Arenga e reza de um guia de Ouro Preto Paulo Mendes Campos Senhoras e senhores: Antes que Vila Rica se desfaça, Vamos falar aqui e agora Do que fica do que passa.
Nestes lençóis de linho Debruados de rendas, nestas ciciantes musselinas, Estenderam seus corpos muitas damas ilibadas E talvez três ou quatro (ou trinta e quatro) Messalinas.
Vila Rica, como até os cegos podem ver, É feita de ladeiras, todas elas assombradas. Olhem estas bandeiras: Estes beirais, estes balanços de sacadas.
Outro inglês — este o geólogo John Mawe — Depois de flanar no frio arisco de Vila Rica, Falou e disse: “Nunca vi camas tão magníficas Como as camas deste gente rica”.
Já vetusto era o teatro quando nele cantou a Candiani As árias da Norma — e tenham em vista Que só cinquenta anos depois aí orou e perorou o Rui... Quando havia campanha civilista.
Vejam as cornijas e as molduras destas janelas. Mas na verdade, brasileiras e brasileiros, Raramente elas emolduravam A formosura bem guardadíssima das donzelas.
Esta Ponte do Rosário, também chamada do Caquende, Está atravessada numa estância do Ouvidor. E esta, de cantaria trabalhada, É a Ponte dos Contos, também cruzada pelo trovador. O inglês Richard Burton — não o ator galês, Mas o amigo de Dom Pedro II — Aqui deu o ar de sua graça, com seu gosto meio raso E seu saber meio profundo.
Aqui se vendiam os escravos. Uma negra jovem e bonita valia bom dinheiro. E pagava-se até mil cruzados Por um bom negro trombeteiro. Nos cantos destas ruas ficavam acesos Nichos votivos, e os nichos votivos Acabaram misturando os santos novos Aos deuses negros primitivos.
Num belo dia de 1867 Burton parou na Fonte dos Contos. Matou a sede, leu a inscrição e fez assim: “Bood Heavens. Shocking. A água de Minas é melhor que o latim”. Meio caolho para as talhas do Aleijadinho, Burton teve, no entanto, inteira razão Ao improvisar um ditirambo para o velho — E nunca assaz louvado — tutu de feijão.
Havia quatro jornais aqui em Vila Rica. Todos os quatro fervilhando de política. E quando deste local se fez uma casa de fundição, O fisco fundiu o ouro e forjou uma rebelião.
Mário de Andrade cá esteve como quem anda à-toa, Mas com seus olhos de lente polivante Viu num átimo a verdade genial e facetada Do Mestre Antônio Francisco Lisboa.
Assim, pedindo a bênção a Rodrigo de Andrade, E a poesia a Manuel Bandeira, “Rezemos para que não se desfaça Nem a vila de ontem, nem a cidade Que deve conter o que fica do que passa”.
Depois do gigante de São Paulo deu um pulo Ali na Mariana dos lúgubres responsos E estreitou comovido A mão espiritual do pobre, pobre Alphonsus.
Aqui Saint-Hilaire viu dançando o fandango A mulata desatada e namoradeira: Será a nação que já vinha mestiça e brasileira.
Reza Nosso Senhor do Bonfim, Não deixes que Vila Rica tenha fim.
Nossa Senhora do Rosário, Preservai o vosso relicário. Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias Deitai o vosso olhar sobre estas pedrarias. Nossa Senhora do Morro do Cruzeiro, Tende misericórdia da pátria do mineiro. São Francisco de Assis, Arrebanhai as capelas todas e a matriz. Nossa Senhora das Mercês e dos Perdões, Rogai por Vila Rica em suas comoções. São João Batista, Abençoai vossa capela e seu artista. São Sebastião, Defendei a inocência da pedra-sabão. Sant’Ana, Protegei a humanidade vila-ricana. Nossa Senhora das Necessidades, Protegei Vila Rica nas enfermidades. Nossa Senhora das Dores, Tende compaixão, nestes ares sujos, destas velhas cores. Nossa Senhora da Piedade, Atendei Vila Rica na hora da orfandade. Nossa Senhora do Pilar, Fazei de Vila Rica vosso altar. Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, Conservai Ouro Preto, Vila Rica de Jesus.
(Jornal Estado de Minas, Domingo, 12/02/1989)