Rascunho

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Já não fazia muito sentido estar assim a ansioso. Aquela ressaca de Domingo à tarde mostrava-se impiedosa, mesmo para quem já estava habituado a sentir a factura de um Sábado à noite de exageros. Sentia a garganta seca e umas dores de cabeça que me sugeriam ter levado com um tijolo na cabeça. Sim. Um enorme tijolo quebrando-se de encontro ao meu crânio, despedaçando-se em mil pedaços e esfacelando as minhas têmporas, esmagando as órbitas e fazendo jorrar miolos pelo nariz. Mas apesar da enorme branca na minha memória, nenhum tijolo, pedra, ou qualquer outro tipo de objecto contundente me tinha atingido. O meu estado apenas resultava de uma ingestão desenfreada de Gin Tónico e de alguns shots na noite anterior. A Sílvia estava também com os copos e aquele fim de noite tinha sido algo deplorável. Sinceramente, não sabia como teria chegado a casa a conduzir debaixo daquele álcool todo, nem sequer se tinha deixado Sílvia em casa ou não. As imagens da noite anterior estavam corrompidas pelo Gin e pairavam na minha mente, flutuando entre a sua consciência. Fiz um esforço e só via imagens desconexas, como fotogramas aleatórios e pequenos instantâneos, que poderiam ser reais ou meras ilusões delirantes. Levantei-me com esforço da cama. Seriam umas 4 da tarde. Fiquei tonto só de estar de pé e quase me sentia desfalecer. Era traumático sentir que o meu corpo apresentava ainda sinais evidentes de exaustão e adormecimento da bebida ingerida na noite anterior. A minha mente tentava a todo o custo manter-se desperta. Um mero pensamento gerava ténues alucinações, sobe o formato de faces e expressões faciais de pessoas que nunca vira, mas com uma intensidade clarividente. Estava a delirar ainda com a bebedeira de ontem e os meus pensamentos eram tão lúcidos como um consumidor de ácidos. Com esforço tentei-me reconhecer no espelho. Estava cansado e o meu rosto estava como que fechado e envelhecido. A luz do quarto de banho feria-me e só queria desordenadamente abrir a torneira do duche, esperando um jorro de água quente que me retemperasse os músculos hirtos e massajasse o corpo dormente. Que suplicio temos que aturar, nestas malfadadas ressacas após uma noite abençoada e benzida a álcool. Lembro-me que quando era um estudante universitário, uma espécie de parasita de noitadas e copos, e que fazia excessos dignos de figurar no Guinnes Book of Records. Lembro-me em particular da última queima das fitas em que num misto de despedida por aquela vida e sobe a égide do patético fado de Coimbra que sempre detestara – cantarolava o «Quero ficar sempre estudante / Para eternizar a emoção de um instante...» sem cessar enquanto a sua tuna demonstrava a capacidade adquirida, durante cinco anos, de absorver quantidades industriais de todo o género de mistelas que tivesses um elevado teor de álcool sem a necessidade de ter que ser socorrido, com um coma alcoólico, na tenda de campanha da Cruz Vermelha montada no recinto da festa. Ele e seu inseparável companheiro de copos, o Carvalhais, iniciaram a noite devidamente equipados com aquelas estúpidas cartolas e bengalas vermelhas, mostrando ser finalistas do seu curso. E como é tradição chegaram já com um jantar colossalmente regado, na quarta noite consecutiva de bebedeiras até ao raiar do Sol de Maio. «- Oh, Carvalhais, hoje é que vai ser! Vamos à gajas de Farmácia beber aquelas bebidas chamadas Viagra?», tinha sido o seu brilhante mote de inicio de noite. A barraquinha serviu-nos durante uma meia hora uma meia dúzia daqueles copos azuis por trezentos escudos à cabeça, enquanto berrávamos «Vou ficar com um pau daqueles!» e elogiávamos os dotes esculturais das «meninas» que nos serviam, também elas já completamente ébrias e rindo-se daqueles dois finalistas perdidos de bêbados. O Carvalhais até conseguiu, após dar duas de letra com uma loirinha risonha que nos estava a servir, ir tirar uns beijos na boca e dar uns apalpões para trás da barraca, como quem não quer a coisa. Eu voltei à base no meio da multidão eufórica, ou seja foi visitar

o clã do curso que se aglutinava em volta da barraca do curso, enquanto sentia o safanão de todo aquela mistela a subir-me à cabeça. Motivado, agarrei-me a uma colega que sempre me fazia olhinhos e também já apresentava sinais de estar como o «aço». A Sónia sempre dera mostras de estar sempre pronta para festas e copos e a nostalgia de estar a acabar a grande festa que é ser universitária, já estava histérica e com a emoções à flor da pela. Ambos queríamos ficar para sempre naquele momento, como que medrosos pelo futuro e desatamos a beber vodkas maradas, muitas delas oferta da casa em honra dos finalistas, que as emborcavam com sofreguidão e agradecimento. Seriam aí umas 3 horas e já o nosso autocontrole estava parecido com um iô-iô de demonstração profissional. Agarramo-nos e no meio de várias frases clichés desatamos aos beijos, que mais parecia que nos queríamos engolir um ao outro naquele instante enquanto as nossas mãos espremiam tudo que havia para espremer. E isto à frente de todos os colegas, conhecidos e transeuntes. Recordo-me vagamente que antes de irmos para um local mais recatado, deve-se ter juntado uma pequena quantidade de bebedolas gritando palavras de incentivo. Naquela altura ainda não namorava com Sílvia, mas sim com a Joana, numa relação meia imberbe há já uns bons 4 anos. A Joana estudava em Braga e naquele dia não tinha vindo passar a queima ao Porto, o que desencadeou toda aquela série de descalabros. Uma coisa leva a outra e acabamos a noite a ressacar após meia hora de testar os amortecedores do meu Seat Ibiza estacionado numa quelha que já nem me lembro onde era, perto do «Queimodromo». A festa tinha-me proporcionado um fim de um namoro de 4 anos e uma relação estritamente sexual de 3 semanas com a Sónia, que me garantiu mais tarde certos embaraços. Nos dias restantes da queima também repetimos a dose, desta vez com o Carvalhais só acompanhando no início da noite, emborcando bebidas a torto e a direito com a Sónia e uma amiga que já não me recordo do nome. O fim da noite era dedicado à tonteira já totalmente fora dos limites de qualquer pudor, dando umas quecas no automóvel. A Sónia era uma morena de tez pálida, com sorriso sincero mas com um olhar meio vago. Era bem torneada, no seu metro e sessenta, com coxas generosas, cintura demasiado fina e seios proporcionais. Dir-se-ia que era uma mulher bastante apetecível aos olhares masculinos, em termos de sexo, mas com uma mentalidade algo tacanha, e totalmente desprovida de sentido de humor. Rapidamente me dei conta que era bastante ciumenta e para piorar as coisas, da sua boca apenas saíam trivialidades e alguns monossílabos quando a conversa ia além de um assunto relacionado com o curso que estávamos a tirar. Todas estas recordações fazem-me reflectir sobre o que nos impele a beber industrialmente, e as suas asneiras subsequentes. Será o facto da minha geração ter descoberto que ser alcoólico é quase uma forma de estar na vida, ou simplesmente não descobriu que existe a possibilidade de se divertir estando lúcida? Toda a afirmação individual, todo o status quo, muitas vezes eram transmitidas unicamente pelo diferente tipo de bebida que se segura, e se o copo que transportamos nesse recinto, é minimamente sofisticado ou não. Mas quem sou eu para julgar aquilo que prático com a mesma frequência de todas as almas nascidas durante os anos 70 e inicio dos 80?

Nessa altura em que acabava o curso, nem me apercebia dos desacatos a que me sujeitava, uma vez que após uma inconsciência noctívaga, e umas doze horas de sono chegavam para renovar as energias e ter coragem de repetir o mesmo quando a noite avançasse novamente. Agora era complicado retemperar a consciência e a boa disposição, e muito menos o corpo que ficava num farrapo. Alias, agora já peso mais uma boa dezena de quilos e o meu estômago tem uma teimosa e arreliante tendência para aumentar o seu volume, apesar dos meus esporádicos esforços de fazer umas

abdominais, a ver se a minha gravidez precoce se desvanece. Creio que a minha idade fisiológica, dá mostras que já atingi o meu auge e estou agora eu

Os seus Sábados culminavam sempre por uma noite em que expugnava todas as frustrações da semana de trabalho e vivia como se não houvesse amanhã. Habitualmente tudo começava com um jantar rigorosamente tardio num restaurante caro, num grupo de amigos restritos e amantes da borga como ele. Sílvia não era muito adepta destes inícios de noite de boa comida, e vinho ainda melhor, regadas com muita conversa e fumo durante largas horas. Ficava impaciente e começa a olhar para o relógio por volta da meia-noite com cara de enjoada e deixava de se interessar pela conversa. Ele quase que vivia para as comezainas de Sábado à noite. Eram o ponto alto semanal da sua monótona existência, e esperava com ansiedade pelo anoitecer de da noite mais longa da semana. Apesar de Sílvia ser já sua namorada há mais de dois anos, nunca tinham passado uma noite de Sábado a sós, recatados num serão calmo, sem a presença de amigos. Mas isso não lhe importava. Ela era ainda mais aficionada de bares e discotecas e era capaz de gastar duas horas a pensar no que ia levar vestido nessa noite. Não que ela se divertisse particularmente, mas sim porque gostava de ir «aos sítios da moda» e mostrar a sua nova toilette às amigas, enquanto emborcava umas quantas vodkas limão num sitio apinhado de gente, e pelava-se por cumprimentar os porteiros, dando duas de letra e dizia «- Conheci o gajo quando ainda andava no liceu. Agora faz que mal me conhece, o grande estúpido». O telemóvel tocou com uma melodia na moda, que agora lhe parecia realmente insuportável. Era Sílvia, e por momentos teve vontade de não atender a chamada. Apetecia-lhe estar completamente isolado a recuperar aquelas dores de cabeça e apenas ter raciocínios típicos de uma amiba em frente a um televisor. Mas sabia o que o esperava se não atendesse. Teria de ter de dar explicações intermináveis, e imaginava os berros e histerismo da insegurança de Sílvia, perante uma situação dessas, e isso era a última coisa que precisava de suportar num Domingo à noite. -Estou? Olá Fofa! - Disse numa voz rouca e algo dormente, enquanto se mentalizava para uma longa conversa ao telemóvel. - Bom dia João. Só agora é que acordas? Ontem não tinhas pressa para te ires deitar, e hoje é o que se sabe. Como é? A que horas passas cá por casa? Ou já te esqueceste do que combinamos ontem? Sinceramente estava com uma enorme branca na memória, mas num esforço conseguiu lembrar-se vagamente, que tinha combinado estar com a Sílvia, e uma amiga nesse Domingo. Devia estar com o raciocino completamente alcoolizado para anuir em aturar durante o resto da tarde a tagarelice de duas mulheres, ainda para mais, no único dia da semana que reservava para um dolce fare niente. Tudo aquilo lhe parecia profundamente ridículo, e só a boa dosagem de Gin Tónico, o levara a desperdiçar uma boa tarde de preguiça e recuperação lenta da ressaca. Recordava-se agora com mais alguns detalhes, que Sílvia lhe queria apresentar uma amiga da infância, que estava a estudar noutro país qualquer e que queria muito que esta o conhecesse. Parecia-lhe que Sílvia queria a aprovação da amiga, ou então pavoneá-lo a uma solteirona, tal era a insistência. -Fofa... Estou todo partido, e cheio de dores de cabeça - tem dó! Tenho mesmo que estar com vocês? - arriscou fazendo uma voz piegas. Notoriamente aquela pedinchice não iria adiantar nada, mas não custava arriscar. -João António! Tu nem penses!

Era mau sinal quando Sílvia sibilava em tom de soslaio o seu segundo nome. Era uma forma de o humilhar ou de chamar a sua atenção de forma rude. Era irritante, não pelo facto de espalhar aos sete ventos o seu nome de parolo, mas sim pela razão de repetir o mesm nome, a ponto de fazer eco nos seus ouvidos como uma frase gasta e disforme. Era impossível evitar o encontro, sem arriscar um par de discussões e quem sabe até uma zanga mais séria. Provavelmente ia ser uma tarde muito aborrecida, com conversas de mulheres e só estaria para ali a fazer o papel de namorado oficial de Sílvia. Por um lado não me importava que a minha namorada me pavoneasse enfrente às amigas, mas era meio embaraçoso sentir que se por um lado Sílvia queria algo de sério e ao mesmo tempo ter a sensação que estava a fazer um bocado o papel de nova mala espampanante ou bichinho de estimação, como a maioria mulheres gosta de fazer às amigas: provocar inveja. Nos primeiros tempos de namoro, logo no primeiro mês, tive que conhecer o grupo mais íntimo de amigas e amigos da Sílvia. A maior parte eram vizinhas e colegas da faculdade, na sua maioria gente afável e educada, mas eram um bocado certinho demais para o meu gosto. Diria mesmo que se pudesse catalogar por estereótipos o círculo de amizades e conhecimentos da minha namorada, estaria confrontado por um grupo homogéneo: betos. A principio esta ideia deixou-me algo assustado, mas Sílvia revelou-se uma espécie de ovelha negra comparada com os seus amigos, apesar de nos meus parâmetros, e de muita boa gente, era uma menina do coro. Na maior parte das vezes fiz bastante esforço para ser jovial e afável com as amigas, mas quase na totalidade eram rapariguinhas sem sabor, futuras mães modernas, donas de casa com um bom emprego. Sonhos classe média feminina, versão padronizada. Não me apetecia nada ouvir uma dessas miúdas durante a tarde toda, ainda para mais com uma miserável ressaca dominical. Como de costume os meus pais tinham ido até a sua casa de campo. Graças a Deus os velhotes tinham esse gosto por se ausentarem de Sexta-feira a Domingo à noite, indo até ao seu sonho de vida pacata no campo, numa aldeia solarenga nas margens do Douro, terra de vinhas e de cerejeiras, zona escolhida para a vidinha da reforma.

Sílvia era uma mulher muito amável, capaz de agradar instintivamente a quem quer que fosse. O seu olhar sincero, gerava nas pessoas uma confiança imediata e a sua voz suave e lânguida tornavam qualquer palavra que proferisse numa verdade absoluta. Era quase irresistível, quando fazia uma voz de mimo e talvez fosse essa a principal razão porque se apaixonara por ela. Se analisasse bem, eu e Sílvia não tínhamos muito em comum, apesar de nos darmos de forma perfeita. A personalidade viva e muitas vezes ditatorial, que gostava de ser o centro do mundo, era quase a antítese da paz de alma que ele era. «Não gosto de fazer ondas.»- afirmava sempre que os amigos me perguntavam, porque não tinha reclamado, ou exigido um serviço de mesa menos cuidado. Era costume criticar a minha apatia perante algum tipo de falta de qualidade ao ser servido e por não trocar umas calças que tivessem defeito. Sílvia pelo contrário, era capaz de mandar para trás um café com leite que não estive ao seu gosto, num acto autoritário e perfeitamente usual para ela. Isso não o incomodava muito, mas em certas situações ficava algo envergonhado pelos olhares reprovadores

(...) Dormira mal como de costume. Deitara-se tarde, pois tinha ficado a ver até ao fim o filme da TV. Odiava as horas proibitivas que os canais de televisão decidiam passar alguns filmes interessantes, mas odiava-se ainda mais por ficar feiro uma lontra no sofá a assistir a esses filmes. Ainda para mais os intervalos eram prolongados por intermináveis comerciais. Será que haverá ainda alguém que se entusiasme por um novo detergente com reclames às duas da manhã? Com certeza as donas de casa vão todas apontar no seu caderninho de compras, às duas da matina: comprar o novo Ajax amanhã no Continente. Lógico! Faz todo o sentido! Como queria ver o fim do filme lá ficou estendido feito numa lontra, preso ao grande ecrã, esperando um final para aquele filme. Agora estava feito, com quatro horas e meia de sono e a chegar quase atrasado ao emprego. Odiava as segundas-feiras. Eram a antevisão de uma semana de trabalho, crua e dura, justamente quando começava a habituar-se ao descanso do fim-de-semana. Não era propriamente o descanso, mas sim a ideia do lazer descomprometido, a ausência de horários stressantes, de ócio e preguiça lânguida. Agora, ainda agoniado de sono e de um pequeno-almoço engolido à pressa, regado a café expresso, sentia que nas suas têmporas, as veias latejavam, graças a uma exasperante fila de trânsito, que lhe reclamava minutos preciosos. Mais um par de minutos e iria passar pelo olhar desaprovador do Cerqueira, e de outros colegas. O seu silêncio de reprovação ao seu atraso, seria pior que um par de insultos e repreendidas, um atestado de incompetência e descuido inadmissíveis. Ele sabia-o, e odiava-se por se atrasar. Trabalhava num banco. Era um emprego que há uns anos era bastante conceituado, mas agora era uma espécie de neo-escravatura. O salário era banal, e tinha que atender ao balcão e simultaneamente gerir uma carteira de pequenas e médias empresas. Para cumulo, os bancários tinham que fechar o expediente depois do enceramento do banco, acabando por trabalhar muitas horas extras que obviamente não eram pagas. A competição da financeira ainda colocava objectivos por cumprir a sua repartição que eram verdadeiros desvairos dementes de um punhado de subdirectores demasiadamente bem pagos e que não tinham noção do que se passava no campo. Na sua repartição trabalhavam seis colegas e um gerente, que se limitava a gerir e a ir visitar alguns clientes interessantes para vender uns produtos bancários, à coca de umas comissõeszinhas, colocando os soldados rasos a labutar no duro. Não gostava muito do Cerqueira, pois era um sujeito que sabia bajular os superiores e era um perito em chamar para si os louros do trabalho da sua equipe. Era um sujeito que tresandava a respeitabilidade, nos seus trinta e muitos, carreira estável, típico chefe de família de classe média que tinha chegado ao seu auge de sucesso. Volvo, dois filhos no colégio, mulher sempre impecável que nem trabalhava, uma vivenda de 40 mil contos num subúrbio «bem», fatos caros, ele era a personificação do que os anúncios do banco apresentavam como os seus excelentes quadros. Cerqueira sabia-se valer dessa imagem de profissional de «sucesso» para criar uma aura de «sucesso», conseguindo iludir assim as suas pequenas incompetências e esquecimentos. Era um homem muito ocupado e as vezes escapava-lhe algo, era o seu argumento quando encrava algum cliente mais descontente com algum atraso na decisão de empréstimo, ou no atraso de uma transferência internacional, algo de irritantemente português. Sabia dar a volta aos casos complicados usando o seu charme, e notoriamente usava o seu físico e fatos impecáveis para seduzir e flirtar com algum piropo subtil todas as clientes do sexo feminino dos 18 aos 55.

A profissão de bancário, já não é o que era, mas mesmo assim tinha as suas regalias. Um homem de fato e gravata atrás de um balcão, acaba sempre por ter o seu charme, e se somarmos a isso, o eterno afrodisíaco feminino que é a a importância aparente, e do lidar de perto com montes de dinheiro, tornava-o instantaneamente num bom partido. Era bastante saudável para o ego ser olhado pelas mulheres como um gelado de chocolate num dia de Verão. Como resultado, eram poucos os seus colegas de profissão, que não tenham tido as suas aventuras extraconjugais, ou mesmo amantes de longo curso. O Silva e o Costa eram da velha guarda, da época dourada dos bancos. Rondando ambos os 45 e já com uma barriguinha pronunciada de largos anos de treino com cerveja e tripas à moda do Porto, estavam no segundo casamento com mulheres mais novas. Mesmo assim assumiam um típico laxismo de bancário da função pública, a quem o Cerqueira não se atrevia a resmungar. Puxariam os seus galões sindicais e os seus vinte anos de casa, que tornariam qualquer repreendida, letra morta. Ademais eram dois dinossauros de outra época e que conheciam a maioria dos clientes antigos pelo nome. Eram a instituição, pura e simplesmente. Gostavam de fazer uma dupla nos piropos às «gajas» e assumiam uma verdadeira postura de T.S.s (Tarados Sexuais), típica do macho estereotipado português. - Olha-me só aquele par que vai para a caixa. - Costumava dizer, o Silva, o mais alerta da parelha. Costa esboçava sempre sorriso matreiro e por vezes dava uma pontuação, muito arbitrária, influenciada pelo o facto da «gaja» ser loura ou não. Eram o perfeito retrato de uma tradição masculina muito enraizada no nosso povo. Apenas tinham uma pequena camada de verniz, em relação ao comum dos trolhas, empoleirados nos andaimes, que assobiam e emitem grunhidos cró-magnon quando vêm uma anca torneada, ou uma calça justa a abanar lá em baixo. Depois havia a doutora Carla, uma recém-licenciada, que como ele se tinha iludido com a ilusão e patranhas do início da década de 90, que quem tira um curso superior têm um emprego garantido numa grande empresa e vai liderar uma grande equipa. Incapaz de ser ambiciosa estava remetida essencialmente na caixa e mesmo assim teria sido preciso uma boa cunha de manda-chuva para estar ali a trabalhar. Até que era uma miúda jeitosa, mas dava-se ares de «eu sou toda boa» que lhe tinham garantido um total e incondicional ostracismo pelos seus colegas de trabalho. Apenas lhe trocavam algumas escassas conversas fiadas e o mínimo de atenção exigido pelo trabalho. Só ele lhe prestava alguma atenção extra, pois já se tinham cruzado algumas vezes na noite, e de vez em quando, quando tinha que utilizar os transportes públicos, acabavam por estar um pouco na mesma paragem de autocarro. Tinha cabelo curto, castanho-escuro e umas feições sorridentes, com nariz meio empertigado e olhos azuis. O seu olhar lânguido, bastante lusitano, atraía a curiosidade de qualquer homem, mas que era logo afastado pelo seu manifesto desinteresse com uma expressão ausente e frígida. O facto de ser bastante bronzeada e ter um corpo escultural, nada magra, mas torneada sem ser carnes a mais, com seios generosos e ancas largas, faziam dela um regalo à vista. Podia ser perfeitamente um modelo que Matise pintou no Tahiti. (...) Eu não sou propriamente o que se poderia chamar de intelectual. Muito pelo contrário, mesmo que hoje em dia qualquer Barbara Guimarães desta vida possa dar-se ares de intelectualoíde e amante da cultura e arte. A arte sobe muitas formas sempre me fascinara, mesmo que não fosse nenhum entendido, ou sequer interprete do significado de muitos aspectos da arte e da cultura. Gosto de ir à Serralves ver uma exposição de pintura ou escultura moderna. Não que seja muito apreciador de arte contemporânea e muito menos porque está na moda ser

uma pessoa instruida, que vai a todas as exposições. Apenas me fascina observar algo de inteligível, como vislumbrar uma obra ser tecer juízos e explicações. Acho que toda a arte, desde as pinturas rupestres, até a última vídeo-instalação multimédia-workshopexprimentalista, não é mais que a tentativa destes bichinhos de captar a essência de algo que não dominamos, e transmitir o inexplicável. Mesmo que não entendamos algo, isso não significa que o não o possamos sentir, e ficar comovidos com o que retrata ou transmite. Isso é arte. Sente-se, mas não se pode explicar. Agora não me venham com cinismo críticos, nem a balela dos entendidos e peritos em artes. Aqueles sujeitos que avaliam a arte e a criticam, são na sua maioria e um bando de frustrados, incapazes de criar. São como que um conjunto de impotentes que avaliam prostitutas de rua. São algo de nojento, não por se limitarem a julgar, mas sim por fazerem a catalogação de estilos, comparações, alusões de outras obras. Isso é tão repulsivo como enfiar livros nas estantes de uma biblioteca, baseando-se em critérios complexos que ninguém compreende. Ademais eu também não compreendia onde queriam chegar, muito menos estudar para saber que pensamentos e escolas artísticas contemporâneas existem. Não é isso tudo um mero display de conhecimentos culturais, um pavonear de conceitos? Resumindo, tudo isso era uma inutilidade que apenas servia para meter uma trela na arte e para meter um arreio nos criadores de arte, dando poder a determinados senhores perfeitamente impotentes. Sílvia era diferente. Não era capaz de arriscar uma opinião sua sem ter lido algo no Cartaz do Público, ou noutro meio mais ou menos credível no meio das artes. Ao contrário dele, Sílvia adorava um pequeno debate sobre a qualidade de um filme, ou da capacidade literária de um novo escritor, na nova linguagem da pintura ou escultura exposta. Até que era capaz de argumentar alguns pontos de argumentação elegantes, mas muitas vezes não estava realmente a apreciar algo, mas sim a catalogar e a tentar brilhar numa conversa. Adorava ser vista numa exposição e gostava sempre de dizer às amigas que já tinha ido ver este ou aquele filme que só passam em cinema fora dos centros comercias, ou da mais recente exposição da Casa Serralves. Sentia-se de certa forma orgulhosa de ser culta ou pelo menos se interessar por algum meio artístico, mesmo que o interesse foi o seu móbil e não o gosto em si pela arte. Nos dias que passam, é bastante chic ir aos Sábados até a Rua Miguel Bombarda, passear pelas galerias e ateliers, com ares por um mecenas na pobreza. Mas isto só no caso de estar irrepreensivelmente agarrado à cara-metade, não vá a comunidade gay residente mostrar o seu afecto e carinho, por carne fresca. Lógico que a rua que estava cheia de banalidades, mas estava carregado de um aroma interessante ao «Underground», com bastante gente estranha circulando. Na maioria dos casos, os frequentadores habituais daquela zona estavam directa ou indirectamente relacionados com Belas Artes, com as escolas de Design do Porto, ou simplesmente pessoas dadas às artes e as noites mais Undergrounds. Quanto a miúdas que se passeavam por aquele meio, com roupas algo estranhas e cortes de cabelo radicalmente curtos não eram nada de deitar fora. Percorrendo a rua com Sílvia a seu lado, vendo as montras e entrando nas galerias e pequenas lojas até que era uma boa forma de terminar a tarde de Sábado. Se pensasse bem, antes de Sílvia descobrir as riquezas e glamour daquela zona, estava sujeito a banhos de multidão extasiada no centro comercial mais repleto de populaça e mirones, onde a maioria dos camelos da sua cidade gostavam de passar o Sábado à tarde a fazer compras. Essa tortura semanal era a visão mais próxima que eu tinha do Purgatório caso ele existisse. Toda a rua Miguel Bombarda é um pequeno vespeiro, com algumas iniciativas comerciais de pouca monta. Algumas galerias de pintura, serviam de pólo de atracção e a sua volta girava todo um pequeno universo, que ia até a boutique de moda

mais ao gosto de jovem estilista, até ao cabeleireiro vanguardista, a loja de discos de importação e pequeno estamine de antiguidades domésticas retro dos anos 70. Era apenas uma rua estreita de um sentido só, ladeada pequenas casas dos anos 30 e de prédios muito ao estilo do estado novo dos anos 50 e 60. Os carros ocupam o panorama em todo o seu comprimento, esbatendo-se no negro do alcatrão, na cinza escuro e verde musgo que encimam as casas. Era provavelmente uma rua tão feia como as outras naquela cidade de artérias estreitas da cor de granito húmido. Era o habitat perfeito para artistas, aspirantes a pintores, gente da música, frequentadores da Serralves, pseudo-intelectuais, designers e um ou outro coleccionador. Era um bairro de artistas em miniatura e à portuguesa, quase caricatural, à escala da cidade do Porto, que mesmo assim não deixava de Ter a sua importância na cidade, como pequena ilhota rodeada de um vasto oceano de marasmo. Até que eu gosto de ir lá aos Sábados, sentir o gostinho estranho de algo ligeiramente exótico, com um travo a cidade cosmopolita, apenas de ligeiro tempero, como uma pequena pitada de sal. (...) Questiono-me porque é que para estar nas boas graças do mundo artístico em Portugal, hoje é necessário ter um carimbo de certificação de autenticidade da comunidade gay, ou no mínimo ter dado provas mais que suficientes que se apoia a «minoria» sexual. Não sou homofónico, nem para lá caminho, e como muitos amigos e conhecidos mais elucidados, advogo a teoria de que a homossexualidade nada tem de mal. Se alguém se quiser assumir gay, isso é lá com ele ou ela, nada tenho a ver com isso. E desde que não se venham assumir para a minha cara e não me andem a piscar o olho como paneleiroides efeminados, tem todo o direito de irem para a cama uns com os outros e terem as suas promiscuidades gayzolas.

Em determinadas alturas da vida um homem não se consegue dominar, comportando-se como um verdadeiro primata. Ele sempre dera ouvidos a teoria da evolução das espécies, mas nunca aprofundara o seu verdadeiro significado com mais profundidade. Não era apenas um conjunto de abordagens biológicas ao entendimento do homem, mais sim algo de perversamente mais profundo do que o homem é. Para lá das cavernas e essas tretas todas que nos avançam como o novo génesis científicos, esta a perigosa ideia que há um símio dentro de nós. O seu antepassado não um pacato chimpanzé, mas sim um gorila agressivo. Um besta imprevisível, que a natureza tentou equilibrar dando miolos, e retirando todo o tipo de músculos, para não causar tantos estragos. Tornou o homem um ser mais fraco possível, apenas capaz de raciocinar para se adaptar e sobreviver melhor. O problema é que a besta ficou inteligente de mais. E aí estava: além de uma fina camada de verniz de civilização, residia uma besta sanguinária capaz de ataques de agressividade impulsivos e inevitáveis. A competição animal por comida e sexo, baseada na lei do mais forte, do macho dominante com força suficiente para partir o pescoço a todos os rivais, existe ainda subrepticiamente impregnada no nosso córtex, e não foram 500 mil anos de evolução genética, nem 10 mil anos de civilização que nos ofuscaram totalmente os instintos primordiais. Apenas focamos outros alvos da nossa frustração, e em vez de pagarmos num galho para bater com ele animalisticamente em tudo o que nos rodeia, preferimos mais aceitavelmente, focar os nossos alvos de insatisfação noutros domínios. (...) Todos somos assassinos natos, só que para vivemos em grupo sem nos massacrarmos todos de uma vez, pois os nossos antepassados inventaram um conjunto de regras e normas de conduta chamada sociedade. A coisa até que resulta minimamente pois impôs uma série de regras e tabus que tem funcionado mais ou menos bem, a ponto de nos esquecermos lá na cave mental dos nossos impulsos primários de sobrevivência: matar e fuder. Mas o monstro que há em nós vem muitas vezes à tona. Basta vez a quantidade de criminosos que quando pega num volante de um automóvel, seja ele um Citroen Saxo ou um Porche Carrera 4, se julga o único proprietário do território chamado estrada. Mesmo as avozinhas são capazes de degolar com as próprias mãos qualquer filho da mãe que lhe atravesse o carro à sua frente. (...) Seguramente não existe muita paz no mundo quotidiano em que todos vivemos. O nosso dia a dia repercute-se, como num matraquear de teclas de piano, com uma melodia repetitiva em que o eco se confunde com as notas anteriores. Os dias são basicamente iguais uns aos outros, repetindo-se com algumas variantes de tonalidade, embora a melodia e enredo sejam basicamente as mesmas. Sentia agora isso, como se tivesse sido repentinamente iluminado por esta ideia semi-revolucionária. Havia algo de indescritível neste conceito. Algo de obsceno, como se todo não passasse de uma mentira passada ao povo, que tinha passado da escravatura, da idade média, para ao automatismo da urbe. Éramos meros autómatos e minúsculas peças de grande engrenagem do capitalismo, uma formiga dispensável do formigueiro, que as democracias de hoje nos vendiam. Somos meros escravos da sociedade de consumo. Comprem, gastem, usem! Eras nos novos mandamentos do homem moderno.

Estas ideias não lhe podiam estar a azucrinar a cabeça. Eram demasiado depressivas e marginais, para um sujeito que nunca tinha tido uma opinião política. Pouco se estava lixando para as eleições e todas essas parvoíces das tribos esquerda e direita que tanta tinta fazia rolar e que davam tantos debates a Assembleia da República, abriam boletins noticiosos. Dava vontade de rir, ver todos aqueles saloios com bandeiras e sacos plásticos, com as cores do partido. Pareciam que iam a um desafio de futebol, com claques para apoiar o seu clube e craques que metam golos. Pensando bem esta história da democracia fedia, parecendo mais um calmante de massas cooperativistas, tentando iludir e manipular com questões secundárias a grande besta dos tempos modernos: a opinião pública. Afinal a besta estava domada e não passava de um mando gatinho que se prende em contemplação por muitos pormenores ao mesmo tempo, escapando-se-lhe algo de concreto. Por isso achava abjecto falar de política. Tudo aquilo era um nojo, liderado por corruptos e para manter os amiguinhos que também se aproveitavam dos saloios para arranjarem tacho.

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