Textos de John Newton Tradução
Helio Kirchheim
Textos de John Newton
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Causas, Sintomas e Efeitos Mais Evidentes de um Declínio na Vida Espiritual Os crentes estão, por natureza, mortos em delitos e pecados, da mesma forma que qualquer outra pessoa — mas, pela fé no Filho de Deus, são feitos participantes de uma nova e infindável vida. Eles recebem essa vida dEle; e Ele disse: “Porque eu vivo, vós também vivereis”1. Mas a vida dessa vida, se posso dizer assim, a sua manifestação e exercício, está sujeita a grandes mudanças. Uma pessoa doente ainda está viva — mas ela perdeu a disposição, a atividade, e o vigor que possuía quando estava com saúde. Há muita gente que, se de fato está viva para com Deus (como gostaríamos de crer) — está no mínimo doente, indiferente, e numa situação de declínio. Que o grande Médico possa restaurá-los! Às vezes se diz que “estar ciente de uma doença é meio caminho andado para a cura”; o que se aplica ao nosso caso, pois, a não ser que estejamos cientes da nossa enfermidade e do perigo que corremos — não estaremos sinceramente preocupados com a cura. As causas e os sintomas ou efeitos de um declínio desse tipo são numerosos, e nem sempre é fácil identificá-los, já que estão mutuamente interligados e potencializam um ao outro. Aquilo que talvez se identifique como a causa, em muitos casos, é também uma prova de que a moléstia já começou; e os efeitos talvez sejam considerados como se fossem as causas, o que confirma ainda mais a doença e deixa claro o quanto é perigosa. Dentre as CAUSAS mais comuns, podemos destacar acima de tudo o erro doutrinário. Não incluo todo e qualquer lapso ou opinião enganosa que se possa adotar ou possuir; mas existem alguns erros que, pela rapidez e violência com que agem, podem ser comparados a “veneno”! Foi assim com os gálatas que, por darem ouvidos a falsos mestres, foram desviados da simplicidade do evangelho; com a consequência de que rapidamente perderam a bem-aventurança que uma vez tinham provado. O veneno raramente é tomado puro; mas, se misturado com a comida, não se suspeita do mal até que seja descoberto por meio dos seus efeitos. Dessa forma, aqueles que se empenham em envenenar as almas, no geral usam alguma verdade importante e proveitosa, como veículo por meio do qual transportam a droga maligna até a mente dos descuidados! Talvez falem bem da pessoa e da expiação de Cristo, ou exaltem as riquezas e a liberdade da graça de Deus — enquanto ao mesmo tempo, sob o véu desses bonitos disfarces, introduzem predisposição contra a santidade ou a absoluta necessidade da santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor. Já outros falam vigorosamente em termos gerais em favor da santidade pessoal — mas o alvo deles é privar o coração da dependência do sangue do Salvador, e das influências do Seu Santo Espírito. A 1
João 14.19
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conduta mais refletida e exata, sem o sangue do Salvador e sem a influência do Espírito Santo, é tão diferente da santidade do evangelho quanto são diferentes de um homem vivo uma fotografia, ou uma estátua, ou um cadáver. Qualquer pessoa que estiver separando, então, as coisas que Deus uniu — quer seja no modo de pensar ou na sua experiência — já está infectado com uma doença mortal, e a sua religião, a não ser que Deus misericordiosamente intervenha, haverá de degenerar ou em licenciosidade ou em formalismo! Nós vivemos em dias em que muita gente está sendo jogada de um lado para o outro, como navios sem leme nem piloto, por vários ventos de doutrina. Por essa razão, aqueles que se preocupam com o bem-estar de suas almas, não poderão nunca se exceder na vigilância contra o espírito de curiosidade e desejo por “novidades”, o qual o apóstolo descreve com a metáfora da coceira nos ouvidos2 (um desejo de ouvir cada pregador novo e diferente que apareça), a fim de não absorverem erros sem que o percebam, e se tornem presa dos artifícios e da astúcia daqueles que se põem de emboscada para enganar! O orgulho espiritual e a auto-admiração, da mesma forma, haverão de causar infalivelmente um declínio na vida divina, embora a mente possa ser preservada da infecção dos erros doutrinários, e embora o poder da verdade do evangelho possa, por certo tempo, ter sido experimentada de fato. Se o conhecimento e os talentos que adquirimos, e mesmo o progresso na graça nos seduzem a termos uma boa opinião de nós mesmos, como se fôssemos sábios e bons — aí estamos de fato enlaçados, em perigo de queda a cada passo que damos, de nos desviar do reto caminho, e de agir de mal a pior, sem capacidade de nos corrigir ou mesmo de nos dar conta dos nossos desvios — a não ser que o Senhor misericordiosamente Se interponha, restaurando-nos a um espírito de humildade e dependência dEle mesmo. Porque Deus, que dá maior graça ao humilde — resiste aos soberbos! Ele os contempla com repulsa — em proporção ao grau em que eles admiram a si mesmos. A lei inflexível do Seu reino é que, todo aquele que a si mesmo se exalta — será humilhado. Os cristãos genuínos, por meio do mal que sobrevive em seus corações, e por meio das sutis tentações do inimigo, estão sujeitos, são somente à ação desse orgulho que é comum a nossa natureza decaída — mas a certa espécie de orgulho que, embora seja absurdo e intolerável em qualquer pessoa, se encontra apenas entre aqueles que professam o evangelho. Nós nada possuímos que não tenhamos ganhado3, e por essa razão ficar orgulhoso de títulos, saúde, conhecimento, sucesso, ou qualquer outra vantagem temporal por meio da qual a providência de Deus nos distinguiu — é absolutamente pecaminoso! E para aqueles que se confessam “pecadores”, e por isso merecedores de nada senão miséria e ira — orgulhar-se das bênçãos especiais que provêm do evangelho da sua graça, é uma perversidade de que nem mesmo os demônios são capazes!
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2 Timóteo 4.3 1 Coríntios 4.7
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O apóstolo Paulo estava tão consciente do perigo que corria de se exaltar mais do que o devido, por causa das ricas revelações e dos favores peculiares que o Senhor lhe proporcionou, que disse o seguinte: “Foi-me dado um mensageiro de Satanás para esbofetear-me”4. Ele menciona esse difícil decreto de Deus como uma misericórdia extra, porque ele o reconheceu como algo necessário e projetado para conservá-lo humilde e atento a sua própria fraqueza. Os pastores que foram honrados com habilidades singulares e sucesso têm grande necessidade de vigilância e oração a esse respeito. O Senhor não vê como vê o homem5. Os ouvintes simples de coração têm facilidade de reverenciar o seu pregador favorito, e quase considerá-lo mais do que um mero homem no púlpito, tomando por certo que ele está profundamente influenciado pelas verdades que ele, aparentemente com tanta liberdade e poder, lhes apresenta; enquanto, talvez, o pobre verme secretamente esteja se afundando em auto-congratulação, regozijando-se com os números e a atenção daqueles que se apóiam nas suas palavras! Talvez esse tipo de pensamento vez por outra brote na mente dos melhores pastores; mas, se forem tolerados, se se tornarem um hábito, e se penetrarem fortemente na idéia que ele forma a respeito do seu próprio caráter; e se, enquanto ele professa pregar Cristo Jesus o Senhor — ele estiver pregando a si mesmo, e buscando a sua própria glória — ele se torna culpado de alta traição contra a Majestade daquele em cujo nome está falando. E mais cedo ou mais tarde, os efeitos do seu orgulho se tornarão visíveis e notórios. Erros de julgamento, grosseira conduta imprópria, enfraquecimento no zelo, nos dons, na influência — são males que lamentavelmente aparecem quando o orgulho espiritual está no controle, quer seja em público quer seja na vida privada. “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 Coríntios 4.7). “O SENHOR dos Exércitos formou este desígnio para denegrir a soberba de toda beleza e envilecer os mais nobres da terra” (Isaías 23.9). Podemos designar o seguinte como uma terceira causa frequente de um declínio espiritual: Um desejo e uma atração exagerados pelas coisas do presente mundo. A não ser que esse princípio maligno seja mortificado na raiz — pela doutrina da cruz — com o tempo ele haverá de prevalecer sobre a mais gloriosa profissão de fé. Esse amor pelo mundo, que é inconsistente com o verdadeiro amor a Deus — manifesta-se de duas formas diferentes, conforme a inclinação humana, seguindo temperamento e hábitos diferentes: A primeira é a cobiça ou a voracidade por ganho. Essa foi a ruína de Judas, e provavelmente a causa da deserção de Demas. Por meio da honrosa menção que Paulo faz dele em algumas das epístolas, Demas parece ter merecido, por certo tempo, muito da confiança e estima de Paulo. Contudo com o tempo a sua paixão cobiçosa prevaleceu, e a última informação que temos dele, por meio do apóstolo, é
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2 Coríntios 12.7 1 Samuel 16.7
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a seguinte: “Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica” (2 Timóteo 4.10). Por outro lado, há pessoas que não podem ser acusadas de amarem o dinheiro em si — porque elas, em vez de acumular, dissipam o dinheiro. Contudo elas estão igualmente debaixo da influência desse espírito mundano! Elas manifestam o seu coração mundano por meio do refinado e caro gosto por roupas, mobília e festas — coisas essas sempre inadequadas a quem se professa cristão. Não é fácil estabelecer com exatidão uma linha para a conduta cristã nesses assuntos, que seja própria para as diferentes situações em que a providência de Deus nos colocou. Também isso não é necessário para aqueles que são pobres de espírito — e retos de coração. Um simples desejo de agradar a Deus, e de adornar o evangelho, haverá de solucionar a maioria dos casos de como um cristão deveria gastar seu dinheiro — coisas de que se ocupam as mentes apequenadas e levianas. A inclinação do nosso coração sempre haverá de regular e dirigir nossos gastos voluntários. Aqueles que amam o Senhor, e cujo espírito está vigorosamente a Seu serviço, haverão de evitar tanto a mesquinharia como a extravagância egoísta. Em vez disso, eles se inclinarão ao frugal quando o assunto for gastar dinheiro consigo mesmos — a fim de que sejam capazes de promover a causa de Deus, e para socorrer as necessidades do Seu povo. Os avarentos, que conseguem contentar-se com a mera formalidade da religião, tentarão acumular tudo o que puderem poupar — com o fim de gratificar a própria avareza! Outros gastarão tudo o que puderem economizar — para satisfazer a própria vaidade, ou os seus apetites mundanos! Não é fácil dizer qual desses males é o maior. Talvez dentre os dois, o avarento seja o menos acessível a sentir-se culpado, e em consequência o mais difícil de recuperar. Mas um desejo de extravagância e indulgência, se persistentemente cultivado, gradualmente haverá de conduzir a tal conformidade com o espírito e com as regras do mundo, ao ponto de enfraquecer com toda a certeza, se não suprimir por completo, o exercício da piedade essencial. Qualquer que seja o grau em que o “amor do mundo” prevalecer, a “saúde da alma” proporcionalmente haverá de declinar. “Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (1 Timóteo 6.9,10). Poderíamos enumerar muitas outras causas — mas a maioria delas pode ser reduzida àquelas que já mencionamos. Praticar um único pecado, ou omitir a prática de um único dever — quando isso for tolerado contra a luz da consciência, e, se for algo habitual, será suficiente para enfraquecer a alma, torná-la infrutífera e desassossegada, e a deixará exposta a toda e qualquer tentação que aparecer. Às vezes, a infidelidade à luz já recebida perverte a capacidade de julgamento, e então os erros que parecem produzir algum estímulo ou pretexto para um pecado do qual
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o coração ainda não desistiu, são prontamente aceitos, a fim de esquivar-se dos protestos da consciência. Noutras ocasiões, os erros, descuidadamente aceitos, enfraquecem de forma imperceptível o senso de dever, e passo a passo espalham a sua influência por toda a conduta. Com frequência, o apóstolo menciona em conjunto a fé e uma boa consciência, visto que são inseparáveis; abrir mão de uma é abrir mão de ambas. Aqueles que conservam o mistério da fé numa consciência pura serão preservados num espírito próspero, crescerão na graça, avançarão de força em força, haverão de andar honrada e prosperamente. Mas no momento em que as doutrinas ou regras do evangelho forem negligenciadas, se espalhará uma debilitante enfermidade nos órgãos vitais da religião, uma enfermidade mortal, e da qual ninguém se reabilita — a não ser aqueles a quem Deus misericordiosamente concede a graça do arrependimento para a vida. Os SINTOMAS de uma tal doença da alma são tão numerosos e variegados quanto o são os temperamentos e as situações da vida. A seguir, apresentamos alguns poucos que são mais frequentes e aparentes, e que indicam com segurança um declínio religioso. A doença física com frequência é acompanhada de perda de apetite, inatividade e desassossego. De forma semelhante, a doença da alma remove o descanso e a paz, provoca tédio e apatia no serviço a Deus, e uma indisposição para com os meios da graça6, indisposição para esperar em Deus em secreto, e indisposição para as ordenanças públicas7. Esses compromissos, tão necessários para preservar a saúde espiritual, são gradualmente negligenciados e abandonados, ou a participação deles se definha num ciclo formal, sem sabor nem benefício. Para a pessoa sadia, a comida simples é saborosa — mas o paladar, quando afetado pela doença, torna-se exigente e difícil de satisfazer, ansiando por variedade e iguarias. Dessa mesma forma, quando o genuíno leite do evangelho, verdade simples exposta com palavras simples, não mais satisfaz — mas a pessoa exige estranhas especulações, ou a espumosa eloquência da sabedoria humana, a fim de cativar a sua atenção, isso é mau sinal. Pois essas coisas destinam-se a fomentar não a normalidade, mas a doença. Depois de desprezar ou menosprezar os meios que Deus designou para satisfazer a alma — o passo seguinte normalmente é buscar alívio por meio da conformação com o espírito, os costumes e os entretenimentos do mundo. E essa conformação, uma vez tolerada, em breve será defendida; e aqueles que não aprovam nem imitam essa conformidade com o mundo serão acusados de estar sob a influência de um espírito mesquinho, legalista ou farisaico. O professador enfermo encontra-se num delírio, o qual impede que ele perceba a sua doença — e ele em vez disso supõe que a sua mudança de conduta se 6 Meios da graça: São as práticas pessoais do cristão, que o põem em condições de usufruir a graça de Deus e nela crescer: a oração, a leitura da Bíblia, e a meditação na Palavra. 7 Ordenanças públicas: São as práticas “coletivas” das quais o cristão deve participar: reunir-se com os irmãos para adoração pública, o batismo, a santa ceia, e a oração com os irmãos.
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deve a um aumento de sabedoria, luz e liberdade. Ele considera o tempo em que era mais restrito e circunspecto como um tempo de ignorância, ele vai sorrir diante da lembrança daquilo que ele agora considera como seus escrúpulos infantis, e congratula-se por ter-se livrado alegremente deles, e agora julga que servir a Deus e ao mundo não é nada tão incompatível como já chegou a pensar que fosse8. Contudo enquanto dessa forma afrouxa a regra da sua própria conduta, ele se torna um observador criticamente severo da conduta dos outros. Quando surge a oportunidade, ele censura asperamente as faltas e até mesmo os lapsos dos pastores e dos que professam a fé, e fala dessas coisas — não chorando como fez o apóstolo — mas com prazer, e se esforça para convencer-se de que essa tal exatidão de que tanto se fala não passa de uma capa de hipocrisia ou então é fruto de superstição. Os cristãos verdadeiros raramente se deparam com tanta ironia e julgamento equivocado, ou reprimendas injustas, do que as que vêm daqueles que, tendo sido nalgum tempo seus companheiros, mais tarde os abandonaram. Quando o distúrbio está no auge, torna-se de fato perigoso, e, aos olhos humanos, desesperador. Mas o poder pertence a Deus. Que Ele Se lembre com misericórdia daqueles que estão para morrer, para restaurá-los a uma mente sóbria, e para serem recuperados para Ele mesmo. De outra forma, “... melhor lhes fora nunca tivessem conhecido o caminho da justiça do que, após conhecê-lo, volverem para trás, apartando-se do santo mandamento que lhes fora dado”9.
O segredo do contentamento! (Cartas de John Newton) “De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento” (1 Tm 6.6). 17 de agosto de 1776. Caro amigo: Convém que cada cristão diga o seguinte: Não é essencial que eu seja rico — ou que seja aquilo que o mundo julga como sábio. Não é essencial que eu seja saudável — ou admirado pelos vermes iguais a mim. Não é necessário que eu passe por esta vida numa situação de prosperidade e conforto exterior. Essas coisas podem acontecer, ou 8 9
Tiago 4.4 2 Pedro 2.21.
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podem não acontecer — conforme o Senhor, na Sua sabedoria, as decrete para mim. Mas para mim é essencial ser humilde e espiritual, buscar comunhão com Deus, adornar minha confissão do Evangelho, e colocar-me submisso à Sua disposição, em qualquer forma, em qualquer trabalho ou sofrimento que Ele julgar próprio me chamar para glorificá-lO neste mundo. Não é essencial que eu tenha vida longa — mas é altamente aconselhável que, enquanto eu viver, eu viva para Ele! É nisto, então, que vou fixar os meus desejos; e aqui, tendo a Sua Palavra como meu guia, vejo-me livre de pedir de forma errada. Que eu possua a Sua presença, que eu tenha sabedoria para conhecer o meu chamado, e oportunidades e fidelidade para crescer nisso; e quanto ao resto, Senhor, ajuda-me a orar com sinceridade da seguinte forma: Qualquer coisa que Tu quiseres, A qualquer hora que Tu quiseres, Da forma que Tu quiseres. “...aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez” (Filipenses 4.11,12).
Sobre Examinar as Escrituras Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. (João 5.39) Essa frase, no grego, é ambígua; e tanto pode ser traduzida, conforme quisermos, como um mandamento: 'Examinai as Escrituras'; ou como simples afirmação: 'Examinais as Escrituras'. E como as palavras foram ditas aos escribas e fariseus, que eram muito estudiosos da letra das Escrituras, talvez este último sentido seja o original. A diferença não é significativa; e qualquer dos dois sentidos nos traz instrução. Se as recebermos como um mandamento, temos de considerar que nos é dado pelo próprio Senhor, cujos discípulos professamos ser; como obrigação voluntária de nossa própria parte, já que nelas julgamos ter e dizemos ter a vida
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eterna; temos de nos submeter completamente a elas, já que elas e somente elas testificam de Cristo, em cujo conhecimento consiste nossa vida eterna. Se entendermos a expressão como simples afirmação, da forma que foi proferida para os escribas e fariseus, isso nos dará uma útil cautela para não pôr peso demais nem no que pensamos nem no que fazemos. Porque essas pessoas, de alguma forma, tinham um correto sentimento para com as Santas Escrituras: elas criam que nelas estava a vida eterna; e, de certa forma, isso as motivava a ler, sim a perscrutar essas Escrituras. Mas apesar de assim pensarem e assim agirem, e apesar de as Escrituras, da primeira à última página testificarem de Cristo, essas pessoas não conseguiam entender nem receber esse testemunho, mas rejeitaram o Messias que afirmavam esperar, e se empenharam em vão nessa exploração das Escrituras. Minha idéia é apresentar a você o meu pensamento na seguinte ordem: primeiro, mencionar alguns poucos requisitos, sem os quais é impossível entender corretamente as Escrituras; segundo, mostrar como as Escrituras testificam de Cristo; terceiro, examinar o que significa esse testemunho; quarto, compelir à prática do exame das Escrituras baseado no argumento do texto, que é igualmente aplicável a nós como o foi aos antigos judeus, "porque nelas julgamos ter a vida eterna".
I. O primeiro requisito que desejo mencionar é SINCERIDADE, ou seja, um real desejo de ser instruído pelas Escrituras, e de submeter tanto nossos sentimentos como nossas práticas para serem controladas e dirigidas por aquilo que lemos nelas. Sem isso, nossa leitura e pesquisa redundará apenas em nossa maior condenação, e nos levará ao pesado julgamento do servo que conheceu a vontade do seu senhor e não a cumpriu. Um notável exemplo disso temos nos capítulos 42 a 44 de Jeremias. Depois da destruição de Jerusalém, e da morte de Gedalias, o povo que sobrou constrangeu o profeta a consultar o Senhor por eles, sobre se deviam ou não descer ao Egito. O pedido deles era claro: "... que o Senhor, teu Deus, nos mostre o caminho por onde havemos de andar e aquilo que havemos de fazer" (42.3). O compromisso deles foi muito solene: "Seja o Senhor testemunha verdadeira e fiel contra nós, se não fizermos segundo toda a palavra com que o Senhor, teu Deus, te enviar a nós outros. Seja ela boa ou seja má, obedeceremos à voz do Senhor, nosso Deus, a quem te enviamos, para que nos suceda bem ao obedecermos à voz do Senhor, nosso Deus" (42.5,6). Mas a hipocrisia deles era detestável no mais alto grau. O Senhor, que vê os mais íntimos propósitos da alma, não deixou de ver suas falsas intenções. Em resposta a eles, expressamente proibiu que entrassem no Egito; garantindo-lhes que a maldição os seguiria, e que ali eles certamente pereceriam. Contudo eles desceram, e comprovaram que o profeta lhes havia dito: "... vós mesmos vos enganastes, pois me enviastes ao Senhor, vosso Deus, dizendo: Ora por nós ao Senhor, nosso Deus; e, segundo tudo o que disser o Senhor, nosso
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Deus, declara-no-lo assim, e o faremos;..." (42.20). Aí então eles falaram honestamente, quando disseram ao profeta: "Quanto à palavra que nos anunciaste em nome do Senhor, não te obedeceremos a ti; antes, certamente toda a palavra que saiu da nossa boca,..." (44.16,17) Nenhum de nós ousaria falar com essas mesmas palavras: mas se trazemos nossas opiniões e propósitos preconcebidos, não para examiná-los rigorosamente pelo teste das Escrituras, mas para encontrar ou distorcer alguma passagem na palavra de Deus para nos encorajar ou justificar a nós mesmos; se nosso desejo não é simplesmente ser dirigidos no correto caminho dos mandamentos de Deus; se nós de verdade não queremos descobrir cada erro e cada mal que esteja em nós, a fim de abandoná-los; estaremos imitando de perto esses enganados, obstinados e insolentes judeus, e nosso procedimento será tão falso quanto o deles, e estaremos sujeitos ao mesmo terrível julgamento pela nossa hipocrisia: a maldição de Deus sobre nossos intentos aqui, e a porção reservada a seus inimigos no além. Tudo está errado, onde falta essa sinceridade; nem orar, nem ouvir, nem ler — nada será de proveito. As Escrituras estão repletas das mais severas ameaças contra aqueles que se atrevem a zombar do Deus que tudo vê. Quero apenas apresentar um texto, Ezequiel 14.3,4: "Filho do homem, estes homens levantaram os seus ídolos dentro do seu coração, tropeço para a iniqüidade que sempre têm eles diante de si; acaso, permitirei que eles me interroguem? Portanto, fala com eles e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Qualquer homem da casa de Israel que levantar os seus ídolos dentro do seu coração, e tem tal tropeço para a sua iniqüidade, e vier ao profeta, eu, o Senhor, vindo ele, lhe responderei segundo a multidão dos seus ídolos;..." Digo isto a respeito da atitude interior, mas alerto também quanto ao abandono das ordenanças de Deus, em especial a adoração pública. Estes são os meios apontados por Deus, nos quais nos ordena aguardar, e onde Ele freqüentemente Se deixa encontrar, mesmo por aqueles que não O procuram. Mas quero fazer a essas pessoas um sério pedido, que considerem a terrível condição em que se encontram, se a morte as surpreender nesse estado de insinceridade, que faz com que até suas orações e sacrifícios sejam "uma abominação ao Senhor", e perverte aquilo que foi designado para ser de proveito, tornando-o em ocasião de queda para elas mesmas. Uma segunda coisa necessária é DILIGÊNCIA. Isto, juntamente com a qualidade anterior, é descrito no livro de Provérbios: "Filho meu, se aceitares as minhas palavras e esconderes contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o coração ao entendimento, e, se clamares por inteligência, e por entendimento alçares a voz, se buscares a sabedoria como a prata e como a tesouros escondidos a procurares, então, entenderás o temos do Senhor e acharás o conhecimento de Deus" Provérbios 2:1-5. A sabedoria de Deus, na qual estamos interessados, está contida na sua palavra. O melhor entendimento
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é guardar seus mandamentos: Salmo 111.1-10, mas da mesma forma que não podemos guardá-los sem os conhecer, não podemos conhecê-los sem diligente procura. A palavra traduzida como "procurar" foi emprestada dos mineiros: implica em duas coisas, escavar e examinar. Primeiro, com muito trabalho eles escavam a terra até considerável profundidade; e quando enfim encontram um veio de metal precioso, eles o quebram e separam, e não deixam nada escapar do seu exame. Assim nós temos de juntar freqüente e assídua leitura com densa e atenta meditação; comparar coisas espirituais com espirituais, observando cuidadosamente as circunstâncias, as ocasiões, e aplicação daquilo que lemos; certos de que há um tesouro de verdade e alegria debaixo de nossas mãos, se apenas nos esforçarmos para descobri-lo e aproveitá-lo. Tenhamos sempre o cuidado de ter os mesmos propósitos ao ler as Escrituras, que Deus tem ao revelá-las a nós; propósitos que o Apóstolo enumera em 2 Timóteo 3.16,17: "Toda a Escritura" ou a Bíblia toda "é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". No versículo 15, se nos diz que as Escrituras são poderosas para nos tornar sábios "para a salvação pela fé em Cristo Jesus". Não seria um absurdo um homem ler um tratado sobre economia doméstica com o propósito de aprender navegação, ou buscar os princípios de negociação e comércio num ensaio de música? Não menos absurdo é ler ou estudar as Escrituras com outro propósito que não seja receber suas doutrinas, submeter-se a suas reprovações, e obedecer a seus preceitos, para que sejamos feitos "sábios para a salvação". Quaisquer pesquisas e comentários que parem aquém disso, que não retifiquem tanto o coração como a mente, são vazios e perigosos, pelo menos para nós mesmos, qualquer que seja o uso que deles façam os outros. Uma experiência com isso levou um erudito crítico e eminente comentador (Grotius) a confessar perto do fim da sua vida: Vitam prorsus perdidi, laboriose nihil agendo! ‘Que lamentável! Desperdicei minha vida em muito trabalho sem nenhum proveito!’ Mas, por outro lado, se somos diligentes e cuidadosos, de forma que tenhamos conhecimento pessoal dos preceitos e promessas divinos, e mais inclinados a obedecer-lhes e confiar neles, aí podemos esperar alegre sucesso; pois "Bem-aventurado o homem ..." cujo "... prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz..." debaixo dessa influência, "... será bem sucedido" (Salmo 1.1-3). Assim Deus prometeu, e assim muitos já provaram, e foram capacitados a adotar as palavras de Davi: "Os teus mandamentos me fazem mais sábio que os meus inimigos; porque, aqueles, eu os tenho sempre comigo. Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos" (Salmo 119.98,99).
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HUMILDADE é uma terceira coisa muito necessária para uma proveitosa leitura das Escrituras. "Deus ... dá graça aos humildes" (Tiago 4.6); "Guia os humildes na justiça e ensina aos mansos o seu caminho" (Salmo 25.9). Ao orgulhoso ele resiste, e com todas as suas forças se opõe ao seu progresso. Que tremenda afirmação! Se Deus apenas nos deixar por conta própria, somos todos ignorância e escuridão; mas qual não será a horrível situação daqueles contra quem Ele guerreia? Essa tem sido uma das principais fontes das várias e contrárias heresias que contradizem nossa santa profissão de fé, que homens vãos, apesar de nascidos como mero "asno montês" (Jó 11.12), meteu-se, por sua própria força e sabedoria, a tirar conclusões com aparência de autoridade sobre o significado das Escrituras; sem consciência da própria ignorância, preconceitos, e fraquezas, que influenciam seu julgamento nas questões religiosas; sem conhecer a completa inabilidade do homem natural de discernir as coisas de Deus, e sem atentar para os meios que as próprias Escrituras apontam para remediar esses males. Mas não estaríamos perdendo tempo e trabalho por não querer errar o caminho nós mesmos, ou fazendo outros errar o caminho? O que temos de fazer é cultivar um espírito humilde: temos de refletir muito na majestade e na grandeza do Deus que servimos; temos de adorar sua condescendência em nos favorecer com a revelação da sua vontade; temos de aprender a considerar a Palavra de Deus, e a sabedoria de Deus, como termos de mesmo peso; numa palavra, temos de nos aplicar a nos conhecer a nós mesmos, nossa pecaminosidade e ignorância; aí então não mais leremos as Escrituras com indiferença ou prepotência, mas com a maior reverência e atenção, e com a maior expectativa. Devo mencionar ainda uma coisa, que é tão necessária quanto qualquer das precedentes, e da mesma forma necessária para obtê-las. É a ORAÇÃO. Sinceridade, diligência e humildade são dons de Deus; a bênção que procuramos ao exercitá-las está nas mãos dele; e ele prometeu dar gratuitamente todas as boas coisas, até mesmo o "Espírito Santo àqueles que lho pedirem" (Lucas 11.13). A oração é verdadeiramente a melhor parte do nosso negócio enquanto estamos nesta terra, a que vivifica e torna eficaz todo o resto. A oração não é somente nossa mais básica obrigação, mas é a mais alta honra, o mais rico privilégio que somos capazes de receber deste lado da eternidade; e negligenciá-la implica na mais profunda culpa, e acarreta a mais pesada punição. Aquele que desconhece a oração desconhece igualmente a Deus e a felicidade, diz Tiago: "... semelhante à onda do mar, impelida e agitada pelo vento" (1.6). Algum de vocês, meus amigos, não têm familiaridade com a oração? Então vocês estão sem Deus no mundo, sem guia na prosperidade, sem recurso na aflição, sem verdadeiro conforto na vida, e, enquanto vocês continuarem assim, sem esperança na morte. Mas especialmente, vocês estão completamente desqualificados para "perscrutar as Escrituras".
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Há um véu sobre a mente e o coração de todo homem (como nos afirma o Apóstolo em 2 Coríntios 3.14,15), de forma que ele não pode nem ver nem receber de boa vontade as verdades celestiais, até que esse empecilho seja removido; e o instrumento que o remove é a oração. Por isso Davi diz "Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei" (Salmo 119.18). Ele sabia que havia maravilhas contidas na lei, mas confessava-se incapaz de discerni-las enquanto o Senhor não interviesse. Deus prometeu fazer isso em favor de todo aquele que o suplicar. Mas aqueles que não buscam auxílio da parte de Deus não conseguem encontrá-lo em nenhum outro lugar, porque "Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes..." (Tiago 1.17), o qual disse "Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus,..." (Tiago 1.5). Um perfeito conhecimento das línguas originais, a familiaridade com os costumes e hábitos dos povos da Bíblia, o íntimo conhecimento dos clássicos gregos e romanos, a abundante leitura dos concílios, dos pais da igreja, dos comentaristas e autores, a facilidade e a habilidade nas argumentações lógicas; isso tudo, no seu lugar próprio de subserviência, pode ser de grande auxílio para esclarecer, ilustrar ou reforçar as doutrinas das Escrituras; mas a menos que isso seja regido por uma atitude de humildade e oração, a não ser que o homem que possua essas qualidades as considere todas como nada, sem a assistência do Espírito de Deus que foi prometido para guiar os crentes a toda a verdade; a não ser que ele busque direção e ore por ela não menos honestamente do que aqueles que não entendem mais do que a própria língua materna; eu não me acanho de dizer que todo esse aparato de conhecimento tenderá apenas a levar esse homem culto e capacitado cada vez mais longe do caminho; e que um simples e honesto arador de terra, que não lê nada além da sua Bíblia, e não tem professor a não ser o próprio Deus, a quem ele ora em secreto, esse simples homem é infinitamente melhor candidato a um profundo conhecedor das coisas de Deus. Mas feliz aquele que, pela fé e pela oração, percebe a divina presença sempre com ele, que é sincero em suas intenções, diligente no uso dos meios, desconfiado de si mesmo, embora cheio de confiança e esperança de que Deus, que ele tanto deseja servir, vai conduzi-lo e guiá-lo nas veredas da paz e justiça por causa do Seu nome (Salmo 31.2). As coisas que ele precisa saber se tornarão tão claras, que ele não deixará de percebê-las; e as coisas com as quais ele não atina tão facilmente, vão ao menos ensinar-lhe a humildade; vão ensiná-lo a adorar as profundezas da sabedoria divina, e vão fazê-lo ansiar o momento quando "... veremos face a face", quando "... conhecerei como também sou conhecido" (1 Coríntios 13.12).
II.
Avançarei agora para o segundo assunto proposto: Mostrar como as Escrituras testificam de Cristo. Em geral, pode-se dizer que este é o principal alvo e assunto, tanto das Escrituras como um todo como também de cada livro em particular. Isso é facilmente comprovado no Novo Testamento, mas não é tão óbvio em várias partes do Antigo. Por isso, espero que aqueles que amam a Palavra de Deus não considerem enfadonho que eu trate desse assunto bem
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detalhadamente, e os ajude a descobrir o Senhor Jesus Cristo em quase cada página da Bíblia. Isso será para eles um novo incentivo para perscrutar as Escrituras, quando perceberem que muitas passagens que eles estavam acostumados a ler com relativa indiferença, sem conseguir discernir nem sentido nem instrução nelas, que essas passagens na verdade testificam de Cristo. Aquilo que é expresso a respeito de Cristo no Antigo Testamento (é sobre isso que vou falar agora) pode ser resumido em três itens: profecias, tipos e cerimônias. Tratar esses assuntos de forma apropriada encheria vários livros; mas é somente um breve panorama que poderemos dar deles em nosso presente estudo. O primeiro raio de luz que apareceu num mundo perdido foi a promessa (eu considero as promessas como um ramo da profecia) que Deus (que, no meio da ira se lembra da misericórdia — Habacuque 3.2) fez à mulher que o descendente dela feriria a cabeça da serpente (Gênesis 3.15). Isso era incondicional e genérico, deu esperança de uma restauração, mas sem informações sobre pessoa, tempo ou lugar; mas era o caminho que "vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Provérbios 4.18). Nos dias de Noé, a esperança e o desejo de todas as nações se restringiu à linhagem de Sem (Gênesis 9.26), e mais tarde mais especificamente à família de Abraão: quando mais tarde a família se dividiu em dois ramos, Deus — para mostrar seu eterno e soberano propósito — e para mostrar que Ele age como Ele mesmo quer, rejeitou o mais velho, e determinou que em Jacó, o mais novo, "... serão abençoadas todas as famílias da terra" (Gênesis 28.14). Jacó tinha doze filhos, o que tornou necessária uma mais explícita restrição: de acordo com isso, o patriarca, antes de morrer, revelou que o grande privilégio da perpetuação da linhagem do Messias era da tribo de Judá (Gênesis 49.10); e a ocasião do seu advento foi assinalado de forma difusa pela promessa de que "O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés, até que venha Siló...". A última referência pessoal foi a Davi (1 Crônicas 17.11-14); que da sua família Deus levantaria o Rei, que reinaria para sempre e sobre todos. Sucessivos profetas gradualmente predisseram a época, o lugar e as circunstâncias do seu nascimento, os detalhes da sua vida, o conteúdo de sua doutrina, os acontecimentos que lhe sucederiam, e a causa, a forma e a maneira dos seus sofrimentos e da sua morte: em resumo, a quase tudo que lemos no Evangelho, podemos acrescentar a nota que os evangelistas colocaram em algumas ocasiões (a nosso ver, de forma que nos orientassem no entendimento do restante) "Então se cumpriu aquilo que disseram os profetas". Deles aprendemos que o Messias deveria nascer de uma virgem, em Belém da Judéia, quatrocentos e noventa anos depois da ordem da reconstrução de Jerusalém; que ele deveria começar seu ministério na Galiléia; que ele seria desdenhado e rejeitado pelos homens, traído por um dos seus discípulos, vendido por trinta moedas de prata, dinheiro com o qual seria comprado depois o campo do oleiro; que ele teria de ser morto, mas não por merecê-lo; e que sua morte seria
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seguida pela súbita e total ruína do governo judeu. Comparar essas promessas e profecias umas com as outras e com seu exato cumprimento registrado no Novo Testamento, isso por si só fará com que nos empenhemos numa intensa pesquisa nas Escrituras, e nos trará as mais convincentes provas da sua procedência divina e da sua exatidão. Os tipos de Cristo no Antigo Testamento podem ser considerados de duas formas: pessoais e relativos. A primeira forma descreve, debaixo do véu da história, seu caráter e ofícios que ele exerce; a segunda forma, oculta numa variedade de metáforas, descreve as vantagens que aqueles que nele crêem devem receber dele. Desta forma, Adão, Enoque, Melquisedeque, Isaque, José, Moisés, Aarão, Josué, Sansão, Davi, Salomão e outros foram, em diferentes relações, tipos ou figuras de Cristo. Alguns de forma mais evidente representaram sua pessoa; outros prefiguraram sua humilhação; outros referiam-se a sua exaltação, domínio, e glória. Assim, no último sentido, a arca de Noé, o arco-íris, o maná, a serpente de bronze, as cidades de refúgio, foram alguns dos muitos emblemas que apontavam a natureza, necessidade, o meio e a segurança da salvação que o Messias estava por prover para o seu povo. Essas não são alusões fantasiosas de nossa própria autoria, mas garantidas e ensinadas nas Escrituras, e facilmente evidenciadas nelas, caso o tempo no-lo permita; porque de fato não há nenhuma dessas pessoas ou coisas que eu mencionei, que não dê assunto para uma longa exposição, se for considerado deste ponto de vista, como típico do prometido Redentor. O mesmo se pode dizer das cerimônias levíticas. A lei de Moisés é, nesse sentido, um feliz aio que nos conduz a Cristo (Gálatas 3.24), e isso se pode comprovar sem contradições, que nessas leis o Evangelho era pregado há muito tempo a todos os verdadeiros israelitas, cujos corações estavam certos para com Deus, e cujo entendimento havia sido iluminado pelo Seu Espírito. A arca da aliança, o propiciatório, o tabernáculo, o incenso, o altar, as ofertas, o sumo sacerdote com seus ornamentos e paramentos, as leis relativas à lepra, o nazireu, e a redenção das terras, tudo isso, e muito mais que não tenho agora tempo de mencionar, tem profunda e importante significado além da sua aparência exterior: cada um, no seu lugar próprio, apontava ao "Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (João 1.29), derivando sua eficácia dEle, sendo plenamente cumpridas nEle. Desta forma, o Antigo e o Novo Testamento mutuamente se esclarecem, e não podem ser corretamente compreendidos isoladamente. O Antigo Testamento, através de histórias, tipos, profecias e cerimônias, desenha vivamente o perfil dAquele que, na plenitude dos tempos, havia de vir ao mundo para executar a reconciliação entre Deus e o homem. O Novo Testamento revela que todos esses caracteres e circunstâncias finalmente se completaram em Jesus de Nazaré; que foi a respeito dEle que "Moisés e os profetas escreveram"; e que não devemos procurar outro.
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Lemos, em Gênesis 21, que Abraão tinha dois filhos: Isaque, o filho da promessa, o filho da sua velhice, através de sua esposa Sara; e Ismael, nascido alguns anos antes, de Hagar, a concubina, e serva de Sara; que este último, juntamente com sua mãe, foram expulsos da família. Alguns considerarão trivial a ocasião em que isso aconteceu - a ira e o ciúme de Sara, porque Ismael zombou de seu filho. Mas quando pareceu penoso a Abraão mandá-los embora por tão pouca coisa, Deus mesmo interveio, e ordenou que ele cedesse ao desejo dela. Se nada mais soubéssemos desta história, nós a consideraríamos como parte de uma história familiar, sem grande importância para ninguém além dos diretamente envolvidos nela. Talvez nos admirássemos de encontrar tantos detalhes a respeito do assunto num livro que nós professamos crer que foi escrito por inspiração divina; talvez nos atrevêssemos a questionar a sabedoria divina por descer a tais detalhes, nos quais, de acordo com nossa maneira de ver as coisas, não podíamos discernir nada interessante nem instrutivo. A fim de nos guardar dessas erradas e precipitadas conclusões, de modo a explicar o verdadeiro sentido desse caso particular, e ao mesmo tempo nos suprir com uma chave para entender muitas outras passagens similares, onde a sabedoria humana não consegue descobrir nem beleza nem utilidade; aprouve a Deus nos favorecer com uma certeira exposição da matéria toda. Não foi por causa de Abraão, ou Isaque, ou Ismael, ou Hagar, que isso tudo foi registrado; e muito menos para meramente satisfazer nossa curiosidade. Não: "Essas coisas", diz o Apóstolo Paulo, "são alegóricas; porque estas mulheres são duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para escravidão; esta é Agar. Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com seus filhos. Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe. ... Vós, porém, irmãos, sois filhos da promessa, como Isaque. Como, porém, outrora, o que nascera segundo a carne perseguia ao que nasceu segundo o Espírito, assim também agora. Contudo, que diz a Escritura? Lança fora a escrava e seu filho, porque de modo algum o filho da escrava será herdeiro com o filho da livre. E, assim, irmãos, somos filhos não da escrava, e sim da livre" (Gálatas 4.2426,28-31). Não preciso tomar seu tempo para lhe mostrar em detalhes como o Apóstolo nos ensina a descobrir o espírito e os privilégios do Evangelho, juntamente com tudo aquilo que todos que verdadeiramente o recebem devem ter como expectativa, numa passagem que de outra forma teríamos considerado desnecessária, ou mesmo sem sentido. Mantenha isso em mente quando você ler as Escrituras. Certifique-se de que não há nada insignificante nem sem sentido na palavra de Deus. Compare uma passagem com a outra; a Lei com o Evangelho, os Profetas com os Evangelistas: ore a Deus que Ele lhe abra o entendimento para compreender as Escrituras, assim como ele fez com os discípulos (Lucas 24.45); e dentro de pouco tempo você descobrirá que não são apenas uns poucos versículos que se referem a Cristo, aqui
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e ali, mas que, assim como eu lhe disse anteriormente, Ele é o centro, o cerne de cada livro, e de quase cada capítulo. Gostaria de adicionar um ou dois exemplos do significado das cerimônias, daquilo que eu mencionei a respeito de Hagar em referência aos tipos. Podemos apreciá-lo especialmente na lei da Páscoa (Êxodo 12), que nenhum osso do cordeiro pascal deveria ser quebrado. Agora, quem imaginaria que isso estaria se referindo a Cristo? Contudo vemos que o evangelista abertamente aplica isso a Ele, e se enche de admiração com o seu cumprimento. As pernas daqueles que foram crucificados com Jesus foram quebradas (João 19), mas os soldados não fizeram isso com o nosso Senhor; e que isso seria assim, já se havia previsto mil e quinhentos anos antes, nesse assunto referente ao cordeiro. Novamente, nós encontramos em vários lugares, onde um touro era designado para ser morto como oferta pelo pecado, e se especifica que a carne e a pele deveriam ser queimados fora do acampamento; e na Epístola aos Hebreus, capítulo 13.11-13, aprendemos que isso não ocorria por acaso. Temos ali a seguinte explicação: "Pois aqueles animais cujo sangue é trazido para dentro do Santo dos Santos, pelo sumo sacerdote, como oblação pelo pecado, têm o corpo queimado fora do acampamento. Por isso, foi que também Jesus, para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta. Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério". Não é preciso me estender mais, pois os indícios apresentados pelos Apóstolos em seus escritos, para nos revelar a importância do significado de muitas dessas instituições, as quais zombadores (sábios a seus próprios olhos) embora não tenham nenhuma familiaridade com o assunto, atrevem-se a denunciar como supérfluas. O sentido dos escritos sagrados se encontra fundo demais para um exame capcioso, apressado e superficial; tem de ser uma exploração, um minucioso exame; uma humilde, diligente, sincera e perseverante busca, ou não se pode esperar resultado satisfatório. O significado do testemunho das Escrituras a respeito de Cristo, que era a terceira coisa sobre que eu me propus falar, terei de deixar para outra oportunidade. Espero que aquilo que já foi dito possa, pela bênção de Deus, atrair você a "examinar as Escrituras". Lembre-se de que isso é ordem de nosso Senhor Jesus Cristo: é o único caminho indicado para conhecê-lO. E conhecê-lO, bem como amá-lO, servi-lO e obedecer-Lhe é tanto o fundamento como a suma de nossa felicidade aqui e no além. Nós, assim como os judeus, julgamos ter a vida eterna nas Escrituras, e devemos, como eles, ser inescusáveis e seremos condenados se o negligenciarmos. Que não sejamos tolos, com uma recompensa, uma incalculável recompensa nas mãos, mas sem coração nem entendimento para usá-la. Melhor nos teria sido viver
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e morrer no meio do mato, sem nenhum meio da graça nem esperança da glória, do que menosprezar esse registro que Deus se agradou de nos dar em Seu Filho. Mas feliz o homem cujo deleite está na lei do seu Deus! Esse tem firme direção em toda e qualquer dificuldade, garantido conforto em toda e qualquer perturbação. A beleza dos preceitos são preferíveis a seus olhos a "milhares de ouro ou de prata" (Salmo 119.72). O conforto das promessas são mais doces ao seu paladar "do que o mel e o destilar dos favos" (Salmo 19.10). Sua vida é alegre; porque a palavra de Deus é para ele como uma "fonte de água viva". Ele pode se alegrar na morte; as promessas do seu Deus o sustentarão através do vale da sombra da morte: e ele pode se alegrar para sempre na presença e no amor dAquele por Quem ele agora perscruta as Escrituras; "a quem, não havendo visto" (1 Pedro 1.8), contudo, pelo testemunho que encontra nas Escrituras a respeito dEle, "amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória".
Os erros, deformidades e falhas… dos outros “Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus” (Romanos 15.7). O cristão, especialmente aquele que progrediu e se firmou na vida de fé, tem um ardente zelo por Deus — pela honra do Seu Nome, a Sua Palavra e o Seu Evangelho. O ardor honesto do zelo que ele sente, quando a Palavra de Deus é transgredida, o Seu Evangelho desprezado, e quando o grande e glorioso Nome do Senhor Deus é profanado, devido a suas fraquezas, muitas vezes degenera em ira ou desdém para com aqueles que erram — isso se ele estiver sendo influenciado unicamente pelo seu zelo. Mas o seu zelo se mistura com benevolência e humildade, e é suavizado por uma consciência da sua própria fragilidade e falibilidade. Ele está ciente de que o seu conhecimento, em si mesmo, é muito limitado, e débil demais para poder transformar a sua própria vida; que as suas realizações são poucas e fracas, comparadas com as suas deficiências; que a sua gratidão é muito desproporcional às suas obrigações; e que a sua obediência fica extremamente aquém daquilo que lhe foi prescrito; que ele não possui nada que não tenha recebido, e que não recebeu nada que não tenha (em
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alguns casos mais, noutros menos) ou aplicado mal ou desenvolvido mal. Por essa razão, ele é devedor à graça de Deus — e vive sob o seu imenso e crescente perdão. O cristão também faz da graciosa conduta de Deus para com ele o padrão para a sua própria conduta para com os vermes companheiros seus. Ele não pode gabar-se de si mesmo — nem está ansioso por censurar os outros. Ele se cuida, a fim de não cair também. E dessa forma ele aprende a ternura e a compaixão para com os outros, e a se desenvolver pacientemente com esses erros, deformidades e falhas... dos outros — que já fizeram parte do seu próprio caráter, e dos quais, por enquanto, ele está livre — mas só de forma imperfeita. Por essa razão ele age de maneira adequada a um seguidor dAquele que Se compadecia das fraquezas e dos erros dos Seus discípulos, e os ensinava gradualmente, à medida que tinham capacidade de aprender — e não tudo de uma só vez. Por outro lado, as mesmas considerações que o inspiram com mansidão e docilidade para com aqueles que resistem à verdade — fortalecem o seu respeito para com a verdade, e a sua convicção da importância dela. Em nome da paz, que ele ama e promove, acomoda-se (tanto quanto lhe é possível dentro dos limites da lei de Deus) às fraquezas e às falhas dos outros cristãos sinceros; embora por causa disso se exponha à censura de todo tipo de pessoa intolerante, que o consideram vergável e vacilante, como um caniço agitado pelo vento. Mas há outros pontos fundamentais, essenciais ao Evangelho, que são o fundamento da sua esperança, e a fonte da sua alegria. Devido ao seu firme apego a eles, ele está contente em ser tratado como se fosse um desses próprios intolerantes! Porque aqui ele é firme como coluna de ferro, e nem o medo nem o favor do homem conseguem convencê-lo a recuar da verdade do Evangelho, nem sequer por um instante! (Gálatas 2.5). Neste ponto, a sua opinião é inflexível; e ele a expressa numa linguagem simples e inequívoca, de forma que nem amigos nem inimigos fiquem em dúvida quanto ao lado que ele escolheu, o quanto à causa que tem a preferência do seu coração. Por saber que o Evangelho é a sabedoria e o poder de Deus, e o único meio possível pelo qual o homem decaído pode obter a paz com Deus — ele com todo o coração o abraça e confessa. Longe de envergonhar-se do Evangelho, ele o considera como sua glória. Ele prega Cristo Jesus, e este crucificado. Ele desdenha o pensamento de deturpar, ocultar ou abrandar as grandes doutrinas da graça de Deus, a torná-las mais agradáveis ao gosto depravado de nossa época (2 Coríntios 4.2). E ele não combate os erros e ditos e práticas corruptas do mundo com nenhuma outra arma senão a verdade como ela é em Jesus — da mesma forma que não se atreveria a lutar com um tigre enfurecido usando uma espada de papel!