I Ap�s uma noite de ins�nia, saiu Clemente Soares da casa em que morava, � Rua da Miseric�rdia, e entrou a caminhar � toa pelas ruas da cidade. Eram quatro horas da manh�. Os homens do g�s come�avam a apagar os lampi�es, e as ruas, ainda n�o bem alumiadas pela aurora, que apontava apenas, apresentavam um aspecto l�gubre. Clemente caminhava lento e pensativo. De quando em quando abalroava nele uma quitandeira que se dirigia para as pra�as do mercado com o cesto ou o tabuleiro � cabe�a, acompanhada de um preto que levava outro cesto e a barraca. Clemente parecia despertar dos seus devaneios, mas reca�a logo neles at� nova interrup��o. � propor��o que o c�u clareava, abriam-se as portas dos botequins, para fazer concorr�ncia aos vendedores de caf� ambulantes que desde a meia-noite percorriam a cidade em todos os sentidos. Ao mesmo tempo come�avam a passar os trabalhadores dos arsenais atroando as ruas com os seus grossos tamancos. N�o poucos entravam nos botequins e aqueciam o est�mago. Os entregadores dos jornais conclu�am a sua tarefa com aquela precis�o de mem�ria que sempre invejei a esses funcion�rios da imprensa. As tavernas abriam as suas portas e ornavam os portais com as amostras do uso. Da� a pouco era completamente dia; j� a cidade come�ava a levantar-se toda; numerosas pessoas transitavam a rua; as lojas de todo g�nero abriam as suas portas... Era dia. Clemente Soares n�o deu f� de toda esta gradual mudan�a; continuou a andar � toa, at� que, cansado, foi ter � Praia de Santa Luzia, e a� ficou a olhar para o mar. Em qualquer outra circunst�ncia � muito prov�vel que Clemente Soares admirasse o quadro que se lhe apresentava ante os olhos. Mas naquela ocasi�o o pobre rapaz olhava para dentro. Tudo � roda dele lhe era indiferente; um grande pensamento o preocupava. Que pensamento? N�o era novo; era um pensamento quase t�o velho como o mundo, um pensamento que s� h� de acabar quando acabarem os s�culos. N�o era bonito; era um pensamento feio, repelente, terr�vel, capaz de trazer � mais bela alma a mais completa dem�ncia, e fazer de um g�nio um idiota. N�o era obscuro; era um pensamento claro, evidente, incontest�vel, di�fano, um pensamento simples, que dispensava toda e qualquer demonstra��o. Clemente Soares n�o tinha dinheiro. S� o muito amor que tenho aos leitores me dispensa de fazer aqui a longa disserta��o que este assunto est� pedindo. Demais, para alguns deles seria in�til a disserta��o. A maior parte dos homens h� de ter compreendido, ao menos uma vez na vida, o que � n�o ter dinheiro. A mo�a que v� o namorado distra�do, o amigo que v� o amigo passar por ele sem lhe tirar o chap�u, antes de fazer qualquer ju�zo temer�rio, deve perguntar consigo: estar� ele sem dinheiro? Clemente Soares, pois, estava nessa prec�ria situa��o. N�o tinha dinheiro, nem esperan�as de o ter, posto fosse um rapaz engenhoso e cheio de recursos. N�o era contudo t�o grande a falta que n�o pudesse almo�ar. Introduzindo na algibeira do colete o indicador e o polegar, como quem tira uma pitada, arrancou
de l� dois cart�es da barca Ferry; e era quanto bastava para um almo�o no Carceller. Desceu pela Rua da Miseric�rdia, entrou em casa para pesquisar as gavetas a ver se encontrava um charuto esquecido; teve a fortuna de encontrar dois cigarros, e foi almo�ar. Duas horas depois estava em casa almo�ado e fumado. Tirou de uma velha estante um volume de Balzac e disp�s-se a esperar o jantar. E de onde viria o jantar? O jantar n�o preocupava muito a Clemente Soares. Costumava obter esse elemento da vida na casa comercial de um amigo, aonde n�o ia almo�ar, a fim de n�o parecer que n�o tinha com qu�. N�o se diria o mesmo do jantar, porque o dito amigo lhe dissera uma vez que lhe faria grande obs�quio em ir l� jantar todos os dias. Do almo�o n�o disse o mesmo; por isso Clemente Soares n�o se atrevia a l� ir. Clemente era orgulhoso. E n�o s�o incompat�veis a necessidade e o orgulho! O desditoso mortal a quem a natureza e a fortuna deram estes dois flagelos, pode dizer que � a mais triste de todas as criaturas. [editar] II A casa de Clemente Soares n�o tinha o aspecto miser�vel que a algibeira do rapaz fazia crer. Via-se que era casa onde j� houvera alguma coisa, embora pouca. Era casa de rapaz solteiro, adornada com certo gosto, no tempo em que o dono gozava de sofr�vel ordenado. Alguma coisa lhe faltava, mas n�o era do necess�rio; sen�o do sup�rfluo. Clemente vendera, apenas, alguns livros, dois ou tr�s vasos, uma estatueta, uma charuteira e poucas coisas mais, que n�o faziam grande falta. E quem o visse ali, estendido no sof�, metido em um chambre, lendo um volume encadernado em Paris, diria que o bom rapaz era um estudante rico, que havia falhado a aula e enchia com alguma distra��o as horas, at� receber uma carta da namorada. Namorada! Havia efetivamente na vida de Clemente Soares uma namorada, mas j� pertencia aos exerc�cios findos. Era uma menina galante como uma das Gra�as, mas que na opini�o de Clemente ficou t�o feia como uma das F�rias, desde que soube que o pai apenas teria umas cinco ap�lices. Clemente Soares n�o tinha cora��o t�o mesquinho que se deixasse vencer por cinco ap�lices. Demais, n�o a namorava muito disposto ao casamento; foi uma esp�cie de aposta com outros rapazes. Trocou algumas cartinhas com a mo�a e precipitou o desenlace da com�dia fazendo uma retirada airosa. Carlotinha n�o era felizmente mo�a de grandes enlevos. Deu dois murros no ar quando adquiriu certeza da retirada do rapaz, e travou namoro com outro que lhe andava a rondar a porta. Fora esse o �nico amor, ou coisa que o valha, do nosso Clemente, que da� em diante n�o procurou outras aventuras. E como o faria agora, que se achava desempregado, sem vint�m, cheio de ambi��es, vazio de meios? Nem pensava nisso.
Era perto das tr�s horas da tarde, quando recebeu um bilhetinho do amigo em cuja casa costumava jantar. Dizia assim: Clemente. N�o deixes de vir hoje. Temos um neg�cio. Teu Castrioto. A recomenda��o era in�til; Clemente n�o deixaria de l� ir, mas a segunda parte do bilhete era rutilante de promessas. Da� a pouco estava em casa de Castrioto, honrado negociante de fazendas, que o recebeu com duas ou tr�s gra�as de boa intimidade e o levou para o fundo da lo]a onde lhe prop�s um emprego. � O Medeiros, disse ele, est� sem guarda-livros. Quer voc� ir para l�? Isso era um raio de sol que alumiava a alma do m�sero Clemente; todavia, como na gratid�o entra sempre um tanto de diplomacia, recebeu Clemente a not�cia e a oferta com ar de calculada indiferen�a. � N�o duvido ir, disse ele, mas... � Mas o qu�? � Voc� bem sabe que eu j� estive em casas que... � J� sei, interrompeu Castrioto, fala do ordenado. � Justo. � Tr�s contos e seiscentos, serve? Clemente estremeceu dentro de si; mas achou conveniente fazer uma pergunta: � Com comida? � E casa, se quiser, respondeu Castrioto. � Serve. Obrigado. E dizendo isto, apertou Clemente Soares as m�os do amigo, desta vez com todas as mostras de entusiasmo, o que alegrou muito a Castrioto, que o estimava deveras. � Eu j� tinha alguma coisa em vista, disse Clemente depois de alguns instantes; mas era prec�rio e inferior ao que voc� me oferece. � Pois v� l� amanh�, disse Castrioto; ou, melhor, iremos logo depois do jantar. Assim se fez. Logo depois do jantar conduziu Castrioto o amigo � casa do Medeiros, que recebeu com extremo prazer o novo guarda-livros. E no dia seguinte entrou Clemente Soares no exerc�cio das suas novas fun��es. [editar] III Em dois simples cap�tulos vimos um rapaz desarranjado e arranjado, pescando um cart�o de barca no bolso do colete e ganhando tr�s contos e seiscentos mil-r�is
por ano. N�o se pode andar mais depressa. Mas por que fui eu t�o longe, quando podia apresentar Clemente Soares j� empregado, poupando � piedade dos leitores o espet�culo de um rapaz sem almo�o certo? Fi-lo para que o leitor, depois de presenciar as finezas do negociante Castrioto, se admirasse, como lhe vai acontecer, de que Clemente Soares ao cabo de dois meses esquecesse de tirar o chap�u ao ex-anfitri�o. Por qu�? Pela raz�o simples de que o excelente Castrioto teve a infelicidade de falir, e alguns amigos come�aram a desconfiar de que falira fraudulentamente. Castrioto ficou assaz magoado quando lhe aconteceu esta aventura; mas era homem fil�sofo e tinha quarenta anos feitos, idade em que s� um homem de singular simplicidade pode ter ilus�es a respeito da gratid�o humana. Clemente Soares tinha o seu emprego e o desempenhava com extrema solicitude. Alcan�ou n�o ter hora certa para entrar no escrit�rio e, com esta, outras mais facilidades que lhe deu o dono da casa. J� nesse tempo n�o havia aquele rigor antigo, que n�o permitia aos empregados de uma casa comercial certos usos da vida gamenha. Usava pois o nosso Clemente Soares tudo quanto a moda prescrevia. No fim de um ano, Medeiros elevou-lhe o ordenado a quatro contos e seiscentos mil-r�is, com a esperan�a de interesse na casa. Clemente Soares ganhou depressa a estima do dono da casa. Era sol�cito, zeloso, e sabia levar os homens. Dotado de intelig�ncia aguda, e instru�do, resolvia todas as d�vidas que estavam acima do entendimento de Medeiros. N�o tardou, pois, que fosse considerado pessoa necess�ria no estabelecimento, verdadeiro alvo de seus esfor�os. Ao mesmo tempo tratou tinha o almo�o casual que a um pobre n�o se beco deserto, e ainda confian�a.
de se descartar de certos conhecimentos do tempo em que e a ceia incerta. Clemente Soares professava o princ�pio de tira chap�u em nenhuma hip�tese, salvo se se encontram num assim sem grandes mostras de intimidade, a fim de n�o dar
Desejoso de subir, n�o faltou Clemente Soares ao primeiro convite que lhe fez Medeiros para um jantar que dava em casa a um diplomata estrangeiro. O diplomata simpatizou com o guarda-livros, que da� a oito dias lhe fez uma visita. Com estas e outras tra�as foi o nosso Clemente penetrando na sociedade que convinha ao seu gosto, e n�o tardou que lhe chovessem em casa os convites de bailes e jantares. Cumpre dizer que j� nesse tempo o guarda-livros tinha um interesse na casa de Medeiros, que o apresentava orgulhosamente como seu s�cio. Nesta situa��o s� lhe faltava uma noiva elegante e rica. N�o lhe faltava onde escolher; mas n�o era isso t�o f�cil como o resto. As noivas ou eram ricas demais ou pobres demais para ele. Mas Clemente confiava na sua estrela, e esperava.
Saber esperar � tudo. Uma tarde, passando pela Rua da Quitanda, viu apear-se de um carro um velho e pouco depois uma linda rapariga, que ele conheceu imediatamente. Era Carlotinha. A mo�a trajava como quem possu�a, e o velho tinha um ar que cheirava a riqueza a cem l�guas de dist�ncia. Era marido? padrinho? tio? protetor? Clemente Soares n�o p�de resolver este ponto. O que lhe pareceu foi que o velho era homem de serra-acima. Tudo isto pensou ele enquanto tinha os olhos cravados em Carlotinha, que estava espl�ndida de beleza. Entrou o par numa loja conhecida de Clemente, que tamb�m l� entrou para ver se a mo�a o reconhceia. Carlota reconheceu o antigo namorado, mas nenhuma fibra do rosto se lhe contraiu; comprou o que ia buscar, e entrou com o velho no carro. Clemente ainda teve id�ia de chamar um t�lburi, mas desistiu da id�ia, e seguiu dire��o oposta. Durante toda a noite pensou na gentil menina que ele havia deixado em outro tempo. Entrou a perguntar a si mesmo se aquele velho seria marido dela, e se ela havia enriquecido com o casamento. Ou seria um padrinho rico, que resolvera deix�-la por herdeira de tudo? Todas estas id�ias galoparam na cabe�a de Clemente Soares, at� que o sono se apoderou dele. De manh� tudo estava esquecido. [editar] IV Dois dias depois, quem lhe havia de aparecer no escrit�rio? O velho. Clemente Soares apressou-se a servi-lo com toda a solicitude e zelo. Era um fazendeiro, fregu�s da casa de Medeiros e morador de serra-acima. Chamavase o comendador Brito. Tinha sessenta anos e uma dor reum�tica na perna esquerda. Possu�a grandes cabedais e excelente reputa��o. Clemente Soares captou as boas gra�as do comendador Brito nas poucas vezes que ele l� foi. Fez-lhe mil obs�quios de pequena monta, cercou-o de todas as aten��es, fascinou-o com discursos, a ponto que o comendador mais de uma vez lhe teceu grandes elogios em conversa com Medeiros. � � um excelente mo�o, respondia Medeiros, muito discreto, inteligente, servi�al; � uma p�rola... � Tenho notado isso mesmo, dizia o comendador. Nas condi��es dele ainda n�o achei pessoa que mere�a tanto.
Aconteceu um dia deixar o comendador em cima da escrivaninha de Clemente Soares a boceta do rap�, que era de ouro. Clemente viu a boceta apenas o comendador voltou as costas, mas n�o quis incomod�lo, e deixou-o ir adiante. Na v�spera acontecera o mesmo com o len�o, e Clemente teve o cuidado de lho ir levar � escada. O comendador Brito era tido e havido por um dos homens mais esquecidos do seu tempo. Ele mesmo dizia que n�o esquecia o nariz na cama por t�-lo pregado na cara. � hora do jantar, disse Clemente Soares ao patr�o: � O comendador esqueceu c� a boceta. � Sim? � preciso mand�-la. � Jos�!... � Mandar uma boceta de ouro por um preto, n�o me parece seguro, objetou Clemente Soares. � Mas o Jos� � fidel�ssimo... � Quem sabe? a ocasi�o faz o ladr�o. � N�o creia nisso, respondeu Medeiros sorrindo; vou mand�-la j�. � Al�m disso, o comendador � um homem respeit�vel; n�o ser� bonito mandar assim a boceta por um preto... � Vai um caixeiro. � N�o, senhor, vou eu mesmo... � Pois quer?... � Que tem isso? retorquiu Clemente Soares rindo; n�o � coisa do outro mundo... � Pois fa�a o que lhe parecer. Nesse caso leve-lhe tamb�m aqueles pap�is. Clemente Soares informado da casa do comendador, meteu-se num t�lburi e mandou tocar para l�. O comendador Brito vinha passar alguns meses na corte; tinha alugado uma bela casa, e deu � mulher (porque Carlotinha era sua mulher) a dire��o no arranjo e escolha dos m�veis, no que ela se houve com extrema per�cia. N�o nascera aquela mo�a entre brocados nem fora educada entre as paredes de casa rica; tinha, por�m, um instinto do belo e um grande dom de observa��o, mediante o que conseguira habituar-se facilmente ao mundo novo em que entrara. Eram seis horas da tarde quando Clemente Soares chegou � casa do comendador, onde foi recebido com todos os sinais de simpatia. � Aposto que o Medeiros lhe deu todo este inc�modo, disse o comendador Brito, para me mandar uns pap�is... � Trago, com efeito, esses pap�is, respondeu Clemente, mas n�o � esse o principal objeto da minha visita. Trago-lhe a caixa de rap�, que V. Excia. esqueceu l�.
E dizendo isto tirou do bolso o aludido objeto, que o comendador recebeu com alvoro�o e reconhecimento. � Eu havia de jurar que tinha deixado na casa de Jo�o Pedro da Veiga, onde fui comprar uns bilhetes para serra-acima. Agrade�o-lhe muito a sua fineza; mas por que veio pessoalmente? por que tomou este inc�modo? � Quando fosse inc�modo, respondeu Clemente, e est� longe disso, ficaria bem pago com a honra de ser recebido por V. Excia. O comendador gostava de ouvir finezas como todos os mortais que vivem debaixo do sol. E Clemente Soares sabia-as dizer de modo especial. De maneira que j� essa noite passou-a Clemente em casa do comendador, de onde saiu depois de prometer que voltaria l� mais vezes. Trouxe boas impress�es do comendador; n�o assim de Carlotinha que parecia extremamente severa com ele. Debalde o rapaz a cercava de aten��es e respeitos, afetando n�o a ter conhecido, quando ali�s podia alegar um beijo que lhe dera uma vez, a furto, entre duas janelas, no tempo do namoro... Mas n�o era Clemente Soares homem que envergonhasse ningu�m, muito menos uma mo�a que ainda podia faz�-lo feliz. Por isso n�o saiu dos limites do respeito, convencido de que a pertin�cia vence tudo. [editar] V E venceu. Ao cabo de um m�s j� a esposa do comendador n�o se mostrava arisca e o tratava com vivos sinais de estima. Clemente sup�s que estava perdoado. Redobrou de aten��es, tornou-se um verdadeiro escudeiro da mo�a. O comendador morria por ele. Era o aijesus da casa. Carlotinha estava mais bela do que nunca; antigamente n�o podia real�ar as gra�as pessoais com os inventos da ind�stria elegante; mas agora, que lhe sobravam meios, a boa mo�a tratava quase exclusivamente de p�r em relevo o seu airoso porte, tez morena, olhos negros, testa elevada, boca de V�nus, m�os de fada, e o mais que a imaginativa dos namorados e dos poetas costuma dizer em casos tais. Estaria Clemente apaixonado por ela? N�o. Clemente antevia que os dias do comendador n�o eram longos, e se havia de ir tentar alguma empresa, mais duvidosa e arriscada, n�o era melhor continuar aquela j� come�ada alguns anos antes? Ignorava ele por que concurso de circunst�ncias Carlotinha tinha escolhido aquele marido, cujo �nico m�rito, para ele, era ter uma grande riqueza. Mas conclu�a de si para si que ela seria essencialmente vaidosa, e para captar-lhe as boas gra�as, fez e disse tudo o que pode seduzir a vaidade de uma mulher. Um dia ousou fazer uma alus�o ao passado. � Lembra-se, disse ele, da Rua das Mangueiras? Carlotinha franziu a testa e saiu da sala.
Clemente ficou fulminado; meia hora depois estava reposto na sua habitual indol�ncia e mais disposto que nunca a perscrutar o cora��o da mo�a. Julgou, por�m, que era prudente deixar passar algum tempo e procurar outros meios. Passeava uma tarde com ela no jardim, enquanto o comendador discutia com Medeiros debaixo de uma mangueira sobre alguns assuntos de com�rcio. � Que me disse outro dia o senhor a respeito da Rua das Mangueiras? perguntou repentinamente Carlotinha. Clemente estremeceu. Houve um sil�ncio. � N�o falemos nisso, disse ele sacudindo a cabe�a. Deixemos o passado que morreu. N�o respondeu a mo�a e os dois continuaram a passear silenciosamente at� que se acharam assaz distantes do comendador. Clemente rompeu o sil�ncio: � Por que me esqueceu t�o depressa? disse ele. Carlotinha levantou a cabe�a com um movimento de surpresa; depois sorriu-se com ironia e disse: � Por que o esqueci? � Sim. � N�o foi o senhor quem me esqueceu? � Oh! n�o! Eu recuei diante de uma impossibilidade. Era infeliz nesse tempo; n�o tinha os meios necess�rios para despos�-la; e preferi o desespero... Sim, o desespero! Nunca a senhora h� de ter id�ia do que sofri nos primeiros meses da nossa separa��o. Sabe Deus que l�grimas de sangue chorei no sil�ncio... Mas era necess�rio. E bem v� que foi obra do destino, porque a senhora � hoje feliz. A mo�a deixou-se cair em um banco. � Feliz! disse ela. � N�o �? Carlotinha abanou a cabe�a. � Por que se casou ent�o com... Estacou. � Acabe, disse a mo�a. � Oh! n�o! perdoe-me! Foram interrompidos por Medeiros, que vinha de bra�o com o comendador, e disse em voz alta: � Sinto dizer, minha senhora, que preciso do meu guarda-livros.
� E eu estou �s suas ordens, respondeu Clemente rindo, mas um pouco despeitado. No dia seguinte j� Carlotinha n�o p�de ver o rapaz sem corar um pouco, excelente sintoma para quem prepara uma vi�va. Quando lhe pareceu conveniente, expediu Clemente Soares uma carta flamejante � mo�a, que lhe n�o respondeu, mas que tamb�m n�o se zangou. Neste meio-tempo ocorreu que o comendador terminara alguns neg�cios que o trouxeram � corte, e teve de partir para a fazenda. Foi um golpe nos projetos do rapaz. Poderia ele continuar a entreter aquela esperan�a que a sua boa estrela lhe deparara? Assentou de dar batalha campal. A mo�a, que parecia sentir inclina��o para ele, n�o op�s grande resist�ncia e confessou que sentia renascer-lhe a simpatia de outro tempo, acrescentando que se n�o esqueceria dele. Clemente Soares era um dos mais perfeitos comediantes que t�m escapado ao teatro. Simulou algumas l�grimas, expectorou alguns solu�os e despediu-se de Carlotinha como se tivesse por ela a maior paix�o deste mundo. Quanto ao comendador, que era o mais sincero dos tr�s, sentiu separar-se de um cavalheiro t�o distinto como Clemente Soares, ofereceu-lhe os seus servi�os, e pediu com inst�ncia que n�o deixasse de o ir visitar � fazenda. Clemente agradeceu e prometeu. [editar] VI Quis a desgra�a de Medeiros que os neg�cios lhe corressem mal; duas ou tr�s cat�strofes comerciais o puseram �s portas da morte. Clemente Soares fez quanto p�de para salvar a casa de que dependia o seu futuro, mas nenhum esfor�o era poss�vel contra um desastre marcado pelo destino, que � o nome que se d� � tolice dos homens ou ao concurso das circunst�ncias. Achou-se sem emprego nem dinheiro. Castrioto compreendeu a situa��o prec�ria do rapaz pelo cumprimento que este lhe fez nesse tempo, justamente porque Castrioto, tendo sido julgada casual a sua fal�ncia, alcan�ara prote��o e meios para continuar o neg�cio. No pior da sua posi��o, recebeu Clemente uma carta em que o comendador o convidava a ir passar algum tempo na fazenda. Sabedor da cat�strofe de Medeiros, queria o comendador naturalmente dar a m�o ao rapaz. Este n�o esperou que repetisse o convite. Escreveu logo dizendo que da� a um m�s se poria em marcha. Efetivamente um m�s depois sa�a Clemente Soares em caminho do munic�pio de ***, onde era a fazenda do comendador Brito. O comendador esperava-o ansioso. E n�o menos ansiosa estava a mo�a, n�o sei se porque j� lhe tivesse amor, se porque ele fosse uma distra��o no meio da mon�tona
vida rural. Recebido como amigo, tratou Clemente Soares de pagar a hospitalidade, fazendo-se conviva alegre e divertido. Ningu�m o poderia melhor do que ele. Dotado de grande perspic�cia, compreendeu em poucos dias como entendia o comendador a vida do campo, e tratou de o lisonjear por todos os modos. Infelizmente, dez dias depois da sua chegada � fazenda, adoeceu gravemente o comendador Brito, por maneira que o m�dico poucas esperan�as deu � fam�lia. Era ver o zelo com que Clemente Soares servia de enfermeiro do doente, procurando por todos os meios suavizar-lhe os males. Passava noites em claro, ia aos povoados quando era necess�rio fazer alguma coisa mais importante, consolava o doente j� com palavras de esperan�as, j� com animada conversa, cujo fim era distra�-lo de pensamentos l�gubres. � Ah! dizia o pobre velho, que pena que eu o n�o conhecesse h� mais tempo! Bem vejo que � um verdadeiro amigo. � N�o me elogie, comendador, dizia Clemente Soares, n�o me elogie, que � tirar o m�rito, se o h�, destes deveres agrad�veis ao meu cora��o. O procedimento de Clemente influiu no �nimo de Carlotinha, que nesse desafio de solicitude soube mostrar-se esposa dedicada e reconhecida. Ao mesmo tempo fez com que em seu cora��o se desenvolvesse o germe de afeto que Clemente de novo lhe lan�ara. Carlotinha era uma mo�a fr�vola; mas a doen�a do marido, a perspectiva da viuvez, o desvelo do rapaz, tudo fez nela uma profunda revolu��o. E mais que tudo, a delicadeza de Clemente Soares, que, durante esse tempo de t�o graves preocupa��es para ela, nenhuma palavra de amor lhe dirigiu. Era imposs�vel que o comendador escapasse � morte. Na v�spera desse fatal dia, chamou os dois a si, e disse com voz fraca e comovida: � Tu, Carlota, pela afei��o e respeito que me tiveste durante a nossa vida de casados; tu, Clemente, pela verdadeira dedica��o de amigo, que me tens provado, sois ambos as duas �nicas criaturas de quem levo saudades deste mundo, e a quem devo gratid�o nesta e na outra vida... Um solu�o de Clemente Soares cortou a palavra ao moribundo. � N�o chores, meu amigo, disse o comendador com voz terna, a morte na minha idade, n�o � s� inevit�vel, � tamb�m necess�ria. Carlota estava banhada em l�grimas. � Ora, pois, continuou o comendador, se me querem fazer o �ltimo favor, ou�am-me. Passou um rel�mpago pelos olhos de Clemente Soares. O rapaz inclinou-se sobre a cama. O comendador tinha os olhos fechados. Houve um longo sil�ncio, no fim do qual o comendador abriu os olhos e continuou:
� Consultei novamente a minha consci�ncia e Deus, e ambos aprovam o que vou fazer. S�o ambos mo�os e merecem-se. Se se amarem, juram casar-se? � Oh! n�o fale assim, disse Clemente. � Por que n�o? Eu j� tenho os p�s na sepultura; n�o me fica mal dizer isto. Quero deixar felizes as pessoas a quem mais devo... Foram as suas �ltimas palavras. No dia seguinte, �s oito horas da manh�, deu a alma a Deus. Algumas pessoas da vizinhan�a ainda assistiram aos �ltimos instantes do fazendeiro. Fez-se o enterro no dia seguinte, e pela tarde pediu o nosso Clemente Soares um cavalo, despediu-se da jovem vi�va, e tomou caminho da corte. N�o veio, por�m, at� � corte. Deixou-se estar nas imedia��es da fazenda, e no fim de oito dias apareceu l� em busca de n�o sei que objeto que lhe havia esquecido. Carlotinha, quando soube que o rapaz estava na fazenda, teve um momento de regozijo, de que logo se arrependeu em respeito � mem�ria do marido. Curta foi a conversa dos dois. Mas foi quanto bastou para fazer a felicidade de Clemente. � V�, disse ela, que eu bem compreendo a grandeza de sua alma nesta separa��o. Mas prometa que voltar� daqui a seis meses... Juro. [editar] VII Pedira o comendador aquilo que os dois desejavam ardentemente. Seis meses depois eram casados o jovem Clemente Soares e a gentil vi�va; n�o houve nenhuma escritura de separa��o de bens, pela simples raz�o de que o noivo foi o primeiro que prop�s a id�ia. Verdade � que se a prop�s, � porque tinha a certeza de que n�o seria aceita. N�o era Clemente homem que se encafuasse numa fazenda e se contentasse com a paz dom�stica. Dois meses depois de casado, vendeu a fazenda e os escravos, e veio estabelecer vivenda na corte, onde hoje foi conhecida a sua aventura. Nenhuma casa lhe fechou as portas. Um dos primeiros que o visitou foi o negociante Medeiros, ainda em tristes circunst�ncias, e por tal modo que chegou a lhe pedir algum dinheiro emprestado. Clemente Soares fez a felicidade da mulher durante um ano ou pouco mais. Mas n�o passou da�. Dentro de pouco tempo, Carlotinha estava arrependida do casamento; era tarde. Soube a mo�a de algumas aventuras amorosas do marido, e censurou-lhe esses atos de infidelidade; mas Clemente Soares motejou do caso, e Carlotinha recorreu �s l�grimas. Clemente levantou os ombros.
Come�ou uma s�rie de desgostos para a mo�a, que ao fim de tr�s anos de casada estava magra e doente, e ao fim de quatro expirou. Fez-lhe Clemente um pomposo enterro a que assistiram at� alguns ministros de Estado. Vestiu-se de preto durante um ano, e quando acabou o luto foi viajar para se distrair da perda, dizia ele. Quando voltou, encontrou os mesmos afetos e consideraq�es. Algumas pessoas diziam ter queixas dele, a quem chamavam ingrato. Mas Clemente Soares n�o se importava do que a gente dizia. Aqui acaba a hist�ria. Como! E a moralidade? A minha hist�ria � isto. N�o � uma hist�ria, � um esbo�o, menos que um esbo�o, � um tra�o. N�o me proponho a castigar ningu�m, salvo Carlotinha, que se achou bem punida de ter amado outro homem em vida do marido. Quanto a Clemente Soares nenhuma puni��o teve, e eu n�o hei de inventar no papel aquilo que se n�o d� na vida. Clemente Soares viveu festejado e estimado por todos, at� que morreu de apoplexia, no meio de muitas l�grimas, que n�o eram mais sinceras do que ele foi durante sua vida.