Requiem Para D. Quixote

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  • Pages: 29
A Phala / 35

DENNIS McSHADE

R E QU I E M PA R A D. QUIXOTE

A S S Í R I O & A LV I M

Dennis McShade Após Mão Direita do Diabo, repete-se a presença de McShade na colecção Rififi. Falar do escritor é talvez falar de Maynard. Para analisarmos a síntese do panorama caótico moderno e lobrigarmos a impiedosa crítica a que McShade submete o modus vivendi da nossa época, temos de olhar Maynard. Ele é a tese do autor — sendo criminoso profissional, reduz ao zero convenções e elogia apenas o homem em acção pela acção — e por outro lado é a antítese — os silêncios de Peter Maynard onde há a fala alta de um orador sagrado, o sussurro de uma prece e tudo aquilo que está para lá da franja do mar. Só neste jogo a dialéctica de McShade pode ser entendida e vamos lá, até tolerada por espíritos mais sensíveis ou menos abertos. Pela coragem de McShade em nos propor esta fórmula de herói e pelo estilo em que no-lo oferece, não podíamos deixar de lançar no mercado este seu segundo livro. O leitor poderá apreciar e repousar — paradoxo da forma como Dennis McShade escreve, porque o dinamismo do seu movimento literário reside tão-somente nos conceitos — na fluência e coisa-inteira-ligada com que a trama se desenrola. Enquanto se lê Requiem para D. Quixote tem-se a sensação preguiçosa e a um tempo deslizante do réptil sagaz, desdobrando-se a si próprio e ferindo súbita e implacavelmente onde deve ferir. Entre uma cobra cuspideira e a «Beretta» de Maynard há uma ponte chamada silenciador.

nota do editor: Texto de Dinis Machado, então editor da colecção onde este livro teve a primeira edição, acerca do seu pseudónimo Dennis McShade (n.º 71 da colecção Rififi, Editorial Íbis, 1967).

© ASSÍRIO & ALVIM RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA © HERDEIROS DE DINIS MACHADO EDIÇÃO 1287, OUTUBRO 2008 ISBN: 978-972-37-1384-8

Hacer bien a villanos es echar agua en la mar. Miguel de Cervantes Saavedra

UM

— Porque não ficaste em Roma? — perguntou Johnny. Acenei com a cabeça. Levantei-me do maple em que estava sentado e fui sentar-me noutro, no canto contrário do escritório. Johnny olhou para mim e passou a mão pelo queixo. Fez rodar a cadeira e ficou de frente para a janela. As costas tinham uma curva mais acentuada, ou pareceu-me isso. — Peter — disse ele, como se falasse para a janela — se tivesses ficado mais algum tempo em Roma, talvez isto não se tivesse dado. Regressaste no momento nevrálgico para o Sindicato. Não há um caso Big Shelley todos os dias. — É uma prova de força, Johnny. Se não fosse Big Shelley era outra coisa qualquer. Johnny fez rodar de novo a cadeira e fitou-me com aquela gravidade que nele era sempre acompanhada de uma nota de pudor. — Sabes que as circunstâncias são muito importantes, Peter — disse ele devagar. — Isto é como a política. É verdade que existirá sempre entre ti e o Sindicato essa espécie de fosso. — Fosso? — Essa tua independência. Não podes esperar que eles passem por cima da tua recusa sistemática em entrares no quadro. De qualquer modo, representas para eles uma forma de concorrência. Não podes negar que há entre ti e eles uma permanente situação ambígua, inacabada. 7

— Isso já foi falado — respondi, olhando para a nesga de sol que cortava a secretária pelo meio. — E depois? — insistiu Johnny. — Foi falado. E que interessa que tivesse sido falado? Quando partiste para Roma deixaste Charlie Di Luca em maus lençóis1. Não fosse o caso de o Sindicato ter grandes preocupações de outra ordem e era bem possível que não pudesses pôr mais os pés neste país. Tu sabes isso, Peter. Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro. — No dia em que tu te cansares de me proteger, Johnny — disse eu, enfiando as mãos nos bolsos das calças — eles tratam-me da saúde. Se eu deixar, claro. Verás que as preocupações que eles tiverem não são suficientes para passarem por cima disso. Ficámos calados por momentos. Depois, Johnny disse: — Há uma certa verdade nisso, mas já nem eu sei até que ponto te posso ajudar. Enquanto estiveste em Roma, houve grandes mexidas no Sindicato, Charlie chegou a ser pronunciado por gente graúda, mas isto levou depois outra volta e ele ficou. Se houvesse agora outro boss em Nova Iorque talvez nem tivesses recebido esta proposta. Talvez não pudesses mesmo cá entrar. — Foste tu? — perguntei. — O quê? — Foste tu que encontraste esta meia-solução? Johnny tirou a lima da algibeira e começou a limar as unhas. — Não, não fui eu. É possível que Charlie tivesse encon1

Ler Mão Direita do Diabo, já publicado nesta colecção.

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trado esta saída em atenção a mim e, simultaneamente, ao Sindicato. Andamos todos a fazer esta espécie de jogo diplomático. — Bem — disse eu, coçando a orelha — ele encontrou uma forma de me humilhar. Vês tão bem como eu, Johnny, que há nisto uma provocação. O Sindicato tem uma creche de assassinos. — Dizes bem, uma creche. Por isso, eles querem alguém cheio de métier e que não esteja ligado ao Sindicato. Segundo o que me foi possível apurar, este caso Big Shelley tem a sua importância. E talvez porque tem importância, eles decidiram dar-te esta oportunidade. — Já percebi isso — respondi. — Depende da maneira como tu encarares as coisas — continuou Johnny. — O contrato é o que pagas pela liberdade. Depois de cumprido, regressas à tua independência. É uma troca de certo modo justa. De resto, recebes como por qualquer outro trabalho. Não se pode dizer que haja aqui a tal situação humilhante a que te referiste. E, como já disse, atendendo às circunstâncias… — Johnny — interrompi-o — é humilhante na medida em que nunca quis trabalhar para o Sindicato e agora vejo-me obrigado a fazê-lo. E é humilhante porque não tenho a liberdade de aceitar ou não a proposta. Sempre analisei os contratos que cumpro. Este é-me imposto. Johnny largou a lima e encostou-se para trás, meneando a cabeça: — E se quando tu desceste do avião, eles estivessem à tua espera? Isso não era pior? Sabes tão bem como eu os sarilhos que

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arranjaste. Charlie quase ficou doido quando encontraram o cadáver de Nick Collins, andou imensa gente a apagar pistas e o teu nome até foi citado nos altos comandos. Francamente, cheguei a supor que estalara definitivamente a guerra entre ti e o Sindicato. A guerra que tinhas de perder, claro. — Já não tenho saúde para estas coisas — disse eu, falando mais para mim do que para ele e continuando a andar de um lado para o outro. — Estou pior da úlcera. — Peter — continuou Johnny suavemente — enquanto eu estiver no Sindicato, tudo farei para não te complicar a vida. E quando digo tudo, é tudo. Mas tu tens de fazer um esforço para não exagerares. Matas Big Shelley, recebes mais vinte mil dólares, a juntar aos vinte mil que já tens, e acabou-se. O Sindicato também sabe cumprir regras, quando é preciso. — Sabe? — perguntei. E sorri. — Sabe — insistiu Johnny com certa obstinação. — E cá estou para lhes lembrar o que prometeram, se for necessário. — Pois. — Posso ainda dizer-te que este contrato deve aumentar a benevolência do Sindicato para contigo. Havia de chegar o dia em que era preciso dar-lhes qualquer coisa, além da recusa sistemática em te juntares a eles. Eles vão apreciar isso. — São bons rapazes — disse eu. — Se tu pudesses pensar nisto como um contrato vulgar — observou Johnny, passando por cima do que eu tinha dito — e não te torturasses dessa maneira, e não misturasses o orgulho numa questão prática, tudo era mais fácil. Há uma certa criancice nisto. — Johnny, estás a querer chatear-me. 10

— Rapaz, há uma certa criancice nisso. Estás a medir forças com Charlie e com o Sindicato. É a velha história. Parei em frente dele. — Ouve — disse devagar — isto é de propósito. Tu sabes que eles fazem isto de propósito. Por mais discursos que faças, sabemos os dois que eles fazem isto de propósito. — E então, Peter? — disse Johnny, levantando um pouco a voz. — Fazem de propósito e fazem porque precisam. Seja pelo que for. Tu és um profissional, vives no mundo em que todos nós vivemos e tens de te sujeitar aos contratempos. — Pois. — Não digo que seja este o dia mais feliz da tua vida. Mas é assim. — Pois, é assim. — É evidente que podes recusar. Mas neste caso é melhor partires de novo. Se recusares, acabaram-se quaisquer hipóteses de modus vivendi. Se cumprires o contrato, as relações serão outras. Desaparece esta atmosfera envenenada. É uma porta aberta para uma situação de compromisso. Talvez eles acabem por te deixar sossegado. Sei lá. Olhei para Johnny com olhos semicerrados. — Johnny — disse-lhe — isto tem mesmo um ar político. Estás cada vez mais diplomata. — Está bem. — Às vezes, ponho-me a pensar como te sentirás tu como braço direito de Charlie. — Sinto-me uma trampa. Estás satisfeito? Fiquei a olhar para o chão. — Tens visto Olga? — perguntou Johnny.

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— Às vezes. — Porque não ficaste em Roma? — Pois. Olhei para ele. — Quem é Big Shelley? — perguntei. — Um poderoso. A única coisa que posso dizer-te para começares, é a morada de Mildred Shelley, que foi mulher dele. E há o irmão dele. Tiveram uma questão que foi a tribunal. Já há muitos anos. — Não há outra maneira de começar? Johnny franziu as sobrancelhas e ajeitou o mata-borrão da secretária. — Estou muito fora disto, Peter. Sou apenas o elemento de ligação entre ti e o Sindicato. Nem tenho de me meter nisso. Nem posso. O Sindicato não pode ser para aqui metido nem achado. — Porque quer o Sindicato eliminar Big Shelley? — perguntei. — Não faças perguntas dessas, Peter. Ninguém sabe. Meneei a cabeça e monologuei: — Agora, vou andar para aí à caça de Big Shelley, a bater às portas e etecetera. Tem muita graça. O amigo Charlie é um pândego. Ficámos calados alguns minutos. Depois, Johnny disse: — Se calhar, nem é Charlie que tem mais que ver com isto. Peter, sabes como estas coisas são complicadas. A verdade é que temos de andar para a frente. — Qual é a morada de Mildred Shelley? Johnny disse-ma e perguntou:

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— Vais falar-lhe? — Acho que sim. — Ela odeia o marido. Foi um matrimónio desastroso. — Que pena — disse eu. Dirigi-me para a porta. — Peter — disse Johnny para as minhas costas — vai-me dizendo o que se passa para eu lhes comunicar. Vou-te ajudando no que puder, mas não pode ser muito. Agora, tenho uma chatice das grandes. Procuro gerentes para três bares, mas gente feita, com folha de serviços. E o Sindicato está com umas exigências… Cheguei à porta e voltei-me para trás. — Sabes o que verdadeiramente me chateia nisto, Johnny? — Sei. Já me disseste. — Não. Não sabes. É que o raio do homem tem o nome de um poeta. — Poeta? — Shelley, um poeta inglês. Johnny encolheu os ombros. — Está bem — disse ele. Saí e bati com a porta.

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DOIS

Mildred Shelley tinha trinta e cinco anos muito bem defendidos por condições naturais e por cuidados próprios. Um rosto desenhado, marcado e fino. Uns lábios esticados e curvos, uns olhos profundos, de um tom violeta que eu não me lembrava de ter visto. A pele era rósea, como se fosse impossível tocar-lhe e não ficar mancha. O cabelo era escuro e uma onda muito larga ia morrer sobre a orelha direita. De perfil, fazia lembrar um retrato de Modigliani, porque o pescoço prolongava-se, prolongava-se. De frente, despertava sentimentos vários, de certo modo confusos. O tom violeta dos olhos é que tinha a culpa, tão cheio de sensualidade sombria e de um poder avaliador verdadeiramente extraordinário. — Chamo-me Mildred Bruce. Fez mal em perguntar por Mildred Shelley. Seria o suficiente para não o receber se estivesse mais maldisposta. Shelley é um nome maldito. — Pois — disse eu. Vestia um tailleur cinzento, curto nas mangas, de um corte severo. As mãos brancas eram muito largas, e usava um anel de prata no dedo mínimo da mão direita. Fazia-o rodar com os dedos da mão esquerda. Reparei que tinha as unhas cortadas rentes e sem verniz. — Que deseja?

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Tinha uma voz aveludada, quase rouca, como se viesse muito de dentro e saísse com dificuldade, envolvida em sombras e nevoeiro. — Falar consigo — disse eu. Fiquei de pé, como estava desde que entrara. O escritório era pequeno e quadrado e havia um tom de castanho envernizado por toda a parte, na secretária, nas cadeiras, na estante, numa pequena mesa de centro, nas zonas do soalho não apanhadas pela carpete, tudo a formar um conjunto de certa gravidade. Faltava ali a cor violenta ou a cor clara de que as mulheres costumam gostar. Uma vaga desconfiança começou a nascer em mim. Uma dessas intuições maynardianas, uma das minhas minúsculas campainhas longínquas. — Não fique aí de pé — disse ela com a sua voz enrolada não sei em que espécie de tecidos, olhando para mim do lado de lá da secretária. E apontou-me uma cadeira com a mão esquerda. — Como se chama? — perguntou de repente. — É por causa de um inquérito que estamos a fazer — disse eu, fazendo-lhe ver que ignorava propositadamente a pergunta dela. — Um inquérito? — Finanças — disse eu. E sentei-me. Os olhos dela faiscaram e deitaram breves lâminas cor de violeta. — Mas de que se trata? — Possível fuga a impostos — respondi devagar. — Bem, temos de averiguar. Estas coisas são sempre muito lentas e temos de maçar pessoas. Um processo destes compõe-se de mil formalidades. Quaisquer informações sobre o seu ex-marido

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poderão ser úteis. Características, hábitos, relações. Pode ser que no fim não seja nada. Mas o Governo tem de controlar estas coisas, especialmente nos casos como o do seu ex-marido. Grande movimento de capitais e etecetera. Mildred Bruce fazia cálculos rapidamente. Já via em mim o aliado que caiu do céu, o anel dos Bórgias, o instrumento. Ah, Maynard, Maynard, pombo-correio dos corações envenenados. — Você é uma espécie de polícia, não? — atirou ela para o ar, enquanto assentava os cotovelos na secretária e juntava as mãos. — Diremos antes, um fiscal. — Tem muito que fiscalizar — disse ela com um risinho irónico. — Nunca percebi bem os negócios dele, porque aquilo é mesmo para não se perceber. Se lhe interessa a minha opinião, como marido, digo-lhe que era uma peste. Uma autêntica peste. Sabe o que é a crueldade desnecessária? — Pois — disse eu. (A crueldade desnecessária, Mildred Bruce, pode ser muita coisa, incluindo o que vejo nos lampejos rápidos dos teus olhos cor de violeta.) — Mr. Shelley — disse ela com ar quase sonhador e rodando o anel com os dedos — era um homem dado a crueldades desnecessárias, a egoísmos odiosos. Um homem que só pensava nele, que se servia dos outros com a maior sem-cerimónia, que utilizava as pessoas como coisas. Teria de lhe falar de algo muito privado para ter uma ideia do que quero dizer. Utilizar as pessoas de uma maneira ofensiva e repelente. Percebe? Acenei com a cabeça e ela continuou: — Anthony Shelley é feito dessa massa asquerosa dos que se servem sem pensar nos outros, com uma noção feudal de posse, uma brutalidade tipicamente masculina, uma maneira

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hábil de ofender as pessoas no que elas têm de mais vulnerável. Um certo comportamento primitivo, se sabe a que me refiro, está por detrás de todo aquele verniz das relações… Percebi, finalmente, que a voz dela parecia tentar passar por veludo. Era isso, por veludo. Era uma mulher amordaçada por dentro, amordaçada em veludo como convém a uma frustração aristocrata. — Esses negócios em que ele anda metido, esse prestígio de grande financeiro, tudo isso esconde um ser humano insuportável, tirânico, libidinoso. E foi… Fiquei para ali a ouvir a voz prisioneira de uma mulher amargurada falando de amor ao contrário, os olhos violetas repassados de desejos inconfessáveis, das taras mais abissais, olhando para mim sem me ver, rodando o anel da mão direita, rodando o anel, criando uma distância absoluta entre dois seres, e nascia uma linguagem desencontrada, e havia uma paixão que não tinha eco. — Para o encontrar… — quis eu dizer. — … Anthony Shelley é um exemplar perfeitamente obsceno, deve continuar a mesma vida que tinha, o que lhe interessa é torturar as pessoas, sugá-las como um vampiro… Ouvi não sei quanto tempo uma data de coisas sem sentido. Uma doença a falar, a falar. As doenças não falam, Maynard, quem fala são as pessoas. As pessoas são as doenças. Doente já tu és, Maynard, tens a tua cruz, a tua úlcera no estômago, a tua angústia suada, cala-te, Mildred Bruce, se não te calas atiro-te com esta jarra que está aqui à minha esquerda e que deve fazer um lindo som de porcelana a desfazer-se na parede. — Obrigado, miss Bruce — disse eu não sei quando.

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Quando cheguei à rua, vinha a abanar a cabeça. Entrei numa cabina telefónica e liguei para Johnny. — Johnny? — Sim — disse ele, do outro lado do fio. — Johnny, a nossa Mildred Shelley é doida. Quanto tempo dizes tu que ela esteve casada com Big Shelley? — Três anos, suponho. — Se ele aguentou aquilo três anos é um santo. — Bem, eles separaram-se duas vezes durante esses três anos. — Filho, eles devem ter estado sempre separados. Toda a gente está separada de Mildred Shelley. Ela vai acabar por andar a aliciar meninas nas ruas se, antes disso, não der entrada num manicómio. — Não soubeste nada de útil? — A voz de Johnny era um pouco pesarosa. — Nada. — E o que vais fazer agora? — Não me disseste que havia o irmão dele, aquele que o meteu em tribunal não sei porquê? — E perdeu a causa. Odeia-o. — Pois — disse eu, olhando através do vidro da cabina para as pernas de uma mulher alta que passava. — Roger Shelley. A indicação que tenho é que vive ou viveu em Palm Beach. Vais lá? — Não sei. Talvez vá — respondi. — Ou talvez vá a casa de Big Shelley acabar com isto. — Assim, sem mais, nem menos? Rapaz, ele tem guarda-costas, está protegido. — E o irmão é que sabe disso? — perguntei.

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Johnny falou um pouco alto: — Mas sou eu que quero falar com o irmão ou és tu? Peter, faz o possível por seres coerente. Meti outra moeda no aparelho. — Está lá? — Estou — respondeu Johnny. — Ouve — disse eu. — Não me interessa encontrar apenas a maneira prática de chegar a Big Shelley. Quero saber quem é Big Shelley. Gosto de saber quem é a pessoa que vou matar. — Para quê, Peter? — Porque é absurdo, Johnny. É verdadeiramente absurdo matar um homem só porque o Sindicato diz para o fazer. E só porque o Sindicato me diz para o fazer, sinto imediatamente vontade de o deixar vivo. Mas como tenho de o matar, preciso de razões para considerar isso um acto justo. Percebes, Johnny? — Faço o possível, Peter — disse ele mansamente. Desliguei. Empurrei a porta da cabina e pisei o passeio. Doía-me o estômago. Dirigi-me a uma farmácia para comprar comprimidos. Lembrei-me da Beretta, há tantos meses a um canto, precisava de a limpar. Estava num lastimável estado de espírito. Não a Beretta. Eu. A úlcera influencia a disposição, a disposição influencia a úlcera. O todo é a soma das partes, as partes formam um todo. E mais isto e mais aquilo. Pois.

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TRÊS

Normalmente, o tempo para mim não é o dos relógios, mas este tempo interior, ora esticado, ora encolhido, reflexo do que acontece à minha volta, ou não acontece, tempo em que os segundos se precipitam e me precipitam, ou tempo de ficar de papo para o ar, ouvindo a quinta ou a nona sinfonia. Tinha posto Palm Beach a um canto por uns dias. De resto, pus a um canto tudo quanto fosse sentido prático. Andei atarefado, mesmo obcecado na procura de música sacra, entrei no período do requiem, com maestros e corais escolhidos. Passou tempo, não sei quanto tempo, porque não tinha pressa, o meu tempo interior não fazia exigências. A história de ter de matar Big Shelley afigurava-se-me tão absurda que decidi reler o Ulysses, de Joyce, talvez para me vingar. E cirandei pela casa, fui duas vezes ter com Olga e trouxe o perfume dela no meu ombro. A certa altura, Johnny telefonou-me para me dizer que o Sindicato me dava uma semana para resolver o caso Big Shelley. Falou de pressões sobre Charlie, uma certa impaciência dos altos comandos e etecetera. Ouvi tudo o que ele disse com uma displicência que a mim próprio me pareceria assustadora, se não houvesse o caso de já me conhecer relativamente bem, pelo menos à superfície do que sou. Uma maneira de me estar nas tintas sem realmente estar, um sinal de crise como costumo di-

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zer para dentro de mim, um não fazer nada só porque devia fazer e saborear a situação paradoxal que isso implica, uma espécie de espera para desencadear a sério qualquer coisa. Às vezes, é a úlcera que me acorda, é ela que faz entrar em jogo o factor tempo, mas tempo real, com mostradores de relógio e ponteiros a girar. Nunca pode ser um Charlie a acordar-me. Quem é Charlie? — perguntei a mim próprio sem esperar um décimo de segundo pela resposta. Estava neste estado de espírito e a respirar esta atmosfera quando, numa tarde, saí de casa com intenção de comprar um requiem, de Berlioz, e não dei mais do que dez passos no passeio. Fui rodeado por três tipos de sobretudo. Um deles disse, apontando para um carro: — Entra, Maynard. Tinham as mãos metidas nos bolsos e armas, decerto, dentro das mãos. O facto de eu morar numa zona pouco movimentada, dava-lhes facilidades para o caso de me decidir a recusar o convite. Tanto eu como eles pensámos em tudo isto ao mesmo tempo, e tanto eu como eles sabíamos que eu só tinha um caminho a seguir: entrar no carro. Entrei no carro e disse: — Não está tempo para andar de sobretudo. O carro rodou durante muito tempo, saímos da cidade e reparei que o tipo que guiava era um meu velho conhecido. Tinha sido boxeur de segunda ordem. Já não o via há muitos anos. Reconheci-o pelo olhar bovino que me era transmitido pelo espelho retrovisor. Continuava grande como um urso, mas tinha as patilhas todas brancas, o nariz mais desfeito do que antigamente e faces com o tom esverdeado da já futura decomposição.

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— Billy Bear — disse eu — ainda és vivo, rapaz? Ele devia conhecer-me mais pelo nome do que pelo rosto ou a figura. Os olhos bovinos ganharam uma surpresa repentina, que desapareceu quase imediatamente. Não lhe devia agradar que eu o reconhecesse. Os motivos eram vários, incluindo a circunstância de estar a fazer de moleque dos outros dois, principalmente o que estava a meu lado no banco de trás, que tinha a particularidade de usar sobretudo amarelo, enquanto os outros vestiam sobretudo escuro, tinha uma popa impossível de desfazer por causa da brilhantina e uma maneira de pôr os olhos azuis em cima de uma pessoa que não era lá muito certa. O carro rodava e começaram a aparecer árvores no caminho. Passarinhos cantavam nas árvores. A certa altura, Billy Bear fez parar o carro junto a uma casa isolada, uma espécie de mansão que parecia retirada de um livro de Edgar Poe. Fizeram-me sair do carro e entrar à frente deles, depois do tipo de popa ter aberto a porta de entrada com uma chave Yale. Achei que era uma chave pequenina para uma casa tão grande. E disse para o tipo de popa: — É uma chave muito pequenina para uma casa tão grande. Ele olhou para mim e ficou mais estúpido. Não apreciava o humor à Chandler. Quando já estávamos dentro de casa, Billy Bear começou a afastar velhos sofás e velhas cadeiras para os cantos da grande sala onde supus que iríamos instalar-nos. Houve uma espécie de mise-en-scène um pouco forçada, pois Billy Bear cruzou as mãos à frente do corpo e ficou a olhar para mim, enquanto o tipo de popa tirou o sobretudo num gesto de toureiro que sacode a capa, olhou em volta de nariz torcido e disse: — Esta merda está cheia de merda.

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Referia-se, respectivamente, à casa e à poeira. Colocou o sobretudo cuidadosamente sobre uma cadeira e lançou-me um olhar azul de cintilações entre o sádico e o obsceno. Depois, colocou-se na mesma posição em que estava Billy Bear, de perfil para mim. O terceiro lado do triângulo, que era o que tinha vindo no carro ao lado de Billy Bear, e no qual eu já tinha visto o intelectual do grupo, sorriu-me com um sorriso muito estudado, apertou mais nos dentes a boquilha sem cigarro na qual tinha chupado desalmadamente durante todo o caminho, e disse: — Maynard, está a fazer-se tarde para o que tens de tratar. — E ajustou melhor nas mãos as luvas de camurça clara que trazia calçadas. — Pois. — Nem sabemos o que é. — Tinha uma voz monótona. — Trouxemos-te aqui para te lembrar. Ficámos assim algum tempo, o tipo de luvas de camurça a olhar-me nos olhos e os outros dois, um de cada lado, de mãos cruzadas à frente do corpo. Não havia nada a dizer e passar tempo era comigo, não tinha pressa. Até que a coisa explodiu. Caíram-me os três em cima quase ao mesmo tempo, obrigando-me a bater-lhes quase simultaneamente com os pés e com as mãos. A minha intenção primordial era não ser agarrado. E fiz tudo quanto pude para que isso não acontecesse. Consegui desfazer a popa do olho-azul com uma esquerda rápida, ao mesmo tempo que me desviei o suficiente de um golpe de Billy Bear, obrigando-o a desequilibrar-se e a correr pela casa fora como um toiro desembolado. O tipo de luvas de camurça, que me tentara deitar as mãos, tinha feito uma retira-

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da estratégica, também com uma intenção primordial: a de me apanhar pelas costas. Entretanto, o popas e Billy Bear voltaram à carga. Atingi o ex-pugilista com um pontapé no ventre, mas o outro deu-me um golpe muito forte com a mão aberta no lado esquerdo do pescoço. Fiz voar a mão direita e parti qualquer coisa com ela, talvez dentes. Levantei o pé esquerdo, mas só o pousei algum tempo depois, porque alguém mo apanhou e me fez dar duas voltas sobre mim próprio, criando-me uma situação de muito difícil estabilidade. Finalmente, o de luvas de camurça deve ter conseguido a sua intenção primordial, porque senti um braço em volta do pescoço que me obrigou a dobrar a cabeça para trás. Fiquei com o estômago suficientemente desprotegido para levar um soco que foi das coisas que até hoje mais me doeram na vida. Ainda com os braços livres consegui bater à minha volta, mas subitamente um objecto duro, de ferro ou de aço, colidiu com a minha omoplata direita, tornando-me mais vulnerável a segundo soco na boca do estômago. Fingi que não senti a dor e rodei o corpo, num impulso, obrigando o tipo de luvas de camurça a entrar nos limites da minha mão esquerda. Acertei-lhe admiravelmente num olho e ele até grunhiu. Com outro pontapé afastei mais uma vez o tipo de popa, e deixei-o agarrado à barriga alguns segundos. Mas tive um momento de relaxamento que me foi fatal, pois Billy Bear aproveitou-o para se lançar sobre mim de cabeça, projectando-me contra a parede. Caí e já não tive tempo de me levantar. A meio da viagem, o tipo de popa agarrou-se às minhas pernas, Billy Bear atirou-me as mãos ao pescoço e voltei a contactar com o soalho. Fiquei de barriga para o ar, e eles bateram-me no estômago e nos flancos.

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Estiveram ali a martelar imenso tempo, ou pareceu-me isso, e depois deixei-me ficar, fazendo o possível por reter a respiração para conseguir suportar as dores. Entrei num estado de semi-inconsciência e, a certa altura, já não tinha bem a certeza se tinha morrido. Mas não devia estar morto, por causa de súbitas guinadas no estômago e nos flancos. Acordei com alguém a passar-me um pano molhado pelo rosto. Abri os olhos e vi o tipo de popa, sorrindo deleitado, a respirar para cima de mim. Era ele que me passava o pano pelo rosto, com ternuras de donzela, o olho azul regalado. — Vamos, Maynard — disse a voz monótona do boquilhas. Ele estava lá em cima, em segundo plano, de pé, atrás do popas, e pareceu-me que tinha só um olho, que se tinham esquecido de lhe fazer o outro, ou que o tinha perdido, e havia uma saliência carnívora nesse sítio. Billy Bear não estava no meu raio de visão. Quis levantar a cabeça, mas a dor nos flancos era muito forte e voltei a pousá-la no chão. Continuei a respirar o menos possível, por causa de uma espécie de agulhas que tinha dentro de mim. Fechei os olhos e deixei-me estar. A voz do popas disse: — O gajo parece que está a preparar-se para outra soneca. A certa altura, puseram-me de pé, enquanto eu fazia cuidadosos exercícios respiratórios para poder começar a andar. Billy Bear apareceu no fundo da sala e perguntou para o tipo de boquilha: — Vamos? O tipo de boquilha, que já não tinha boquilha e que continuava só com um olho, resmungou:

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— Espera. Comecei a andar devagar, de um lado para o outro, e o tipo de popa disse com um sorriso nervoso: — Já está bom. Daqui a meia hora já pode fazer ballet. Fiz alguns minutos para cá e para lá, passando por cima das dores no estômago, nos flancos e na omoplata. O de luvas de camurça olhava para mim e lembrou-se de me dar uma espécie de apoio moral: — Isso não é nada, Maynard. Amanhã ou depois já estás bom. Tens é de fazer aquilo que te mandaram. Já sabes como são estas coisas. O popas reforçou a ideia com segundo sorriso nervoso: — Ele sabe isso. Sabe que não é nada pessoal. Billy Bear insistiu obstinadamente. — Vamos? — Vai à merda, pá — disse o popas. — Vamos quando te dissermos. Meia hora depois, os tipos meteram-me no carro e levaram-me para a cidade. Falámos pouco durante o caminho. Eles ainda começaram umas hipóteses de conversa, mas não havia ambiente e acabaram por se calar. Depois de um período de silêncio, Billy Bear falou em qualquer coisa respeitante a apostas de cavalos e o popas disse-lhe: — Tu é que és um bom cabeça de cavalo. Pararam a duzentos metros da Broadway. O tipo de luvas de camurça, que já tinha outra vez a boquilha nos dentes, mas que continuava a ter o olho esquerdo invisível, disse para Billy Bear: — Pára aí. — E voltou o rosto para mim. — Sai, Maynard.

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Abri a porta e preparei-me para sair, quando a mão do olho-azul me apertou o braço e ele fez um terceiro sorriso nervoso. — Sem rancores? — perguntou. E só agora eu percebia que ele tinha voz de menina. Não respondi, pisei o passeio e comecei a andar. Vi-me numa montra e fiquei surpreendido por ter o rosto em condições verdadeiramente aceitáveis. Bem, isto significava que eles sabiam o que tinham feito. Também eram profissionais. Deixavam mossas onde não se via. Chamei um táxi e fui para casa. Doía-me o corpo todo, com as várias partes a puxarem cada uma para seu lado, às guinadas. Tomei um duche muito quente e estendi-me na cama completamente nu. A noite aproximava-se. Bebi alguns goles da garrafa de leite que tinha colocado em cima da mesa-de-cabeceira. Liguei para Johnny, mas ninguém respondeu. A certa altura, as dores começaram a seleccionar-se por si próprias. Uma nódoa negra, muito larga, insinuava-se por toda a zona do estômago e espalhava-se pelos flancos. A omoplata também me doía muito e havia qualquer coisa dentro de mim que parecia estar fora do sítio, ou demasiado para dentro. Talvez o estômago colado à parede das costas. Os tipos trocaram-te o sítio dos órgãos, Maynard. Foi uma espécie de intervenção cirúrgica. Não são maus rapazes. Agora, devem estar é cheios de medo da Beretta. Bem, eles são duros, mas agora andam nervosos por uns tempos. Levantei-me e pus Bach no gira-discos. Gostaria de ter Olga ao pé de mim, a passar-me os dedos pela testa. Mas já sei, estou farto de saber que não se pode ter tudo. Procurei concentrar-me em Bach, mas Bach estava em plena fuga e reconheci a minha incapacidade para o acompanhar. Agora, o

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estômago era um tambor, alguém tocava tambor no meu estômago. Deram-te na úlcera, deram-te na úlcera, os estúpidos. Comecei a fazer massagens, mas as dores estavam todas misturadas. E eu não conseguia destrinçar através delas a dor autêntica, genuína, o pulsar da úlcera. E por momentos, parecia-me que a úlcera me fugia para a omoplata. Tomei comprimidos para as dores, pensei em Big Shelley, lembrei-me de uma ragazza de Roma que estava sempre a cantar em surdina e que gostava de me beijar a nuca, disse a mim próprio que isto de dores no corpo tem muito que ver com o domínio sobre a vontade, insisti em Bach, inventei uma data de coisas, mas não consegui dormir e a manhã apanhou-me acordado. Quando o sol me bateu no rosto, corri a cortina e fechei, finalmente, os olhos por algum tempo. Acordei subitamente com a úlcera em pé de guerra. Nem tinha força para mexer a cabeça e ver as horas.

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