FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL II – FREQUÊNCIA 1.º ANO, A – 26 DE MAIO DE 2008 (COINCIDÊNCIAS) – DURAÇÃO: 2H. TEXTO COM AS RESPOSTAS (Todos os artigos sem indicação do correspondente diploma são do Código Civil, aprovado pelo Decreto-lei 47.344, de 25 de Novembro de 1966)
I Pronuncie-se, justificadamente, em não mais de 20 linhas sobre cada uma das seguintes questões: 1. Diga se o erro de Direito está contemplado no art. 251.º do Código Civil, e comente a seguinte afirmação: “O disposto no art. 6.º do Código Civil impede a relevância do erro de Direito na formação da vontade negocial.”. (Cotação: 4 valores) O erro de Direito está contemplado no art. 251.º: o “objecto do negócio” (previsto enquanto elemento sobre o qual o erro regulado no art. 251.º incide) inclui quer a falsa representação acerca do bem objecto das situações jurídicas reguladas pelo negócio (objecto mediato do negócio) quer a que versa sobre os efeitos jurídicos (constituição/ modificação /transmissão /extinção de situações jurídicas) trazidos pelo negócio (objecto imediato, também designado por conteúdo). A afirmação é incorrecta: o erro de Direito coloca-se num momento anterior à existência de obrigações: no momento, precisamente, do respectivo nascimento. E nesse momento, a ignorância é relevante, nos termos do art. 251.º - que, assim, não contradita sequer o disposto no art. 6.º (que, explicita-se, fala em cumprimento de obrigações - o que pressupõe o válido nascimento desta). 2. Distinga uma cláusula contratual geral e um contrato singular no âmbito da lei das cláusulas contratuais gerais, e conclua acerca da aplicação desta lei a um contrato pré-formulado celebrado entre empresários (Cotação: 4 valores) Uma cláusula contratual geral é toda a proposição elaborada sem prévia negociação individual que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar (art. 1.º, n.º 1 do DL 446/85, de 25 de Outubro, a designar por LCCG). Goza, pois, das características rigidez e generalidade. Contrato singular é cada um dos contratos que tenha sido efectivamente celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais. Ou seja, a cláusula contratual geral não pressupõe inclusão num efectivamente celebrado contrato.. A LCCG não se aplica a contratos pré-formulados celebrados entre empresários, por interpretação restritiva do disposto no art. 1.º, n.º 2 da LCCG, ditada por uma interpretação conforme ao Direito comunitário. Esta norma foi acrescentada à LCCG em 1999, pretendendo corresponder à transposição de uma Directriz. Ora, essa Directriz destinava-se a proteger apenas os “consumidores” com quem se celebrasse contratos pré-formulados. Deve, pois, interpretar-se restritivamente o art. 1.º, n.º 2 da LCCG.
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
3. Tendo presente as várias categorias da ineficácia jurídica, diga qual o desvalor do negócio celebrado mediante coacção física, e comente a seguinte afirmação: “Em rigor, a confirmação não produz efeitos retroactivos” (Cotação: 4 valores) Um negócio celebrado mediante coacção física é nulo. Em Direito civil, o desvalor mais grave, correspondente à “ausência de efeitos jurídicos” (conforme estabelecido no art. 246.º), é a nulidade. É esse, portanto, o desvalor imposto pelo art. 246.º. A afirmação está correcta: o negócio anulável (aquele que é susceptível de confirmação) caracteriza-se por produzir os efeitos jurídicos que estava destinado a produzir. No entanto, pode ser destruído (anulado) por certa pessoa (aquela em cujo interesse a lei estabelecer a anulabilidade). Isto significa que se, em vez de anular o negócio, a pessoa legitimada, o confirmar, o negócio continua (como até então) a produzir efeitos. O que sucede é, apenas, uma antecipação da sanação do vício do negócio, pela impossibilidade de, para o futuro, essa pessoa o anular destruindo, retroactivamente, os seus efeitos.
II António, a 12 de Março de 2007, faz anunciar num jornal: “Vendo, por 10 milhões de euros, terreno, em Lisboa, localizado na Av. Duque de Ávila, entre os números 500 e 504. Mas caso, até 12 de Março de 2008, seja emitido alvará de obra no terreno, a venda fica sem efeito. Respostas a enviar, por carta, urgentemente, para a Rua do Bom Negócio, n.º 13, Lisboa”. Bernardo responde por carta enviada no próprio dia e recebida, por António, no dia seguinte, dizendo: “Conheço o terreno. Aceito. Sugiro escritura no dia 12 de Abril do corrente.”, seguindo-se a assinatura conforme a fotocópia do bilhete de identidade que seguia em anexo. Na véspera da escritura, Bernardo sugere a António, que aceita, que o preço a constar da escritura fosse 7 milhões, ainda que fossem pagos os combinados 10 milhões. A escritura é assim lavrada, seguindo-se um figurino notarial minutado (que havia sido entregue, também na véspera, a ambas as partes) em termos elementares sem qualquer cláusula acessória. Em Fevereiro de 2008, o dito alvará é emitido; em Março, António exige a restituição do terreno, com a devolução do preço; Bernardo recusa. António invoca a seu favor: - o facto de a escritura não referir o preço verdadeiro; - a subordinação do negócio ao referido alvará ; Bernardo responde dizendo - que a sua resposta ao anúncio consubstanciou a inequívoca vontade em ser proprietário – e não “proprietário condicionado”; - que a escritura foi apenas a formalização de um contrato já validamente celebrado antes – aquando da recepção, por António, da carta.
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Comentando os argumentos apresentados, conclua, de forma fundamentada, acerca da procedência da pretensão de Bernardo, não podendo ultrapassar 2 páginas.
(Cotação: 8 val.) O terreno pertence a Bernardo, por válida celebração de um contrato de compra e venda. De seguida, analisa-se separadamente cada um dos argumentos invocados pelas partes. - o facto de a escritura não referir o preço verdadeiro Entre António e Bernardo verificou-se uma simulação relativa: por acordo, concluído na véspera da escritura, António e Bernardo decidiram declarar uma vontade (venda por 7 milhões de euros) diferente da vontade real de ambos (vender por 10 milhões de euros). Essa divergência destinou-se a defraudar o Estado e o Município de Lisboa, pagando menos impostos. Nos termos do art. 240.º, o negócio simulado, ou seja, a compra e venda por 7 milhões de euros, é nula. Sucede, porém, que sob o negócio simulado existiu outro (a compra e venda por 10 milhões de euros) que as partes quiseram realizar. Esse negócio, dito dissimulado, deve ser avaliado per se, sem que a nulidade do negócio simulado o afecte (art. 241.º). O negócio dissimulado necessita de escritura pública, nos termos do art. 875.º, atendendo a que um terreno é um imóvel (art. 204.º, 1, alínea a)). A escritura não foi, nos seus precisos termos, nomeadamente o preço, lavrada. No entanto, é possível aproveitar a forma do negócio simulado (compra e venda do mesmo imóvel, entre as mesmas partes, com as mesmas cláusulas além da do preço) para o negócio dissimulado. De acordo com o disposto no art. 238.º, n.º 2, o sentido dissimulado (o preço diferente) pode valer, ainda que não conste da escritura, se corresponder à vontade das partes (o que neste caso se verifica) e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade. Não obstante as normas de forma serem plenas, é possível, por análise histórica, concluir que a razão subjacente à exigência de escritura repousa na necessidade de certeza jurídica e publicidade quanto à situação dos imóveis, bem como de reflexão das partes aquando da celebração do negócio. Ora, o montante do preço nada tem que ver com a certeza jurídica: trata-se de um elemento do negócio que tem que existir mas cujo valor exacto a lei despreza, deixando-o à disponibilidade das partes (recorde-se que o montante do preço não consta do registo predial). Todos os elementos relevantes da compra e venda (tipo de negócio, identificação das partes e do objecto) constam da escritura pública. O que significa que a publicidade e a certeza jurídica se encontram asseguradas. Quanto à reflexão, as partes tiveram ocasião de ponderar o negócio. Basta lembrar que conjecturaram o plano de esconder o real valor do preço. E quanto a mais, a escritura e sua leitura proporcionam reflexão. Também a prova do negócio e a solenidade (outras razões historicamente associadas às exigências de forma) não se opõem à validade deste negócio, com aproveitamento da única escritura lavrada: a solenidade está consumpta nas referidas ponderação e publicidade. Já a prova, especificamente do preço, pode fazer-se por outros meios que não a exibição da escritura (cópia de cheque entregue, registos de transferências bancárias, escritura de rectificação, etc.).
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Em conclusão, o facto de a escritura não referir o preço verdadeiro não conduz à invalidade do negócio, com a consequente devolução do terreno e do preço pago. - a subordinação do negócio ao referido alvará A subordinação dos efeitos do negócio à emissão, até 12 de Março de 2008, de um alvará de obra é uma condição resolutiva (art. 270.º). A emissão do alvará é um evento futuro e incerto que, nos termos do anúncio de 12 de Março de 2007, conduziria à cessação da produção dos efeitos jurídicos pelo negócio. Sucede, porém, que, embora o anúncio de jornal incluísse a condição no negócio, as partes, ao longo do processo negocial, “deixaram cair” esse ponto, passando a declaração a não manifestar qualquer condição (como se verifica pela escritura – cuja minuta, aliás, foi proporcionada às partes com antecedência relativamente ao momento da outorga). - que a sua resposta ao anúncio consubstanciou a inequívoca vontade em ser proprietário – e não “proprietário precário” Bernardo não tem razão. O anúncio de jornal consubstanciou um convite a contratar (designadamente por falta de forma para poder tratar-se de uma proposta de venda de um bem imóvel – art. 875.º). Nos termos do art. 295.º, à interpretação do convite a contratar e respectivas respostas aplica-se o disposto no capítulo do negócio jurídico, incluindo, para o que aqui releva, a matéria da interpretação da declaração negocial. As declarações negociais interpretam-se de acordo com o sentido deduzido por um declaratário normal colocado na posição do real declaratário (salvo se o declarante não puder razoavelmente contar com esse sentido). Ora, um homem mediano, colocado na posição do António, que tinha escrito o anúncio no jornal, deduziria de “Conheço o terreno. Aceito. Sugiro escritura no dia 12 de Abril do corrente.”, uma aceitação total da sua “proposta”. Não deduziria uma aceitação com modificações (“aceito comprar, mas sem a condição”). Apesar de a carta de Bernardo, per se, permitir a interpretação de aceitar comprar sem a condição, apenas uma concordância total com a “proposta” permitiria razoavelmente nada dizer quanto à proposta de condição e, mais que isso, permitiria sugerir, desde logo, uma data (próxima) para a escritura, como se tudo estivesse acertado entre ambos. António não adivinharia que Bernardo não concordava com a condição. E Bernardo sabe ou devia saber disso. Para a declaração valer como uma “contraproposta”, Bernardo teria que ter tornado claro que a sua aceitação não era total. Em conclusão: Bernardo não tem razão quanto ao sentido da sua resposta ao anúncio. Bernardo aceitou aquilo que lhe foi “proposto” por António a compra e venda condicional. Em qualquer caso, o sentido desta aceitação de Bernardo não é relevante, pois foi substituído pela escritura, que nada contemplou em matéria de condição. - que a escritura foi apenas a formalização de um contrato já validamente celebrado antes – aquando da recepção, por António, da carta. Trata-se de argumento incorrecto: de acordo com o disposto no art. 875.º (conjugado com o disposto no art. 204.º, n.º 1, alínea a) e com o art. 220.º), a compra e venda de um terreno carece de escritura pública, sob pena de nulidade. O “acordo” alcançado entre António e
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Bernardo é meramente preliminar da compra e venda - não é a compra e venda, nem sequer obriga as partes a celebrá-la.