A SENHORA LENS Ricardo Rocha
A senhora Lens fechou os olhos. Arfava. A respiração a enchia de vida exterior. O ar cortado pelas cigarras, recém-chegadas do fundo da terra, dividia a madrugada embebida em barulho de mar, tornando-a multíplice em sua lucidez dilacerada. O mar ao longe. Parece aqui. Dentro do quarto. Nos pensamentos relativos ao momento imediato, imprimiu-se um colorido digressivo. No pio da ave noturna há um desenho aos pés da freira no colégio; o raio lunar, em que nasce o cântico das contrações, retroage para a primeira varanda ao luar ou a madrugada em que a menina sai à luz vinda do ventre de sua mãe. E como ouvisse do lado de fora céleres os morcegos, ao som da inspiração profunda, ansiou a antiga liberdade. Mãe, mãe! Ambíguas, as lágrimas brilhavam como num reencontro. – Minha filhinha... As reminiscências enviaram ao corpo quieto na cama as praias da adolescência povoada de gaivotas. Quem sou, se pergunta. Mulher, menina; mãe, filha; esposa. Esposa. Bater de asas. O pulsar do colchão de molas havia ateado um rubor vivíssimo às partículas de pó, assim o Verbo no principio, quando fervilham esperanças entre o sabor e o azedume. Permanece, permanece por toda a noite, noite semelhante àquela em que a consciência fez com que ela se acovardasse e decidisse casar, apesar da claridade gloriosa de um dia distante – o primeiro dia do seu primeiro namoro – apenas reconhecido por certa memória imprecisa que ainda consegue vislumbrar a redenção, mas se confunde com as preocupações de segurança material. Ai. Um arrepio na parte de dentro das coxas. Como foi tola. O que se leva deste mundo? Nada, pensou ao levar os dedos. Então a revelação. Hoje. Espere. O gatinho sobe na cama e se aconchega ao lado dela. Esperaria, se anteciparia até. Através da estreita passagem, escura como a madrugada próxima ao amanhecer e, mesmo antes da aurora, pelo sol redimida.
Houve um momento em que o mundo se desligou da noite e o primeiro efeito foi a perda do contraste das estrelas em relação ao céu. Preguiçosamente amanhecendo. Despertará também ela? Logo, a azáfama dos passarinhos. O espaço entre os galos, que se havia comprimido, volta a se deslocar na distância. A proximidade do sol deixa a Natureza em frenesi, introdução do rei no salão de festas após algumas danças. Uma e outra revoada. E outra mais. Fez-se uma daquelas ocasiões especiais em que o minuto que passou pouco apresenta em comum com o atual e o seguinte terá igualmente atributos peculiares, distando uns dos outros não o período de tempo que os separa, mas todos os séculos culminantes no Juízo. O gato se agita, ergue os olhos para o teto como se visse os pássaros, suas garras chegam a se vergar. Que tristeza, murmura a senhora Lens. Seu espírito é levado para um canto mais sombrio do muro, onde se erguera o fícus no quintal imerso agora no arrebol. Mas logo ensaiará um sorriso, tocada pela súbita expectativa, traduzida pelas primeiras luzes do dia a tangenciar o monte diante do qual o mar bramia seu misterioso refrão de louvores metálicos.
Por um instante, o sol emprestou à varanda do prédio em frente um amarelo vivo na seqüência do canto dos pardais permeado de currueras. Altivez barulhenta de um adejo. Era ainda primavera. No ônibus que se aproxima da cidade, cerca-se Gerard de ansiedade e cuidados, seu coração reclama paz. Ele é a noite, não mais a habita. O sangue, podiam ouvir, Gerard e a senhora Lens, pois as veias estavam abertas. Desejo e receio, sintomas de proximidade. O ônibus passa pela casa. A mulher escuta o motor, a mudança da marcha e a distância. O rapaz fixa o hibisco no jardim, não há muitas flores nas metrópoles. Calado, mal respirava. A passageira da janela oposta fez uma pergunta e após os segundos de praxe, quando ao olharmos um estranho decidimos se nos é simpático ou desagradável em sua extroversão, responderam. Talvez vinte minutos, não mais. Dentro dele, bem lá dentro, entrou o frio do desconhecido. Passa os dedos pelos cabelos. A mulher na cama sente calafrios no alto da cabeça. A vida é una. O miado dói; os sons do vizinho – pessoas, portas, vozes – são movimentos engenhosos do tempo. Tudo era a noite; tudo ela, Rose. Mas amanhece e quem sabe o que trará a manhã. Sussurrou, ofegante. Podiam ouvir, Gerard e Rose: que a vida siga em novidade. Em paz. Dormiu neles durante muito tempo esse jeito de ser estranho, sem se saber comum. Mas amanhece. O gatinho entra nas cobertas e ronrona.
O ângulo da luz matinal concedeu um brilho azulejado à sacada. Onde se refletia o sol, surgiu a intensidade da paleta da senhora Lens ao contornar os desenhos de dourado. Tanta luz não podia mais ser apenas registrada. Decidiu dar-se o dia. Descansaria. Descansaria na praia. A rua está vazia. Uma música ao longe estranho incenso se torna de beleza pairando, como os hipérbatos. O ar estava quieto, em suspenso, mas as ramagens balançavam como se fosse ao vento, devido aos passarinhos. Em fração de segundo, despegam-se. Adiantando-se a hora, a nova posição do sol no céu subtraiu o fulgor da varanda, ofertando-o ao resto do mundo. A filha parece ter perdido de novo a hora da escola. Ou já teria ido? Erguendo de súbito a cabeça, a senhora Lens saiu de seus pensamentos para a contemplação da circunferência incandescente. Um gesto orgulhoso da manhã em contraste com uma mulher mais e mais humilhada, doente, melancólica. Sonolência mórbida. O peito oprimido. Os intestinos trancam a emoção num desconforto que parece a estar inchando. Os lados da cabeça revezam em aura na disputa do lugar em que deverá sofrer sua crise diária de enxaqueca. A natureza ao redor, em sua eflorescência, mostra-se indiferente aos males dos homens. La fora, as pessoas caminham indolentes pelo calor. Pela janela, a senhora Lens pode ouvir.
Necessidade que se impôs de solidão, o amor da arte lhe deu uma fineza doméstica, um porte em casa como num salão de festas. A elegância secreta, a solenidade que emprestava ao ato de sentar, apanhar algo no chão ou no alto do armário, só de camiseta, a maneira de segurar o pincel e monologar – tudo era reverencia, postura. Seminua diante de seus rascunhos, a poucos vê, e para tantos vive. Numa cidade muito pequena, cultuada por artistas, de acordo com a lenda de sua tranqüilidade salgada. Por aquelas ruas andara com a menina, que agora já não pode deixar de ser notada. Cresceu. Não há de ser um sinal que a mulher envelhecera. Bom dia, senhora Lens. Certamente há de ser. Bom dia. Caminho de terra batida. Presente e
passado estão para se encontrar no futuro e o acorde de pão quente, balsâmico, que chega no ar, no ar chegará ainda quando não houver mais a sua consciência para discerni-lo. Aquela ultima manhã em que existia sem saber de Gerard era também aquela manhã do dia seguinte, pela lembrança de Gerard transtornada. E a tarde quando o conhecerá compreende a tarde em que apenas o havia visto. Passado e futuro se encontrarão no presente e o amargo da boca desfeito pelo dentifrício se converterá em si mesmo quando ela acordar com a imagem de Gerard no dia do aniversário de Michele.
Filha e mãe. A menina sim na escola, o celular tira uma foto dela com a amiga. Keshia. Abraça-a. Uma menina bacana. Só um pouco estressada, mas tudo bem. A mãe chega do mercadinho, agora faz o café. Presente e futuro. As costas de uma e de outra são fortes, as pernas firmes. A mulher caminha pela cozinha. Nessas pernas. Um pouco acima. Onde antes o desejo, agora a sublimação da tonalidade bem ajustada. Onde antes a dispersão, a procura de um novo tempo, não por causa de Gerard, mas ao qual Gerard tão bem se adaptará. Jamais entretanto colocaria outro sobrenome quando se livrasse desse que como um fardo carregava. Rose. A água ferve, ela está à mesa. No caderno de receitas, cobre e recobre o nome. Rose Ponce. Pequenas alegrias libertas de conceitos arraigados pelo costume – um melindre se torna catarse, um gênero outro de destino tecido pelos anjos da vontade aberta: a senhora Lens é um enigma à beira do sol de verão. Esconde a vida atrás da vida e tempos adiante.
Gostava de convívio, queria estar com gente, conhecer melhor as pessoas, saber de seus problemas; mas resistia. Bom que houvesse em Celba pessoas com quem pudesse conversar, a quem pudesse recorrer Amigos, corre-se o risco de perde-los; e conhecidos sempre podem se tornar amigos. E amigos artistas são gente ainda mais difícil de se encontrar. Então não desgastava seu relacionamentos com os colegas da vila. Um escritor de quase setenta anos, Alecsander, e um músico, Yoran Tess – sabia seus nomes e rostos, trocava cumprimentos. Seu coração está mais descansado tendo-os por perto. De resto, aceitava sem maior resistências as imposições de sua natureza tímida, exceto pela perspectiva que será a intimidade com o jovem que inesperadamente chegará para mudar a sua vida – como se no momento em que se cumprisse o clima prometido pelos olhares furtivos, a senhora Lens devesse deixar de fazer parte do mundo e a sublimidade do amor se transferisse à dos fenômenos naturais. Como se ela mesma se tornar outra mulher e morrer para si mesma, abandonando o acanhamento de seu espaço de ser e habitando um outro e amplo.
Pesava a educação que recebera. Não adiantava que os valores de seu pai fossem cristãos, de tolerância, se ele mesmo não era um homem tolerante. Sua mãe era passivamente feliz apesar dos meneios de cabeça de Rose (similar ao sarcasmo de Michele em relação a ela) que por sua vez não os queria desapontar – o que diriam se soubessem que ela iria se separar? Seguia então a sua farsa. Até quando? Mas se assusta de verdade quando, depois de violenta discussão com George, acabaram na cama, ela subjugada e – estremecia de pavor ao lembrar – orgástica. Se o marido tinha outras mulheres, isso passava por concessão aos homens Embora não ligasse para ela, tinha um ciúme doentio, morador que não gosta da casa mas é
proprietário e sente-se no dever de zelar pelo imóvel. Casquinha de pão. Adoro. Percebera afinal que certas preferências sexuais dele tinham mais a ver com uma vontade real de machucar do que com fantasias ou mesmo tara. O carro estaciona diante do escritório. O jeito como ele lida no trabalho, enganando as pessoas. Enoja-a. Como zomba das vitimas de seu estelionato. Mas fazer alguma coisa a respeito, ela nada fazia. Levantara-se ele dos infernos para dentro da vida da senhora Lens. O que vira num homem como George? Contudo: se fosse diferente, gentil como – como era mesmo o nome dele?, enfim, como aquele rapaz, (talvez Reinaldo) por exemplo, decerto não teria lhe dado a mínima.
Gritos no quarto. Cadela. Tinir de copos à cabeceira. Queixas chorosas. Cale a boca. Pulsos arroxeando. Uma janela se abre lá fora. Os corpos se estendem nos lençóis amarrotados.
Tornara-se uma mulher de meia-idade, mãe de uma adolescente. Não tem o direito de se iludir. Sente-se ameaçada por George, projeta nele seus maus sentimentos inerentes, como a mulher estuprada ao se tornar roteirista violentará as moças de seus filmes. Nossa, já são quase nove horas! Durante algum tempo incorreu no clássico erro de supor que poderia mudar o noivo; noutro período acreditava que a maldade era nele apenas um tipo romântico de rebeldia. Precisa ir agora, antes que a vizinha apareça para ficar de conversa mole. Na verdade, ai dela caso se atrevesse a questionar o comportamento de George, seus vícios e perversões, mas por que ela o tolerava? Aí vem tanta coisa à tona... vaidade, comodismo, ambição, concupiscência, a droga... A senhora Lens chorou.
Sua arte primava pela linearidade, tudo muito certinho. Mas sua vida era certinha, direta? Totalmente indireta. Sua alma obliqua, suas verdades sinuosas. E o rapaz com quem iria ao paraíso em olhares distintos, as coisas com ele transcorreram de um modo imprevisto, naturalmente cheio de rodeios. Contornos fragmentários sufocam o tédio confortável e a técnica geométrica. Vendaval que turba as fontes. Prolepse, diria que nada existia em si que justificasse a reciprocidade em relação a um homem tão mais jovem, saudável, atrás de quem as mulheres deviam correr. Não que fosse feia. É que as estações a haviam sazonado. Assim faz o tempo com as frutas, queimou a musa dos Cânticos. Estava escrito nas linhas de seus rosto e as carnes de seu corpo o revelavam. Entretanto é esse tipo de mulher que mais atrai homens jovens, não as garotinhas. Se não era linda, com sua boca grande demais e as grossas pernas meio tortas, transpirava o que se deseja inspirar e deixava os amigos da filha boquiabertos. Agora, o jovem sem nome daquele primeiro dia por quem cruzaria diariamente em seu passeio matinal pela praia, aceitou renunciar a ele por uma força ligada à sua capacidade artística. E era essa a forca de seu amor, maior que o próprio amor assumido, maior que o próprio amor: sua renúncia. Existem tantas cidades no mundo, pensou, por que o destino o trouxe justamente para cá? Está tão cansada. Voltará para casa após vê-lo em frente ao hotel. Está consumida por esse desejo absurdo. Não sabe se será possív mantê-lo imaginário e fecundar a privação. De resto, não surgiu esse desejo com o fim não de ser satisfeito mas de inquietar. Ah! É forte demais. Aniquila. Poderá controlálo? Um impulso mais forte que ela? Só poderá descansar após o apaziguar. Respira fundo antes de olhar o
ateliê agora à sua volta. Meu Deus, isso não é amor...
Fora não mais que uma troca de olhares, pensou, quando na verdade nem isso. Mas desde aquele dia em que viu Gerard, absorveu a perspectiva de toda uma vida. Envolvida por uma paixão da qual se julgava imune, decidiu que não transgrediria, em nome da paixão, os princípios católicos dentro dos quais fora educada. A vida estava muito além da atração física. O desejo adquire o tom da esperança e a senhora Lens se permite contemplar. Viu no mesmo desejo aquelas coisas que estavam na vida além e todas de alguma forma residiam na própria paixão. Havia o amor da natureza, a paz do silêncio, o usufruto pleno do que se possui, a gestação de um filho. A arte. Então decidiu. Viveria sem o objeto daquele súbito e inesperado desejo, viveria sem sequer pensar nele (melhor assim), em sua voz que dirá Muito prazer senhora no almoço de Michele; em seu queixo, em seu peito, em suas coxas; em seu olhar que lia os olhos dela, luzes de um farol trazidas à noite pelo oceano que marulhava à janela. O nariz arrebitado e petulante, de criança mimada. Conheço o tipo. Mas nunca assim. Pelo menos agora. Um motivo para o despertar. Um novo tipo de passeio matinal. Sua boca não atrairia a atenção de qualquer mulher mas Rose, a artista, a artista plástica, a artista plástica marginal, para ela a umidade assimétrica da borda rósea refletia o tremor das folhas em uníssono com o seu coração. Por meio da contemplação oferta a si mesma uma vida vicária que deverá ser sua serva ao conter as loucuras de uma paixão proibida. Paixão? Outra vez. O quê? Amor.
Caso pudesse se chamar de amor, amou-o desde o primeiro momento. Impossível negar. Amar aquele jovem era um sentimento que corria em suas entranhas como se fosse seu único habitat no imenso mundo. Estremece a cada evocação dele. Amor então. O desenvolvimento esperado do arrebatamento inicial. Bem, deveria ser. E se impõe o sacrifício. Não transgredirá. Como seria, transgredir? Deitarem-se juntos, talvez na praia noturna. Mas não. Será boa para sua arte a renúncia. Melhor assim. Faz tempo que não pega em seus papéis, nos lápis, no buril. Ultimamente, é ela a própria forma líquida, negra, na superfície oscilante. Seu ultimo quadro fora um estudo confuso da obra de Klinger, onde não desenvolveu uma visão da pintura engajada mas acabou envolvida pelos tons sombrios, deixando-se arrastar por uma crise de nervos que a jogou na cama em frangalhos. Flor cujo viço está prestes a morrer, dela cuida o marido com zelo de jardineiro. Embora gozasse com as floradas novas e seus brotos, não deixara de dispensar gratidão à planta que definhava para dar lugar àquelas geradas da eflorescência anterior. Esteve à sua cabeceira com gentilezas de comerciante que lesa os clientes, de médico que assedia a paciente. A senhora Lens tem pavor desses rasgos de bondade. Nos filmes de terror, o recanto bucólico sempre antecede as orgias de sangue. Era ainda bela sua mulherzinha, serviria ainda por um bom tempo. Quanto às outras, está no homem ter muitas mulheres como está presa no ramo da planta atual a que germinará no futuro. Assim pensa George Lens entre Rose e a Zona Vermelha, entre as jovens frescas da noite e a mulher de 45 anos. Como um jardineiro que ao cuidar das novas plantas não percebe o arbusto seco refrondescendo, não percebeu o olhar brilhante do amor, desde o primeiro momento, na véspera do aniversário de Michele, a Gerard dedicado. Tomara que não perceba. Ela não estaria preparada para essa possibilidade. Odeio esse homem. Realmente, como pôde chegar a se casar com ele?
Se não devia fidelidade ao marido infiel, à arte a fidelidade exigida não era a que se aprende por meios morais mas aquele de que se depende para sobreviver. Portanto, talvez George fosse necessário para que de algum modo ela pudesse ser plenamente Rose, com suas melhores virtudes nascidas do sofrimento e de grandes alegrias por contraste. Para sempre registradas em suas telas. Ainda bem que existia um lugar como Celba, pensou, ainda bem que havia a solidão, não sobreviveria numa vida social. Talvez George fosse necessário, como o próprio Gerard de outro modo.
Durante a primeira parte da manhã, talvez uns quarenta minutos, permaneceu diante do espelho. Ainda não morri. Nem mesmo estava velha. O fulminante amor que a colhera lhe destinou mudanças: nada mais do que – compreensão. Acontecera um dia com a pintura. Está sentada, ereta, com as mãos na região lombar. Olha para as mesmas mãos no reflexo, percebe os resíduos da tinta na pele, como uma roupa encardida. Produzira-se em seus quadros, essa compreensão, a partir da mudança da metrópole para a vila de pescadores. Um tom insistente, qual gemido. Poderia se chamar estilo. Estica-se para trás, alonga, geme. Regozijara ao descobrir o caminho a seguir. O mar; os matizes do mar; o barulho do mar; o cheiro do mar; e, oh sim, tudo encontrava eco em seu espírito de mar. Olha para o ombro esquerdo, nítido, branco e cheio, plena do sofrimento que é forma de vida em extinção. E o que ela – nereida – compreendia, passava às telas, em perfeita simbiose. Quando pintava. Mas não tem pintado. Abre as palmas diante dos olhos. É isso. Leu as manchas de sua pele. Sim, ela o amava. Amará de fato. Ama Gerard.
Talvez o responsável por seu amor seja um tolo. Mas, como não irá se envolver, isso não afetará as profundezas e altitudes. George Lens já tinha saído. Ele sobe as escadas do prédio. Cidadezinha miserável. Gentinha. Nem sabem o que é um elevador. O alívio da senhora Lens se confunde com o terral que varre o vilarejo para desespero das donas-de-casa, obrigadas a levar uma segunda e terceira vez a ultima vassourada pela porta. Tarefa que pode esperar, decide ao entrar no banheiro. E para o almoço mandará buscar uma ou duas quentinhas. Possivelmente Michele nem venha, como está se tornando costume. Lembrou-se do absorvente. O mar, a lua. Ciclos. Pode uma mulher ser livre? Sua vida vai pelos ares agora também respirados por Gerard. Ele não a verá passar quando, depois de falar com o jardineiro, retornar à pousada. Conquanto espere o encontro. Trocar olhares com a materialização de seu sonho. A visão do corpo maduro e roliço em meio à nevoa.
A maré subia. A areia dura registra as passadas de Gerard, caligrafia tensa do desejo de reencontrar a mulher. No vigor da espuma lançada com mais força, apaga-se a trilha de um dos pés, figurando a laceração, preservação de apenas metade dos projetos que o distinguiram com tão peculiar vilarejo. A paixão o dividia. Tudo parece complicado, desde as mais simples tarefas do técnico de informática da pousada. Emprego caído do céu. Viu como é bom fazer as coisas direitinho? Lembraram-se dele para o cargo. Agora porém o rumor do mar, nos corredores que esperam a temporada, mantém-no prisioneiro. Os pensamentos batem nas paredes,
entranham-se na fina grama da entrada, luzem na fachada dórica. Volatilizam-se junto ao aroma das buganvileas. Do segundo andar se espalham por toda a parte em cachos rosas, vermelhos e brancos. Porque tudo aquilo, como ele inteiro, havia sido marcado pelos devaneios desde que vira a mulher, de quem retivera o pecado de sonhar. O que vê, ao entrar entre os capitéis triplos do prédio em que trocará cumprimentos com os veranistas, é ela, apenas ela. O nome dela, saberá no dia seguinte.
De agora em diante felicidade passa a ser a madrugada fresca do lado de fora das casas, nas redes das varandas, em uma aldeia de pescadores, olhando as estrelas e criando a manhã de nadar e encontrar uma deusa madura, esperando o sol para segui-lo pelo mar turquesa após um dia desgastante entre pentes de memória e mensagens de erro. Está sentado à janela do ônibus, chegando. A estranha da madrugada vai descer. Que importa? Apenas um outro evento erótico. As vozes entranham-se umas nas outras, mais, à medida em que as cortinas vão sendo abertas e o dia entra e entram na cidade. Luz. Felicidade. Aos domingos recostar-se em almofadas no tapete, os suplementos do jornal espalhados, agradecendo a Deus por tê-lo encaminhado para uma vida assim. Você estava tão bonito naquele dia em que chegou, mesmo de longe, aliás nem tanto assim. Mesmo antes, ali, olhando o mar a correr pela janela. Ainda não a viu. Mas pressente. O mar tem segredos.
A senhora Lens passa no rosto o creme hidratante que já usara no pescoço. O som está ligado. John Cale, Nick Cave, Tom Waits, Lou Reed, Leonard Cohen. Ele uma vez disse que eram escolhas significativas, mas nunca disse o porquê; nunca disse nada além do que um genro tem a liberdade de dizer. Nunca fez qualquer elogio referente a seu físico. Por respeito é claro. Ou nem liga. As duas coisas? Aqui, ela separa as roupas sobre a cama no espelho, a bermuda floral que a deixa à vontade sem constrangimentos e a blusa sem mangas – seu uniforme de passeio à beira-mar. O ônibus passa a seu lado. Passam tantos ônibus interestaduais naquele horário. Nem pode imaginar que dentro dele. Um suspiro. O corpo fala pela postura e pela naturalidade com que a postura se mantém. A roupa fala; o equilíbrio é bom-gosto, revela. Função importante no caso da senhora Lens, calada e cada vez mais após a partida de Silvia. Tem todavia vontade de falar. Por isso mais que vaidade a escolha do vestuário.
Foi esse tipo físico. O jeito simples, o porte, e alguma outra coisa que ele não saberia dizer mas transpirava daquele corpo. Chamou a atenção de Gerard ao despontar na praia quando chegava à cidade, acalentado até então apenas pela exuberância da natureza ao redor. Talvez pudesse ter ali evitado esse destino. A senhora Lens se cala diante dele. À porta. Ela acabou de chegar e perguntar por Michele. Não, não havia como evitar. Esse destino está à janela dos ônibus. Sente no rosto o vento e a chuva que batera contra o vidro durante a noite. Está do lado errado. Com desconforto se acomoda à poltrona. A vida pulsa na solidão tempestuosa. Logo, tudo pareceria um sonho. Quando acordou de manhã, o ônibus deixando estrada e mais estrada para trás, para trás, um sol tímido se arriscava em finos feixes. Espíritos do ar se alimentam dos pensamentos dos passageiros e depositam em suas mentes o pressentimento que não saberão definir. Gerard
emprestou às existências ocultas a forca de sua esperança. O ônibus encosta na rodoviária, na verdade a pequena marquise da loja de venda de passagens. Um olhar estrangeiro. Ponto a ponto de referencia, ele se exaltara em arroubos próprios de pessoas em lugares novos. Dava Celba por definitiva em sua vida. A visão fugidia do vulto que tanto seria amado iniciou o processo do renascimento do Deus feminino por quem, na beleza do céu agora de súbito entrevisto entre dois prédios, havia na adolescência se apaixonado. Sem dúvida, o destino.
A musica que ainda tocava em seus ouvidos possuía uma dimensão nova de ser, superpunha nele uma nova alma sobre a antiga. Uma nova realidade repercute nas batidas de seu coração. Enche o peito. O mar lhe faz tanto bem. Amanhã bem cedo dará um mergulho, nadará um pouco, precisava. Quem sabe ainda hoje. Fechou os olhos. A música paira, melodia lisérgica de não-usualidade. Pensar na mulher provoca a fraqueza profética, mistura felicidade e terror. Não se atém à música, ao céu ou o mar entrevisto. Uma historia de incerteza e horror. Agora ele sabe, não sabe como. Agora uma nova consciência. Passeava ousadamente pelo medo da realização das coisas que muito se desejam. Pensa na mulher.
O alongamento no ato de se espreguiçar interage com o frio na barriga. Tinha a ver talvez com um velho sonho, viver numa vila como aquela, apaixonado. Derramando-se pelos telhados como uma mancha de luz, o sol impossibilitava a fixação no descanso verde de uma arvore, na sensualidade dos tijolos vermelhos ou na liberdade de algum azul no céu ou no mar. Tira momentaneamente os fones e, passando por uma casa, ouve vozes enquanto o ônibus se aproxima e depois que se afasta. Estou indo agora, acho que me atrasei um pouco, diz a menina. Rose não iria se aborrecer, não hoje. Disse que estava tudo bem. Que ia à praia. Como assim, vai à praia, mamãe? Assim: de biquíni e toalha pela trilha. A senhora não tinha prometido dar um jeito na minha calça para a festa? Claro. Só não tinha marcado horário. Mas o aniversário é sábado, sabia? Sim, Michele, foi nesse dia que te dei à luz. E você, sabe que hoje é quinta? A adolescente deu de ombros. A mãe estava mesmo ficando cada dia mais estranha. Deve ser a idade. Na idade dela, pensou Rose, eu já teria dado eu mesma um jeito na calça. Ou poderia usar uma calça velha, o que naturalmente Michele não faria. A filha não fez questão de dissimular o olhar que percebeu a estria na senhora Lens, que foi discreta ao notar seios e culote brotando de modo um tanto descontrolado em Michele. Tudo bem, mãe, boa praia. Só faltou dizer: Papai não vai gostar quando souber. Obrigado, querida. Boas aulas. Os sons de um concerto marcaram, no ônibus, a distância da casa. Eca, mãe, que musica horrível, resmunga a filha ao sair. Quando você tiver a própria casa poderá ouvir músicas lindas em todos os aposentos. Quando tivesse a própria casa, pensou Michele, seria mesmo sua, jamais dependeria de um homem. Mas porque era filha, e porque era fase, porque o pai tinha algo que ela, porque descobriu. As vozes ecoam em Gerard como se tivesse passado não de ônibus mas a pé. Essa voz. Então lembrou. De seu sonho? Não. Acontecera.
Houve sim a noite no ônibus. Com licença, disse a jovem. E de fato aquela mão. Talvez ele tivesse
permitido, talvez não tenha reagido para ver até onde ela chegaria. Mas o quê? Estou pensando em um sonho? Não. A claridade, o cochilo, quase o enganaram. Mas as noites sempre voltam. E ali, de seu descuido, de seu sonho ou o quê. Essas coisas acontecem. Nada demais. São os tempos. É a noite. O aconchego de um ônibus leito. Mais tarde, algum tipo de culpa, caso não impeça a súbita mão que desliza e permita o contato do encosto dos braços comuns às poltronas – logo diálogo de pele, arrepio, a contração de todo o corpo sob o cobertor. Evento oculto dos olhos, ainda que não exista olhar ocupado com aquele lugar no interior do veiculo. Nenhum olhar para qualquer lugar especifico do interior do veiculo. Então os dedos se insinuaram enquanto vigorava a lei dos olhos fechados e do pretenso sono.
Ela entrara na segunda parada e, como já não estava ali ao chegarem, saiu antes da ultima. Há um rio correndo por dentro da cidade. Ela o cruza, pela ponte. Segunda parada. Entrando. Contraponto aos caras grosseiros da rua, o passageiro com aspecto sonhador. Não será algo doentio. Ela lhe apenas lhe dará algum conforto, pois ele parece tenso, quase à beira das lágrimas. Roçar de braços faz despertar. O ruído do motor traduz o quanto na distância ficou a segunda parada. Nem mesmo ele poderia jurar, caso a reencontrasse, que não dormia. E caso se encontrassem mesmo? A cidade era tão pequena. O temor que habita a consciência. Não. Nem se reconheceriam. Ou talvez. Vale a pena o risco? Três passageiros entraram na segunda parada. Uma moça. Os dedos eram tão gentis que, mesmo no sonho, ele custou a acreditar – se é que acreditou – que não era proposital. Movem-se sobre a separação mas já introduzidos no calor. Não há sedução mas momento, não vergonha mas encanto. Homem e mulher, menino e menina. Coisas que acontecem, após a segunda parada, no silencio das reputações. Lembra-se de súbito. Tenho trinta e oito anos. Segundo semestre. Dois mil e oito, pensa, o ano para o qual me preparei. Uma réstia de luz entre as cortinas, do lado esquerdo de quem entra pelo corredor. Gerard leva um olhar morno junto ao raio até que pousem no perfil da jovem, sim, dir-se-ia adormecida. Mas é dela esta mão. São dela os dedos que procuram. Isso não está certo. Mas o que pode fazer? Há algo que possa fazer dentro desse limbo no entorno de um gozo que não se consumará nem na verdade deve se consumar? É apenas o dedo médio, gordinho (das poucas coisas que notara assim que ela se aproximou) , com uma pequena ajuda de indicador e polegar. Acompanhando a trilha. A senhora Lens chegará na praia por volta das nove e meia, descanse agora, dê um mergulho, estenda a toalha e tome um sol. Por agora ainda dorme, ou tenta conciliar de novo o sono. Mas o sono é úmido como a areia nas proximidades do mar, como a jovem do ônibus. Agora são todos os dedos. Pressionam, diminuem o aperto, veementes, suavemente. Detém-se agora no pulsar que ignora as fases primárias do desejo e as complementares, da consumação. Tão natural. Ela, frequentemente tocada, agora toca; Gerard nada fazia, se integrava.
A mão por dentro do cobertor. Descobre a borda e a leva abaixo no ritmo da estrada e do motor. Um ser triunfante desafia a lã. Em que momento os dedos pararam, se a mão guiou a outra mão, em algum momento esqueceu. Respiração regular do reles mortal. Tudo bem, aceito ser um pouco feliz assim, obrigado. Tardou o necessário. Passou. Ao ouvir a voz de Michele, na verdade um resquício da voz da menina,
fragmento de fragmentos, um acento qualquer, um pronuncia incomum, um jeito de falar, algo a envolveu no incidente noturno. Bom dia, diz ela assim que ao descer pisa na terra que ladeia o asfalto. Bom dia, senhorita. Vista por um velho sob a arvore que marcava a penúltima parada, o ser que desceu do ônibus parecia um anjo, as vestes molhadas de azul.
No inicio da tarde do dia em que chegara para assumir os computadores da pousada, viu a mulher pela primeira vez. Se Deus tivesse aspecto humano, Deus mesmo, não seu Filho, seriam as feições daquela mulher; se tivesse um corpo seria seu corpo, lírio entre as plantas espinhosas. Passeava à beira do mar. No momento em que pousou nela o olhar, desencadeando aquele fogo que o devorou em esquecimentos, a senhora Lens encheu os pulmões do ar salino, fartando os seios pequenos discretos nas fronteiras em V. Ônibus adiante, o ângulo de visão apresenta uma mulher na casa dos quarenta, em exuberância de porte. Erguem-se montes cobertos por névoa floral, Gerard reteve a imagem da senhora Lens nos minutos em que esteve no ônibus depois de tê-la visto e antes de saltar.
Chegara enfim.
A senhora Lens passava os dedos através dos cabelos. Pega uma flanela fina e se entretém a limpar as lentes dos óculos. De longe o viu à janela. Sim, um ligeiro tremor, não atração física. Viu a compaixão no olhar do rapaz falando com o jardineiro. Senhor Gerard? Muito prazer. Sou Cronelin. Seja bem vindo. Gerard sorriu, agradeceu. Respondeu. É um prazer para mim também. Pouco antes do verão, chovia mais do que normalmente. Aproximava-se o Natal.
Gerard. Arrumou apressadamente as coisas no quarto, como se estivesse atrasado para um encontro, e saiu em direção do lugar na praia em que havia visto a mulher. Como o ônibus houvesse dado uma volta naquele ponto, teve dificuldades de se orientar. O sol vermelho busca seu próprio reflexo, tangendo a linha do horizonte, que mais confundia que dividia mares. Logo sóis estariam se unindo no oceano, policromia desde o infinito até o pé espumoso das ondas. Chega ao lugar, marcado por um pé de tamarindo gigante, quando o sol encontrou seu duplo e a noite começou a cair.
Não havia ninguém.
A tradição determinava que a vila de Celba, com sua orla marítima plena de curvas como as redondezas das versaletes no diário de uma adolescente, fixasse, nos que chegavam com a rodovia, uma impressão beatifica. O terral sopra as tardes balançando as buganvílias no forte calor infestado de maribondos, pouco o amenizando. Aura de séculos. Hábitos femininos dissolutos. Vendilhões no século XIX vivem do tráfico de escravos. Desde a estudante à vendedora de balcão, da filhinha de papai à fugitiva de seu lar, da turista adolescente à radicada madura, as mulheres dali tinham essa essência que as resumia. Sensualidade vulgar. Para os homens, a principal fonte de recursos da vila era não a pesca, nem o artesanato de conchas, mas o turismo. A maioria dos que moravam ali o ano inteiro vivia em função da temporada. Alguns porém eram indiferentes a esses verões. A temporada os incomodava. Era o caso da senhora Lens, pintora em cuja paleta durante o período ensolarado subsistia grande simplicidade que contrastava com o viço das cores ao longo do resto do ano, quando eram produzidos, com inspiração no cenário natural da vila, quadros que a critica acreditava brilhantes. O brilho literal, Gerard viu do ônibus, quando chegava. Qualquer pessoa o veria. Aos olhos da distancia havia sim um lirismo que se perderia no crepúsculo. Porque Celba não depende da pesca ou do turismo mas da luz.
Essa vizinhança de nativos em seus casebres e donos de mansões para aluguel acumulou-se da mistura que acrescentava à atmosfera da maledicência da cidade pequena a perversa liberalidade da metrópole. Na época, Celba contava com menos de dez mil habitantes. Mas há qualquer coisa na comunidade que a faz parecer maior do que realmente é. Em comunidade o mundo o mundo que constitui cada pessoa interfere nos outros mundos, como transmissão de rádio. A vida da cidade se expande. As pessoas são portanto muito parecidas, esperam a temporada como quem torce por números de loteria, num universo de bilhetes premiados. Quando vêem a senhora Lens, que não é turista mas vai à praia e não se juntava para falar da vida alheia, murmuram. Olhem. Lá vem a madame. Gerard tampouco escapará. Arrogante. Sozinho pelos cantos da cidade. Gênio difícil. Idiota. Ama a senhora Lens porque deseja a liberdade que, na vivencia cotidiana, está além dos relacionamentos. Amará o fruto por ser proibido, não pelo seu sabor? O sonho por ser utópico?
Celba. Lugar maravilhoso, pensou. Castanheiras. Esperou a manhã. Nossa! Folhas. O sol num milhão de nuances. Acompanham a orla. A pouca distancia dos recifes, passavam todos os dias ao romper da aurora barquinhos com dois homens. Verificam a rede, curvando-se para o espelho. À direita de quem chega, erguese o monte Lagar. Uma falésia ergue-se no meio da proximidade do verão. Ali a praia começa ao sul suavizando a rocha na areia escura. Para onde quer que se olhe, montanhas ou mar. A chuva costuma sumir por longos períodos e as grandes tempestades anunciadas são mais barulho, eletricidade e redemoinhos. Mas isso Gerard não po ainda saber. As mulheres se vestem de maneira que ainda seria considerada indecente em cidades pequenas, as confortáveis e as sedutoras. A população flutuante faz o estranho passar despercebido ao descer do ônibus. Que lugar. Acho que enfim acertei em cheio. Junte-se à paz turquesa a sensibilidade de
um espírito nobre, e aí está o principal efeito do lugar em Gerard semelhante ao que habitou em Rose havia alguns anos.
Oito anos. Veio a convite de um amigo com o qual irá se casar. Quer uma dieta de peixe nas férias. Acaba fazendo do peixe, sobre a mesa da casa de tijolos vermelhos, seu a base de seu cardápio para o resto da vida. Aos poucos, as ruas da vila passam a fazer parte dela. O caminho do mar e a avenida do meio, da prancha da balsa até a lagoa. Aflorou a sensualidade por meio da qual Celba promovia a unificação das pessoas de bem e gente de caráter duvidoso. Casos mostravam o passional desequilíbrio que a preguiça reprimia, crimes hediondos sobre os quais pairava o silêncio. Essa maldição, incorporando-se à existência, torna a mulher sombria e intensa. Catarse nos quadros. Motivos crepusculares e lúbricos. Num arrebol lascivo sobe o ônibus pela estrada.
Gerard deixara para trás o emprego de caixa e uma vida luxuriosa testemunhada pelo apartamento que o banco oferecia aos funcionários, no próprio prédio da agência central. Fugia do desejo irrefreável, do desgaste da capacidade estética, da banalização dos relacionamentos. Vislumbra a cidadezinha de um cimo. Viverá em paz. Tem certeza agora. Guardar-se do mal, do cansaço, da treva. Bem, continuaria a se comunicar pelo computador com o resto do mundo. O velho com a colher aproveita o máximo do mamão partido ao meio.
São Braico para lá daquelas colinas. Os olhos de Gerard, o cristalino sobre a retina e as superposições que registram forma e cor, como operários, trabalham visando o descanso. A mulher leva o leite para dentro. Uma outra agora ali. O talhe nobre nasce das luzes. Sem sombra. Um relógio de sol. Recortada no horizonte: ultimo pouso do olhar dele antes que a perdesse.
A senhora se livrará da depressão por causa desse amor, mas não logo. Logo, por causa do amor, a depressão se intensificará. Por causa do itinerário confuso como o texto de alguns romances que só fazem sentido – quando fazem– no final, ela pela praia, chegaram ao mesmo tempo naquele mesmo lugar. E ele soube que era ela ou não seria ninguém. Sonho e realidade. Equilíbrio entre a atração física e a admiração de olhos benévolos. A mesma tentativa de sempre. Num outro corpo esquecer do próprio corpo, do terror que ele contém. Era como se aquela moça da noite o soubesse.
A temporada portanto dividia a vila de Celba em duas: a do verão, cosmopolita, e a provinciana no resto do ano. Por volta do Natal, em meio a tempestades, da exposição desses dois períodos ao mesmo sol, nascia um rico corpo rústico feito das pessoas em férias que se ligavam aos moradores anuais, pescadores e comerciantes e a gente a eles ligada, além dos especuladores, obedientes a leis tão imutáveis quanto as que determinam, na semelhança entre pais e filhos, o gene. Gerard chega em novembro, quando a vila apenas se
ensaia a temporada, mas pode sentir essas faces. O feriadão está cheio de turistas.
Quando se faz a curva vislumbra-se a vila num prisma plano pela primeira vez. O sol se põe a noroeste nessa época do ano por detrás da cordilheira. O vento sopra quase sempre na mesma direção, fortemente às tardes. O mar é raso durante imenso trecho transparente, quase dá para se chegar às ilhas sem nadar. Branco corte litorâneo, inexato chamar de areia-; luminoso chão de fibra ótica, termina em choupanas ao pé do Lagar. Um rio corre ruidoso ladeia toda a rua paralela à avenida beira-mar. No extremo sul repousam as águas da lagoa do Trancoso, reflexos de água doce na pura paz de algum engano. Assim se desvendou Celba quando Rose chegou, assim agora retiniu nos olhos de Gerard. Um coração palpita além do que se deveria supor.
Quarta-feira anterior. Abandona-se ao prazer da desfeitura de seus hábitos de cidade grande. Chegou na quinta. Estabeleceu-se na pousada. O computador fica do lado esquerdo, junto à parede oposta à da janela. A impressora e o fax, numa mesa menor, de fórmica. Moveis anteriores aos raques específicos para micros, que por uma mal formulada questão econômica o dono da rede de hotéis ainda não se dispusera a trocar. Conectado. Viu o rosto que não conhecia. Torne à realidade, Gerard, o que por Deus será de você sem uma mínima base de vida sem estética e sensualidade? A conexão era boa, via rádio, uma surpresa agradável para quem ainda não conseguira se livrar da internet discada. E de que adiantava a estabilidade no emprego e o salário razoável? São contas que não se dispunha a pagar, televisão a cabo, assinatura de jornal, banda larga e toda essa tralha de que se diz serem essenciais hoje em dia. Afinal não é um lugar tão primitivo. Um comentário num blog qualquer. Tente olhar mais para a câmera e menos para o seu monitor. Suficiente para se virar e se perder na contemplação do oceano. A nova vida pretendida. Fosse assim, o barulho de mar estaria sempre ali para não permitir que esquecesse. Súbito para quem olhasse, levantou-se. Saiu. A imagem da mulher o envolve. Não seria a primeira obsessão amorosa em sua vida mas certamente seria a ultima. Na qualidade de obsessão se desfará para abrir espaço a um amor autentico que o entregasse, homem, a uma mulher, o entregasse, não o emprestasse. Sentenciando-o a amar quando não amasse mais a si mesmo na pessoa amada mas essa mesma pessoa e, amando, levar ao amor das pessoas em geral. Era como se despertasse. A vista da janela. A inserção na vista, ao nadar até os recifes. No quarto vazio o halo de sua presença. Um dia conversava pelo messenger com a mulher que agora deixou sozinha no monitor. Falavam sobre decepção e abandono, expectativas criadas e frustradas. Quem sabe o que se origina na tecnologia e o que o mal do próprio homem. Mas no fundo é irrelevante. No mar, a prateação do braço esquerdo ao horizonte. Mistérios, revelações no sol. Matizes oblíquos nos prédios que dão para a praia. A mulher em algum lugar. Sob o mesmo sol. Possivelmente perto. Luz obliqua na transversal de sul para norte no lado oposto da ciclovia. Mães e filhas respiram obliquamente artesanato de conchas, búzios furados com alicates de unha, colocados no fio de pesca. Palavras e palavras e ainda outras palavras. Maledicência mata. Ah, deixa pra lá, o que me importa? Não quer mais carregar os vícios do mundo. Raios diamantizam o jorro da Fonte Sarracena. É possível reter apenas a beleza das coisas. Mas. Há a
lateral plúmbea da igreja, a parede rachada cheirando a urina. Verdes pedaços velhos de orçaz, maços de cigarro amassados, guimbas, seringas. Ocultas pela triste parede as lágrimas do padre aidético. Será a vontade de Deus? Escurecia. Não mais tão rapidamente quanto poucas semanas antes, quando começou a vigorar o horário de verão. Esticam-se as sombras de prédios e pessoas. Aqui um homem foi morto por nada. Agora Gerard sai da água; agora a senhora Lens está em adiantado caminho de volta para casa. A pousada momentaneamente não tem cor definida. Como o dia passou rápido. Nos telefones públicos em frente ao posto, o entardecer inspira jovens turistas a enaltecer Celba para seus familiares. Dizem que é um lugar muito bonito, nossa mãe, uma vilazinha bem legal. Tá bem, meu filho, se cuida, dizem que aí rola muita droga. O rapaz sorriu, fazendo sinais para a namorada. Beijam-se. Mal podem esperar a noite e quem sabe não esperem mesmo. Os velhos fios de cobre sobre suas cabeças transmitem revelações mas esse rapaz entra novamente na pousada um sem ter descoberto o que buscava. Dois carros passam muito rapidamente após ter atravessado a rua. Uma estrela desponta, depois outra, irrigadas pela lembrança da moça do ônibus. Mas a inspiração não é tão firme. Nem sabe se, caso precisasse, poderia manter atividade. Era ainda novo, deve ser resquício do antidepressivo. Deus também o poderia estar castigando pela promiscuidade da qual fugia. Claro, uma recompensa a longo prazo por ter tido a iniciativa de mudar, de querer mudar. É sempre o primeiro passo para tudo na vida. No casamento decerto estaria curado. Outra estrela. A história se fecha na pracinha do cemitério, o amor conhece o esquecimento nas lápides. Gerard lembrará um dia. Dava para ver jazigos de sua janela. A senhora Lens passou por ali no caminho de volta. Gosta daquele silêncio. Lembra da noite anterior e não sabe mais o que fazer para evitar a aspereza diária em seu canal ressecado. Os beijos pelo menos são cada vez mais raros. Nem a preliminares George se dá mais, apenas a penetra, rasgando, arrogante Viagra. Ele apenas se serve de mim, sempre me usou, sempre apenas me usou. Mas não tem forcas para romper com aquilo. No recém-inaugurado shopping enforcam o feriado no cinema ou na praça de alimentação. A senhora Lens chega em casa pensando que Michele estaria. Gerard acabou de tomar um banho após nadar, senta-se ao computador. Começa a digitar, clica e o contato se faz. Uma velha correspondente, nunca a havia visto. Uma amiga virtual. Médica. Ao menos se dizia. Do outro lado da tela, distante de Celba e mais perto do que a telefonista do hotel, a mulher soltou os cabelos negros que caíram à altura dos seus ombros. Levantou-se. Doutora, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do Centro Médico da capital. Da arrogância dos colegas nasce o desejo de sumir, recomeçar. Não será jovem outra vez, nem terá mais essa pureza. Quem sabe. Uma nova forma de relacionamento na luz baça dos dias. A alma se derrama pelo espaço, mantém-se assim viva. A simples consciência de que esses jovens existem fazia com que Silvia suportasse melhor suas frustrações e estados depressivos, motivo de constante preocupação de seus amigos. Especialmente de sua melhor amiga, Rose Lens. Talvez, pensou, se refugiasse um dia naquela Celba de sonho. Trabalharia, quem sabe, no hospital da vila. Conviver com tamanha incidência de contágio levaria ao esquecimento de si mesma. Pensava nisso insistentemente apesar do alerta da senhora Lens. O lugar é perverso, as pessoas traiçoeiras. Rose era infeliz no casamento, evidentemente isso refletia na sua avaliação da cidade natal do marido. “Me lembrei que vou ter que dar um telefonema” – leu Gerard na tela. “Mais tarde nos falamos”.
Mas voltemos à imagem da senhora Lens tirando seus óculos. Penderam em seu peito quando a voz grave atendeu o telefone. Na sala de estar, cujas paredes acolhiam uma tonalidade íntima entre o amarelo e o vermelho, nuances quentes acolheriam quem entrasse. As lâmpadas alógenas abandonavam o foco sobre os quadros. Goya, criança e animal; abstrações de Mondrian; uma foto de Evgen Bawcar; e o “Vinhedo Vermelho” de Van Gogh. Na parede oposta, o auto-retrato da senhora Lens, implacável em seu nicho sobre a lareira, colocado ali no transcurso da vaidade ainda juvenil, na inconsciência da passagem do tempo ali metaforizada pelos matizes vindos das cortinas, modificam o ambiente pela transformação do dia mantido do lado de fora. As almofadas de cetim espalhadas pelo sofá cor-de-terra marcavam em pontos de retângulo o carpete, cheias de motivos esverdeados e triangulares, à espera de que a senhora Lens se estendesse para passar seus cansaços. Seu rosto no enquadramento de fundo cortinado e séctil juntou-se ao arranjo de flores secas. Estava deitada, lendo sobre Cézanne, quando o telefone tocou. O caleçon azul de seda mista se ondula, deixando adivinhar as formas das coxas divididas em luz de lâmpada no tecido. O sutiã estampado encheu-se quando inspirou. Quem poderia deleitar-se com a visão uma vez que a senhora Lens estava só, como sempre? Vestia-se para si mesma há muito tempo, desnudava-se para si mesma. Ao andar pelo tapete, seus pés pequenos o marcavam. Como Rose estava? Era bom ouvir a voz de Silvia. Há quanto tempo. O que tem feito? Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Quero te ver, ir a Celba. A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito prazer. O George não ia achar ruim? O George não ia achar nada. Quando Silvia estava pretendendo viajar? Um pouco antes da exposição. Quando você vai para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas. Sim, iriam juntas. E as coisas? Iguais. Você precisa tomar uma decisão. Não era nada trágico. Ele a maltrata? Maltratá-la seria estar consciente de que ela existia. Silvia se pergunta como Rose pôde se casar. A senhora Lens pensava que o noivo era apenas um homem rude. E pensou que poderia dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo. Bobagem, as pessoas não mudam. Quem dera ele fosse só um homem rude. E a menina? Está bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar? – Fui ter uma conversa ela, achei achou que ela estava exagerando na maneira de se vestir, com biquínis minúsculos, shorts enfiados e... – A senhora fala como se estivesse tratando com uma predadora -- dissera Michele na ocasião. – É exatamente o que está parecendo! – Fale pela senhora, mamãe! Silvia lembrou que elas também haviam sido adolescentes. Faz tempo... Nem tanto. A senhora Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la? Segunda à tarde? Tudo bem. É estava ótimo. Assim tenho mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estaria na escola e George no trabalho. Será bom rever você, disse Silvia. Tenho novidades. Alguém? De certa forma. Como assim? Quando chegasse, conversariam. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um computador em casa. Vadia... Silvia dissera que ia comprar um para trabalhar! Lidar com homens é um trabalho exaustivo. A senhora Lens pensava que a amiga os tivesse deixado de lado. Como Silvia diz, é um homem apenas de certa forma. Nas pausas, a senhora Lens podia ouvir o refrão do mar, sempiterno. Também escutava-o Gerard ao
desligar o computador. Desejaria retirar todo o prazer da melodia mas contentou-se em ter a intensidade de percepção possível. Não era capaz da plenitude dos sentimentos que a sublimidade música pode passar. Perdeu-se no céu parcialmente estrelado, pensando na mulher da praia. Ela caminhava pela areia úmida com jeito de nereida, uma rainha, na areia como se nas nuvens, a carregar o paraíso consigo na brisa de novembro. O rosto desenhava-se em proporções características de bebês. Os olhos eram grandes e muito abertos. Gerard não tinha certeza mas acreditava-os castanhos. Não era um rosto fora do comum mas Irradiava beleza de aura. Deusa despercebida, não para Gerard, insone que adorava os filmes de Hanna Schygulla e lia tanta Clarice Lispector. O porte vestal admitia um corpo talhado para o amor. Cabelos e pescoço, seios e coxas, pés e mãos, tornozelos e ombros, costas e barriga, como se o amor existisse não em si mesmo, mas naquele corpo. O acesso se dava não por conhecimento mas imaginação. Viu-se diante dela, nos montes abrigando-se da solidão tempestuosa, na austral curva descaindo no vale sombrio. No corpo que gerava a fantasia de Gerard, a senhora Lens sentiu doer as costas e passou a mão direita em sua lombalgia. Tornava-se crônica. Falando em homem, Rose perguntou como estava o Octavio. Octavio? Aquele, da última vez que estiveram juntas, no shopping, havia esquecido? Ah, fazia tempo que Silvia não... Veja há quanto tempo não nos vemos, Rose! Mas você existe, está aí, eu sei. Uma reflexão. Tornavam-se raras. Silvia sente a falta física das pessoas. A senhora Lens não tem muitas pessoas das quais devesse sentir falta. Por que não se separava? Michele o adora. E a ela mesma, Rose, quem adora? Quem ia se sacrificar por ela? É minha filha, Silvia. Não pediu para vir ao mundo. Droga. Nem você! Precisavam mesmo conversar. Os filhos crescem e será tarde. A senhora Lens bem o sabia. A gratidão dos filhos não deveria ser suficiente para encher a vida dos pais. Rose era jovem, atraente. Silvia devia estar brincando. Não estava, ora, trinta e quantos? Quarenta e dois. Silvia estava com quarenta e se sentia desejável. Tinha tempo para isso. O mal das mulheres casadas: não se permitirem ter tempo. Na verdade George era bom com a senhora Lens. Na verdade era um canalha dissimulado. Era bom com ela: o que fazia fora não podia mudar isso. Mas muda, disse Silvia. Admitisse ou não. A menina o adorava. Assim voltaram ao princípio. A senhora Lens não podia afastar a filha do pai. Sabe, disse Silvia, o mais curioso era que às vezes a invejava. Como? Realmente estava brincando. Não. Não brincaria com isso. Você está num contexto normal, as mães são dependentes e as mulheres se sacrificam. Estão excitadas, perdem todo pudor entre si. A que contexto pertencia Silvia, dos artistas marginais? Uma como a outra, uma nos olhos da outra e tão distintas. Artista? Silvia suspira ao pensar que talvez. Quem larga a medicina para se aventurar na literatura. Cartas tão poéticas, sem contar o livro. E se aventurar. Eu jamais. Portas sempre abertas. Nunca uma fila de banco. O que sabe do sistema de Saúde ou como funciona a Educação no país é só informação. Nunca desempregada. Uma vida ao longo da vida quase da vida separada. Michele chegava da escola. – Vou ter de desligar – diz a senhora Lens. Estaria esperando a amiga. Desde que levantou-se da frente do computador, Gerard. A feminilidade de Silvia sem um corpo e sem um rosto. Mas claro nada que se compare à mulher. Ainda assim. Dra. Silvia... Um raciocínio lógico demais para idéias tão ardentes. Um ritmo, diria. E a tal amiga, apresentando-a como vítima, estivesse talvez justificando seus desvios. Mulher só trai quando o homem dá motivo. Ele associa. A mulher. Jamais daria
motivo acaso eles. Eles. A senhora Lens pensa no rapaz. Vê. Namorada eterna, desnuda para alguém. No rosto se ilumina um prazer não sentido, disperso pelas feições do rosto dele. Ele também. Vê. Como nada soubesse dela exceto o físico, os perfis conforme o ônibus passava, Gerard, deslocando-a do desejo para a simples memória e desta para a saudade, colocou-a assim ao norte de seu amor. Adormeceu. O ruído que arrancou Gerard do sono e o devolveu ao mundo era um bando de adolescentes na rua da praia. Naquele tempo os filhos eram tiranos. Os pais poderiam ser responsabilizados? A época? Em todos os casos? Com a menina fora assim, era assim. Os Lens não perceberam que Michele se tornava mulher. O pai antes da mãe, depois da coisa consumada. Espera um filho homem. Ignora a criança pequena e da maiorzinha sente raiva. Na jovenzinha todavia presta atenção. Ela mostra alegria com o súbito pai. Um silencio pairou de uma hora para outra. As vozes e passos dos adolescentes crescem na praia. À evocação se junta uma voz feminina que contava a noite anterior. Gerard percebe a ereção matinal. De fato. Já não é tão firme. Deus meu, a verdade é que pode ser simplesmente impotência. Acontece. A senhora Lens lembra com desconforto da noite anterior mas não lhe ocorre a idéia de pelo menos evitar a assiduidade do sexo. Bem, pelo menos os beijos são cada vez mais raros. Prostituta. Michele se comprazia em ser em tudo o contrário da mãe. Torna-se alegre, falante, além do que desejaria. Os amigos dela. Contatos do messenger, quase relações. A senhora Lens é reconhecidamente virtuosa. Mas alguma coisa a detém quanto a outro vôo. Beijinhos aqui e ali, ficando com um e com outro, como qualquer menina de sua idade, nada passível de conseqüências. Se guarda para alguém que se pareça com o pai, tão másculo e generoso como ele. Alguém que não olharia para sua mãe. Quando olhos deslumbrados se voltam pra a senhora Lens, a dor adquire tons de traição. Não acontecia se o rapaz em questão se interessasse por uma de suas amigas. Educar Michele, um dilema. A senhora Lens não quer retroceder à sua própria educação, repressiva; tampouco queria retirar necessários limites. Um calafrio. A menina, o choro após tantas horas na maternidade. Essa menina. A verdade da vida. As vozes na rua se multiplicam, quase gritos, chulos. Será Michele tão pouco exigente quanto a seus amigos e namoradinhos? Será capaz de se apaixonar por um desses meninos vazios, como ela própria por George? Quis se apaixonar, na verdade. Quis sair de casa a qualquer preço e, ah, o preço que pagava!... Mas Michele era livre, independente. Fumava de tudo, bebia cerveja, saía quase todas as noites e a hora determinada de voltar era só uma formalidade, uma lei a ser transgredida. Pessoas como George só se impõem quando pessoas como Rose o permitem. Quando a senhora Lens reagiria? Os grupos passavam. Normal a estupidez, sadia a falta de educação, a dureza, a leviandade, os vícios e os maus modos, sadios. Gerard perto de um ser que não será. O que exatamente? Intui que deve atentar. Poderia ser ele, poderia estar ali. O tempo. Bons, maus tempos. Sabedoria de alguém que deseja ser mas está longe. Atraente ainda, talvez, triste desse jeito, sonolento ainda, atento. Safa-se, graças talvez as muitas mulheres, ou são só um reflexo, só um reflexo. Cansam-no, elevam-no, fazem-no esquecer, e lembrar, intensamente retorna a infância, mas agora é diferente. Depois de tantas, enfim, não mais a mãe. A nova fase se inicia quem sabe nesta escada. Desejara a senhora Lens sem conhece-la, desejara-a desde o primeiro
momento, ardentemente, desejá-la-ia sempre. Precisa vê-la de novo. Até certo ponto é ainda sonho adolescente mas já um ingrediente real no querer. Teria sentido assim há dez ou quinze anos, mas agora havia sim um estranho progresso no desejo. Em que momento o sexo se torna amor? E a perspectiva do sexo uma introdução ao amor? Que possa, ò Deus, ser como imaginara um dia: que essa revelação do amor, dessa outra face do amor, presa à carne mas não só, ligada ao próprio Deus (paixão mais antiga, êxtase do crepúsculo), que pudesse ser assim, como a visão da praia se abria da porta da pousada, na aura de um sentimento abrangente onde coubessem os detalhes mais pequenos, revelados em cada segundo. Ei, por favor! Estava chegando a algum lugar. Pow! Traquejo mantido. Não o tempo não destrói as coisas. Não era tarde. Rondando o casario , a eletricidade anuncia a tempestade. Michele olha. Adora chuva. Horas vendo as gotas nas poças ou contra o vídeo e escorrendo. Apoiou os cotovelos, apoiou o queixo, respirou fundo. Agora está sonhando com outro mundo. Como percebeu que era mulher, em que isso a mudara. Um tipo de chuva, e tempestade. Mas o que realmente as fascinava era sair na chuva. Mistura-se aos turistas. Seus amigos. As meninas de patins e os meninos de bicicleta. Ela era a única de carro, embora não tivesse carteira. Michele, eu disse que precisava do carro hoje! Papai ia à zona de novo? A cara de George se fecha, se Michele tornasse a falar assim ele a rebentaria. Mas ela fala a verdade, como eles a ensinaram. A mão desce e surge Joana, um filete em seus lábios treinados. Ele podia bater, isso, me bate, me mata. A senhora Lens interfere, sabe o peso daquele tapa. George manda a mulher não se meter. Não ouviu o que ela falou? Rose pondera com o marido que nada justifica a violência. Lembre-se de como odiou seu pai, diz-lhe. Ele se lembra e odeia a mulher. Era para isso que desabafava, para ela usar as palavras dele contra ele mesmo! Ora, e logo quem vinha falar em família. O pai de Rose era patético, não se importava com ela, por isso não lhe dava disciplina e fazia todas as vontades dela. Deixa-os, Michele. Olha os amigos, meneia a cabeça e se afasta dos pais. Preferia mesmo sair a pé na chuva, mexia com o seu metabolismo. Na rua, algazarra. Vindo na direção da turma, o professor Delano teve um instante de estremecimento. Todos o cumprimentam, devolve a saudação. Evita o olhar de Michele. Segue para a casa de Liane, a diretora. Na sala vazia, ela aceita o atrevimento de um colega, beijos, mãos sob a saia e sob a blusa. O professor. Ameaça-os. Manda o rapaz à secretaria, pega o celular. Michele descomposta, e agora? Devia comunicar ao doutor George o despudor da filha? Vento ao redor no pátio, quando se sabe estar no limite do risco, de um definitivo e desnecessário risco. Não seria preciso. Não. Ela faria o que Delano quisesse. O sinal de saída, o burburinho no pátio, o prédio vazio. Menina má. A mesa em frente da lousa. A mão masculina, peluda. Palmadas na própria coxa. Os cuidados, simplesmente esquecidos. Deus meu. Boa menina, nascida de um delírio muito anterior. Deitada por sobre o colo dele ela está à vontade, não se sente minimamente usada. Mais que isso sim adora. O som da mão na coxa se repete. A calcinha no meio do sulco, fora das nádegas, no meio das coxas. Dedos que escapam mais para o centro. Ele bate ainda, sem forca, é quase uma carícia, a palmada se dilui pelo arrepio. Há uma forma de escapar do castigo. Aqui mesmo? Não o lugar ideal, agora é tarde. Ela sabe o que fazer mas o professor precisa continuar dando ordens. Isso, desabotoe, tire, ah, melhor assim. Ela pode abreviar o desfecho e quando se aproxima da braguilha
inequívoca, ele não tem mais o que dizer, ela sabe o que fazer, sempre leva a melhor contra as amigas, o primo de Keshia como cobaia feliz. Nos dias seguintes sonhou. O gosto do professor. Nem assim desarmado. A lousa cresce diante dela, inclinada, as bandas marcadas. Ele a segura pelos quadris e abre mais as coxas dela e é quente quando se dentro lança os jatos e ela, estremecendo, boceja. Desde aquele dia, Delano a respeita muito mais do que deseja. Michele não se envergonhava. Dava graças por ter um lar e não ser maltratada como tantas meninas de Celba sem chance sequer de brincarem de médico, já nas ruas atendendo a anúncios, trocadas por droga quando não por comida, violentadas por policiais e caminhoneiros, viciadas em crack, grávidas, mortas. Michele sabia se defender. A voz de Liane escorria pela toalha. Ela os via de longe. Tinha certo orgulho de Michele, a menina que Liane mesma fora um dia. O professor passou. O céu havia se aberto. As primaveras estavam mais e mais vivas. O mundo estava vivo. Gerard deteve-se nas meninas que passando arquejavam no falar ininterrupto doces anátemas, carne de agouro. De perfil sonhador a primeira tinha os cabelos presos e brincos enormes, sim, e a blusa talvez fosse uma superposição de cores em pouco tecido. Acho. As nuvem passam e continuam a passar. Quando o luar incide sobre a pele da segunda, uma tonalidade escura, leitosa, surge do meio do decote, prometendo sacrifícios. Longos cabelos negros entornaram a terceira na sublime cena. Um vestido preto de alças largas obriga a sedução sem permitir que a criança seja abandonada. Ela nada sabe. Deve ser mesmo coisas da moda. Quando caminham as pernas próximas se juntam, gambeteiam. Destacando-se reinou a presença de Michele captada no limite do pudor sob a lua no desenho da boca e dos olhos escuros. Gerard quis notar certa semelhança mas não, nada que se comparasse. Na mulher havia mais que elasticidade e estética, mais que plasticidade. Experiência, equilíbrio, entrega. Um movimento no sentido da dor; do desejo e da privação do gozo; da idade e do renascimento. Os olhos pousados em Michele. Passa uma freira e chega uma canção. Imaterializa-se pela melodia. Nos anos futuros quando pensar em como a conheceu a canção virá naturalmente e fornecer-lhe-á a interpretação dos acontecimentos. Esquece a balburdia que no primeiro dia na vila lhe roubara a paz. Não quer mais paz. Os adolescentes têm virtudes e defeitos como todos e entre as virtudes a naturalidade em relação a todas as coisas, sem apologia ou discriminação. A praia não estava decerto propícia à contemplação das estrelas ou ao banho de mar. Vacilou. Depois decidido desceu. A chuva miúda só era visível a lâmpada dos postes. O bramido do mar se intensificava com a cheias que chegava quase na calcada, reduzindo a nada a faixa usufru ir ível de areia. Mas os garotos eram gente boa, estavam apenas confusos. Oi, cumprimenta, aproxima-se. Pergunta se pode passar no cigarro que era partilhado. Eles disseram que tudo bem, chegasse mais. Michele estava sentada nos calcanhares, os ondas nos joelhos. Em toda a anunciação tensa de um período em que Gerard se corrompia com lentidão compassiva a prepará-lo para uma outra dimensão de ser. Os pelinhos oxigenados ornam-lhe a grossurinha das coxas. Gerard segura a fumaça. Não deve permanecer mais que o necessário, não se sente nunca à vontade, Mas, se o tempo passa e as coisas mudam, algo
permanece. Como um jornal velho que louva um artista agora no ostracismo. Devia subir e esperar nova mensagem de Silvia mas a conversa com a turma está viva, é real. A jovem pergunta seu nome. Responde e devolve a pergunta. Ela responde. Sorriram. Conversaram. Há nas cidades uma migração interna para os bairros da moda, e como eram feios os bairros da moda! Agora, com os prédios históricos ameaçados, será triste o fim de capitais como São Braico. Não demora, aqui mesmo em Celba tudo será apartamentos. O passo da menina é lento, é possível ouvir a chuva. George procura Rose pela casa, viu onde deixei as chaves? Estão sozinhos, ele a empurra para o quarto. Pede desculpas pelo que disse há pouco sobre o pai dela, jura que a ama. Seria diferente com outro? Tudo é sempre igual com homens, tudo se repete. Coisa horrível, né? Keshia sorri sem alegria, Desumano o agrupamento demográfico, a poluição. Gerard diz – E a solidão, a solidão das cidades. Silvia já está on-line no messenger. Que barulhinho irritante, resmunga um hóspede. O hotel é um exemplo estranho do que dizem. A desproporção das escalas. Keshia diz que queria ser arquiteta. Bem, tem todo o tempo e oportunidade para isso, sim, mas não sabe que tipo de arquiteto existirá quando adulta. Gerard tem dúvida. O homem está preparado para os mundos abertos pelo computador, pela internet? Tecnologia de ponta supõe seres humanos de ponta. Aos poucos se afastam do resto do grupo. Ela pinga colírio e oferece. Ele agradece e devolve o frasco. Direitos autorais, jornalismo, o mundo do emprego – o futuro é imprevisível por causa da internet. Keshia se lembra de uma coisa. Só havia um cybercafé em Celba. Quem sabe não seja um bom sinal, que a vila ainda tardaria, quem sabe, a chegar no desumano progresso de São Braico. Não é mais questão de classe. Todos têm suas sentenças. Ele podia imaginar quem ela encontrara num ônibus em São Braico? Keshia, sem esperar resposta: a própria princesa. A neta daquele que seria o rei. De ônibus, imagine. Indo trabalhar. Fez-se silencio e depois olhando-a Gerard disse que ela uma menina bem madura. Imagine. Apenas leio os jornais de domingo. Sim gostava do que qualquer jovenzinha normal costuma, de dançar e paquerar e estudar e chocolate e pensar em sexo e projetar o futuro e festinhas e orkut. Blog era um outro nome para o diário que Anne Frank consagrara, o DVD era ainda cinema. Por outro lado, a inquietação típica. A mãe dela era exatamente assim embora aqui e ali se chocasse com comportamento da filha e de suas amigas. O desejo de se apaixonar, o0 medo de ter filhos, de não saber combinar as roupas, de espinhas, do peso. A vergonha de ser diferentem, a ignorância quanto às doenças sexualmente transmissíveis, apesar de toda informação. Até mesmo o velho conflito de gerações. Senhorita, onde você vai? Ia onde todas iam, fazia o que todas faziam. Em casa tentava ter a vida interior da qual fugia na rua e sozinha no quarto chegava a meditar. Gerard a olhou mais demoradamente quando ela se distraiu com uma mariposa. Uma boa menina. Ao menos parecia. Mas do que realmente gostava, o que a emocionava? Ah. Adoro música e pintura, minha mãe é pianista e estou começando. A mãe de Michele é pintora, faz quadros lindíssimos. E você? Gerard respira fundo. Era muito ligado em tecnologia, amava computadores, trabalhava com computadores, possuía um. Não me olhe assim, pediu. Conhecia os perigos, a possibilidade do vício sempre à espreita. Quantos anos você tem?, perguntou Keshia sabe Deus devido a que tipo de associação. Vinte e nove – Gerard tinha 34. E ela? Dezenove – Keshia tinha 17. Sentaram-se à beira-mar. A equipe de reportagem sai da cidade. George sairia no noticiário da noite e
no suplemento cultural. Criara uma menina com liberdade e senso de responsabilidade impossível numa cidade grande. O pai de minha melhor amiga apóia a idéia de ela estudar em São Braico. Só ficará contra quando souber que Michele se hospedou na casa de Silvia. Puta que o pariu! Na casa daquela vadia? Que tipo de mar a senhora Lens era afinal? Silvia é uma mulher de bem, responsável, temente a Deus. Ah, as mulheres da Zona Vermelha também. Isso George saber bem o quanto. Ele próprio no jornal de domingo promoverá a gratidão ao Senhor – louvado seja eternamente – por nunca Ele ter deixado de o inspirar, Deus e George numa parceria perfeita. Keshia conta a Gerard como o pai de sua amiga pregava a beleza da serenidade e do amor, tanto nas suas obras como nas que aceitava bancar. Pela casa que tem, deve ter um excelente faro para a literatura. Mas Keshia não gostava de ler. Domingo, curioso, Gerard comprará o jornal. Na foto da matéria, o entroncado homem com traços orientais, vestido de modo simples, jeans e camiseta. Nenhuma garrafa visível. Estava com o braço apoiado na mureta da varandinha onde, quando estendia a rede porque sozinha, a senhora Lens se acomodava no linhão como numa placenta. Um dia te levo lá, Gerard. O monte domina a paisagem na neblina, a praia noturna. Quase madrugada. O tempo se firmara sem abrir. Procuram em vão uma estrela na fumaça. A percepção provocada é plena; a rotineira longe disso. As plenitudes de Gerard e Keshia comungam. Seria bom que a gente fosse assim toda hora, sem efeito, sentisse essa intensidade? As mãos se tocam, os dedos sentem-se e pelo outro a paisagem, a noite. Keshia não chegou a falar, apenas suspirou, inaudível. A Michele é uma boa amiga. A Michele está de olho em você. A Michele, nem percebi. A Michele lembra mesmo a mulher. Ela tem essa tendência, sabe, de se interessar por rapazes bem mais velhos. Isso hoje é um problema sério. Menos pelos caras, e mais pelas meninas que querem se provar, saber seus limites. Se podem mesmo conquistá-los. Ou pela estabilidade financeira, pelo carro, para não terem de depender da mesada dos pais. Mas será crime para eles, eles podem ser processados. Suspirou. Como o grilo para quem não consegue dormir. Michele se reaproximando disse “Gerald”, não não, Gerard, corrigiu ele. Ah sim, pois é Gerard. Venha na festinha de meu aniversário. Só não esperasse muita coisa. Era apenas uma reunião para os amigos mais íntimos. Ele se sentia honrado. Elas riram por dentro mas até acharam bonito aquele jeito solene. Nos vemos então amanha. Meigo, o sorriso de Keshia. Afastou-se com Michele. Ah. A casa era em frente ao parque de diversões, a das buganvílias vermelhas, não tinha como errar. Já de certa distância Michele quase gritava. É só perguntar pela casa do editor, todos conhecem. George era de fato conhecido, reconhecido na rua. Poucos gostavam dele mas todos gostavam de dizer que era um velho amigo, como o prefeito. Eu não saberia dizer se é possível aqui incluir uma ou outra mulher com tendências masoquistas, pensou Joana. Estava três quilos mais magra, as olheiras enegreciam hora a hora, envelhecia um ou dois anos cada mês. Não ainda a que Gerard conheceria mas ele todavia a achará bonita. Um bom rapaz esse Gerard. A lisonja chegava em George fragmentada e se unem dentro dele, feita vaidade. Como pode uma mulher da vida demonstrar esse desprezo por ele? Como todas, naturalmente gosta mesmo é disso, de ser fodida e apanhar de seu homem, mas vão fingir que não, que são santas desviadas. A maior razão de sua antipatia em relação a Gerard não tem a ver com sua mulher. Ele entra em sua casa e não demonstra reverência, nem poderia. Estava olhando algum detalhe do vestido de Michele quando ela falou do pai. Mas isso se dará no dia seguinte. Agora George bebe a terceira dose enquanto faz contas e pesquisa na internet. Retorna ao Google para atualizar as suas citações. E nem mencionam o grande amante. Rose
sucumbira depressa e não é para qualquer um fazer com que uma prostituta como Joana se apaixone dessa forma. Claro que estava apaixonada, desde o primeiro encontro. E nem conhecia ainda seus truques viris, que levam as mulheres a implorarem mais, tudo, ou piedade. Não perguntará pela casa de ninguém, decide Gerard. Sairá cedo e descobrirá sozinho. Aproveita assim e conhece a vila. A cadencia do mar envolvia todos no abraço da noite. Volta para a pousada. Deita-se e ainda rolando de um lado para outro amanhece. Não o gozo de um paraíso póstumo mas apenas a janela e a brisa da manhã. Gerard apertou os olhos enquanto se encolhia debaixo das cobertas. Depois de dias de calor sufocante, Depois de dias de calor sufocante, o tempo muda. E conforme Gerard despertava, o universo ia se renovando na consciência da hora em que estaria na casa de Michele. Uma menina realmente atraente, simpática nem tanto. Mas a simpatia de Keshia fará deles irmãozinhos , como costuma acontecer. Ela não teria desejado isso. Mas sabe o quanto Michele sempre leva a melhor com os rapazes. Sabia que estava mesmo engordando e não sabia mais o que fazer a respeito. A senhora Lens costumava dizer Não Keshia, imagine, você está linda – Mas a senhora Lens era uma pessoa extraordinariamente gentil, não dá pra acreditar em tudo o que diz com seu belo sorriso nos lábios. Gerard pensa que o sorriso de Michele sem dúvida lembra alguém, decerto não uma outra menina, sequer uma moça, mas uma mulher mais velha. Para Rose, que resolvera fazer dele apenas um motivo, não importa que idade tivesse agora ou dali a quinze anos. Sublimação. Por isso começou a pintar. Não imaginara chegar tão longe, nem com a pintura nem com o amor. Imaginou o solene desdém com que Silvia trataria esse tipo de relacionamento. Amava Silvia. Admirava-a. Seu coração sentiu-se feliz quando ela ligou aquela noite, alegrou-se por sua disposição de ir a Celba. Era bom conversar com ela. Mas cumpria guardar segredo a respeito de seu estranho. Aliás, não estava certa se já não tocara no assunto com ela ao telefone. Sua memória começa a causar preocupação. Louca! Quem dera. Consolar-se na alienação. Leite! Olha o leiteiro! Silvia tinha uma memória privilegiada, pensou enquanto abria a porta e sentiu o volume fresco e luminoso, pesado. O homem apenas um vulto. Obrigado, Sr. Matias! Bom dia! Depois de anos, pela primeira vez o atendia de camisola. Na curva do rio, na sinuosidade das águas as arvores filtram o dia. O que a senhora Lens faria com uma memória privilegiada? Quando colocou o leite na mureta da varanda, estava chuviscando e Gerard caminhava na luminosidade baça da manhã. Bom dia, disse o jardineiro da pousada. Keshia e Michele na mente, perfeitas. Precisa agora de um parceiro de xadrez, contra o computador ficara enfadonho. Pensando assim deparou com a casa. Dentro daqueles muros talvez penteando os cabelos naquela janela acessa estava Michele. Mas o que exatamente ela significava para ele? Uma irmã que não tem porque morreu. Ou não. Ah não sabia. Simples delícia ou esperança. Não supõe futuro. O mar o mar o mar. O que a separava dele além das buganvílias nas paredes, o que a ocultava dele além de sua extroversão e descaso para com as profundezas - era uma atmosfera feérica luzindo no cacho das flores, nos pardais se banhando na areia – isso os separava – os galhos verdes que no balanço modificavam a casa de segundo em segundo. Os ventos trazem todos os aromas, menos o do inevitável desfecho. A aproximação de um homem que já não se conhecia, Gerard. Muito perto, as cascas da pintura descascada, soltam-se, escuras, do muro branco. Ali se recortam as plantinhas. Ele ainda sou eu, até que medida? As plantinhas adoram a chuva e amando as plantinhas a senhora Lens amava a chuva, colorações
dispersas de suas evocações. Ela, a mulher, verdejando também. Atendidas as orações dela. O tempo chuvoso afasta dali as crianças que patinando na calcada em frente à casa, arrancavam as flores, em meio ao enlouquecedor barulho que faziam. A deliciosa mulher do japonês costuma ter dor de cabeça, tadinha, Eu sei o remédio que ela precisa. Por outro lado, na chuva a praia se tornava cinzenta, feia, impedia o banho livre das algas se pegando nas pernas, que coisa desagradável, sobretudo para quem está acostumado a nadar em transparência turquesa. Essa chuva, quando assim tanta, tão contínua, atrapalha a simples saída de casa pelas vias de terra enlameadas, ruas que se pegavam aos pés advertindo quanto ao vexame de um tombo. Mas, naquele momento em que a senhora Lens se preparava para sair, não chegava a esse ponto. E uma chuva adulta, que colocava a senhora Lens no colo. Miudinha mas senhora de si. Seu som seguia um percurso suave, como o regato de Celba no outono. De longe o adivinha o forasteiro. Que é isso? Gerard acorda no ônibus. Agora, está ali, diante da casa, na perspectiva de rever as meninas, descanse, tudo está bem, tudo vai ficar bem, e ainda em sua memória a navegação de dias atrás, nas águas escuras onde o Chiasmodon espalha terror, as trevas infinitas onde passeia o rubro Saggitae sua beleza apavorante. O fim do caminho para baixo, pensa, o silencio eterno dos abismos. Ao homem, a região ignota que segue para o nada inferior está vedada. Jamais se chegará ao fim do mar, do mar, do mar... Oi, você veio! O coração da senhora Lens iluminou-se na escuridão daquele amanhecer. No espelho se viu sensual, pronta para incendiar algum coração jovem. Sua canga sobre uma calcinha. A pessoas falariam, mas falariam de qualquer forma, que falassem, mas pelo menos ela se sentisse confortável. Daquele jeito sentiu-se bem e ostentou um olhar feliz e voluptuoso. A gata acaba de amamentar os filhotes na varanda. Pega a chave para sair. Diz que está realmente alegre porque irá reencontrar Silvia. São dias tão difíceis, chuvosos e com novas chuvas previstas. A amiga afirma, embora tenha feito uma pergunta, com que então ela andara sonhando. É um mal? Quem sabe, não existe um meio de se avaliar. Bem, me aguarde, disse Silvia. A imagem some, agora a chuva é tudo, os pés no barro quase deslizando.
Gerard passa por onde ela passara um pouco antes, voltando da praia. Vê a touceira. Michele dissera “Coroa-de-Cristo”. É muito perto da pousada, a cidade é mesmo pequena. Devia talvez deixar de lado a idéia de procurar a mulher, num lugar assim acabarão se encontrando, mais cedo ou mais tarde. Mas viveria ela ali? Então houve o pensamento. Uma associação, uma idéia, só isso. Caminhando, sentiu as pernas cansadas de algum esforço de que não se lembrava. Ah, estava mesmo perdendo aquele vigor irrefutável da juventude. Linda a cor dessa rosa em meio aos espinhos da primavera. Viu a janela iluminada no sobrado. George escuta os passos da filha no quarto de cima. Sobre o que você queria tanto falar, Michele? About men. Keshia achava bonito e um pouco sem noção essa mania de respostas em inglês. Gerard, se não podia ouvir os movimentos da menina, vê-la sim. Primeiro a silhueta, depois o corpo pequenino, despido em tom sobre tom, luzente nos ombros. Depois de desligar o telefone, chega ao parapeito. Nem pudera dormir, pensando naquele rapaz, comparando-o a seus amigos. Se ajoelha diante dele, sabe realmente o que fazer. Saberá ele? Gostaria de uma outra iniciação. Gerard, um nome diferente. Expressão terna e paterna, vê apenas meninas, ao contrário do professor e outros homens, sempre e sempre, inclusive seu pai, cujos olhares indiscretos eram para uma mulher que supostamente brotara de seu corpo. Agradavam Michele, esses olhares. Mas, se ela sabia o que fazer o que faz uma mulher não significava que fosse uma, efetivamente. Por que Keshia estava tão feliz em seu quarto quando desligou o telefone? Escreveu em seu blog. Esse Gerard é uma gracinha e um fofo. Os olhos dele lembram os olho de um cachorro que eu tive quando era criança. O amor é lindo. Puxou o papel do envelope que estava colado na folha anterior. Michele, eu gosto mto de vc, perdoe c um dia t magoei, vc é mto legal e uma gracinha e eu te amo d+. Ah. Por que Michele era tão má com ela? Ao lado da assinatura redonda, desenhada, havia em caneta verde o desenho de um rosto chorando. Portão dos fundos de uma casa distante o bastante do centro para não estar próxima à agitação da temporada e não distante demais que não fosse possível ir a pé comprar coisas, tintas por exemplo. A luz do meio-dia é discernível mesmo através das nuvens. Silêncio nas sinuosas ruas de terra batida. O que pensar? A sobremesa do almoço de Michele, um creme de papaia. Mato que cheira a curva. Que alegria ao deparar o mar! Alguém diz que a menina está seguindo os passos da mãe. Sim, nada diferente disso. Dá pra perceber. Claro que todo mundo verá isso não demorará muito. A senhora Lens tirou o vestidinho pela cabeça, entra. Na água. O mar quebra na praia cinzenta. Gerard parado em frente ao portão. Casas o intimidam, sempre preferiu a discrição dos prédios de apartamentos. A barra da calca, molhada, pesa, incômoda. Dobrou o debrum e tonteou ao se repor ereto. Vinham na sua direção as apanhadoras de conchas. Viu que corpo horrível? Se acha muito gostosa mas tá cheia de celulite. A senhora Lens mergulhou, saiu, pôs o vestido e recomeçou a caminhar no sentido da pousada, sempre na esperança de ver aquele a quem desejava conhecer. Sabia que, mesmo que esse desejo não se realizasse, ainda que não o visse agora ou num sentido mais amplo não chegasse a amá-lo verdadeiramente, nada disso apagaria o prazer de sua espera. Passou pela pousada. Procurou-o pela aglomeração formada em torno do telefone. Onde? Jovens agindo como jovens, em nenhum o porte austero. Ele usava óculos? O vestidinho de novo é tirado e na água ela começa agora a nadar em direção ao fundo. Uma braçada. Outra. Daqui dá para ver caso ele apareça. Ele está na frente da casa da senhora Lens, mas decide ir ao centro. Um lugar assim plano e
sem trânsito é o que sempre desejara. Michele disse almoço mesmo? ou lanche? Ou simplesmente festa? Enfim. Voltaria, já de bicicleta. Sinto-me vazio, pensou. Era a aura da descida. Tudo perde a cor, em volta o deserto. Como pode? As coisas estavam indo muito bem, deveria estar feliz. Mas não. Tudo perde a cor. Você sabe que está só. As pessoas em quem confiava já não existem. Nada de fato existe. A senhora Lens nadou e nadou, inutilmente atenta. Sabia que Silvia estava certa, precisava se separar imediatamente. Por que não o fazia, sem nunca deixar de pensar em fazê-lo, era uma questão que se colocava para milhares e milhares de mulheres no mundo; mas longe de ser consolo isso a incomodava. Desistiu de ver de novo o rapaz, na imaginação as coisas estão mais seguras. Não o mar mas um livro nas mãos. Crédito ou débito, senhor? Caminhos de Celba. Mãos que apertam as próprias coxas na saída do mar. Outras, veias altas, orientam a bicicleta. Alumínio e titânio, leve e rápido. Após o posto de Saúde será o Beco das Cores, praticamente a casa de Michele. Em frente à casa, quem dera a mulher tivesse horários habituais, pensou. Frustrada, ela toma o caminho de casa. Aquela calêndulas já deviam estar dando sementes. Seja como for, já não há lugar no jardim e é um trabalho que me cansa. Ah, já chegou? Cedo, parecia. Não, imagina, tudo bem, assim haverá mais tempo pra gente se conhecer. Ele sentiu alívio ao ver chegarem outras meninas, de bicicleta, Keshia entre elas. Alguns rapazes depois, espinhas no rosto formado, corpos fortes, malhados. Provavelmente suas fotos no messenger são sem camisa. Surfistas. Chegados diretos de uma outra vida. Quis se aproximar da menina, quem sabe fazer dela confidente, sentir-se mais próximo, fazer parte da turma. Na prática isso é impossível, sabe, mas insiste, embora não saiba o que contar. Fez uma introdução que serviria a qualquer coisa que viesse a dizer. Eu acho. Nunca saberemos. E eis que vislumbrou o segredo a ser partilhado ao vislumbrar a mulher. Se aproxima, sem que ele a reconhecesse. Para colher a rosa mais bela, sacrificará jardins. Renunciará a caminhos conhecidos, por melhores. Não sabemos a que mundo pertencemos, a este em que se vive ou ao no coração ignoto. Esperança e saudade são as duas faces com que caminha em direção ao desfecho. Caminha e contempla: as pessoas, as casas, os gestos, o mar, os olhares, as montanhas, os rostos, as ravinas, os vales. Alegrias e tristezas. Sem saber se terá valido a pena. Devia considerar que, se não se expusesse agora, a temporada passaria, o trabalho passaria, talvez a vida passasse, e ele iria continuar em busca de sentidos e amores, em relacionamentos com pessoas que desejavam mais da companhia que ele, por temores inexplicáveis recusava. Já não fora assim em sua cidade natal e na metrópole anterior, não andara pelas noites, sob as janelas, sussurrando algum nome em devaneios? Tímido. Tímido e inseguro. O amor que agora nutre pela mulher da praia é um voto de castidade mais que uma fuga. Quando Michele o chamara, minutos antes, não hesitou em se aproximar mas agora, com a presença de outras meninas, que anunciou a de rapazes, sentiu-se desconfortável. Juventude plena estampada em todos. O casal tem uma malemolência desleixada e confiante. Aproxima-se do grupo. Pena que o mar tava tão pequeno e claudiado. E Michele, ia pegar onda depois do almoço? Tava pensando em ir sim, lá no Lagar. - Oi, Fantarello! E ae? - Grande Michele! Como ela se sentia com dezesseis? Mais velha. Estava linda, disse Keshia. Michele sorriu e virando-se cumprimentou o outro. Oi, Ricardo. Oi. Beijinhos. Feliz aniversário. E aí, muita onda? Para uma bodyboarder como ela tem sempre muita, muita onda. Vocês é que são felizes, bodyboardes, diz Fantarello, mas felicidade não é
uma onda, e se permite relancear os olhos pelo decote da menina. Felicidade é morar em Celba. O quê, Sarah estava brincando naturalmente. Gargalhadas. Um movimento redondo move o saiote para os lados e Gerard desviou o olhar, como que surpreendido. A mão boba toca, encosta e se recolhe. O que estou fazendo aqui, pensa Gerard, seu tempo passara. - Ainda bem que vou estudar em São Braico no ano que vem – disse Michele. É que ela tinha ficado muito sofisticada para uma vila de pescadores. Gerard se viu no pai de Michele. Não deveria ser tão mais velho. Compartilharia decerto certas vivências. Quem sabe gostasse de xadrez. Pensava a respeito quando a viu. Ao caminhar por aquele pequeno trecho, arrebatou mundos para que lhe servissem de passarela. Estremeceram a respiração em suspenso, como se suas próprias vidas o estivessem. - Oi, senhora Lens! O cumprimento de Keshia repercutiu em Gerard. Poder da noite, das cigarras e morcegos com o alívio da angústia que se dissipa sem que se perceba. As linhas dos muros são alvíssimas da luz que o meiodia anunciava. Toca e toca o beija-flor seu bebedouro vermelho. Ele e ela. Lança-lhe um olhar extinto. Grossura lábil laboriosamente rubra de zínias. Agora. Vai falar. Ele quase tonteia. Oi, meninas. Silenciosos os passos leves mal tocam o passeio sinuoso. Sol a pino e a seminua divindade ao longo de sonhos que se confundem com a grama e o mar além. O que ainda esperar do amor? Pernas fortes, quadris largos, lindos, agora quase seus. O olhar de Gerard não contém qualquer dúvida. O que mais esperar do amor? Contudo, era casada. Oh, ainda nem começara de fazer o almoço. Michele não tenta esconder o aborrecimento com a negligência da mãe. Mas ele a perdoa, ele a compreende. Perdoaria sempre, sempre compreenderia. Que pensamentos são esses que não busco, mas coleciono agora como quem compara artista com artista para encontrar um tom próprio para a arte? O pai de Michele, de novo. Não era mais o parceiro de xadrez. Se fosse vivo, era o rival. O tecido da cadeira torna-se aspeto sob ele. A janela e o sol. Quem sabe a mulher fosse viúva, talvez divorciada. – Meu pai chegou. Está uma fera com você, e com razão. A senhora Lens tomava as próprias decisões, a filha teria de se acostumar com isso. Seu problema, Michele, é que você fica tempo demais sem fazer nada e estar ocupado é tudo. A coxa da mulher luz neste momento. Quando se está ocioso é que se tem tempo para cuidar da vida dos outros. Mas a senhora Lens era a mãe dela, não os outros. De repente, se lembrava. Quem dera se lembrasse todo o tempo, quem dera a respeitasse. Era a mãe. Mais uma razão para Michele não falar desse jeito, sobretudo na frente de seus amigos. Era ele um amigo dela? Mas como? Não faz sentido. Parecia tão sóbrio, centrado, respeitador, generoso... Keshia interrompe. Senhora Lens, esse é o Gerard. É claro que era ele. Não poderia estar enganada. A postura ereta, a luminosidade, santo no deserto. Um amigo das meninas então? Um pervertido? Há tanto desse tipo hoje em dia, homens feitos que só andam com adolescentes. Aí dizem que Ah, é que a Michele, mesmo tão nova, é bem mais madura que moças da idade deles. Ora, sabe-se a maturidade que querem... Não, ele não. Não com aquele olhar gentil e tímido sem subserviência. Onde terminará esse rio volumoso senão em você, ainda que seja em meus quadros? Definitivamente desconhecia esse poder sensual, o de capacitar. O aperto da mão da mulher permaneceu na mão de Gerard, sino que continua vibrando, confessa o que não deveria ser confessado, demonstra a perplexidade com a coincidência, as consciências arrebatadas, as musicas lentas que deixariam de dançar, o banho de mar a dois, as viagens, a emoção erótica, o carinho e a amizade – tudo estava ai,
no contato das mãos. A arte é o motivo. Se amor, platônico. Um dia, não saberia a senhora Lens dizer quando, haveria de buscar sua presença ao lado da filha. Afortunada pelo privilégio de ser jovem, solteira, por tê-lo a seu lado, também pelas infinitas possibilidades de futuro. Ele a perdoará também por tê-lo usado assim por fugir do atrevimento dos impulsos, negando-se exceto para a contemplação, não concedendo a ele o cumprimento da promessa – negando-lhe o regaço por restringi-lo à imaginação e recusar um prazer mais pleno que aquele contato casto. Um dia se lembrará de um rapaz que amou sem esperanças e justo por essa impossibilidade amou como jamais. Gerard era naquele tempo um rapaz cuja timidez com as mulheres só era menor que o desejo delas, amar estava além de sua capacidade. Só conseguia mar o que não conhecia, como o fundo do mar ou Luxemburgo. Era assim uma forma de se manter só e viver o que acreditava ser a verdadeira vida, de alguma forma estranha ligada aos computadores. O meu amor equilibra-se sobre minhas fraquezas, sofre as vaidades, torna-se virtuoso – não exatamente mas ao menos não egocêntrico em demasia. As grandes revelações da vida, poucas, vinham em retrospecto. Tanto amava a evocação quanto a perspectiva, mais que a experiência. Um solitário. Enfim, as coisas mudaram. O que deveria fazer? Entregar-se a alguém daquela forma? Entregar-se ao amor que nascia proibido pela sentença de Michele? Meu pai já chegou. A senhora Lens permite-se um olhar de esguelha. É um homem bonito, nem tanto, mas muito simpático, vestindo um jeans e uma blusa azul simples de malha. Ninguém ali ainda sabe mas ele não costuma usar outro tipo de roupa, está portanto à vontade por essas duas razoes. Há uma sobra sob seus olhos e a luz no seu sorriso. Olá, muito prazer, diz a senhora Lens como quem diz uma coisa qualquer a qualquer pessoa, você é daqui de Celba? Gerard sente-se desnudado. Bem... Entregar-se seria descer aos abismos tristes do adultério, que jamais o atraíra, era coisa de literatura semelhante culto não só ao vício mas à estupidez. O que em nada seria alterado pela consumação ou não do desejo que o impulsionava. O sentimento de Gerard agora está mais que nunca ligado à sua própria solidão do que a alguma possibilidade de ficarem juntos, ou mesmo estarem juntos por um único momento. E ao saber que a mulher estava tão próxima, apegada à sua nova vida em Celba, passou a pensar como superaria aquela situação real, quando se preparara para viver uma fantasia. A grama que antecedia a cerca era rala e garoa pouco a beneficiava. Ali pisara a senhora Lens antes de entrar. Sabe que a espera a exigência de uma satisfação mas está feliz por sua falha como esposa e mãe ao se atrasar. Mas o que é isso? Agora o vê. Recorda–se de como ficou paralisada e por uma eternidade esteve com a respiração suspensa. É assim a proximidade da morte, algo assim a morte ela mesma. O que é isso? Que tipo de êxtase? E agora vontade de dançar. Tocada. Tocada por esse sentimento. Será passageiro? E se permanecer, o que será? Foi um momento de angústia ainda que angústia em meio aquele transporte não seja uma boa definição. Agora o vê. Ao longe roncava a tempestade. No trovão uma palavra pesada. Prazer. E agora? Muito prazer. George Lens pergunta onde a senhora Lens estava, se é que não a incomodo em perguntar, e ela responde que o melhor lugar para se estar num dia lindo como aquele era naturalmente a praia e não, pensou, sentado aí como você, nesse sofá azul sempre atrás de jornais que citem seu nome. Ele bem precisava ir também de vez em quando, diz ela olhando na foto da primeira página um homem que não conheceu quando o conheceu, nem estava com ela quando se casou. O cachimbo recende por toda a sala. Cheiro horrível.
A senhora Lens tossiu. É um rosto maléfico, o de George e o do rapaz tão bondoso. Mas talvez estivesse querendo se convencer de uma coisa apenas suavemente insinuada, suavemente por demais, talvez. Não há de ser que todo rapaz dessa idade mantenha um olhar assim? Simplesmente se esquecera de como era George naquela idade. Da cozinha, a voz que ainda ouvia perturbou a senhora Lens. E o almoço de Michele? Ela caminhou até a pia. Michele não sentirá fome tão cedo, está entretida com as amigas. Mas o próprio George estava com fome. Ah. Perturbou-se porque não era a voz de um inimigo, era como se sua alma tivesse voado, muito, longe –onde estou? George havia desaparecido e surgiu aquele jovem e promissor crítico literário, seu primeiro namorado realmente a sério, depois da paixão explosiva e inútil por Emílio, e a voz se tornou um sussurro de amor que a penetrava. Todas as coisas agora estão em paz. Quem é esse George Lens? Mais certamente que um profissional competente e um cidadão respeitado. E ela, quem? Mais naturalmente que a jovem não muito bonita mas que, gostosa, enlouquece os homens. Quando ele acorda, ela o observa. Ali, nos azulejos em frente a pia onde estava apoiada, as mãos na quina úmida. A primeira vez que George teve oportunidade, quando no Natal de 1983 ficaram a sós na cozinha, George tomou-a, as mãos entrando por debaixo da camiseta. Não que fosse nenhuma caricia enlouquecedora, mas Rose deixouse. Talvez aquele rapaz inteligente e independente logo a levasse e ela enfim não teria mais de dar satisfações de tudo aos pais. Quem sabe se estabelecesse por si mesma mais facilmente com a pintura. Se viessem a existir problemas conjugais, teria como sair do casamento com a certeza da subsistência sem depender de pensão. Por que não? Já reconhecida nacionalmente como artista. Ao toque dos lábios de George, porém, deixou de pensar em qualquer coisa, entregou-se, sentia-se segura com os pais na sala. Mas, se tiveram de parar naquela noite, fora entretanto um primeiro contato, quase um contrato de libidos quanto a uma noite futura. A senhora Lens passou as batatas que acabara de descascar para um tigela Junta duas colheres de margarina, uma de fermento e um punhado de farinha de trigo. Havia sido avidamente despida e agora era deitava sobre a cama. A consistência rija no meio dela. Obteve a brandura desejada da massa depois de passar de uma para a outra mão e com as duas para o prato. Não tem jeito. Não consegue fazer o refogado como a mãe. Com George está agora não apenas livre mas de fato apaixonada, claro que isso é um estado que muda do dia para a noite nas mulheres e será assim. Há reflexos inacreditáveis nas azeitonas e a cor da salsa está viva. A senhora Lens seca as mãos no pano de prato em que jamais terminara aquele bordado, gritando de dor e de prazer, enquanto ele vira para o canto e dorme. Deixando a comida em repouso, vai para o chuveiro. Ah. Relaxante. Quem pode subsisitir com esses nervos? Quando se despira, há dois minutos, a alma estava em suspenso dentro dela. A calcinha saiu como se não quisesse mas se rendendo, passa pelos mundos fúlgidos de tons e semitons. Gerard treme e engole em seco. Queria deixar para lá. Era mulher casada e mãe de uma amiga. Mas não podia. Vida sem arbítrio.
Mas onde estava o sexo nquele olhar angelical? Onde os corpos na amizade que partilharão? Olha, conhece esse? Gerard olha a capa do cd que Michele mostra. Agora está tocando. Quem colocou esse cd do Elvis. A voz da senhora Lens ecoa num tom desconhecido dos convidados. Já não disse que não colocassem esse disco? No banho, a senhora Lens leva a mão. Não sabe o que fazer com essa lembrança de que Elvis era agente. A festa de final de ano na embaixada. Não devia ter bebido tanto, perdeu o melhor, seria melhor se estivesse sóbria. Leonardo. Poderia ter sido diferente. Gotas impetuosas, grossas, uma ducha realmente excelente. Tinha de admitir que para esse tipo de coisa George era realmente eficiente. A água escorre pelas suas costas, pelas suas coxas. Gerard gostaria de ser essas gotas. Envolto na saudade que não tem um destinatário, volta-se então para o Deus de sua infância antes do catecismo.
Cala-se quando percebe que ele sai dela, vira-se para o canto, dorme e vai tomar uma chuveirada. Deixando a comida em repouso, entra no banheiro. A luz chega pelo basculante delineando o banheiro. Som de pássaros, tão perto. Talvez estejam tristes, por que alguém usa uma atiradeira? O corpo do pardal jazia ontem no chão de terra batida, agora está enterrado. A senhora está mesmo louca, dissera Michele. Fazer velório pra bicho. A voz da filha some na ducha bem quente. O que há de mais relaxante. Mundos arredondados e fúlgidos em tons sobre tons. Gerard tremia, engolia em seco, queria não pensar. Era mulher casada e mãe de uma amiga, o que afinal determinaria seu destino entre os membros da comunidade. Olha, diz Michele segurando o CD. Conhece este? Ele olha a capa, ouve os primeiros acordes, e os gritos que vêm do banheiro. Quem, por Deus, pôs Free like a bird? A senhora Lens cansara de dizer para não colocarem esse disco. Ameaçou levar a mão mas recuou e saiu do chuveiro. A mão está ali sim, mas não para delícia e sim se proteger. Alguma coisa de sensual e ingênuo, como de resto tudo na senhora Lens. Foi o primeiro movimento de seu braço na escada. Sua mão é retirada suave mas decididamente. Que saudade. A água escorre pelos dedos, desce pelas pernas. A consciência não é tanta que a impeça, recorda-se, sussurra, diz que não aceitando. Não guardou o nome dele, evaporou-se junto à vergonha. Agora acredita que não tenha volta, entra numa região estranha de sombras e prazer. Estranha-lhe que dentro em pouco já nada lhe dirá e já nada terá na verdade o que dizer. As pernas tremem sob a água, linda Gerard a imagina ouvindo de muito longe o chuveiro com ouvidos de tuberculoso. Quando era bem jovem, esse tempo passou, Gerard costumava ser arredio a festas. Uma ou outra em tempos que não se podiam mais dizer recentes. Agora se deixa levar pelo encantamento desses rituais de ouvido. Nada de que devesse se jactar quando partisse e à sua cabeceira alguém perguntasse o que fizera de sua vida. Se não era mais assim jovem, adquirira a contrapartida de acreditar e sofrer sem revolta. Há uma sombra em redor dele, como se apenas ali houvesse seriedade, fidelidade, a aura um ser digno de confiança. Sim, os ouvidos escutavam mais que o chuveiro, discerniam no futuro alguma coisa proibida embora acessível, como um átimo de crepúsculo que não se repetirá. Ereto ele olha o céu, seus braços pendem sem por que, braços mortos, não podem abraçá-la. Que coisa mais piegas. Portanto não deveria se sentir bem, portanto deveria retomar seus modos, ser sóbrio, controlar esses sentimentos patéticos, afinal fora contemplado com a nova vida, por que poria tudo assim a perder? Na varanda, um maiô branco estendido ao lado do vestidinho com que a senhora Lens entrara. A voz de Keshia. Puxa, olha as glicínias que sua mãe plantou! Parecem sinos purpúreos, milagres. Aquelas mesmas mãos geraram semelhante vida de um vermelho tão vivo, sim, como o sangue. Não, não era alguma coisa nova. Mulheres ocupavam uma parte determinante de seus pensamentos. Entretanto agora. No silêncio súbito apenas trêmulo como as roupas do varal, exultante como as gloxínias, folga em formar a novos homens que dentro dele nasceriam pelo resto de sua vida à sombra da mãe de Michele, ornados de risinhos de adolescentes que se perpetuariam como despedidas como os últimos acordes de cada movimento das sinfonias. Que maravilha era viver sem vícios, pensou Gerard ouvindo as meninas. A flebite fora um aviso. Ainda no hospital decidiu deixar o trabalho e a cidade grande. Não mais lhe interessava a distância entre o que se diz e o que se é. Invejou jovens que sequer tinham tempo de se viciar. Eram meninas normais. Espertas, alegres. Toques de ingenuidade que sabem explorar como
elas só. Apesar de toda informação, ainda sem malícia uma tristeza miúda, salpicada da limpidez de olhar que se esquecerá. Carentes de afeto, o que é proclamado pela atitude de criança que escapa de quando em quando. Keshia pairava em incertezas quanto ao que poderia esperar de um relacionamento com alguém tão mais velho como Gerard. E como ficará sua história com Ricardo? Michele aguardava os acontecimentos. Não dependia tanto da fantasia com o universo masculino. Ainda assim, gostava de Gerard, não queria perdê-lo para a amiga. Iria trabalhar aquela perda como um trauma. Odiava gente neurótica. Michele possuía uma beleza calma; sua mãe ao contrário vivia cansada e isso estava escrito em suas feições. Quando Gerard entrou, a aura da senhora Lens acrescia ao ambiente o verão em seu ser, ofuscando de luz a primavera das meninas pela sala. Seu toque diário em cada objeto, o contato de ser corpo no sofá, na cadeira, seus olhos sobre os quadros na parede, seus dedos no dvd – a existência da senhora Lens na casa depunha nos móveis os fragmentos perfumados de sua alma. Oh, bem-aventurança! Gerard sorriu, privilegiado. Mas por que, pensou o senhor Lens, esse idiota está com essa cara abobalhada?
Gerard passa por onde ela passara um pouco antes, voltando da praia. Vê a touceira. Michele dissera “Coroa-de-Cristo”. É muito perto da pousada, a cidade é mesmo pequena. Devia talvez deixar de lado a idéia de procurar a mulher, num lugar assim acabarão se encontrando, mais cedo ou mais tarde. Mas viveria ela ali? Então houve o pensamento. Uma associação, uma idéia, só isso. Caminhando, sentiu as pernas cansadas de algum esforço de que não se lembrava. Ah, estava mesmo perdendo aquele vigor irrefutável da juventude. Linda a cor dessa rosa em meio aos espinhos da primavera. Viu a janela iluminada no sobrado. George escuta os passos da filha no quarto de cima. Sobre o que você queria tanto falar, Michele? About men. Keshia achava bonito e um pouco sem noção essa mania de respostas em inglês. Gerard, se não podia ouvir os movimentos da menina, vê-la sim. Primeiro a silhueta, depois o corpo pequenino, despido em tom sobre tom, luzente nos ombros. Depois de desligar o telefone, chega ao parapeito. Nem pudera dormir, pensando naquele rapaz, comparando-o a seus amigos. Se ajoelha diante dele, sabe realmente o que fazer. Saberá ele? Gostaria de uma outra iniciação. Gerard, um nome diferente. Expressão terna e paterna, vê apenas meninas, ao contrário do professor e outros homens, sempre e sempre, inclusive seu pai, cujos olhares indiscretos eram para uma mulher que supostamente brotara de seu corpo. Agradavam Michele, esses olhares. Mas, se ela sabia o que fazer o que faz uma mulher não significava que fosse uma, efetivamente. Por que Keshia estava tão feliz em seu quarto quando desligou o telefone? Escreveu em seu blog. Esse Gerard é uma gracinha e um fofo. Os olhos dele lembram os olho de um cachorro que eu tive quando era criança. O amor é lindo. Puxou o papel do envelope que estava colado na folha anterior. Michele, eu gosto mto de vc, perdoe c um dia t magoei, vc é mto legal e uma gracinha e eu te amo d+. Ah. Por que Michele era tão má com ela? Ao lado da assinatura redonda, desenhada, havia em caneta verde o desenho de um rosto chorando. Portão dos fundos de uma casa distante o bastante do centro para não estar próxima à agitação da temporada e não distante demais que não fosse possível ir a pé comprar coisas, tintas por exemplo. A luz do meio-dia é discernível mesmo através das nuvens. Silêncio nas sinuosas ruas de terra batida. O que pensar? A sobremesa do almoço de Michele, um creme de papaia. Mato que cheira a curva. Que alegria ao deparar o mar! Alguém diz que a menina está
seguindo os passos da mãe. Sim, nada diferente disso. Dá pra perceber. Claro que todo mundo verá isso não demorará muito. A senhora Lens tirou o vestidinho pela cabeça, entra. Na água. O mar quebra na praia cinzenta. Gerard parado em frente ao portão. Casas o intimidam, sempre preferiu a discrição dos prédios de apartamentos. A barra da calca, molhada, pesa, incômoda. Dobrou o debrum e tonteou ao se repor ereto. Vinham na sua direção as apanhadoras de conchas. Viu que corpo horrível? Se acha muito gostosa mas tá cheia de celulite. A senhora Lens mergulhou, saiu, pôs o vestido e recomeçou a caminhar no sentido da pousada, sempre na esperança de ver aquele a quem desejava conhecer. Sabia que, mesmo que esse desejo não se realizasse, ainda que não o visse agora ou num sentido mais amplo não chegasse a amá-lo verdadeiramente, nada disso apagaria o prazer de sua espera. Passou pela pousada. Procurou-o pela aglomeração formada em torno do telefone. Onde? Jovens agindo como jovens, em nenhum o porte austero. Ele usava óculos? O vestidinho de novo é tirado e na água ela começa agora a nadar em direção ao fundo. Uma braçada. Outra. Daqui dá para ver caso ele apareça. Ele está na frente da casa da senhora Lens, mas decide ir ao centro. Um lugar assim plano e sem trânsito é o que sempre desejara. Michele disse almoço mesmo? ou lanche? Ou simplesmente festa? Enfim. Voltaria, já de bicicleta. Sinto-me vazio, pensou. Era a aura da descida. Tudo perde a cor, em volta o deserto. Como pode? As coisas estavam indo muito bem, deveria estar feliz. Mas não. Tudo perde a cor. Você sabe que está só. As pessoas em quem confiava já não existem. Nada de fato existe. A senhora Lens nadou e nadou, inutilmente atenta. Sabia que Silvia estava certa, precisava se separar imediatamente. Por que não o fazia, sem nunca deixar de pensar em fazê-lo, era uma questão que se colocava para milhares e milhares de mulheres no mundo; mas longe de ser consolo isso a incomodava. Desistiu de ver de novo o rapaz, na imaginação as coisas estão mais seguras. Não o mar mas um livro nas mãos. Crédito ou débito, senhor? Caminhos de Celba. Mãos que apertam as próprias coxas na saída do mar. Outras, veias altas, orientam a bicicleta. Alumínio e titânio, leve e rápido. Após o posto de Saúde será o Beco das Cores, praticamente a casa de Michele. Em frente à casa, quem dera a mulher tivesse horários habituais, pensou. Frustrada, ela toma o caminho de casa. Aquela calêndulas já deviam estar dando sementes. Seja como for, já não há lugar no jardim e é um trabalho que me cansa. Ah, já chegou? Cedo, parecia. Não, imagina, tudo bem, assim haverá mais tempo pra gente se conhecer. Ele sentiu alívio ao ver chegarem outras meninas, de bicicleta, Keshia entre elas. Alguns rapazes depois, espinhas no rosto formado, corpos fortes, malhados. Provavelmente suas fotos no messenger são sem camisa. Surfistas. Chegados diretos de uma outra vida. Quis se aproximar da menina, quem sabe fazer dela confidente, sentir-se mais próximo, fazer parte da turma. Na prática isso é impossível, sabe, mas insiste, embora não saiba o que contar. Fez uma introdução que serviria a qualquer coisa que viesse a dizer. Eu acho. Nunca saberemos. E eis que vislumbrou o segredo a ser partilhado ao vislumbrar a mulher. Se aproxima, sem que ele a reconhecesse. Para colher a rosa mais bela, sacrificará jardins. Renunciará a caminhos conhecidos, por melhores. Não sabemos a que mundo pertencemos, a este em que se vive ou ao no coração ignoto. Esperança e saudade são as duas faces com que caminha em direção ao desfecho. Caminha e contempla: as pessoas, as casas, os gestos, o mar, os olhares, as montanhas, os rostos, as ravinas, os vales. Alegrias e tristezas. Sem saber se terá valido a pena. Devia considerar que, se não se expusesse agora, a temporada passaria, o trabalho passaria, talvez a vida passasse, e ele iria continuar em busca de sentidos e amores, em relacionamentos com pessoas que desejavam mais da companhia que ele, por temores inexplicáveis recusava. Já não fora assim em sua cidade
natal e na metrópole anterior, não andara pelas noites, sob as janelas, sussurrando algum nome em devaneios? Tímido. Tímido e inseguro. O amor que agora nutre pela mulher da praia é um voto de castidade mais que uma fuga. Quando Michele o chamara, minutos antes, não hesitou em se aproximar mas agora, com a presença de outras meninas, que anunciou a de rapazes, sentiu-se desconfortável. Juventude plena estampada em todos. O casal tem uma malemolência desleixada e confiante. Aproxima-se do grupo. Pena que o mar tava tão pequeno e claudiado. E Michele, ia pegar onda depois do almoço? Tava pensando em ir sim, lá no Lagar. - Oi, Fantarello! E ae? - Grande Michele! Como ela se sentia com dezesseis? Mais velha. Estava linda, disse Keshia. Michele sorriu e virando-se cumprimentou o outro. Oi, Ricardo. Oi. Beijinhos. Feliz aniversário. E aí, muita onda? Para uma bodyboarder como ela tem sempre muita, muita onda. Vocês é que são felizes, bodyboardes, diz Fantarello, mas felicidade não é uma onda, e se permite relancear os olhos pelo decote da menina. Felicidade é morar em Celba. O quê, Sarah estava brincando naturalmente. Gargalhadas. Um movimento redondo move o saiote para os lados e Gerard desviou o olhar, como que surpreendido. A mão boba toca, encosta e se recolhe. O que estou fazendo aqui, pensa Gerard, seu tempo passara. - Ainda bem que vou estudar em São Braico no ano que vem – disse Michele. É que ela tinha ficado muito sofisticada para uma vila de pescadores. Gerard se viu no pai de Michele. Não deveria ser tão mais velho. Compartilharia decerto certas vivências. Quem sabe gostasse de xadrez. Pensava a respeito quando a viu. Ao caminhar por aquele pequeno trecho, arrebatou mundos para que lhe servissem de passarela. Estremeceram a respiração em suspenso, como se suas próprias vidas o estivessem. - Oi, senhora Lens! O cumprimento de Keshia repercutiu em Gerard. Poder da noite, das cigarras e morcegos com o alívio da angústia que se dissipa sem que se perceba. As linhas dos muros são alvíssimas da luz que o meio-dia anunciava. Toca e toca o beija-flor seu bebedouro vermelho. Ele e ela. Lança-lhe um olhar extinto. Grossura lábil laboriosamente rubra de zínias. Agora. Vai falar. Ele quase tonteia. Oi, meninas. Silenciosos os passos leves mal tocam o passeio sinuoso. Sol a pino e a seminua divindade ao longo de sonhos que se confundem com a grama e o mar além. O que ainda esperar do amor? Pernas fortes, quadris largos, lindos, agora quase seus. O olhar de Gerard não contém qualquer dúvida. O que mais esperar do amor? Contudo, era casada. Oh, ainda nem começara de fazer o almoço. Michele não tenta esconder o aborrecimento com a negligência da mãe. Mas ele a perdoa, ele a compreende. Perdoaria sempre, sempre compreenderia. Que pensamentos são esses que não busco, mas coleciono agora como quem compara artista com artista para encontrar um tom próprio para a arte? O pai de Michele, de novo. Não era mais o parceiro de xadrez. Se fosse vivo, era o rival. O tecido da cadeira torna-se aspeto sob ele. A janela e o sol. Quem sabe a mulher fosse viúva, talvez divorciada. – Meu pai chegou. Está uma fera com você, e com razão. A senhora Lens tomava as próprias decisões, a filha teria de se acostumar com isso. Seu problema, Michele, é que você fica tempo demais sem fazer nada e estar ocupado é tudo. A coxa da mulher luz neste momento. Quando se está ocioso é que se tem tempo para cuidar da vida dos outros. Mas a senhora Lens era a mãe dela, não os outros. De repente, se lembrava. Quem dera se lembrasse todo o tempo, quem dera a respeitasse. Era a mãe. Mais uma razão para Michele não falar desse jeito, sobretudo na frente de seus amigos. Era ele um amigo dela? Mas como? Não faz sentido. Parecia tão sóbrio, centrado, respeitador, generoso... Keshia interrompe. Senhora Lens, esse é o Gerard. É claro que era ele. Não poderia estar enganada. A postura ereta, a luminosidade, santo no deserto. Um amigo das meninas então? Um pervertido? Há tanto desse tipo hoje em dia, homens feitos que só andam
com adolescentes. Aí dizem que Ah, é que a Michele, mesmo tão nova, é bem mais madura que moças da idade deles. Ora, sabe-se a maturidade que querem... Não, ele não. Não com aquele olhar gentil e tímido sem subserviência. Onde terminará esse rio volumoso senão em você, ainda que seja em meus quadros? Definitivamente desconhecia esse poder sensual, o de capacitar. O aperto da mão da mulher permaneceu na mão de Gerard, sino que continua vibrando, confessa o que não deveria ser confessado, demonstra a perplexidade com a coincidência, as consciências arrebatadas, as musicas lentas que deixariam de dançar, o banho de mar a dois, as viagens, a emoção erótica, o carinho e a amizade – tudo estava ai, no contato das mãos. A arte é o motivo. Se amor, platônico. Um dia, não saberia a senhora Lens dizer quando, haveria de buscar sua presença ao lado da filha. Afortunada pelo privilégio de ser jovem, solteira, por tê-lo a seu lado, também pelas infinitas possibilidades de futuro. Ele a perdoará também por tê-lo usado assim por fugir do atrevimento dos impulsos, negando-se exceto para a contemplação, não concedendo a ele o cumprimento da promessa – negando-lhe o regaço por restringi-lo à imaginação e recusar um prazer mais pleno que aquele contato casto. Um dia se lembrará de um rapaz que amou sem esperanças e justo por essa impossibilidade amou como jamais. Gerard era naquele tempo um rapaz cuja timidez com as mulheres só era menor que o desejo delas, amar estava além de sua capacidade. Só conseguia mar o que não conhecia, como o fundo do mar ou Luxemburgo. Era assim uma forma de se manter só e viver o que acreditava ser a verdadeira vida, de alguma forma estranha ligada aos computadores. O meu amor equilibra-se sobre minhas fraquezas, sofre as vaidades, torna-se virtuoso – não exatamente mas ao menos não egocêntrico em demasia. As grandes revelações da vida, poucas, vinham em retrospecto. Tanto amava a evocação quanto a perspectiva, mais que a experiência. Um solitário. Enfim, as coisas mudaram. O que deveria fazer? Entregar-se a alguém daquela forma? Entregar-se ao amor que nascia proibido pela sentença de Michele? Meu pai já chegou. A senhora Lens permite-se um olhar de esguelha. É um homem bonito, nem tanto, mas muito simpático, vestindo um jeans e uma blusa azul simples de malha. Ninguém ali ainda sabe mas ele não costuma usar outro tipo de roupa, está portanto à vontade por essas duas razoes. Há uma sobra sob seus olhos e a luz no seu sorriso. Olá, muito prazer, diz a senhora Lens como quem diz uma coisa qualquer a qualquer pessoa, você é daqui de Celba? Gerard sente-se desnudado. Bem... Entregar-se seria descer aos abismos tristes do adultério, que jamais o atraíra, era coisa de literatura semelhante culto não só ao vício mas à estupidez. O que em nada seria alterado pela consumação ou não do desejo que o impulsionava. O sentimento de Gerard agora está mais que nunca ligado à sua própria solidão do que a alguma possibilidade de ficarem juntos, ou mesmo estarem juntos por um único momento. E ao saber que a mulher estava tão próxima, apegada à sua nova vida em Celba, passou a pensar como superaria aquela situação real, quando se preparara para viver uma fantasia. A grama que antecedia a cerca era rala e garoa pouco a beneficiava. Ali pisara a senhora Lens antes de entrar. Sabe que a espera a exigência de uma satisfação mas está feliz por sua falha como esposa e mãe ao se atrasar. Mas o que é isso? Agora o vê. Recorda–se de como ficou paralisada e por uma eternidade esteve com a respiração suspensa. É assim a proximidade da morte, algo assim a morte ela mesma. O que é isso? Que tipo de êxtase? E agora vontade de dançar. Tocada. Tocada por esse sentimento. Será passageiro? E se permanecer, o que será? Foi um momento de angústia ainda que angústia em meio aquele transporte não seja uma boa definição. Agora o vê. Ao longe roncava a tempestade. No trovão uma palavra pesada. Prazer. E agora? Muito prazer. George Lens pergunta onde a senhora Lens estava, se é que não a incomodo em
perguntar, e ela responde que o melhor lugar para se estar num dia lindo como aquele era naturalmente a praia e não, pensou, sentado aí como você, nesse sofá azul sempre atrás de jornais que citem seu nome. Ele bem precisava ir também de vez em quando, diz ela olhando na foto da primeira página um homem que não conheceu quando o conheceu, nem estava com ela quando se casou. O cachimbo recende por toda a sala. Cheiro horrível. A senhora Lens tossiu. É um rosto maléfico, o de George e o do rapaz tão bondoso. Mas talvez estivesse querendo se convencer de uma coisa apenas suavemente insinuada, suavemente por demais, talvez. Não há de ser que todo rapaz dessa idade mantenha um olhar assim? Simplesmente se esquecera de como era George naquela idade. Da cozinha, a voz que ainda ouvia perturbou a senhora Lens. E o almoço de Michele? Ela caminhou até a pia. Michele não sentirá fome tão cedo, está entretida com as amigas. Mas o próprio George estava com fome. Ah. Perturbou-se porque não era a voz de um inimigo, era como se sua alma tivesse voado, muito, longe –onde estou? George havia desaparecido e surgiu aquele jovem e promissor crítico literário, seu primeiro namorado realmente a sério, depois da paixão explosiva e inútil por Emílio, e a voz se tornou um sussurro de amor que a penetrava. Todas as coisas agora estão em paz. Quem é esse George Lens? Mais certamente que um profissional competente e um cidadão respeitado. E ela, quem? Mais naturalmente que a jovem não muito bonita mas que, gostosa, enlouquece os homens. Quando ele acorda, ela o observa. Ali, nos azulejos em frente a pia onde estava apoiada, as mãos na quina úmida. A primeira vez que George teve oportunidade, quando no Natal de 1983 ficaram a sós na cozinha, George tomou-a, as mãos entrando por debaixo da camiseta. Não que fosse nenhuma caricia enlouquecedora, mas Rose deixou-se. Talvez aquele rapaz inteligente e independente logo a levasse e ela enfim não teria mais de dar satisfações de tudo aos pais. Quem sabe se estabelecesse por si mesma mais facilmente com a pintura. Se viessem a existir problemas conjugais, teria como sair do casamento com a certeza da subsistência sem depender de pensão. Por que não? Já reconhecida nacionalmente como artista. Ao toque dos lábios de George, porém, deixou de pensar em qualquer coisa, entregou-se, sentia-se segura com os pais na sala. Mas, se tiveram de parar naquela noite, fora entretanto um primeiro contato, quase um contrato de libidos quanto a uma noite futura. A senhora Lens passou as batatas que acabara de descascar para um tigela Junta duas colheres de margarina, uma de fermento e um punhado de farinha de trigo. George a havia despido avidamente e agora a deitava sobre a cama. A consistência rija no meio dela. Obteve a brandura desejada da massa depois de passar de uma para a outra mão e com as duas para o prato. Não tem jeito. Não consegue fazer o refogado como a mãe. Com George está agora não apenas livre mas de fato apaixonada, claro que isso é um estado que muda do dia para a noite nas mulheres e será assim. Há reflexos inacreditáveis nas azeitonas. Respingando pela cozinha, a senhora Lens se movimentava sob efeito.
No quarto de Michele, ela trocava o vestido de viscose por uma javanesa. Verifica o caimento no espelho. Keshia amarra os cadarços de seu tênis bege. Diz que tem medo. Medo do quê, Keshia? Não saberia dizer. Não sabia o que se passava. Medo do mundo. Quando era pequena, tinha um amigo invisível. Jamais teve alguém tão amigo. Michele a olha com pena e pergunta se nem o Ricardo. Ricardo era um bobo. Mas gostava de Keshia. Sei, diz ela, do que ele gosta em mim. Normal. Aquele Gerard, ele é um cara de quem Keshia poderia ser amiga e até mais. Sério mas com senso de humor. Não pensava só em sexo. Elas mal o
conheciam, lembrou-lhe Michele. E é muito velho para elas. Estamos crescendo, Michele. Os pais dela já haviam notado? Michele se aproxima da janela e olha o céu, que céu lindo esse de Celba, mas não o bastante para me prender aqui. E pais notam alguma coisa? Uma nuvem passa e tapa o sol. Michele diz que seu avô notaria. Keshia lembrou e percebeu que também sentia falta do avô de Michele, ele era uma gracinha. O avô de Keshia também, mas iria a qualquer momento, enfim, droga, como todo mundo. Olha, Michele. É pra você. Ah meu Deus, não precisava! Tudo o que Keshia lhe dava era de coracao, Michele jamais saberia o quanto. Pára de chorar, vai. Keshia enxuga as lágrimas. Lembra o dia em que a gente se conheceu? Eu te admirei tanto, você era tão forte. Michele apenas murmurou. As vezes. Brincavam e se divertiam. Lembra? Era tempo de brincar e se divertir. A gente cresce. Keshia acabara de dizer, agora tenta lembrar as próprias palavras, o que sentia ao dizê-las, e conclui que a gente não precisa crescer por dentro. Ou seria mesmo contra a natureza não crescer também por dentro como Michele está dizendo? A natureza... Michele já?... A Sarah ficou sozinha com os meninos e portanto elas devem descer.
Ao chegar à porta da sala para pedir à filha que arrumasse a mesa, não a viu, meio coberta que estavajunto à cortina sob o bamdeau à esquerda ao lado de Gerard cujas costas levaram-na a sonhos de onde emergiu a voz de Keshia. A senhora quer ajuda? Ela respondeu que, Ah, se ela pudesse achar Michele para pôr a mesa, ficaria grata. Keshia disse Ah, não senhora Lens. Era aniversario de Michele. Deixa ela conversando com Gerard, eu arrumo a mesa pra senhora. Era muito gentil a Keshia. Alguns instantes depois quando entrou a majestade do caminhar da mulher anunciou a proximidade que tremolo Gerard esperava. A filha nao percebeu, preocupada que estava com uma reaproximação entre Keshia e Gerard. O sol estava próximo do zênite. O que é zênite? Ahah, é o ponto mais alto que o sol alcanca, eu acho. Eu acho, Fantarelo que você só está querendo é se mostrar com essa novidade de ficar dizendo palavras difíceis. Mas ele nao queria se mostrar, as vezes o que parece pedante é a forma mais simples de alguém se expresar. A vila estava impregnada de alvura, a cordilheira limpa das nuvens que ali se haviam agrupado pela manhã. Antes de entrar, Gerard imaginara que quadros veria nas paredes, pintados pela mãe de Michele. Pensava-os sempre com um céu de névoa. Foi esse véu que viu, não os quadros que efetivamente ali se alinhavam. Mas ela própria, Rose, num plano inexistente exceto pelo amor de Gerard, mantinha a postura onírica, silenciosa no olhar de promessas, longe de si mesma, a Mulher diante de Gerard. A tarde calma na vila se mostrava cada vez que ele desviava o olhar da senhora Lens. Ela mantinha seus olhos baixos quando nao estava cumprimentando alguém. O sonho e a realidade do amor de Gerard se chocariam como espectros de perspectivas que embora nunca se cumpram tampouco se deixem esvanecer. Vitor era um homem tranqüilo e simples, que cumpria seus deveres e pouco esperava da vida, por isso possivelmente encontrando paz em tudo. As pessoas confiavam nele até a manipulação, sem constrangimento. Não se importava Precisava de um mínimo para a subsistência e menos ainda se prestava a mágoas. Um homem de confiança portanto. Os grafites no para longe o transportavam. Mesmo esse detalhe, o risco do que ainda não chegara a ser seque ruma rachadura no muro da casa da senhora Lens, termina na
cor de um abandono que se acreditava. Que luz fantástica a de Celba ao meio-dia! Respirou fundo de pé ante o portão, ouivndo latindo que ecoavam como um fio os ligasse e fizesse vibrar em sua alma uma estranha liverdade. Olá Vitor, disse a senhora Lens quando ele entrou com Fantarelo. Como vai a Cati? Ela não vem? Não, Cati não viria. Mas mandara seus cumprimentos. Ninguém notou o brilho malévolo no olhar de George. Mas o olhar de Victor não se alterou em sua pureza. Michele. Muitas felicidades e toda paz. Gerard se distraiu com as revistas que folheava. Crise desmorona Wall Street. A queda do outro muro. Em algum momento alguém irá fazer a comparação. Claro. A crise de 29. Não sabe o que se passa. Desde a viagem não tem mais paciência com a leitura. Num outra página, o que é preciso fazer para enfrentar as turbulências externas da economia. Definitivamente, está cansado de ler, não consegue mais. Haverá aqui algum tipo de relação com a mulher? Não, ah, vou parar com isso. Não dá pra me levar tão a sério. Almoçaram. Quando Fantarelo pegou o violão talvez estivesse movido tanto pelo filé e pela savia quanto pela produção de hormônios. Olhou para Sarah, dedilhando. Coração, músculos, impulso. Viu a si mesmo diante dela num futuro aparentemente próximo, bela como sempre, receptiva. Quieta e irritada com os acordes e a voz incerta que a louvava. Era a mais velha do grupo de amigas, olhar perdido e lábios impudentes. Comera pouco, rainha neutra. Pelo menos uma música dançante, quem a irá tirar? Esse rapaz talvez? O pai? Súbito o futuro se fez junto a um estonteante desejo de se dar. Ela. Tão linda. Ainda será minha ruína. A senhora Lens soube que Gerard seria o chefe da manutenção dos computadores da pousada de Celba durante a dança. Acrescenta à sua graça o exibicionismo. Seus cabelos reluzem. Tons mais e menos e escuros desenham as metades de seu rosto. As pregas do vestido induzem como as notas que flutuam e ela flutuava ao se aproximar de Gerard. Ele a tomará? Sim e as palmas se tocam, e os dedos. Tão perto e nada de que se envergonhar no ritmo seguro da transitoriedade. O sopro a envolve num abraço menos formal, duradouro, amparado mais pela memória do que pela esperança. Claro, tinha sido feliz por algum tempo. George é um sujeito atraente, sem sonhos, como ela acreditava o homem ideal. Cheio de projetos. Mais hoje mais amanhã irá levá-la para a cama. Em que momento da vida deles deixará de levá-la para dançar? Gerard tem uma quebra muito mais suave nos quadris, resolvia o segundo seguinte em passos imprevistos. Não é mais o violão, mas um cd. O baixo, os pássaros, a chaleira na cozinha, alguém se aventurou a fazer café. Música em tudo. Vozes soltas, frases inteligíveis já não há, mas uma uniformidade repousante. Um casal qualquer deve ter ido para junto do fícus, é inevitável, ah como ela gostaria. Mas não é preciso. Então ele era o novo chefe de manutenção da pousada, disse ela, e ele respondeu que agora, fora da temporada, era pouco mais que um caseiro. No fundo, nem, tinha vocação para administrar, e qual era a sua vocação? Ah, sem dúvida lidar com computadores, há anos que eu, oh não, não parecia ter idade para, mas sim, verdade, vi o marco dessa história, a compatibilidade no primeiro micro de arquitetura aberta, agora, em plena revolução dos chips duplo e da web 2.0, o quer dizer?, tem a ver com velocidade, baixo consumo de energia, mas no fundo sou só um curioso de teoria, apenas faço as coisas, acho que dá mais certo em qualquer aspecto da vida. Que verdade. Ainda bem que não estava morta como costumava desejar. Estivera, agora não mais. Agora há esperança, disse a harmônica num acorde longo e denso, a bateria concordou junto ao chão estremecendo a tarde, e o corpo desprezado, do qual tinha ela desistido, fluiu para dentro da presença que a cercava em vagas. O remoto mar não termina. Gerard, não o conhecera sempre? Todo mundo na festa parecia conhecido, mas nem eram, as meninas com os pelos oxigenados, os seios expressos, sem dúvida
aquele cheiro, tanto poderia ser primavera ou fruta madura demais, e os meninos, bem, acerca deles não sabia tanto, mas era evidente que suas vozes estavam mudando, que se masturbavam o tempo todo e talvez até pensando nela, enfim, e George, totalmente conhecido, e Gerard, ah, olhem as ondas, vinham e voltavam, A senhora sabe que quando saltei do ônibus parecia que estava voltando para casa? Assim lhe parece. De fato, sempre vivera ali. O homem sem rosto dos sonhos dela. A temporada é uma longa época de solidão, pensou Rose. Ah, mas a temporada estava às portas, disse ela, Gerard teria logo muito trabalho. Devia mesmo ser trabalhoso manter um, lugar assim grande limpo e em perene eflorescência, um lugar tão freqüentado sempre com a estrutura funcionando adequadamente. Os hospedes decerto, pensou ele, dão muito mais trabalho que o mato, as arvores, o gás e a eletricidade, as contas em comparação são simples de fechar, disse, com pequena diferença de tempo em relação ao pensamento. Não se sentia bem com gente? Confesso que nem eu. Bem, respondeu ele, tenho internet. Na verdade não usava a rede tanto assim para comunicação, mais para informação e trabalho, pesquisa, essas coisas. No caso da pousada, parte financeira, projeções, eventos culturais. Para correspondência ainda preferia o velho e bom correio. Cancelara o cadastro do orkut. Os casos de tráfico, pedofilia, enlouquecidos ciúmes ou simples maledicencia haviam saído de controle. A internet é boa. Para cada caso hediondo há um contraponto benigno. A internet é um reflexo da vida, como diz\em, para o bem e para o mal. Há coisas úteis no mundo, como a faca e a escada, que mal utilizadas podem matar. Há coisas inúteis que matam também. O orkut serve para encontrar e reencontrar pessoas mas havia tempo que ninguém o usava assim, cristalizara-se no mal, no inútil. Certa vez ficara sem micro e desde então passou a ver isso com mais clareza. Em lanhouses e cybercafés é preciso ter maior controle do tempo para que não fique caro demais. Ao contrário da faca, revolver não faz comida. Hoje isso de internet em geral é um assalto ao tempo das pessoas, esse bem mais precioso. Ao olhar pela janela conduzida pelos tons da janela em constante mutação a senhora Lens perguntou se Gerard saberia dizer se ela estava nos planos da prefeitura. A voz de Gerard chegou ao vidro que a refletia. De que falava, exposições? Hesitou, como de resto se sentia inseguro e exposto com a inesperada manifestação de sua fantasia. Rose pensava na coincidência, duas pessoas próximas (se assim podia agora considera-lo) falando de computador, conexão, internet. Sabia sobre a programação. Não estava definida. Dependia de verbas, como sempre. Mas não sabia como conduzir a situação no dobrar do sino. O que Gerard sabe é que haverá uma exposição permanente na casa de cultura. Estão contatando artistas de toda a província e eu sairei então pensou ela num panfleto turístico. Não era o que queria, não tinha nada a ver. Gerard participaria de algum modo da seleção dos eventos? Como se fosse uma confissão, ele respondeu. De certa forma. Estavam a sós pela primeira vez. Deveria talvez ser a ultima. Cada signo exterior da senhora Lens, sua continência no beber, sua elegância com os talheres, os decoros com que se ajeitava na poltrona, os adendos gestuais às frases, tudo adquirira para Gerard a exuberância de uma planta que podada se refaz. O que a maltrata assim? Era como suspirar num sonho, perguntar ao ser de um sonho que não se define, não parece bom nem um pesadelo, uma quietude que não permitirá os ruídos exteriores, as conversas, a atmosfera frívola das festas, o tilintar de xícaras e copos, os carros passando na rua de terra ao lado, sacudindo, nada nada tirava o universo do olhar da senhora Lens. Pouco depois, ao deixar a casa, não retendo detalhes prosaicos mas apenas a sublimidade etérea, Gerard mantinha as condições ideais para a existência da saudade. Após comerem, na sala de estar impregnada de luz pela opção do sol da tarde na procura de uma casa, esperando que Keshia trouxesse
sorvete e café, Gerard levantou-se e colocou o blusão no espaldar da cadeira em que a senhora Lens sentara durante o almoço, ato que de todos, inclusive de si mesmo, passou despercebido – mas não da própria mulher. Ele pergunta de que tratam as pinturas dela. Nos hálitos, gosto forte de café. Ela diz que tratam de sua própria alma. Fala com naturalidade com que não nos importamos de especificar os assuntos em que a resposta genérica será tanto quanto precisa para nós mesmos, como para os outros ou óbvia ou obscura. A tarde garantia a luz contra a aproximação do por do sol. As meninas ainda tomavam sorvete, rindo muito. O esplendor amarelo quebrado nos vultos por sombras esverdeadas. George saíra. Uma reunião inadiável. A sombra da senhora Lens se encontra na parede com os dedos levados à quina do quadro. Não sei o que fazer de minhas mãos. Sua palma direita se apóia na parte mais alta do sofá, parte das sombras que se interligam pela sala. Em alguns pontos da aprede, o amarelo brilha tanto que é quase branco. Keshia se refugiará no banheiro para chorar por Michele e Gerard, de lá escuta a onda que quebra e os últimos pássaros do dia. A casa dos pais de Sarah está vazia, o telefone toca ecoando a impaciência de quem liga. Ela abriu a porta, entrou, a janela enquadra a luz enorme. Alo? Ele chega por trás, a camiseta fina e canelada não lhe proíbe os seios que toma nas mãos . Naso era seu estilo, ser tão direto, talvez fosse a primavera. A risada se misturou à aragem que dava vida às cortinas brancas, ondas, como lá fora, incessantes. Era um homem de mais idade, o interlocutor. Ricardo pressente a voz no tecido da saia crepe, macia, gostosa, gostosa, sente-a nos dedos da mão direita. Sarah. A mais velha entre as meninas. Ajoelhada no sofá. O telefone a imobiliza quanto a uma improvável resistência. Sente o elástico correndo mas era como se nada sentisse. A voz não ouvida faz recomendações. As coxas se apertam a fim de que a continue até os joelhos. Alguém se aproxima da água, mergulha.. Não escuta nada e agora não nada além do brilho etéreo das pálpebras avermelhadas. Alô? Sim, papai, estou escutando, pode ficar tranqüilo. Era algo engraçado de se ouvir, pensa o homem, mas no fundo gosta de ser avô, mesmo naquelas condições, a filha solteira. Era anmtes culpa da temporada, do turismo, da política local, da economia nacional. Era uma boa menina no fundo. Não se preocupe, papai, diz sem saber direito o que diz. Ricardo se apressa. Os culotes são os da senhora Lens, a nuca é de Keshia. Com Keshia será diferente, não um momento assim fugidio que se esgote. O bebê dorme tranqüilo no quarto. Coisas da temporada. Onde estará a tal babá? Os culotes são realmente os da senhora Lens, ela é tão leve ao dançar, seria muito quente na cama. O fone cai depois que a ligação é interrompida. O terceiro jato entende que não era lícito embora todas as coisas sejam. Ele ainda lhe sente a lisura e já lamenta, pensando em Keshia. E a senhora Lens jamais esteve ali. Os dois escutam os passos e quando a porta dos fundos se abre estao conversando no sofá. A babá é filha da vizinha. Oi, Brenda. No período em que sozinhos Gerard e a senhora Lens se calaram, podia-se ouvir as gaivotas distantes agitadas com a aproximação de pessoas à entrada de seus ninhos. Uma palpitação pairava entre as auras, com a existência independente dos dois nutrindo-se de sexo, misticismo e arte. Não se enfraquecia pela falta de uma sensibilidade explicitai, antes fundamental, ente que era livre do sofrimento, estava fora do tempo, imune às preocupações humanas. Ser que amava Gerard e senhora Lens, proveniente de Gerard e da senhora Lens, era o mesmo que ao chamado da orla de luz crescendo nas luzes se tornava corpóreo com o precisão dos horários do sol e dos vapores condensados segundo o humor celestial – assim eles pulsavam e se sabiam através da mútua dimensão. O senhor Lens entra na casa de Joana. Com o transcurso dos meses, quanto mais decidido a nao declarer o seu amor (o que de resto fazia
parte de uma pressentida reciproca), mais esse amor, à forca da impossibilidade, crescia inelutável. Gerard se lembraria sempre da senhora Lens movimentando-se em torno da mesa com as travessas, como a luz que circundava o telhado. A seda bege da bermuda respirava contra a janela. O talhe sombreado das coxas, ao supor a atencao de Gerard, se abandonava abaixo no assoalho onde os dedos de unhas retas e fundas saíam das sandálias baixas de finíssimas tiras lilases. A mare enchendo arfa de vagas elevaçoes e afluxos e as nuances de sua superfície fazem com que se advinhe as profundezas. Quem a podia socorrer, em quem podia esperar, a quem poderia amar? Jogada na vida, ela soube o que não queria saber e esqueceu o que desejava preservar. O tempo se escoava em sua sórdida sobrevivência e agora, agora que a injustiça do mundo corrompera seu corpo e sua alma, o presente se resumia em lembrar o futuro que poderia ter sido. A linguagem das paredes. Devia talvez, mas não estava preparada. Suas secreções internas inutilmente se rebelavam Suspira, olha para ele, está tão cansada. Os filamentos da lâmpada, uma visão embaçada. É noite e não havia indícios de que aquela noite seria diferente, o que deveria ser interpretado como um momento de repulsa pelo qual a senhora Lens teria de passar, segundo julgava, não sabia por que, ou sabia mas não queria admitir, tinha medo, medo do futuro, de não ter a segurança material a que se afeiçoara, as comodidades (sobretudo em relação à pintura) , e em ultima análise do próprio George, homem forte e violento, ela era apenas uma mulher, a rigor uma dona-de-casa, uma dona de casa como qualquer outra, fiel e dependente, dependente e livre, na medida suficiente. A aparição do marido transtornará a disposição dos móveis e o céu à janela. Como não sabe a quem recorrer e que não tem esperança, irá entregar-se. Agora. Não há como fugir. Que seja rápido. Quando ele se aproxima, o hálito impregnado pelos resquícios da festinha da filha acrescido da aguardente barata da zona vermelha, a mulher, não pode recusar, com, por exemplo, a enxaqueca reduzida a pretexto, a mulher. Dor fortíssima na cabeça de Joana. Agora o senhor Lens sai. Rose tenta sentir no contato daquelas mãos o contato de outras. Nada que fosse imperceptível, mas George estava por demais bêbado e concentrado em si mesmo. Ela observa os dedos curtos e abertos. Sob essa carne repulsiva, proveniente de inimagináveis tempos de terror, na perda de sonhos que se gastaram, a senhora Lens emerge e retorna, tenta, mas realmente está perto do impossível o sonhar ao ser tocada daquela forma que abominava, abominava desde o casamento – aqui, ontem também?, poderia ser tocada, ali mesmo, como?, por Gerard? E logo terá de levantar, há tanta coisa para fazer, quer ter ainda o tempo livre para recomeçar o projeto, e como levantar?, como olhar o amanhecer pela janela?, as belas casas daquele trecho de Celba se tornaram insuportáveis – como fui casar com esse homem? De resto, não podia competir com as prostitutas da zona vermelha, nem que quisesse, lutar pela exclusividade do marido – seus seios começavam a cair, sentia-se cair inteira, as carnes amoleciam como uma flor que se aproxima do momento em que, em vez de deslumbrar os passantes, irá ser seu piso antes que passe a varredura. E quando imaginava ter encontrado o verdadeiro amor, já não tem corpo para vive-lo. Lutando contra a realidade, deixa que Gerard a beije no pescoço, com delicadeza. O cálido cumprimento, desceu, rodeou-a, voltou, beijos flanando ora com um leve estalo de lábios ora com toques de língua. Era ainda Gerard a quem a senhora Lens desgrenhava os cabelos. A janela aberta. O sol. Um pouco à esquerda, o Giuventu. Esse Visconti talvez. E que homem não? Gerard? Mas não estava com as meninas? Não fez amizade justo com elas no seu primeiro dia? Deixe disso. George tirara o restante da roupa da mulher com volúpia, pressionando-a para que caísse na cama. Se apoiou sobre um dos joelhos. Uma vela acesa não teria
provocado tanta dor. Mas desse conforto nasceu calor, a luz, e comunicou prazer. Basta para suportar o que simplesmente não é prazer mas dor e humilhação. Para isso Gerard estava ali. E foi uma outra virilidade que a senhora Lens viu diante de si e devia sofre-la para dar prazer a quem amava. Fechou os olhos. Sentara-se nas pernas de Gerard latejando dentro dela. Ajudada pelas mãos que a erguiam, movimentava como aqeles que caminham na direção da tempestade.
Você está tremendo, disse Silvia. Há quanto tempo? A abstinência é cruel. Escuta a voz de Silvia. Você está tremendo. Estava tentando largar. A amiga lhe pede o braço. Momentos depois Rose disse. Que coisa boa. Um sorriso triste. Silvia e suas soluções para tudo. Para os outros, não para si mesma. Tudo tão dificil, tao dificil. Se abracaram. A senhora Lens quebra o silencio. Conheci um rapaz, um homem jovem, enfim. Havia um som no fim do silêncio, anterior aquelas palavras. Lá no finzinho, possivelmente uma cigarra. Uns seis, sete anos mais moço. A expressão dele é tão pura, transmite tanta compaixao. Estavam falando de religião? Olha que é quase, diz Rose. Um casal passa em frente à janela, vultos na noite quente de Celba. Me sufoca refazer nosso caminho de sexo e não mais de sexo, de discos e livros, plantas e prantos; mas ali está você, conversando com Silvia recém-chegada, fallando de mim, que honra. Silvia também se aproximara de seu rapaz, também um homem jovem c omo a senhora Lens dissera. Sim, voce começou a falar no telephone. E aí? E aí é aquela coisa: pelo computador a gente diz o que pessoalmente não diria e escuta o que quer. Até que um dia ouve enfim o que não quer: ele está apaixonado por outra. A gargalhada de Silvia nem soa ironica. Os dedos ainda massageiam em torno do pulso de Rose, sobem com pressao acentuada do polegar ao longo de um feixe nervosa. Quanto a Rose quase nem fala com seu rapaz. Se o gume está afiado, é preciso menos força. Mas o vejo diariamente. Saber que passará por aquele trecho de praia é reconfortante. Gerard fizera do passeio matinal um ritual sagrado, via a senhora Lens e lançava seu melhor olhar, como quisesse se apaixonar. Rose suspirou o hálito de um saudade. Talvez já estivesse apaixonado. Se fosse o que ela pensava que era, não seria atraído por uma mulher como eu. Silvia repreendeu a amiga, disse-lhe que nao dissesse bobagens. Era cruel consigo mesma. Um tipo de forja. Adianta lever uma vida saudável, caminhar, nadir, alimentação natural, quando a pessoa é amarga e vive se diminuendo? Quando você acha que todas as pessoas tem razoes para serem como sao, menos você? Um tipo de raça. Não há mais dúvida que o verão chegou, olhe esse céu. É apenas um murmúrio: sou mulher casada… Recosta o rosto nas mãos fechadas, os cotovelos na janela. Separar-se? Tinha medo. De apanhar, de morrer, da pobreza, da velhice. As coisas são assim? Bem, podem perfeitamente ser. Rose se apavorava em ter de descobrir. Nesse caso, por Deus, a separação não é mais uma alternative, é pura sobreviência, você parou para pensar que esse homem é louco? Rose não pensara nisso, não pensara nisso e estava pagando. Pagar. Culpar-se, condenar-se. Pagar. Nada. Você só teve azar e foi um tantinho acomodada e ambiciosa. A senhora Lens deu uma risadinha. Ao chegar com seu jeito descontraido (que entretanto escondia também tanta amargura) e sua aparente objetividade, levou Rose a confissões cada vez mais detalhadas e, como era de se esperar, nao demorou a perceber a coincidencia, que quando falavam de um rapaz por quem se sentiam atraídas estavam falando do mesmo Gerard. Passou então a entremeter-se na amizade das duas um ranço de ressentimento, superado quando Silvia viu o tremor nas mãos da amiga. E tornou também a seus próprios estados
depressivos anteriores. Que na casa contrastava com a grande exuberância das meninas em vésperas de viagem. É que Michele partiria, com Silvia, assim que passassem as festas. Como despedida, se alternavam em raves e cinemas, e barzinhos, e paqueras, muito orkut e msn. A figura melancólica de Gerard, já afetada pelas chegadas seguidas de moçoes turistas, não resistiu na cabeça das meninas quando chegaram os belos e ricos primos de Segundo grau para passarem as ferias na casa de Keshia. Um sax toca na noite quando Michele e Keshia voltam de uma reunião no clube. Silvia falava com Rose na varanda. - Conheço teu estranho – disse. – Conheço Gerard.
A casa da senhora Lens adormeceu quando ela apagou as duas janelas frontais. A luz da lâmpada do poste da rua sobre o telhado como um anjo. Gerard parou diante do oceano na madrugada fria. Horizonte indistinguível, o mar era estrelado e o céu noturno lançava ondas à praia. A casa da senhora Lens adormeceu quando ela apagou as duas janelas frontais. A luz da lâmpada do poste da rua sobre o telhado como um anjo. Gerard parou diante do oceano na madrugada fria. Horizonte indistinguível, o mar era estrelado e o céu noturno lançava ondas à praia. Ah se todas as evocações rebentassem antes que aparecesse nele manifesto seu erro a queimar a pureza do habitual passeio no recanto deserto, em oração por seu afeto maior que se não fosse realizável haveria de ser ao menos útil em sua impossibilidade, levando-o a se reaproximar de Deus. Agora que a pousada despedira os empregados temporários, se dedicaria a freelas de informática e claro se nutriria da ausência de seu amor. Mas sob o sol deitada de bruços na areia umida da maré vazante o corpo de mulher. Apareceu. Dificil sabe como essas coisas acontecem. Gerard saiu um dia sem nada na mente além da rotina de seus passeios matinais. Alguém escuta os nossos pensamentos? Podem ser modificados exteriormente ao longo da acao planejada? É quase científico. Mantenham o dia assim igual e irei me adaptando. Acrescentava idéias a suas reflexoes naturais a cada passo da caminhada. Todavia. Como imaginar? A solução. Respirar fundo, se endireitar. Há novas turistas nesse trecho da praia e mais além as lindas jovens de sempre. Basta para que passe a haver sinais no calção . Hoje especificamente há uma certa estabilidade nessa beleza. Longe ainda, num ângulo lateral, Gerard se faz perguntas. Quem seria ela? Conforme se aproxima verifica pelo suor que está cerca de meia hora de exposicao. Monumento estirado. Esse sorriso é de alívio. Com que entao não estou. Como nos velhos tempos. Não pode mexer agora mas tenho de dar um jeito de se ajeitar. Bom e constrangedor. Olhou o céu, o sol, o reflexo nas águas. Um espairecimento banal que deve aliviar, pelo menos momentaneamente. Seria trágico, ou irônico, justo agora ter de desviar o foco. Querer a ação ou a contemplacao, nada de meio-termo? Nossa, dá para acreditar na lisa grossura dessas coxas? Que palavras para descreve-las? Começa a achar que a velha vida se apossara dele como jamais. O que é isso? Boas pessoas, pessoas normais não pensam nisso. Nunca será duro demais consigo mesmo, o pervertido. A senhora Lens s espantara ao dar com o quarto ainda vazio. Mas sei como ela se sente. Ou talvez não soubesse. A luz do sol não mais será a mesma após reencontrar a filha. Começo do fim. Portanto a senhora
Lens se espantara, sustentanto os seios para cima, ao ver que Michele saíra de casa logo cedo após a chegada. Dois anos estudando em São Braico sem vir visitá-la, apenas cartas lacônicas, deixara a casa de Silvia, nada pessoal, só queria independencia e queria morar sozinha, afinal estava trabalhando e merecia privacidade . A senhora Lens se espantara, essa menina não deveria estar cansada da viagem e só acordar lá pelo meiodia? Apenas amanhecera. Falou com o vizinho como se nada de extraordinário. O de sempre, que calor, talvez chova mais tarde. É que ela não sabia, mas esperava. Espelhos brônzeos se separam de súbito. Não é possível. O amanhã desmentirá o hoje. É esse o fruto fecundado desse dia e dessa praia, dos lugares desertos? Mal respirando hesita entre passar e parar, sente o mundo para o qual é necessário todo um livro de páginas molhadas, deseja nascer de um vento novo que junte virtude a virtude – mas elas fogem. Quando você quiser, quando achar apropriado, quando estiver pronto, quando acordar. A mulher que não morrera mas dormia, a virgem entregue ao herói que não sou mas me foi. Gozo e idéia caminham juntos no ritual pelos labirintos do olhar que se move de baixo para cima, do chao aos ceus. Sela-se o reencontro, a estranha não era uma mulher mas Michele. A mãe pensa como a filha viverá com aquele novo corpo em Celba, em uma cidade como Celba. Sentara-se à mesa envidraçada da sala de jantar para fazer umas contas, após apanhar números e máquina de calcular no aparador, nas liberdades da musselina e da sandália. Acende-se com o clique da lâmpada. Sentia-se em paz. Capaz de transmiti-la. Gerard, que se mostrava tao eficiente em computação, e por meio dela em projeções e custos, almoxarifado e custos, não podia ajudá-la, trabalhar com ela? Morde a maça que acabara de pegar. O som de Michele rompeu o laço que o prendia à sua solidão, levando-o à inesperada companhia. Ela porém não falara, sonha. Durante as eternidades que precederam seu desperar, habitou soberana a existência de Gerard. Ele postou trêmulo a própria sombra sobre o rosto dela para precipitar o encontro e reduzir os tormentos. Mas pousada a face esquerda na areia ela apenas sorri de olhos fechados. Dormiria de fato? Deus... Tornara-se uma mulher, uma mulher belíssima!... No semblante, ai, a mãe... Poderá essa imagem se tornar vicária? Junto à qual alguém que amasse a senhora Lens poderia viver, subsistindo da semelhança o amor? O sorriso onirico é substituido por um relaxamento dos lábios. A expressão misteriosa não é interrogação, vergonha ou susto. Subito os olhos se abriram. Dificil saber como essas coisas acontecem. Se você ultrapassar determinada porta, talvez encontre o que procura, um quarto limpo e colorido com alguém ou ninguém dependendo de sua disposição, um quarto limpo, colorido e cheio de luz. A partir de agora, nunca mais sonhará com a senhora Lens e por toda a vida estará a seu lado. A seu lado. O que é isso? Imagina? Esse ar imaculado de uma Celba invisível, partilhado. Amanhece. Passos na rua. Galos, sinos. Gostaria de poder fugir do lugar comum, mas não podia. Iria dizer os adjetivos cabíveis, óbvios, mas disse apenas: Quando chegara? O lapso que liberou por fração de segundos o seu olhar, ela usou-o para certificar-se do desejo desencadeado. Michele – e Gerard ainda estava por sofrer tudo o que a isso estava ligado – mantinha-se senhora da situação nos minimos detalhes, senhora inclusive od próprio desejo que a queimava.
Se não há palavras como dizer de um beijo? Beije-me por favor, disse ela, e a lingua disse mais. Só entao houve palavras e mesmo assim, e mesmo assim, e gaivotas rasantes, e carros algures, e o fluxo está forte, muito forte, por isso. Por isso. Ela se virou e se pôs à espera. Como assim? Precisa de que para comer minha bunda, babaca? Entretanto o respeita por esse escrupulo. Esquecera quem era aquele homem. Não mais. Seria recuperado a cada violação de corpo. Agora põe atrás. Todos com mais ou menos jeito o faziam. Com mais ou menos dor. Quando souber que ele é quem sentiu dor, primeiro achará graça. Mas mesmo quando depois de achar algo irá permancer. Se tivesse vivido para tanto, Silvia teria oferecido seus préstimos. Algo. Um respeito inutil pois continuará querendo a violação por trás e o silêncio. Esse jeito assim tampouco ela vê o rosto mas é ergonômico, menina e menino. Esse Gerard. Mas como sempre onde ele e George competiam a tendência era que os dois desaparecessem. Essas coisas. A idéia que ela teve, sair e dormir na praia. Ele ter alongado a caminhada além do limite que se impusera. Limite que aliás, pensou, ninguém impõe. É como se ela estivesse esperando. Se vou chamar isso seja lá do que for, ainda assim terá sido desse jeitinho. Como tia Silvia dizia, o que tem de acontecer acontece. E aí, para sempre a coincidencia agira num sentido inverso. Olha Gerard eu não sou virgem. Olha Gerard sou dona do meu nariz. Que bobagem. É mesmo uma menina. Não sabe nada. De qualquer modo, um dia saberá. Quem sabe entenda entao as entranhas dessa dor que encaminha. Dor que encaminha? Aí ela dirá que Gerard além de tao estranho é muito dramático, que assim acabará enlouquecendo. Acabarei. Ela realmente o acha intolerável ou pensará que acha na maior parte do tempo. Porque se achasse todo o tempo perderia aquela parte que sem querer admitir precisava mais e mais e que a podia livrar da obsessão em relação ao pai. Mais, ela quer mais, como ele quer. Mal sabia. Querer, querer de verdade, jamais ele quis. Estao no mesmo movimento, perseguindo um gozo que se afasta quando julgam alcanca-lo (não é esse o segredo?). Se Gerard as vezes parece mais perto, Michele o ultrapassará e ai chegará antes. O caminho percorrido não deixa duvidas. Isso é felicidade? Insistem na corrida frenética. Felicidade. Como se dissesse Eu sei que você ama minha mãe e eu amo o meu pai, isso nos faz iguais, nos dá esse direito de tentar. E se ele dissesse Michele não é certo, seria uma hipocrisia. Entao o que nos impede de gozar? Quase. Depois poderemos se for o caso nos culpar. Se você ultrapassar determinada porta, talvez encontre o que procura, um quarto limpo e colorido com alguém ou ninguém dependendo de sua disposição, um quarto limpo, colorido e cheio de luz. Chegara da capital à capital da província, São Braico, com dezesseis anos incompletos. Era menina estudiosa, cheia de planos de realização pessoal, pouco ligada em companhia masculina. Durante algum tempo se dividiu, achando que pudesse ter algum problema. Num processo de auto-correção se entregou ao primeiro rapaz com quem privou de intimidade. Aquilo não era seu mundo. Ao menos ainda não. Num
segundo momento descobriu não ser capaz de abandonar aquele mundo, que passou a devora-la. Vivia apenas pelo presente que satisfazia seus desejos. Esqueceu a vida passada que perdera sentido a partir do momento em que deixou de existir futuro além da hora em que dormiria. Feita mulher, jamais se desfez desse estado. Mesmo quando os meninos a levaram para trás da escola, ou quando nadavam com roupas de baixo, estavam basicamente brincando. Um costume. Uma necessidade. Mas pouca graça achava nas brincadeiras dos meninos e logo quis estar com um homem de verdade, a um tempo proteção e dependencia. Queria achar esse homem, decerto para abandonár-lo à propria sorte ereta. Esse homem haveriam de ser vários, lambendo o chão até sua cama. Michele muda. Desdenha os planos de realização profissional. Despreza os tempos antes acalentados de menina. Senhora do mundo e escrava de si mesma, era essa agora a referencia de seus dias, o olhar libidinoso com que contemplava a própria víitma, e diga-se que apesar de tudo jamais pôde esquecer o primeiro, espectro viril que a perseguiria pelo resto da vida. Estava agora com dezessete anos incompletos, escorpiana de boa cepa como diriam seus avós. Gerard não podia conciliar essa idade, que concluia de uma conta simples, com seus ardores. Um carro passou ao loinge na estrada de terra, levantando poeira, e enquanto o ruido do motor registrava a distancia em que se perdia, ao som, Michele ainda olhava Gerard. Quando se fez silencio novamente, ajoelhara-se e agarrando-o pelos cabelos, esforço que o impulso a que reagiu num impulso para trás. Michele subiu, já depositando a lingua nos lábios de Gerard vencido por uma hipnose que não impedia os lampejos de quando seria depois. A mão direita de Michele entrou pela camiseta branca de Gerard buscando os cabelos de seu peito, que puxou, e Gerard deveria ter dito que ela se enganara e duplamente, não a desejava e se desejasse não deveria ser assim. Teria dito se tivesse tido tempo, se sua própria mão já não a buscasse. Teve porém de deter-se no barbante. Não mais podia voltar a si mesmo antes de percorrer aquele caminho que desvendava embora hesitasse diante do bloqueio. O fluxoi estava muito forte, disse Michele. Mas tinham alternativa. E enquanto falava soltou os cabelos de Gerard passando a invadir o zíper de sua calça. Eram jovens, sadios, solteiros. Por que se deveriam se sentir culpados, perguntou a Gerard a letra queimada do letreiro de neon da pousada, readquirindo função com a nuvem que escureceu a manhã. Precisava consertar aquele A.
Deveria se absorver, estranhar sim só se fosse diferente, se diante da fogosidade de Michele ele se mantivesse controlado. Vem, disse ela arfando, era súplice e autoritária. Além do mais, servia com contraconceptivo. Quando ele não quis, a rejeição doeu como a lembrança da mae, detestava-a, odiava seu espaço na cama, queria que morresse. A vida da senhora Lens lhe era uma sentença. Usava o silencio como uma cor. Repudiava a maledicência. Não se irava nem se ensoberbecia. Tratava a todos de maneira igual, odiava a injustiça e a leviandade. Não julgava, perdoava. Assim reinava a senhora Lens naquela casa e nas órbitas dela, pela simplicidade de hábitos e simplicidade inacreditável para alguém de sua posição social, em Celba como em
São Braico, de uma forma que praticamente criava a beleza a seu redor, com seus modos contidos elegantes, seu olhar poético e sua arte feminina transportando-se à sua própria vida, falando de vida e arte ou simplesmente comentando o prato que serviu no jantar, ah Michele não suportava mais aquilo, batatas nas têmporas, imagine, o ser humano não pode recusar a dor e o desconforto, eis uma das razões de Michele ter aderido à sodomia. Como uma mulher como a sua mãe podia chamar a atenção dos homens mais que a própria Michele quando estavam juntas? Chegara de São Braico na noite anterior, calça de gabardine cintura alta, grudenta de aperto e suor, a camiseta curta também molhada e ao abrir a porta havia remorsos não mencionados na musica do cd e deparou-se com Ricardo, com ele se deparou, a quem telefonara para informar na casa a hora de sua chegada, mas só quando estivesse próxima, para que chegasse sem ser praticamente esperada – ali estava Ricardo, não o seu mensageiro, absurdo, o canalha, como pôde traí-la? Ricardo pede perdão. Diz que não sabe o que deu nele. Posso compreende-lo, diz a senhora Lens. Apenasd gostaria que isso não se repetisse mais. Não, é claro. Não, não. Ele dava a palavra. Só queria dizer que, a senhora Lens esperava que ele completasse, A senhora é atraente demais, mas ele disse A Michele chega por volta de onze e meia. Frustrada a senhora Lens agradeceu e o despediu. Quando saiu, antes que Michele entrasse, a senhora Lens pensou na filha. Uma mulher decerto. De fato. Uma mulher com Gerard na praia. E pior, a terrível beleza deseu sorriso triste. Rose, a rosa, uma rosa sarcológica como diria o professor Delano (com quem Michele se encontrou duas vezes em São Braico) porque tratava-se de uma mulher de tecidos musculares e partes esponjosas, mas era como se se tratasse de uma cálice de tolerância, corola de ternuras, uma flor até no nome,. Sem contar, pensou Gerard com as mãos nas anquinhas de Michele, as carnes fartas, prontas para serem classificadas, pelo toque do amor de um homem, o amor de Gerard.
A senhora Lens era um exemplo. E esse era o seu exemplo: a sua probidade apesar das fraquezas, seu jeito de lidar sem hipocrisia. Era abrigo para os filhos dos pescadores e sua sombra aliviava a terra seca pelo vento perene – um arroio, adorado pelos meninos, no qual iam se refrescar das tristezas de miseráveis pequeninos. Seu amor era um amor que não se apregoava. Essas coisas incomodavam Michele que não podia diante da mãe fazer sua lascivia passar por sabedoria liberal, nem seu desenfreio como autenticidade, nem seu insensato coração, diante da mãe, podia discorrer dos novos tempos de conquistas das mulheres, como se o direito à promiscuidade fosse uma. Michele enfim se apagava diante da senhora Lens. Diante da simplicidade de seus olhos e da gradiosidade que viam e transportava para suas tela e comportamento. Se não era perfeita, a luz de sua perfeita sinceridade e vontade estava refletida em seus olhos. E michele odiava-os, sim, quem dera se apagassem – havia uma faca que desferia mais um e outro golpe e mais outro até a morte, ah, ah, ah – A quarenta dias de se tornar a senhora Lange, Michele, queimando e sangrando, morria.
Os sonhos de poder, tonica de suas fantasias, onde mais que uma mulher desejada era invejada, tendo palavra de vida e morte sobre os homens, aquele psicologo da escola frustrou-os, diagnosticando não ambição, nem mesmo vaidade, mas atração pelo pai, de intensidade mórbida. Como punição o doutor, de seus trinta e oito anos, acabou seduzido pela aluna e paciente, perdeu o emprego e viu seu casamento destruído. Com isso Michele pensou ter encerrado o caso. Estava obviamente equivocado ou não se teria deixado seduzir e destruir tao facilmente. Mas fora um dia tenebroso para ele, um dia para esquecer, acordou com uma briga doméstica, depois a reprovação da filha, o filho batendo a porta, menosprezando seu emprego e salário, e a pressão normal da clínica, a hipocrisia dos colegas, enfim, e à noite a vitória de Michele, tendo-o em seus braços. E quem quando explode a consequencia desastrosa se dá ao trablaho de imaginar alguma causa atenuante? Agora fulgura na mente de Michele junto ao ardor, seu primeiro e verdadeiro amor, o impulso de ser por trás de modo que nada visse ou ouvisse e assim pudesse. Resfolegando entre o gozo e o pavor Michele urrou. Ele vai lhe perguntar se a está machucando, ela começa a ouvir a voz e lhe tapa a boca, ginástica precisa. Abre-se mais e come areia em seus transportes. Puxa os cabelos dele e com a outra mão dita-lhe o ritmo. Até aqui existe fascinio, a transgressao de uma rotina sob o amor da senhora Lens. Até aqui. Em torno deles, o mar, as montanhas; as casas distantes, na névoa. A vida arrebatada pelo erro de se acreditar na retidão de todos os caminhos, na nobreza dos gestos nobres, na justificação e na exaltação. Pela muita necessidade de homens e mulheres sentirem que são normais. O que significa ser bom. Mentira. Falta básica a auto-indulgência pressionada pelo desejo carnal e pela vaidade e seja o que for que exista de poder e submissão nesse desejo. Assim nem o amor nem a consciencia estavam no vaivém de Gerard em Michele, pensará ele num dia distante da magia que transformava a menina em mulher. Quem sabe confiei tanto no velho amigo que não me furtei àquela confidência de sangue em meio ao incômodo de algodão, um dia ela refletirá. Levado agora por uma onda. Ai. Mais tarde dirão que as águas límpidas de Celba não são limpas. Michele se entregava assim, mesmo assim, submissa no seu degrau de poder, o que diante de outro seria humilhante perante o amigo mais velho era a confiança renovada. Talvez em seu descuido Gerard imaginasse algo assim da satisfação duvidosa de um desejo legítimo. De qualquer modo, o que se pensa é efêmero, o que permanece é o que se faz do que se pensou. E pouco a pouco, num grito aqui, numa contração que ali quase o lança fora dela, Gerard assumiu o risco vago de uma criança cujo rosto estimulou a idéia que poderia (por que não?) transformar-se em amor e resgatá-lo de seu amor proibido. Está cansado agora. Mas depois. Sentiu uma felicidade que não sentia, não nos montes em Michele, mas no vale materno abençoado pela madurez de que Michele carecia, fartura sofrida de mãe, sombras da responsabilidade de mae, contraponto de rijidez de pouca coisa na filha. Ah, a elegância da senhora Lens em uma situaçãoíntima!... Sensual, sensual sem sombra de vulgaridade. Natureza e arte. A profundidade desse mar que todas as luas conhece, nas costuras das roupas da mãe deMichele, os caminhois da linha desdenham os pássaros voando para muito longe – mas exatamente para onde? Sim, fugiria. Mas não é possível agora outra coisa além da justa tensão entre dilatação e intumescência. Que horas serão? Caso fossem vistos, que constrangimento. Culpa e vergonha. Porque a fuga termina sempre a levar a um outro perseguidor adiante. O que haverá além é alguma face do que houve
outrora. Não pode evitar esse fogo, essa dor no peito, essa respiração entrecortada. Afasta-se bruscamente e lança à nuca um olhar como se ela visse. Estremece e ainda treme quando fala. Sim, disse ela, como se o olhasse. Sim, é claro que queria. Quem sabe uma cidade intermediária, nem metrópole nem vila, com vantagens de ambas. Abre toda essa esperança. Um dia de tamanha claridade. Esse sol nas ruas de uma cidade grande estaria filtrado por árvores e portanto não seria tão opressor. Esse sol no quintal de uma casinha em simpáticos arrabaldes. Está nesse quintal. Os passos nas folhas secas. O reflexo das folhas verdes. Uma brisa no mato. Deixei-a em casa dormindo e vou comprar pão assim cedinho. O trânsito dessa cidade não é caótico mas é preciso cuidado ao atravessar a rua. Cheiro de pão. Estalidos do papel de pão. Eis a vida de um lugar assim, o amanhecer em um lugar assim, fazendo esvoaçarem os sentidos, serenando aquela que dorme em casa enquanto saio de mansinho oculto pela penumbra de um prédio nem alto nem baixo, pelo corredor nem estreito nem largo e então a entrada do prédio, a entrada de um prédio nem luxuoso nem simples demais. Talvez assim tivesse uma vida, uma vida de verdade e não a que os sonhos me permitiam apenas no recôndido deles, se ela quiser, e quer, e fica o pensado por não pensado, um mês e meio depois estavam casados e Gerard para o resto da vida oficialmente ligado à senhora Lens, livre para aproximar-se e vê-la se aproximar sem fazê-la adúltera, porque agora pode beber nas fontes da cidade de Deus sem sujá-las e tem a impressão que agora todas as coisas estão em paz. Louco... A partir de agora, nunca mais sonhará com a senhora Lens e por toda a vida estará a seu lado. A seu lado. O que é isso? Imagine. Esse ar imaculado de uma Celba invisível, partilhado. Gerard se levanta, se levanta decidido. Galos, passos, sinos. Agora há silêncio na sala do senhor Lens. A jovem em casamento acaba de ser pedida em casamento.
Gerard conhecera um ex-militar, dono de imóveis em Celba, um senhor já de certa idade, que ofereceu uma boa casa defronte à lagoa por um preço simbólico, homem de princípios firmes como sua voz alta e clara, cuja probidade Gerard reverenciava, embora divergissem com relação a quase tudo. Durante uns dois anos viveu ali, ainda solteiro e depois de casado, e honraram ambos um compromisso verbal, os pagamentos do aluguel rigorosamente em dia e os melhoramentos. As janelas serviam de tela para que as nuvens ao se interporem ao sol inventassem jogos. A casa, a calma; num momento inesperado, a lembrança. Se não pode haver mais culpa, entao por quê? O silêncio, a ausência de vizinhos. E esta solidão. Agora e antes e possivelmente depois do casamento.Sim, agora, depois do casamento. E a espera renovada e sem sentido. E o solo coberto de folhas. No começo da primavera, a caesalpinia floria por uma ou duas semanas e a florecencia independia do olhar de Gerard. Eis a bauínia. Sarita saberá e mandará recado, que tome muito chá. O perfume das acácias será igualmente terapeutico um dia. E aqui um movimento não muito diferente de qualquer movimento cotidiano e todavia. As portas da casa, como você vê, nunca estao fechadas. Tem seus inconvenientes – a entrada de mariposas, mosquitos e morcegos, por exemplo – mas quem se importa se tudo tem seu preço e
naturalmente a liberdade. Essa porta de cerejeira escurecida com retângulos verticais e um no centro, na horizontal, trabalhados com esmero que a senhora Lens admirou longamente na primeira visita que fez na qualidade de sogra. Que surpresa boa, entre, vou chamar Michele. Nesse dia ela se adiantou no limiar com uma graça menos espontânea que a corriqueira, mas eram discerníveis como sempre a simplicidade e o decoro. Então, mae, o que a senhora achou? nem parece aquela casa não é? Fiz o capucino que você gosta, vamos para a mesa. Michele apresentará a disposição dos aposentos na casa e dos móveis nos aposentos e das coisas nos móveis – a senhora Lens se impressionou com a televisão enorme pois nunca vira uma TV de tela plana. Também olhou com quase espanto para o fogão de acendendor elétrico e autolimpante. Tudo bem que não é nenhuma novidade pra você, Michele, mas pra mim é como se tivesse sido inventado ontem. Então Michele se lembrou com quem estava falando. É que a senhora sempre teve empregada, mãe, e nós tão cedo não. Tão cedo. Quando Gerard estiver sem emprego e morarem na casa da senhora Lens, a velha empregada os servirá. Obrigado, Sarita. Era um prazer. Muita novidade deve passar despercebida perante o anfitrião amado mas impossível não notar a funcionalidade da sala iluminada por lâmpadas frias. Paredes bege. Estantes, os livros e CDs. A mesa do computador atrás da qual caía a cortina transparente antes da persiana e em cujo lado esquerdo um movelzinho guardava jornais e revistas. Mas decerto ele não escuta música em aparelho de som; e livros, lerá? Talvez sim, se mantenha informado, nada mais. Seja como for, George lê tanto, se mantém por dentro de tudo (a música não é chegado) Noutra parede, a do sofá branco, com almofadas compradas à mãe de Maria das Dores, costureira que trabalhava para a pousada. O rapaz é tão bonito e simpático, acho que vai se dar mal metendo-se com aquela família. E na entrada um cabideiro ao lado do visitante. Um cheiro bom de lar, enfim foi a filha quem conseguiu, um aroma bom, vindo provavelmente, não, sobretudo do carpete felpudo onde Michele tomaria gosto de se estender para ouvir Elvis, devaneando conmo se fosse uma coisa hereditária. Cada uma dessas paredes abrigava (sem culpa para Gerard, afinal estava só prestigiando a sogra), um quadro da senhora Lens, que se sentia vaidosa e esperançosa pela deferência cada vez que os via. Quando a praia estava cheia, costumava nadar no lago. Estimava que tinha uns quatro a cinco metros de profundidade, águas claras e mornas. Ao redor da casa os montes culminam na cordilheira geralmente enevoadas, São oito horas da noite. O primeiro dia de sol do verão de 2008. Não foi difícil encontrar a casa com todas aquelas referências. Que linda, melhor impossível. Silêncio. O ranger dessa porta. O sussurro do vento. O silêncio, o vento e a porta são tua voz. Gerard perguntou a si mesmo por quanto tempo suportaria tanta irrealidade. A senhora Lens respondeu que um sonho é feito da mesma substância de que a realidade se nutre. Não acorde, disse numa lufada quente; não acorde. Certa noite, ao regressar à casa, escutou as vozes de um adulto que orientava o filho. Porque aqui não é São Braico. Não sei sobre o que está falando, pensou, mas era decerto uma frase precisa. Todavia dúbia, o que de tão diferente? Que virtudes as da cidade pequena afinal? Tinha sido um longo dia. Ali está o carteiro. Uma hora dessas. Vou lhe perguntar. Quem são? Eram de fato pai e filho. O primeiro dia do verão, não há duvida. Começou a temporada. Entende porque preferiu se manter solteiro até Michele, lembra-se do menino que corria atrás das coleguinhas, mas não é capaz de compreender o homem que fez tal opção, casar-ser com a filha da mulher que deseja. Porque a compreensão da loucura em determinado momento acabará se tornando a própria loucura.
Três meses depois da manhã em que reencontrou Michele, Gerard descobriu que, pronto, era isso, se não estava feliz isso se devia basicamente à forca da atenção que dava à opinião das pessoas. Decidiu que se declararia, não importava quem dissesse o que – de resto, ninguém precisava saber. Só quero ter paz, pensou enquanto se aproximava da casa. Sarita passou por ele em sentido contrário, quem pensa ele estar enganando?, cortejar uma mulher casada, devia dizer a ele o quanto ela é decente e boa, diria Olha, esquece isso, deixe-a em paz. Mas no fundo sentia certa simpatia pelo sentimento de Gerard, estava apenas tentando ser fiel ao senhor George que a tirou da rua. Se ao menos Michele o amasse... Ele poderia entregar sim a parte de seu sentimento que a senhora Lens não abarco, a energia sensual crua como um céu infinito à espera que anoiteça. E se a senhora Lens amasse o marido e ele a amasse... mas não a amava. Não. Eis ali o calhorda no dia anterior. Espera a garota de programa de outra cidade, a quem os serviços contratara. A vadia da Joana agora vive doente. Gerard o olha; a senhora Lens é nisso humilhada; maldito; mas nada fará contra ele, e sabe que não. Joana fora a um médico em São Braico. A ausência tornou-a desejável novamente e George tinha coisas novas na cabeça. Não sabe que não a verá mais. Enquanto imagina que sim, experimenta parte das taras com sua mulher, a senhora Lens, a quem Gerard amava. Por que entao não enfrentar o mundo em nome do amor em vez de enfeita-lo com a beleza enganosa da renuncia? Até porque não estava mais dando certo, pensou a senhora Lens, deixara de ser um período produtivo. Tudo está agora nas mãos do acaso. Se pudesse ele discretamente sussurrar-lhe as palavras. Declarar-se-ia e se saberá enfim correspondido. Se ela souber se expressar sem vulgaridade: da janela, num calafrio, percebe que Gerard se aproxima. Ele nada tem em comum com George, não sabe portanto a motivação de seu impulso. Pergunta ao homem comp chegar e ao longo do caminho pensará em como não ficou constrangido em fazer isso, em perguntar, em perguntar tanto quanto ir. Incuravelmente romantica, Joana era recorrente em incorrer no erro contra o qual suas colegas a viviam prevenindo. Apaixonar-se pelos clientes, o que podia fazer? Viu em algum lugar de seus olhos o que ninguém via. Claro que poderia amar um homem assim, se fizera tudo o que fizera por ela. Que fosse agora uma boa lembrança. Está nas mãos do amor. A voz de Gerard é desde o primeiro momento adorada. Ela sonha de novo mas seus sonhos são como arvores de uma floresta condenada – infectada, agora só pode mesmo sonhar. Dir-se-ia que com Gerard o amor assumiu ares de missão, de sacrificio. Sentarao na noite clara, silenciosa, na bela noite de primavera, na hora desesperada, as almas unidas nos ares que esvoaçam pelos campos das propriedades fora de Celba, onde nascerao as estrelas na penumbra, na suave obscuridade da noite boa, ela adivinhou que seria sim uma noite muito bonita, tem coisass que não dá pra esconder de uma mulher. Uma mulher plena, Michele teria gostado de acrescentar. Ele chegou com passos tensos, ela se olhava no espelho. Os detalhes da decadência. Olá. Entre George e Gerard, havia desenvolvido os sintomas. Embora a janela esteja fechada, pode sentir a vida dos animaizinhos da noite. Vela agora o sono dele. Uma mulher de sorte é o que é essa mulher, amada assim por este e tendo naquele o provedor. E se a George relevava a violência, em Gerard condenou a demasiada ternura. E o que Rose Lens dizia? Ela não sabe, Joana. Joana olha um o fio que corre da cortina antes de responder. Ah, sabe sim, é claro que ela sabe. Meu pobre amigo.
Amanhece e o cheiro de pão é o cheiro de Celba. Joana trouxe três. Gerard não consegue se levantar, não tem motivos para, ah deixe de bobagem, de onde vem essa música? O corpo anda pelo quarto, mas não se falou em dinheiro, como poderia e como poderia ela? Então ofereceu o colo para que Gerard dormisse. A possibilidade de estar infectado inexistia para George, apesar de saber o estado de Joana. Passou a encontrar amantes da capital. Melhor. São de nível superior. Uma delas decide seduzir o idealizador do pólo editorial. Ele não tem culpa de ser como é. Não pediu para existir. Então que história é essa, pensou Cati, de tão perverso, de único a ser odiado? Victor não estranhava o desejo dela de acompanhá-lo sempre quando ia de sua cidade para Celba levar manuscritos. Você trabalha demais,Victor. Podemos pegar uma praia depois. Podemos ver o pôr-do-sol. George fora certa época um escritor prolixo e de qualidade, como Victor, a época em que conheceu Rose. A senhora Lens acha que o empreendedor matou sua cratividade. Ou, como Cati acredita, ele precisa de uma nova musa. George vende muito bem seus livros na Europa, não o bastante; nos primeiro nos “mais vendidos” era um conterrâneo, como chegara ao topo antes, o idiota? Esse homem, um tal Pedro Carneiro, não lhe fazia frente em termos de literatura mas certamente sim no aspecto comercial. O sucesso do rival incita-o à idéia do tal pólo, Cati logo percebeu, mas isso em nada afetou sua admiração pelo amante, antes ao contrário, as pessoas precisam ter ambições, precisam se motivar. Motivação é o segredo de tudo. Mas o que se faz depois de alcançar aquilo pelo que se motivou? George pela primeira se percebeu cansado, infeliz.
Nunca na verdade pensava muito a respeito de tais coisas. Mas agora é levado pelos olhos de Cati, pela sua boca, pelo seu pescoço, pelo início de seus seios. É levado, pensa a respeito meio sem se dar conta. É o som da voz dela, os movimentos de seus lábios e da língua fugidia, há em Cati um pouco do que há na chuva que caiu na noite anterior, na lama que deixou pelas ruas da vila, sobretudo para os lados dos pescadores, do hotéis baratos, mas a quem ele está procurando em meio ao cheiro de peixe que ao de esgoto se misturava, e o tilintar vindo do bar?, se perguntou e não soube a resposta, e ficou ali, súbito parado perto do mar batendo nas pedras sem ter a menor idéia do que faria se quisesse ter uma vida decente. Porque de todos os produtos do pólo de literatura os únicos fadados ao sucesso foram os do próprio George os que ele assinou após ler enredos recebidos de livros jamais publicados – sou cumplice dele, meu Deus, sou pusilânime e fraca, sou cúmplice. Mas a mãe de Michele jamais fazia nada além de se culpar.
Qual é o sentido deste quarto, parte de mim, desse teto, céu universal de um mundo, céu de um mundo, o que quero dizer? – uma coisa é o sentir, o contemplar, outra muito diferente colocar em prática o que se acredita, e é de resto preciso ter esse aval constante do comportamento? – isso é tao desgastante, estou tao cansada, mas caso não seja, se a compreensao se basta, se basta o arrepentimento, a bíblica metanoia, a mudança de pensar, a mudanca de pensar que salva, entao enfim está justificado esse teto cinza, esse limbo entre a ação e a contemplação, esse querer sem força, esse sentimento apático. Aqui deitada, a porta bate repetidas vezes, George está saindo, naturalmente para encontrar essa moça doente, que relacionamento o deles não posso mais entender. Antes foi decerto Michele, entrou saltitante e saiu, saiu ao
pai, melhor para ela. Tenho medo de pensar se Gerard está em casa. Me conforta que esteja. Meu coração. Assim sobressaltado. Terrores tamanhos. É a vida ou o antidepressivo está causando – está desabando o mundo sobre mim, uma interrogação, a pergunta que exalou dos braços quentes de Gerard quando me cumprimentou, um aniversário sem festa e todavia – O quarto está girando. Essas questões são as mesmas de que Silvia sempre falava, mas agora é de outro jeito, agora são vividas, por mim mesma, vividas, não formuladas de alguma outra forma. Quarenta e seis anos. O universo se move sobre minha cabeça. Estava porém para se libertar. Na pintura absorta, amando Gerard, de algum modo preparava o caminho para dias felizes. Agradecia então a Michele por não ser fiel. Havia aquele desejo em Cati, de futuro, de estar bem de vida, não nasci para ser pobre, nasci para mandar. Havia dentro dela a tendência por tudo o que não se esgote, por coisas que por mais consumidas não se esgotem. De onde tirou que havia sombras de tal atributo em Victor daí mesmo passou a traí-lo com George. Esse George. O marido, o homem de cujos lucros a senhora Lens participava. Graças aos quais está agora na tarde de terça, a campainha, esses dois lado a lado, em quadro emoldurado pela porta da senhora Lens, um anjo dos céus. Não serei ignorada.
Ricardo queria o endereço de Michele, Oi, é que ganhara um computador do pai para fazer os trabalhos da escola, apesar de não ser de imaginar que se interessasse por algo além de surfe, mas sim, e além do computador a senhora Lens guardou e não devolveu aquele olhar, não mais de olhos estranhos ou da novidade de olhos claros, antes um olhar simples e conhecido e reconhecido num outro, e não, nunca mesmo, ainda mais interessado por estudos, mas agora estava super a fim, adorando. Como assim, estava? – Não está mais? – duas apanhadeiras de conchas passavam olharam para os rapazes e murmuraram entre si – Como é possível? Ela não se enxerga? em uma nítida manifestação do espírito da vila, todos de súbito imersos pela sombra da nuvem que passou no céu movendo a cena entre atos subentendido, assim, como se estivessem sendo contados em uma história. Foi aí que Ricardo contou sobre os travamentos e como se apagou aquele CD, fazendo gestos e se exalatando como se a coisa estivesse acontecendo ali mesmo. Disse que tinha perdido tudo, trabalhos de um semestre, que provavelmente fariam falta na faculdade, etcetera, conversavam assim, dois homens jovens, interessantes, ambos interessados nela, ora, precisava rever aquela idéia de que estava ficando velha. Em torno deles as ondas se faziam presentes no ar, e o mar se misturava no vento, e mesmo o horizonte se deixava compreender pela linha do muro de contenção enquanto Ricardo fala e espera que a senhora Lens esteja olhando para ele. Continua. Gerard o interrompe com a entonação típica de quem sabe o que está falando. Ricardo se tranquiliza, o alívio estampado em seu rosto, mas não, ela não está olhando para mim, está olhando para ele, em todo caso é claro que dava para recuperar e claro ele podia ficar tranquilo, esse novo sistema operacional tem dessas coisas. Vou lá à sua casa mais tarde se você não for sair e a gente vê. Perfeito.
Agora a senhora Lens estava entendendo o significado de manutenção de computadores da pousdada, ela, que nada entendia de computadores, e precisava entender, isso de internet se tornara essencial , descobriu então que poderia convidar Gerard para trabalhar com ela, porque não? Útil e agradável. Estavam sobre as pedrinhas que passaram de um momento para o outro a brilhar e refletir o futuro. Agora a revista é entregue, tem um abela reprotagem sobre Morandi e sua munúcia na natureza morta. Mas eu queria vida. Queria essa natureza viva, tua mão mais que a revista ela passou à minha. Dá uma olhada na matéria, com um meio sorriso cheio de significados. De repente agradece, obrigado Gerard, você é um amor, mas ambos entenderam Você é o meu amo. A pedrinhas se apagam. Ruídos de passos sobre pedrinhas. Vamos. Tchau Ricardo. Obrigado de novo, Gerard. Uma delicadeza terr se lembrado. Mas ela sabe que continuará sozinha. E nunca se acostumará com asw comodidades dos tempos modernos.
Acredito que esteja se aproximando o momento. Depois que as luzes da casa se apagaram, pude ver claramente. Voiu acreditar. Essas coisas acontecem. Amor à primeira vista, premonição, coincidência. A questão é quase outra.