque os pais não aceitavam, jogavam lá e sumiam.

DA: Então chegou a visitar hospital como palhaço?

Nós íamos uns dois dias antes, levávamos umas lembranças que nós tínhamos dos nossos pro-

B: Muitos! Santa Casa, Hospital do Câncer, Hospital do Câncer Carmen Prudente...

dutos e dávamos para as crianças doentes com câncer. Dois dias depois a gente ia fazer o es-

DA: Eram convidados pelos hospitais, é isso?

petáculo, e a gente sempre era alertado pelos diretores do hospital que diziam: “Olha, não

B: Não, não éramos convidados. A gente procurava. Nós fizemos homéricas campanhas

se incomodem se alguém começar a gritar”.

para o Hospital do Câncer. Vocês não devem se lembrar de quando vendiam o litro de leite

DA: Por quê? B: Por causa do câncer, da dor... Passa o

nas garrafas de vidro e vinha aquela tampinha de alumínio em cima. Era um engradado

efeito do remédio... assistindo um espetáculo de uma hora, meu amigo... Berra mesmo. Ber-

e vinham as garrafas de leite de vidro com o leite dentro e uma tampinha de alumínio, que

ra... Desculpa, mas é assim, é a verdade.

tinha um valor inestimável. O pessoal jogava

Eu me lembro de uma vez que eu fui para

Doutores da Alegria

83

BOCA LARGA

o hospital com o meu pai para fazer uma visita, conversar... Acho que tinham umas 15 ou 20 crianças. O hospital era menor. Levamos uns brinquedinhos e tinha uma menininha com um câncer exposto no rosto, eu comecei a brincar com a menina e eu lhe um brinquedo. A menina deu um sorriso, mas não se movimentava muito não... “Vai assistir?”. “Vou”... A menina deu um sorriso: “Amanhã eu vou assistir o show, depois de amanhã eu vou assistir o show...” Terminaram todas as visitas das crianças, dois dias depois nós fomos fazer o show. Então eles traziam os velhinhos nas cadeiras, as crianças, algumas na cama... É difícil pegar

84 Doutores da Alegria

um pessoal, que a gente já sabia que naquela época estava mais condenado do que hoje, e querer transmitir alegria. Fizemos aquele show, eu tinha me engraçado com a menininha e não a vi no espetáculo. Eu falei: “A menina não desceu, ela não está boazinha, eu vou lá no quarto ver”. Subi no andar de cima com a Dona Carmen Prudente, aí a enfermeira veio: “Sinto muito, mas a menina faleceu ontem”. Estava lá no berço o bonequinho que eu dei para ela. DA: Palhaços e muitas histórias. Obrigado por esta entrevista.

Walmir Chagas: Começando pela minha

mouro, aqueles morenos árabes. Não conheci

ficha de identidade: sou Walmir José Oliveira das Chagas, conhecido como Walmir Chagas.

meu avô paterno, o Vicente Chagas. Quando se conheceram, minha mãe já tinha dois filhos:

Meu personagem central, alterego, de um tempo para cá é o Véio Mangaba. Antes, havia o

Luiz e Manoel. Esse Luiz conheci depois, me foi apresentado e me levou para ter as primei-

palhaço Furinho, que é outro estilo de palhaço, com o qual nunca mais trabalhei. Nasci em

ras experiências de circo. Do casamento de papai com mamãe vieram minha irmã

um sábado de 1960, às 06h15 da manhã, na Rua Augusta do Recife. Hoje tenho 47 anos.

Walquíria e eu.

Minha mãe era muito bonita. Ela e meu pai já se foram. Minha mãe veio do interior, era sobrinha de dois ex-cangaceiros de um grupo famoso que veio depois de Lampião (Antônio Silvino). Minha avó tinha dois irmãos que escaparam. Um mais novo, outro mais velho. Um entrou no cangaço e levou o outro. Então mamãe vem das bandas de Canhotinho, perto de Garanhões, da cidade de Brejão, cidade de origem de minha avó. Chegando em Recife, encontrou meu pai, que era filho de espanhol

Minha mãe já tinha dois filhos e papai também, juntou os dela com os de papai. Waldemar, por parte de pai, era mais velho; foi embora para o Rio de Janeiro. Inclusive, era muito amigo de Abelardo da Hora. Foi perseguido mesmo antes e depois da ditadura, porque era comunista guerrilheiro. Escultor e jornalista, trabalhou no Diário de Pernambuco. Depois foi embora. Está na lista dos desaparecidos políticos. A história da gente é cheia de nuances. Meu irmão Luiz aparecia de vez em

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Walmir Chagas a Morgana Masetti no dia 30 de Abril de 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. Duração da gravação: 01:19:54. Transcrição por Global Translations.

Doutores da Alegria

85

Véio Mangaba

História de Vida: Walmir Chagas

BOCA LARGA

quando e trazia presentes para mamãe. E nessas vindas e idas — eu era pequeno, menorzinho, porque pequeno nunca deixei de ser —, lá na Rua Augusta, do Bairro São José, pedia para que mamãe deixasse ele me levar, principalmente nas férias. As minhas férias do primário, 3ª, 4ª série, quase nunca passava no bairro onde nasci. Sempre viajava com o meu irmão, peguei contato com o circo. Ele era um faz-tudo, o tipo que hoje o pessoal chama de multi-artista. Na verdade, essa coisa de multi-artista é como

tem que encontrar a sua maquiagem. Sua persona. Até no teatro se fala disso. Bem, fui para o circo... a primeira vez que entrei em um circo foi numa viagem com o meu irmão. Ele foi pedir a papai. Lembro que papai dizia assim para mamãe: “O Luiz está perdido e quer perder o pequeno também. Quer levar o pequeno para o caminho do mal”. Mas disse isso rindo, porque nunca foi de arte, mas era músico amador. Antigamente, na época dele, todos aprendiam algum instrumento. Tocava clarinete no bairro. Até participou de

diz o ditado: “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”. Porque, na verdade, é mais do que

banda de música.

obrigação de um artista cênico aprender de tudo. O pessoal de circo historicamente já tem isso, até

Doutores da Alegria: Quando era pequeno, quais as suas brincadeiras? Como você era?

no DNA, oriunda daquela coisa cigana. A própria sobrevivência faz com que você aprenda mais

W: Pegava os discos de papai... uns discos antigos, de 78 rotações e aproveitava quando

de uma coisa. É a própria necessidade que obriga a não mandar ninguém fazer. Você mesmo faz.

todos conversavam na sala. Tocava os discos e pegava uns lençóis, umas coisas e saía vestido e

As pessoas, até hoje, dizem: “Mas Walmir, tu faz a tua própria maquiagem? Eu pensei que...” Não,

fazendo a dublagem da música que tocava. Eu me vestia até de baiana... Fazia o maior estar-

a gente aprende a fazer. A maquiagem tem uma coisa interessante. Para ter, para fazer a sua

dalhaço... Cada vez que saía e voltava, era com um personagem diferente. Pegava até roupas

maquiagem, tem que se conhecer muito. Porque se pegar a maquiagem de um palhaço e pintar na

da minha irmã. Ela ficava arretada comigo... Vinha vestido de Carmen Miranda, dançando.

cara de outra pessoa, vai ficar a coisa mais estranha do mundo. Lógico, a pessoa não é a mesma,

Aquilo que eu escutava, tentava reproduzir na cena. Inventava uma roupa que tivesse a ver

o gesto, a forma... então ficará terrível. Cada um

com a figura que cantava. Para Jackson do Pandeiro: eu vinha com um prato, uma panela to-

86 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

cando, cantando. Gostava de fazer essas coisas de dublagem, mas brincando. Como se fossem

Sabem montar o circo... Logicamente, as tarefas são distribuídas de acordo com a habilida-

apresentações... mas era sobre o que estava tocando... não havia uma coisa específica. O que

de e a força. Mas em questão de conhecimento, todos sabem fazer. Desde pequeno, come-

imaginava, tentava mostrar.

cei a ter esse contato direto.

Entrei num circo pela primeira vez em Vi-

Havia as comédias ligeiras e os esquetes.

tória de Santo Antão, num lugarejo chamado Natuba. Daqui para lá, depois de Vitória, an-

Às vezes, não entravam esquetes, porque os clássicos já estavam mais formatados. Esta é

tes de Pombos, há uma plaquinha “assim” [gesticulando]. Sempre foi um ponto de venda de

uma linguagem usada para computadores, hoje em dia. Mas quero dizer que estavam

coentro, cebolinha, alface... Fui para esse lugar para ver o circo de um palhaço, não me

formatadas para o palhaço, ou o palhaço e o ajudante, o tony de soirèe; um mais engraçado

lembro do nome. Não havia a empanada de cima, era o chamado deus-tomara-que-não-

outro engraçado também, mas que serve de escada para o companheiro formatar, dar o

chova. O proprietário era um palhaço muito moderno, na época. Tinha um nome esquisito:

resultado da piada. Como Didi e Dedé, o Gordo e o Magro. Diferente daquele estilo Chaplin,

Palhaço Paquera. Aquela coisa de flerte, de paquerar. Uma coisa muito estranha.

Carlitos, individual, em que os outros são figuras...Aprendi isso desde pequeno. O

Continuo achando uma viagem muito lou-

esquete tem entre 5 e 10 minutos, com o improviso, 15 estourando. Mas as comédias ligei-

ca a daquele cara, como dono do circo. Como eu sempre digo, a família do dono do circo é

ras tinham em torno de meia hora. De 20 minutos a 40 minutos. Algo grande, como: “A

faz-tudo. Se ele é o mágico, sua mulher faz a parceria com ele. A filha vende amendoins.

agência pegou fogo”, “A agência Marineles” ... havia outras também e havia dramas, che-

Depois, na outra cena, a mulher vai para a bilheteria ver como foi o “recado”, e a filha vai

guei a fazê-los, mas como figurante. Não tinha nem texto.

fazer seu número. O cara se transformou em palhaço... era um elenco muito pequeno que fazia tudo. As pessoas naturalmente aprendem pela necessidade a fazer mais de uma coisa.

DA: Você se lembra dos títulos? W: “A afilhada”. É interessante que as comédias antigas de circo, e os dramas, têm,

Doutores da Alegria

87

BOCA LARGA

como você pode ver até na obra de Ariano Suassuna e dos mamulengos, um título e um

ra! Você foi à África?”. “Não, mas aqui tinha, na época”. Tudo conversa furada. Um começa

subtítulo, que é uma explicação. “O filho pródigo ou o milagre de nossa senhora da Concei-

a querer ser melhor do que o outro. De repente, um diz que entrou na mata e quando se virou...

ção”. Aparentemente não há nenhuma conexão mas, na verdade, o filho foi embora e no

Nesse momento, atrás do outro, a alma, vai entrando e começa a cutucar um e outro. Um pen-

final há o milagre de Nossa Senhora. “A Louca do Jardim”, famosíssimo. Chegou-se a mon-

sa que é o outro que cutuca. De repente, quando vai dizer que ia atirar na alma, vê, joga a

tar aqui no Recife por Waldir Coutinho, junto a um projeto da Prefeitura da época. Até li-

arma para cima e corre. A alma vem e senta no lugar dele. Depois de um tempo, ele pega a

vros foram escritos resgatando esses dramas e comédias. Cheguei a participar de alguns. E

arma: “Esse cabra é muito frouxo. Foi embora e tal”. E começa: pega a alma e começa a conver-

os esquetes, propriamente ditos, clássicos: “O dentista” — porque sempre vimos isso em gran-

sar. Quando ele olha, vê que é alma também.

des circos. “O dentista”, “A alma”, “A sonâmbula” são os mais antigos e mais conhecidos.

Portanto, sempre esses desfechos são muito, digamos, puros. Só que, dentro dessa pureza, aquilo está transmitindo uma mensagem

DA: Se você quiser descrever um... W: O esquete “A Alma” é interessantíssi-

até mesmo religiosa. Da vida mesmo. Eu até digo o seguinte: que nunca participei de ne-

mo porque aparecem dois palhaços do mesmo calibre, vamos dizer assim, não necessariamen-

nhuma igreja formal, católica, nem isso, nem aquilo, porque a própria arte já me dá essa his-

te um querendo ser mais engraçado do que o outro, até para haver uma disputa, ver quem é

tória. Acho que um palhaço é um padre para a igreja católica. Ele é um pai de santo para

o mais “tampa”. Começam a discutir... A cena abre com um dizendo para o outro: “você é

um candomblé. Então, o nosso jeito de ser palhaço já é de ser um monge. É um monge den-

mentiroso”. “Mentiroso é você”. “Ah, você já fez mais coisas...”. “Eu viajei”. “Não, você

tro da nossa religião, que é a alegria.

que...”. “Eu que tenho mais experiência”. Começa aquela discussão e, de repente, um diz que

A alegria no sentido da — algo em que trabalho há pouco tempo — “equivocologia”. Tra-

é caçador, que já caçou leão. “Mas que menti-

balhar sobre os equívocos. A gente, às vezes,

88 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

persegue uma coisa, que é o estudo do equívoco. O palhaço não necessariamente é alegre.

lhaços de carnaval, aqueles inclusive que vêm da Comédia Del’Art. Aquele trio: Arlequim,

Com essa Alegria, ele mostra a realidade da vida. E nela, nem sempre há alegria. Segundo

Colombina, Pierrô. Foram as primeiras experiências. O clown é chamado aqui no Recife e na

São Francisco de Assis, se você sabe que vai sofrer, trate a dor com alegria. Porque se a en-

linguagem popular de Clóvis. Palhaço em inglês. Eu já tinha essa experiência, mas não sa-

carar de frente, enfrentá-la, com raiva ou ódio, é pior ainda. De qualquer maneira, vai ter que

bia, porque a gente só descobre depois. Quando vim para o circo, vi que o palhaço era exa-

passar por ela. Sofrer significa viver. Então viva com menos sofrimento. Sofrer menos é alegria.

tamente como eu pensava. Inclusive, a experiência dos primeiros palhaços, como o

Isso no nível humano, porque, na verdade, a gente procura... ser anjo, mas enquanto a gen-

Paquera... tinha a família dele... sua mulher parecia uma índia baixinha assim... ela canta-

te não chega lá, vamos sofrendo por aqui mesmo.

va. Cantava aqueles bolerões. Num espanhol meio misturado, mentiroso, né? Para enganar

DA: Walmir, você disse que seu irmão Luiz te levou ao circo. Como via o palhaço, qual foi a sua primeira impressão e como você se sentia naquele lugar?

o povo, cantava umas coisas com a língua misturada. Dizia que aquilo era do sul da Escócia... Coisas assim muito loucas. Isso já é uma palhaçada. Conversa de cigano nordestino.

W: Palhaço é feito ser humano: não é uma coisa só. Para mim, é sinônimo de homem, de

Esse cara era muito engraçado, porque era sisudo, bravo, andava com uma faca. Parece

gente. E existe de todo tipo, cor e altura. A primeira experiência é lá de casa mesmo. Minha

que já tinha até furado alguém, porque tinha tirado onda com a cara dele. Coisas assim, um

mãe era uma senhora palhaça e o meu pai um senhor palhaço. Tudo o que faziam na vida,

baixo astral total, mas era o palhaço... Acho que com certeza foi a minha maior aula. É justa-

conseguir me criar naquela dificuldade... eu via aquela alegria, aquela coisa... cantando. A pri-

mente por isso: porque sem essa alienação... Alegria sem ser tomada como alienação e sim

meira experiência é minha própria casa e meu irmão. E minha vida. O carnaval de onde nas-

tentativa de não ser infeliz. Fazer do ar quente o mais frio possível, que é a própria vida. É onde

ci. No bairro de São José, comecei a ver os pa-

está a coisa do equívoco...: “Vamos ser palha-

Doutores da Alegria

89

BOCA LARGA

ços! Hi, hi, hi...”. Não. Não vou rir, porque não há sentido em rir de algo... é mais necessário

se uma cruz. O nariz — nunca usei muito aquela bolinha propriamente dita — eu sempre pin-

saber qual o sentido do riso do que rir. Se você entender para quê o riso existe, já é um grande

tava. Pintava de vermelho, às vezes untava até uma massa, e ele ficava um pouco mais

passo. Agora, rir sem saber porque pode até fazer mal.

compridinho, porque meu nariz não precisa muito botar outro não. Já veio grande de fábri-

DA: Você falou sobre a maquiagem e uma coisa bonita sobre não se encaixar no rosto de

ca. A boca também já é vermelha. Parece que já há um batom dentro da boca.

outra pessoa. É autoconhecimento? Como foi esse primeiro palhaço que você fez, o Furinho?

DA: E a roupa dele? W: Era aquela gola larga, inclusive, me

W: Acho que as pessoas lembram da maquiagem do Furinho. Lembra muito o

inspirei no próprio Carequinha. Quando ficava com vergonha, a gola dele entrava na cara.

Carequinha, que morreu há pouco tempo com noventa e tantos anos. Palhaço tem que se

Os dois punhos também. Uma camisa, manga comprida às vezes, de malha listradinha, com

olhar muito no espelho. Saber como é sua cara. Se não tiver espelho, olhe no rio, no lago mais

gravata comprida e colarinho enorme, de palhaço. Às vezes, quando ia mais para um es-

próximo, numa poça de água, mas tem que olhar muito, saber como é a cara. Sabendo

petáculo adulto, inspirado nos palhaços de circo, essa gravata tinha um cordão por dentro

como é a cara, vê os lugares que trabalha mais, porque é diferente, cada pessoa tem o seu...

que saía até no pé... Quando fazia assim, ela fazia póim. Só que não se faz isso para crian-

Tem gente que não consegue mover isso aqui, mas move muito bem isso aqui [apontando para

ça. Criança adora, mas os pais não querem... porque criança adora safadeza. Na verdade,

pontos no rosto]. Se não as pessoas seriam iguais. No caso do Furinho, descobri que tinha

criança sabe de tudo, de toda safadeza. Fica representando para os pais que não sabem de

um “trabalho” aqui da testa, então fiz duas bolas. Preto e branco, riscado de preto. Eu o

nada e vice-versa. A criança vê isso de uma forma pura. É só isso. É feito o amor. O amor é

achava meio tristonho. Era um riso, então coloquei duas lágrimas. Na verdade, fechava o

um só. Não existe amor fraternal, paternal... não. Meu pai dizia uma coisa muito bonita:

olho e riscava um pouquinho aqui. Ficava qua-

“O amor é um só. O que existe são os comple-

90 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

mentos do amor”. Muda de acordo com o que você vai fazer. A roupa era isso. Uma calça

de crianças ao redor. Eu me lembro que esse programa era todo dia à tarde, ao vivo, preto e

com arame, que ficava larga, com suspensório. Um meião de jogador colorido e um sapatênis.

branco.Houve uma chamada perto do carnaval para as crianças que queriam participar do

Um chapéu que eu mesmo faço até hoje de papelão, imitando de palhinha, de palheta. Às

concurso de passos de frevo, de passista. Como nasci ali no foco do negócio, no bairro de São

vezes, o fundo era falso. Abria e tirava confete de dentro. Todo cheio de coisa falsa. Na bun-

José, fui lá e me inscrevi. A gente ia à pé, andava, passava pela Pracinha do Diário e ia em-

da, um coração. Às vezes, aqueles corações, às vezes, um bolso mesmo para o pessoal pensar...

bora.

e você vai criando, mas a roupa básica era essa. Ia mudando ... tinha um paletó por cima.

Antigamente, existia o Teatro Santa Isabel e o Teatro Marrocos, ao lado de onde hoje é uma Caixa Econômica. Lindíssimo, de ma-

DA: Isso foi você mesmo que criou? W: Eu me inspirava em outros palhaços

deira, junto ao Liceu de Artes e Ofícios. Passava pela porta, inclusive pelo caminho para o

mais antigos. Posso citar três: o próprio Carequinha, o Arrelia e palhaços que via na

canal 2, porque tinha que pegar a ponte, a Rua da Aurora e a Rua do Lima.

televisão e no circo. Todo dia a gente fazia esse caminho à pé, DA: Você já era ator, trabalhava em teatro? W: Em 1969, ia fazer 10 anos. Estava com

porque era na cidade, e a cidade era muito menos turbulenta. Parei uma vez na porta do

9 anos de idade. Já tinha essa experiência desde os 8 ou 9 anos com meu irmão. Havia um

teatro; tinha aqueles cartazes enormes com aquelas bailarinas, vedetes. O espetáculo: “É

programa de televisão ao vivo, no canal 2, Recife, TV Jornal do Comércio — os programas

muito socó para um só socó coçar”. Teatro de Revista. Eu ficava olhando... o próprio Barreto

eram todos ao vivo —, chamado Cidade Encantada. A Xuxa da época. A figura ainda está

Júnior, que era o comandante da história, às vezes, estava pela porta, ali com o charutão

viva. Graças a Deus ainda existe. A gente se encontra... o nome dela é Linda Maria. Foi do

dele... Para mim já era um velho de pastoril, uma figura assim... dessas figuras do Teatro

rádio e chegou a ser da televisão. Fundadora da TV Jornal. Tia Linda era essa figura cheia

de Vaudeville, que é um palhaço, um apresentador do Cabaré: “Senhoras e senhores...”,

Doutores da Alegria

91

BOCA LARGA

aquela coisa meio fanfarrão e palhaço. Só que um palhaço com outro estilo. Eu olhava e ti-

época participando daquelas propagandas, por exemplo... Propaganda ao vivo, como voltou

nha aquelas placas, fotos que diziam assim: Impróprio para menores de 22 anos. “Quan-

agora nos programas. “Esse chá é muito bom, porque não sei o quê e tal. Tome aqui, meu fi-

do é que eu vou ter 22 anos?”. Eu tinha 9, 10 anos de idade. Por que não 23 ou 19? Nunca

lho”. Então eu era o menino que tomava o chá.

consegui entrar no Teatro Marrocos, mas cheguei a ficar na porta e via as mulheres entran-

DA: Tinha que dizer que estava gostoso...

do para o espetáculo.

W: Eu não me lembro não, devia ser uma merda. Mas tudo ao vivo. A gente ia aprovei-

Fui para o canal 2 e ganhei como passista,

tando... Fiquei até meus 15 anos... Então conheci Paulo Ferreira, o pai dos Madureiras.

na minha categoria de criança. Tia Linda me chamou para fazer parte, não do elenco prin-

Estava formando um elenco de teleteatro. Queria voltar com o teleteatro, em 1975. O André

cipal, porque eu tinha 9, 10 anos — e pessoal assim já tinha. Cito até Ivanildo Silva, que faz

Madureira, que trabalhava com ele na produção do programa, já tinha recebido um cha-

muita propaganda também, uma figura e que era do elenco principal. É um pouco mais ve-

mado do Professor Ariano para formar um grupo de pesquisa de dança popular. Então a

lho do que eu. Ele já tinha 15 anos, era um adolescente. Ele, Naná, Gracinha Lira e

gente formou o Balé Popular do Recife, em 1976.

Guadalupe, a menina que casou com Dominguinhos, da família da Fazenda Nova.

O Balé Popular, que não era balé. Era gru-

Eu ali de pirralho, comecei a fazer umas pontas. Havia uma peça, se não me engano “Alice

po circense de dança popular, ou seja, eu tive toda uma... pequena experiência já na época

no País das Maravilhas”. Me escolheram para ser uma carta, um soldado, daqueles de porta

para esse grupo. Já indicava, inclusive... A gente fazia reuniões da gente... Para você ter uma

de castelo. Tinha essa função e tia Linda gostava muito de mim. Nunca cheguei a atuar,

idéia, o mais velho era André, que tinha 25 anos de idade. Era legal. A gente, inclusive, foi cha-

mas havia alguns textos muito pequenos, porque também era muito criancinha ainda. Isso

mado na Polícia Federal, porque a palavra popular era meio perigosa na época. Lembra-

é experiência em televisão. Venho desde essa

va comunismo, socialismo, como em Repúbli-

92 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

ca Popular da China. Eu quase, com o meu jeito metido de ser e de não agüentar muita

to, clássico. É um grupo de dança do povo, o nome já diz...”. Ele disse assim: “Você está

coisa... porque o palhaço, antes de ser engraçado, é “dizedor” de verdades. Só que essa

muito engraçadinho, viu?” Eu disse: “E do Recife...”. Ele disse: “Se disser, você fica pre-

verdade pode ser minha, sua, de alguém ou de ninguém. É um agente da verdade. Não pode

so”, “porque não é de Olinda, nem de São Paulo”. Ele disse: “Se disser fica preso”. Isso já é

ser dita, como eu já volto a dizer, como uma coisa muito boa, às vezes, não. Verdade é ver-

uma cena. Essas cenas parecem brincadeira, mas são verdade. Você apresenta isso no tea-

dade. O fogo é bom ou ruim? Para quê? O mar é bom ou ruim? Você pode se afogar no mar,

tro, parece uma brincadeira, mas a vida é isso mesmo.

então é coisa natural. Não existe essa de bom ou ruim. Para o que será que se destina? Para que serve? Então o cabra da Polícia Federal, eu me lembro, todo arrogante, chegou e perguntou, falando mais com André, porque André era adulto, e eu ali olhando. Ele disse assim: “Por que esse negócio de Balé Popular do Recife?”. O André ficou assim meio com medo, aí eu me meti. Eu disse: “Balé porque...” eu comecei a ironizar com a cara dele, ele ficou sem entender...”Balé porque é um grupo que faz dança, né?”. André: “É”. Vê que conversa abestalhada. Balé porque é um grupo que faz dança, que criamos, porque antes era b, a, l, l, e, t: ballet, em francês. A gente que se arvorou e colocou em português mesmo, aportuguesou. “Creio que foi a primeira vez que se escreveu dessa maneira. “Olha, popular...”. “Sim, popular, por quê?”. E anotando. “Popular porque é um grupo que não é erudi-

DA: É, e naquele tempo você já desafiava autoridade. W: O palhaço parece muito com uma criança. A coisa pior do mundo é você ficar: “Você, criancinha, tem que ser boazinha, viu?”. Eu garanto que essa criança tem uma grande tendência a ser ruim. Você não pode ficar falando para uma criança que ela tem quer ser boa e muito menos má. Você não vai dizer: “Você tem que ser má”. Não, lógico que não vai fazer isso. Agora, ficar com babaquice, porque tem que ser boazinha, porque não sei o quê... Criança é muito inteligente, não gosta dessa conversa. Tem que dar exemplos através da linguagem e da ação e tem que ser verdadeiro. Criança é muito verdadeira. Por isso criança diz na cara, não tem medo de ser presa. Criança não sabe o que é isso. O próprio Jesus diz: “Se você se tornar criança, você entra no reino dos Céus.” Isso está dito na Bíblia

Doutores da Alegria

93

BOCA LARGA

e todo mundo fala isso. Cada um na sua linguagem. Então o palhaço é o quê? Um adulto que é

da corte, o bobo, se dissesse algo para o rei... a gente sempre toma como uma coisa européia.

criança. Mas temos que tomar a criança, não como alienada, e sim como uma pessoa aberta,

Mas em qualquer situação: na África, em qualquer lugar, qualquer povo. Se ele disser aquilo

sem medo, natural. Brinca de viver ou vive para brincar. Um ser brincante. Isso é muito bonito.

de uma forma ríspida, grosseira, chorando, não vai resolver. Primeiro, pode até conseguir

Muito mais profundo do que se imagina.

resolver, mas é dizendo aquela verdade de uma maneira engraçada... isso acaba com o gelo.

No Balé Popular do Recife, tínhamos uma meta a cumprir. No movimento Armorial, liderado por Ariano, existiam “departamentos”.

O ser humano começou a descobrir que se pode dizer a mesma verdade de uma forma

Na música, a orquestra Armorial, Quinteto Armorial, com Zoca, Nóbrega ... e na dança o

grosseira, brigando, chorando, ou dizer rindo, cantando. Você vai se dar bem da segunda for-

Balé Armorial, que depois se transformou em Balé Popular. Só que o Balé Popular do Recife,

ma. Descobriu-se isso. A gente tinha essa meta, querendo saber como seria o palhaço mais nos-

antes de ser Balé Popular do Recife, se dedicava ao que o nome já adiantava: Grupo Circen-

so, porque eu particularmente nunca fiquei naquela de dizer assim: “Não, porque o brasi-

se de Dança Popular. A gente fazia uma combinação entre a dança popular e os tipos po-

leiro...”. Não, não é que o brasileiro seja melhor do que ninguém. Já que nós somos mistu-

pulares, ou seja, o que a gente chama de palhaço. Pagliaccio, em italiano. Vestido com uma

rados, então a gente vai pegar esse pouquinho de cada um e tentar ser mais brasileiro. O mo-

roupa de palha, ou esse clown famoso americano, inglês. O que é o palhaço brasileiro nes-

vimento de 22, o Modernista, foi uma tentativa disso. A gente ficava sempre nessa dúvida:

sa mistura que a gente sofreu? Será que no índio não tem? O índio, sem nunca ter visto a

como seria o palhaço brasileiro? O palhaço brasileiro já existia. Todo movimento, toda brin-

coisa européia, não tem palhaço? Tem. A forma dele, que a gente chama de palhaço, o co-

cadeira popular tem o seu palhaço específico, ou seja, é o palhaço, mas com aquele sotaque,

mediante, o cabra que mostra as mazelas da sociedade, os defeitos. A figura que diz, de for-

com aquele jeito. No Cavalo Marinho, no Bumba-Meu-Boi

ma bem humorada... o próprio pequenininho

de Pernambuco, você vai encontrar o Mateus,

94 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

o Bastião e a Caterina. Se transferirmos para o circo europeu, temos algo muito semelhante na

clown, é universal por quê? Porque fala inglês. Então qualquer palhaço que não fale inglês, que

“Alma”, que é o palhaço Tony e a Colombina. O Pierrô, o Arlequim e a Colombina são o

fale tupi ou nagô, ou qualquer outra língua, não é universal. Torna-se folclore local. Eu dis-

Mateus, o Bastião e a Caterina.

se: “Não, espera aí... Furinho que me perdoe, mas vai ter que dar uma reciclada na vida dele”.

DA: Só que são negros!

Ou seja, o Furinho se transformou no Véio Mangaba. Ainda acho que existem os dois den-

W: Pois é! A coisa da mistura chegou a esse ponto. Negros ou mestiços. O que acontece? Você vai para a brincadeira de rua, aonde até o camelô é um palhaço. Ele vem, dança com uma boneca, pega o vendedor que faz teatro de rua — porque é uma espécie de teatro de rua, mas está ali para vender. É o camelô. O cabra que vende banha para dor, do peixe elétrico, não sei o quê... O homem da cobra. O pessoal diz que “o Walmir fala mais do que o homem da cobra” Ninguém pode reclamar, porque se não tiver ninguém para eu tirar onda, eu tiro comigo mesmo. Ou seja, é como se fosse uma masturbação do riso. O Furinho, se olhar di-

tro de mim. Que safadeza. Mas não é bem assim, não é o que vocês estão pensando não. Dentro de mim, existe um Furinho. O Furinho está aqui, é o palhaço universal, que fala meio inglês, mas o Véio Mangaba é o Faceta, o Barroso, o velho de pastoril — porque esse velho de pastoril, se você olhar, já é o velho também que é o palhaço do circo mambembe. As pastoras são o que o pessoal do circo chama de pátinas, ou as rumbeiras do circo. Aquelas mulheres meio ciganas que vão para a platéia, jogam o lenço e seduzem para ganhar um dinheirinho. E, muitas vezes, é até esposa e filha do palhaço.

reitinho, tinha uma característica mais européia mesmo. Essa característica européia ou,

Hoje, por exemplo, tenho uma pastora que é minha filha. Então estou seguindo, de certa

vamos dizer assim, universal... Por que o frevo não é universal? Porque não fala inglês. O rock

forma, a tradição. A diferença só é essa: a busca, porque o palhaço existe, o que muda é a

and roll é universal porque fala inglês. Então se o frevo falasse inglês, seria universal. Ou seja,

cultura desse palhaço, onde o artista que faz o palhaço, que faz aquela persona, personagem,

a língua dominante é que faz com que a cultura seja dominante também. Esse palhaço, esse

está localizado culturalmente. Se eu vivesse no sul da França, teria as características “a”, “b” e

Doutores da Alegria

95

BOCA LARGA

“c”. Já que vivo no nordeste do Brasil, tenho as características “y” e “z”. Na França é amour e

impossível. Uma coisa de negrinho, de “gentinha”, suburbano... Dançar uma coisa do

na Inglaterra é love, mas o sentimento não é a mesma coisa? O que muda apenas é o sotaque,

povo, brincar... A gente ficou sabendo que o velho Faceta se apresentava — quem disse foi

a língua. O palhaço é o mesmo, o espírito é o mesmo. Acho que o ideal é encontrar o fio da

Leda Alves, que produziu os dois primeiros LP’s. Ele canta: “Papai ó que calor, / Calor na

meada da sua cultura, seja qual for. Já que a cultura brasileira é misturada, os palhaços não

bacorinha...”, e por aí vai... “Pra nós na sua, / ai papai só é na minha...”. Ele chegou a ir para

poderiam deixar de ser, só que essa mistura... é como a história das raças de animais e o vira-

a Globo, no Chacrinha, outro que levou a cultura do palhaço. Pernambucano, levou isso

latas. O vira-latas, de certa forma, é mais forte que os outros. A música brasileira, por ser uma

para a televisão. O Velho Guerreiro e suas chacretes, o que é? Tem a ver com o velho pas-

música vira-latas, digamos, misturada, tem uma tendência a ser mais forte, porque pegou o DNA

toril. Chegou até a falar essa coisa: “Quem quer bacalhau?”, e jogar bacalhau... abacaxi... e “vai

de várias outras culturas. O palhaço brasileiro tem uma tendência, por essa lógica, de ser mais

para o trono ou não”? Essas brincadeiras têm tudo a ver com o pastoril. Eu cheguei a ir na-

“tamporoso” do que os outros, porque pegou o DNA de outros palhaços.

quela rua onde o velho Faceta se apresentava às sextas à noite e aos sábados. Fomos eu, o André, Antulho, Madureira, Antero.

DA: Walmir, você chegou a ver alguma apresentação, do velho Faceta, do Barroso?

Cheguei a ver o velho Barroso, mais velho

W: Cheguei. Voltando ao Balé Popular, na época que a gente vivia pesquisando, andan-

do que o Faceta, no Pátio São Pedro, ainda na época que tinha as cirandas às sextas-feiras.

do por circo, por terreiro de maracatu, na década de 1970. Inclusive, uma coisa que a gente

Se apresentava também em um lugarzinho ali, em um “limpeiro”, um campinho de futebol

notava mesmo é que só quem fazia o folclore, vamos dizer assim, a cultura popular, era o

em Afogados. A experiência vem dalí. A própria maquiagem do Veio Mangaba vem dalí.

povão mesmo. A classe média e a alta não gostava disso. Hoje você vê uma garota de Boa

O Professor Ariano me colocou na parede uma vez e disse assim: “Walmir, por que esse

Viagem tocando alfaia... Na época isso era

nome?” Ele queria que eu me chamasse Velho

96 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

Mangaba. Eu disse: “Não, o nome do meu velho é Véio Mangaba”. Eu disse para ele que o

raríssimas exceções, os nomes dos velhos de pastoril são de três sílabas. Fa-ce-ta, Man-ga-

nome era a minha marca. É a marca Véio Mangaba. Sei que é um velho, mas o nome do

ba, “Bar-ro-so”, Pin-do-ba. Tre-lo-so, Xa-ve-co. É alguma coisa cultural. Talvez uma tradição.

velho é Véio Mangaba. Você pode perceber se observar atenta-

DA: E como nasceu o Véio Mangaba? W: Foi interessante. No Balé Popular do Re-

mente que a maquiagem do meu palhaço é muito próxima da dos outros palhaços. Os ve-

cife, criamos um grupo e um espetáculo chamado “Olinda”. André disse: “Walmir, olhe, vai ter

lhos do pastoril são mais diferentes. Há uma diferença entre essa forma européia e essa po-

um momento no qual eu queria que você entrasse vestido de velho de pastoril, homenageando...”

pular, de reisado, guerreiro, pastoril. Aqui você vai ver uma semelhança muito grande na for-

— esse espetáculo homenageava Olinda, mas a Olinda holandesa. Os holandeses não chegaram

ma de maquiagem. Geralmente, a cara é quase toda completa, ou grandes bolas. O Faceta

a Olinda. Chegaram em Pau Amarelo, que hoje em dia é paulista. A gente diz Olinda de forma

usava muito, o Barroso tinha uma cara muito interessante: parecia um totem afro, porque

genérica. De Olinda até Itamaracá é a nossa Olinda, digamos. Os velhos de pastoril, até hoje,

usava uma coisa meio melada mesmo. Não se maquiava não, melava a cara. Parecia que es-

se concentram muito naquela área antes de Itamaracá, Igaraçú e Itapissuma. Aquela área

crevia umas coisas chinesas. Tinha a boca borrada. Feito criança quando pega o batom da

sempre foi um lugar de muitos velhos de pastoril. O velho Faceta também era de Itapissuma.

mãe. Uma coisa meio borrada. Me inspirei muito: “Não! Espere aí... Vou sair desse gran-

“Walmir, a gente vai fazer uma personagem com a qual você se vista de velho de pastoril, home-

de grupo, que é do palhaço europeu propriamente dito, que de certa forma se abrasileirou,

nageando os velhos do passado: Cebola, Faceta, Barroso...” “Está bom. Vou fazer um híbrido.

e vou para esse palhaço mais brasileiro, que é do reisado, do guerreiro”. Por isso minha

Faceta, Barroso e Cebola, este último não cheguei a ver, mas pesquisei as cantigas, e vou fazer

maquiagem hoje lembra muito essa característica dos velhos de pastoril, lembra o velho

um misto desses três”. Entrei nesse trecho do espetáculo sem nome. Passou o espetáculo e eu gos-

Faceta. Uma coisa que observei é que, com

tei muito.

Doutores da Alegria

97

BOCA LARGA

Quando fui chamado por Lula Queiroga para fazer um guia eleitoral — na época era

em extinção. A fruta é deliciosa. A característica psicológica do Véio Mangaba é exatamen-

de Jarbas para a Prefeitura —, disse: “Walmir, qual seria a personagem âncora? Queria que

te a daquela fruta. É gostosa. É gostoso, docinho, mas é meio “travento”, “travoso”

no guia eleitoral aparecessem os caboclinhos, as pastoras da ciranda. Toda modalidade po-

como caju. O caju é gostoso, mas é meio “travoso”. O Véio Mangaba não é tão bestinha

pular da cultura nordestina e pernambucana, por excelência”. “Seria o quê? Um velho pas-

como se imagina. “Eu sou gostoso pessoal? Mas também se pisar no meu calo, se me arretar,

toril”, porque o velho de pastoril é um apresentador de televisão. Não necessariamente

sacudo pedra”. Tem essa história. Como se diz: “Sou eu, o Véio Mangaba, brincador dessa ci-

precisa... pode estar no pastoril, mas também pode fazer qualquer coisa. Então o velho vai

dade. Sou eu, Véio Mangaba, respeitador da lei dos três poderes, civil, militar, eclesiástico,

ser o âncora do programa. Ele pode aparecer incluído no pastoril, pode aparecer apresen-

mas quando me arreto, sacudo pedra”. Ele é cumpridor das leis, tudo certinho. Mas não

tando os caboclinhos, o pessoal do côco, os cangaceiros, o que for. Ciranda, dançando,

venha bulir com ele não. O palhaço é o seu alterego mesmo. É tudo aquilo que o Walmir

pintando miséria. “E qual o nome dele?”. “Eu tenho esse personagem... não tem nome”. Sur-

nunca conseguia ser. Ter a coragem que Walmir não tem. Joga no cano de escape. O

giu assim: eu e Lula, brincando, busquei... Lula Queiroga é o padrinho do Véio Mangaba. So-

nome foi colocado por isso... É um cabra legal, gostoso, bonito. As meninas o adoram, sabo-

mos padrinhos do Véio Mangaba. Do nome... disse assim: “Mangaba... arretado, Mangaba”.

roso, mas é “travoso”. Ranzinza também. Não venha com conversa mole.

Aí a gente foi elucubrar... DA: Mangação...

DA: Walmir, como o Véio Mangaba também tem muita picardia, muito duplo sentido,

W: Não, engraçado... Aparentemente não tem nada a ver com a coisa de mangação não,

porque isso também é uma característica do gênero popular, de sempre brincar com essa

de mangar. Era por conta da própria fruta mesmo. Ih, rapaz? Fruta hummm... não! Mas

dualidade, como é que você mexia isso com o outro palhaço e com o velho?

fruta no sentido... a mangaba é uma fruta bem característica do mangue do Nordeste, que está

W: Eu não cheguei a ir com o Furinho para os circos, mas ele tinha característica de circo.

98 Doutores da Alegria

- História de Vida: Walmir Chagas -

Levei o circo para o aniversário. Levei o circo, ou seja, a filosofia circense de apresentação em

O adulto, para rir de uma safadeza, precisa de uma safadeza pornô, aberta. A criança não. A

picadeiro. Existe uma diferença entre — na época mesmo eu já falava — o pedagogo pin-

criança está sacando tudo, sem precisar... Se passar uma mulher e o palhaço olhar para a

tado, que tem aqueles jogos, e o palhaço. Tudo é jogo, mas é para termos uma dimensão mais

bunda dela, quando se virar para a criança, ela vai rir: “quá, quá, quá”... Ela entende tudo.

lúcida. Foi até uma coisa revolucionária, porque existia o animador de aniversário, o

Já o velho pastoril precisa pegar na bunda, levantar a saia para o adulto rir. A criança saca

pedagogo pintado, e o palhaço propriamente dito, como se a pessoa do aniversário, a dona

a malícia. Há uma diferença entre maldade e malícia.

do aniversário fosse no circo e contratasse um palhaço para ir para a casa dela animar a família dela. Pronto, a diferença é só essa. Então o Furinho... tem essa característica de sair do circo e entrar no aniversário para levar o esquete, a conversa e, justamente por ser criança, a picardia, vamos dizer, mas muito acima dos jogos, ou da brincadeira, a brincadeira infantil. Não no sentido pejorativo, mas sem piadas picantes, porque isso fica a cargo mais do velho do pastoril. O Véio Mangaba saiu. Profanou o profano. “Walmir, o Véio Mangaba faz parte do profano?” “Olhe, existe pastoril religioso e profano. O pastoril do Véio Mangaba é o pastoril que profanou o pastoril profano”, ou seja, eu peguei o Véio Mangaba e dei outra dimensão. Se apresenta, hoje em dia, para criança com texto sem nenhuma safadeza explícita. Porque a safadeza da criança é a safadeza implícita. Ela é uma safadeza mais inteligente do que a safadeza do adulto.

O palhaço não se define por estar pintado ou usar sapato grande, ou camisa colorida. E sim pelo modo de vida. É uma cultura. Ser palhaço é ser de um país, uma religião. Você vai tirar a roupa, ficar nu, mas é palhaço. É como se a maquiagem não saísse. Um pigmento que, se a gente fecha os olhos, se vê daquele jeito. É como se fosse uma tatuagem. Quando tinha 20 e poucos anos pensava: “Rapaz, vou ficar tirando maquiagem? Vou fazer uma tatuagem logo. Ficar logo com aquela cara para o resto da vida” — feito aquela personagem do Batman [o Coringa]. Então o palhaço para mim é uma característica de vida, um modo de viver. Daí, como é que você vai encontrar o seu jeitão, é outra conversa, é outra discussão. Dessa questão do jeitão já se vai para a discussão das habilidades. O que o palhaço faz? Tem palhaço que não precisa fazer nada e outros que fazem cem coisas. Você pode ser um pa-

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

lhaço calado, que só olha para os cantos... No meu caso particular, tenho muita inveja da-

ser amador, ou seja, queria que fosse possível viver da minha arte sem precisar ganhar di-

quele palhaço acrobata. Nunca consegui fazer aquele negócio. É como judeu, alemão, brasi-

nheiro, ou seja, morar em um castelo com o rei pagando tudo e eu só tirando onda. Isso é o

leiro, inglês, não sei o quê, mas antes judeu do que outra coisa. Acrobata, mágico, isso, aqui-

ideal, ou seja, religião. Eu tenho o palhaço como monge que entra no circo, sua igreja. A pró-

lo, triste, alegre, bravo... Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha? Não sei se a necessi-

pria religião sobrevive de grana, quem dirá um palhaço. Se pudesse queria mudar isso. Que a

dade de fazer várias coisas me levou a ser palhaço, ou se, como palhaço, comecei a fazer

sobrevivência da arte não dependesse do dinheiro do cachê. Isso empobrece muito o ser

outras coisas. Tenho a impressão de que tanto uma coisa como a outra é por conta da neces-

humano. A coisa do vil metal, mas é como a gente vive. Se pudesse, mudaria isso. Eu acho

sidade da sobrevivência.

que chego lá. Enquanto o artista quer aparecer em qualquer divulgação, eu tenho uma ten-

No caso, sou músico, componho, já fiz arranjos para teatro. Já dancei muitos anos como bailarino no balé popular. Pesquisei dança. Escrevo. Até digo: quando alguém começa a ficar velho passa a ser escritor porque não agüenta mais fazer e começa a escrever para os outros fazerem. DA: Já que você está falando um pouco de sua história de vida, o que você mudaria, e o que você aprendeu como palhaço? W: Eu acho que não mudaria. Essa pergunta é muito difícil. Eu queria, na verdade, não precisar ganhar dinheiro como palhaço. Há um momento na vida em que a gente não quer ser amador. Quer ser profissional, ganhar dinheiro, ser respeitado. Estou no caminho inverso. Queria deixar de ser profissional para

100 Doutores da Alegria

dência a me isolar. Isso não existe. Como é que pode? Quer aparecer, mas se isolar? Porque eu acho que tudo demais é demasia, como dizia minha avó. Existe um limite na questão do sucesso... O sucesso, para mim, é coisa muito perigosa, porque de repente todo mundo pode observar que o artista, não só o palhaço, chega ao ponto de deixar de ser ele mesmo, para ser o mercado. Isso é perigoso demais. Tenho o maior cuidado com isso. Sei que preciso do sucesso para poder, inclusive, aumentar o cachê e, com isso, comer e fazer as minhas coisas melhor, mas em compensação, é meio vender a alma ao satanás. Estar entre a cruz e a espada. Deus e o demônio. “Para onde vou? Vou para Deus, mas vou morrer de fome, porque não há dinheiro. Se for para satanás, há muito de dinheiro. O que eu vou fazer? Vou

- História de Vida: Walmir Chagas -

ficar no meio dos dois, entre o cordão encarnado e o fio azul”. É a Diana. O velho é a pró-

uma semana você volta”. Ele foi. Voltou com a cabeça estourando e disse: “Doutor, eu não

pria Diana. Vai ficar patinando nessa história. Eu acho que eu mudaria isso, e de certa forma

agüento”. “Olha, vamos fazer o seguinte: você vai para o meu professor, porque é quem vai

eu tento mudar mesmo, com as minhas atitudes eu vou mudando. Sem querer ser purista,

lhe curar”. Deu o endereço e o cara foi. Chegou lá: “Ah, fulano mandou para mim? Ele é

mas vou mudando. É isso que eu queria.

um grande médico! Mandar para mim? Tudo bem, você sente o quê?” “Dor de cabeça”.

DA: O que você acha de ter participado desta entrevistas, de falar disso, de relembrar? W: Eu não entendo muito de uma forma científica, mas tenho a impressão de que é como se fosse a um psicólogo. Quando está com um problema, senta em um divã e vai conversar: “Ah, porque eu queria isso, porque não sei o quê...” e sai de lá aliviado e com o tempo fica curado daquela história. Então para um palhaço, um artista, é importante que conte a vida dele, até para se curar mesmo. Acho que é importante. Há uma piada, uma história muito bonita que sempre conto: existia um cara que estava com uma dor de cabeça enorme... — eu não sei se vocês conhecem essa história. O cabra tinha uma dor de cabeça terrível e foi para o médico. Chegando lá, ele disse: “Doutor, eu estou com uma dor de cabeça aqui...” “Não, tudo bem...”. O médico nem conversa direito, porque já quer atender outro, essa coisa do capitalismo. Não como um médico realmente deveria agir, mas como esses médicos idiotas agem. “Toma esse comprimido aqui e daqui a

“Tome esse comprimido e volta em uma semana”. O cara voltou quase morrendo. “Estou morrendo de dor de cabeça”. “Olhe, rapaz, você veio do meu aluno, está aqui comigo. Vá para o meu professor, que inclusive está aposentado”. Ele foi até o professor dele. Chegou lá, um velhinho: “Fulano mandou para Ciclano, que mandou para mim? Não é possível! Você vai tomar este chazinho. Não estou nem clinicando mais”. Aí voltou com dor. “Olhe, eu não tenho mais para onde mandar você, porque o meu professor já morreu. Já estou velho. Sabe aquela montanha ali?”. “Estou vendo”. “Tem um circo. Você conhece aquele circo?”. “Conheço”. “Vá lá que lá tem um palhaço maravilhoso e você está precisando rir, extravasar. E você vai ser curado”. Aí começou a chorar, a chorar... “Por que você está chorando?”. “Já sei que eu não tenho cura, doutor. Aquele palhaço sou eu...”. Uau! DA: Muito obrigado.

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

102 Doutores da Alegria

Pirajá

História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO- 01:52:03

Pirajá Bastos: Sou Pirajá Bastos de Aze-

Doutores da Alegria: Na época da sua bi-

vedo. Nasci em 1936, em Barbacena, Minas Gerais, e estou com 70 anos. Em primeiro de de-

savô como é que era estruturado o circo? P: Na época de meu avô, dava-se o nome

zembro, faço 71 anos. Sou a quarta geração circense.

de pau-a-pique. O que é circo pau-a-pique? Esse circo só se fazia nos povoados e terreiros

Quando meu pai se casou com minha mãe, ao invés de tirá-la de sua família, entrou para a família dela. Passou a ser um filho mais velho de meu avô, que manteve a família sempre no Nordeste. Meu bisavô materno veio de Portugal para abrir estradas, era engenheiro. Fazia ginástica olímpica, gostava de barras, se apaixonou pela minha bisavó que já era de circo e passou a viver no circo. Veio para o seio da família e seguiu o circo. Nasceu meu avô, que por sua vez casou-se com uma filha de um padeiro da Paraíba, que também ingressou no circo. Foi aí que tudo começou. Minha bisavó era da primeira geração de circo. Meu avô, da segunda. Veio minha mãe, a terceira geração e eu sou da quarta.

de fazendas de coronéis. Meu avô chegava com a tropa de burros. O circo era transportado por animais e carroções. Só se levava a roupa, o figurino, os lampiões para clarear o espetáculo e o pano de roda. A madeira era tirada do mato, por ordem do dono da fazenda. Então faziam aquele cerco, colocavam aquele pano ao redor, os postes com lampiões pendurados e os fazendeiros vizinhos traziam escravos com bancos que eram colocados em volta. Era ao ar livre. No banco, ficava um cartão: “Coronel fulano de tal”. Pertencia àquele. Quando terminava a temporada de espetáculo, meu avô deixava os paus roliços, enrolava novamente o pano, carregava tudo, pegava os cavalos e burros e ia para outra fazenda.

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Pirajá Bastos de Azevedo a Morgana Masetti, Dani Barros, Diogo Cardoso e Marcos Camilo no dia 02 de Maio de 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. Duração da gravação: 01:52:03. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

103

BOCA LARGA

DA: E quem freqüentava?

ca, já existia o Café dos Artistas, o Carlos Go-

P: Ia o pessoal da fazenda e dos arredores, os fazendeiros próximos. Quando se entrava

mes, que era o ponto dos artistas nas segundas-feiras. Soube por alto e foi ao Café. Lá

em um povoado, armava-se um circo melhorzinho, mas sempre naquela base: sem

manteve contato com os Olimechas, que eram proprietários de circo, e com o palhaço Dudu,

lona sobre o circo. Só o toldo embaixo e, do lado, os bancos. A função dos filhos menores

que tinha um circo fixo na Praça das Bandeiras. Naquela época o teatro já começava a ser

era não deixar que os peões ficassem nos bancos. Porque colocavam os bancos e se senta-

apresentado nos circos. A primeira parte do espetáculo era picadeiro e a segunda teatro.

vam. Minha mãe vinha dizer: “Oh: não pode ficar. Tem que ir lá para a porta do circo para

Meu avô foi trabalhar com o Circo Dudu na Praça das Bandeiras. Todos os empresários fi-

o seu patrão comprar o ingresso”. Meu avô, durante toda a vida, só pensou no Rio de Ja-

caram curiosos para ver o que faziam, porque no Nordeste nossa família era uma das melho-

neiro e em São Paulo. Achava que o meio artístico era aqui. Mas apenas circundava o Nor-

res acrobatas.

deste, pelas Alagoas, Ceará, Sergipe, aonde Iam nascendo os seus filhos. Cada um de meus tios é de um estado: alagoano, sergipano, paraibano, cearense. Era uma família nume-

DA: O que era apresentado nas fazendas do Nordeste? P: Apresentavam o palhaço de violão con-

rosa: doze filhos. Minha mãe é pernambucana.

tador de pilhérias, piadas e burletas. Faziam várias coisas: embolada, repentismo e cada filho ti-

Num determinado momento, meu avô to-

nha um número. Havia trapézio também. Embora ao ar livre, armavam uma espécie de

mou um navio para Pirapora, pelo Rio São Francisco. Ao chegar, disse: “Aqui vai ser mi-

forquilha alta de madeira, como uma trave de gol, aonde penduravam o trapézio. Havia corda

nha decisão. Daqui, vou direto ao Rio de Janeiro”. Isso foi na época de 1932. Nasci em

indiana, um entrava para fazer fogo, entrava um para fazer contorções... Nesse período de espe-

1936. O que ele fez? Colocou animais em praça pública e fez um leilão. Venderam todos os

táculo, meu avô, de vez em quando, entrava de palhaço para fazer uma parte cômica.

trinta e tantos cavalos, burros e carroças. Veio para o Rio de Janeiro sem conhecer nada, sem

DA: E como o seu avô aprendeu a ser palhaço?

empresário. Foi morar com a família em uma pensão na Rua Francisco Xavier. Naquela épo-

P: Palhaço entra por acaso. Pelo menos na minha família foi assim. Meu pai nunca foi pa-

104 Doutores da Alegria

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

lhaço. Entrou para substituir um que faltou.

que deixou uma parte preparada para substi-

Entrou e ficou. Num dia de espetáculo em Montes Claros, no norte de Minas, meu pai perdeu

tuir no caso de um fracasso total. Mas quebrou a cara, porque foi um fino espetáculo! Foram o

a voz; meu irmão, que fazia a parte cômica como clown, pintou a cara, substituiu meu pai.

circo Olimecha, o Dudu, os Temperanis... Naquela época, já existia o homem-bala! Duarte

Entrei no lugar do meu irmão como clown, e o meu irmão caçula já passou a ser o mestre de

Temperani saía do canhão, fazia um salto mortal e segurava no trapézio. Fizeram aquele

pista, que era a minha parte. Um vai passando o papel para o outro. Com o decorrer dos espe-

espetáculo maravilhoso e terminaram com uma série de saltos. Todos, naquela época, ti-

táculos, a pessoa já grava aquilo. São como as comédias, os pastelões. Tenho todas as comédi-

nham que fazer alguma coisa no chão, nem que fosse uma cambalhota. Foi quando minha

as aqui na cabeça. Se você me perguntar o autor, desde a época de meu bisavô, não saberei,

mãe conheceu meu pai.

ninguém sabe. Todas as comédias, os pastelões são levados, quase em todos os circos com o mesmo palavreado, com o mesmo enredo, sem nunca haver uma peça escrita!

DA: Como se conheceram? P: Atrás da cortina, olhou para ela e falou: “Vocês são de que família?”. “Sou da Família Azevedo”. “Vocês estão trabalhando com quem?”. “Com o Circo Dudu”. “Sou filho do

DA: Tudo é passado oralmente... P: Justamente. São tantos personagens!

Olimecha”. Mamãe ficou doida de amores pelo meu papai, virou para as minhas tias e disse:

Quando meu avô foi para o Circo Dudu, o Circo Sarrazane armou na Esplanada do Castelo,

“Aquele ali é dos Olimechas, filho do dono do circo”. Só que o meu avô não morava no Circo

era 1934 ou 1935. Fizeram uma bela temporada! Vieram com três navios de material. Foi o

Dudu. Morava na Rua Francisco Xavier, e de noite pegava o táxi, ia para o circo, trabalha-

maior circo que pisou o Rio de Janeiro.

va, terminava o espetáculo e voltava para casa. Ele não participava dos fundos do circo.

Era alemão. Nosso sindicato quis fazer uma homenagem ao senhor Sarrazane. Em uma segunda-feira, fizeram uma seleção de todos os circos que estavam na Guanabara. Cada um mandou o melhor número. Ele ficou com tanto medo do espetáculo dos brasileiros

Quando minha família fez o espetáculo no Sarrazane, os Olimechas viram o potencial dos Azevedos. Imediatamente, no próprio circo, o Sr. Luís Olimecha, meu futuro avô, contratou a família da minha mãe. Na semana seguinte,

Doutores da Alegria

105

BOCA LARGA

mudaram-se para o Circo Olimecha. Foram

P: Comecei com meu pai, que não era fi-

morar nos fundos do circo. Arranjaram uma barraca enorme de lona.

lho legítimo. A família Olimecha é de origem japonesa. Entrou aos 3 anos para a compa-

DA: Seus avós eram ambos de circo e se juntaram?

nhia e saiu aos 24, já casado e com minha mãe me esperando.

P: Justamente. Veio o namoro e o casamento. Meu avô, com o casamento de minha mãe,

DA: Por que foi adotado? P: Minha avó legítima morava em

se retirou do circo e pegou um contrato em Belém do Pará, para trabalhar no Teatro Mu-

Bonsucesso. Era de uma família muito pobre cujo esposo foi um soldado da polícia militar,

nicipal. Ele e um mágico de São Paulo, Mário Gama, fizeram uma temporada de quatro

morto pela tuberculose. Vivia de lavar roupas. Quando o circo chegava em Bonsucesso, na

meses. Meus avós ficaram na rua Francisco Xavier, na casa que haviam alugado. Mamãe

praça principal — porque naquela época saía um circo em uma semana e na próxima outro

ficou sozinha. Quando vovô voltou de Belém, reuniu novamente a família, formando o Cir-

ocupava o terreno, já que não havia outro meio de diversão — ela ia ao circo e pedia para la-

co Azevedo.

var as roupas dos artistas contratados. Como o “Sr. Luís Olimecha” e a “Da. Arlinda” não

Nesse momento, quando meu avô materno, Luiz Francisco Azevedo, saiu com a famí-

tinham filhos e ele adorou meu pai, perguntou para minha avó: “A senhora não quer me dar

lia, meu pai entrou em choque com seu próprio pai. Então foi para a companhia do meu

esse menino?” Ela respondeu: “Eu passo tanto aperto, mas é meu filho... Eu tenho um casal.

avô. Largou o pai e foi morar com o sogro. Meus tios foram casando e saindo, porque tinham

A Beatriz e o Augustinho”. “Pô, mas eu não vou sair do Rio. Posso dar educação para ele.

espírito aventureiro. Queriam viajar, pegar empresas maiores. Um foi para o Garcia, o

Posso fazer dele um artista e ele vai ser meu filho. Me dá de papel passado. Eu quero de

outro para os Irmãos Temperanis, em São Paulo, outros para os Irmãos Stevanovich, aquele

papel passado”. Ela foi ao cartório e passou. Papai passou a ser Augusto Olimecha, com três

que pegou fogo, o norte-americano.

anos de idade.

DA: Quando você começou a trabalhar no circo?

106 Doutores da Alegria

Como eram várias as companhias dos Olimechas no Rio de Janeiro, [a renda] era en-

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

globada na base da família. Ninguém possuía

Vereadores pela frente e saía pelos fundos.

ordenado. Havia uma matinê aos domingos cuja renda era dividida pela companhia. Como

Fazia espetáculo para Alencar Guimarães, o senador. Papai corria para um circo e ninguém

o Sr. Luís Olimecha fez o casamento e meu pai não arcou com despesa nenhuma, saiu do cai-

o contratava. Ia para outro. O Dudu estava armado na Praça das Bandeiras e era inimigo

xa do circo, ele achou que não devia dar dinheiro a meu pai! Chegava assim: “Augus-

capital do velho Olimecha. Quando bateu lá, o Sr. Dudu: “Vem para cá... você vai ser meu

tinho, você trabalhou esta semana...”, — é até uma coisa impossível, um artista como meu

artista. Comprei a briga!” Minha avó materna escrevia para mamãe, perguntando, e a ma-

pai... — “Você vai trabalhar esta semana para pagar os travesseiros que comprei. A outra se-

mãe com aquela vergonha de dizer que estava numa situação ruim, porque estava com o

mana o colchão”.

marido ali do lado e porque meus tios maternos não queriam o casamento. Iam perder uma

Minha mãe engravidou e era uma acrobata. Fazia voltas com a cadeira, os truques todos de acrobacia, salto mortal de canastilha e era muito magrinha. Papai começou a se preocupar e foi falar com eles: “A Rosa precisa de uma alimentação melhor. Quero comprar fruta e tudo”. Ele disse: “Não. Enquanto não pagar o que gastei contigo, você não vai ter dinheiro”. O papai: “Então vou embora. Não aceito isso. É escravidão. Sou seu filho ou não?”. Pegou a roupa, arrumou a mala e foi para o Café dos Artistas pedir trabalho, com 23 anos. Minha mãe com 22. A bem dizer, eram dois meninos naquela época. Acontece que todo mundo respeitava Luís Olimecha. Era o

grande artista na família. E começaram a fazer a cabeça da minha mãe: “Você vai cair mal, você vai ser maltratada...”. Com o casamento, meus tios saíram, mas mamãe não queria dar o braço a torcer. Minha avó, por intuição, pensou: “Eu vou ver a Rosa no Rio de Janeiro”. Quando chegou no Circo Dudu, estava naquela barraquinha modesta que o Dudu arranjara. A vovó se revoltou com aquilo. Falou: “Augustinho, vamos para o nosso circo. Aquele lá é o seu circo”. O que ele fez? Antes de ir, foi a Bonsucesso, mexeu em tudo, foi no cartório, começou a fazer pesquisa para descobrir a verdadeira raiz dele. Por incrível que pareça, descobriu a irmã.

melhor circo do Rio de Janeiro. Ele chamou os empresários e disse: “Aquele que der guarida

Quando papai saiu do circo, o velho

a meu filho, estou de relações cortadas”. Possuía muita influência. Entrava na Câmara dos

Olimecha rasgou o papel de casamento e minha certidão. Eu já tinha um ano. Estava re-

Doutores da Alegria

107

BOCA LARGA

gistrado como Pirajá Olimecha. Sou o mais velho. Quando rasgou o papel, disse: “De hoje

P: A criança de circo aos quatro anos já vai para o picadeiro jogar serragem um no

em diante você não é mais meu filho”. Bobagem rasgar aquele papel, porque tudo ficava

outro. O nosso brinquedo é o picadeiro. E os pais incentivam. Por exemplo, tinha um circo

registrado no livro do cartório. Papai foi lá, contou a situação ao cartório e eles começa-

em miniatura que meu pai fez para mim. Eu armava no terreno, de um metro e meio com

ram a mexer, remexer... Conclusão: resgataram a papelada toda do papai como Augusto

lona e tudo. Igualzinho. Carregava minhas carretas como se carregavam as carretas do

Bastos, filho de Luiz Bastos e Juventina Bastos. Minha verdadeira avó e avô. Fomos para o cir-

circo grande. Eu prestava atenção e aquilo já era um ensinamento, porque o circo de interi-

co Irmãos Azevedo.

or na base da família é um SENAI. Tenho um irmão que nunca estudou mecânica. Tirava o

Como todos foram saindo, o circo foi ficando pequeno. Meu avô adoecia. Meu pai

motor de um caminhão, fazia uma retífica, colocava no lugar e o carro andava, porque a

resolveu fazer uma sociedade. Um empresário que conhecia o potencial da companhia a le-

necessidade faz o sapo pular. Sei fazer uma lona de circo. Sei levantar qualquer estrutura circense. Naquela época a gente fazia desde o

vou para o Nordeste. Só que já tinham feito todo o norte de Minas como Circo Azevedo, Irmãos Azevedo. Então o empresário sugeriu: “Vamos mudar o nome, porque é o mesmo espetáculo e nós vamos colocar mais uns dois ou três casais para melhorar o aspecto, mas queria mudar o nome do circo”. Batizaram de Circo Varieté. Naquela época não existia o teatro. Compunha-se unicamente da primeira e segunda partes (pastelão). Aquelas chanchadas que o Oscarito levava e o Sr. Renato Aragão e o Sr. Didi levam até hoje. DA: Quais as primeiras lembranças que você tem do circo?

108 Doutores da Alegria

figurino à maquiagem. Meu pai fazia a tinta para pintar o rosto. Comprava óxido de zinco, um pires, azeite ou vaselina líquida, jogava o pó, pegava uma pazinha, e ia mexendo até se transformar naquela tinta. DA: Quando aconteceu sua estréia? P: Meu pai não deixou de fazer o número de seu pai, o Olimecha. O forte deles era trabalhar as habilidades com os pés. Deitava, punha os pés para cima e jogava a barrica, a tranca e introduziu o volante: uma pessoa nos pés. O meu pai começou a me ensaiar com quatro anos. Me jogava de todo jeito. Eu era como uma bolinha nos pés dele. O dia da minha estréia foi em Juiz de Fora, Minas Gerais,

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

com o circo superlotado. A primeira apresentação foi uma salva de palmas enorme! Come-

irmãos argentinos com aquele número, fiquei empolgado e dei em cima dele: “Papai, vamos

çaram a jogar moedas no picadeiro. O pessoal tirava da carteira e jogava. Ele olhou para mim

comprar uma cama elástica?”. Começamos a ensaiar. Meu irmão errou e ele deu uma bofe-

e disse: “Está vendo como você agradou? Vá pegar o dinheiro. É para você!”, “Pode, pai?”

tada. Meu irmão o encarou na mesma hora e disse: “O senhor está lidando com um filho,

Peguei o chapéu e saí catando as moedas. E ele: “Viu? Viu como é bom ser artista?”. Já me

seu sangue”. Acho que aquilo o desarmou. Foi para a barraca e falou para minha mãe: “Rosa,

comprando. Depois de muito tempo fui saber que deu o dinheiro para o pessoal jogar lá, para

de amanhã em diante não ensaio mais meus filhos” — e se arrependeu daquilo. Mamãe me

chamar a atenção. Dali não parei mais. Fui o primeiro filho e ele começou a enfraquecer das

chamou, como o mais velho: “Pirajá, de hoje em diante você toma conta dos seus irmãos”.

pernas. Comecei a fazer seu papel, já colocando meus irmãos no lugar de volante.

Comecei a dar outro tipo de ensinamento. É o que dou aos meus alunos na Escola Nacional

Somos em cinco irmãos. Meu pai era um

de Circo. Sou um professor brincalhão. Tinha medo quando ele dizia: “Estou no picadeiro” — a gente já começava a tremer dentro da bar-

homem que não queria que nós, irmãos, seus filhos, fôssemos uns melhores do que os outros, mas também não queria que fôssemos piores. Ele exigia que a gente fosse artista. Tínhamos que entrar no picadeiro para fazer alguma coisa, para chamar a atenção do público e para os empresários nos respeitarem: “Eles são bons”. Ele exigia muito. E nos maltratava muito, batia, perdia a cabeça. Embora mais tarde se arrependesse, repetia o trato que recebeu do pai. Às vezes, notava que queria fazer carinho, mas tinha vergonha de chegar e dar um beijo. Um dia nós compramos a cama elástica, foi o último número que aprendemos em família. Fazíamos acrobacias e quando vimos três

raca, entrava em pânico e aí o ensinamento não adiantava nada. Eu então passei a falar para meu irmão: “Àquele que fizer o salto mortal, com o tapete esticado, àquele que fizer a rodada final do salto mortal e cair em pé, dou um blusão”. Aí começava aquela rivalidade. Tinha 16 anos. DA: Como era a rotina de vocês? P: A rotina do circo é como a de uma empresa. Quando fechou o circo do meu avô, comprei um bar em Minas Gerais, no norte, entre Sete Lagoas e Curvelo. Em Araçaí, em 1954. Meus avós já eram falecidos. Na cidade, só tinha aquelas vendas grandes, que vendiam da

Doutores da Alegria

109

BOCA LARGA

rapadura ao bico, mas não tinha sinuca, nem

educado”. “Mais mal educado é o senhor”. Ele

estufa para vender salgadinho. Como conhecíamos o Rio de Janeiro, meu pai fez uma coi-

bateu a janela na minha cara. Papai, sentado no caminhão, falou: “Poxa, você procurou bri-

sa mais moderna, uma espécie de lanchonete, mas a cidade era antiquada.

ga logo com um padre? Nós não vamos fazer nem para o café!”. “Ah, papai, poxa vida, a

Como era o mais velho, ia na frente como relações públicas do circo. Falava com o Prefeito, o Delegado. Se o terreno pertencesse à Prefeitura, me cediam. Se fosse particular, tinha que alugar ou trocar por uma permanente (ingressos gratuitos). Cheguei em Araçaí, fui à Prefeitura, mas tratava-se apenas de um posto fiscal, porque pertencia a Sete Lagoas. O fiscal falou: “Meu filho, a área aqui é da Prefeitura, mas [está] atrás da igreja e os padres são franciscanos”, aqueles que usam sandália e batina marrom. Arranjei o terreno com a Prefeitura e falei com o delegado... Vínhamos de uma batalha enorme. Meu avô ficou interna-

gente vem carregando o circo, desarmando, vovô morrendo, situação financeira ruim, 20 e tantas pessoas nas costas da gente com o pagamento atrasado...”. Abriram a janela de novo: “Rapazinho, faz favor...””Você está nervoso?”. Eu acho que ele se arrependeu. Eu falei: “Frei, nós aqui somos uma família, quase 30 pessoas. Perdi meu avô há 15 dias. Vendemos um caminhão para pagar o hospital e estamos tocando o circo aos trancos e barrancos”. “Vai, vai, arma o seu circo”. Mês de maio, mês de Maria, havia as novenas. Ele ligou o som: “Alô, alô meus fiéis! Está chegando um circo na cidade. Sexta-feira estréia. Conto com a presença de todos nesta casa de espetáculo.”

do em um hospital... Ficamos sem dinheiro. Houve o enterro e meu pai vendeu um dos ca-

Foi uma temporada de render, mas tive de

minhões. Chegamos à cidade. Quando estávamos descarregando o material no terreno,

dar um espetáculo em benefício da igreja. Com aquela temporada toda, os fazendeiros pega-

abriu-se a janela da sacristia da igreja e o padre, um italiano, Frei Domingos, gritou: “O que

ram muita amizade a mim e à rapaziada. Jogávamos futebol todos juntos. Diziam: “Mas

está descarregando aí no terreno?”. “Reverendo, é um circo de família, um circo pobre. Nós

gente, por que vocês não param aqui? Estão atravessando uma crise tão grande!”. “O que

estamos vindo de Montes Claros”. “Por que não arma essa porcaria aqui dentro da sacris-

nós vamos fazer aqui, gente?”

tia?”. “Porque o Prefeito não mandou. Porque se ele mandar eu armo”. “Você é muito mal

110 Doutores da Alegria

DA: Quanto tempo durava uma temporada? P: Quinze dias. Estourando vinte. Fazía-

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

mos três domingos, 21 dias. Um fazendeiro

mais. Fomos até para um salão melhor. Por isso

virou para papai: “Quer vender o circo?”. Papai: “Mas você vai comprar o circo para quê?”.

papai passou a mão no dinheiro e foi comprar aparelhos no Rio de Janeiro. Olha o que é o

“Vou pegar esse material todo, essas folhas de zinco, madeira e fazer curral, cobertura para

destino! Ele tinha um amigo da época de solteiro, um professor de matemática e língua que

o gado”. Vendemos o circo. Só ficamos com a lona, o som, os mastros... para quê eles iam

morava na Ilha do Governador. Casualmente se encontraram no Café dos Artistas. “Ô,

querer o mastro, os aparelhos, o guarda-roupa e os figurinos? Ficamos quinze dias pensan-

Augustinho, o que você está fazendo aqui?”. “Estou em Minas Gerais, agora sou comerci-

do o que fazer. Papai olhou, viu uma venda, outra venda, não tinha um bar decente para

ante, tenho meu bar”. “Mas você largou o circo?”. “Agora o Pirajá está tomando conta da

jogar sinuca. Fomos a Belo Horizonte, compramos uma sinuca, mesas, balcão. Fizemos um

sinuca e joga futebol. Já montei um grêmio e estou levando pecinhas ao teatro, com o pes-

bar ultra moderno para a época. Eu levava músicas da época. Aquilo passou a ser um clu-

soal da cidade. Estamos erradicados”. “Augustinho, você já está em algum hotel?”.

be da rapaziada do time de futebol. Tornou-se a nossa sede. Mamãe começou a fazer salgadi-

“Não”. “Então vai para a minha casa. Que dia você embarca?”. “Em dois ou três dias”. Só que

nho na hora, arroz doce, cocada. Começamos a ganhar dinheiro.

os Olimechas estavam na Ilha do Governador, em frente ao apartamento dele, e o velho

DA: Por que decidiram vender o circo? P: Porque já havíamos cansado da luta. Mas sempre pensávamos no circo. Lá passava a estrada de ferro Central do Brasil. De vez em quando, o Sr. Garcia passava com a composição, os elefantes, as zebras, o circo e os artistas nossos conhecidos. Nosso bar era ponto de almoço. “Fechem o bar, vamos embora!”. Dava aquela coceira doida. Naquela transição ferroviária, quando um circo ia embora para um sentido, logo vinha outro no sentido oposto. Mas nosso movimento melhorava cada vez

Olimecha tinha sofrido um derrame e estava todo entrevado. Só falava em papai. A consciência pesava. A velha já havia morrido. Quando chegou ao apartamento, viu o circo. “Augustinho, trouxe você de propósito. Vá ver seu pai. Ele chora demais da conta.” Quando o velho viu, ficou doido. “Augustinho, pelo amor de Deus, não me abandone! Venha pra cá”. “Mas papai, estou erradicado.” “Não. Vai tomar conta do circo. Reerguê-lo. Está muito decadente, todo quebrado. Estou inutilizado. Seus tios estão velhos, caindo pelas tabelas.” Papai voltou para Araçaí com a cabeça vira-

Doutores da Alegria

111

BOCA LARGA

da. Mamãe disse: “Augustinho, você vai sozi-

lho”. “Não sou mais filho, estou abaixo”. “Mas

nho e deixa o Pirajá aqui”. “Não senhora, aonde vai a corda, vai a caçamba. Para eu ir, vai a

você foi criado com ele. Tem de resolver, gritar com ele”. O velho, pela segunda vez, disse: “O

família toda”. Vendemos o bar e lá fomos nós. Sem figurino, nem número, porque ficamos três

circo é meu. Se quiser, vá embora”.

anos parados. Eu ainda fazia alguma coisa, porque ia para o campo de futebol, saltava, fazia Flip-flap, Dois-Tempos. Eu já tinha quase 20 anos.

Com o dinheiro do bar papai comprou uma casa no Irajá e, até então, não éramos conhecidos no Rio de Janeiro. Éramos conhecidos, mas não conheciam nossos números. Com o espaço de três bairros que demos aos

DA: E estudava, naquela época em que o circo viajava?

Olimechas, voltamos a fazer tudo de novo. Papai fez aparelhos e tudo o mais, só que não

P: Não tenho nem o primeiro grau [Ensino Fundamental]. Meu primeiro professor foi

tínhamos circo. Morávamos no Irajá. Trabalhávamos feito feirantes: a cada semana, tra-

o primeiro ator que meu pai contratou para montar teatro no circo. Ele pegava o caderno,

balhávamos no circo de um bairro diferente. Fizemos as televisões: TV Tupi, TV Globo, TV

fazia a-e-i-o-u e as quatro continhas para mim.

Rio... Ficamos cansados, nosso rosto era conhecido dentro do grande Rio. Todos queriam nos

Meu pai fez uma transformação no circo. Entramos com força total, eu, ele e meus ir-

contratar. Eu é que peguei meus irmãos para estudar: “Não estudei, minha irmã não estu-

mãos. Começamos a pintar o circo, ajeitar tudo, tirar e consertar a lona. Aquilo começou a ir

dou, nossa vida foi apenas circo, e vocês não vão ficar burros”. Somos, em casa, uma taba

de vento em popa. O velho viúvo ainda tinha os irmãos como cordeirinhos. Era o imperador.

de índios. Sou Pirajá. Tem Anapuru, Uirapuru, Ubiratan e Canagüari. Só falta o cacique. Fo-

Reverenciavam-no. Fazia o que queria com o dinheiro e não dava a mínima satisfação aos

ram para o ginásio. Minha irmã ficou noiva de um rapaz, funcionário federal, casou e saiu do

irmãos. Saímos da Ilha e fomos para Bonsucesso. Armamos o circo em Olaria. Com

circo.

75 anos, arranjou uma mulher de 22, com idade para ser neta dele. O dinheiro ia direto para

Ficamos tão conhecidos que nosso trabalho começou a escassear, porque trabalháva-

os bolsos dela. Os irmãos chegaram para o papai: “Você é o mais velho aqui, você é fi-

mos em vários circos de bairro do Rio de Janeiro. Na televisão, fiz show com Ted Boy Marino

112 Doutores da Alegria

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

e Célia Biar. Fiz Os Dez Mandamentos num

o dinheiro no Rio e acertar os pagamentos na

show com o Flávio Cavalcanti. Fiz programas líderes de audiência. Quando nos contratavam

volta. “Valter, como é que eu faço com o circo?”. “Pirajá, pagando minha dívida, eu finan-

para aparecer no Chacrinha, falavam: “Eles já estiveram aqui a semana passada com o Flá-

cio. Pague-me como puder. Sei que quer trabalhar”. Eu possuía muitas jóias. Naquela épo-

vio Cavalcanti”. Precisava comprar um circo. Porque não podia mais viajar, teria de tirar

ca, parecíamos ciganos. Cordões de ouro, anéis de brilhante. Empenhei tudo.

meus irmãos do colégio. Os circos viajam de 15 em 15 dias. Comuniquei minha decisão a meu pai, que me chamou de doido: “Você já teve o do seu avô, teve o nosso circo. Paramos lá. Depois viemos para os Olimechas e você viu no que deu! E agora quer comprar um circo?”. “Vou comprar e ser meu próprio empresário. Prefiro me aventurar sozinho a me aventurar com esses empresários”.

Teve uma tia que foi muito boa para mim: Marina, irmã do Luís Olimecha. Casou-se com um funcionário federal. Trabalhava na prefeitura do Rio junto com ele. Como minha irmã, casou e saiu. “Tia Marina, preciso de uma ajuda da senhora. Preciso de um Conto de Réis. Comprei um circo”. “Ótimo, só assim vai mostrar ao seu avô que sabe tocar o circo”. Com o

Uma tia, em Porto Novo de Cunha, Mi-

dinheiro, voltei para Porto Novo de Cunha. Todo mundo saiu satisfeito com o pagamento

nas Gerais, casou com um funcionário da [linha ferroviária] Leopoldina, largou o circo, e

acertado. Dei um Conto de Réis ao Valter para ir a São Paulo e ainda sobrou uma economia.

me avisou por telefone da venda de outro por lá. Quando cheguei, o dono do circo ia para

Carreguei três vagões da Leopoldina e fui para o Rio de Janeiro. Descarreguei em Caxias e le-

São Paulo. Tinha comprado uma padaria e devia três semanas aos artistas. Estes, por sua

vei tudo para o quintal imenso de minha tia, no Irajá. Empilhei e falei: “Aqui vou pintar o

vez, queriam tomar o circo em pagamento e montar uma cooperativa. O dono tinha sido

material. Tenho uns trabalhos para fazer”. Era final de ano, outubro, novembro e dezembro,

nosso empregado no Nordeste. “Pirajá, estou vendendo o circo, mas tenho dívidas com eles.

época de muitos shows.

Gostaria muito de vender pra você porque conheço sua família, mas meu problema é dinhei-

Naquela época, tinha a chegada do Papai Noel no Maracanã, shows da Xuxa, eventos

ro”. “Reúna-os no picadeiro”. Anotei o quanto cada um deveria receber e combinei buscar

grandes da Coca-Cola, da Brahma. Nos contratavam porque precisavam de números gran-

Doutores da Alegria

113

BOCA LARGA

des para aparecer no campo. Já tinha quaren-

não” — foi a primeira coisa que falou “não sou

ta e tantos shows com o Carequinha. Achei que seria possível, com a entrada do dinheiro, com-

doutor”. Expliquei a situação... a família nas costas, meus irmãos. “Não posso sair do Rio

prar o som e ajeitar o circo. Mas, no dia 24 de dezembro, estava eu dentro do Tijuca Tênis

de Janeiro porque meus irmãos estão estudando e eu tenho que trabalhar”. “Arme seu circo

Clube com o Carequinha durante um show, pegou fogo no Circo Norte-Americano em

em um bairro bem afastado do centro. Vou telefonar para o delegado, que é meu amigo, para

Niterói. O caso foi sinistro. O governador do estado, [Carlos] Lacerda, proibiu a atividade

te liberar, mas você vai procurá-lo”. Saí com uma carta de recomendação, fui ao delegado,

circense na Guanabara.

que assinou embaixo, e disse: “Ninguém vai te incomodar. Vai trabalhar clandestinamente,

Fechou todos os circos. O dono do Circo Norte-Americano, que era dos ciganos Stevanovich, passou a mão nos destroços, colocou nas carretas e foi-se embora para o Paraná, e deixou aquele “movimento” horrível para o circo no Rio de Janeiro. Ficamos sem trabalhar. Vinha o Corpo de Bombeiros e fechava o circo, vinha a polícia e interditava. Os que ficaram armados não trabalhavam. Fiquei parado, com o material no terreno, no fundo da minha casa. Como iria trabalhar? O dinheiro foi acabando. “Poxa, comprei o circo em má hora”. Meu pai falou: “Não quis o circo? Agora vire-se. Não vou mexer uma palha”. Fez isso para que eu adquirisse experiência, sair daquela e ter coragem para enfrentar as que vinham pela frente. Acho que foi uma lição que me propôs. “Não, não vou falir”. Fui para Nova Iguaçu e pedi uma audiência com o Prefeito. Mandou entrar: “Olha, Doutor...”. “Doutor

114 Doutores da Alegria

mas estou sabendo. Nenhum policial vai te interditar”. Desse modo, trabalhei em todos os bairros de Nova Iguaçu. Fiz a mesma coisa em Caxias e o circo foi liberado. Àquela altura estava com o circo muito bonito, porque eu e meus irmãos deixávamos de comprar uma camisa, um par de sapatos para empregar na nossa casa de trabalho. Tinha um material maravilhoso, todo de ferro. Dos circos, um dos sons mais possantes do Rio de Janeiro era o meu, porque naquela época a gente não só levava o circo, como levava show de rádio. Eu levei o Roberto Carlos umas quatro, cinco vezes no meu circo. Na época, ia de lambreta, começando a Velha Guarda, Vanderléia, The Golden Boys, a Evinha. Eu levava a Caravana do Roberto Munis. A primeira e a segunda semanas eram circo, a terceira e quarta eram de shows de rádio. Arrebentávamos. Meu cunhado, fiscal da SUNAB, ia ao cir-

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

co. Morava e mora em Nilópolis. Uma vez me

maravilha!”, ela imaginava que eu tinha com-

disse que eu possuía um circo muito bonito, mas não tinha nada registrado. “Acostumou-

prado um circo de seis elefantes, enquanto na verdade era apenas um “ameaço” de circo. No

se. Não pode ser mais assim. Você tem que procurar um escritório de contabilidade, registrar

dia da minha estréia, em Nova Iguaçu, foi com a família assistir o espetáculo. Quando chegou

o circo, ver a papelada, ter um livro-caixa e uma firma”. Eu cocei a cabeça. “E agora, como

lá e viu o circo, foi uma decepção total. Ela virou e disse: “Pirajá...”,”Pronto! Perdi a noiva...”

é que nós vamos fazer?”. Em Caxias mesmo procurei um escritório. Foi onde conheci minha esposa. Ela é contadora até hoje. Há 40 anos. Meus irmãos ficaram noivos. O casamento foi dentro do próprio circo: “Ah, vou ficar noivo”. Aí comprava um trailer para ter sua

Ela olhou para a lona toda remendada, os refletores todos caídos... Eu olhava como se estivesse no Beto Carrero. Ao final do espetáculo, paguei os cachês, porque tinha artista que não

casa sobre rodas. A família começou a crescer.

morava no circo. Além do meu espetáculo, contratava gente forte para melhorar. Para dize-

Começou a aparecer a nossa quinta gera-

rem por aí que se o circo é feinho, o elenco era uma maravilha! Ganhava dinheiro com isso. Às

ção. No período em que comprei o circo, era noivo! Conheci uma moça na Presidente

vezes, entravam debochando da casa, mas quando saíam diziam ser de primeira grande-

Vargas. O pai era radialista, rádio-ator e locutor da Rádio Tupi: Carlos de Azevedo. Tinha

za, apesar de pobrezinha. A parte cômica era tudo. Então fui melhorando, melhorando, e

meu sobrenome. Ela foi ao camarote assistir ao espetáculo e começamos a namorar. Ela mo-

quando cheguei à casa dela, falou assim: “Pirajá, quero falar sério contigo. Se não largar o circo,

rava no IAPC do Irajá na Avenida Brasil. O namoro foi ficando firme, mas ela sabia que

não caso contigo”. “Então você vai me largar agora, porque você quer status. Se eu tivesse

queria comprar meu circo. Ela me conheceu na Presidente Vargas, em um circo de dez

comprado um circo de seis elefantes a coisa seria diferente”. Há males que vêm para bem.

mastros e seis elefantes... Eram duzentos e tantos artistas. O circo foi direto para Fortaleza,

Regularizei o circo, comprei lanchonete,

Ceará, e eu fiquei, porque meus irmãos tinham de estudar. O namoro foi indo. Eu fazia show

carreta, passei a investir em animais, em feras (naquela época era liberado). Tinha um casal

com o Carequinha. Comprei o circo e fui à casa dela: “Maria, comprei um circo!”. “Mas que

de leões, de chipanzés e fui melhorando, mas nunca saí do Rio de Janeiro, porque queria meus

Doutores da Alegria

115

BOCA LARGA

irmãos concluindo pelo menos o Primeiro e Se-

uma coisa diferente. De sexta a domingo vou

gundo Graus [Fundamental e Ensino Médio].

para o circo. Você está dentro do Rio de Janeiro. Você pega a minha mãe...”, porque a velha

DA: E concluíram? P: Graças a Deus! Todos eles. Doidos para ir para o interior! Não deixei sair até completarem o segundo grau. Ainda queria continuar aqui, porque queria que cursassem uma faculdade, mas não queriam. O negócio deles também era circo. Mas já eram rapazes feitos

não a deixava namorar sozinha. Eu tinha que ir à casa da minha sogra, pegar e levar para o circo. Minha esposa saía do escritório na sexta-feira de noite para o circo, para poder se adaptar ao espetáculo. Ela começou a ensaiar cama elástica comigo!

e não podia mandar neles. Quando eram pequenininhos eu mandava, mas passaram a ser

Ela nunca foi de circo. Mas começou a entrar nas comédias, fazendo as mocinhas dos

meus sócios. Tinha de sentar em uma mesa redonda e discutir, de igual para igual. Me res-

pastelões. Eu fazia os galãs das comédias. Quando nós estávamos para casar, fui para

peitavam: “Você falou, está falado”. “Não, não é assim. Temos que assinar embaixo o que fa-

Rocha Miranda, onde morava minha ex-noiva. Na minha estréia, meu ex-sogro foi com a

remos. O que comprar, como vamos seguir”.

família assistir ao espetáculo, mas não sabia que o circo era meu, porque estava completa-

Foi quando procurei um contador e encontrei minha esposa: “Por que você não arma o

mente mudado. Chegou na porta, parou, entrou e disse: “Eu sou radialista...”, falando para

circo em Caxias, onde moro?”. Arranjei um terreno no centro de Caxias, perto da rodoviá-

mim. Eu falei: “Eu sei que o senhor é radialista.” Ele olhou: “Ô, Pirajá...”; e eu falei: “Quem

ria. Armei o circo e no dia da estréia foi assistir ao espetáculo. Começamos a namorar. Ela era

é que não sabe que o senhor é radialista? Vamos entrar”. “Pirajá, esse circo é seu?”. “É, é o

órfã de pai, só tinha mãe e três irmãs solteiras. Estava na mesma situação que eu, com aquela

nosso circo”. “Meu Deus, mas está lindo”. Ele olhou para ela, que estava solteira, e falou:

escadinha de irmãs. Era a chefe da casa. Então ela disse: “Não posso me casar agora. Te-

“Está vendo o que você perdeu?”. “E essa aliança?”. Eu disse: “Estou noivo. A minha espo-

nho que esperar as meninas crescerem mais um pouco. Estão estudando e têm que arranjar

sa está na bilheteria”.

emprego para sustentar a casa. A mamãe ganha uma pensão muito pobre, não dá para

Conclusão: dois dos meus irmãos concluíram o colégio e o outro fez exército. Saímos de

nada, uma pensão de viuvez, mas vou fazer

viagem com o circo a título de experiência. Fi-

116 Doutores da Alegria

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

zemos o litoral porque era verão. Fiz as praias:

livre para um artista de circo. Só que

Cabo Frio, Araruama, Bacaxá, Saquarema, estourando, pondo pelo ladrão. Pensei que ia fi-

embananava muito. Às vezes a matéria desse colégio já não era a mesma daquele outro colé-

car rico! Isso com um elenco pequeno. Saímos com mais uns dois ou três casais. Resolvi esticar

gio. Minha esposa chegava e o diretor falava: “Olha, tem gente de circo aqui. Eu quero ma-

até Campos. Ao chegar em Campos, meu irmão ficou noivo de uma campista. No verão,

térias para eles, porque as matérias da outra cidade não estão valendo”. Todos já eram

fiz as praias de Campos: Atafona, Grussaí, São João da Barra... Aí meu irmão casou. Compra-

rapazinhos e mocinhas, já se interessavam pelas artistas do circo e as garotas da cidade já se

mos um trailer para ele. Dali, pensamos: “Vamos pegar um pouquinho de Vitória?”. “Va-

interessavam pelos garotões do circo. O meu circo naquela época era a coisa mais linda. Ti-

mos”. Fui para Marataízes, Guarapari. Entrei em Vitória e, quando menos se esperava, já es-

nha casos, por exemplo, que eu saía de uma cidade, chegava a outra e, como eu não queria

tava em Fonte Nova, Bahia. Olhava o mapa e dizia: “Meu Deus do Céu, como eu estou lon-

prejudicá-los no colégio, faziam a estréia comigo, sexta, sábado e domingo, e segunda-fei-

ge!” Isso num espaço de 10 anos.

ra voltavam para a cidade anterior de novo.

Meus irmãos todos casaram. O sogro de

DA: Quantos filhos você teve?

um era prefeito de uma cidade, o de outro era delegado, do outro farmacêutico, do outro

P: Tive um filho, o Uirapuru teve cinco filhos, o Ubiratan teve três, o nosso Natal era a

médico, e as esposas vieram para o circo. Não houve discriminação. Vieram mesmo, aman-

coisa mais linda. Todos reunidos, a companhia inteira, os empregados, a mesa no centro do

do o circo! Umas tomavam conta da parte externa de propaganda. A gente chegava na ci-

picadeiro, um se vestia de Papai Noel... No mês de Natal, a gente tinha uma árvore ao lado da

dade, uma ia fazer reportagem na televisão, lançamento. Minha esposa pegava os filhos:

cortina do circo. Então vinham os brinquedos.

“Não, burros não vão ficar!”. Seria a quinta geração. Meu filho e meus sobrinhos foram os

No Ano Novo, a gente tinha que liberá-los para visitar os avós. Iam para a casa dos avós

alunos que mais se transferiram no país. Fazia duas semanas, então saía com a carga horária

e passavam por aquela lavagenzinha cerebral: “Circo? Vocês não param em canto nenhum.

e a transferência de um colégio para o outro. Não sabia que havia uma lei de Getúlio Vargas

Vocês parecem uma tartaruga. Aonde vai, leva a casa. Uns meninos bonitos, fizeram o colé-

de que todo colégio tinha de ter uma cadeira

gio... uma caligrafia bonita, por que não fazem

Doutores da Alegria

117

BOCA LARGA

universidade?”. Quando voltavam, percebia o

tei, abaixei a cabeça, me deu um nó na gar-

drama. Minhas sobrinhas, sobrinhos, meu filho mesmo já com a cabecinha virada, já não

ganta. Eu disse: “Eu vou ter um enfarte agora”. A minha esposa entrou no trailer: “O que

estavam com aquele entusiasmo de querer trabalhar. Já não queriam se maquiar direito, o

está havendo, Pirajá?”. “Sabe, escutei uma coisa que nunca na minha vida achei que iria

sapato de palhaço sem pintar, as roupas rotas, comecei a notar aquilo. Meus irmãos, caxias

escutar”. “É adolescente Pirajá, isso passa”. “Não, não passa não”.

por completo, falavam: “Não, elas vão casar com gente de circo. Não vão casar com gente de cidade. Eu as quero no circo, elas vão trabalhar comigo no circo”. Todas já eram moças. Eu, como mais velho, liberava mais: “Tio, hoje tem baile. Acaba o espetáculo mais cedo?”. Meus irmãos: “Não vai a baile nenhum”. “Que é isso? Vocês foram a baile, porque eles não vão?”. Eu liberava a turma.

Chegamos em Teresópolis. Uma sobrinha ficou noiva de um rapaz de Teresópolis. Tinha um posto de gasolina e um supermercado. Esse rapaz gostou dela por demais. Tanto gostou que casou. Ele chegou a andar 400, 500 km para ver a noiva e já estava fazendo a casa dele para o casamento. Falei para ele: “Rogério, você pretende casar quando?”. “Ah, tio...”,

Fui um tio-pai, porque só tive um filho.

ele me chamava de tio, uma bela pessoa, eu o adoro.”Eu pretendo me casar em maio”. “Va-

Minha esposa não pôde ter mais porque teve um problema de eclampsia, quase morreu. Per-

mos fazer o seguinte: quando for na véspera do casamento eu vou trazer o circo direto para

demos o segundo filho e paramos de tentar. Um dia, fui passando pelo ônibus no qual meu

Teresópolis para fazer o casamento. O casamento vai ser dentro do circo”. “Pô tio, que

irmão morava, uma tremenda casa com antena parabólica, todo conforto, e escutei uma

legal!”. Na véspera do casamento, eu trouxe o circo para Teresópolis. Fiz as três primeiras

sobrinha falando para a outra: “O tio Pirajá fica com esse negócio de circo. Eu não quero

semanas esperando o casamento. Por sinal, a praça foi muito boa em Teresópolis e houve um

mais circo, eu quero parar com o circo! Eu quero casar, estudar, fazer uma universidade, se-

almoço entre a família do rapaz, minha família e uns convidados íntimos do rapaz. Ele é

guir outra carreira. Eu estou com o saco cheio de circo. O que vão deixar para a gente? Uma

muito querido na cidade. Pedi a palavra, como irmão mais velho. Meus irmãos me olharam,

lona rota, uns leões velhos, caindo os dentes de tão velhos...”. Aquilo para mim foi uma tris-

pensando assim: “Bom, o Pirajá vai fazer uma nova turnê, ou comprar uma lona nova, ou

teza total. Fui para dentro do meu trailer, sen-

comprar mais uma carreta.” Eu disse: “Olha,

118 Doutores da Alegria

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

a Georgina casando, eu largo o circo”. “O que

gava, parava na porta e me xingava. E a ma-

você está falando?”. “Eu saio do circo. Até hoje, fui o irmão mais velho e quem resolvia tudo.

mãe controlando: “Ubiratan, pára com isso, Ubiratan! Pára que o seu irmão está certo”. “Está

Vocês estão crescidos, casados, com família. Vou para o Rio de Janeiro com o meu trailer,

certo nada, mamãe! Nós construímos isso aqui com o maior sacrifício. Agora estamos dando

minha picape e para o meu terreno, porque nem casa eu tenho. Cada um de vocês tem uma

conversa à quinta geração. Eles que se virem, larguem o circo. Nós vamos tocar isso sozi-

casa junto de seus sogros. Você tem uma casa em Campos, você tem uma casa em Vitória,

nhos”. Ele não queria. Conclusão: cada um foi para junto do seu sogro, cada um saindo

você tem uma casa em Juiz de Fora, você tem uma casa em Friburgo. Eu não tenho casa. Te-

devagarzinho, o circo desmanchado.

nho um terreno ao lado da casa da minha sogra. Está cheio de mato e tem um muro. Nem um portão grande para entrar o trailer não tem. Vou derrubar o muro, mas vou para o Rio de Janeiro”. O caçula bateu na mesa e falou: “Nunca mais quero ver o seu rosto. Você me decepcionou”. Falei para ele: “Hoje você fica com raiva de mim, mas não dou dois anos para você bater na minha porta”. Acabou o almoço. A mamãe começou a chorar, foi uma tristeza, mas eu tive que fazer aquilo.

Esse meu sobrinho tem um galpão grande até hoje. Coloquei o material lá dentro. Cada um foi engatando seu trailer. Vim ao Rio de Janeiro, fui ao zoológico Dona Teresa e doei os animais, porque assim teriam um final feliz. Não ia vender para circo nenhum, porque tratar os animais como eu tratei, podem até tratar, mas não tenho confiança. De vez em quando vou visitar meus animais. Aqui, no Rio de Janeiro, meu filho fez administração de empresas e arranjou um emprego na Prefeitura do Rio. Quebrei o muro do

Aconteceu o casamento. Um casamento lin-

terreno, coloquei meu trailer e falei assim: “Pirajá, e agora? O que vou fazer na vida?”

do na cidade, o altar na igreja... no circo, a minha sobrinha casou e veio todo mundo, aquela

DA: E ficou morando no trailer no terreno?

coisa toda. Quando terminou o espetáculo, não se convenceu, virou para mim e falou assim:

P: No terreno cheio de goiabeira, mangueira, bananeira, tudo plantado pela minha so-

“Nós estreamos onde?”. “Eu não falei para você que amanhã eu estou descendo para o Rio de

gra que morava ao lado. Aí fechei o muro para não sair mais. Eu tenho o meu trailer até hoje.

Janeiro?”. “Eu vou tacar fogo nisso”. “Taca fogo”. Fui para dentro do meu trailer. Ele ficou

Eu mato a saudade do circo indo para dentro do meu trailer. Agora é casa de bonecas das

igual uma passadeira. Passava para lá, me xin-

minhas netas.

Doutores da Alegria

119

BOCA LARGA

Eu, meu filho e minha esposa moramos no

pai está trabalhando. Vai atrás de emprego”.

trailer. Ele chegava de manhã com a pastinha, de gravata: “Viu papai? Isso é que é vida. Uma

No dia seguinte, ele pegou o currículo dele e voltou sorrindo: “Papai, dei sorte. Já arranjei

vida limpa, não tem nada de bater marreta, de dirigir carreta, de pintar a cara”. “Ótimo, é isso

outro emprego. Na Dutra, uma firma de japonês, Sano, que faz telhas, telhados. Estou traba-

aí, vá em frente!”.

lhando no escritório”. “Ótimo, e seu pai está aqui fazendo a bolinha”, e a minha esposa faz

Eu fui para o Café dos Artistas. Eu faço um número até hoje, não faço sempre devido à idade, mas ainda faço... De vez em quando os alunos pedem para eu fazer. Estou ensinando o que aprendi para quatro alunos. Tem um que foi para a Itália este ano com o número: homem-foca. É um aparelho que se usa na boca e a que damos o nome de cachimbo. É uma madeira, aonde se equilibra a bola. É um número de origem japonesa. Faz-se o malabarismo com a bola, pula-se corda, cabecea-se a bola, anda-se de monociclo cabeceando a bola. É um número lindo, não é igual a malabares. Um empresário aqui do Rio de Janeiro disse: “Pirajá, esse número vai cair bem no meu espetáculo. Eu faço muitos shows. Eu faço muitas festas de aniversário”. Comecei a trabalhar, trabalhar, trabalhar... Quando vendi o circo, com a minha parte comprei o material para levantar a minha casa. Arranjei um pedreiro e comecei a levantar a construção. Um péssimo dia, cheguei em casa, cheguei do show de madrugada, estava meu filho deitado no trailer. “O que foi Júnior?”. “Mandaram-me embora”. “Oh, você está esquentando a cabeça? O seu

120 Doutores da Alegria

aqueles pratinhos. Já viu aquele número de rodar os pratinhos nas varinhas? São 20 pratos. Eu ganhava o meu pão e pagava o pedreiro. Em um ano já estava com a laje pronta, já podia entrar na casa. Cheguei no trailer, estava ele deitado: “Papai, perdi o emprego”. “E agora, você vai fazer o quê?”. “Não vou trabalhar mais para ninguém. Eu vou ser meu empresário”. “Você vai fazer o que, filho?”. “Vou montar uma equipe, vou montar um circo.” “Você me fez vender um circo!” “Não, vou trabalhar diferente.” Aí ele foi na Escola Nacional de Circo, viu um ensaio, contratou um bom malabarista, uma contorcionista e um dos melhores mágicos do Rio de Janeiro. Fez um material de propaganda, foi aos Colégios, começou no Santa Mônica. Há dez anos que ele trabalha no Santa Mônica, todo ano. Apresentou o projeto para a relações públicas: “Não, não quero circo. Deus me livre, porque aqui já veio uma porção de circo, uns palhaços sem roupa, sem nada.” Ele disse: “Olha Da. Olga, deixa eu trabalhar de graça para a senhora. Se a senhora não gostar do meu espetáculo, a senhora não me paga.” Ele levou o show no dia das crianças, em outubro. Arrebentou! Ela abriu as portas para todos os colé-

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

gios da rede. Começou a trabalhar e virou uma bola de neve. Também partiu para área de brinquedos infláveis. Hoje ele tem uma empresa com 30 pessoas contratadas. Ele tem um barracão na Dutra, enorme, com funcionários, motoristas e caminhões de entrega.

DA: E o senhor, o que faz hoje? P: Continuo na Escola Nacional de Circo como professor. Há 12 anos. DA: Dá aula de quê? P: Eu dou quatro matérias. Eu dou equilí-

Faz shows, aluga brinquedos, lonas de cir-

brio em geral, qualquer tipo de equilíbrio, dou solo, o básico; dou cama elástica e um número

co. Ele tem lonas para casamento, para festas, aquelas brancas, em pirâmide... Virou empre-

que a gente dá o nome de acrobacia cômica. É um número cômico. Eu sempre faço um trio

sário e não tem mais tempo de pintar a cara. Só fecha e faz eventos. Em pouco tempo ele se

de canastilha, salto para ombro... Eu sempre estou montando esse número. Tem aluno meu

transformou em um empresário, mas não deixa de estar na lona de circo.

que saiu daqui do Rio de Janeiro e está no Cirque du Soleil. Tenho quatro alunos que es-

É, e aí o que aconteceu? A quinta geração

tão no Circo Ringle, o maior circo dos Estados Unidos, e tem muitos trabalhando individual-

não se acomodou. Partiu para aquilo que eles queriam. Hoje, aos 71 anos de idade, sou um

mente nos cassinos de Las Vegas. Recebo muitos cartões, muitas cartas desses alunos. Um

homem muito feliz; os meus sobrinhos me têm como grande tio, às 10 horas da noite toca um

dia desses peguei na internet um falando assim: “Alô, alô meu velho... alô, alô alunos da

telefone: “Tio... como vai tião?”. “Titio, como é que está, meu velho? Está forte? Um beijo. É

Escola Nacional de Circo, cuidado com esse velho. Tenham cuidado com ele que esse velho

Francisca”. Aí daqui a pouco: “Titio, como é que está?”. Então, eu ponho a minha cabeça

é muito especial para mim.”

no travesseiro e sei que não prejudiquei ninguém. Hoje eu tenho dois sobrinhos que estão

Meu irmão bateu no meu terreno. Aí eu olhei: “Entra Ubiratan”. Entrou, me abraçou e falou

fazendo medicina e se formam, tenho uma que está fazendo direito, uma já se formou em di-

assim: “Você estava coberto de razão”. Falei: “Ubiratan, de que adiantava eu com 70 anos, você

reito, tenho duas professoras, tenho uma que está trabalhando em Macaé na Petrobrás, te-

com 59 anos, o outro com 60 e tantos anos, cinco velhinhos de cabelo branco, tocando o circo com

nho um que tem uma loja de calçados no shopping de Campos. Graças a Deus, estão

pessoas estranhas, lidando com empregado?”. Uma vez, na ida de Porto Seguro para Salvador,

todos estabilizados.

um camarada bêbado tombou a carreta com seis

Doutores da Alegria

121

BOCA LARGA

empregados. É uma responsabilidade muito gran-

tável público, boa noite!”. Aí vinha o diretor

de. Chegamos na cidade com despesa. A minha salvação foi que não teve vítima fatal. Foram to-

do circo: “Pirajá, você chegou atrasado? Cadê o Desaperta?”. “Não, é o seguinte, eu cheguei

dos medicados. A gente velhinho sem ter, pelo menos, 50% do espetáculo em casa. E logo veio

atrasado porque eu gosto muito de caçada e eu fui fazer uma caçada ontem, na sexta-feira,

essa proibição dos animais. Quer dizer, eu ia perder os meus animais. Tive uma felicidade de doar

e eu levei o Desaperta. Nós chegamos tarde. Vai ver ele está dormindo, mas ele não vai de-

os meus animais antes deles serem presos. Isso foi maravilhoso. Deus me ajudou nisso...

morar. Eu vou lhe contar o que aconteceu na caçada. Veja você... eu peguei o Desaperta,

DA: Fala um pouquinho do palhaço na sua vida. P: Se o palhaço de circo pequeno não agradar, pode desarmar o circo e ir embora, porque o público quer ver o espetáculo, mas quer ver o palhaço. Então o palhaço de um circo pequeno é um palhaço que não sai do picadeiro. Ele tem a parte cômica, é o excêntrico, o clown e o mestre de pista, como eu falei para você antes. O mestre de pista fica ali na cortina, aí o palhaço entra: “Boa noite...”, e o clown “Oh Seu Pirajá, por acaso você viu o Desaperta?”. “Pô, mas o Desaperta até agora... mas que homem irresponsável, na hora do espetáculo...”. “Oh, Desaperta!!!”. “Espera aí, estou dando banho na galinha, não sei!” Aí sai da cortina... “Boa tarde, macacada!”. “Que macacada. Boa noite, rapaziada!”. Está entendendo? É o começo. Só que a entrada cômica, como eu falei, é igual uma comédia: ela tem começo, meio e fim. Cada dia é um tema. Por exemplo, o meu pai entrava: “Respei-

122 Doutores da Alegria

peguei meus dois cachorros perdigueiros, com minhas duas espingardas. Andei 6 km e encontrei uma lagoa repleta de patos. Aí eu cheguei para o Desaperta: Desaperta, se prepara com a sua espingarda, eu com a minha, você joga uma pedra para os patos levantarem vôo e nós vamos atirar, porque o tiro fica mais bonito, é um tiro profissional. Aí ele pegou a pedra, jogou, os patos levantaram vôo, aí pá! E eu contei antes de atirar nos patos... eram 32 patos. Eu peguei a minha cartucheira e coloquei 30 balas de chumbo, mandei o Desaperta jogar a pedra, os patos levantaram vôo, eu atirei. Adivinha quantos patos eu matei?”. “Ah, você matou pelo menos uns seis patos”. “Não, eu matei os 32”. “Pô, você é caçador ou é mentiroso para caramba...”. “É que o Desaperta não está aqui para contar a história, senão ele confirmava”. Aí o Desaperta ia entrando... “Oh, Desaperta...”, aí eu puxava o Desaperta: “Tudo o que ele perguntar você diz que sim.” Aí o dono do circo dizia: “Desaperta...”. “Sim, sim, sim”. “Espera aí...”. “Sim, sim, sim”. “Mas eu não falei nada, como é que você já está di-

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

zendo sim, sim, sim? Eu quero que você me

peço mais nada não”. “Sr. Uirapuru, por gen-

conte a caçada que o Pirajá fez.” “E que caçada?”. “Oh, rapaz, a caçada que nós fizemos

tileza, o senhor pode me ceder uma cadeira?”. “Não há”. “Ele agora vai dar uma cadeira, ou

ontem”. “Ah, eu não fui à caçada nenhuma”. “Rapaz...!!!”. Aí ele entendia que era uma men-

por bem ou por mal”. O palhaço do interior usa uma bengala. Eles dão o nome de mandio-

tira. Aí ele confirmava a caçada e é aquela história: “Vocês são dois mentirosos”. Aí o Desa-

ca. É uma bengala na qual ele se escora. Aí papai pegava a bengala, chegava para o meu

perta: “Você nem para combinar.” “Bom, você chegou na hora, mas vamos continuar na ca-

irmão: “faça o favor...”, aí o meu irmão chegava perto dele, e meu irmão era forte, aí papai

çada. Olha, Desaperta, eu tenho um cachorro maravilhoso. Meu cachorro, se eu pego uma

pegava a bengala: “Me dá uma cadeira aí”. Aí o meu irmão: “Não há”. Aí ele pegava a ben-

sardinha e ponho no pires, ele come a carne e deixa a espinha completinha”. “Mas que ca-

gala: “Pirajá, segura a bengala que vai ser na mão... me dá uma cadeira aí”. “Não há”. “Me

chorro inteligente! Mas o meu é mais inteligente do que o seu”. “Ah, Desaperta, o que é isso?”.

dá a bengala...”, aí ficava esse segura a bengala, me dá a bengala, aí o meu irmão ia e dava

“O meu, se eu coloco no pires café com leite misturado, ele bebe o café e deixa o leite”. Aí:

um craque nele. Ele caia e eu: “Desaperta, não precisa isso, vamos utilizar essa cadeira para

“Me dá uma cadeira”. Aí vinha uma cadeira e eu sentava nela. Papai ficava em pé. “Não vê

nós dois”. Aí vinha a caçada de pato... a cadeira era caída. Aí eu sentava na parte firme e

você, Desaperta, que eu peguei o meu jipe, andei 12 km...”. “Pirajá, essa história é muito

ele sentava na parte fraca. Um dia desses, sabe quem estava levando isso? Didi, nos Trapa-

comprida?”. “Ah, é”. “Mas você está sentado e eu estou em pé”. “Vai lá ao dono do circo e

lhões, porque o Dedé foi de circo e passou muitas coisas para o Didi. Ele leva muita coisa

pede uma cadeira”. Aí ele ia lá: “Sr. Uirapuru me dá uma cadeira aí”. Aí o meu irmão com

de palhaço de circo.

voz de raiva: “Não há”.”Não há”. Eu falei: “Poxa, mas eu estou sentado aqui, eu estou vendo. Você chega lá e pede ‘uma cadeira aí’? Tem que passar uma vaselina, ter educação: “Sr. Uirapuru, por gentileza, o circo tem quase 2 mil cadeiras. O senhor pode me emprestar uma? Essa é a maneira de agir. Você quer ver como eu arranjo a cadeira?”. “Vai lá, eu não

O público quer isso. O público quer que o palhaço apanhe, leve uma cascata, leve um pastelão na cara, então quase todos os palhaços circenses de circo pequeno fizeram isso. Na Escola Nacional de Circo, eu passo muito para os meus alunos as entradas de palhaços, mas eu já passo mais a mímica, porque ninguém tem garganta para trabalhar no circo grande,

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

num circo de 5 mil lugares, 50 metros de diâ-

Belacho, morreu com 86 anos de idade. Era

metro; a pessoa ou usa um microfone ou então tem que fazer mímica. Toda última sexta-feira

assim: “Tira o olho, bota o olho, não faço questão do olho, tira o olho, bota o olho, não faço

do mês nós fazemos um espetáculo de portões abertos para as escolas públicas.

questão do olho. Lá no mundo é terra só de sertanejo, o padre fez um festejo para o povo

DA: E no circo tradicional, como no seu, de seu pai e de seus irmãos, quando se é palhaço, também se faz de tudo um pouco... P: O tempo todo...Meu pai teve uma aprendizagem muito grande. Papai ia para a Rua da Carioca, para o Eldorado, que era o cinema e já não existe mais... Na segunda-feira, papai entrava às 10 horas da manhã e só saía de noite da sala de cinema, porque pegava as seções de Chanchadas, dos Três Patetas, Charles Chaplin, dos Irmãos Max, do Gordo e o Magro, e daí papai tirava muita coisa, muita informação. Papai tinha muita coisa de Charles Chaplin, inclusive até a maneira de andar com a bengala. E levava tudo isso para o circo. Agora, se você perguntar quem era o autor das entradas, das esquetes, quem escreveu, ninguém vai te responder, ninguém. Essas comédias vêm de bisavô para avô, de avô para pai e vai passando para netos e assim afora. O palhaço do Nordeste, antigamente, era um palhaço mais de violão que contava paródia... esta é uma paródia do meu avô. Essa paródia deve ter uns 100 anos, porque vovô, o

124 Doutores da Alegria

do lugar. Um povaréu, gente assim eu nunca vi. Uma hora eu me perdi. Eu mesmo fui me procurar”. A platéia acompanha: “tira o olho, bota o olho...” Era uma coisa muito inocente. “E na igreja tinha gente que nem sardinha, pois a pobre de uma mocinha despencou-se lá do coro. E na parede tinha um prego bem comprido que agarrou no seu vestido e livrou daquele estouro. Tira o olho, bota o olho, não faço questão do olho, tira o olho, bota o olho... a pobre moça por baixo não tinha nada, com a saia levantada, pendurada lá no prego. O Seu Vigário deu um conselho, eu não nego, se olhar para o coro, perde a vista e fica cego. Tira o olho, bota o olho... O povo todo obedeceu incontinente e a surpresa foi somente de um danado de um caolho que levantou e disse: Eu não sou otário, me desculpa Seu Vigário, vou arriscar o outro olho” Ainda não tive a curiosidade de ver num dicionário o que quer dizer Belacho; tenho para mim que deve ser uma gíria no Nordeste. Aí veio a terceira geração, meu tio Francisco Azevedo. Esse tio Francisco Azevedo foi o primeiro a sair da família. Ele era um mecânico na época... olha o que o circo ensina. Foi para Panair do Brasil e ficou sendo mecânico da Panair. Foi

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

quando largou o circo. O nome dele de palhaço

Só que ali eles fazem um plagiado. Eu escutei

era Fura-Fura. Aí veio Aluísio Azevedo, Lulu. Veio o Frank Azevedo, esse chegou a ser pro-

muitas versões de Asa Branca no norte de Minas, coisas lindas. Ali não tem direito, ninguém

fessor da Escola Nacional de Circo.

escreve nada, ninguém registra.

DA: Todos seus tios?

DA: Então, a gente está chegando ao fi-

P: Todos tios. Frank Azevedo, Pisca-Pisca. Afonso Azevedo, Sassarico. Também tem os

nal. Você quer deixar alguma coisa registrada que eu não te perguntei? Você quer perguntar

meus tios por afinidade, que casaram com minhas tias legítimas e passaram a ser meus tios.

alguma coisa? P: Bom, eu queria falar uma coisa sobre o

Vieram para o seio da família como veio o meu pai. Veio Mário Campioli, esse é de família ita-

circo. Eu sou apaixonado por circo. Eu e os meus cinco irmãos. Eu dizia que o meu velório tinha

liana. Os pais vieram da Itália com o circo, erradicaram no Brasil, morreram e ele casou

quer ser dentro de um picadeiro. Infelizmente isso não vai acontecer. Tive a felicidade de ir

com a minha tia. O nome de palhaço dele era Quero-Quero. Veio Lisandro Brandão, o pai

para a Escola Nacional de Circo passar aquilo que eu aprendi aos meus alunos. Eu fico muito

dele trabalhou com Sarrazane, foi adestrador dos animais do Sarrazane. Morreu aqui no

contente. A primeira palavra que eu pergunto a um aluno quando vai para um circo pela

Brasil. Aí, depois que saiu do circo do meu avô, comprou um circo e colocou o nome do circo

primeira vez, quando vai fazer aula comigo ao escolherem fazer a grade deles com o Profes-

de Circo Show América, e o nome de palhaço dele era Sacarrolha. Aí vem a quarta geração

sor Pirajá: “O que o seu papai e mamãe falam sobre o circo?”. “Ah, eles dizem que eu vou

que já toca a minha. Meu irmão Uirapuru que, com a morte do Sacarrolha, passou a usar o

ser palhacinho de circo”. É uma vida muito discriminada. É a única tristeza que eu tenho.

nome, bem como meu filho pegou o nome do outro tio que é Quero-Quero.

Já começa pelas autoridades, porque para levar um circo para o interior, para circular,

DA:O que é embolada?

montar os circos nos terrenos é muita dificuldade... Você sabe o que é um temporal no cir-

P: É o que acabei de cantar para você. Embolada é o que? No Nordeste não existem

co, um vendaval no circo? É um navio em alto mar, um navio veleiro. Eu, em menos de três

os Repentistas? Isso vem a ser a embolada. Músicas de Luiz Gonzaga, de Zé Ramalho são

minutos, perdi uma lona, com o circo super lotado, coloquei as crianças todas dentro das

cantadas nas feiras do Nordeste por violeiros.

carretas, dentro dos trailers — porque os pais

Doutores da Alegria

125

BOCA LARGA

vão, colocam as crianças no circo e vão embo-

A última discriminação é essa que eu fa-

ra para casa para tomar whisky e jogar baralho. Aí quando termina a matinê é que eles vêm

lei para você: eu não me conformo que uma trupe receba R$ 60.000 de patrocínio e um

apanhar. O tempo mudou de uma hora para outra e eu disse: “Meu Deus, vai ser uma coisa

cirquinho que está na Baixada Fluminense que compra uma lona, arma a loninha dele pedin-

horrível!”. Fui pegando as crianças, jogando nas carretas, não machucou ninguém, não teve

do a Deus para não vir um temporal, um vendaval e ganha R$5.000 por ano, quando é sor-

um arranhão. Teve até no dia seguinte uma crônica falando sobre o nosso espetáculo. Isso

teado. Isso é um absurdo! Um Beto Carrero recebe R$ 60.000... Ele faz isso de pipoca no

em Calcária no norte do estado. O circo acabou, a lona caiu por cima do globo, aquelas

circo dele. Por que não dividir esse dinheiro todo entre todos os circos? Nós temos quase

estacas de ferro voavam e eu fiquei com as criancinhas todas dentro das carretas, os ar-

três mil circos dentro do Brasil. Que cada um ganhe R$ 5.000 no final do mês para comprar

tistas conversavam e distraíam e a mamãe levava uns para os trailers para rezar...

uma lata de tinta, para fazer um tapete novo, para chegar no Natal e ele comprar uma gar-

O que eu fico chateado é que toda a cidade de Minas Gerais tem um estádio para ter a vaquejada, mas não tem uma área para armar circo. Às vezes você é obrigado, com o seu cir-

rafa de vinho e pôr na mesa para tomar com a esposa e os filhos. Visita um circo pequeno! Visita. Você vai ver que tristeza! É essa a minha reclamação...

co, a dar um pulo de 300, 400 km. A despesa aumenta. Tem cidades que o Prefeito faz uma

DA: Agradeço muito o seu tempo, a sua disponibilidade. Foi muito bom!

lei na Câmara Municipal que pode entrar dois circos no ano. Não pode entrar mais ninguém.

P: É isso! Com o meu circo eu mudei muitos cirquinhos. Se vinham na porta do circo e

Por quê? “Porque o circo vem aqui e eles vão levar o dinheiro todo da cidade”. Eles acham

me pediam um caminhão emprestado, eu dizia: “Vai leva. Não precisa abastecer não. O

que os artistas não comem, não bebem, os filhos não estudam, não tomam leite, não têm gastos

caminhão já está com óleo ou gasolina.” Quando comecei tive muita ajuda. Um dono de circo

com roupa. Leva movimento para a cidade! Na Bahia você arma o circo e na porta do circo apa-

foi assistir ao meu espetáculo em Viçosas, Minas Gerais, e as minhas cadeirinhas de madeira

rece logo uma feira livre. As pessoas vão vender manguzá, vatapá, caruru, acarajé, melan-

estavam todas caindo aos pedaços. Ele tinha comprado as cadeiras de plástico para ele e

cia, melão, abacaxi... vira uma feira!

mandou 300 cadeiras de ferro da Antártica para

126 Doutores da Alegria

- História de Vida: Pirajá Bastos de Azevedo -

mim de presente. Foi uma ajuda. Então é isso.

gente de todo lado, quando chegava de noite,

Então você pega os Anônimos, não estou desfazendo mas eles têm o apoio da FUNARTE, têm

o circo estava super lotado, porque ali não ia diversão! O camarada não quer sair do asfal-

apoio de patrocínios, são 10, 15 patrocínios. Agora, uma pessoa que toca um circo, carrega

to, não quer amassar o barro... Às vezes, 6, 7 km de barro... Eu ia lá para dentro. Aí a gente

um caminhão, vai para outra cidade, chega no dia da estréia a filha do fazendeiro casa. Aí o

via o público entrar na porta do circo e falava assim para a minha esposa: “Dona, como é que

fazendeiro faz uma tremenda festa, churrasco aberto para todo mundo, chope para todo mun-

eu faço com a minha família? Eu pago ingresso para eles todos?”. Aí a minha esposa falava

do, quem é que vai ao circo? Não aparece nem mosquito na porta do circo. Aí eles já perdem

assim: “Vamos fazer o seguinte: os pequenininhos o senhor não precisa pagar, não. O se-

um espetáculo. No outro dia vem um temporal derrubando tudo, você perde aquele espetácu-

nhor paga o seu, o da sua esposa, as suas filhas que são noivas, que estão com os namora-

lo. É triste, é lamentável!

dos. Só os adultos, as crianças são de graça”. Aí com o chapéu na mão: “Muito obrigado,

Eu era um dono de circo que aumentou muito o circo, mas eu aprendi muito com o Sr. Garcia com quem trabalhei por mais de oito anos. O Sr. Garcia adorava uma roça. O que é uma roça? Uma meia dúzia de casas, muita plantação, uma fazenda, um campo de futebol, uma igreja e uma venda que vende de tudo. Aí quando chegava com o circo que o leão dava o urro, descia nego da serra, descia

viu dona, dá licença”. Pedia licença para entrar no circo. Aí no dia seguinte vinha uma carroça cheia de abóbora, melancia que ele mandava da fazenda para os artistas do circo e para os animais, para os pássaros, os macacos... O circo era importante, o pessoal do circo era importante... DA: Muito obrigada!

Doutores da Alegria

127

TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS – ÁUDIO – 01:18:00

Agostinho Blaske: Sou Agostinho Blaske.

AB: Exatamente. Fazia papéis cômicos. A

Nasci em 1939, na cidade de Itajobi, perto de Catanduva, Rio Preto. Meu pai não era de cir-

língua dele era a graça da coisa. Baixinho português, gostava de vinho, andava com

co, mas todos os meus avós maternos sim. Meu pai foi José Blaske, estudante de família alemã

salaminho no bolso e uma garrafinha de pinga ou vinho. Casou-se com a minha avó

de Caconde, divisa de Minas com São Paulo. Minha mãe, Araci Dantas, da família Dantas

Josephina Dantas. Com o circo, vieram até Pouso Alegre, na divisa de Minas Gerais com

de circo, contorcionista, trapezista, todo mundo conhece. Nasceu em Vassouras, do casa-

São Paulo, durante uma revolução. Não sei dizer se foi a de 1932. Ficou em Pouso Alegre,

mento de minha avó, também de Vassouras, com meu avô, que veio de Portugal na primeira metade do século XIX com os irmãos. Co-

trabalhando. Foi ser cozinheiro! Trabalhou no exército. A turma gostava muito dele. Passou a ser o cozinheiro do exército. Fazia aquelas

meçaram a se namorar e se casaram.

bacalhoadas e aquelas coisas que ninguém sabia fazer...

Doutores da Alegria: Seu avô não era de circo? AB: Sim. Veio de Portugal. Morreu com a

Nasceram meus tios: Valter Dantas, Jorge, Armando e Dida. Minha mãe já era mais velha,

língua enrolada. Só entendia quem estava perto dele. “Mais jesus, bamos fazeire um drama”

nasceu no Rio de Janeiro, em Vassouras. Mocinha, com uns 14 anos, veio com o Circo-Teatro

— só falava assim. Era bom ator.

Sudan e passou por Pouso Alegre. Aquela família grande... Passaram então por Caconde, terra

DA: Mesmo porque essa era a linguagem

do meu pai, estudante na época, onde ela o co-

usada nos dramas.

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de Agostinho Blaske a Ângelo Brandini no dia 06 de Março de 2007, Edson Lopes e Maria Rita Oliveira, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração da gravação: 01:18:00. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

129

Romiseta

História de Vida: Agostinho Blaske

BOCA LARGA

nheceu. Namoraram escondido... Ela apanhou

perto de Santa Rita do Passa Quatro. Quando vi

muito naquele tempo... Tinha de ser virgem. Namora para lá, namora para cá, não deixa aqui,

passarem pela porta logo notei a semelhança com meu pai. Idênticos: “Somos seus tios. Não ia ver

não deixa lá, até que fugiram. Ele com 19 ou 20 anos, fugiram para Rio Claro. Meu avô foi atrás.

os seus tios, não? Viemos até aqui”. Deram aquela bronca... falaram, falaram...

Pegou-os, trouxe de volta o casal com a polícia e fizeram o casamento.

DA: O seu pai já tinha morrido? AB: Sim. “E o Zé, seu pai?”. Disse “Infe-

DA: Com a polícia? AB: É, o tenente era bravo. Casaram-se.

lizmente morreu”, do jeito que não gostaria de vê-lo morrer, mas a vida é assim. “Conta pra

Meu pai se tornou um grande ator, mas bebia muito... morreu de tanto beber.

mim, morreu em algum acidente?”. “Não. De tanto beber”. Água no pulmão, na pleura, não

DA: Geralmente é o contrário, o circense é que se casa com uma moça da cidade. AB: Sempre é o homem que pega a moça.

sei bem. Tirava a água do pulmão dele com injeção... Continuou bebendo e virou pus. Então foi internado em Bauru. Fazia aniversário de 48 anos naquele dia 8 de dezembro. Vi-o

Mas ela passou a mão no “véio”... Ele era de uma família tradicional de Caconde. Seu pai

naquele domingo. Estava com o meu circo em Araraquara. Fui a Bauru no dia do aniversá-

era prefeito. Chamava-se Frederico Blaster. Nunca conheci meus avós porque deserdaram

rio dele. Foi a última vez que o vi.

meu pai. Quem se casava com moça de circo naquele tempo era cigano. Meu pai, antes de

DA: Morreu jovem. AB: Bem mais novo do que eu. Era muito

morrer, pediu que eu nunca fosse lá, já que ele foi deserdado, como cigano de circo.

grandão. Alemão. Fui naquele sanatório para ver meu pai. É terrível entrar num sanatório...

DA: E os irmãos? Nunca teve notícias? AB: Conheci meus tios muito depois da morte de meu pai, quando vieram ao circo. Fazia um show em São João da Boa Vista, num circo que também acabou, quando apareceram dois tios meus que moram em São José do Rio Pardo,

quando o vi estava pior do que quando o internei. Muito magrinho. Uma cama do lado de cá e outra lá. Uma turma de gente doente. Eu o vi. Ele conversou comigo. Falou para eu tomar conta das minhas irmãs. DA: E te falou aquela coisa de nunca procurar...

130 Doutores da Alegria

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

AB: Sim. Tornou a falaAB: “Não vá ver,

nhar um carro”. Ganhei esse carro e nunca vi.

meu filho. O dinheiro não é tudo. A dignidade vale mais. Pesa muito mais. No final da vida,

Era pequeno. Quem ganhou o carro foram os outros.

você vai ver que a dignidade vale mais que o dinheiro. O dinheiro, às vezes, compra muita coisa fútil, mas não compra as coisas boas do mundo”. Eu passei por situações apertadas, mas nunca fui. DA: Seu pai era palhaço também? AB: Meu pai fez uma dupla com a minha mãe. Tocava muito bem violão. Cantavam no circo. Era bom ator nos dramas. Foi para aquilo que deu, porque não era de circo. Tornou-se um grande ator, nas peças, nos dramas e era o excêntrico. Minha mãe era atriz, fazia trapézio, contorção e foi assim que aprendemos. DA: Como você virou palhaço? AB: Fazia trapézio. Saltava muito... Quando tinha de 7 para 8 anos, um carro foi lançado no Brasil com o nome de Romiseta... parecia uma bolinha. Meu nome era Bagacinho. Nome do palhaço do meu pai e do meu avô. Eu saltava muito. Entravam os artistas para saltar, fazer aquele charivari de acrobacia1, e eu pequenino saltava, de palhacinho, e fazia cair a calça e tal... Saiu esse bendito carro, creio

DA: Nunca dirigiu o carro! AB: Fiquei com o nome até hoje. Tirei fotografias com o carrinho, sobre o carro. Abria a porta pela frente. Só lembro que era amarelinho. DA: E o que fizeram com o carro? AB: Não sei. Sumiu. DA: Venderam? AB: Se venderam não sei. Mas o nome ficou até hoje. DA: Então você foi palhaço desde criança? AB: Desde os 6 anos. Porque o circo, quando você chegava nas cidades... Maringá, que hoje é aquele cavalo de cidade, era do tamanho de um bairrozinho muito pobre aqui de São Paulo. Muito pequenininha. A gente armava o circo no centro de Londrina. Era uma cidade pequenininha. Era muito difícil andar com o circo porque tudo era de barro. Não havia asfalto. A cidade tinha calçamento de paralelepípedo. De Londrina à Apucarana, por exemplo, com uma média de 30 km de uma

que em Santa Bárbara... Então, pegaram uma promoção desse carro para fazer e me coloca-

cidade para outra — Araponga, Apucarana, Cambé, Rolândia — demorava uma semana!

ram de palhaço. E passaram a me chamar de Romiseta, Romisetinha! “Se colar, ele vai ga-

Se chovia tinha que enrolar corda no pneu,

Doutores da Alegria

131

BOCA LARGA

pôr correntes. Demorava dois dias para fazer

DA: Ainda mais no circo. Você não tem

uma viagem de 25 km, de uma cidade para a outra. Íamos em cima de caminhão. Criança,

como encontrar. AB: Não, não tem. Estava ali pertinho, em

gente, os artistas, era muito difícil. Quando se chegava na cidade, na estréia, se contratavam

Araraquara, e ele em Bauru. Ele falou “Compre umas frutas para mim, filho”, muito baixi-

as bandas. Toda cidade tinha uma banda. Era bonito: quando dava 20h00, a banda vinha,

nho. Aquilo me deu muita tristeza. Fui ao centro. O sanatório ficava afastado, depois do cam-

saía do jardim, dava a volta no jardim e vinha para o circo. E vinha o povão todo atrás. Eu

po do Noroeste, o qual fui assistir jogar e me despedi dele. Voltei. Não tinha carro. Aluguei

lembro dessa época, em que meu pai me punha no ombro e acompanhava a banda até o

um táxi, fui comprar as frutas e trouxe de volta. Perguntei para o enfermeiro, para o médi-

circo. Só pra mim!

co. Eles falaram: “Agora ele está bem”. Peguei um pacote de dinheiro, de notas, e dei para

DA: Ele era o dono do circo? AB: Não. O dono era meu avô materno. DA: Então vocês herdaram o circo? AB: Não, não, não... não se herda. Você compra. Você sai, vai guardando o seu dinheirinho e compra o seu circo. O meu pai nunca comprou, nunca teve um. Meu pai só cuidava de beber, infelizmente... E, por fatalidade, vi meu pai dia 8, no aniversário dele. Vi e fui para casa. Voltei para Araraquara, para o circo. Morreu na terça-feira e foi enterrado como indigente. Aquilo foi o pior negócio do mundo, da minha vida. DA: Como morreu? AB: Não sei. Disseram não saber. Naquele tempo, a comunicação não era como hoje. Era muito difícil. Telefonar era muito trabalhoso.

132 Doutores da Alegria

ele. “Filho, esconde debaixo do meu travesseiro, porque aqui só tem ladrão”. Os caras estavam ali do lado: “Está vendo? Esse aí rouba o meu dinheiro.”. “Cala a boca, pai”. “Não, eles roubam mesmo. É tudo ladrão aqui”. Aí pus debaixo do travesseiro. Aquilo me marcou. Quando o circo mudou dali para Andradas, Minas Gerais, mandei minha irmã vê-lo. Ia estrear na sexta-feira. Falei: “Você vem na quinta-feira, que na sexta-feira vou estrear”. Ela foi. No dia em que ela tinha que chegar — na quinta-feira — para o circo estrear na sexta, eu descia para o circo. E ela vinha subindo. Quando me viu, começou a chorar. Eu parei, já na calçada da praça, e falei: “O que é, maninha?”. “Vai estrear amanhã?”. “Não, porque o terreno está muito cheio de água. Vou ter que mudar, passar para outro”. “Não vai estrear ama-

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

nhã?”. Eu falei: “Não, essa semana perdeu”.

ele morreu. Enterraram ali mesmo. Não vi. Es-

“Bom, se fosse estrear, eu não ia falar nada. Mas como não vai ...”. Ela enfiou a mão na

tava no Paraná, com outro circo.

bolsa e tirou: “Olha o dinheiro que você deixou com o pai. O atestado de óbito dele está aqui. Você o viu no domingo. Na terça-feira, ele morreu e o enterraram como indigente, enrolado em um lençol”. Passei a beber vinho. Ali tem muita fábrica de vinho. Trabalhava bêbado todo dia. Chorava muito. A única coisa que eu tinha era meu pai. E chorava muito. DA: A tua mãe estava viva? AB: Estava. DA: Estava no circo? AB: Estava. Não vi o enterro de meu pai. Nunca mais voltei a Bauru. Nunca, nem a passeio, nada. Tive um bom contrato para fazer na televisão de lá. Nunca quis ir. Nunca. E ali está enterrado meu avô materno.

DA: Como é que você chegou a formar o Circo Romiseta? Como passou de palhaço a proprietário de circo? AB: Fui para Buenos Aires com um circo americano, o Ringle. Em Mendoza, caí do trapézio e quebrei um braço em oito lugares e outro em doze. DA: Fazia aquelas loucuras sem rede também ou não? AB: Sem rede. Quebrei o braço, o nariz e a perna. Fiquei todo engessado, parecendo uma múmia. Eles me largaram lá. Mudaram o circo e foram embora. Fiquei lá jogado. DA: Você ficou em Mendonza? AB: Fiquei lá jogado. Passei tudo o que você puder imaginar lá na Argentina. Fome, vergonha, miséria.

AB: Um [ônibus da viação] Cometa o pegou...

DA: Mas o circo foi embora e nem falou para onde ia? Não avisou?

DA: Foi atropelado?

AB: Foi embora e me largou lá. Não tinha lei sobre esse negócio. Não tinha nada disso.

DA: Em Bauru também?

AB: Descendo de um ônibus, que deu ré e passou por cima da perninha dele. E cortou. Sarou e ainda trabalhou em uns 7 ou 8 dramas no circo do meu tio Jorge. Uma noite, começou a sentir dor na perna. Já tinha terminado o espetáculo. Levaram-no para o hospital e

DA: E você estava todo machucado. Não interessava, também. AB: Eu não podia falar nada... Não tinha nada. Só orava, pedia a Deus, à Nossa Senhora Aparecida. Consegui sair. Voltei para cá e

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

comecei a trabalhar com os braços engessados

o prefeito fazer uma festa de confraternização

mesmo, em outros números que fazia com as minhas irmãs. Achei que tinha que comprar

para os funcionários. Estava sentado perto do caixa. A casa em festa. Era véspera de Natal.

um circo para mim. Trabalhei na TV Coroado, em Londrina. A única televisão que existia no

O telefone tocou à 1h30 da manhã. Fui atender. A moça falou: “Pode deixar Sr. Romiseta

Paraná. Trabalhei, ganhei mais um dinheirinho. Fazia um programa infantil. Peguei o di-

que eu atendo aqui”. Todos já estavam mais para lá do que para cá. Vi que a moça ficou

nheirinho e guardei. Vim para São Paulo, para a TVS. Gravava o Domingo no Parque com o

branca. Eu estava conversando mas olhava. A moça falava e olhava muito para os lados e

Sílvio, o Bozo... Montava aquela abertura do Domingo no Parque. Ganhei um dinheiro.

olhava para mim. Eu falei: “Vem cá. O que está acontecendo? Algum problema?”. Ela falou: “É

Apareceu uma oportunidade em Garibaldi, Porto Alegre, de comprar uma churrascaria.

um problema Sr. Romiseta. Mas eu vou ter que falar. É sua sobrinha que está ao telefone”.

Fui fazer um show em Porto Alegre e vi, de passagem, aquela churrascaria com a placa

“Quem é?”. “A Simoni. Chegou da Espanha para passar o Natal aqui no Brasil na casa da

“Vende-se” e algum movimento. Falei: “Vamos jantar”, e entrei com minha mulher, que me

sua família. Quer falar com o senhor. Falei que era melhor deixar para depois, mas ela quer

falou: “Você podia comprar isso aqui”. Perguntei se vendiam: “Vendo, mas só se for dinheiro

falar agora. O telefone está aí.”. Eu falei: “O que foi, filha?”. Ela falou: “Bênção, tio. Como

à vista, chê”. “Quanto o senhor quer?”. “130 milhões”. “Dou 120 agora”. “Não, 120 não.

está? Tudo bom, tio? O senhor tem churrascaria, né? Feliz Natal. Um ano novo cheio de fe-

125”. “Então dou 110 agora”. Aceitou. Comprei. Estava indo de vento em Garibaldi, a ter-

licidade.” Começou a chorar. Pensei: “minha mãe mora em Sorocaba”. E falei: “Algum pro-

ra do vinho. Sábado e domingo eu saía. Pegava meus artistas. Porque ficaram comigo ali.

blema com a minha mãe?”. “Não tio, é mais grave. O problema é com o seu filho”. “Meu

Não mandei ninguém embora... Ficaram todos ali comigo. Um ficou de garçom, a outra de

filho? Qual é o problema?”. “Oh tio...”.

garçonete... Sábado e domingo eu fechava tudo e fazíamos um show. AB: Em 1986, aluguei a churrascaria para

134 Doutores da Alegria

Trabalhei muito para ele se formar e não ser de circo, para não passar o que passo hoje. Formou-se contador. Um bom rapaz. Não bebia, não fumava, não jogava. Tinha 26 anos e

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

seis meses de casado. Veio no meio do ano à

Aluguei um avião e comecei a andar atrás

São Paulo e dei um carrinho para ele. Um Fiatizinho, para ele ir ao serviço, ao escritório.

de bandido por aí. Em todo lugar que você puder imaginar, Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia.

Ela continuou: “O senhor tem que vir, urgente, para São Paulo.” “Por quê?”. “Porque

DA: E você encontrou?

ferraram o Lúcio”. “Ele bebeu, fez alguma coisa?”. “Não tio, mataram e cortaram a cabeça

AB: Não. Só que tem um problema sério. A mulher dele também sumiu. Ninguém sabe

fora. Você tem que vir aqui. A cabeça está de um lado e o corpo do outro.”

se a mataram ou se está com os bandidos. Não teve jeito. Estava gastando todo o di-

Corri para o aeroporto pegar um avião. Não tinha. Todo mundo festejava. Peguei o

nheiro. Tudo aquilo que havia conseguido em tantos anos. Comprei um circo mais uma vez,

carro e vim para São Paulo. Cheguei no outro dia. Passei no necrotério. O cara puxou e falou: “Aqui está o corpo, veja se é.”. “Pelo cor-

tive 2, 3 circos além desse, mas nunca a sério. Dessa vez, comprei bichos. Estava fazendo um palco só para levar teatro, porque gosto de te-

po já vi que é do meu filho. Mas e a cabeça?”. “A cabeça está ali naquela outra área”, e pu-

atro em circo.

xou. Colocaram a cabecinha dele ali, com os olhos meio entreabertos.

DA: Houve o temporal... e você perdeu o circo também? AB: Foi um vendaval, acabou com tudo.

DA: Mas você sabia quem tinha feito aquilo? AB: Mais ou menos, pelo que o delegado

Perdi tudo em São Carlos. Não tive como recuperar. Quando você cai é difícil. Não pense

falou. A filha do delegado passou pela mesma coisa. A história é terrível. O delegado falou:

você ... se você tem um par de sapatos, conserve-os, porque se você perdê-lo, não compra

“Se você achar os bandidos, mate. Tira a polícia do meio e mate, porque matei os bandidos

outro.

e, hoje, tudo o que eu tenho, gasto com advogados para não ir preso; fizeram isso com a minha filha, no último ano de faculdade dela. Acabaram com ela”.

DA: E essa churrascaria, você vendeu para comprar o circo? AB: Não. Eu estava perdendo tudo. Já não me dava mais prazer em nada. Eu tinha que comprar o circo para poder andar. A minha

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

esperança era comprar o circo e andar naque-

Eu acho que veio para modernizar. Um ponto:

le fundão do Mato Grosso, do Paraguai, para ver se eu descobria. Comprei o circo para isso.

ela tem coisas que não me prejudicam. Ela prejudica a sociedade com aquilo que é contra o

Vendi a chácara em Sorocaba, vendi a casa na Penha, vendi a casa no Jardim Jaraguá, uma

pudor, contra a dignidade humana. Cenas de sexo na televisão eu não me conformo. Você

casinha bonitinha, um sobradinho. Estava alugada. Vendi para quem morava lá. A outra

pode falar que isso é modernismo. Beijar na frente de uma criança ... isso não é educação. No

casa, da Penha, vendi para um colega meu de circo.

circo, você nunca viu isso. Nunca! O circo sempre foi recriminado. Chegava à

DA: Como é que chamava esse último circo? AB: Real de Paris Circos. Você vê como

uma cidade e as mulheres eram tachadas de prostitutas, vagabundas. Cansei de ver falarem

são as coisas. Eu tinha firma de shows, a The World of Marvel. Tradução em português: A

da minha mãe... Não existia mercado. Era armazém. Não existia supermercado e você ou-

Maravilha do Mundo. Comprei o circo, fiz outra firma, Real de Paris Circos Ltda. Perdi

via falaAB: “Você viu aquela mulher do circo mostrando as pernas? Indecente”. Se uma mu-

todo o dinheiro nisso, por causa dessas firmas.

lher de circo saísse com uma bermuda na rua, não entrava em uma casa de família nunca.

Quando vem a maré de azar, você pode contar. Se não tomar cuidado ela te leva tudo. A

Então você via esse tipo de coisa. Só que até uns anos atrás você tinha uma média de 7 ou 8 mil

minha consolação é que vi gente muito grande entrar no buraco. Os Matarazzo, o Circo Norte-

circos no Brasil. Hoje devem existir 400.

Americano, que ficou na pindaíba... o Circo Garcia acabou. Gente que vi milionária, dentro

Na minha família, todos eram de circo e trabalhavam. Saltavam, faziam trapézio, palhaço

de São Paulo, com o chapeuzinho na mão.

... eram bons atores, boas atrizes. Os que foram crescendo, foram tirando os filhos do circo.

DA: Romiseta, isso é interessante. Esse movimento do circo. Houve uma queda do circo como um todo. Por que você acha que isso

DA: Porque não queria que passassem... AB: Por aquilo. Só que a situação é outra.

aconteceu? AB: Brusca, brusca... se você perguntar para

Daí dizem por aí que o circo acabou. Não acabou. O Zani está aí para provar.

mim se foi a televisão, discordo. Colegas meus dizem isso: “A televisão veio para acabar”. Não.

136 Doutores da Alegria

DA: É verdade.

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

AB: Eu sou fã deles.

Não adianta estudar. Se pintar o rosto e você me disseAB: “Romiseta, vão ter 500 cri-

DA: O que você acha disso? O que acha, sem juízo de valor, dessa galera nova, desse

anças e 10 mil adultos”. Prefiro trabalhar para adultos, porque conto piadas, faço graça e mí-

pessoal novo do circo? AB: Eu não tenho mais condições finan-

mica. Criança não gosta disso. A criança gosta que você leve tapa, caia, se suje. Não faço

ceiras, mas se eu tivesse, montaria um circo igual ao do Zani. Um pouquinho maior, só de

isso. Trabalhar para criança, para mim, é horrível. Não sei fazer, não tenho esse dom. Se

platéia, e um belo de um palco, com a iluminação, a tecnologia de hoje. Você pode pegar uma

quiser trabalhar mímica num teatro, numa boate, pode ir, eu vou lá com você.

fita de vídeo e ir a uma Prefeitura. Não precisa nem conversar. “O meu espetáculo, meu cir-

DA: Independe de você ter nascido em

co, é esse. O senhor assiste para depois me dar um alvará”. Ele leva para casa, tem um DVD,

uma família de circo ou não. Às vezes, no pessoal mais velho — não em todos, mas em al-

assiste. Verá a categoria. Ninguém faz isso. Os palhaços são os piores possíveis. Parece que

guns —, eu já ouvi gente falaAB: “O sujeito veio do teatro: nunca bateu estaca”.

embasbacaram, pararam.

AB: Qual é o problema de não bater estaca? Porque o seu sangue puxa.

Os maiores atores de televisão, de filme americano, nenhum cursou uma faculdade de artes cênicas. Victor Mature, por exemplo, que fez Sansão e Dalila. O diretor italiano ia passando em uma avenida e o viu pegando uvas, de costas. Chamou e deu o cartãozinho. Procurava-se talentos. Não adianta você estudar se não tem talento. Vai tentar me ensinar a contar piadas, fazer graça, mas não consegue. Se eu não tiver o dom, você não ensina. Não existe quem faça rir. Tem que possuir o dom. Ter caída. Se não, não tem técnica que resolva.

DA: Voltando àquela história, você disse que acha que o circo decaiu porque as famílias pararam de incentivar os filhos a seguir o mesmo caminho... AB: Correto. Tomo isso como prova material. Gostaria que meu netinho estudasse para não ser o burro que o avô é. Gostaria que ele tivesse um anel de formatura no dedo. Fosse o que quisesse ser, mas que pintasse a cara. Meu pai me internou em Jacarezinho para ser padre. Não era de circo. O sangue dele não puxava muito para esse lado. O da minha mãe

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

puxava. Ele queria que eu fosse padre. Você já

DA: Como foi sua vida no circo-teatro?

pensou? Que bagunça ia ser! Fui internado. Fugi duas vezes. Cada bebedeira do meu pai,

AB: Era o galã e o palhaço. O trapezista novinho. Se era bonito? Não, mas tem tanto

eu fugia. Fazia uma bagunça desgraçada!

artista de televisão e de cinema que não é bonito, mas ficava bonito pelo papel que faz.

Eu contava piada. Não tinha jeito, eles morriam de rir. Achava que aquilo não era para mim... Sentar, ficar rezando, quietinho.

O mocinho sempre matava o bandido e a mulherada ... Quando saía na rua: “Ele é aquele

Não fico. Brinco, saio, volto. Levo a sério poucas coisas. Se você leva tudo muito a sério, você

que...”, pronto, já estava ali. Não agüentava ver uma sainha azul e blusinha branca de es-

não me tolera.

tudante. Esse era o meu fraco!

A vida não é antipática. Você a faz anti-

Nós levávamos um drama: “Os Transvia-

pática. Eu não vou discutir se “aquele ali não bateu estaca, não armou circo, não sofreu”. Eu sofri. Só mudava circo em cima de caminhão.

dos”, de Amaral Gurgel. Levávamos em qualquer lugar do país, porque é drama fino. Um médico, noivo da Lídia. A Lídia, que é irmã

Com os meus 12 anos, em cima de caminhão com minha mãe e meus irmãos. Você não vai

daquele que morre, é professora. O outro irmão dele é padre. Forma-se padre no dia em

ser um bom ator só porque não estava lá em cima sofrendo comigo? Não tem cabimento. O

que ele morre. O outro irmão é advogado. É quem vai tirá-lo da cadeia. E ele é aquele que

ator bom, se reconhece no falar.

nunca estudou. É a ovelha negra da família, o que trabalhou para todos estudarem, serem

Para fazer o papel de um personagem, os trejeitos daquele, a pessoa, a personalidade é sua. Não tem jeito. Por isso, existe o ator genérico e o ator não genérico. O genérico faz qualquer papel. Eu não faço. Se você me der um papel de amor para fazer, derrubo a peça. Vamos todos para o buraco. Se me der um papel de bêbado, de homem sério, dono da família, daquele que sofre.

138 Doutores da Alegria

gente. E ele é o que morre no dia de Natal. Eu fazia o promotor, quem o acusa. No primeiro ato, é só aquela briga do promotor e do advogado. Um defendendo o irmão e o outro acusando. Depois, punha a roupa de velho, branqueava o cabelo e ia fazer o irmão de todos. É o que morre no dia de Natal. Esse drama para mim era o charme. Quando você está morrendo no dia de Natal, a turma chegando e tal...

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

A mãe dele feliz, porque saiu da cadeia... E ele morre naquela hora. O papelzinho que eu fiz e arranquei aplausos, e eu faço bem toda vez, é o pai da Nely, que entra no primeiro ato e no final. O que prende De La Torre. O cômico. Como “Alberto, meu amor”, pegava na mão de Nely. E eu não sabia onde punha a mão. Segurava na mão dela: “Nely, eu te amo”. Quando ele está tirando a venda dos olhos da mãe, da avó da Nely, diz: “se os olhos nos mostram as suas belezas, também nos mostram as suas desgraças. Quando a senhora abrir os olhos...” Quando ela abre os olhos, vê o cadáver da neta, a Nely. Tira e olha...”Não acredito no que estou vendo”. “É a pura verdade”, fala o Alberto. “Ali está o cadáver de Nely”. As minhas peças preferidas eram “Os Transviados” e “O mundo não me quis”. Nós levávamos “A Roda dos Enjeitados” e “A filha do mar”. “A cabana do pai Tomás”, “Os dois garotos”, “Os dois sargentos”, “Heróis de Monte Castelo”, “Lágrimas de Homem”. Nele, o povo chora. A menina condena o pai, sem saber que está condenando. É muito bonito. DA: E agora que você não tem mais circo, como vive?

AB: É difícil. Não tenho jeito de falar. Eu teria que fazer pelo menos uns dois, três cachezinhos por semana em uma casa de família, um aniversário, alguma coisa. Nesta situação, sem ter um telefone fixo, é difícil. Quando morava aqui em São Paulo, tinha tudo. Dois, três telefones. Conforto. Dinheiro chama dinheiro. Se você não tem dinheiro, o dinheiro passa longe de você. Espalha, amigo. Se todos nós temos condições iguais... Você tem dinheiro, eu tenho dinheiro. Hoje você paga, amanhã eu pago. Nós vamos a uma festa, vamos a um bar, vamos a uma lanchonete. Se estamos numa festa e vemos que você vem chegando, eu falo: “Ih, vem vindo. Vamos dar desculpa, vamos sair.” É espalha-festa. Quando chega, falam: “que bom você ter chegado. Pena que eu já estou saindo. Tenho que buscar a minha filha na escola” “Para onde você vai?” “Eu vou para lá” . “Então você me leva, eu vou buscar a minha mulher.” “Espera aí, vamos nos encontrar lá no outro bar.” Eu me sinto assim, espalha-festa. Se você estiver em má situação, vai ser um espalha-festa aonde chegar. É duro, muito difícil. DA: Mas você ainda tem amigos de circo? AB: Não. Não tenho mais amigos. Sem dinheiro, não se tem amigos em lugar nenhum. Marquem o que eu estou falando.

Doutores da Alegria

139

BOCA LARGA

DA: Mas continua criando seus números? AB: Eu faço tudo. Você não pode criar

pular carnaval.” Estava numa baita pindaíba, na TVS fazendo “Alegria 81”. Com o dinhei-

nada. Tenho na minha casa o guarda-roupa que peguei da Disney. Aqueles bichinhos to-

ro, paguei um caminhão para ir buscar. Trouxe e pus na porta da minha casa. Pus uns plás-

dos da Disney, tudo que peguei. Estava em Vitória do Espírito Santo. Porque quando aca-

ticos, mas começou a apodrecer. Um sujeito da Espanha comprou parte do material. Ti-

bava uma temporada, tudo era levado a um campo e tocavam fogo. Não levavam de volta.

nha seis elefantes Dumbo da Disney e fiquei apenas com um. A primeira cópia do fusca

Fica mais barato, porque lá já têm tudo. Se voltassem no próximo ano, não iam trazer

Herbie de “Se o meu fusca falasse”, estava comigo. Vendi tudo. Mil cruzeiros, naquele

aquilo. Trariam guarda-roupa novo e uma nova montagem.

tempo.

Então um cara comprou isso. Entraram o

DA: Romiseta, você foi assistir o Cirque du Soleil?

Orlando Orfei e o Sérgio Venturini no meio. Começou uma briga. Quando chegou em Vi-

AB: Não. Mas acho que tudo que é moderno vale a pena. Eles ficam com esse negó-

tória do Espírito Santo, estourou tudo. Um fugiu para a Suíça, outro não sei para onde. O

cio de teatro e circo... Tudo aquilo que você pegar no teatro, serve para o circo. Eu acho

Orlando Orfei se escondeu aqui. Eu vim brigar com ele. O material ficou guardado lá. Tinha a

que o Cirque du Soleil está “dentro do esquema”. Criaram um circo moderno. É mais difí-

lista de tudo. O dono mesmo, o Sérgio Venturini, me deu uma procuração e fui até a

cil fazer o circo antigo funcionar. mas pode atingir todas as classes, porque no ato de vari-

mulher do governador. Conversei com ela em Vitória. Ela me cedeu dois advogados, que fo-

edades pode contar piadas para agradar a mocidade e os dramas teatrais para agradar

ram à Polícia Federal. Então peguei essas coisas e guardei em uma igreja evangélica. Des-

os coroas. Pode levar aqueles dramas pesados que ninguém quer levar, ninguém quer gastar

carregaram duas carretas de material lá dentro. Ficou um ano por lá. Aí os advogados vie-

hoje em dia. Têm medo. Gastaria em um circo de teatro tranqüilamente, modernizado como

ram: “Sr. Romiseta, o senhor não foi buscar aquelas coisas? A turma vai pegar aquilo para

está hoje. Você vê que as novelas de hoje passam do limite. Cenas de cama estão fora de cogitação. De resto tudo que é moderno é bom.

140 Doutores da Alegria

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

DA: Você acha que há mercado? Que um circo-teatro daria certo nos dias de hoje?

braços para trabalhar. “Serve-me alguma coisa como naquele dia que fomos para a guer-

AB: Tranqüilo. A novela está aí para mostrar.

ra? Fizeram aquela festa!!” A Julieta, que ia ser a mulher dele, serve a bebida e é “certi-

DA: Mas você não acha que haveria uma concorrência forte? Você acha que o

nha” aquela cena: “Julieta, sirva-nos alguma coisa como naquele dia em que nós partimos”.

interiorano desligará a televisão, na hora da novela, para ir ao circo?

Serve para todo mundo e chega nele. Dá para ele. Ele não tem braço. Ele olha para ela e diz:

AB: Desliga. Com os dramas, desliga. Estou falando. Agora, há pouco tempo, um cara,

“Julieta, me coloca o cálice na boca já que eu não posso”. Ela, com remorso, levanta, vai

em Aquidauana, Mato Grosso, me falou: “escuta, aqui tem muito povo do exército. Vocês

pegar o copo, começa a tremer e deixa cair no chão. “Não, não agüento”.

não tem algum drama que mexe com o povo?” “Tem! Você pode levar ‘O Desertor’, ‘Heróis de Monte Castelo’. Eu ensaio”. Levamos a peça ao teatro. “Heróis de Monte Castelo”. Forrou de gente. Só aquele povo do exército. No último ato, depois de muita briga, dois irmãos vão para a guerra. Um deserta para namorar a mulher do irmão e acaba casando com ela, enquanto o outro está na guerra. Trai o irmão. A chegada do irmão é bonita: vem sem os dois braços, passa pela porta. Um não sabe da situação do outro. Quando começa o diálogo, via-se aquele povo do exército chorar. “Oficininha!” O que retorna, olha para a oficina. O outro irmão já está com remorso, então fala: “Ricardo, você já viu sua oficina? Sim, mãezinha. A minha oficina...! Até parece que ontem eu estive nela.” Mas ficou anos na guerra. E olha para o corpo, porque já não tem os

Ele assusta. Aí é que ele vai tomar ciência de tudo que está acontecendo. O povo todo já sabe. O irmão ajoelha e pede: “Meu irmão Ricardo, me perdoe. Sou um traidor”. “Sim, meu irmão. Traíste duas vezes. Traíste a tua pátria e traíste o teu irmão. Deixei na guerra dois braços, um por mim e outro por você, que não foi. És covarde duas vezes meu irmão”. A noiva fala: “Mate-me Ricardo”. “Eu só poderia te matar com os olhos, mas debaixo dessa farda tem um boneco de gesso que agora não tem coração e nem alma, Julieta”. Ele vai falando:”Mãezinha, abre a porta. Vou embora”. “Se você gosta da tua mãe, fique meu filho”. Ouvia todo o povo do exército e aquelas senhoras ali sentadas chorando. O ator começava a falar e chorar. E ela doida para não chorar, tem dia que pegam você na

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

“veia” boa. Você chora mesmo sem querer, vendo os outros chorar.

um palco do jeito que você pensasse de bonito. Camarins atrás, todos com chave para os ar-

Pois nós levamos esse drama a semana

tistas. Não seriam poltronas, mas quatro cadeiras confortáveis e uma mesa. Tirava a ban-

inteirinha na hora da novela. Todo dia, às 8 horas. Iam buscar o povo do Paraguai para

cada fora, as cadeiras do meio. Seria uma mesa e quatro cadeiras, e uma florzinha no meio.

assistir o drama também. Não tinha [interesse na] novela. O povo ia. O Cirque du Soleil cus-

Uma garçonete muito bem vestida, uniformizada, para servir. Sem correr na bancada pra

ta 200, 300 paus e o povo vai. E não paga 5 para assistir eu e você ali.

vender. Com whisky, bebidas finas.

Fui trabalhar em uma escola ontem cobrando dois reais, incluindo três espetáculos de graça. E foi difícil pagar. O povo paga o que é bom. Eu censuro os meus colegas. Ao invés de fazer aquilo que fazem na cooperativa , deviam melhorar o espetáculo. 2

Põe roupa no espetáculo. Iluminação de última geração. O povo não vai sair de sua casa com conforto, TV a cores, para pisar em uma terra cheia de barro, numa cadeira que não é confortável, para assistir um espetáculo que não condiz com aquilo que é anunciado. “Engraçadíssimos palhaços”: são todos sem graça; “Lindas garotas”: tem duas velhas; “Animais de todo o tipo”: não tem animal nenhum, só cachorro. Se montasse um circo, sabe como ia fazer? Se tivesse condições, palavra de honra. Ia ter

142 Doutores da Alegria

Agora, você vai ao circo para beber pinga, batidinha e comer pipoca. Tudo é a tradição. O pirulito e a pipoca são a tradição do circo, mas você tem que ter o jeito. Ter higiene. Hoje em dia, tudo é muito higiênico. Sabe qual seria a propaganda de um circo, hoje em dia? Um sanitário muito bem feito, com espelho, porque a mulher é vaidosa. A mulher quer fumar escondido, ou conversar com a outra colega. Entra no banheiro, senta ... tem que ter um sofá. Senta no banheiro. Vai ao espelho, arruma, ela dá uma retocada na maquiagem. Vai ao sanitário, à pia ... uma toalhinha, sabonete, tudo. Quando chega em casa, fala: “Você viu, bem? Até o banheiro do circo é melhor do que esse nosso. Você viu só?”. Ela comenta. A outra vem porque ela quer ver o banheiro. Ela não quer ver o espetáculo. Se você senta em uma cadeira confortável. Não é mais aquela bancada que passa gente

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

por baixo, que entra aquele ventinho. Você se senta ali, confortável. Assiste ao espetáculo

gem e senta. A tradição é a serragem. Trata o cara bem. Põe duas pessoas descentes para

com a sua família, tomando um negocinho. Aplaude sossegado. Isso modernizaria. Assim,

atender. Se você é bem atendido, volta.

hoje você vem. Amanhã ou depois, volta. Vai indicar. O circo pode até abrir à tarde. O cara vai ao circo: aquela bancada, poleiro, a cadeira suja. Senta e vê um espetáculo medíocre, ruim. Não critico os meus colegas. Critico o jeito de tocar. Aqueles que tocam o tipo antigo. Quer tocar o tipo antigo? Toque, faça uma bandinha. Contrate uma bandinha. Põe o uniforme nela como os americanos. Todo mundo entra de smoking dentro da barreira. Os empregados com macacão com o nome do circo. O cara que vai anunciar está de smoking, de Summer, de fraque ou casaca. O apresentador tem que estar de cartola, bota, culote branco. Mas hoje não se toca nem o tipo antigo, nem o moderno, coisa alguma. E quer que o povo vá naquela boquinha, compre o ingresso e assista? Tem ainda aquele palhaço sem graça. Aquele troço sem graça, o mesmo que você viu lá no circo do ciclano. Acho que tudo se modernizou. O circo se modernizou. Se chegar um circo aqui na cidade, se você entra e se sente bem. Você sentou e não é forrado, não tem carpete, mas tem a serragem, que está limpinha... Sente o cheiro da serra-

Se você vai ao circo com sua família e é bem tratado, se sente bem, eles voltam. “Vamos ao circo hoje?. “Hoje vai passar um drama, rapaz”. “Eu ouvi falar nesse drama. Vamos?”. “Vamos”. Gostou? Amanhã, você anuncia e ele vem. O cara sai, chora um pouco, ri. Amanhã volta. “Ah, vamos para o circo?”. “Vamos.” “Ah, é bom. Você viu como trabalham?” Há quantos anos eu não vejo isso! O circo não acabou. Acabou aquilo que você faz atualmente. Primeiro, cuida do que você está vendendo. Vende um bom material que amanhã redobra o preço. Não vale a pena discutir o teatro, o circo, o circo-teatro. São a mesma coisa. Para mim, não há diferença. Todos dependem do público e o público depende de você. E se o dono do circo ou do teatro ganha bem, o artista recebe bem. Se o dono da companhia vai mal, o artista recebe mal. Mas quem sou eu para criticar?! E a situação que eu ocupo hoje na sociedade não é de criticar ninguém. Quem é bom, quem está errado, quem está ruim. Todo mundo quer ganhar. Você quer ganhar. Você quer, eu quero, mas tem hora que

Doutores da Alegria

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não é só o dinheiro que faz isso. Às vezes, uma apresentação pode repercutir lá na frente.

pois fizemos mais filmes. Trabalhei em “O Sítio do Pica-pau Amarelo”. Fomos fazer o filme

DA. Qual era o circo de sua família?

em Divinolândia, há muitos anos. Não sei qual era a companhia. Nunca assisti. Vi uma vez

AB: Teatro América e também Circo de Lauro. Circo-Teatro Rosário, Circo Sudam.

no cinema da Avenida Ipiranga, onde era o Banco Econômico. Tinha um desfile na fazen-

Depois vieram outros. Tive meia-dúzia meus. Nesse meio, comprava um, largava, compra-

da do Monteiro Lobato. A galinha andava de botas, o peru andava de sapatos. Coisas de

va outro. Depois foram os circos grandes. Peguei o Circo Águias Humanas, o Circo Garcia.

Monteiro Lobato.

Circo-Teatro Brasília, Circo dos Irmãos Bocute, Circo Irmãos Melo, que já é da parte de outra

DA: O pessoal da TV ficava de olho no pessoal do circo, como caça talentos?

família, da minha irmã casada com um rapaz da família dos irmãos Melo. Eram oito irmãos

Não, eu nunca soube disso. O que se envolvia um pouco no circo era o teatro, mas era

Melo. Depois ainda tivemos o Circo Tiane que hoje está no México.

muito difícil. Saíam muitos do circo para o teatro. Muitos atores que você vê por aí traba-

Todos eram circos de tiro. O Circo-Teatro Garcia depois se tornou circo de tiro. Circosteatro foram o Circo de Lauro, Irmãos Bocute, Irmãos Melo, Rosário, Teatro América e o Pavilhão Amácio Mazzaropi. DA: Você trabalhou com o Mazzaropi? AB: Trabalhei. Quase minha família inteira trabalhou. Fizemos um filme. O Betão Ronca Ferro. Antes da TV Tupi fechar, tinha a novela Beto Rockfeller. O Mazzaropi fez a comédia, a paródia: “Betão Ronca Ferro”. Foi feito no Circo Giglio e em um circo em Taubaté, lá perto da fazenda do Mazzaropi mesmo. De-

144 Doutores da Alegria

lharam no circo. O picadeiro do circo é muito difícil. O teatro se torna muito mais fácil, quando você sai do picadeiro. No picadeiro, você está no meio deles. Não tem reserva nem separação nenhuma. É muito difícil. Sente quando o povo está gostando ou não. O povo responde. No teatro, você vê o povo lá embaixo e trabalha aqui no palco, que é todo seu. Você tem a cena. No picadeiro, o povo está em volta. No circo você vê o povo em cima, na sua frente, do teu lado, atrás. Para um mágico trabalhar, é difícil porque os truques geralmente são escondidos na parte de trás. É onde são manipulados. Para um mágico trabalhar no

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

circo é dificílimo. O palco do Tiane — para mim o maior circo que tivemos no Brasil — agora está no México. Vão para Las Vegas montar um circo de cimento armado fixo.

xo. Tudo isso para uma coisa simples. Mas tem que criar, tem que gastar. Você pode pôr um biquini na coitadinha,

DA: Os circos são empreendimentos caros?

um sutiã, passar batom... Ela vai lá dentro, passar fogo aqui, passa fogo ali, passa fogo nas

AB: Não acho caro. Acho caro aquilo que você vai fazer. Na fábrica de lona, dá para com-

costas, passa fogo nas pernas, depois sopra e pronto, acabou. Isso é o que se faz por aí. Já se

prar um circo, hoje, por 20 paus. O que se faz dentro de um circo é caro. Como cortina de

fazia em 1900! E nada. Faziam quando era garoto e continuam ainda. É necessário que

veludo, jogo de luzes bonitas, um palco de acrílico para pôr a luz por baixo, para pôr a televi-

você acompanhe a evolução.

são..., então é muito difícil. E para um bom teatro, hoje em dia, um bom espetáculo, você tem que fazer isso. Qual é o número mais medíocre que temos no circo? É o número de fogo, a pirofagia. Até o cara que não é artista faz aquilo. Mas para o povo é bonito. Para nós, é o mais comum. Não me sujeito a fazer isso. Prefiro parar com o circo. Para nós, é feio e não é caro. Se você quer montar um número, como esse, como montaríamos se todo mundo faz? Vamos montar um número desses como ninguém faz. O que vamos gastar? Aquela moça vai fazer o número de fogo com uma roupa de índio muito bem feita. Vamos pegar dois bumbos e colocar dois rapazes vestidos de índio com aqueles cocares num canto batendo, com um balé acompanhando. Para criar suspense e atmosfera. Com uma fogueirinha, como os índios fazem, feita de lâmpada vermelha por bai-

TRANSCRIÇÃO

PORTUGUÊS



ÁUDIO: ENTREVISTA B – História de Vida: Romiseta – 00:33:00 DA: E Romiseta, me diz uma coisa, você conheceu a sua senhora no circo? Ou não? AB: No circo da minha família. Trabalhando. Foi trabalhar comigo. E aí meu filho, namoro é fogo. Fazia trapézio, contorção e arame. Fazia a corda indiana. Estava cheio de rapazinhos no circo, um mais bonitinho do que o outro. Um é trapezista, outro é palhaço, outro é ator, outro é equilibrista. DA: Qual foi o bom palhaço que você viu trabalhando? Você sabe dizer? AB: Um bom palhaço que vi, em primeiro lugar, meu tio já falecido Lingüiça. Depois vieram outros, inclusive um outro Lingüiça, que caía com um tapa e ficava rodando com a ca-

Doutores da Alegria

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BOCA LARGA

beça no chão. Depois veio Palpitoso, grande palhaço, naquele tempo. Já faleceu. Piolim é

pressão. Aquilo não é teatro, é um negócio de striptease. Aliás, todos os teatros estão virando

outro grande palhaço. Um ídolo aqui em São Paulo. Existe um muito melhor, O

isso. Era um camarada que você conversava com ele cinco horas e ele tinha assunto. Fazia

Chincharrão. Pai do Torresmo, que foi um mestre deles todos.

rir, chorar... estudadíssimo. Aqui em São Paulo, não teve sorte. Em televisão, teatro e cine-

Esses palhaços eram bons tanto no teatro — faziam partes cômicas nos dramas —, como em comédias. Em entradas cômicas, saltavam ... eram todos bons. O Arrelia foi um bom ator, um palhaço mais de televisão. O Carequinha era de uma família tradicional de circo, bom mais para criança. Cada um tinha um estilo, uma especialidade. Tivemos grandes palhaços, grandes cômicos e excêntricos. Existiam aqueles intermediários, que pegaram mais nome, e

ma era o maior. Morreu esquecido, largado em Bauru. O palhaço de circo também não aparece. É o que acontece com os cantores hoje em dia. A minha mocidade foi com Nelson Gonçalves. Namorando e cantando suas músicas. Morreu esquecido. Você viu o que aconteceu com o Wanderley Cardoso? Saiu da mídia. A mídia encosta.

tiveram mais chance de aparecer. Uns na mídia, outros pelo rádio, televisão, cinema.

Palhaços têm aos montes na rua. Você vê nas portas de lojas, nos faróis. Pega esses ca-

Trabalhariam hoje em qualquer lugar do mundo, qualquer programa. Trabalhavam mais em

ras e coloca em um picadeiro, coloca em um teatro... Não funciona. Eles nem sabem como

circos do interior. Outros menos conhecidos, mas grandes artistas, grandes cômicos. A gente

entrar. Sabem lá no meio da rua, na porta da loja. Não sabem, não vão encarar. Vê aquele

fala em atores... eu perdi um grande amigo, há pouco tempo, o maior ator que conheci em

povão em cima dele, todos os olhares ali em cima e a perna bambeia.

toda a minha vida. Chamava-se Ilson Nogueira da família

Para mim, hoje em dia, o maior showman que o Brasil tem chama-se Moacir Franco. Pre-

Nogueira. Morreu em Bauru, esquecido. Trouxeram-no para São Paulo e o colocaram no

cisa vê-lo num palco, numa televisão comandando um programa. Mas parece que não dão

Teatro 5ª. Avenida, Teatro Santana, sem ex-

um programa para ele. Para mim o dom do

146 Doutores da Alegria

- História de Vida: História de Vida: Agostinho Blaske -

Moacir Franco é único. Outro Sílvio Santos não vai nascer. Assisto pouco ao programa

que eu gosto é o primeiro. O da Marta que trai o marido e depois vira heroína. Assisto aquele

dele. Briguei muito com ele. Estava sempre errado. Quem era eu para brigar com ele?

quadro, mas já está ficando repetitivo. Por que não colocam o Chico Anysio? Ele é o maior

Briguei. Não devia, mas fiz.

cômico desse país. O que aconteceu com ele? As crianças e os jovens não sabem quem é. Esse

De palhaço eu posso falar. De artista de circo eu posso falar. Eu sei. Vivi a vida inteira no circo. Às vezes, falo errado, mal. Às vezes, coloco a palavra errada no lugar certo. Às vezes, coloco a palavra certa no lugar errado.

negócio de tradição já era. Se tradição é viver na pindura, eu sou tradicional. DA: Muito obrigado. AB: Disponha do teu amigo aqui.

Mas é o que sinto naquela hora. É o que vivi, o que passei, como passei. Você assiste Zorra Total para rir? Quem quer rir não assiste aquilo. O único quadro

Notas Evoluções acrobáticas executadas por um grupo. Nota do revisor. (1)

Doutores da Alegria

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São Paulo, 19 de abril de 2007. Gravação para o projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimentos de José Barroso, concedido a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia de Março de 2007 no estúdio do Museu da Pessoa.net, à rua José Barroso: O meu nome é José Barroso. Nasci em São Paulo, em 17 de agosto de 1929. Filho de Pedro e Adelina Barroso, nascidos em São Paulo e descendentes de italianos. Morei no Bom Retiro, na Rua da Graça, no tempo em que ainda existiam os lampiões a gás. Eu tinha mais ou menos uns 11 anos quando comecei a sentir prazer em conhecer o circo, porque meu pai era operador de cinema e, na minha adolescência, ele me levava ao trabalho dele. Eu assistia aqueles filmes do Gordo e o Magro, do Charles Chaplin e me sentia com vontade de representar.

No bairro do Bom Retiro, apareceu um circo chamado Circo Teatro Arithusa. Ai Meu Deus, que circo! Eu me apaixonei por esse circo. Tinha 11 anos, mas naquela época meu pai era pobrezinho e eu não conseguia ir ao espetáculo. Então, o que aconteceu? Houve um caso pitoresco. Eu pegava o bonde que custava 200 Réis. Esse circo ficou armado na Av. Rudge, no Bom Retiro. Os palhaços eram uma coisa linda. Foi em 1940. Uns meninos e eu, por curiosidade, começamos a freqüentar a frente do circo. Um dia nós achamos que tínhamos de entrar de qualquer maneira. Nunca me esqueço da peça que iam passar: "Ferro em Brasa". Era muito linda. O que aconteceu? Combinamos e varamos o circo por baixo do pano! O circo tinha uma saliência de madeira por baixo e ao redor. A gente tinha que fazer buraco no chão. Eu era muito levado, não tinha dinheiro e estava louco para assistir o circo, para ver o que era aquilo. Imaginava que

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimento de José Barroso a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 19 de Abril de 2007, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração da gravação: 01:20:00. Transcrição por Global Translations. Doutores da Alegria

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Gachola

História de Vida: José Barroso TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 01:20:00

BOCA LARGA

lá aconteciam muitas coisas boas. Todo mun-

las e guarda-chuvinhas de chocolate. Sentia-

do fez os buracos, passaram e eu fiquei por último. Quando fui passar, senti alguém me

me orgulhoso por estar dentro do circo. E via os espetáculos. Oh, quantos espetáculos! Nun-

pegar a perna. Naquela época meu pai era pobrezinho e me comprou um sapato que era

ca me esqueço de "Ferro em Brasa", "Honrarás tua mãe", "A Dama das Camélias", "Jane Eyre",

de pneu de borracha. Eu tinha muito orgulho daquele sapato, quando o vestia. O rapaz co-

"Os Irmãos Corsos", "Os Dois Sargentos", "O Sinal da Cruz", "Lágrimas de Homem", "A

meçou a puxar, a puxar, e eu não sabia quem era! E eu queria entrar! O circo estava lotado,

Paixão de Cristo". Assistia e convivia com eles. Vendia, ficava ali, cheguei a abrir até cortina!

consegui entrar e o sapato ficou na mão da pessoa. Entrei no circo, sentei na "geral" e es-

Conversei muito com o palhaço Tomé, um grande amigo também. Mandava-me comprar

condi o pé porque tinha perdido os sapatos.

bala, cigarro... Eu vivia no circo...

Escondi o pé até que o porteiro me achou.

Depois de seis meses o circo foi embora. Fi-

Ele até foi muito bom comigo, mas não quis me entregar o sapato. Assisti à peça "Ferro em Bra-

quei um pouco triste, mas veio o Circo Irmãos Queirollos e novamente os dramas. Fiquei mui-

sa", me apaixonei por aquilo, assisti o palhaço. E como era bom, aquele palhaço Tomé! Ele tinha

to entusiasmado com aquilo. No fundo do quintal da minha casa, arrumava pau de vassoura e

uma característica: não precisava nem se pintar. A voz dele já era engraçada. Eu me senti orgu-

fazia as estacas, pegava os lençóis da minha mãe, as cobertas... naquele tempo, tinha as ba-

lhoso de ver aquele espetáculo quando criança. Mas fui para casa só com um pé de sapato.

las do Piolim, o palhaço... e as balas Craques, que eram de futebol, e a gente colecionava. En-

Meu pai deu uma bronca danada quando

tão, eu cobrava para entrar no meu cirquinho, dentro de casa no fundo do quintal. A turma

chegou em casa. Perguntou onde tinha deixado o sapato. No circo. Isso foi num sábado. No

entrava e eu fazia acrobacias, pulava - porque era elástico -, e gostava. Lembrava do que o pa-

domingo, era matinê, e a gente foi lá. Meu pai conversou com o porteiro, pegou e me deu o

lhaço Tomé fazia e fazia também.

sapato. Conclusão: me chamaram de lado, se eu queria trabalhar no circo e vender balas.

Doutores da Alegria: Como era o Bom Retiro?

Gostava do circo, então comecei a vender ba-

JB: No bairro do Bom Retiro, na Rua da

150 Doutores da Alegria

- História de Vida: José Barroso -

Graça, onde morava, às 6 horas da tarde vinham

bém, começaram a aparecer duplas sertanejas.

os lanterninhas colocar gás no lampião. Não havia luz elétrica ainda. Meus pais ficavam do

Eu fazia um show de variedades e vinham os sertanejos. Se apresentavam, cantavam, tocavam,

lado de fora conversando — no tempo de calor — na rua. Pegavam umas cadeiras e iam para

e entrava o palhaço. Eu trabalhava com um palhaço chamado Bonguinha, já falecido. Mais tar-

fora, conversar. Não havia televisão. A única coisa que havia era o rádio, e a gente assistia

de me envolvi com o circo Romiseta.

"Nhô Totico", "Alvarenga e Ranchinho", "Jerônimo, o Justiceiro do Sertão". E o que nós fazíamos, eu e aquela molecadinha sapeca? Os coitados iam acender os lampiões de gás, que eram quadrados e tinham uma altura de uns 3 metros. Depois, nós subíamos no lampião para apagar. Vinha bronca. Depois iam lá e acendiam de novo. Passou-se o tempo e veio a luz. Era uma felicidade, aquela luz na rua, tudo claro. Com 14 anos escrevi minha primeira peça:

DA: E como eram os circos de sua época? Lotavam? Como as famílias iam ver? JB: Era uma beleza. No Circo Irmãos Queirollos acontecia primeiro um show de variedades, vinham palhaços e depois as pessoas pegavam as cadeiras e colocavam na frente do palco. O picadeiro era para a palhaçada e o drama no palco. Naquele tempo, existia a colcha acústica. Não sei como se chama o alçapão em que se fazia o ponto, em que se transmitia os textos, como "Jane Eyre" e "A Dama

"O Louco e a Cruz". Uma peça bonita que tenho até hoje. A levava aos teatros de arena, na

das Camélias", para os artistas.

cidade, e em muitos lugares. Comecei a escrever e fazer teatro amador. Censurei e registrei.

O que acontecia? Passava-se um drama e, no intervalo, a gente ia vender coisas por lá.

Representava e montava shows nas entidades paroquiais.

Tudo lotava. As pessoas corriam com as cadeiras para a frente do palco para assistir o drama.

DA: Como sua família via isso? JB: O meu pai gostava muito, a minha mãe também. Eles gostavam demais, me acompanhavam e davam força. Compravam roupas para mim... me vestia com aquelas roupas de palhaço, largas, e pintava a cara. Naquele tempo, tam-

A gente assistia as peças... chorava, ria... Nunca me esqueço que no Circo Arithusa, assisti "O Guarani". O Tomé fazia papel de índio. Para o pessoal rir, tinha umas palavras que ele falava que a gente achava engraçado, era uma

Doutores da Alegria

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sátira. A gente gostava muito. O circo era assim, bem estruturado, com lonas bonitas. Quan-

me dava 200 Réis e eu ia comprar bala. Enchia o bolso de balas! No Bom Retiro havia vários

do fui morar na Rua Anhaia, no Bom Retiro, apareceu novamente o Circo Teatro Arithusa.

campos de futebol. O bonde passava na Avenida Rudge. Todas as ruas eram de terra. Da

Só que o Teatro Arithusa não apareceu mais com lona. Era um pavilhão de zinco, onde se

Avenida Rudge até a Casa Verde. O bonde saía do Largo São Bento, na Rua Florêncio de

lia: Circo Pavilhão Arithusa. Fui me desenvolvendo, escrevendo peças, brincando com as

Abreu. Nunca me esqueço do Bonde 55. Como não tinha dinheiro, a gente "chocava" o bon-

pessoas, contando piadas, até que comprei um circo também. Chamava-se Circo Comanche,

de. O cobrador vinha cobrar de um lado, e a gente corria para o outro lado. Descia do bon-

mas já estava casado, com vinte anos.

de para ir ao circo.

DA: Era muito namorador? JB: Gostava de namorar. Era um pouco tí-

Arrumei um colega que morava em Jaú. Trabalhava numa fábrica de colchões. Apren-

mido, moço, jovem... penteava o cabelo... Naquele tempo, o pessoal do Bom Retiro, a "Tur-

di a fazer colchões. Ele recebia, a cada quinzena, uma carta lá de Jaú, da namorada. Falava

ma dos Cabeleiras", enchia de vaselina, deixava o cabelo bem cheio com aquelas calças com

para ele: "Geraldo, só você recebe cartas, eu não recebo nada!". "É, tem uma moça lá que

boquinhas fechadinhas embaixo. Era um orgulho. Eu me achava muito só, às vezes. O que

chama Helena. Mande uma carta para ela". Essa colchoaria se chamava Colchoaria Elegan-

fazia? "Vou ver se arrumo uma namorada". Me trocava bonitinho e andava nas ruas. Rua

te, na Rua Tenente Pena. Então mandei uma carta. Veio a resposta. Queria me conhecer e

da Graça, Rua Javaés, Rua Mamoré... Ficava andando e via se encontrava alguma pessoa

queria que mandasse fotografias.

para eu conversar, alguma menina.

Começamos a nos corresponder. Mandei

Havia muitos italianos no Bom Retiro.

uma fotografia, que tirei na Fotos Leite, na Avenida São João. Ela só me enviou cartas. Come-

Quantas vezes, na paróquia da Rua dos Italianos, eu fazia peças teatrais e percebia italianos

çou a pedir que eu fosse para Jaú conhecê-la; o meu amigo Geraldo tinha casa lá e uns paren-

na platéia. Havia o bonde a 200 Réis. No tempo do Getúlio, o dinheiro valia muito. Meu pai

tes na cidade. A gente combinou, na véspera do Natal, de ir para lá. Comecei a juntar di-

152 Doutores da Alegria

- História de Vida: José Barroso -

nheirinho, trabalhando. Arrumei uma mala de papelão. Se molhasse, encolhia toda. Pus umas

DA: Qual era o circo? JB: Circo Comanche. Era mais ou menos

roupas e combinamos com ela às 7 horas da noite, no coreto de Jaú. Eu não conhecia nada.

anônimo, mas aonde ia o circo lotava. Era gostoso. Uma família trabalhava comigo: meu

Ela era Bonita. Tinha cabelo comprido. Fiquei entusiasmado. Eu tinha 17 anos. Na véspera do

cunhado, minha irmã... A gente formou uma família e fomos fazer shows.

Natal, pegamos o trem, demoramos 12 horas para chegar. Fiquei na casa dele, me preparei, a

DA: Era muito caro comprar um circo?

gente jantou lá. Ele me apresentou para os pais, que já conheciam a moça e já estavam sabendo

JB: Não. Na época lutei bastante, guardava dinheiro. Sempre fui um rapaz econômico.

da história. Falaram para mim: "Ela está desesperada no coreto, esperando...". Fui, conheci a

Fiz esse circo no Imirim. Tenho até os contratos em casa. Comprei lona, mastro, tudo. In-

moça, começamos a conversar. Ela era muito tímida, mas eu era de São Paulo e me destacava

clusive, um artista argentino foi armar o circo a primeira vez para mim, em um pátio cha-

mais. Namoramos.

mado Cobra Coral. Depois fiquei um pouco cansado e vendi o circo para um tal de

Ela me apresentou o pai. Tinha uma agência de carros e uma fazendinha. Conheci a fa-

Orlandinho, a quem ensinei a trabalhar como palhaço e a dirigir; hoje o filho dele tem um

zenda, arrumei um quartinho e fiquei dormindo por lá provisoriamente. Passei o Natal com

grande circo. Fiquei muito tempo sem circo. Trabalhei em teatro de arena, fazendo shows,

eles e vim embora. Mandei tantos presentes para ela, mas o destino é um troço ingrato

palhaçada. Entusiasmava-me com as crianças, brincava, fazia shows de aniversário e conhe-

mesmo. Meus pais mudaram para a Rua Zilda - em frente havia uma festa de São João, em

ci os palhaços que, agora, são os meus amigos: Romiseta, Chuchu, Reco-Reco, Pururuca,

que se levantavam mastros com aquelas três bandeiras... Em frente a essa nova casa, mora-

Piolim, Picolino, Futrica, Rapa-Rapa.

va uma moça por quem comecei a perder a cabeça. Fui esquecendo a de Jaú e acabei casando com a vizinha Isaura. Casei e tive circo por dois anos. Andei... viajei para muitos lugares: Jaú, Bauru, Pederneiras, Andradina, Marília, todos esses lugarezinhos.

O senhor Novais era empresário de circo, arrumava shows para nós, nos encontrávamos no Bar do Café, no Paissandu. Toda segundafeira, os artistas de circo e os donos iam procurar shows, tratar cachês.

Doutores da Alegria

153

BOCA LARGA

O Sr. Novais tinha um escritório com as-

lhamos muito juntos. Nós arrumávamos pro-

sociados do circo. Naquele tempo, eu tinha carteira da censura federal, valia muito. O Sr.

paganda, salão, até que ele casou e foi morar em Francisco Morato. Eu precisava de um par-

Novais gostava muito da gente. Arranjou muitos shows para nós, muitos circos. "Sr. Novais,

ceiro. Arrumei um e falei: "Como é que eu vou me chamar agora?". Eu me entusiasmava...

eu estou sem trabalhar." "Espere um pouquinho. Ó, amanhã você vai ao Circo

Aprendi muito com esse palhaço Bachola. Aí tirei o "B" de Bachola e pus o "G": ficou Gachola.

Queirollo. Amanhã, no Circo Marília..." A gente chegava, pegava as propagandas, entregava lá e fazia os shows. Às vezes, lotava, às vezes não. Cheguei a dar dinheiro para dono de circo comer.

Fui me acostumando com Gachola. Na época, fazia dramalhões: "O Ébrio e a Boneca", "O Encarcerado", "O Louco e a Cruz", "Adeus minha Mãe", todas peças minhas. Meu apelido era Zé das Lágrimas.

DA: De quais circos participou? JB: Eu participei um pouco com o Romiseta do Garcia, no do Xereta, no Circo

DA: Por quê? JB: Porque fazia o pessoal chorar. Nos mo-

Joana D'arc da Dona Lola. No Garcia conheci muito a Dona Carola. Gostava de ver os chim-

nólogos que eu fazia, percebia que as pessoas ficavam com lágrimas nos olhos.

panzés dela. Ela amava aqueles macaquinhos. Circo do Orlando, do Orlandinho. Participei também do circo do Sérgio Malandro. Comecei a trabalhar por minha conta, fazer teatro, circo... Ia a essas paróquias, até que fiquei sócio da cooperativa paulista de circo. Conheci a cooperativa no Bar do Café, depois que o Sr. Novais morreu. DA: De onde vem o nome Gachola? JB: Eu fazia clown com um palhaço chamado Bachola. Fazia escada para ele. Traba-

154 Doutores da Alegria

Até eu me entusiasmava e, no decorrer dos monólogos, sentia minhas lágrimas também. Aí começaram a me chamar de Zé das Lágrimas e o apelido pegou. Tinha esse nome até na carteirinha da censura, aonde tenho peças registradas. Só que a carteirinha da censura não existe mais, perdi. DA: Para quem oferecia as peças? JB: Eu oferecia as peças para os salões paroquiais. Às vezes, fazia shows beneficentes. Às vezes, só cobrava uma ajuda de custo.

- História de Vida: José Barroso -

DA: São todas monólogos? JB: Depende. Na peça "O Louco e a Cruz" são cinco atores. "O Ébrio e a Boneca" já são mais. Tenho duas peças pelas quais estou apaixonado e eu preciso ver se consigo arrumar atores profissionais para executá-las.

nharam o céu. E este pobre infeliz, ganhará o céu também? Isto só Deus saberá". Eu ainda estou querendo passá-la em um sarau em breve. Vou pegar o texto e ver se consigo passar essa peça lá, porque eu também já

Trabalhava muito com teatro amador. "O

estou baqueado. Quando era moço, era mais arrojado, fazia o louco com mais interpreta-

Ébrio e a Boneca" é uma peça muito linda, muito cheia de truques. Não é só conversação:

ção, o monólogo com mais ênfase. Agora estou mais baqueado, mas assim mesmo ainda

Há truques de iluminação, de som...

faço, porque não sei se alguém ainda vai me substituir nessa peça. Mas ainda vou ter o pra-

Meu pai era operador de cinema e eu o acompanhava muito. Conheci muitos artistas. Digo para você que conheço quase todos os artistas antigos de cinema. Comecei a fazer truques:

zer de quando tiver uns 80 anos - que eu vou descansar - vou jogar essa peça. Ela é censurada e registrada. Foi para o Rio de Janeiro.

relâmpagos, truques de sangue, chuva... Essa peça "O Ébrio e a Boneca" é uma peça muito lin-

DA: Ela foi censurada? JB: É, foi. A censura era assim: no caso de

da. É sobre a vida de um bêbado. Ainda não tive a oportunidade de executá-la com profissionais.

"O Louco e a Cruz", eu montei a peça, escrevi o texto e mandei para a federação de artistas.

"O Louco e a Cruz" é uma peça em que me inspirei sozinho, porque não tinha ninguém para trabalhar. Pensei: "Eu preciso fazer qualquer coisa". Então comecei a fazer um monólogo com uma cruz. Depois montei "O Louco e a Cruz". Envolvi-me em uma história minha, montei a peça e ficou bonita, só que no fim eu morro espetado na cruz. Punha uns dizeres assim: "E assim criaturas inocentes ga-

Mandaram para o Rio de Janeiro e voltou aprovada, só que eu tinha que censurar a peça. Para censurar, era necessário apresentá-la em um teatro. A censura teria de escrever "Censura" e deixar duas cadeiras para ela. Fiz o show de graça, para lotar o Ás de Ouro, na Casa Verde. A censura foi, sentou, assistiu e depois foram ao camarim com os documentos e me deram a mão dizendo: "Parabéns, da sua peça não precisa tirar nada. Está bem programada.

Doutores da Alegria

155

BOCA LARGA

Está registrada". Carimbaram e me deram a

praça no qual viajava. Nem trabalhava aqui

Censura Federal. Eu tenho até hoje. É de 1984.

em São Paulo. Colocava seis pessoas dentro do carro e ia embora.

DA: E que tipo de peça eles censuravam? JB: Não passei as outras peças para a censura. Fazia chanchadas, mas via aquela cen-

Gostava e trabalhei muito com teatro amador. Fazia monólogos em teatro de arena. Com-

sura em comédias. Em comédias, você não podia falar uma palavra obscena que eles cor-

prei um caminhão que me ajudou muito a levar o circo. Na época, comprei um Chevrolet

tavam. A censura existiu por muito tempo. "Alvarenga e Ranchinho" foram censurados.

46. Não me esqueço de ter ido para Curitiba com ele. Era novo ainda, jovem, carta nova,

"Tonico e Tinoco", às vezes, eram censurados. Dependendo do que eles escreviam, algumas

louco para viajar. Coloquei o circo em cima e fomos para Curitiba com o circo. Não era mui-

coisas tinham de ser trocadas. A censura federal antigamente existia para todo o teatro.

to grande não, era pequeno. A época não foi muito boa. Um colega meu tinha um caminhão.

DA: Você participou, fez programas de

Trouxe o circo para São Paulo e, para eu não perder a viagem, o frete, peguei uma viagem

rádio? JB: Não. Programas de rádio não partici-

de madeira. Ele vinha com o circo na frente e eu, como o Chevrolet era mais lento, vinha com

pei. Visitei muitas rádios. Em Tupã, participei da rádio, mas falando da minha peça, onde ia

o caminhão de madeira. Quando chegamos à Serra da Ribeira, quilômetro 27, a gente foi

passar, em qual bairro. Conversei com Nhô Bigode, que era o rei do bairro. Ele era o locu-

subindo, voltando para São Paulo. Foi subindo... quando chegou lá em cima, um

tor, moço jovem, simpático. As moças também iam lá, mas de rádio eu não participei. Fiz pon-

pouquinho antes de Apiaí, joguei a segunda reduzida no Chevrolet 46 e ele empinou. Mas

tinha na televisão, na Tupi, canal 4. Outro dia, passou "Xeque Mate", aonde trabalhei tam-

eu não sabia que a madeira estava escorregando. Não carregaram o caminhão direito. Quan-

bém, só que fiz um empregado do Carlos Zara, uma espécie de mordomo, mas eu não tinha

do chegou na curva da serra, engatei a primeira e o caminhão levantou. Eu, afobado, assus-

tempo. Eles me ligavam e eu não tinha tempo. Viajava muito. Gostava de fazer shows no in-

tado, pisei no freio. Naquela época, havia uma santa no meu carro, Nossa Senhora Aparecida.

terior... viajei muito. Tinha um carrinho de

Quando o caminhão começou a descer, para

156 Doutores da Alegria

- História de Vida: José Barroso -

cair no barranco, eu pulei fora. De noite, umas

fazer tricô e ir à igreja. Ela achava que eu esta-

oito horas, o caminhão clareou para cima com os faróis e o rapaz, que vinha atrás com o ca-

va perdendo tempo, porque, às vezes, não ganhava cachê e passávamos necessidades. Hoje

minhão Hell - se atrasou um pouquinho e ficou para trás -, percebeu e falou: "Caramba,

eu tenho lá na Rua Zilda uma casa muito grande. Graças ao meu sogro também, que me aju-

será que foi com o meu colega que aconteceu alguma coisa?". Gritei apavorado. Sabe o que

dou muito. Ainda estou casado com a minha mulher. Depois de velho, comecei a conhecer

eu queria fazer? Queria segurar o caminhão pelo pára-choque, rapaz! porque eu estava o

esses artistas: Reco-Reco, Romiseta, Chuchu, Pururuca. Fui me entrosando com eles na coo-

pagando ainda. Sozinho ali, dirigindo, barbudo já, cansado. A minha sorte é que a madeira

perativa paulista de circo e hoje faço shows. Quando eles precisam de mim, me chamam.

enganchou no barranco. Não desceu. Os gaúchos calçaram logo o caminhão, me

Eu tive três filhos: Ari, Reinaldo e Vanderlei. O Vanderlei ainda está moço, tem

mandaram descansar, me deram água e foram embora. Deixaram o caminhão com as madei-

trinta e poucos anos. Lutei muito para educálos. Meus filhos gostavam de circo e de cine-

ras ali jogadas. Eles não podiam fazer nada, estavam com pressa. Mas aquele meu amigo

ma. Até me incentivavam muito, mas a minha mulher não. Ficava sempre de fora, não gosta-

parou o caminhão com as luzes acesas e começamos a descarregar, para depois arrumar di-

va. Eles sempre assistiram às minhas peças, iam aos meus shows. Às vezes, iam uns colegas

reitinho. Carregamos até a meia-noite. Cansados, com frio, fomos embora. Paramos em Apiaí,

meus lá em casa para ensaiar. Ela perdia a noite de sono, ficava meio chateada. Perdi muitos

jantamos. A vida de motorista era essa: parar em restaurante e comer. De lá, vim embora,

amigos também, que trabalharam comigo e já morreram.

porque o meu primeiro filhinho já tinha nascido. Eu já tinha até esquecido do rostinho dele.

DA: Apresentou "A Paixão de Cristo" no

DA: E a sua mulher te acompanhava no

circo? JB: Tenho escrita até hoje. Fiz uma adap-

circo? JB: Não, não acompanhava. A minha mu-

tação. Comecei a história com a prisão de Barrabás. Fiz a crucificação no meio da pla-

lher, infelizmente, não gostava. A vida dela era

téia. Tem um caso até pitoresco, de um garoto

Doutores da Alegria

157

BOCA LARGA

que fez o Jesus. Tinha 18 ou 19 anos, mas ti-

gritava: "Mãe, mãe..." Se o cachorro corria atrás

nha um vício: fumava: "Pare com isso!". Era viciado mesmo. E fumava cigarro.

da gente para morder: "Mãe...". Nesse dia, não. Gritei pela Nossa Senhora Aparecida. "Nossa

Antes de abrir as cortinas, pediu um cigarro para uma pessoa e começou a fumar com as mãos amarradas. Toquei o sinete para abrir as cortinas. Estava entusiasmado dando orientação aos textos, com o contra-regra, quando abriram a cortina. Ele jogou o cigarro fora e caiu no pé, que estava amarrado! "Estou queimando o pé... estou me queimando o pé!" Fe-

Senhora Aparecida, o que está me acontecendo?". Eu senti ... para mim, que aquilo foi um milagre. Talvez tivesse caído lá embaixo, do barranco. Ia perder o caminhão e a carga. Enterrei as unhas na grama. Não aconteceu nada comigo. Fiz muitas viagens, tenho tantas coisas para contar sobre caminhão, carro, acidentes, histórias do "através do pára-brisas"...

chamos a cortina depressa.

DA: Você disse que sua família também passou muitas dificuldades e tinham o circo

Eu era bem caprichoso com a Iluminação, sonoplastia, disco, figurino, móveis, truques,

como pano de fundo. JB: Sim. Meu pai participou da revolução

contra-regragem, panfletos. Tenho até hoje em casa panfletos das peças entregues na hora do

de 1930. Eu me lembro muito bem. Eu tinha 3 anos. Ele tinha as fotografias com aqueles ca-

show. Fui um ator quase anônimo. Não me infiltrava na mídia. Agora que estou me

pacetes e granadas na mão. Depois dessa crise, sofremos com uma grande enchente. Ele

infiltrando, fazendo shows, saio em jornais. Mas depois de tantos anos...

passou muita necessidade, tanto é que chegou a vender pipoca no circo também. Ele e minha

DA: Eu tinha perguntado se o senhor era religioso e tinha feito a encenação da paixão de cristo, não só porque era uma encenação comum aos circos, mas pelo crucifixo que carrega ao pescoço. JB: Eu sou muito religioso. Quando aquele caminhão empinou, gritei pela Nossa Senhora Aparecida. Quando era garoto, em perigo,

158 Doutores da Alegria

avó. A minha avó fazia cus-cus na porta do circo. Eu ficava ajudando, mas a abandonava para ir ao circo. DA: As pessoas criavam um comércio em torno do circo. JB: Inventavam coisas para vender. Eu me lembro dos guarda-chuvinhas, dos puxa-puxas. Tinha fotografias. Eu vendi muitas foto-

- História de Vida: José Barroso -

grafias de artistas, de gente de circo. Eu gosta-

trapézio. Um salto, uma queda... até que um

va do Tijelino, do Circo Teatro Arithusa, porque não fazia o galã. Fazia o ruim e trabalha-

dia escorreguei da rede e quebrei a clavícula. Gostava muito do trapézio e do globo da mor-

va bem. Eu me apaixonei por esse circo. Todas as peças que assisti lá, eu não me esqueço, está

te. Quem trabalha no circo, aprende de tudo. Mas também vai esquecendo aos poucos. O

aqui dentro, todas, perfeitamente.

corpo já não é mais ágil. Já não dou salto mortal. Tenho medo. Às vezes, dou umas

DA: Qual foi o palhaço que mais te impressionou? JB: O grande palhaço da minha paixão foi o Tomé. Já faleceu. Não sei se era só eu que ria, mas me sentia satisfeito quando o assistia. Depois vieram os grandes palhaços: veio o Piolim, que foi um grande palhaço. Do Pururuca gos-

"cambotas" (cambalhotas), mas a gente sente que os ossos estão fracos. Não é brincadeira. Não me julgo velho, mas carregado de muitos anos. Tenho um peso de 77 anos nas costas, mas sempre me sinto jovem. Brinco, converso, me divirto, faço as minhas piruetas.

tava muito. Do Torresmo e do Fuzarca, também. Do Picolino gostei muito de vê-lo traba-

Vivi uma vida muito gostosa. Se começasse a contar para o senhor do tempo em que era

lhar. Do Carequinha.

moleque, o que a gente fazia nas várzeas, no campo de futebol, das lanternas que a gente

A mulherada gostava muito do Tomé. Trabalhava bem. Antigamente, a dupla de palha-

fazia de lata de óleo... A gente ia para os campos à noite, com aquelas lanterninhas acesas.

ços era engraçada: o clown, o escada, se vestia de Pierrô, como o Pimentinha e o Arrelia. As-

Não tinha medo de nada. Chegava em casa 2, 3 horas da manhã! Levava um couro do pai. O

sisti muito ao Pimentinha e ao Arrelia. Hoje a gente faz duplas com os dois palhaços juntos...

velho não queria nem abrir a porta! A gente gostava. Ia nadar naquelas águas, alagados.

é uma bagunça. Embora seja uma sátira muito gostosa. A gente improvisa muito. Antigamen-

Nunca fiquei doente, mas ia nadar naquelas águas sujas, lagos que existiam na cidade.

te, se improvisava muito também. Eu me lembro do Circo Umuarama. Os trapezistas fazi-

Meu pai foi um grande nadador. Nadáva-

am e eu era curioso. De palhaço, subia naquela coisa para cair na rede. Fazia aquelas pa-

mos no Tietê. Amarrava as coisas nas costas para chegar do outro lado, para trabalhar de

lhaçadas. Fazia muito aquelas palhaçadas no

pedreiro. Eu o acompanhava. Atravessava

Doutores da Alegria

159

BOCA LARGA

para não dar volta na Ponte da Casa Verde. Mergulhávamos. Ele na frente e eu atrás, apren-

lher e isso é gostoso. O colóquio de duas pessoas se encostarem, isso rejuvenesce a gente.

dendo. Me ensinou a dar dois fôlegos debaixo d'água.

Eu tenho muita coisa para falar, para con-

DA: Você me disse que vai a bailes e aos

tar... Ainda quero escrever um livro: "Após a minha morte".

77 anos está muito bem? JB: Eu vou ao Carinhoso. Danço com uma moça já há uns 20 anos. Às vezes, vou ao Piratininga. Danço bastante para não ficar muito mole e sempre ágil. Minha mulher não gosta de baile. Não pode ir mesmo. Mas se ela souber... não sabe que eu vou. Pode ser que saiba, mas não fala nada. DA: Rola uma paquera no baile? JB: É, sempre rola, mas isso é relativo. Sabe, essas velhinhas sempre pensam que é a última vez. Estão sempre querem conquistar a gente. Vocês são novos ainda, mas quando tiverem uma certa idade, se forem ao Baile da Saudade, da velha guarda, vocês vão ver que gostoso que é. Aquelas senhoras todas educadas, aquelas velhinhas contando as coisas delas. Corpo quente, sabe? A gente não perde aquela sensibilidade do sexo. A gente ainda sente aquele prazer gostoso. Porque é isso. Baile é sexo. A única coisa que une um casal, homem e mulher, é a música. Dança um tango, dança uma valsa... você está sempre unido com uma mu-

160 Doutores da Alegria

DA: Como Memórias Póstumas? JB: É, eu tenho na minha cabeça como retratar a vida de um cara que morreu: a família olhando, os caras que carregam o caixão, as viúvas que choram no caixão, o que ele deixou, o que os filhos reclamam... Porque um não ganhou, o outro já sai brigando. Um dia vou escrever. Talvez faça um monólogo para falar no microfone. Eu quero contar umas coisas ainda... Meus projetos sempre são contar histórias. É aquela base que eu vejo na televisão: quem não tem dinheiro, conta história. Tive amigos que foram para a guerra. Quando acabou a guerra, por volta de 1945 ou 1946, fui ver os expedicionários na Estação da Luz. Era mocinho. Lembro-me do IV Centenário, quando os aviões jogavam aqueles folhetos triangulares todos prateados. Lembro do Bom Retiro quando tinha chão de terra. Não era asfalto. Do bonde camarão, que ia para Santo Amaro, do trenzinho da Cantareira. Do Monte Serrat,

- História de Vida: José Barroso -

o trem para Santos. Subia a serra, amarrado com aqueles cabos de aço.

tocar os truques de som que a gente fazia. Fiz muita contra-regragem... Pequenininho, fica-

Lembro de um caso, não sei se foi no Circo

va atrás do palco e colocava os discos... aquelas músicas com latas de zinco, com calhas.

Arithusa ou nos Irmãos Queirollos. Tinham um Ford 29 a gasogênio e me mandavam limpar aquilo, porque ficava tudo preto, aquele cheiro. Tinha que limpar porque no tempo da guerra, acabou a gasolina. Era só gasogênio e eu tinha uma bronca de limpar aquilo, mas depois de prontinho, a gente ia fazer propaganda. Colocava uma tabuleta de um lado, uma tabuleta de outro e o rapaz ia falando... nem microfone era, era uma corneta: "Alô... Teatro Circo Queirollos, hoje apresenta, aqui, na praça tal, tal." A vitrolinha deles, pequenininha,

O palhaço é como o toque de um violão: você nunca aprende a tocar violão. Não tem fim. Sempre tem uma coisinha para tocar. Vai adquirindo suas características, prática e improviso. Uns são engraçados, outros não. Uns de um jeito, outros de outro. Por isso, dou valor aos palhaços. DA: Muito obrigado pela entrevista. JB: Obrigado também.

ficava atrás do palco. Colocavam o disco para

Doutores da Alegria

161

Benedito Esbano durante entrevista concedida aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

José Barroso durante entrevista concedida aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Nelson Garcia durante entrevista concedida aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Apresentações do palhaço Figurinha - Nelson Garcia, o garoto-propaganda da marca Monark - em monociclos e bicicletas.s/d.

162 Doutores da Alegria

Walter Di Carlo durante entrevista cedida aos Doutores da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Brasil João Carlos Queirollo durante entrevista cedida aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Agostinho Blaske durante entrevista cedida aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Walter Di Carlo durante entrevista cedida aos Doutores da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Walter di Carlo e companheira, parceiros em shows de exêntrico musical.

Doutores da Alegria

163

Alguns palhaços proeminentes citados nas entrevistas.

Anchizes Pinto durante entrevista cedida aos Doutores da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Ankito em Metido a Bacana, direção de J. B. Tanko, 1957, 99 minutos, CINELANDIA.

Palhaço Esbano - Benedito Esbano. Arquivo particular do entrevistado.

164 Doutores da Alegria

Apresentação de salto mortal para ombros de Pirajá, Anapuru e Augusto no Circo Real Palácio em 26 de setembro de 1959. Acervo particular de Pirajá Bastos de Azevedo.

Ankito em Sai Dessa Recruta, direção de Helio Barroso, 1960, 88 minutos, CINEDISTRI/CINELANDIA.

Palhaços do Rio de Janeiro: Orlando - Carequinha - Chocolate - Pirajá - Bolão - Baltazar - Zumbi - Chiquinho - Zé Carioca

Doutores da Alegria

165

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