The Piper At The Gates Of Dawn

  • June 2020
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THE PIPER AT THE GATES OF DAWN E A ALQUIMIA: UMA ABORDAGEM PSICOLÓGICA

A relação entre as músicas de The Piper at the Gates of

Dawn com a Alquimia, uma

forma de ciência e arte, popularmente conhecida pela sua busca para transformar os metais em ouro, mas cujo verdadeiro propósito vai muito além disso, é possível através da psicologia de C. G. Jung, psiquiatra suíço, criador da Psicologia Analítica, e profundo estudioso da alma e da cultura humana. Ao buscar uma fundamentação para a psicologia que vinha desenvolvendo, Jung encontrou justamente na Alquimia o referencial que necessitava para mostrar que havia uma base histórica por trás de suas descobertas, e que estas não eram uma criação subjetiva sua, mas algo que já havia sido explorado pelo homem em épocas anteriores. Essa procura teve início depois do seu rompimento com Freud, quando passou por uma turbulenta crise emocional, que desencadeou um período de intensa atividade introspectiva, chamada por ele de confronto com o inconsciente. Nesse período começou a escrever o Livro Vermelho, sua obra alquímica por excelência, que será citada no transcorrer do presente trabalho, pela pertinência com a temática do mesmo. Escrito entre 1913 e 1928, esse enigmático livro, envolto em uma aura de mistério, ficou protegido do grande público por quase 100 anos, como um segredo bem guardado, até finalmente ser publicado, na íntegra, após longa e demorada negociação com os herdeiros da obra intelectual de Jung. Os anos turbulentos, que antecederam a eclosão da Primeira Guerra, deram início ao período mais importante de sua vida, no qual viveu uma espécie de “doença criativa”, ou uma “loucura inspirada”, assolado por fantasias, sonhos e visões, que para muitos soa como desorientação psicológica, ou mesmo episódios psicóticos, mas que ele percebeu tratar-se de experiências fecundas, que o levaram a desenvolver o conceito de individuação. Inicialmente esse material bruto, como a matéria-prima dos alquimistas, foi registrado no chamado Livro Negro. Depois desse primeiro registro, feito de forma quase confessional, ele reordenou esses conteúdos, anotou e desenvolveu alguns dos temas, e os transcreveu no Liber Novus, ou Livro Vermelho, dividido em duas partes (Primeiro Livro e Segundo Livro), sobre o qual trabalhou artesanalmente durante anos, transformando-o em uma verdadeira relíquia da

alma. Suas páginas, ilustradas com várias gravuras feitas à mão, e com letras no estilo gótico, trazem o testemunho de uma valiosa experiência emocional e imaginativa. Nesse autoexperimento, em que foi paciente, método e analista, Jung traduziu suas emoções em imagens, buscando compreender as fantasias que se agitavam furiosamente dentro dele, integrando-as à consciência. Como disse Walter Boechat (2014, p.26), em O Livro Vermelho de C. G. Jung: “O Liber Novus é um desabrochar constante de uma riquíssima imaginação ativa, uma polifonia de vozes interiores, um diálogo criativo com as imagens internas autônomas e uma integração gradual à consciência das potencialidades do inconsciente criativo”. No epílogo, escrito muitos anos depois, Jung reconheceu a importância da Alquimia, que o ajudou a ordená-lo dentro de um todo coerente. Por esse motivo, o Liber Novus será citado com especial atenção neste livro, assim como o Fausto, de Goethe, pois há uma relação entre ambas às obras, principalmente pela semelhança entre Mefistófeles e o espírito da profundeza. Isso mostra o quanto a Alquimia foi importante para Jung, pois o encontro com ela forneceu-lhe as bases históricas que necessitava para dar consistência às suas ideias e teorias, daí ele considerar tal encontro algo determinante em sua vida, a ponto de dizer que as experiências dos alquimistas eram as suas experiências, e que o mundo deles era, em certo sentido, o seu mundo. Assim, ao se deparar com antigos textos da arte sagrada, como O Segredo da Flor de Ouro, Jung teve a certeza de que não estava sozinho em sua busca. À medida que avançava em seus estudos, foi percebendo que havia paralelos entre conceitos da psicologia profunda com as ideias alquímicas, devido, sobretudo, ao modo de operar dos alquimistas, que projetavam na matéria conteúdos inconscientes. Com seu incansável esforço para compreender e descrever as substâncias desconhecidas, suas combinações e soluções, os alquimistas acabaram não só descobrindo relações químicas, como também encontraram uma forma de expressar a própria alma, através da sua faculdade imaginativa, embora nem sempre estivessem cientes disso. Esse era o aspecto simbólico, ou espiritual, da Alquimia, que diferia do aspecto prático e operativo, voltado aos processos físico-químicos que ocorriam na retorta. Além de projetarem seu inconsciente na matéria, animando-a com conteúdos psíquicos, o que deu origem à ideia de que havia um espírito aprisionado em seu interior, os alquimistas buscavam inspiração em sonhos, fantasias e visões, ou seja, estavam em sintonia com as formas do inconsciente se expressar.

Por isso, ao ler as obras dos alquimistas como relatos de processos psíquicos inconscientes, interpretando-os como se fossem sonhos ou visões (ou mesmo delírios, o que não era raro acontecer, dado a natureza tóxica de muitas substâncias manipuladas por eles), Jung (2003) constatou que a observação cuidadosa dos fenômenos químicos fazia afluir em suas mentes analogias e paralelos arquetípicos e mitológicos. Ocasionalmente faziam descobertas químicas, mas o que os fascinavam de verdade, de modo fecundo e duradouro, “era nada mais nada menos do que a simbologia do processo de individuação” (JUNG, 2003, §393), pois a busca empreendida por eles, visando a transformação do vil metal em ouro, correspondia, na verdade, ao processo de transformação interior. Através da Alquimia, a psicologia do inconsciente pôde ser vista a partir de uma perspectiva histórica. Além disso, esse encontro fecundo permitiu recuar ainda mais no tempo, e lançar uma ponte até os antigos gnósticos, ou seja, a psicologia tinha um parentesco distante com o gnosticismo. O fio condutor por trás destes campos aparentemente tão díspares é o inconsciente coletivo, uma das grandes descobertas empíricas de Jung, favorecido em grande parte pelo seu trabalho como psiquiatra, principalmente quando ingressou no Hospital Psiquiátrico Burgholzoli, em Zurique, primeiro como assistente do renomado Eugen Bleuler, depois como médico-chefe da instituição. Foi nos corredores desse famoso hospital que aconteceu o episódio emblemático do “falo solar”, uma espécie de marco para a Psicologia Analítica. Nessa ocasião, um paciente em estado de euforia apontou para o sol, dizendo que via um tubo pendendo dele. Segundo o seu relato, ao mover a cabeça de um lado para outro, o tubo se movia, dando origem aos ventos. Anos mais tarde Jung encontrou correspondência entre a visão delirante do paciente com o mitraísmo, religião precursora das escolas gnósticas, que trazia em seus textos sagrados uma descrição similar a um “falo solar”, algo muito próximo do que relatou o paciente nos corredores do Burgholzoli. O inconsciente coletivo ajuda a entender situações inexplicáveis como essa, fornecendo as chaves para abrir portas, que de outro modo, permaneceriam fechadas. Além de fornecer tais chaves, ele forma a base comum que permite relacionar as músicas de Syd Barrett, compostas para o disco de estreia do Pink Floyd, com imagens oriundas da ars magna, como também era conhecida a Alquimia. Nas palavras de Jung (2000b, §88):

“O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição do indivíduo”. Infinitamente mais extenso, e rico de possibilidades, ele é o substrato onde estão enraizadas experiências primordiais da humanidade, herdadas desde tempos imemoriais. Para explicá-lo, Jung (1964, p.67) se serve do exemplo do corpo humano, dizendo que se este é o resultado de uma longa evolução histórica, o mesmo é válido para a psique, se admitirmos que ela possui uma organização análoga. Nesse sentido, assim como o corpo, a psique tem sua própria história, registrada no inconsciente coletivo, e contada pelos arquétipos, as formas primordiais que estruturam o psiquismo humano. Segundo o autor: “O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta” (JUNG, 2000b, §6). Isso significa que o arquétipo é constelado à medida que se manifesta na consciência, através de imagens, ou, mais precisamente, em forma de imagens arquetípicas. Outra forma dele se manifestar é através do símbolo, uma síntese de opostos formada por elementos conscientes e inconscientes, ou racionais e irracionais, que aponta para além de si mesmo, em direção a um sentido que não pode ser formulado nem explicado de maneira satisfatória pela linguagem corrente, mas apenas pressentido. Sobre ele, diz Jung (1964, p. 20): “O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós”. Já Nise da Silveira (1997, p.72) refere-se ao símbolo como uma linguagem universal, capaz de transmitir “intuições altamente estimulantes, prenunciadoras de fenômenos ainda desconhecidos”, e que se expressa através de temas que transcendem a problemática meramente pessoal. Sua formação é influenciada pelos arquétipos, fator estruturante igualmente presente nos sonhos, visões, mitologia e arte, produções do espírito que de algum modo atuaram como elementos de inspiração em The Piper at the Gates of Dawn.

Além disso, os arquétipos aparecem também espontaneamente em situações e acontecimentos tipicamente humanos, configurando-se como uma pré-disposição herdada para agir, imaginar e simbolizar de determinada forma. Nesse sentido, são como padrões de comportamento, semelhantes aos instintos, que não precisam ser aprendidos para entrar em funcionamento. Em situações de grande importância vital, a base instintiva da psique é mobilizada, pois é justamente nesses momentos que o instinto encontra a melhor oportunidade para se manifestar. Ocorre, porém, que ele não vem sozinho, mas acompanhado de uma imagem que lhe dá significado, ou seja, uma imagem arquetípica, pois o instinto desenvolve sua ação de acordo com a imagem que lhe corresponde. Observando atentamente as imagens que surgem nessas ocasiões, constataremos que elas são, de certo modo, o resultado de inúmeras experiências típicas, retratadas, por exemplo, pelos mitos. Sobre isso, Jung (1991, §128) diz que “o momento em que aparece a situação mitológica é sempre caracterizado por uma intensidade emocional peculiar; é como se cordas fossem tocadas em nós que nunca antes ressoaram, ou como se forças poderosas fossem desencadeadas, e de cuja existência nem desconfiávamos”. Ainda segundo o autor, nesse momento não somos mais indivíduos, mas a espécie, na qual ressoa a voz da humanidade. Além dos mitos, os temas arquetípicos estão presentes também nos contos de fadas, cujas histórias representam de forma alegórica o desenvolvimento psicológico em situações chaves da vida. A religião, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana, é outro campo fértil para a manifestação dos arquétipos, com destaque para o Self (Si-mesmo), o arquétipo da unidade e totalidade, o centro ordenador da psique que corresponde à imagem interna de Deus, ou seja, o “Deus dentro de nós”. Como esse tema é bastante extenso, e foge ao escopo desse trabalho, importa-nos para o presente propósito considerar que a religião, no sentido de religere, é uma atitude do espírito humano, qualificada como uma atenção e observação cuidadosa de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”, em forma de espíritos, leis, deuses e demônios, aos quais o homem devota respeitosa consideração, ou mesmo temor, pelo seu poder e força de atração. Nesse sentido, o termo religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso.

O tema foi abordado por Jung no livro Psicologia e Religião, volume X de suas Obras Completas, no qual ele explora a ideia de que certos conteúdos provêm de uma psique mais ampla, trazendo consigo uma compreensão ou saber de um grau superior, que a consciência seria incapaz de produzir. Para ilustrar o que disse, usa como exemplo as vozes que um paciente ouvia em sonhos, e que tinham uma impressionante clareza e inteligência, fazendo-lhe afirmações ricas de sentido. Sua psique inconsciente sabia de algo que ele próprio desconhecia. Ele também se serve do exemplo da voz, na qual reconheceu uma parte da personalidade mais ampla do sonhador, para postular a existência de um centro fora do eu consciente. “Tal conclusão é admissível sempre que considerarmos o eu como subordinado ou contido no Si-mesmo (Self), que constitui o centro da personalidade psíquica total, ilimitada e indefinível” (JUNG, 1987, §67). Jung analisa então alguns sonhos desse paciente, em que aparecem com destaque, além da voz, a figura da mandala, do fogo e da quaternidade, imagens arquetípicas de natureza religiosa, que surgiram com a função de alavancar o seu desenvolvimento, que naquele momento encontrava-se estancado, numa espécie de letargia, sobretudo pela sua racionalidade excessivamente unilateral e materialista. Os sonhos, que trouxeram elementos simbólicos atribuídos à divindade, revelaram que a verdadeira religião é a da “plenitude da vida”, algo que sua fria racionalidade o impedia de perceber (ainda em relação aos sonhos, essa pessoa ficou tão impressionada e assustada, que chegou a pensar que estivesse enlouquecendo. No entanto, os mesmos sonhos que num primeiro momento foram recebidos com medo e pavor, há dois mil anos seriam recebidos e celebrados como o prenúncio de um renascimento da alma). Esse tipo de sonho, chamado grande sonho, não tem um caráter meramente pessoal, mas coletivo, com predominância de imagens mitológicas, lendárias ou arcaicas. Para melhor compreendê-los é preciso recorrer ao simbolismo histórico e primitivo, que oferecem paralelos importantes e esclarecedores sobre o significado dos mesmos. O livro Psicologia e Religião traz também como exemplo de sabedoria superior a concepção dos dogmas, fruto da atividade espontânea do inconsciente, e de seu processo vivo e criador. Nesse sentido, o dogma, enquanto enunciado religioso, não é uma verdade enrijecida, ou uma crença petrificada, mas algo emocionalmente significativo, dotado de realidade psíquica.

Assentados naquilo que Jung (1987) chamou de “experiência imediata”, ou experiência de gnose, pelo conhecimento que trazem, os dogmas, assim como os sonhos, refletem a autonomia do inconsciente. Assim, temas como a imaculada concepção, a trindade e o homem-deus, embora associadas ao universo cristão, são encontradas também nas religiões pagãs, anteriores ao cristianismo. Além disso, esses temas podem reaparecer espontaneamente, com todas as suas variações possíveis, como fenômenos psíquicos, do mesmo modo que no passado provieram de sonhos, visões e estados de transe. Como disse Jung (1987, §81) acertadamente, “antes que o homem aprendesse a produzir pensamentos, os pensamentos vieram até ele”. Se assim é com os pensamentos autônomos, base da formação dos mitos, o mesmo se aplica à arte, um terreno fértil e propício para a manifestação de símbolos e imagens arquetípicas, que ganham corpo e forma no trabalho do artista, sem que haja necessariamente uma intenção clara e consciente de sua parte. Esse tema foi abordado por Jung no livro O Espírito na Arte e na Ciência, volume XV de suas Obras Completas, no qual são descritos dois modos de criação artística, o modo psicológico e o modo visionário. No primeiro caso, o artista tem inteiro controle sobre o processo criativo, e clara intenção sobre os resultados que almeja. Esse tipo de arte, em que os conteúdos transitam nos limites da consciência humana, é chamado assim pelo fato de ser compreensível e assimilável em termos psicológicos. O tema psíquico na arte psicológica não tem nada de estranho, sendo algo costumeiramente conhecido, e facilmente assimilável. Porém, há uma modalidade de obra inteiramente diferente, chamada de “arte visionária”, um gênero especial de criação que não segue um plano pré-determinado, nem está sujeito aos arbítrios do autor, ao contrário, nesse tipo de arte ele não exerce controle e nem tem consciência plena sobre o que está criando. Algo suprapessoal está no comando, transcendendo o alcance da compreensão e das intenções conscientes, impondo-se ao autor, quer ele aceite ou não. Nesse momento o artista sente que sua obra é maior do que ele, e que terá que se submeter a esse impulso, colocando-se a seu serviço, pois entrou na esfera de um querer estranho, e dali não há como sair, até que obra esteja concluída.

Tudo acontece através de um ímpeto criativo, que chega à consciência como um imperativo que toma conta do indivíduo, apoderando-se dele, mesmo que à custa de sua saúde e felicidade. Jung (1991) refere-se a esse ímpeto como uma força da natureza que se impõe com uma violência tirânica, ou com uma astúcia sutil, sem se importar com o bem-estar daquele que é o veículo da criação. Isso soa familiar ao que aconteceu com Syd Barrett, que compôs as músicas de The Piper at the Gates of Dawn em um período de efusão criativa, que começou no fim do verão de 1966, estendendo-se até meados de 1967, onde além de compor, Syd Barrett pintou, viajou, e tocou como nunca, mas também se drogou, consumindo quantidades absurdas de LSD, e outras drogas, o que tornou sua consciência ainda mais frágil e vulnerável aos efeitos do inconsciente. Nesse curto período de tempo, enquanto esteve à frente do Pink Floyd, Syd Barrett construiu o seu legado, realizando em poucos meses um trabalho que o marcaria para toda a vida. Quanto aos alucinógenos, seguramente um dos fatores agravantes para o seu colapso mental, Aniella Jaffé (1995) referiu-se ao uso de tais substâncias como uma forma de vivenciar a numinosidade do inconsciente, sem, no entanto, defender sua utilização para tal fim. Citando Aldus Huxley, autor de Portas da Percepção, para quem o êxtase da mescalina revelou-lhe uma realidade metafísica, a autora diz que experiências dessa natureza apontam para a imagem arquetípica da “luz interior”, ou a luz que brilha no fundo de todas as coisas (JAFFÉ, 1995, p.71). Através dela, o mundo exterior torna-se “um veículo portador da projeção da realidade religiosa do inconsciente”, como testemunhou o próprio Huxley. No caso de Syd Barrett, o uso desregrado de alucinógenos contribuiu para que ele ficasse particularmente sensível ao inconsciente, que em situações assim fica muito mais ativo e invasivo. Consequentemente, a consciência, que em condições normais está melhor aparelhada para conter ou amortecer o fluxo das energias psíquicas, fica particularmente fragilizada, sujeita às invasões de imagens e afetos oriundos do inconsciente, como acontece nos delírios e alucinações. Ele próprio confirma isso ao relatar que nessa época se sentia atraído por um espírito da natureza, e que frequentemente o encontrava na figura de Pã, conforme testemunha Barry Miles, em seu livro Pink Floyd Primórdios.

Uma pessoa próxima chegou mesmo a dizer que ele acreditava que Pã lhe dera a visão e o entendimento de como a natureza opera, o que soa incrivelmente alquímico. Em relação à obra de arte, ela tem um sentido especial pelo fato de poder se libertar das estreitezas de tudo o que é personalista, e elevar-se para além do efêmero e pessoal, adentrando, portanto, no campo do espírito. Assim, no ensaio “Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte”, Jung propõe a seguinte questão: “A que imagem primordial do inconsciente coletivo pode ser reduzida a imagem desenvolvida na obra de arte?” (JUNG, 1991, §124). A questão se justifica se levarmos em consideração que a obra apresenta uma imagem de sentido mais amplo, pois, segundo ele, “esta imagem, enquanto a pudermos conhecer como símbolo, é passível de análise. Mas, se não conseguirmos descobrir nela um valor simbólico, estaremos constatando que ela nada mais significa do que aquilo que diz abertamente” (JUNG, 1991, §124). Agora, se percebermos o quanto está impregnada de significado, para além daquilo que aparenta dizer, e com uma linguagem que demanda a intuição para ser melhor compreendida, suas expressões adquirem então “o valor de autênticos símbolos, porquanto expressam, do melhor modo possível, o ainda desconhecido, e são pontes lançadas a uma longínqua margem invisível” (JUNG, 1991, §116). Em The Piper at the Gates of Dawn, a margem invisível para onde suas músicas nos lançam encontra ecos na Alquimia. Para isso, devemos ter em mente que a obra de arte, assim como os produtos do inconsciente, tem um valor simbólico, e este valor não está nos motivos que levaram o artista a criá-la, mas no efeito vivo que exerce sobre nosso espírito, ou seja, em sua finalidade, o que exige uma perspectiva construtiva sobre a obra, no sentido de que é mais importante saber para onde ela nos encaminha, do que constatar de onde ela veio. Como diz Jung (1991), é preciso perguntar pelo sentido da obra, sem se importar tanto com seu condicionamento prévio. Para ilustrar o que disse, cita como exemplo o Fausto, de Goethe, que deve ser lido como um devir contínuo e sempre de novo vivenciável, como é a nossa psique, pois parte dela se vira para trás, em busca da causalidade, presa no passado, enquanto que a outra se volta para frente, de olho no futuro, em busca da finalidade.

Outros exemplos de obra visionária citadas são o Poimandres, de Hermes Trismegisto, as vivências dionisíacas de Nietzsche, desenhos e poemas de William Blake e a filosofia poética de Jacob Boehme. Segundo Jung, elas em nada lembram a superficialidade da vida cotidiana, ao contrário, “tornam vivos os sonhos, as angústias noturnas, e os pressentimentos inquietantes que despertam nos recantos obscuros da alma” (JUNG, 1991, §143). Essas obras, que parecem provir de um mundo de luz e sombras sobre-humanas, são acompanhadas de uma obscuridade profunda, que nos deixa perplexos, surpreendidos ou mesmo confusos. Outro ponto importante em relação à criação artística está em sua autonomia, daí ela ser considerada um complexo autônomo, conceito relacionado às formações psíquicas que se desenvolvem de forma inconsciente, irrompendo na consciência sempre que atingem o limiar para tal. Pela sua natureza autônoma, o complexo independe dos arbítrios da consciência, não se sujeitando ao seu controle e inibição. A existência do complexo põe em dúvida o postulado da unidade da consciência e da supremacia da vontade, de tal modo que sua constelação resulta na perturbação dos estados conscientes, dificultando, ou mesmo impossibilitando suas intenções. Assim, ele se comporta como uma personalidade parcial, com vontade própria, submetendo o ego a um estado de não liberdade, semelhante aos estados de possessão. Aqui surge a possibilidade de uma analogia com os fenômenos psíquicos patológicos, pois estes se caracterizam justamente pela presença de complexos autônomos, sobretudo nos distúrbios mentais. Para Jung (1991, §122), “a fúria divina dos artistas se relaciona perigosamente e de modo geral com os estados patológicos, sem, contudo, identificar-se com eles”. Com a ideia de complexo, é possível traçar paralelos entre a criação artística, principalmente o modo visionário, com os transtornos mentais, por terem em comum algo que escapa ao controle da consciência. Neste ponto, podemos inserir a seguinte passagem do Livro Vermelho, cujas palavras são bastante sugestivas quanto ao quadro psíquico do artista que cria, ou de pessoas que mergulham no inconsciente: “É indubitável: quando penetras no mundo da alma, ficas doido, e um médico vai julgar-te doente” (JUNG, 2013, p.136). E ainda: “Tu te julgas louco, e em certo sentido serás louco” (JUNG, 2013, p.135).

No entanto, o que se desconhece, é que muitas vezes “o homem criativo trafega nas malhas do patológico transformando chumbo em ouro, como um alquimista” (BOECHAT, 2014, p.30). Foi assim com Jung, em seu “experimento mais difícil”, e é assim com o artista, em seu processo de criação. Quando os conteúdos das fantasias são abordados segundo uma compreensão construtiva, levanta-se a questão sobre os objetivos que a pessoa tentou alcançar com a criação de seu sistema (visões, delírios). Esses objetivos não são conscientes, mas uma elaboração inconsciente dotada de finalidade, o que explica o seu caráter prospectivo (ou teleológico), e consequentemente seu valor simbólico. Em Psicogênese das Doenças Mentais, volume III de suas Obras Completas, Jung diz que se observarmos a realidade sem preconceitos e nos perguntarmos o que pretende o sistema de delírios, perceberemos logo que este realmente pretende alguma coisa. Nesse mesmo livro, em seu artigo “A Esquizofrenia”, Jung fala do inconsciente como uma camada profunda, dotada de um caráter universal, como os motivos míticos característicos da fantasia humana. Essa foi uma importante e autêntica descoberta, a constatação de que há motivos míticos e conteúdos arquetípicos nas fantasias dos doentes mentais, embora não sejam facilmente assimiláveis, pois chegam à consciência de forma fragmentada, numa linguagem truncada, demandando um minucioso trabalho de elucidação e interpretação, mas que leva a resultados fantásticos e surpreendentes, mostrando que por trás do sem sentido há um sentido a ser desvelado. Uma das formas de se desvelar esse sentido é através da arte, daí o exemplo notável de Nise da Silveira, e seu trabalho pioneiro com os pacientes do Hospital Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, que resultou no Museu Imagens do Inconsciente. Sobre o seu trabalho, ela diz que as manifestações da doença se originam de atividades psíquicas comuns a todas as pessoas, e que são formuladas de forma simbólica na loucura. Citando Jung, Nise da Silveira (1981) diz que até as coisas mais absurdas são símbolos compreensíveis em termos humanos, e que habitam o íntimo de todos nós. Assim, na loucura não descobrimos nada de novo, na verdade, estamos olhando para os fundamentos de nosso próprio ser.

Vejamos então como os processos inconscientes tornam-se visíveis através das imagens arquetípicas, simbolizando experiências ricas de sentido, vividas por incontáveis seres humanos através dos milênios. Uma das internas do Hospital Psiquiátrico Pedro II disse certa vez que “queria ser flor”. Após dizer isso, essa senhora, chamada Adelina, pintou uma sequência de quadros que mostravam claramente sua transformação de mulher em vegetal. Ao abordar os quadros, Nise da Silveira descreve o quanto é visível a metamorfose que a transformou numa planta, como mostra, por exemplo, o quadro de uma mulher com os braços erguidos emergindo da corola de uma grande flor, ou nos ramos floridos que fazem brotar uma cabeça feminina. Essa passagem para outros reinos da natureza, em que prevalece a identificação com o mundo vegetal, revela que no âmago desses fenômenos, estão presentes formas herdadas de imaginar, vivenciadas por incontáveis pessoas, em situações análogas, desde tempos imemoriais. Nise da Silveira se serve do mito de Dafne, que foi transformada em flor pela sua mãe, para explorar essas imagens, propondo que as mesmas expressam o processo de fixação no reino das mães, ou seja, o aprisionamento do ego nos níveis arcaicos do inconsciente. Adelina, uma pessoa iletrada, nascida no interior do Brasil, filha de humildes camponeses, e com histórico de longos internamentos psiquiátricos, reproduziu em suas telas temas arquetípicos que deram um novo sentido às imagens pintadas por ela, e um entendimento sobre o que acontecia em seu mundo interior. Isso confirma que a tarefa do terapeuta consiste em “estabelecer conexões entre as imagens que emergem do inconsciente e a situação emocional que está sendo vivida pelo indivíduo” (SILVEIRA, 1981, §116). O êxito dessa tarefa se confirmou no dia em que Adelina pintou um vaso, no qual pela primeira vez brotou uma flor, e não uma mulher. Através da arte, aos poucos ela superou o estado de fusão e identificação com o reino vegetal. Para mostrar como os temas arquetípicos se repetem, vejamos uma música composta por Syd Barrett, no final de 1967, pouco tempo depois de lançar The Piper at the Gates of Dawn, e que apresenta ressonâncias com o tema da metamorfose em planta. Essa música chama-se Vegetable Man, na qual faz um retrato sombrio de si mesmo, descrevendo-se como um homem vegetal, justamente num momento em que sua esquizofrenia estava num estágio avançado, o que significa que internamente ele já estava

dominado pelo inconsciente, com sinais de regressão ao mundo arcaico da Grande Mãe, com seu poder irresistível e terrificante, simbolizado pelo reino vegetal. “e toda a sorte é aquilo que eu comecei é aquilo que eu desgastei é o que você vê é o que eu devo ser isto é o que eu sou. Homem vegetal. Onde está você? Homem vegetal! Homem vegetal! Homem vegetal!” Embora em contextos absolutamente distintos, mas seguramente sustentados sob um mesmo fundo arquetípico, essas duas situações, tão díspares, descrevem um processo de metamorfose, em que um ser humano torna-se planta, mostrando assim o que são as disposições inatas para imaginar e agir, capazes de criar imagens estruturalmente semelhantes, nesse caso vindas de pessoas oriundas de um meio social e cultural absolutamente distintos. Se há algo em comum entre elas, ou que as aproxime, é a esquizofrenia, esse “estado inumerável do ser”, como disse Nise da Silveira, sugerindo que tal 'patologia' é um modo particular, entre inúmeros outros, de estar no mundo. A metamorfose do homem em vegetal constatada nas pinturas de Adelina, e na música visceral de Syd Barrett, já era representada nos tempos medievais, em imagens de plantas com feições humanas (ou homens com feições de plantas).

Gravura do século XV

No contexto alquímico, Pandora, de 1582, é uma gravura que traz o desenho de uma árvore nascendo da virgem mãe mercurial, como enfatizou Alexander Roob (2011), em Alquimia em Mística. Nela, observa-se uma árvore frondosa saindo da cabeça de uma mulher, cujo corpo é o tronco, e os braços os galhos. Outro exemplo, que também reproduz o tema alquímico da metamorfose em planta, está na figura de Adão, representado pelos alquimistas com uma árvore plantada sobre o seu corpo, estendido no chão. Jung (2003), em Estudos Alquímicos, traz uma série de desenhos de árvores pintadas por seus pacientes. Entre eles, destacam-se alguns nos quais a árvore apresenta forma ou feições humanas, ou traz corpos e cabeças de pessoas fusionadas a ela. Como salienta o autor, tais imagens são produtos espontâneos da fantasia criadora, com o intuito de expressar vivências produzidas quando conteúdos inconscientes chegam à consciência. Nesse mesmo livro, no capítulo A Árvore Filosófica, há um tópico chamado “a árvore como ser humano”, em que ele lembra das crenças antigas, que diziam que o homem provém das árvores ou das plantas. Reporta-se à árvore como um símbolo da gnose e da sabedoria, relacionando-a também com o Mercúrio alquímico, o spiritus vegetativus (espírito da vegetação). Em uma passagem do Livro Vermelho, Jung vê essas propriedades vegetativas brotando nele: “Estou todo coberto de folhas verdes que brotam do meu corpo” (JUNG, 2013, p.239). Mais adiante, ele refere-se a si mesmo como um sátiro que mora na floresta. Um ser arbóreo que ama o verdejante, murchando e esverdeando com as árvores. Nem bom, nem mau, somente vivo, e vestido naturalmente. “Não é gente, mas natureza” (JUNG, 2013, p.243). Esses exemplos mostram a inequívoca relação entre fantasias psicóticas, arte, mitos e Alquimia, confirmando que derivam de um substrato comum, o inconsciente coletivo, de onde emergiu a energia criativa, ou o impulso criador, que também deu forma a The Piper at the Gates of Dawn, um disco único e inigualável, repleto de temas e motivos arquetípicos. Para abordá-lo, não vamos nos ater à psicologia pessoal de Syd Barrett, pois a essência de uma obra de arte não está nas particularidades de seu autor, muito menos em suas condições mentais. Ao contrário, sua essência eleva-se muito acima dos aspectos pessoais, ou da personalidade individual, para penetrar no reino do espírito, de onde se

origina, e para onde se encaminha. Há algo de impessoal na obra de arte, e isso é o que verdadeiramente importa. Nesse sentido, a esquizofrenia pode ter funcionado como um catalisador que favoreceu a irrupção de energias psíquicas, que emergiram dos níveis arcaicos da psique, mas certamente não deve ser considerada a causa primária da inspiração de Syd Barrett (embora, reconheçamos, essa ideia soe bastante tentadora). Com isso, está sendo proposto que The Piper at the Gates of Dawn se assenta em uma “vivência originária”, algo comum aos místicos, visionários e artistas, e que nos remete à “experiência imediata”, citada anteriormente, em relação aos fenômenos religiosos. O artista cria a partir dessa vivência, que desperta nele um tipo de visão que se manifesta como símbolo, a “expressão de uma essencialidade desconhecida” e a qual Jung (1991, §151) se referiu como “um pressentimento poderoso que quer expressar-se, um turbilhão que se apodera de tudo o que se lhe oferece, imprimindo-lhe forma visível”. Sua natureza obscura demanda o uso de figuras mitológicas, que permita ao artista expressá-las, falando ao espírito e coração dos homens. Assim, Goethe serviu-se do mundo telúrico da Grécia antiga, Nietzsche recorreu ao estilo sagrado dos ditirambos, e William Blake à fantasmagoria mítica, e ao mundo das imagens bíblicas. O que esses artistas mostram, e aqui incluímos Syd Barrett, com sua predileção pelo universo infantil, é que todo grande criador apresenta uma dualidade, isto é, ele é tanto um ser individual, com uma identidade própria, condicionada ao seu tempo, e a sua própria história, quanto o veículo de um processo maior, isento de condicionamentos terrenos, um processo criador que se impõe como algo impessoal, além da esfera mundana. O resultado acaba sendo uma vida cheia de conflitos, em que dois poderes lutam dentro dele. Assim, de um lado temos o homem comum, com suas exigências egoicas, e de outro a paixão criadora, que fala por si mesma, através da arte, pondo por terra os desejos e caprichos pessoais. Nesse ponto já não há mais querer, é a arte que quer por ele, e através dele, mesmo que isso lhe custe a saúde e a felicidade. Isso explica o destino trágico de muitos artistas, que sucumbem em nome da arte, que os toma de assalto, impondo-se como algo mais forte, e da qual dificilmente se consegue escapar. “São raros os homens criadores que não pagam caro pela centelha divina de sua capacidade genial” (JUNG, 1991, §158).

Segundo o autor, é como se cada pessoa nascesse com um capital de energia vital. No caso do artista, o seu impulso criador arrebatará a maior parte dessa energia, deixando muito pouco para seu desenvolvimento pessoal, de tal modo que o lado humano é sangrado (ou sacrificado) em benefício do seu lado criador. Se os dons criadores prevalecem, prevalece o inconsciente como força plasmadora da vida e do destino. Nesse caso, a consciência será arrastada pela torrente impetuosa do inconsciente, como uma testemunha à mercê dos acontecimentos. Citando Carus, Jung (1991) diz que o gênio se caracteriza pela sua maneira especial de se manifestar, e que tal espírito, superiormente dotado, é marcado pelo fato de que por mais que goze de clareza e liberdade, ele é determinado e conduzido pelo inconsciente, “esse deus misterioso que o habita”. Assim, visões dele brotam, sem que saiba de onde vêm; é impelido a agir e a criar, sem saber para que fim; dominado por um impulso mais forte, é levado ao devir, sem que se saiba por quê. Por fim, uma última consideração sobre Syd Barrett, em quem é possível vislumbrar uma “dicção gnóstica”, desordenada, mítica e lírica, na qual nada é literal, e tudo é metafórico. Para isso, vamos nos servir do que disse Marilia Fiorillo, em O Deus Exilado, e retomar os autores gnósticos, com sua atividade desenfreada, e escritos que transpiram uma espécie de “estado febril”. Com eles, o que é dito não precisa ser justificado. O recurso mais utilizado por esses “insolentes”, cheios de imaginação, é o paradoxo, somado a uma fantasia ilimitada, e uma inventividade incontrolável. Seus verbos preferidos são perturbar, pasmar, embriagar. Soma-se a isso o apelo sensorial de seus textos, munidos de metáforas e imagens torrenciais que nos cercam de todos os lados. Como disse Fiorillo (2008), havia neles uma ascese às avessas, extrovertida, vigorosa, decorrente de um tumulto interno, muito diferente da paz aconchegante dos canônicos. Posto isso, é inevitável não pensarmos que há algo de gnóstico em Syd Barrett, afinal, para ele, assim como para esses espíritos indomáveis, pensar e escrever, é abusar da imaginação. É maravilhar-se. Esse é um estado que não acalma, nem acomoda. Ao contrário, espanta, perturba, podendo até mesmo gerar certa sabedoria, ou gnose, como as músicas de The Piper at the Gates of Dawn, pois o ponto alto dessa manifestação divina, é o despertar.

Extraído do livro Syd Barrett e as Imagens Alquímicas de The Piper at

the Gates of Dawn (e-book Amazon) www.psicologiajunguiana.psc.br

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