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VOL. 2 | nº 2 Março de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373

Apoio:

Realização:

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

04 05 06 ARTIGO

Flores de Açucena

Crônicas

Troféu Hqmix passou dos trinta

Spes Unica!

Educados para Ler

Quintino Cunha

Ana Miranda

José Alberto Lovetro (JAL)

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira Raymundo Netto gestão de projetos Emanuela Fernandes análise de projetos MARACAJÁ

Cabaret

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Franklin Nascimento

08 10 11 chapuletadas

GENTE ILUSTRADA

CRISTALEIRA

Os símbolos da resistência poética de Dércio Braúna

Klévisson Viana

Francisco Carvalho: o poeta das coisas como as coisas não são

Lia Leite

João Dummar Neto presidência

Carlos Carvalho

Emanuela Fernandes assistência editorial José Alberto Lovetro (JAL), Ana Miranda, Lia Leite, Carlos Carvalho, Daniel Brandão, Raymundo Netto, Lene Chaves, J.J. Marreiro e Klévisson Viana colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”) Guabiras ilustrações Amaurício Cortez editor de design Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica

14 22 24 RADIADORA

mala de romances

Tiragostos

Aprendeu andar de moto, mas não sabia parar

J.J. Marreiro

Zélia Sales Bernivaldo Carneiro Kah Dantas

Arievaldo Vianna e Jota Batista

Raymundo Netto Daniel Brandão Lene Chaves

Carlos Vazconcelos Ricardo Kelmer Léo Prudêncio Rosa Morena Dércio Braúna

Artista da capa Guabiras

Karlson Gracie tipografia Maracajá [email protected] contato Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores. Este suplemento literário mensal é parte integrante do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, sob o nº 69/2018. ISSN 2596-1373 Todos os direitos desta edição reservados à:

Lia Sanders Frederico Régis Bruno Paulino Nina Rizzi Ângela Escudeiro Nirton Venâncio

2

Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br | [email protected]

Do Alpendre

Maracajá, a publicação modernista, suplemento literário do O POVO, vai circular amanhã. Jornal O POVO* nº 356, Ano II, página 1, Fortaleza, Ceará, 6 de abril de 1929 Deve circular amanhã Maracajá. É um suplemento literário do O POVO. Maracajá é propaganda do nosso valor mental modernista. É publicação feita para outros centros, onde a cultura intelectual e a leitura da plateia tenham passado das baladas de Rostand. Ou mais: dos romances de Camilo com os seus estudos de genealogia.

oje, nós podemos dizer – graças à inven-

Como se vê, Maracajá saiu antes do tempo, para o

ção estapafúrdia e impensável em outros

Ceará. Por isto mesmo, aconselhamos que não a comprem: nem o menino entusiasta do cowboy, nem a melindrosa, nem o almofadinha, nem o velho viciado da francesinha. Entretanto, se algum mortal quiser se arriscar, leia Maracajá.

tempos: a internet – que a Maracajá é, sim, PARA TODO MUNDO! Você, leitor(a), tem em suas mãos o segundo número dessa ousada publicação que não sofre de Alzheimer e, portanto, tem boa memória, sendo capaz de lembrar-se e de reconhecer a todos: dos mais longevos aos talentos contemporâneos.

Mas, se vier ao leitor o arrependimento, ponha-o

Nesta edição, continuamos a abrir a Cristaleira afetiva, por Carlos

na cesta de suas tolices. A redação de Maracajá

Carvalho, trazendo à luz outro poeta: Francisco Carvalho, que, como outros

não é culpada.

autores cearenses, mesmo com elevada qualidade literária, pela falta de um

[...]

mercado editorial atento, tem a sua obra acolhida apenas em livros publica-

É muita tripa por um vintém.

dos em vida. Há quem jure de pés juntos: quem morre por aqui, corre o risco

Outra cousa: devido à grande remessa de Maracajá,

de morrer “de com força”. Daí, já prenunciava o Carvalho: “Quando os poetas

feita hoje, para o Sul e para o Norte, talvez as cen-

morrem/os seus versos os acompanham.//[...] Quando os poetas morrem/ as

tenas que ficaram para Fortaleza não cheguem

suas almas fecham todas as portas/ e as metáforas se calam.”

para ser vendidas na rua. Quem souber ler deve procurar Maracajá nas agências de jornais. Quem não souber ler não gaste o seu cruzado com a revista. Maracajá não é para todo mundo, não. (*) Na época o jornal O POVO era composto de 8 páginas. Localizava-se na rua Barão do Rio Branco, 239. O diretor era Demócrito Rocha e Paulo Sarasate seu redator-secretário.

Também nessa edição, a participação da escritora Ana Miranda e de José Alberto Lovetro (JAL). O microfone aberto de nossa Radiadora está tinindo e, aqui, outros mimos aos, esperamos, fiéis leitores. Não nos esqueçam e não se esqueçam de compartilhar o nosso sítio eletrônico e lancem a Maracajá (revista e videoentrevista) ao mundo: fdr.org.br/maracaja Raymundo Netto Curador e Editor

3

Artigo

Artigo

Troféu Hqmix passou dos trinta izem que quando um even-

A importância de haver uma premiação anual no Brasil

to passa dos cinco anos já

não é apenas para valorizar o trabalho de milhares de artistas,

está em bom caminho para

mas também pela força na linguagem popular. São cerca de

continuar por pelo menos

20 milhões de leitores de quadrinhos ativos no Brasil, conside-

mais uma década. Passamos

rando que quase toda a população do país já leu algum gibi na

em 2018 dos 30 anos e chegamos agora aos 31 com o reconhe-

infância ou em algum momento na vida.

cimento dos profissionais da área e da mídia, em geral. Não foi

Serginho Groisman, nosso padrinho desde o nascimento

uma fácil caminhada por esse tempo todo não fosse o apoio de

do evento em seu programa TV MIX 4, na TV Gazeta (SP), nos

instituições como o Sesc, em particular o Sesc Pompeia, que

anos de 1980, todos os que participaram até hoje da Comissão

possibilitou a grandiosidade de enaltecer autores, editores e

Organizadora e os jurados especializados nos levaram a esses

profissionais desse importante segmento da cultura no Brasil.

mais de 30 anos de amor à causa dos quadrinhos. Valeu a pena

Nesses 30 anos, foram 1.271 troféus entregues aos ven-

e sempre estaremos tentando aprimorar mais e mais o nosso

cedores por uma votação nacional entre os próprios autores,

Troféu HQMIX.

editores e pesquisadores da área dos quadrinhos. Nesse período

Um agradecimento a todos que entenderam que não im-

houve muitas mudanças acompanhando o movimento dinâ-

porta quem vença ou quem perde, o que importa é mostrarmos

mico do mercado editorial. Foi o primeiro troféu no mundo a

para todos e para a mídia que existimos, que somos muitos pro-

reconhecer os trabalhos universitários de pesquisa e a premiar

fissionais e que produzimos quadrinhos da melhor qualidade.

publicações digitais. Isso, além de mudar, a cada ano, a estatueta onde homenageia um personagem brasileiro de destaque na história de nossa produção, desde Angelo Agostini com o seu “As Aventuras de Nhô Quim” de 30 de janeiro de 1869.

4

José Alberto Lovetro (JAL)

Flores de Açucena

Spes Unica!

Cabaret

Morto, dentro da fria sepultura,

Quando eu cheguei no salão sonoro,

Sem te poder falar?

Aparatoso, à noveau-riche,

E tu que me amas, boa criatura, 

A orquestra ria um riso violento de cascata:

Indo me visitar... 

Caracolava um maxixe.

Banhada de suspiros, de soluços, 

E homens vestidos de piche,

Desmaiada, talvez...

E mulheres com vestígios de vestes sobre si,

Muita vez reclinada, até de bruços, 

Pulavam no soalho de borracha.

Na altura dos meus pés...

(Ainda há pouco pisavam sobre brasas Em charlestonizações epiléticas de cabritos monteses...)

Pedindo a Deus o meu viver eterno Junto das glórias suas;

Elas tinham olheiras fumarentas,

Que me livre das penas do inferno, 

Olheiras de tardes londrinas

E a chorar continuas,

E olhos de polimento...

Lembrando nossa vida, a todo instante,

Franklin Nascimento

Repassada de dor...

O Canto Novo da Raça, 1927

A lembrar-te que fui o teu amante  — O teu único amor!   Mal pensando na horrífica caveira,  Em que me transformei, Exausto de fadiga, de canseira,  Imaginar não sei...   Para evitar essa hora amargurada,  Esse quadro de dor, tão verdadeiro,  Deus há de ser servido, minha amada,  Que tu morras primeiro!... Quintino Cunha Verve Cearense, de Renato Sóldon, Rio de Janeiro, 1969  

5

Crônicas

Educados para Ler ui uma adolescente rebelde, sofria com a falta de liberdade que a ditadura impunha a minha vida e a todo o país. Participei da luta dos estudantes em Brasília, recordo os comícios relâmpagos, as palavras de ordem, as reu-

6

escolas públicas, na cidade onde residem os meus netos, Santa Mônica, encostada a Los Angeles.

niões secretas, os olhos que ardiam e derramavam lágrimas ao

E um dos aspectos que mais me encantam na educação

sentirem gases, as noites sem lua passadas em alguma peque-

das crianças é o valor dado à leitura. Em todas as salas de aula

na sala a rodarmos num mimeógrafo as nossas ideias escritas

há uma estante de livros, e quando as crianças chegam, antes

com entusiasmo e fervor. Lembro de juntar-me a colegas de

do início das atividades, elas sentam num tapete com almofa-

escola diante de alguma instituição para gritarmos que fos-

das, pegam algum livro na estante e o leem, ou, quando ainda

sem embora os “gringos”, considerados nossos inimigos. Por

não sabem ler, passam as suas páginas, olhando as imagens e

uma ironia da vida, talvez uma lição, meus netos nasceram

as letras. A professora senta com os alunos, lê o texto, aponta

nos Estados Unidos.

as figuras, comenta, e participam todos de alguma forma de

Dessa forma, passei a viajar todos os anos a aquele país,

leitura. Dessa maneira, as crianças aprendem desde pequenas

e passei a amar a cidade dos meus netos. Eles nasceram em

o que é um livro, sabem reconhecê-lo, sabem o que existe den-

Los Angeles, na Califórnia, um dos estados americanos que

tro dele, tomam intimidade com ele, adquirem o hábito e ex-

mais se parecem com o Brasil, talvez pela forte influência

perimentam a sua convivência prazerosa. Por diversas vezes

latina dos mexicanos que ali residem, numa terra que já foi

vi um de meus netos tomar distraidamente um de meus livros

mexicana, talvez pelo cosmopolitismo que se expressa numa

e passar as páginas, mesmo sem compreender as palavras em

convivência amigável entre nacionalidades e línguas. Mesmo

outra língua ali contidas.

com as experiências de minha adolescência, pude reconhecer

Nas escolas há inúmeras atividades relacionadas aos li-

aspectos formidáveis nessa sociedade que se guia pelo direito

vros, como feiras, quando livrarias se instalam por alguns dias

à liberdade. Um desses aspectos é a educação oferecida pelas

dentro da sala, e os pais são sempre chamados a participar, a

tende a eles o interesse e a convivência

ferente aquele livro, com quase apenas

com os livros. Também são chamados a

ilustrações, e eles se surpreenderam de

ler para os filhos pequenos, e a preen-

eu achar que era um livro. “Isto é um gibi,

cher entrevistas sobre a leitura realiza-

vovó”, disseram. O gibi deles tem o forma-

da pelas crianças, anotando suas obser-

to de livro, com lombada, capa dura e vo-

vações, e isso os leva a também lerem

lume de páginas. No Brasil, ao contrário,

os livros indicados a seus filhos. Claro,

procuramos dar outros formatos ao que

em todas as escolas há uma biblioteca

deveria ser livro, como os livros curricu-

e as crianças são levadas a frequentá-la

lares, que são transformados em aposti-

para emprestar livros ou para o silen-

las. Nas universidades a leitura também

cioso ambiente de leitura.

é intensa, lembro-me de uma estudante

Durante as férias as crianças

de literatura de língua portuguesa em

devem ler. Lembro que meus netos, bem

Stanford, onde fui visitante, que tinha

pequenos, traziam livros de quatrocen-

apenas dois ou três meses para ler e es-

tas, seiscentas páginas para serem lidas

crever uma monografia sobre o Grande

nos dias de férias, e precisávamos pla-

sertão: veredas, de nosso Guimarães

nejar o tempo e negociar, entre piscina,

Rosa. Ela já havia percorrido as páginas

praia, jogos e leitura. Além dos livros de

maravilhosas de alguns dos nossos clás-

leitura obrigatória, temas de perguntas

sicos literários, como Memórias do cárce-

posteriores, meus netos traziam um

re, de Graciliano Ramos, e Os sertões, de

livro para a leitura de prazer, mas que

Euclides da Cunha.

também eram depois comentados em

Seriam inúmeros os relatos que

sala, ou em formulários. Aos poucos os

eu poderia fazer sobre esse grande es-

Não posso, infelizmente, dizer

alunos iam sendo ensinados a escrever

forço que a educação de meus netos fez

que meus netos se tornaram leitores

pequenos ensaios sobre os livros lidos,

em favor de criar neles o gosto e o amor

ávidos, nem que são apaixonados por

textos que eles chamam de projetos.

pelo livro, pela leitura, pela literatura,

livros como a vovó que, por amor aos li-

Observei que naquele país há um

pela ficção. Embora seja um estado que

vros, tornou-se escritora. Mas vejo que

imenso valor dado aos “tijolões”, como

se fundamenta na força da imagem,

eles, quando precisam ler algum texto,

aqui chamamos os livros com mais de

com a presença profunda do cinema

compreendem perfeitamente os sig-

quatrocentas páginas. Imagino que isso

em todos os aspectos da conformação

nificados, e o leem sem hesitação, sem

tenha uma origem religiosa, os protes-

social, é a terra do cinema, eles amam

esforço. Adquiriram uma escrita muito

tantes cultivam o amor pela Bíblia, e a

cinema, respiram cinema, vivem o ci-

bem construída, são capazes de escre-

Bíblia é o modelo de livro para eles. Esse

nema, o estado tem um índice de leitu-

ver textos primorosos. E aprenderam

amor pelo livro os leva a darem forma

ra bastante elevado, sem comparação

a pensar, organizando as ideias, conec-

de livro a todas as publicações em que

com os nossos discretos números de

tando-as, expressando-se com clareza.

isso seja possível. Certa vez vi um livro

livros lidos por brasileiros.

São os efeitos da leitura.

Crônica

de meus netos e comentei como era di-

esse grande esforço que a educação de meus netos fez em favor de criar neles o gosto e o amor pelo livro, pela leitura

comprar, a doar exemplares, o que es-

Ana Miranda

7

Chapuletadas

Chapuletadas

Os símbolos da resistência poética

de Dércio Braúna

8

poeta Dércio Braúna es-

A pedra, cuja simbologia fixa um signo permanente na po-

treou a sua jornada literária

esia de Braúna, enleva a labuta do escritor que constrói sua obra

em 2005, com o premiado

martelando duramente o material bruto da linguagem, até trans-

O pensador do jardim dos

formá-lo em beleza. A pedra novamente aparece em Selvagem

ossos. Nele a sua veia de his-

língua do coração das coisas (2005), mas em outra esfera, a dos

toriador deixa transbordar uma linguagem plena de materia-

encarcerados que escrevem com pedras nas paredes do cativeiro,

lidade social, em que os sujeitos principais são o “trabalhador”,

aludindo ao aprisionamento da alma e do próprio corpo que se

o “inventor” e o “operário” como agentes da transformação do

vê oprimido pelas instâncias do poder, resistindo na busca por

“caos” e da miséria social. O autor transpassa duas vozes prin-

liberdade através da força da expressão artística e política.

cipais: uma intimista, voltada para a subjetividade e o aspecto

O peso dos “destroços” do rumo desastroso a que a humani-

ontológico; e outra engajada, externalizando tanto o pesar de

dade chegou, é confessado em Metal sem húmus (7Letras, 2008).

uma perspectiva distópica quanto um convite à mudança so-

Num relato sobre o “tumulto da existência pequena/ no meio do

cial. Assim, mesmo que ao primeiro lançar de olhos seja ten-

mundo imenso”, a solidão cósmica está por todos os lados e se

tador cair na angústia e na disforia, a realidade é que nesse

mostra com mais notoriedade numa sequência de poemas me-

jardim de “cinzas”, a esperança é tão perene quanto a relva que

tafísicos, que diante da desolação não se resignam e convocam à

ressurge em “novas e titânicas flores”.

resistência: “Cantem./ Sob o sol férrico do mundo/ cantem!”.

A poesia de Braúna envolve-se

Assim, em seu quinto livro de poemas,

com a busca constante por alteridade,

lançado em 2017, Como cavalos fatiga-

marcada pelo verbo “milagrar”, referin-

dos abrindo um mar, Braúna demonstra

do-se não propriamente a uma ligação

que a língua, apesar de exaurida pelo

mística, mas ao movimento solidário da

esgarçamento operado pela cultura, é

humanidade que realiza o que o deses-

forte e ainda muito resiste.

pero nomina impossível. Em seus ver-

Seus poemas percorrem um traje-

sos, a integração também compreende

to que parte da simbologia inorgânica da

a união entre os amantes, um porto de

pedra ao organismo vivo e impactante

salvação “contra o aniquilamento da

do cavalo bravio; vem do puro concreto

beleza”, presente em “A tarde” (Selvagem

e vai para a abstração da alta erudição

língua do coração das coisas) e “Sobre a

de seus dois últimos títulos. Uma poesia

tarde, a erva” (O pensador do jardim dos

existencialista, forte e combativa, erudi-

ossos). O momento crepuscular é evo-

ta em suas trocas com grandes pensado-

cado para os amantes como uma fron-

res, sem derrocar em pedantismos que

teira no tempo, uma ponte entre o dia e

esvaziam o lirismo. A congregação de

a noite, um atravessamento que aponta

pensadores e símbolos libertários pro-

para a transcendência do sofrimento

movida por Dércio Braúna revigora a

pela experiência erótica.

grande voz do mundo, e sua resistência

Já Aridez lavrada pela carne disto

em prol de uma vida mais poética.

(Confraria dos Ventos, 2015) é revestido pelo diálogo com inúmeros autores,

Lia Leite

indicando o sujeito referenciado nas

Editora da revista Entrelaces (Revista

vozes dos intelectuais que conversam

de Literatura da UFC) e editora-che-

com Braúna numa série homônima de

fe da revista Propulsão. Mestranda

poemas e solilóquios, estabelecendo

em

um grande discurso poético, dissolven-

Universidade Federal do Ceará (UFC).

do o ícone do autor para reverenciar

[email protected].

Literatura

Comparada

pela

a palavra, e desfazer a ideia de que “não há força nos nomes que sustentam a ordem das coisas”. Elucidando

Para ler o autor:

as ordens, as instâncias do poder e

Metal

as suas reverberações na poesia. Em

7Letras, 2008).

Selvagem..., Braúna já tematizava a

Aridez lavrada pela carne disto

força dos nomes, metaforizando a pa-

(Confraria dos Ventos, 2015).

lavra como cavalos selvagens, tal a

Como Cavalos Fatigados Abrindo

impossibilidade de apreender esse uni-

o Mar (Moinhos, 2017).

sem

húmus

(Editora

verso indômito através da linguagem.

9

Gente Ilustrada

Klévisson Viana Quixeramobim – 1972 Ceará | Brasil Klévisson Viana é cordelista,

cartunista,

produtor da

xilogravador,

cultural

Tupynanquim

e

editor Editora.

Como autor, publicou 30 livros e quase 200 folhetos de Literatura de Cordel, sendo ganhador do Prêmio Jabuti. Além dos quadrinhos, seus trabalhos grassam pela televisão e em adaptações para o teatro. Destaca-se o folheto A Quenga e o Delegado, transformado em episódio da série Brava Gente da Rede Globo. Tem trabalhos publicados em diversas editoras nacionais e internacionais e ganhou 3 Troféus HQMIX. A ilustração aqui apresentada pertence à obra As Aventuras de Dom Quixote: em versos de cordel (2005). Uma adaptação quadrinizada e cordelizada da obra original de Cervantes.

10

Cristaleira

Francisco Carvalho: o poeta das coisas como as coisas não são

poeta Francisco Carvalho, nascido em Russas (CE), no ano de 1927, partiu para outras paragens no ano de 2013. Durante seus oitenta e seis anos de vida escreveu mais de trinta livros de poesia e alguns outros de exercícios literários. Passados quase seis anos da sua morte, sua obra poética continua despertando interesse tanto do leitor comum quanto dos leitores especializados. Desse segundo grupo, cito especificamente os trabalhos Três dimensões da poética de Francisco Carvalho (1996), de Ana Vládia Mourão Aires, e Francisco Carvalho: uma poesia de Tanatos e Eros (2000), de Maílma de Sousa. Mas ainda é muito pouco, quando levamos em consideração a amplitude poética da obra do autor, a qual se constitui como um verdadeiro argos de cem olhos no universo da literatura produzida em língua portuguesa. A obra de Francisco Carvalho alcança a mesma qualidade poética daquela produzida por gigantes como T.S. Eliot, Seamus Heaney e Konstantinos Kavafis, por exemplo. Contudo, como se pode constatar, é mais fácil encontrar um livro do poeta grego Kavafis do que um Carvalho nas livrarias do Brasil, especificamente do Ceará. Isso não impede, no entanto, que a poesia de Francisco Carvalho se mantenha como uma das mais perfeitas representações da poesia em língua portuguesa, impactando aqueles que deitam olhos sobre seus poemas. Por outro lado, a ausência dos seus livros nas livrarias brasileiras impossibilita que mais leitores e pesquisadores possam se debruçar sobre tão rica obra.

11

Cristaleira

O primeiro livro de Francisco Carvalho, Cristal da memória, foi publicado no ano de 1995. Desde lá, o poeta passou a publicar praticamente um livro a cada ano. Embora alguns desses trabalhos ainda possam ser encontrados, outros já se tornaram raros, como é o caso de Canção atrás da esfinge (1956), Do girassol e da nuvem (1960), Rosa geométrica (1990), Flauta de barro (1992) e O tecedor e sua trama (1992). As temáticas observáveis na poesia de Francisco Carvalho abarcam aspectos populares e eruditos, resultando num fazer poético de altíssimo nível literário. Os próprios títulos dos livros do poeta já podem ser considerados verdadeiros poemas. Como: O silêncio é uma figura geométrica (s/d), Barca dos sentidos (1989), Girassóis de barro (1997), Romance da nuvem pássaro (1998) e A concha e o rumor (2000). Como se iniciar na obra de Francisco Carvalho? Uma boa forma é se deixar abduzir pela leitura de Memórias do espantalho: poemas escolhidos (2004), uma seleção feita pelo próprio autor, englobando poemas do livro Os mortos azuis, de 1971, até Centauros urbanos, de 2003. Ao final da leitura, o leitor compreenderá, então, a razão de se afirmar que a obra de Francisco Carvalho se erige como uma obra poética de qualidade universal, prenhe de palavras, que pulsam no peito e escorrem pelas veias. Carlos Carvalho Professor de literaturas de língua inglesa na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (Feclesc) da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Autor de Memória de peixe (crônicas). [email protected] Para conhecer Francisco Carvalho Nascido em Russas – CE (11.06.1927) e falecido em Fortaleza – CE (04.03.2013), Carvalho é um dos maiores nomes da poesia do estado, com profícua produção e merecedor de prêmios, como o Nestlé de Literatura, em 1982, com Quadrante solar, e o da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1997, com Girassóis de barro. Autor de mais de 30 livros, nunca trabalhou com editoras comerciais, sendo a sua vasta e original obra desconhecida ainda por muitos. Sugestão de Leitura: Memórias do espantalho: poemas escolhidos, 2004, Imprensa Universitária, Fortaleza – CE.

12

Poema para escrever no asfalto Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração  e o quanto sobra do naufrágio  das nossas utopias. Agora eu sei o que significa a fala dos mortos  e esta parábola soterrada  que jorra das veias da pedra. Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras  e este pacto de sangue  com as metáforas do tempo. Agora eu sei o que se passa no coração de treva  e do homem que morre mendigando  a própria liberdade. Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido  com a nossa pobreza  e com a solidão de ninguém. Agora eu sei que é preciso agarrar a vida  como se fosse a última dádiva  colocada em nossas mãos. Francisco Carvalho

Os pobres estão se evaporando  à vista de todos. 

Cristaleira

Discurso da ira 

Gravura Nordestina A Eduardo Campos

O tempo vai passando  os pobres vão se decompondo 

Este sol é um deus feroz 

Os bichos magros cochilam

seus rostos são apagados pelo vento 

que dardeja e que incendeia 

à sombra dos juazeiros

e da memória dos computadores 

os esqueletos dos bois.

à espera de alguma brisa.

mais de suas caveiras sorridentes 

As redondas oiticicas

O canto da juriti

afugentando os parasitas dos burocratas 

são carpideiras de luto

trespassa as almas dos homens

nas repartições públicas. 

chorando a morte dos brutos.

com seu punhal de vizir.

Os pobres estão sumindo 

Em voos rasantes, ao léu,

O balido das ovelhas 

aos olhos de todos. 

os urubus mais parecem 

assusta as aves e os ninhos 

O tempo os vai tornando 

anjos expulsos do céu.

que elas fizeram nas telhas.

Enquanto isso, os poderosos 

Gaviões roçam de esguelha 

Entre esquivâncias e astúcias 

sacodem suas nádegas fotogênicas

as asas martirizadas 

jumenta se entrega ao macho 

nas costelas das ovelhas.

que entorna o vinho das núpcias.

Cigarra, ali, devaneia. 

Ao mugido de uma rês 

Morre de tanto cantar 

percorre toda a paisagem 

em sua concha de areia.

um clamor de viuvez.

Uma rajada de vento

Nas varandas das fazendas 

sacode os gonzos das portas

as redes brancas desenham 

como se fosse um lamento.

corpos que são oferendas.

Os leitos secos dos rios 

Ninguém que ouse ou que vá 

são tumbas de faraós 

toldar os sonhos de linho 

ou de monarcas fenícios.

das moças no copiá.

Quando o sol chega no vértice 

Francisco Carvalho

até que ninguém se lembre 

cada vez mais parecidos com a morte. 

fazem belos discursos para a distinta plateia  e afagam avidamente as orquídeas.  Francisco Carvalho

os mandacarus acendem  os seus fanais de quermesse.

13

Radiadora

Radiadora

Cama de Gato O tio tinha dedos ágeis e uma cabeça engenhosa. Consertava

importa o calor? Era branca com florezinhas cor de rosa. Mas

tudo o que via pela frente: a torneira do banheiro, o ventila-

ficou apertada, marcando o que seriam os seios. Ele olhou de-

dor, a fechadura. Uma vez ajudou a menina a fazer uma tige-

morado, procurando o efeito. Que importa?

linha de barro. Seria para o gato beber leite, se gato houvesse. Então nasceu a promessa.

E os doces, a melhor surpresa, espalhados displicentemente sobre a cama. Só pra você, ele disse, como se cochilasse,

E tinha propósito. Trouxe um gatinho tão bonitinho...

já colocando um beijo em sua boca. Brigadeiro, pirulito, chi-

Tão inocente... Gostoso o contato com a pele morna, macia. Tão

clete, maria maluca, suspiros. A porta gemeu, fechou-se. Os

frágil... Cautela!

lábios rosados de k-suco de groselha, azedo de doer. A bala de

Depois do gato, a cama de gato. Trouxe o cordão, prendeu as duas pontas com um nó cego e começou a urdir a rede entrelaçando o fio entre os dedos. Ela não levava jeito para a brincadeira, mas ele tinha dedos hábeis. E muita paciência.

gengibre entrou queimando, a baba viscosa acridoce, a nódoa na saia, indelével. Lá fora, o barulho da televisão abafava tudo. O gato dormia no sofá. No chão, a tigelinha, quebrada, o leite derramado.

Nem era Natal nem nada, e ele chegou com a televisão.

Onde estava a mãe que não via aquilo? Ora, havia o bebê

De segunda mão, catorze polegadas. Arrumou a mesinha, re-

e seus cueiros, os menores e seus narizes emporcalhados, o

gulou a antena e os canais. Desenho animado, novela, prega-

tanque e sua montanha de roupas sujas, o fogão e suas panelas

ção, programa de auditório no domingo. Uma diversão para os

cozinhando confiança em banho-maria que fumegavam, dei-

sobrinhos, um descanso para a cunhada. Um atenuante.

xando tudo coberto de fumaça.

O tio era mesmo generoso. Trouxe uma prenda conse-

14

guida em meio às doações vindas da América para os irmãos

Zélia Sales

da Assembleia de Deus. Era uma camisolinha de flanela. Que

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Radiadora

Vingança As  duas semanas de Myckey Ronney abrindo picada para

hora da partida para a segunda viagem ao Piauí. Momento em

levantamento topográfico sob o escaldante sol do Piauí não

que o motorista da empresa o aguardava impacientemente

podia mesmo ter deixado seu único par de meias em outras

na calçada e Karynny Keytty se mantinha em pé de guerra.

condições. Com o suor descido corpo abaixo e nada de água e

E assim, enquanto jogava de modo aleatório a pouca baga-

sabão durante toda a jornada, o chulé era de arrancar vômito

gem num saco, Myckey Ronney ouviu a cantilena da mulher.

em urubu.

Já no meio daquela semana, ela seria submetida à cesaria-

Até que Karynny Keytty se esforçou, mas, depois de gas-

na para trazer a filha à luz do mundo. Precisava de dinheiro

tar quatro baldes de água, uma barra de saponáceo “Pavão” e

para, entre outros gastos, comprar as fraldas. Afinal, não iam

mantê-las um quarto de hora mergulhadas em água ferven-

bem com o “k”, os “ipsilones” e a consoante dobrada do belo

te com extrato de limão, bicarbonato de sódio e detergente,

nome Shakyra Ayshylla cueiros engendrados com saco de fa-

ela concluiu: “Como dizia meu pai, quando era motorista do

rinha ou de açúcar... 

Coronel Zenon Pedreira, catinga aqui é igual a grilo em rural velha: não tem quem acabe nem deixe pouco!”. Com esse pensamento e os músculos fatigados de tanto puxar água do cacimbão para aquele e outros afazeres da casa

Intuitivamente o marido ainda coçou os bolsos e logo se certificou de que tinha gasto todo o saldo da quinzena na farra daquele fim de semana. Então, fez cara de pasmo e depois desconversou: “Onde estava o seu par de meias?”.

e as munhecas cansadas do esfrega-esfrega, a mulher resolveu

Prontamente informado de que as famigeradas peças já

descartar o par de meias na lixeira, donde esticou a visão até

embrulhavam o estômago de catadores do lixão da cidade, ele

o bar da esquina mais próxima e avistou o marido. Rodeado

não pensou duas vezes: sacou do cós da bermuda a navalha

de parceiros, ele era pura faceirice. Bebia e contava vantagens

caprichosamente afiada e, bufando de raiva, correu até a mu-

sobre o seu trabalho interestadual.

lher, arrancou-lhe das mãos o coelhinho de pelúcia (presente

Indignada com a situação, ali mesmo da calçada, ela sol-

dos futuros compadres, Mayara Kelly e Kennedy Krystyno)

tou o verbo em alto e bom som para a vizinhança ouvir e co-

e pôs fim à discussão. Primeiro transformou em caneleiras as

mentar: “Venha já fazer o almoço, seu vagabundo, que eu não

orelhas do falso leporídeo. E desse modo, certo de que, pelo

aguento mais ficar em pé! Vou me deitar com as pernas pra

menos na etapa seguinte do desbravamento da mata piauien-

cima pra ver se Shakyra Ayshylla sossega. A peste da menina

se, suas tíbias e adjacências estariam protegidas contra carra-

não para de chutar meu bucho”.

pichos, espinhos e insetos, ele resolveu outro problemas que

Para mostrar aos companheiros de copo que não lhe caía

tanto afligia a mulher. Pois, com a perícia de um cirurgião,

bem ser mandado pela esposa, o desafiado cônjuge não deixou

abriu o abdome do desorelhado animal, estendeu-o em forma-

por menos. Estendeu sua pândega por outros bairros da cida-

to de fralda, lançou-o no colo da esposa e partiu como se nada

de, só retornando para casa na segunda-feira seguinte, ocasião

tivesse acontecido.

em que réstias do sol nascente penetravam pelas frestas da

Bernivaldo Carneiro

janela, aquecendo a rede de sua grávida e lembrando-lhes a

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15

Radiadora

Inhamuns: prelúdio Sugou-me a alma pelo meio das pernas. Era uma festa! O cigar-

sobre a toalha amassada, provocando hematomas que só se-

ro já queimando a boca e, na alumiada escuridão, valsavam

riam sentidos depois. Chutei o para-choque do carro à minha

sombra, vento e fumaça; e a chama engolia a erva e o papel,

frente e atrás dele e falei, muito alto e muito longe, sobre o des-

movendo-se rapidamente em direção aos meus lábios.

fecho que se aproximava.

Ele dizia que me amava. Eu só escutava. Da metade para lá, o céu se estirava feito uma caverna comprida onde se escondiam estrelas tristes sobre aquele campo sem nuvens, madrugada plena e sertaneja à beira da CE-020. E a língua vasculhava as reentrâncias. Re. En. Trân. Cias. Que palavra bonita, cheia de lugares para umedecer, pensei,

enquanto eu gozava. Eu só escutava. Então eu observei as estrelas uma última vez, na tentativa de tornar inesquecível aquele encontro fora do tempo e da dimensão em que vivíamos e na qual eu tinha me tornado jornalista e ele motorista.

junto com os anjos caídos. Agarrei com uma das mãos os

Faltava pouco para que chegássemos em casa e eu revi-

cabelos dele, recém-cortados, e levei o cigarro a terra com a

sitasse os fantasmas da minha – da nossa – infância e que eu

outra, gemendo alto com a morte que se aproximava. Naquela

tinha enterrado ao pé do poço profundo, onde minha vó dizia

noite, nenhum mal nos encontrou. E eu compreendi, sem

que dava sorte se eu jogasse uma pedrinha polida e desejasse.

medo, nem vergonha, que aquele era um homem a ser amado.

Nós dois desejamos. Eu fui embora, consegui diploma, salário

Depois de dar ouvido a mais um dos meus pedidos e des-

e passaporte carimbado. E ele? Ele dizia que me amava. Mas

bravar uma estrada desconhecida de poeira estelar, uniduni-

16

Que me amava, que me amava, que me amava, ele dizia,

eu só escutava.

tê, coroou-me também rainha dos Inhamuns, com frio, terra

Partimos em silêncio e com o peito esmagado pelo de-

e saliva. Foi a primeira vez que fui amada no sertão de onde

safortunado reencontro. Crianças pequenas esperavam em

fugi na adolescência. E foi a primeira vez que fui tomada por

casa. Amores não morriam. Desejos se concretizavam, mas

um homem que mal sabia ler, mas que dizia, num português

faltava. Onde estavam os deuses que tinham escolhido quais

nítido, forte e silabado, eu amo você, ele dizia. Eu só escutava.

sonhos realizar?

Eu já não sentia mais frio, porque não havia temperatura

Kah Dantas

fora de mim. Tremiam as pernas e os pés; o resto se contorcia

[email protected]

Não passo um dia sobre a terra sem me lembrar de Tobias. Ele

cidade de merda. Não teria esperado que o destino o ferrasse.

teria andado comigo, nadado, saltado da ponte e soletrado a

Teria concluído o curso de Direito, para alegria do papai, e jamais

mesma cartilha burra da professora Dolores. Ele teria cresci-

teria abandonado a Beatriz Loreto, filha do banqueiro carcama-

do comigo e principalmente estudado no patronato, e sería-

no, para desespero da mamãe. E por falar na mamãe, descobri

mos dois iguaizinhos sob o paletó de formatura das primeiras

que depois do meu nascimento e da morte do meu irmão, ela

letras. A dulcíssima irmã Salete nos exibiria como atração à

ficou debilitada e selada para a maternidade. Por isso investiu

parte. Em vez de uma, seriam duas gravatas borboletas e dois

tanto na minha formação, esquecendo-se de si mesma.

miquinhos de primeira fila com o missal na ponta da língua.

Será que o outro Tobias teria permitido a ruína dos ne-

Aos domingos, na capela, encarnaríamos dois anjinhos a au-

gócios do papai? O velho terminou seus dias fitando os bicos

xiliar o padre Cosmo na celebração da novena. Tocaríamos as sine-

dos sapatos, sem dizer palavra. Mamãe comentava, em dias de

tas e prepararíamos as hóstias. Ele jamais descobriria que os bolsos

visita ao asilo, ou me jogava na cara, não sei ao certo.

de nossos casacos estariam cheios delas para dividirmos, lá fora.

Não passo um dia sem me lembrar de Tobias, e dos ir-

Eu não seria um solitário na arena da vida. Brincaríamos

mãos Tedesco, e do sorriso da Mariana, e do olhar do nosso pai.

e brigaríamos em par. Seríamos dois contra os irmãos Tedesco,

Será que o outro Tobias teria experimentado cocaína, vendido

que me partiram a cara e me legaram a chance de descobrir

na faculdade, visitado o inferno e ressuscitado para a monoto-

que a fúria não teme a ruína.

nia da existência? Duvido. Certamente ele não amargaria esta

Eu não teria me ferrado sozinho quando fui visto que-

solidão perpétua, fumando e cuspindo e bocejando tédio. Ele

brando as vidraças do coronel Gondim ou escalando o campa-

não teria nem motivo para atormentar a mente com pensa-

nário da matriz para bater o grande sino à meia-noite.

mentos vadios assim, de quem joga paciência com as paredes e

Todos os dias me lembro de Tobias. Qual de nós teria

Radiadora

Dois iguaizinhos

rabisca tolices num pedaço de papel.

conquistado primeiro o coração da Mariana, filha da vizinha?

O outro Tobias, a esta hora de uma sexta-feira, estaria

Poderíamos ter brigado por ela, disputado seu amor numa

sentado ainda na cadeira giratória da diretoria, delegando as

memorável partida de porrinha ou no porrete. O que não evi-

últimas ordens da semana, ou na poltrona do avião, vendo

taria que ela se precipitasse no vazio, como fez.

o mundo lá de cima e pensando em se apoderar de uma fatia

Meu nascimento se seguiu à morte de Tobias. O que serviu

dele. Não, o outro Tobias seria mais humano. E mais família.

de consolo para o papai, que queria pelo menos um filho varão.

Provavelmente estivesse voltando para casa, para a companhia

E eu ganhei o nome do morto. O que mais terei roubado dele,

da esposa e dos filhos. Atiraria a valise sobre a cama, abraçaria a

além do nome? O peito materno, o berço, o lugar à mesa, a temí-

companheira e, sem falar, diria o quanto a ama. Desta vez, pos-

vel cadeira do dentista? Teria a Danusa se casado comigo, se ele

sivelmente dissesse isso após o jantar em Lisboa ou Paris.

existisse? E teriam acaso se desquitado? Ai, perguntas. Hoje sou

Todos os dias me lembro de Tobias. Talvez ele não entras-

duplo, gêmeo com um morto que vive em mim. O outro Tobias

se em negócios escusos. Se por acaso o fizesse, e tudo indica

com certeza teria sido um pai mais dedicado, menos egoísta, mais

que seria por minha causa, teria procurado soluções mais pa-

preocupado com o lar do que com as coisas fugidias. Em vez de

catas, recuaria um passo, não sairia logo puxando o gatilho

manifestos e poemas inúteis, escreveria petições e memoran-

uma, duas, três vezes contra os irmãos Tedesco.

dos e saberia dar nó em gravata. Acho até que ele não dançaria tão bem quanto eu, mas certamente seria um gênio da bola e do

Carlos Vazconcelos

xadrez. Algo me diz que ele teria ido embora mais cedo daquela

[email protected]

17

Radiadora

Aerocorpo

Meruanhos

Medo

O corpo que ao espaço se atira

para Cláudio de Oliveira

Não o assustava o grito absurdo

É a silhueta em voo do tempo,

Do vento em preparo de vendavais

A matéria tornada vento

I

Não o assustava o pio desesperado

Que em seu bailado se eterniza.

caminhando na



É o segundo visto em suspenso

meruoca: meu silêncio

Em noites escuras sem luar

No tenso gesto de criar,

conversa com teu

Não o assustava o silêncio vazio

Do fecundo nada que há,

silêncio.



O ávido haver do movimento

de rasgas mortalhas

das catacumbas

Após o enterro derradeiro II

Não o assustava o farfalhar das folhas

Ricardo Kelmer

meruoca em silêncio.

Nas madrugadas frias de inverno

[email protected]

o espiríto de bashô

Não o assustava o grito de buzinas

repousa nos galhos

Estremecendo avenidas corrompidas

dessas árvores verdes –



ao meio-dia

Só o assustava o bramido de homens III

Engomados de poder.

céu em nuvens: a sombra de deus caminha

Rosa Morena

pelo ceará –

[email protected]

Léo Prudêncio [email protected]

18

Anúncio Necessitamos de defensores da causa da nossa existência

Radiadora

Metafísica Enquanto a Morte se Atrasa

Gente interessada no que façamos, apenas pela autoria Os poetas estão dóceis.

Procuramos correligionários de nossa ínfima missão

Os mortos,

Cúmplices, aliados, comparsas

jazem, em placas, pelas esquinas,

Urgem seres que enterneçam ao som do nosso nome

dando nome aos chãos

Desinteresses puros e gratuitos

do passar de cada dia;

Caros de tão baratos

os vivos,

Buscamos jardineiros da alma

amontoados entre a poeira e as traças,

Semeadores do mérito que não percebemos em nós

mal respiram – ainda.

Acolhemos astigmatas amorosos Que nos vejam necessariamente mais belos do que somos

Que destino:

Precisamos de emissários de nossos melhores prognósticos irreais

travar-se com a língua,

Capazes de nos lembrar de nosso destino

(o que é dizer com um corpo, latente coisa)

Para que não desmereçamos a fé Dispensamos os remetentes de pêsames

munir-se até aos dentes com suas farpas;

Torcedores da desgraça embrulhados em compaixão

lacerar a couraça em seus gumes,

Prescindimos de carpideiras, de reformadores morais

espatifar a lira,

Também rejeitamos secadores de pranto

forjar outra matéria (ainda língua) depois de tudo,

Amigos não enxugam lágrimas; arrancam sorrisos

e findar

Que os detentores da candura se nos apresentem

dependurado ao alto

E nos carreguem para onde a ternura do amor do amigo aponta

no triste afazer de nomear o onde os homens

Lia Sanders

não se vêem, não se olham,

[email protected]

não se tocam senão por trinta dinheiros! Dércio Braúna

[email protected]

19

Radiadora

Curatela E aí, meu amor, vamos mexer com coisas sagradas? O que há de mais puro dentro de nós. Por estes dias não posso viajar para Barcelona, Tenho que cuidar das fraldas de papai. E mamãe anda meio perdida com suas plantas e gatos. Quanto àquele projeto de trocar de apartamento,

canto drummondiano

Vamos deixar para os outros;

quixeramobim é minha Itabira

A grana do fundo de garantia já está acabando

seus diabos também são melancólicos

E não tenho mais nem para o cotidiano.

e os homens vão devagar pois nada sabem do trem de ferro

Ei, meu amor, sabe aquele projeto de deitar cedo,

que da estação já não parte.

Dormir até as nove e ir para academia antes do almoço?

é preciso crer em deus,

Vamos deixar descansar por uns tempos,

mas sou torto, caduco, poeta

Que a barra não tem me permitido dormir todo dia.

não entro na matriz,

É que essas enfermeiras cobram horrores.

fantasmas não existem lá?

Então, amorzinho, me perdoe pelos cochilos

o sino não bate... o sino é um fantasma?

No percurso do trabalho para o posto de saúde.

escuto, no entanto, distante o apito de alguma fábrica. a vida é besta!

20

Pois é, querida, peço mil desculpas, pois não é desta vez

vez em quando uma interditada me sussurra:

Que experimentarei bacalhau com vinho do Porto.

“não mandei matar ninguém!”

Preciso recolher para a sopa as sobras do almoço.

mas quem ainda hoje a acusa de crime?

Fique você com a fruta e dê as cascas aos pobres,

quixeramobim é um retrato na parede

Que eu fico por aqui mesmo roendo o caroço.

lá onde eu existo.

Frederico Régis

Bruno Paulino

[email protected]

[email protected]

Limítrofe

Crase

pra bruna e yasmin

Quem sabe

Ameaçam-me

O arriscar palavras

atear fogo

um dia o amor bate em sua porta

Todas à beira

às vestes e às paixões

um dia o amor te beija a cara

De uma linha torta

um dia o amor bate com a porta na sua cara

Bamba, talvez morta

Radiadora

amor, iv

se não calo o canto se não sigo as setas

uma música toca no rádio

Quem sabe

o galo que cacareja galinha choca

Escorregar filetes

é o homem que grita menina histérica

Poças de tinta

isso quando mais ardem

Cores chamuscadas

fora e dentro de mim

Nenhuma perspectiva

as vestes e as paixões.

Quem sabe

Jogo meu corpo

Nenhum sentido faça

em praça pública,

pra onde vai a porra do amor

E todo significado tenha

jogo minha alma

quando o amor acaba

Sem promessas

em graça pública.

a saudade de nós sufoca

Totalmente adormeça...

lembro os versos dos anjos

se não cesso os beijos

o beijo amigo é a véspera do escarro e só um homem louco perguntou

Por isso, lavo a boceta em busca do amor

Ângela Escudeiro

dobro o canto,

e ele está de abraços com o talarico

[email protected]

e bêbado de beijos,

que me canta apalpa e geme

não me dobro às setas.

eu li os diários xexelentos da maria

Nirton Venâncio

eu escrevi os seus cadernos-goibada

[email protected]

o seu medo é um lugar seguro — a mais alta literatura prescinde a vida real — é uma transcendência é uma metafísica o poema é uma alegria! com as mãos tão bonitinhas as mãos que foram minhas um dia o amor corta a sua aorta Nina Rizzi [email protected]

21

Mala de Romances

Mala de Romances

Aprendeu andar de moto, mas não sabia parar Arievaldo Vianna | Jota Batista

Frei Policarpo Cornélius

De dia era na igreja

Acompanhava essa VESPA

Veio lá da Alemanha

E de noite na cerveja

Um manual de instrução

Trouxe uma motocicleta

Bebendo e dizendo: — Figa!

Porém o José Pornô

Que parecia uma aranha

Só atrás de rapariga

Na sua sofreguidão

Não para pegar piranha

Ora mais e ora veja!

Saiu varando o sertão Cai aqui, cai acolá

Que ele era Capelão, Vigário de profissão,

Um dia José Pornô

Sem saber como parar

Mas o transporte abafou

Já de posse do transporte

O transporte condutor

Tanto até que despertou

Saiu vagando no mundo

Coitadinho do Pornô

Inveja no sacristão.

Como quem foge da morte

Como isso vai acabar?

Porém ao passar num corte Quando o vigário passava

Sem ganhar uma menina

Acontece que o Pornô

No seu transporte bonito

Lamentou a sua sina

Circulava o quarteirão

Muita mulher suspirava

Porque ia empurrando

A sua mãe, dedicada,

E renegava o “bendito”

Disse alguém: — Só vai botando

Já botara a refeição

Oh! tentação do maldito

Um pouco de gasolina.

E a véia no portão Gritava: — Vem cá, Pornô!

Mulher loura, mulher crespa... Fez empréstimo na BOVESPA

Meu amigo, o sacristão,

Ele dizia: — Já vou!

O sacristão invejoso

Daquilo nada entendia

Sem saber pra onde ia

E andava todo garboso

Antes, o seu transporte,

Diz ela: — O almoço esfria!

Amontado numa VESPA.

Era uma jumenta arredia

E o transporte não parou.

Para as capoeiras ia

22

Esse dito sacristão

Munido de um cabresto

O problema é que Pornô

Era José Bianor

E pra não mudar o texto

Só aprendeu pilotar

Porém por não respeitar

Da bichinha ele era fã

Já dava queda de asa

Os princípios do pudor

Se a jumenta é nossa irmã

Mas não sabia parar,

Só lhe chamavam “Pornô”

Acho que isso é incesto.

Deu vontade de mijar

Mala de Romances Na Vespa mesmo mijou

Ora, o peru era o prato

E vendo a coisa tão feia

A mãe se preocupou

Que José admirava

Zé Pornô dizia assim:

E perguntou nessa hora:

Mas como ele comeria

— Oh! Mamãe, reze por mim

— Valha-me, Nossa Senhora,

Se o transporte não parava?

Me livre dessa “cadeia”.

Adonde foi que ele entrou?

Quanto mais a mãe gritava

Nesta voz ele passou

Mais o transporte corria

Encontrou com Frei Cornélio

Mesmo em frente do portão

De fome José morria

Que vinha no seu motor

Rezando pra São Francisco

Porém por falta de sorte

Esse frade ao encontrá-lo

São Raimundo e São João

O diabo do transporte

Foi bastante inquisidor:

Sua mãe mostrou-lhe um pão

Nem parava, nem caia.

— Muito bonito, doutor, Não foi ajudar na missa?

E uma xícara de café Dizendo: — Vem cá, José,

Desde cedo em jejum

Um sacristão com preguiça

Vem ao menos merendar

José Pornô só lamenta

Frade nenhum aguenta

Cadê a moto parar?

E disse consigo mesmo:

Foi bem atrás de jumenta

O Pornô perdeu a fé...

— Que saudade da jumenta,

No roçado das maliça!

Santo-acode, ou cão-atenta

Neste momento o Pornô

Nisto a fome apertou

Tô de barriga a roncar

Puto, com fome e com sede,

O Pornô quase se acaba

Estou doido pra jantar

Pensou de parar a moto

Porém, por sorte passou

É grande meu embaraço,

Abarcando na parede

Sob um pé de goiaba

S. Francisco, que é que eu faço

Disse ele: — Eu sou é home,

A fome já estava braba

Para esta porra parar?

Num vou é morrer de fome Nesse instante ela parou

Conseguiu pegar só duas Caminhou mais duas ruas

Igualmente o Fred Flintstone

Sem que ele fizesse nada.

Em busca de outro pé

Arrastava os pés no chão

Sabem o que foi, negrada?

E a mãe dizia: José

Cadê a moto parar?

A GASOLINA ACABOU.

A janta vai ser perua!

Como para a condução? Nessa hora, o carrilhão

FIM

Já tocava nove e meia

23

Tiragostos

Lucy & Sky de J.J. Marreiro

artista da capa

Os FitoManos de Raymundo Netto

Guabiras Carlos Henrique Santos, o Guabiras, é cartunista e jornalista do jornal O POVO (Fortaleza/CE) desde 1998. Criador de histórias em quadrinhos e de muitos personagens, já publicou mais de 6 mil tirinhas em jornais, fanzines, livros e internet. Em

Os Mundos de Liz de Daniel Brandão

2003, publicou no EXTRA de Nova York (EUA). Em 2015, junto com a Equipe de Arte do O POVO, ganhou o prêmio Esso de Jornalismo (Criação Gráfica). Em janeiro de 2017, recebeu o Prêmio Angelo Agostini de “Melhor Cartunista”. Também em 2017, contribuiu em Marcatti 40, homenagem da UGRA (SP) para ao maior quadrinista brasileiro. Em 2018, foi finalista do Festival de Humor Gráfico de Pernambuco (cartum), do Salão de Humor de Piracicaba (cartum e charge), do Salão de Humor Medplan (cartum), do Salão e do Prêmio Vladmir Herzog de Direitos Humanos (charge).

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Tiras de Lene Chaves

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