SOBRE O CONCEITO DE CULTURA (...) quero propor duas idéias. A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como um complexo de padrões concretos de comportamento - costumes, usos, tradições, feixes de hábitos - como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instruções ( o que os engenheiros de computação chamam “programas”) - para governar o comportamento. A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento. A perspectiva da cultura como “mecanismo de controle” inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos “acontecimentos na cabeça” (embora sejam necessários acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por G. H. Mead e outros de símbolos significantes - as palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias - na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência. Do ponto de vista de qualquer indivíduo particular, tais símbolos são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente na comunidade quando nasce e eles permanecem em circulação após sua morte, com alguns acréscimos, subtrações e alterações parciais dos quais pode ou não participar. Enquanto vive, ele utiliza deles, ou de alguns deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das vezes espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito: para fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais ele vive, para auto-orientar-se no “curso corrente das coisas experimentadas”, tomando de empréstimo uma brilhante expressão de John Dewey. O homem precisa tanto de tais fontes simbólicas de iluminação para encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não simbólica constitucionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa. Os padrões de comportamento dos animais inferiores, pelo menos numa grande extensão, lhes são dados com a sua estrutura física; fontes genéticas de informação ordenam suas ações com margens muito mais estreitas de variação, tanto mais estreitas e mais completas quanto mais inferior o animal. Quanto ao homem, o que lhe é dado de forma inata são capacidades de resposta extremamente gerais, as quais, embora tornem possível uma maior plasticidade, complexidade e, nas poucas ocasiões em que tudo trabalha como deve, uma efetividade de comportamento, deixam-no muito menos regulado com precisão. Este é, assim, o segundo aspecto do nosso argumento. Não dirigido por padrões culturais - sistemas organizados de símbolos significantes - o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela - a principal base de sua especificidade. Na antropologia, algumas dessas evidências mais reveladoras que apoiam tal posição provém de avanços recentes em nossa compreensão daquilo que costumava ser chamado a descendência do homem: a emergência do Homo sapiens do seu ambiente geral primata. Três desses avanços são de importância relevante: (1) o descartar de uma perspectiva seqüencial das relações entre a evolução física e o desenvolvimento cultural do homem em favor de uma superposição ou uma perspectiva interativa; (2) a descoberta de que a maior parte das mudanças biológicas que produziram o homem moderno, a partir de seus progenitores mais imediatos, ocorreu no sistema nervoso central, e especialmente no cérebro; (3) a compreensão de que o homem é, em termos físicos, um animal incompleto, inacabado; o que o distingue mais graficamente dos não homens é menos sua simples habilidade de aprender (não importa quão grande seja ela) do que quanto e que espécie particular de coisas ele tem que apreender antes de poder funcionar. Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de Lord of the Flies, de Golding, atirados à sabedoria cruel dos seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até mesmo, como a antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso central - e principalmente a maldição e glória que o cercam, o neocortex - cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes. O que nos aconteceu na Era Glacial é que fomos obrigados à
abandonar a regularidade e a precisão do controle genético detalhado sobre nossa conduta em favor da flexibilidade de um controle genético mais generalizado sobre ela, embora não menos real. Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais - o fundo acumulado de símbolos significantes. Tais símbolos são, portanto, não apenas simples expressões, instrumentalidade ou correlatos de nossa existência biológica, psicológica ou social; eles são seus pré-requisitos. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens. Somando tudo isso, nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura - não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e classe baixa, acadêmica e comercial. A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico. Os castores constróem diques, os pássaros constróem ninhos, as abelhas localizam seu alimento, os babuinos organizam grupos sociais e os ratos acasalam-se à base de formas de aprendizado que repousam predominantemente em instruções codificadas em seus genes e evocadas por padrões apropriados de estímulos externos - chaves físicas inseridas nas fechaduras orgânicas. Mas os homens constróem diques ou refúgios, localizam o alimento, organizam seus grupos sociais ou descobrem seus companheiros sexuais sob a direção de instruções codificadas em diagramas e plantas, na tradição da caça, nos sistemas morais e nos julgamentos estéticos: estruturas conceptuais que moldam talentos amorfos. A fronteira entre o que é controlado de forma inata e o que é controlada culturalmente no comportamento humano é extremamente mal definida e vacilante. Quase todo o comportamento humano complexo representa, sem dúvida, o resultado interativo e não-aditivo dos dois. Nossa capacidade de falar é inata certamente, nossa capacidade de falar inglês, porém, é sem dúvida cultural. Sorrir ante um estímulo agradável e franzir o cenho ante estímulos desagradáveis são, até certo ponto, determinações genéticas (até mesmo os macacos contorcem a face ante odores mefíticos), mas o sorriso sardônico e o franzir caricato são com certeza predominantemente culturais, o que talvez seja demonstrado muito bem pela definição balinesa de louco como alguém, como um americano, que sorri quando nada existe para rir. Entre os planos básicos para nossa vida que os nossos genes estabelecem - a capacidade de falar ou de sorrir - e o comportamento preciso que de fato executamos - falar inglês num certo tom de voz, sorrir enigmaticamente numa delicada situação social - existe um conjunto complexo de símbolos significantes, sob cuja direção nós transformamos os primeiros no segundo, os planos básicos em atividades. Nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais - na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e, não obstante, manufaturados. Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não é somente uma catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo particular, por certos membros de uma sociedade particular. Para compreender o que isso significa, para perceber o que isso é exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas as catedrais. Você precisa compreender também - e, na minha opinião, da forma mais crítica - os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais. De: GEERTZ, C. “A interpretação das culturas”. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.