1. De Deus E Loucura 2007.1

DE DEUS E DE LOUCURA Cristina Pape/2007 CENA 1 SALA DE INTERROGATÓRIO – INTERNA – RELÓGIO MOSTRA QUE É UMA HORA DA MANHÃ. NÃO SE SABE SE DO DIA OU DA MADRUGADA. LUZES FORTES SOBRE ELA, NUA E DE CAPUZ. VOZES INTIMIDATÓRIAS GRITAM E AMEAÇAM. A LUZ QUE ILUMINA O AMBIENTE SE MOVIMENTA PARA DAR SENSAÇÃO DE TONTEIRA A QUEM ASSISTE A CENA..

A VOZ ATRÁS DA LUZ - Fala logo, senão a gente te enche de porrada, sua vaca! ELA CALADA, INTIMIDADA E COM MEDO VISÍVEL PELA TREMEDEIRA EM SUAS MÃOS. NÃO SE MOVE. - Falar o que? Eu não sei o que vocês querem. A VOZ ATRÁS DA LUZ GRITANDO BEM JUNTO DO OUVIDO DELA. UM SUJEITO QUE NÃO SE SABE QUEM É E SÓ APARECE COMO SOMBRA NA ESCURIDÃO QUASE TOTAL QUE A CERCA. - Que porra é essa? Tá se fazendo de besta? Que você porra nenhuma. Me chame de senhor. Aqui eu sou tratado por senhor, tá entendendo? DÁ UM EMPURRÃO NO OMBRO DELA, TIPO, CHEGA PRÁ LÁ. ELA - Sim senhor. Mas porque eu estou aqui? O que foi que eu fiz? A VOZ ATRÁS DA LUZ FALANDO EM VOZ BEM CALMA E AMEAÇADORA PARA ELA. TOM CÍNICO E CONTIDO. - Olha só, quem pergunta sou eu. Cala essa boca e só responde. - Aí, Ratão, a garota até que é gostosinha. Vamos mandar um ferro nela? ELA TREMENDO, CHORAMINGANDO, TOM DE QUEM ESTÁ IMPLORANDO - Não, pelo amor de Deus, não façam isso. Eu não sei de nada. Eu não sei o que está acontecendo. Eu não sou nada além de mãe. Não sei porque eu estou aqui. A VOZ ATRÁS DA LUZ

JÁ BEM IRRITADO E COM VOZ ELEVADA - Que mãe o cacete! A gente não tá brincando não, sua puta. Gente como você não devia ter filho. Vai falando aí quem é o pai da tua filha, comunistazinha de merda. Se tem filho tem pai. Vai desembuchando, O nome, entendeu? Não quero codinome não, não quero nome de mané, saca? Manda o da carteira de identidade, morou? Fala logo senão vai pra geladeira. Tu sabe o que é a geladeira? Não é bom não. Aí a gente vai ver se tu fala ou não. ELA TREMENDO CADA VEZ MAIS - Eu não sei de nada. Meu marido é o jornalista Teobaldo de Los Rios. O que vocês querem? A VOZ ATRÁS DA LUZ - Pega ela e manda pra geladeira. Eu avisei, quem pergunta aqui sou eu!!! ELA - Meu filho está em casa sozinho. Me deixa ir embora. Pelo amor de Deus... ELA TREME E SOLTA O INTESTINO E A BEXIGA ALI MESMO. SE SUJA TODA.

A VOZ ATRÁS DA LUZ - Puta que pariu, só faltava essa. Essa vaca se cagou e mijou toda. Falando de Deus. Não engana a gente não. Gente sem culhão é assim. Não dá nem graça. Se borra logo. Dedura logo. Marido que se cuide. .João, busca o marido e eu vou ficando aqui com a menina para ver o que aparece mais, não é menina? Porra , ta fedendo! FALANDO EM VOZ BAIXA PARA O RATÃO - Vamos apertar o marido que ele vai falar. Tu vai ver. São todos iguais. É só dar umas porradas de leve que soltam o bico. Tu vai ver. Tudo igual ! FALANDO PARA ELA EM TOM DE AMEAÇA - Se não for esse o nome mesmo a gente te coloca junto do jacaré. Ta sabendo o que é? É jacaré mesmo. Você fica lá com ele no poço. FALANDO EM VOZ ALTA PARA UM( SÓ SE VE A SOMBRA) QUE ESTÁ NA SALA - Domador , pega o jacaré e trás pra cá. Deixa ele se roçar na garota. Nossa, que fedor. Não se limpa não porque tu só vai piorar pro teu lado. Tua mão vai feder mais que teu cú. Tu vai ficar assim mesmo, cagona de merda mesmo. Fica aí assim quieta. Num se mexe não. Ele vai te morder. Fica quieta.

Ô ratão, trás um pano aí pra limpar o chão, só o chão. Ela fica borrada mesmo. Aí, sai daí e vai se arrastando pra trás. Não tira o capuz não que a gente te mata é aqui agora mesmo mas antes a gente te enfia no cú. CAMERA MOSTRA O HORÁRIO. PASSARAM UMAS 5 HORAS. VOZ OFF EM SUSSURO FALANDO PARA AS DUAS SOMBRAS ATRÁS DA LUZ. - Manda parar que a ordem veio de cima e o marido dedurou os colegas de trabalho. “Vamo” lá estourar a porra do aparelho. Trocou essa filhinha de papai aqui por uns nomes. Nem foi preciso muito não. O tal jornalista é bom negociante. A gente depois solta essa babaca. Tem até ponto marcado. Tudo em cima. Vai ser festa. Vamos lá. Joga ela na dois. FADE CENA 2 NOITE – PÁTIO DE BATALHÃO DE POLÍCIA MILITAR. ESCURIDÃO. MAL SE VÊ AS PESSOAS. VULTOS. A MULHER COM CAPUZ NA CABEÇA É ENFIADA NUM FUSQUINHA TIPO 66. SAEM DE MANSINHO NA NOITE ESCURA. ELA É LARGADA NUMA ESTAÇÃO DE TREM NO CENTRO DE UMA CIDADE QUALQUER, MAS GRANDE, TIPO UMA METRÓPOLE, NO MEIO DA MADRUGADA E TODA BORRADA, PORQUE A ROUPA QUE ELA USAVA AO SER PRESA ERA BRANCA. ELA CHORANDO E FALANDO NUM TELEFONE PÚBLICO - Pai? Estou aqui na estação central de trem. Vem me buscar? Tô com medo. Vem logo. Não tem ninguém aqui por perto. Eu to aqui sozinha. Me largaram aqui. FADE FECHANDO NA ESCURIDÃO TOTAL. CENA 3 DIA/ MANHÃ – RIO DE JANEIRO – 2007 – UM HOMEM APARENTANDO TER UNS 60 ANOS POR CAUSA DOS CABELOS JÁ MUITO BRANCOS, BEM APESSOADO , SENTADO NUMA CADEIRA ( DE RODAS MAS NÃO MOSTRA QUE É DE RODAS) JUNTO A UMA JANELA. ESTÁ LENDO UM JORNAL SEM DEFINIÇÃO DE NOME . FOLHEIA E ABRE UMA REVISTA TIPO ENCARTE.

VAI LENDO DISTRAIDAMENTE E DE REPENTE DÁ UMA GARGALHADA REAL E FORTE. CONTINUA A LER. O CÉU AZUL, AS GAIVOTAS VOANDO AO FUNDO, MEIO DESFOCADO ESSE FUNDO. CENÁRIO PARADISÍACO. NÃO DEFINE A CIDADE E TB. NÃO EXPLICITA A CADEIRA COMO SENDO DE RODAS. UM CLOSE. O HOMEM QUASE NUM SUSSURO FALANDO PARA SI MESMO. - Quem diria que essa mulher é aquela! Nem parece. Ficou muito esquisita e muito feia. Cacete!. Filha de uma puta. Foi por causa dela e do Teobaldo que a gente caiu. Ela tinha sumido por uns tempos e agora aparece de heroína. Ela sempre inventou histórias, pensando bem mas nós é que não percebíamos. Agora a velha posa de mártir. Eu sabia que tinha sido o Teobaldo. Ele não dançou. Ficou foi bem. Filho da puta. Ta lá na Tv agora. Ele era mesmo um escroto. Taí, que a resposta demorou mas chegou. Que conversa é essa que ela fala aqui? Saiu porque invocou a voz de Deus. Que é isso? Bebeu com os torturadores? O que é isso? Só pode ser delírio. É demais. Isso é loucura e da boa. Mas ela acha que todos são otários? Doida mas tem memória ou tb. não tem nem isso? O que soltou ela foram os nomes que o Teolbaldo entregou. Bem que tinham me dito mas eu não queria era acreditar que o companheiro ia fazer uma sacanagem desta com a gente. Moeda de troca. Dedo-duro. O HOMEM FECHA OS OLHOS E RECOSTA NA ESPALDAR DA CADEIRA. PEGA O TELEFONE SEM FIO QUE ESTÁ EM SEU COLO E LIGA PARA UMA MULHER. FALA EM MONÓLOGO COM ESPAÇOS DE DIALOGOS. - Jandira, tudo bem? Acordada e sentada? Vou te enviar um jornal que estou lendo agora. Você vai cair pra trás e vai ver a tua “amiga”, aquela casada com o Teobaldo, se lembra, lá de Piracicaba? É, o pai era das antigas. Se lembra da Graça? É ela. Está dando declarações inacreditáveis. Está aqui no Rio sim. A matéria é de um jornal daqui do Rio.Você que também acreditava nela vai cair do cavalo e juntar as peças do quebra-cabeças. Tinha ficado um buraco, não tinha? A gente não chegava no início da coisa. Chegamos, minha amiga. Chegamos. O marido ? Sei lá, ela não fala nele não. Também não tenho muito interesse em saber dele, mas como li a matéria e a mulher está delirante, pensei: será mesmo que está delirante ou ela fazia jogo duplo? A matéria tem declarações inacreditáveis. Só sendo muito vagabunda para ter coragem de falar o que está escrito aqui. Passou a fazer jogo duplo e tudo era uma farsa? Sei lá. A história é feita de grandes mentiras e meias verdades... Essa eu aprendi. Vou te mandar o jornal para você mesma ler. Acho que volto para Dinamarca na próxima terça. É o mais provável. A CAMERA VAI SE DISTANCIANDO E SAINDO DO CLOSE E AOS POUCOS MOSTRA ELE NUMA CADEIRA DE RODAS , ONDE ESTEVE SENTADO O TEMPO TODO. AINDA AO TELEFONE. - O hospital me espera e aqui é muito difícil viver, mesmo com enfermeiro. É. Devo isso a eles, mas “rodo” melhor lá do que aqui. È difícil ver que as coisas aqui tomaram o rumo das mentiras histriônicas.

Entrar em contato com ela? Para que? Ela está completamente louca, até pode ser que ela me dê um beijo, um abraço e me convide para uma festa para beber uísque com ela, sabe lá? Talvez até sinta “ saudades”. Mudando de assunto: Você vai aparecer lá em casa quando? Deixe o trabalho uns dias e passe um tempinho lá conosco. Teresa vai gostar muito, você sabe. Da última vez foi muito boa a tua presença lá. Ajeite aí as férias com o Fernando e desembarquem lá. Convite feito. Estaremos esperando. Certo, minha amiga, vamos indo pela internet por enquanto. O teu projeto já foi encaminhado, mas demora um pouco o resultado. Aviso logo que souber de alguma coisa. Certo, então um grande beijo para vocês. DESLIGA O TELEFONE E A CAMERA VAI RECUANDO MOSTRANDO A PRAIA DE COPACABANA BEM CARACTERIZADA COM A CALÇADA TÍPICA, PESSOAS A PÉ NO CALÇADÃO, CRIANÇAS BRINCANDO . MÚSICA DE FUNDO: “COPACABANA , PRINCESINHA DO MAR”. O AZUL VAI FICANDO MAIS CLARO, AS IMAGENS SEM FOCO E TUDO VAI SE MISTURANDO ATÉ CHEGAR NO BRANCO. ENTRAM OS CRÉDITOS. A MÚSICA PERMANECE ATÉ O FINAL DOS CRÉDITOS. FIM OBS: Roteiro registrado.