O DESENHO COMO UM SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO* Existem diversas explicações sobre a aquisição de conhecimentos, que correspondem a linhas teóricas distintas, subjacentes a qualquer trabalho ou estudo. Nesta pesquisa, concebe-se a construção de conhecimentos como desenho como fruto da interação da criança com este objeto; e a linguagem gráfico-plástica como um sistema de representação a ser re-construído pelo sujeito ao se apropriar deste objeto de conhecimento. Dentro deste enfoque, a criança não nasce sabendo desenhar, mas constrói seu conhecimento acerca do desenho através da sua atividade com este objeto de conhecimento. Nesse sentido, a criança não desenha o que vê nos objetos, mas o que suas estruturas mentais lhe possibilitam que veja, e mais, em lugar de encontrar o mundo diretamente, a criança o interpreta. Dessa forma, o conhecimento não resulta da relação direta da criança com os objetos, mas de sua interpretação e representação. Assim, a criança é o sujeito do seu processo, ela aprende a desenhar na sua interação com o desenho, o que lhe propicia construir hipóteses acerca da natureza, valor e função deste sistema. Para tal, a criança produz e interpreta desenhos, seus e dos outros. Nesta linha teórica encontram-se Luquet, Piaget, Gardner, Godnow, Freeman e Brent Wilson. Luquet foi um dos primeiros estudiosos a se interessar pelo desenho da criança do ponto de sua evolução cognitiva. Ele procurou compreender o quê e como a criança desenha, enfocando o sujeito da ação, as intenções e as interpretações que a criança dá às suas produções. Piaget, ao tratar o desenvolvimento do desenho espontâneo da criança, adota os estágios propostos por Luquet interpretando-os, a partir do nível do realismo fortuito, do ponto de vista da representação do espaço. Gardner dá uma abordagem não só cognitiva, baseada em Piaget, mas também afetiva ao desenho da criança, analisando-o à luz dos vários sistemas de simbolização. Godnow diz que os desenhos nos fornecem informações tanto sobre o trabalho gráfico da criança como sobre a natureza do seu pensamento. Para a *
Extraído da dissertação de mestrado “Desenho e Escrita como Sistemas de Representação” de Analice Pillar.
autora, o desenho contém algumas propriedades do objeto e a convenção do desenho determina quais propriedades são incluídas e de que modo. Freeman observa que a criança ao desenhar relaciona o conhecimento que possui dos objetos com o conhecimento das convenções gráficas próprias ao desenho. Brent Wilson dá ênfase às influências culturais, especialmente aos desenhos
de
outras
pessoas
por
apresentarem
objetos
traduzidos
em
configurações bidimensionais, que informam o processo de desenho das crianças. Adotamos os estágios do desenvolvimento gráfico definidos por Luquet com atualizações dos autores citados acima. Estes estágios são realismo fortuito, incapacidade sintética, realismo intelectual e realismo visual. A opção pelos níveis de Luquet se prende ao fato de a maioria dos autores, ao abordar o desenho do ponto de vista das construções do sujeito, ter-se referido a Luquet. Alguns inclusive seguem sua classificação. REALISMO FORTUITO Segundo Luquet, o estágio do realismo fortuito subdivide-se em desenho involuntário e desenho voluntário. No desenho involuntário, a criança desenha não para fazer uma imagem, mas para fazer linhas, porque não tem consciência de que as linhas feitas possam igualmente representar objetos. Esta etapa é caracterizada pelo gesto motor pelo prazer de traçar linhas, e, nela, a criança não atribui nenhum significado a seus grafismos. Para Piaget este estágio inicial do desenvolvimento gráfico da criança não comporta simbolismo e consiste em a criança repetir, pelo simples prazer, as atividades motoras adquiridas. O desenho voluntário inicia quando a criança constata uma certa analogia entre alguns dos seus traçados e um objeto real e considera seu desenho como uma representação do objeto, dando-lhe uma interpretação. Luquet estabeleceu uma distinção entre o que a criança diz antes de realizar o desenho e o que ela diz após ter feito o desenho. Assim, o que a criança enuncia antes de desenhar o autor denomina de intenção, e o que ela diz após a criação do desenho ele chama de interpretação.
No desenho voluntário, primeiro a criança desenha sem intenção de representar alguma coisa e, ao concluir o trabalho, interpreta-o de acordo com sua semelhança a um referente qualquer, atribuindo-lhe o nome deste. Depois, surge a intenção, o desejo consciente de desenhar um objeto, o qual após sua criação pode ter uma interpretação diferente da intenção inicial. Por fim, a intenção de representar, coincide com a interpretação dada ao desenho. De acordo com Luquet, é na etapa do desenho voluntário que a criança adquire a convicção de que pode representar através do desenho tudo o que deseja. INCAPACIDADE SINTÉTICA No estágio da incapacidade sintética, a criança está preocupada em representar cada um dos objetos de forma diferenciada, por isto ela não integra num conjunto coerente os diversos pormenores que desenha. Dá aos detalhes o grau de importância que tem para ela naquele momento, exagerando ou omitindo partes, porque considera somente o seu ponto de vista, relacionando tudo a si. É nesse estágio que a criança principia a representar graficamente o espaço construindo relações topológicas entre as formas. A criança se preocupa com
as
propriedades
gerais
dos
objetos
como
vizinhança/separação,
continuidade/descontinuidade, dentro/fora, etc. A cor tem um papel decorativo, ou seja, seu caráter é acidental, aleatório em relação ao objeto representado, podendo ser alertada caso a criança queira. REALISMO INTELECTUAL No realismo intelectual, a criança está interessada em representar do objeto não só o que vê, mas tudo o que “ali existe”, dando a cada objeto a sua forma exemplar. Para isso, a criança utiliza processos variados como a descontinuidade, a transparência, a planificação, o rebatimento e a mudança de pontos de vista.
A descontinuidade consiste em a criança desenhar, por exemplo, a linha de chão, não apoiando os objetos sobre ela. A transparência refere-se à representação das partes ocultas de um objeto, como no caso do interior e do exterior de uma casa ou do corpo da figura sob as roupas. Para representar as diferentes faces do objeto, a criança planifica-as. Através do rebatimento, a criança procura mostrar os dois lados de um objeto, como se ela estivesse no centro deste. Além disso, para melhor evidenciar a forma exemplar dos objetos, a criança mistura vários pontos de vista, representando todos num mesmo desenho, simultaneamente. Conforme Piaget, é nesse estágio que a criança inicia a construção paralela de relações (perspectiva com projeções e seções) e euclidianas (proporções e distâncias) para representar o espaço. A cor tem um papel realista, isto é, ela é essencial ao objeto. A criança não usa matizes de cores, mas constrói uma representação de cor genética para cada categoria de objetos. O uso da cor relaciona-se ao conhecimento que a criança tem dos objetos. A partir da diferenciação da coordenação entre as representações de forma, espaço e cor que estruturam o desenho, a criança chega à construção primeira do sistema do desenho. Brent Wilson observa que, geralmente, o adulto representa no desenho objetos e pessoas de um único ponto de vista. Há a criança não se restringe a esta visão e desenha o que vê e o que não vê, de muitos pontos de vista. O autor diz que: “o filósofo francês Luquet (...) denominou este fenômeno de realismo intelectual – referindo-se ao fato da criança ter a intenção de desenhar, num certo estágio, tudo o que conhece sobre um objeto.”1 A este respeito Luquet afirma que para o adulto a representação realista é a que traduz o que o olho enxerga do objeto, ou seja, aquela representação que capta do objeto a sua aparência visual. Para a criança o desenho mais semelhante ao objeto é aquele que traduz o que sua mente sabe a respeito, a sua interpretação. Nesse sentido, a principal característica do estágio do realismo 1
WILSON, Brent and WILSON, Marjorie. Teaching children to draw – a guide for teachers & parents. New Jersey. Prentice-Hall, 1982 – p. 46.
intelectual é a representação dos objetos pelo conhecimento que temos deles. O realismo visual procura apresentar do objeto a sua aparência visual. Contudo, ao desenhar, a criança faz uso desses dois processos. REALISMO VISUAL No realismo visual, a criança abandona as estratégias utilizadas no estágio anterior. A transparência dá lugar à opacidade, ou seja, a criança representa apenas os elementos visíveis do objeto. O rebatimento e as mudanças de ponto de vista se coordenam dando início à perspectiva. Os objetos passam a ser representados de acordo com essa nova construção, a perspectiva, e os detalhes agora têm por finalidade particularizar as formas que antes eram genéricas. Encerra-se aqui, a construção das relações projetivas e euclidianas para representar o espaço e esses dois sistemas se desenvolvem apoiando-se um no outro. Em relação à cor, a criança principia a usar matizes e tons para particularizar objetos. A cor tem um papel ora realista, vinculando-se a aparência visual de um determinado objeto, ora decorativo, atribuindo ao objeto uma cor aleatória visando maior expressividade. Há, portanto, um aprimoramento do sistema do desenho construído no estágio do realismo intelectual. Tanto para Luquet como para Piaget, a passagem de um nível a outro exige renúncia de certas coisas e nesta passagem certos elementos se conservam e outros se transformam, não há só um acréscimo de novos conhecimentos adquiridos num nível anterior e uma reestruturação destes conhecimentos no novo nível para poder integrar o que o nível anterior não conseguia fazê-lo. As fases propostas por Luquet não têm um paralelo direto com a idade da criança, mas dependem das suas interações com este objeto de conhecimento, as quais dão origem à seqüência ordenada que vimos.
Referências Bibliográficas:
LUQUET, C. H. O desenho infantil. Porto, Ed. Do Minho, 1969. PIAGET, Jean. La représentation de I’espace chez I’enfant. Paris, P.U.F., 1972. GARDNER, Howard. Art, mind and brain. New York, Basic Book Inc., Publishers, 1982. GOODNOW, Jacqueline. Desenho de crianças. Lisboa, Moraes, 1979. FREEMAN. Norman. Strategies of representation in ypung children. London, Academic Press, 1980. WILSON. Brent and WILSON Marjorie. Teaching children to draw: a guide for teachers & parents. New Jarsey, Pretince-Hall, 1982.