Por Uma Universidade Transdisciplinar Em Cabo Verde

  • November 2019
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POR UMA UNIVERSIDA DE TRANSDISCIPLINAR EM CABO VERDE 1

Ponto focal e fulcral da dimensão transcultural cabo-verdiana Por Jorge Sousa Brito 2

RESUMO As razões históricas e geográficas fizeram de Cabo Verde ao longo dos últimos cinco séculos, um lugar de confluência de civilizações e de experimentação/aclimatação dos mais diversos recursos e ideias. Isto traduziuse numa sociedade aberta ao mundo, numa economia de circulação e na personalidade universal do homem cabo-verdiano. A pertença a várias redes potenciais: de carácter cultural (CPLP), climático (Sahel), biogeográfico (Macaronésia), económico (CEDEAO), etc. fazem de Cabo Verde nesta era da globalização, um nó comum às diversas redes. Muitas vezes se tem afirmado que o homem cabo-verdiano é o maior recurso da Nação. Mais em termos de potencialidade, isto deverá traduzir-se num sério investimento na sua formação. As bases do Ensino Superior assentam-se na trilogia Formação, Investigação e Extensão. Recentemente se vem juntar a este conjunto, um elemento integrador que é Transdisciplinaridade. A imprescindível necessidade de formação, o carácter universal do caboverdiano, a situação geográfica do arquipélago, as oportunidades de investigação, a pertença a diferentes redes, a vivência e o ambiente humanista e transcultural de Cabo Verde, faz com que o nascimento de uma Universidade Transdisciplinar no País pareça algo de muito natural.

A necessidade duma Universidade em Cabo Verde é já quase um dado adquirido e aceite por todos. Porém, que ela seja transdisciplinar não é por demais evidente, não só porque o conceito de transdisciplinaridade é mal conhecido pela maioria das pessoas, como também a fundamentação de tal pretensão carece de maior marketing. Entretanto, esta característica torna-se quase que uma evidência pela idiossincrasia envolvente. A transdisciplinaridade é um novo modo de conhecimento que apareceu nos últimos anos do século XX para dar resposta à complexidade crescente do mundo e à aceleração sem precedentes do saber tecnológico e disciplinar. A multiplicidade de disciplinas e de informações patentes no mundo actual, aliadas aos cada vez mais eficazes meios de comunicação e de divulgação, trazem uma crescente desorientação ao indivíduo que não sabe lidar com as mesmas e é levado

1

Comunicação apresentada no colóquio “L’Umanesimo Latino e L’Umanesimo Africano” realizado de 6 a 8 de janeiro de 2000 na cidade da Praia, República de Cabo Verde 2 Professor do Instituto Superior de Educação e Director Geral do Ensino Superior e Ciência de Cabo Verde

a ter visões parcelares, seccionadas, descontextualizadas e inadequadas, da realidade complexa. Este problema levou a que se concebessem abordagens fundadas na utilização de várias disciplinas em sintonia para estudar uma realidade complexa; trata-se da multidisciplinaridade. Uma outra abordagem consiste em fazer transferir os métodos típicos de uma disciplina para outra a fim de se estudar um determinado objecto ou realidade complexa; trata-se da interdisciplinaridade. Estas abordagens, não deixam no entanto de se inscrever no saber disciplinar. A transdisciplinaridade, porém, diz respeito ao que se encontra entre as disciplinas, através das disciplinas e para além de toda a disciplina (Bassarab NICOLESCU 1998). O estudo e o uso da transdisciplinaridade tem por finalidade a compreensão da realidade complexa do mundo actual, fazendo a sua integração centrada no sujeito, e visando a unidade do conhecimento. A UNESCO cedo se interessou pelo pensamento transdisciplinar, e apoiou o CIRET (Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires) na realização em 1997 dum congresso internacional sobre o tema “Quelle Université pour demain? Vers une évolution transdisciplinaire de l’Université”. Os resultados e recomendações deste congresso inspiraram alguns artigos da Déclaration Mondiale e do Cadre d’Action Prioritaire saídos da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior que teve lugar em Paris de 5 a 9 de Outubro de 1998: 1. Da Déclaration Mondiale: Artigo 5 (a) –“Faire progresser les connaissances par la recherche est une fonction essentielle de tous les systèmes d’enseignement supérieur, qui se doivent de promouvoir les études de troisième cycle. L’innovation, l’interdisciplinarité et la transdisciplinarité devraient être encouragées et renforcées dans les programmes, avec des orientations à long terme vers des objectifs et des besoins sociaux et culturels. Un équilibre judicieux devrait être trouvé entre recherche fondamentale et recherche ciblée.”. Artigo 6(b) – “L’enseignement supérieur doit renforcer ses fonctions de service de la société, en particulier ses activités visant à éliminer la pauvreté, l’intolérance, la violence, l’analphabétisme, la faim, la dégradation de l’environnement et la maladie, par une approche interdisciplinaire et transdisciplinaire de l’analyse des problèmes et des enjeux.” 2. Do Cadre d’Action Prioritaire : Artigo 6 - “Lorsqu’ils arrêtent des priorités dans leurs programmes et leurs structures, les établissements d’enseignement supérieur devraient: a) tenir compte du respect de l’éthique, de la rigueur scientifique et intellectuelle ainsi que de l’approche multidisciplinaire et transdisciplinaire”

A metodologia transdisciplinar repousa sobre três pilares: os níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído e o da complexidade. Esta capacidade de lidar com o pensamento complexo torna a transdisciplinaridade recomendável nas estruturas e programas da Universidade do novo século. Neste particular uma das vocações da transdisciplinaridade é a procura das medidas necessárias para adaptar a Universidade ao espaço cibernético das novas tecnologias da informação e da comunicação. Esta partilha universal dos conhecimentos e saberes à luz das novas correntes patenteadas nas referidas conferências de Locarno e de Paris, não pode passar ao lado duma nova tolerância fundada na atitude transdisciplinar que passa na prática por uma visão transcultural, transpolítica, transreligiosa e transnacional. Não podemos pois passar ao lado da relação directa entre paz e transdisciplinaridade. Para um cabo-verdiano a leitura deste último parágrafo é-lhe completamente familiar. Pensamos que Cabo Verde mais do que ser a tradução duma vivência transcultural, transpolítica, transreligiosa e transnacional, é o ponto de confluência de diversas outras visões e realidades. As razões históricas e geográficas fizeram de Cabo Verde ao longo dos últimos séculos um lugar de confluência de civilizações e de culturas e um autêntico caldeirão onde se forjou esta vivência “trans...”. Vejamos algumas destas particularidades: • Simultânea e propositadamente Cabo Verde foi utilizado como campo de experimentação e aclimatação de novas essências vegetais e de animais trazidos da África e da Ásia antes da sua introdução nas Américas e na Europa. • O tráfico e comércio de escravos requeriam a chamada ladinização de muitos deles para poderem servir de copeiros, amas, mordomos, cozinheiros, e outras funções mais mundanas do que a de simples trabalho braçal. • A multiplicidade de etnias africanas entre os escravos confinados provocou uma troca de experiências ímpar e a formação paulatina de um sentimento de solidariedade e de uma capacidade de transmissão de ideias e de pensamentos por processos não verbais ou por uso na comunicação verbal de onomatopeias e metáforas sugestivas. Nasce o pidjin e mais tarde o crioulo. • A desertificação e as secas levaram à emigração sistemática do povo caboverdiano. As diferentes paragens em que o cabo-verdiano se encontra aliadas à tradicional vontade do mesmo em regressar à terra, propiciam um vaivém de saberes e de informações extraordinário. Nisto podemos dizer que a globalização chegou a Cabo Verde desde o início do século XIX.

Por outro lado, as características sócio-geográficas de Cabo Verde conferem a este arquipélago uma posição privilegiada como denominador comum de diferentes redes de carácter: • Cultural – pertença à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (8 países) • Climático – membro do Comité Inter-estados de Luta contra a Seca no Sahel (9 países) • Biogeográfico – sendo ilhas do Atlântico Norte e de origem vulcânica pertencentes à Macaronésia. (4 arquipélagos, 3 países) • Económico – membro da Comunidade Económica Dos Estados da África Ocidental (16 países) A conjunção destes diversos factores, bem como do encontro e convívio (mais do que convivência) dos chamados humanismo latino e humanismo africano, moldaram o homem cabo-verdiano e a vivência em Cabo Verde, de tal sorte que criaram algo de mágico nestas ilhas: • A sensação do visitante de se encontrar em casa; • A facilidade como as inovações se integram no quotidiano cabo-verdiano como se há muito lhe pertencessem, tomando de imediato um carácter de caboverdianidade; • O entrosamento imediato com os problemas do Mundo e a empatia automática do cidadão cabo-verdiano junto ao não cabo-verdiano. • A mensagem portadora de um misto de bem-estar, de paz e de alegria, não traduzível por palavras, que invade o visitante e o deixa com vontade de regressar. Isto é o que é chamado de Morabeza, traduzido no encantar da música cabo-verdiana (veja-se o fenómeno Cesária Évora). Esta Morabeza pode ser vista como o retratar de uma visão, atitude, vivência transdisciplinares. Seguindo as recomendações da UNESCO devem os Estados repensar as suas Universidades. A transdisciplinaridade faz parte das recomendações. Cabo Verde já tem uma vivência transdisciplinar. Cabo Verde está neste momento a reorganizar o seu sistema de Ensino Superior com vista à criação da Universidade Pública de Cabo Verde. Façamos então um raciocínio em cadeia por frases feitas: 1. As Universidades conhecimentos

são

(ou

deviam

ser)

fábricas/laboratórios

de

2. Os conhecimentos devem ser universalmente partilhados 3. A partilha universal de conhecimentos carece da emergência de uma nova tolerância baseada numa atitude transcultural, transpolítica, transreligiosa e transnacional

4. Este tipo de partilha permite a criação de sabedoria 5. A sabedoria é a mãe da tranquilidade e da paz, esta indissociável de uma atitude transdisciplinar e transcultural. 6. Sente-se a necessidade de uma visão transdisciplinar no e do Mundo 7. A investigação transdisciplinar precisa de ser desenvolvida 8. O melhor meio de se desenvolver a investigação transdisciplinar é a Universidade 9. A idiossincrasia cabo-verdiana representa condições óptimas para a investigação transdisciplinar (como objecto e como instrumento). 10. Há necessidade urgente da criação de uma Universidade em Cabo Verde 11. Esta Universidade deverá ser inserida num ambiente de rede, para que possa desempenhar o seu papel e complementar a utilidade de Cabo Verde no contexto da globalização 12. Tudo aponta inexoravelmente para uma Universidade transdisciplinar

em Cabo Verde Termino considerando que o homem cabo-verdiano é um ser transdisciplinar que em pleno século XX é já um protótipo do homem do século XXI. Faço votos que antes do fim do século XXI ele já seja o protótipo do homem do século XXII. E para isso é imprescindível a criação de uma Universidade transdisciplinar em Cabo Verde, para o bem de Cabo Verde e para o bem da Humanidade.

Bibliografia

Michael Gibbons, 1998 – L’enseignement supérieur au XXIème siècle, Education/The World Bank, documento apresentado na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior - Paris de 5 a 9 de Outubro de 1998. Edgar Morin, 1997 – Réforme de pensée, transdisciplinarité, réforme de l’ Université, comunicação apresentada no congresso internacional sobre o tema “Quelle Université pour demain? Vers une évolution transdisciplinaire de l’Université”, Locarno, Suíça (30 de abril a 2 de maio 1997) Basarab Nicolescu, 1996 – La transdisciplinarité, manifeste, Éditions du Rocher, Collection “Transdisciplinarité”, Paris, 1996 Basarab Nicolescu, 1998 – Éducation, Transdisciplinarité et Politique de Civilisation, comunicação apresentada na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior -Paris de 5 a 9 de Outubro de 1998 UNESCO 1999 - Déclaration mondiale sur l’enseignement supérieur pour le XXIe siècle et Cadre d’action prioritaire pour le changement et le développement de l’enseignement supérieur.

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