FELIPE SANTOLIA FELIPE SANTOLIA
A CHIBATA "A autobiografia de um repórter investigativo que tem dedicado sua vida a denunciar os esquemas de corrupção no Nordeste do Brasil. Trata-se de uma história envolvente e atual de um homem perseguido e marcado para morrer. Vítima do coronelismo político, a obra retrata a trajetória de uma revolução anônima em uma nação de face até então desconhecida do grande público".
EDITORA BEST SELLER
1
Dedico esta obra ao único Ser de onde emana toda e quaisquer existências, seja de vidas ou de fatos – nosso Deus Supremo e Pai Nosso. Dedicá-la a outrem seria trair a essência maior da verdade, pois nada e ninguém foge a regra da imunidade às iniqüidades, o que nos torna, portanto, infinitamente incapazes de sermos responsáveis ou fontes de inspiração para uma História de Vida. Apenas protagonizamo-a por benevolência do Senhor.
O autor.
2
01 - OS DOIS LADOS DA FACE CRISTÃ (Capítulo ainda a ser escrito sobre minhas experiências como seminarista e missionário Franciscano. Um retrato polêmico da Igreja Católica no Piauí. A visão do discurso pela reforma agrária proferido pela maior latifundiária do Estado). 02 - VIVENDO COMO UM PREDADOR (Interposto entre a Igreja e as televisões. Período em que assessorei o prefeito de Barras, Cabelouro, e que coordenei a campanha política do Chagô em 1996 no município de Esperantina. Trata-se de um período que transitei nos bastidores do poder, contribuindo de certa forma para os atos de corrupção praticados por meus superiores – os políticos piauienses). 03 - DESBRAVANDO O CICLO SEM FIM Logo após o êxito da campanha política que ajudei a capitanear, trabalho conjunto que elevou o aparente candidato derrotado, Francisco das Chagas Rebêlo, ao topo da pirâmide da cidade de Esperantina e, como que traído por ter sido desconsiderado pelo prefeito que ajudei a eleger, mudei-me novamente para a capital (Teresina), período em que convivi com a insistência do destino em me negar oportunidades que me fizessem sentir vivo e capaz. Os meses de 1997 seguiram acanhados e apresentando irritante poder de imobilidade, período em que minha 3
vida passou a ter serventia alguma a qualquer conteúdo literário. Entregue ao inertismo do ócio, eu apenas existia, sem que eu próprio inspirasse finalidade para mim ou para outrem. Além de viver refém do calor causticante de Teresina, onde em não raras ocasiões lembro-me de ter tido a impressão de ser assado como um leitão sob temperaturas que chegavam a 46ºC, achei de locar um apartamento em plena Avenida Miguel Rosa, reduto de históricos engarrafamentos e verdadeira usina de produção de fuligem. Localizado no primeiro andar de um pequeno edifício de três pavimentos, meu apartamento ficava exatamente sobre o forno industrial de uma panificadora, a Paladar. Minhas noites quentes da capital passaram a ferver. Meu quarto parecia ter sido concebido com precisão. Eu em cima e, em baixo, os padeiros assadores de broas e pães. Nossa convivência só não atingiu a amplitude em virtude de uma laje entre nós. Dr. Mansueto Magalhães Filho, um jovem e inteligente advogado que, à época, nutria verdadeira aversão a sua profissão, dividia comigo o apartamento e as despesas de sua manutenção e, de certa forma, comungávamos do mesmo tédio pela vida e da orfandade de projetos que nos estimulassem a agir. Éramos a tampa e a panela, dois trintões sentados num banco de praça assistindo inertes à vida passar. O fato de ficar na janela a ver navios, numa cidade distante do mar em mais de 400 quilômetros, fez com que eu reagisse e tomasse uma decisão. Porquê me entregar à morte pelo ócio se havia outros mares a serem navegados? Portanto, era chegado o fim de minha história no Piauí. Havia fracassado, as portas estavam cerradas, não havia mais ninguém a quem recorrer. Era chegada a hora do forasteiro ser repatriado. Feito as dobras no que havia restado de minha vida, procurando ocupar bem os espaços, olhei para um canto do apartamento e contei: uma, duas, três caixas de papelão. Ali estava o meu quinhão, o meu patrimônio, o resultado de meus sete anos de consorte com o Piauí. Fui tomado por uma sensação de derrota ao perceber o quão pouco eu havia evoluído. Atendendo aos 4
estímulos da ambição, filosofia que me inspirava naquela época, deixei de perceber que as riquezas das experiências que tive existem, e que não se acomodam em caixas de papelão. Chorava o ouro do tolo, a razão dos brutos. Era o pior cego, pois não queria de fato ver. Decidido a voltar para minha terra natal, Lorena - cravada na área mais verde do Vale do Paraíba (interior de São Paulo), o fazia sem o menor drama de consciência, pois era testemunha de minha própria história, sabia do esforço empreendido para ficar e das possibilidades que exauri. E quando tudo parecia definido, a partida e o retorno a casa dos pais, e as malas empilhadas de forma a não mais serem desfeitas, um único telefonema foi o responsável pela mudança dos planos. _ É da casa do senhor Felipe Santolia? _ É ele quem está falando. _ Aqui é da TV Antena 10, é sobre um currículo que o senhor deixou aqui... Em dia e hora marcados, lá estava eu, sentado diante do grande mito da televisão piauiense - jornalista Tony Trindade. Eu mal podia acreditar. Eu achava aquele cara o máximo! Admirava sua postura, a linha do programa que apresentava e seu estilo nobre, mas reservado de levar a vida. Mirou-me nos olhos e, como um cão a atacar, investiu contra mim com um arsenal de perguntas que me fizeram narrar do meu nascimento ao último filme que havia assistido no cinema. A conversa passeou por vários mundos até que, em dado momento, ouvi do Tony uma história que jamais migrou de minha memória. Sua palavras, como que ditas por um mago, faziam-se acompanhar de uma indagação que mudaria todo o curso de minha história. _ Felipe, eu acredito no potencial de todo aquele que fez de um estúdio de rádio sua escola de formação. Um 5
dia, há muitos anos, assim que eu deixei os estúdios da Rádio Timon, alguém me viu e me deu a oportunidade de estar hoje aqui, sentado nesta cadeira de diretor da emissora de televisão que mais se expande hoje no Piauí. Portanto, sempre será hora de retribuir o que recebi, criando oportunidades aquelas pessoas que batem na porta que um dia também bati. Você quer mesmo ser repórter desta casa? Aquilo foi para mim simplesmente incrível. Os políticos, que nos últimos sete anos havia ajudado-os na conquista do tão cobiçado poder, vi-os todos, sem exceção, viraremme as costas com covardia e darem-me bananas em retribuição a todo o esforço por mim empreendido. Cavando o fundo do poço em busca da lama que desse para beber, vi meus sonhos constituírem asas e as portas abrirem-se pelas mãos, não dos que servi, mas de estranhos que também conheceram os preconceitos que me lançaram agouros ao longo da vida. _ É tudo o que eu mais quero, Tony! Entregue-me esta oportunidade e eu a te devolverei em forma de grandes reportagens. Sei que posso fazer, permita-me tentar. E foi assim, mesmo sem nunca ter freqüentado uma faculdade ou um curso técnico relâmpago que fosse, que sai acompanhado de duas pessoas - um motorista e um cinegrafista, em busca de um parapsicólogo que se propusesse a me submeter a uma sessão de regressão à vidas passadas, uma sessão de verdade, momento em que deveria me entregar ao poder e aos mistérios da hipnose. Esta era a minha primeira e grande pauta, um teste que iria decidir a minha existência como repórter vocacionado. Graças ao Dr. José Ribamar Tourinho e aos grandes profissionais Aureliano (motorista) e Mardone Valcácer (cinegrafista dos melhores), obtive êxito em minha primeira e crua experiência como repórter televisivo. Além de ser contratado pela TV Antena 10 - afiliada da Rede Record no Piauí, ainda lucrei com a 6
descoberta de que já havia sido, em vida anterior, um chileno carvoeiro. Talvez isto explique minha experiência, bem sucedida, com os padeiros da Paladar, que assavam broas e pães enquanto dormia e sonhava suando em estar no próprio inferno. Ainda hoje questiono-me a respeito daquela reportagem. Indução ou paranormalidade, fez-me bem continuar acreditando no que aconteceu, pois assim, passei a ver que a presença de uma vida passada sinalizava para a existência de uma vida futura. A visão do ciclo sem fim fez-me mais seguros os passos, passei a ser bem mais diligente e interessado na vida. 04 - LOBO EM PELE DE CORDEIRO O jornalismo, minha grande paixão e por intermédio do qual eu sempre acreditei ser possível transformar o mundo e refazer vidas, dado aos interesses nem sempre éticos dos proprietários das emissoras de televisão e de seus executivos ambiciosos e de pouca sensibilidade social, passou a ser visto por mim, no início com paixão, pouco tempo depois com preocupação e, ao final, com um sentimento misto de amor e ódio, desejo e repúdio. Da forma como me obrigavam a praticálo, assistia ao jornalismo televisivo sendo transformado em impiedoso e funcional instrumento de manutenção da indústria da miséria no Piauí. Assim como uma máquina de fazer dinheiro fácil, éramos pautados à serviço de autoridades corruptas e inescrupulosas e obrigados a produzir e exibir estórias que ludibriassem a opinião pública. Estava jogando um jogo perigoso, pois tinha que fazer aos outros crer que os bons eram os maus e que, por sua vez, as grandes traças que corroíam o patrimônio público piauiense eram os únicos em que todos deveríamos confiar e esforçar-nos para mantê-los no poder.
7
_ Não que seja correto, ouvia-os dizer. Mas é lucrativo e é assim que deve ser. As coisas que fui obrigado a fazer e as reportagens que produzi nesta época, construíram dentro de mim um universo de angústia e de aflição, de vergonha e de alto repulsa, tornando-me um escravo da própria covardia e um retirante em busca da rótula que me levasse de volta ao Jornalismo que sempre acreditei existir - o jornalismo capaz não de remover montanhas, mas de mantê-las verdes, longe do poder de destruição dos homens e de sua sede, que inesgota, de eliminá-las a fim de encurtar caminhos. Há um caso, em específico, que espelha com clareza esta condição de práticas pervertidas, expediente habilmente utilizado pelos grandes executivos da tevê piauiense. Era como uma forma encontrada por eles para a conquista do poder e dos lucros por intermédio da imposição e da força. Agiam assim por não acreditar que a violência acabava por voltar sempre para o violento. Já passavam-se alguns meses desde que havia sido contratado como repórter do programa jornalístico Câmera Verdade, que tinha como âncora o próprio jornalista Tony Trindade. Dado ao meu grande empenho e maneira sempre voluntariosa com que me conduzia no trabalho, tornei-me aos poucos uma espécie de primeiro repórter da casa. A confiança conquistada junto ao Tony contribuiu para que eu recebesse dos proprietários da tevê um convite, o qual aceitei prontamente. A partir dali, além de repórter, assumia também o Departamento de Expansão, responsável em levar o sinal da tevê para o maior número possível de municípios do interior do Piauí. Porém, antes mesmo de assumir o novo desafio, chamou-me o jornalista Tony Trindade em sua sala a fim de encubir-me de mais uma daquelas missões pelas quais eu nutria verdadeira aversão. Explicou-me ele que o prefeito do município de Campo Maior, o médico Antonio Lustosa, recusava toda e qualquer tentativa da direção da televisão para assinar o contrato de 8
manutenção do sinal em sua cidade. Sem este contrato era praticamente impossível a expansão do sinal da emissora até determinado município, pois através dele a emissora usava a estrutura de torre, imóvel e vigilância da prefeitura e, em contrapartida, oferecia em sistema de consignação o receptor de satélite e o transmissor de áudio e imagem. O contrato rezava ainda que, além da estrutura física, a administração pública municipal deveria assumir uma mensalidade a ser paga em favor da emissora de tevê. Discordando do valor estipulado pelo jornalista, o prefeito de Campo Maior rechaçava toda e qualquer possibilidade de efetivação da parceria. Após expor-me toda a situação, Tony passou a confidenciar-me seu plano para remover, na base da cobrice (termo bastante usual nas redações para identificar uma situação de imoralidade), e minar a resistência do prefeito em aceitar os valores impostos pelo jornalista. E, mais uma vez para minha infelicidade, era exatamente ali que eu deveria entrar, ou melhor, ser usado com o propósito escuso de conferir aos interesses dos proprietários da emissora mais uma vitória, mesmo que sombria. Entre risos e galhofas, Tony passou a narrar suas idéias maquiavelicamente orquestradas e as quais visavam vitimar não o prefeito Antonio Lustosa, como imaginava, mas a mim, meus conceitos e meus sonhos de jornalista de visão democrática e humanística. Além disso, seu plano que de nada tinha de original, pois tratava-se de expediente usualmente utilizado nos bastidores da imprensa televisiva piauiense, provocava outras grandes incisões, fazendo sangrar a ética, o corpo de resistência à ditadura das imposições que fazem inexistir as contraargumentações e, por fim, dilapidando o erário público do povo campomaiorense sem a devida e legal autorização do seu gestor municipal eleito - o prefeito. O plano era simples. Eu deveria seguir com minha equipe (motorista e cinegrafista) imediatamente para aquele município e produzir vasto documentário sobre tudo o que estivesse errado, sujo e deteriorado na cidade. O resultado do 9
trabalho deveria ser surpreendente, chocar a opinião pública e criar embaraços para o administrador. Foi assim que uma pequena área suja, próxima ao mercado central, com a ajuda mágica da câmera, alastrou-se para as demais ruas da cidade, revelando-se o município, diante da reportagem forjada, em um lugar imundo e abandonado pelo poder público municipal. Uma pequena área empoçada e cheia de lama no Bairro Cariri tornou-se o maior esgoto à céu aberto do Estado do Piauí e, algumas poucas rachaduras em paredes de prédios públicos passaram a ameaçar o município inteiro de ruir. Feito o trabalho, passaram-se poucos dias e assisti, em cena que já me era familiar, o advogado do município entrar na tevê trazendo em mãos o tal contrato de manutenção do sinal rubricado pelo prefeito em suas páginas e assinado ao final. Enquanto Tony comemorava mais uma do que ele considerava ser "uma grande vitória", ruborizava-me de vergonha pois sabia que, por minha conta e risco, acumulava ali nova derrota. Isto fazia de mim um corrupto, um repórter desprezível e sem valor algum aos olhos de Deus. Espalhava espinhos e vendia a dor embrulhada em papel de presente. Um lobo em pele de cordeiro. 05 - HÁ VIDA NOS LAJEIROS Minha carreira de repórter na TV Antena 10 desenvolveu-se em cima de uma diversidade impressionante de experiências. Em muitas ocasiões, dado aos interpostos de relaxamento dos interesses ambiciosos dos proprietários e da própria direção, cujos momentos permitia-me traçar minhas próprias pautas, dedicava-me à reportagens cujos temas eram eleitos por mim próprio. Através delas, procurava exercer o verdadeiro jornalismo que acreditava existir e ser capaz de colorir o cinzento cenário da imensa legião de piauienses humildes e excluídos. 10
Estes eram, para mim, momentos extremamente aprazíveis, totalmente diferente dos muitos dias em que chegava à redação e deparava-me com pautas preestabelecidas pelo jornalista Tony Trindade ou por sua produção. Não eram raras as vezes que o roteiro vinha seguido da orientação para que fulano fosse condenado e sicrano inocentado, mesmo que estes tivessem de exercer na reportagem papéis trocados. Pautas que figuravam como verdadeiros insultos assacados contra a imagem irretocável da verdade, e o que é mais lamentável, um expediente não prescrito do cotidiano das redações televisivas do Piauí. Minha inicialização no departamento de Expansão de Sinal foi o que se pode considerar um empurrão no universo funesto do tráfico de influência, da comercialização da verdade e do enraizado sistema de se locupletar do dinheiro público em troca de afagos no ego inflado dos prefeitos interioranos. Ouvindo-me a narrativa é compreensivo que o leitor faça o seguinte questionamento: _ Mas por que diante de uma promoção bastante cobiçada o protagonista não procurou agir com retidão profissional, preferindo os atalhos aos caminhos éticos e tão propagados na vasta literatura de Comunicação? De fato, o cotidiano das redações de TV e das deliberações da diretoria, visto pela ótica das edições de Jornalismo, é algo extasiante e harmônico sob o ponto de vista da ética e da moralidade. Mas, como a própria história ensina, há uma ponte de considerável comprimento entre o que se escreve sobre o tema e o que se vive na prática. Recebi do Tony a determinação para que viajasse imediatamente para a região sul do Piauí, a fim de produzir o maior número de reportagens e assinasse o maior número de contratos possíveis para a expansão do sinal da TV Antena 10, o que se dava via satélite. Ouvi do diretor que minha permanência no percurso não deveria exceder trinta dias, as fitas com as imagens 11
brutas e as anotações com os textos e orientações para edição deveriam seguir de ônibus para a sede da emissora, meio de transporte que também seria utilizado para a remessa, por parte da tevê, de novas fitas Betacan para uso da equipe. Ferindo o princípio básico para que houvesse isenção em nosso trabalho e demonstrando preocupação alguma com o bem estar da equipe, Tony colocava-nos à disposição, para realizar o longo trabalho, apenas um carro da TV com o tanque abastecido, os equipamentos de cinegrafia e nenhum centavo sequer. Impressionado? Eu também fiquei nas primeiras vezes que incursionei pelo interior. Indagado sobre como iria nos manter durante os dias em que estivéssemos viajando, ouvi de Tony que quando o carro estivesse sinalizando a reserva de combustível ou quando estivéssemos próximos aos horários de refeição, deveríamos procurar na cidade primeiro o prefeito, este não estando, o vice e, em caso de novo fracasso, a Câmara Municipal, o padre da cidade ou, em última instância, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Alguém haveria de se interessar por uma matéria televisiva de autopromoção política ou funcional, momento em que buscaríamos a paga em forma de hospedagem, combustível e um "extra" para prosseguir viagem. Seguindo fielmente as orientações da direção executiva da tevê, nunca me esquecerei o dia em que eu, Mardone Valcásser (cinegrafista) e Aureliano (motorista) terminamos o dia, em um pequeno município próximo a Cristino Castro. Na pequena cidadela, com ares de cidade fantasma, não encontramos o prefeito, nem o vice, nem vereadores e tão pouco o padre, que só celebrava na pequena capela local de tempos em tempos. De pé diante da humilde residência do presidente do Sindicato dos Trabalhadores, com suas portas e janelas cerradas em anúncio a sua ausência, miramos um pé de goiabeira que exibia algumas poucas goiabas, ainda pequenas e inteiramente verdes. Não houve o que pensar. Assistimos ao pôr do sol sentados nos galhos da arvorizinha, enganando o estômago com as frutas ainda em formação. 12
O sistema de trabalho e a falta de condições para exercermos com dignidade nossa profissão de repórter não deixavam margens para atributos tão necessários como a imparcialidade, a honestidade e a construção de conceitos livres de pressões externas. O próprio meio e a forma com que é regido obrigava-nos a sermos uma espécie de prostitutos da Comunicação, ou seja, recebendo migalhas em troca de proporcionar às autoridades alguns poucos segundos de prazer em frente ao aparelho de tevê. O mais grave neste comércio é o não uso do que poderíamos chamar de "camisinha", que além de tornar a prostituição da Comunicação em um ato de risco, ainda faz gerar filhos de consciências turvas, neste caso, uma opinião pública com conceitos distorcidos e distantes da verdade. Mas ainda assim, mesmo envolvido em tantas negociações, em sua grande maioria predominadas por interesses reprováveis e nada éticos, haviam aqueles já citados momentos onde se era possível exercitar o verdadeiro e transformador jornalismo. Não há como se esquecer de reportagens que marcaram a época como a estrondosa beleza dos poços jorrantes de Cristino Castro e o preocupante desperdício de tão cara riqueza ambiental, as péssimas condições das rodovias piauienses, as histórias dramáticas narradas por caminhoneiros ao longo delas e o inerente prejuízo causado pelo seu estado de sucateamento à escoação da produção do grande e último celeiro agrícola do país os cerrados piauienses. Na grande região do município histórico de Oeiras, causou enorme discussão nos meios psiquiátricos do Nordeste a série de reportagens de doentes mentais que viviam mantidos em cárceres privados pelas próprias famílias, imagens que chocaram a opinião pública e provocaram o tratamento e a parcial recuperação de muitos deles. Durante a seca avassaladora de 1997, deslocado para a microregião de Pio IX (fronteira com o Estado de Pernambuco) consegui emplacar no Jornal da Record, apresentado pelo jornalista Boris Casoy, e no Cidade Alerta, à época capitaneado pelo jornalista ........................, quatro reportagens sobre os efeitos da 13
seca e a fome epidêmica que dizimava, a olhos nus, famílias e rebanhos - um verdadeiro holocausto que fez verter lágrimas de brasileiros dos mais distantes rincões. Assim como um milagre de Deus, eu e o Piauí assistimos emocionados a chegada de dezenas de carretas carregadas de alimentos não perecíveis que ajudaram a aplacar a fome das milhares de famílias retratadas por nós naquele triste episódio da seca de 97. Outros grandes momentos ficaram registrados, como o circuito das opalas de Pedro II, trechos de matas virgens ainda inexplorados, a nascente do Rio Parnaíba, as riquezas escondidas no único Delta das Américas e tantas outras que resistiram ao tempo e que mantêm-se vivas na memória dos piauienses. Durante toda esta trajetória, caminhando entre espinhos e verdes pastagens, ora atolando na lama dos interesses e em outras ocasiões surfando nas ondas límpidas de grandes e nobres motivações, imergi em reflexões que me levaram a crer que nem tudo estava perdido, que algo poderia ser feito, que mesmo no meio de todo aquele lajeiro ainda, em forma de resistência, encontrávamos vidas a existir. 06 – TROCANDO DE BALCÃO MAS NÃO DE VENDEDOR A última viagem das muitas que fiz em busca da assinatura de prefeitos para a expansão do sinal da TV Antena 10, deu-se na segunda quinzena do mês de agosto de 1997. Depois de quase trinta dias viajando pela região norte do Piauí, oportunidade em que produzimos grandes reportagens tendo como cenário os municípios de Caraúbas, Caxingó, Murici dos Portelas, Esperantina e tantos outros, retornei a capital do estado, Teresina, exatamente na noite de 19 de setembro daquele ano.
14
Chegamos eu e a equipe na sede da tevê por volta das 21 horas, descarregamos os equipamentos, fizemos o registro de nosso retorno e partimos, cada qual, para seu destino. Antes de retornar ao meu apartamento parei em um bar no centro da cidade a fim de tomar uma dose de whisky, buscando relaxar e meditar sobre as adversidades e os fascínios experimentados ao longo daquela estressante viagem. Ainda estava na primeira dose, perdido nos meus pensamentos, quando ouvi a porta de um carro se bater por detrás de mim e uma voz masculina dirigir-se a algumas pessoas que estavam sentadas na mesa anterior a minha. _ Acabei de saber por um taxista que assassinaram o Donizetti Adalto. Disse que foi próximo a ponte da universidade, na Avenida Marechal Castelo Branco, informou o desconhecido. Aquela notícia deixou-me em estado de choque, perplexo, irrequieto. Donizetti Adalto, um paranaense que pela segunda vez residia no Piauí, era o jornalista de maior audiência no estado, âncora do principal jornalístico da TV Meio Norte, afiliada do SBT. Adepto do jornalismo investigativo, "D.A." - como era carinhosamente chamado pelos fãs - era o único em nossa área com coragem e know-how para denunciar grandes esquemas de corrupção, todos envolvendo exponenciais autoridades piauienses. Com ele ninguém saia impune, não importa se o escândalo se dava no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou no meio do seleto clube de ricos empresários, incluindo ai os proprietários de badalados meios de comunicação. Definitivamente, a Imprensa no Piauí terá sempre como divisor de águas o próprio Donizetti Adalto e sua sombra, o jornalista com quem dividia a apresentação do programa MN 40 Graus - o também paranaense Carlos Moraes. Dividido entre a emoção que sempre se renova em nós repórteres quando diante de um grande furo jornalístico e a dor por ver partir, de forma tão trágica, um jornalista a quem verdadeiramente idolatrava por sua ousadia, inteligência e
15
coragem, segui em direção a sede da TV Antena 10, armei-me com a primeira câmera que vi e parti rumo ao local do assassinato. O local eleito pelos assassinos, o trecho mais escuro da avenida, revelava a princípio que o mesmo havia sido cuidadosamente estudado antes da fatídica ação por seus algozes. O carro em que estava o jornalista, que vinha de um comício onde o mesmo garimpava votos para sua candidatura a deputado federal, encontrava-se intacto, com suas duas portas abertas, faróis acesos, vidros estilhaçados pelas balas e, sobre o banco do motorista (ele próprio) seu celular pessoal, dando a entender que antes de sucumbir ainda tentara, em vão, uma ligação de emergência. O cenário, de forte apelo emocional, tornava-se ainda mais turvo diante da poça de sangue ainda quente que se formara ao lado esquerdo do veículo. O corpo do jornalista havia sido transportado por populares até o Hospital Getúlio Vargas poucos instantes antes de minha chegada, a qual se deu antes mesmo da perícia e das autoridades policiais que demoraram a aparecer. A continuidade da cobertura que passei a conduzir sobre o enigmático assassinato do jornalista Donizetti Adalto causou grandes transformações, não só no cenário da política e da imprensa estadual, como também em mim. Embora gradual e a princípio imperceptível, passei a analisar a Comunicação, minha postura e potencialidades e a própria forma de conduzir meu trabalho de maneira diferente, nova, investigativa. Hoje, pouco mais de cinco anos depois, tornou-se um dogma o fato de que a morte de Donizetti provocou em mim um novo repórter, destemido, ousado e determinado em continuar aquele grande trabalho interrompido pela insensatez e inescrúpulo de algumas das autoridades piauienses, em sua grande maioria ainda presente e atuando na vida pública do estado. Durante todo o processo de investigação acerca do assassinato do jornalista, por diversas vezes fui desencorajado pela direção da TV Antena 10 em contribuir para elucidação do crime. Assim como no tempo do impiedoso e limitador AI-5, sentíamos um clima de reprovação à publicação de 16
todo e qualquer material que não se restringisse aos questionáveis informes oficiais, sempre divulgados não pela Polícia Civil conforme de competência, mas pelo então superintendente da Polícia Federal - Del. Robert Rios Magalhães, que passou a se colocar como colaborador das investigações em torno do caso e o único credenciado a tornar público, mesmo que a conta-gotas, quaisquer novas informações sobre a morte do jornalista. Diante de tantos impecílios e de um sentimento de desconfiança generalizado quanto a veracidade do teor de tudo o que era investigado e da forma como o era, sentimento do qual ainda hoje compartilha considerável parcela dos formadores da opinião pública piauiense, meu interesse pelo caso, assim como pela vida do apresentador tombado ao toque de balas, foi aumentando e aguçando cada vez mais meu polêmico e incontrolável senso de curiosidade. Pouco tempo se passou a partir daquele assassinato e uma nova e rara oportunidade bateu-me à porta sinalizando um novo horizonte de crescimento profissional. Como que reconhecendo os avanços que conquistei na interiorização do sinal da TV Antena 10, o publicitário Sílvio Leite, na época superintendente do Grupo Meio Norte, oficializou-me um convite considerado por mim, naquele momento, como irrecusável, para que eu passasse a integrar a equipe de jornalismo da afiliada do SBT no Piauí. O convite do Sílvio chegou num momento em que eu estava tendo alguns desentendimentos com setores da direção da tevê do empresário José Elias Tajra, e este fato, associado ao excelente salário que na época me foi oferecido (exatos 5 mil reais por mês mais comissões e concessão de carro de luxo de prestações a serem amortizadas por mim), e ainda a possibilidade de ingressar na mesma emissora em que se celebrizou o jornalista Donizetti Adalto e desta forma poder investigar mais para aprofundar meus esforços em elucidar aquele enigmático assassinato, todos estes fatores reunidos fizeram com que eu
17
aceitasse a proposta do Grupo Meio Norte, decisão acertada e da qual não resultou em nenhum arrependimento. Exauridas as possibilidade de aprendizado na TV Antena 10, emissora que teve papel relevante na formação dos princípios e ideais defendidos hoje por mim com veneração e veemência, entendi que era chegada a hora de alçar novos vôos, substituindo os balcões mas mantendo o vendedor. Do grupo proprietário das Lojas Jet passei a encorporar os métodos e a tecnologia de ponta do complexo empresarial que além da TV Meio Norte, também administrava a rede de Lojas MN Stores e o meteórico projeto milionário do Poupa Ganha - uma espécie de bingo eletrônico que expandiu-se país a fora. Foi trocando de balcão que completei meu ciclo de aprendizagem nas redações televisivas do Piauí. 07 - DE CORRUPTO A CAÇADOR DA PRÓPRIA ESPÉCIE Pouco mais de um ano, em meados de 1998, fui chamado à sala do advogado Ademar Bastos - novo superintendente do Grupo Meio Norte. Ele, um reconhecido profissional na área, assumia o cargo em substituição ao publicitário Sílvio Leite - autor do convite formulado a mim para ingressar na cobiçada afiliada do SBT. Funcionário há muitos anos do Grupo Meio Norte, e tido como um dos homens de confiança do mega empresário Paulo Delfino da Fonseca Guimarães, Dr. Ademar era inimigo declarado do agora ex-superintendente Sílvio Leite, que passou a assumir a gerência nacional do bingo eletrônico Poupa Ganha . Sentado confortavelmente diante de sua mesa imponente, onde se avistava enormes pilhas de livros de temas variados, ouvi dele, sem arrodeios ou palavras de conforto, o comunicado de minha demissão sumária da TV Meio Norte. 18
Questionado por mim sobre as razões que levavam a emissora a antecipar meu contrato preestabelecido de dois anos, Dr. Ademar restringiu-se a uma única e seca frase: _ "Enxugamento da folha de pagamento, corte de despesas que se faz necessário neste momento", disse ele. Foi impossível não ler em seus olhos e ver em seus gestos que ele mentia, ocultando de mim uma história a qual eu só viria a entender dois ou três anos mais tarde. Ao lado do repórter Wellington Raulino (o "Xerife"), do irreverente apresentador policial e mais tarde deputado estadual eleito - Silas Freire (âncora do polêmico programa "Ronda Policial") e de uma dezena de outros profissionais lotados na tevê, perdemos nossos empregos vitimados por um capricho do novo superintendente o qual creditamos, mesmo que de forma prognostica, como sendo uma provocação do mesmo ao seu antepor, Sílvio Leite, com quem travava, por conta de desentendimentos no divórcio do publicitário e que confiou no Dr. Ademar a defesa na querela, uma guerra silenciosa nos bastidores do Grupo Empresarial que os unia. Nossas demissões, embora associadas à justificativas nada convincentes, tinham em comum o fato de todos nós, os demitidos, nutrirmos pelo publicitário Sílvio Leite apurado apreço e destacada consideração. Diante deste arranjo imprevisível do destino, o qual me imprensou desprevenido e, como se diz no popular - flagrou-me de calças curtas, resolvi agir conforme o conselho dos velhos ursos e hibernar. Logo no princípio, como forma de refletir, achei conveniente passar alguns meses em uma cidadezinha do interior, a fim de descansar de longa e atribulada jornada, durante a qual sempre tive que abrir mão de minhas férias como forma de agradar meus superiores e não perder o emprego.
19
Com muitos amigos no município de Esperantina, a quem a Natureza generosamente privilegiou com um cenário natural enebriante e que sempre me causou grande fascínio, imigrei para lá buscando harmonizar os conflitos internos que me inquietavam o espírito. Distante das pressões do trabalho e da estressante rotina das redações, entreguei-me à busca de aferir lucros sobre a reflexão do que havia feito de minha vida até ali e quais os melhores rumos a dar-lhe a partir de então. Foi neste misto de auto-avaliação, acumulado com um tempo farto a ser preenchido por coisas novas, que passei a desnudar um mundo novo e com possibilidades reais e palpáveis de refazer, de forma sábia e oportuna, o caminho de volta, corrigindo então os erros cuja vida generosamente me permitiu catalogar. Debruçado sobre livros e lembranças, dei início a uma busca por intermédio da vasta história da humanidade, procurando nos passos dos apóstolos e profetas, nos legados de grandes pensadores, na metodologia desenvolvida por lendários revolucionários e nas palavras e ensinamentos do próprio Cristo, uma luz que pudesse me iluminar o grande projeto que passei a construir. As imagens e experiências registradas em minha memória passaram a funcionar em mim como uma convocação para uma ação ostensiva de transformação social a qual, mesmo que aparentemente complexa e indecifrável, sabia eu possuir a vontade e a coragem determinantes para uma grande vitória neste sentido. As respostas aos por quês daquela guerra que eu estava prestes a deflagrar, estavam ali, no meu passado, nas experiências ao longo dele acumuladas e no exemplo de vida daqueles gigantes protagonistas da História Mundial. Assim como um predestinado, alguém cuja a vida parece exigir além do que nos é cobrado comumente, me permiti agir embalado pelo que entendia ser o certo, o necessário, o ético. Passei a assistir aos valores humanos da riqueza, do poder e das posições sociais de destaque virarem cinzas aos meus olhos. A 20
nova filosofia da qual passei a ser adepto, auxiliou-me a substituir os antigos valores cultuados por outros que mantiveram-se durante anos ocultos em extremos opostos. Havia na vida mais do que os convencionais objetivos humanos. Os livros e a própria razão fizeram-me crer que o caminho da verdadeira e duradoura felicidade, fruto da realização plena, reside não nos endereços outrora buscado, mas na solidariedade, na aceitação dos sonhos coletivos como sendo os seus sonhos, no prazer inigualável que gera o gesto de servir o próximo independente da aferição dos chamados lucros da sociedade capitalista. Foi neste instante que o luxo deu lugar ao simples, que o prazer que sentia quando na companhia de exponenciais e notórias autoridades do Piauí transferiu-se para a convivência inestimável que passei a ter entre as legiões de humildes e miseráveis que resistem às intempéries de uma matilha de escravagistas egoístas e ignóbeis. Se for verídica a tese defendida por muitos estudiosos de que todos, em vida, acabam por deparar-se com uma espécie de Grande Revelação, aquela através da qual pode-se ler os verdadeiros motivos pelo qual nos foi dado a graça de viver, creio eu que deparei-me com minha tábua profética, a qual entendo como sendo um sinal do próprio Deus para que persista ritmado pelos ditames de minha consciência, procurando a cada dia tornar-me o mais humilde e prestativo dos servos de meu próximo. Confesso que, em não sendo verdadeira a tese filosófica a qual se fez referência no parágrafo anterior, ainda assim persisto em defender que as novas experiências que tenho vivido em Esperantina constituem-se num seguro caminho para a obtenção da verdadeira felicidade. Mesmo diante das torturas e humilhações das quais tenho sido covarde e insistentemente vítima, é lutando contra a corrupção dos poderosos, despertando o povo para a grandeza dos milagres obrados pela solidariedade e semeando a verdade como único agente capaz de empreender as mudanças por
21
que clama nosso povo, que iremos recolocar a grande locomotiva batizada de Brasil em seus trilhos de origem. Não há como prosperarem os tão propagados programas sociais e políticas governamentais sem antes exigirmos de nossas autoridades que firmem compromissos com uma conduta mais ética, honesta e de rigorosa observância às Leis. O primeiro passo capaz de levar-nos a este entendimento é reconhecer a magia real da grande roda vir a girar dentro da pequena. Devemos ser resultado das aspirações da maioria e nunca, como agora, quando se percebe uma minoria decidindo e projetando o destino do grande povo. Um estilo de vida, uma opção pertinente. O corrupto de ontem transformou suas ações numa faculdade que o formou num combatente da própria espécie. 08 - A TEMPESTADE SE ALASTRA PELO PIAUÍ Com algum dinheiro no bolso, sobra da rescisão de contrato com a TV Meio Norte, fixei-me em Esperantina, sendo hóspede por alguns meses na chácara de um amigo. Valmor Aguiar, que era bastante conhecido, e tido como um dos moradores mais folclóricos do cotidiano local, mantinha uma casa à beira da rodovia que dava acesso à capital do estado. Localizada na margem direita do Rio Longá, a chácara, embora próxima de Esperantina, pertencia ao perímetro rural do vizinho município de Batalha. Bastante agradável e, dado a localização, um lugar de forte apelo ecológico, a chácara do Valmor faz-nos lembrar uma espécie de sede de Hobbin Wood e seu bando meio à Floresta de Sherwood. A casa, de simples arquitetura, invoca a imponência de um velho casarão de fazenda, dividida em seu 22
interior por vários cômodos que foram transformados por meu amigo em muitos quartos. Ornados com cama, travesseiros, lençóis e um ventilador sobre um tamborete de assento de couro de bode, os quartos representavam toda a fonte de renda da Chácara do Valmor. Revestido de grande originalidade, o motel rural de meu anfitrião serviu-me de residência e ensinou-me grandes lições, todas voltadas para o exercício fascinante do servir com humildade. E foi neste cenário, onde os ares bucólicos se misturavam com os hábitos da vida mundana urbana, e vivendo muitas situações atípicas dado a área de negócio do meu hospedeiro anfitrião, que dei início à minha incursão pelas periferias e bolsões de miséria do município. Andei por muitas ruas, passei a freqüentar um sem fim de bares e pequenas mercearias, locais onde semeei grandes amizades que expandiram-se e que se mantém até os dias de hoje. Aos poucos, envolvido com os muitos dramas os quais passei a conhecer e deles participar, fui desfazendome de todas as minhas economias e vendo-as serem transformadas em caixas de medicamentos, alimentos dos mais variados, ajudas para compra de passagens e tantos outros pequenos infortúnios que com alegria e amor pudemos resolver. Diante daqueles gestos filantrópicos que passei a empreender voluntariosa e desprovido de interesses, foi-me possível identificar o momento da inicialização, do meu primeiro encontro com a verdadeira essência da vida - a felicidade plena. Sentia-me bem, gozando de um equilíbrio de emoções jamais experimentado por mim. Algo estava acontecendo de transformador. Era como se só agora, seis anos depois de ter deixado a batina franciscana, o meu espírito e coração tivessem, finalmente, entrado em comunhão com as estigmas e as pegadas de São Francisco - um maior de rua que encantou pela benevolência, humildade e abnegação. Seguia meus dias servindo a todos quantos me procuravam, tendo sempre como companhia uma visão crítica em busca do entendimento das causas para tamanha miséria 23
daquele povo. Foi ai que tive a idéia de comprar um gravador e começar a gravar depoimentos de várias pessoas, cada uma com seu drama, sua história e suas decepções. E todo aquele material coletado foi sendo degravado e transformado, ao longo das madrugadas, em artigos, redações e relatos escritos de histórias reais da vida privada. Admirado com a obstinação de nossos ideais, e a velocidade e forma com que nossa mensagem se alastrava e era recebida pelos moradores de Esperantina e região, um empresário do ramo gráfico de Teresina (capital do Piauí), Francisco Ribeiro da Rocha - conhecido por "Chico Doido" - dado ao seu destempero e histórico de violência, patrocinou de forma generosa a impressão periódica das reportagens que passei a produzir. Nascia naquele instante, no dia 12 de dezembro de 1999, o primeiro número de uma série polêmica do Jornal O Regional - publicação impressa quinzenal por intermédio da qual passei a registrar e divulgar as injustiças e infortúnios de uma parte do povo piauiense. A retratação, com fidelidade, da face desfigurada de uma multidão sentenciada a morrer nos braços da miséria, e a publicação do resultado de inúmeras reportagens documentadas acerca da corrupção epidêmica enraizada sobremaneira nos poderes Executivo e Legislativo municipais, transformou o quinzenal de poucas páginas em objeto de comentários em todo o estado e seu conteúdo motivo de cobiça de jornalistas da grande imprensa. Despertava o amor entre alguns e o ódio entre outros, mas não havia o formador de opinião que se mantivesse indiferente diante da polêmica que passamos a causar com ininterrupta freqüência. Vendíamos em média, ao custo de 1real, 1.500 exemplares por edição. Uma marca considerável em um município de 36 mil habitantes e com uma população pouco adepta do hábito de ler. O jornal fez história, mas as conseqüências deste trabalho não demorariam a acontecer, transformando-se em graves ameaças à continuidade de nossas ações 24
de inibição ao processo desenfreado de corrupção do qual éramos vítimas. Acuados pelas denúncias, agentes públicos envolvidos nos muitos esquemas de corrupção retratados nas páginas de O Regional, passaram a mostrar suas garras e a responder com uma série interminável de intensas perseguições e tentativas de assassinato. A forte tempestade que se formou sobre o céu de Esperantina rompeu as fronteiras do município e alastrou-se por todo o Piauí. Assim como algo embrionário, o Jornal O Regional, mais tarde rebatizado de Jornal A Chibata (em alusão ao nome da coluna que assinava na primeira versão do periódico), foi apenas o início de uma envolvente revolução que atravessa os dias atuais - a Revolução da Chibata, um marco no combate à corrupção pública no nordeste brasileiro. 09 – É MAIS FÁCIL VENDER UMA CASA EM CHAMAS DO QUE JORNAIS NO BRASIL O ano de 2000, o último do milênio, transcorreu agitado. Figurou como importante período de encubação da revolução de inversão de valores morais e sociais que já estávamos, mesmo sem percebê-la explicitamente, empreendendo-a. Durante todo o primeiro semestre daquele ano, tudo orquestrou-se de forma a contribuir para o sucesso dos objetivos que nutria. Havia-me disposição de sobra, a qual moviame a compilar denúncias, arriscando não raras vezes a própria vida a fim de documentá-las. Assim como algo profético, era-me evidente a avalanche de processos que teria de enfrentar diante daquela guerra que decidi deflagrar. Frente a frente com as informações, e inspirado por inigualável paixão, punha-me a redigir utilizando-me de pequenos blocos de papeis que colecionava das sobras da Pontual Artes Gráficas. As colunas do periódico iam nascendo uma a uma, 25
respondendo a necessidade das matérias que garimpava naquele, até então por mim inexplorado, hipnotizante universo de dramas e carências humanas. Já no segundo semestre, após seis meses de circulação do Jornal O Regional, as nuvens de dificuldades que se formaram tornaram-se, como que num rompante, bem mais densas e tempestuosas que o de costume. Aliado aos esforços cada vez maiores das autoridades corruptas locais, que passaram a servir de alvo para toda a indignação que exprimia, minhas parcas condições financeiras, aos poucos, se exauriam ao ponto de encontrar dificuldades até mesmo para alimentar-me três vezes ao dia. O destino, finalmente, fez-me conhecer a fome – um dos temas preferenciais eleito por escritores e afins do mundo inteiro. Conhecedor de sua existência no cotidiano de penúria dos miseráveis piauienses mas, de certa forma, indiferente a ela por desconhecer sua dor e conseqüências colaterais, amá-la fortaleceume o espírito ao ponto de constitui-la minha irmã – algo ou alguém de quem extraí lições das mais prósperas e preciosas. A fome, dado o momento em que fomos apresentados um ao outro, foi como uma química que me fez mais íntimo da causa, convivente do mesmo mundo da legião de excluídos da qual passei a ser parte inseparável. O apadrinhamento do proprietário da gráfica começou a ruir com os adventos das perseguições. Como reação ao processo de desmanche de seu asqueroso esquema de corrupção, o deputado estadual Themístocles de Sampaio Pereira Filho (PMDB), que acumulava o status quo de secretário de Justiça e Cidadania do Piauí – homem forte no então Governo do Estado e proprietário do maior curral eleitoral de Esperantina, ao saber do patrocínio vital do empresário Chico Doido à nossa causa, pressionou o gráfico a virar-me as costas sob pena de ter seus empenhos (documentos de crédito junto ao Governo) emperrados na Secretaria Estadual de Fazenda. Responsável, na época, pela confecção de grande parcela dos impressos do Departamento Estadual de Trânsito – DETRAN/PI, transação comercial que movimentava grandes valores, Chico Doido foi obrigado a optar 26
entre continuar aferindo lucros junto ao governo Mão Santa ou seguir onerando-se com a impressão daquele irreverente tablóide interiorano, redigido por um repórter maluco, que acreditava ser possível mudar o país por intermédio da ética, da solidariedade e da união de um sem fim de maltrapilhos e excluídos como ele. A situação tornou-se grave sob o ponto de vista econômico. Mesmo vendendo muitos exemplares e presenteando outros tantos, o apurado era insuficiente para cobrir as despesas de confecção, diagramação e impressão dos mesmos. Os anunciantes há muito já haviam deixado de figurar como tripulantes de nossa remendada navegação. Ameaçados de terem suas contabilidades e papeis devassados pela fiscalização dos fazendários, fato tantas vezes bradado pelo próprio deputado nos microfones das emissoras de rádio locais, e temendo a efetivação das represálias, comerciantes e profissionais autônomos de Esperantina passaram a obedecer à lei do silêncio e da indiferença ao nosso trabalho, expediente este bastante utilizado no Nordeste quando o assunto é expulsar um forasteiro disposto a contrariar os interesses de coronéis da atualidade. Escritor e paranormal brasileiro, o mineiro Chico Xavier psicografou certa vez que somente aquele que se dispõe a fazer as coisas pequeninas, virá a saber e a poder realizar grandes coisas. Mesmo atolado em dívidas e estando o trabalho agonizante por falta de recursos, enfrentei a situação com as armas que dispunha: determinação e coragem para prosseguir. Precisava vender mais jornais, buscar anunciantes imunes às influências do deputado estadual Themístocles Filho e criar novas situações para a captação de recursos que me permitissem vencer a crise impiedosa daquele fim de milênio. Enchia minha mochila de jornais e batia de porta em porta, oferecendo-os aos moradores. Em muitas casas era recebido com festa, já em outras era humilhado e enxotado. Os muitos admiradores revelavam que o caminho era aquele, que deveria persistir. Já as humilhações, que em outros momentos teriam-me feito retroceder, passaram a servir de fomento às minhas 27
esperanças, pois mesmo saqueados em seu patrimônio e direitos mais elementares, aquelas pessoas mantinham-se cegas e subservientes aos seus algozes. A cada porta na cara, era mais nítida a necessidade de alguém em se predispor a acordá-los daquele sono profundo e causador das misérias brasileiras. Residiam naquelas casas os eleitores do Brasil desigual. O cansaço e as bolhas nos pés foram insuficientes. Era preciso mais, muito mais. Fiz algumas alterações no periódico, a fim de torná-lo mais atraente e vendável. Foi em vão. Objeto de preferência dos leitores, A Chibata – coluna que eu mesmo assinava e onde expunha as imoralidades administrativas dos nossos governantes, registros em forma de notas enxutas e bem humoradas, assumiu a logomarca do impresso em substituição ao antigo nome – O Regional. A mudança aqueceu as vendas, mas não alcançou o montante necessário para custear sua impressão gráfica. Obrigado a reduzir despesas, o Jornal O Regional, de circulação quinzenal, deu lugar ao Jornal A Chibata, agora nas bancas apenas de mês em mês. Com o agravo das finanças, chegamos a amargar períodos de até dois meses sem poder fazê-lo chegar as mãos de nossos leitores. Era o início de seu declínio, o que culminou alguns meses depois em sua fatídica extinção. Radialista a muitos anos em Esperantina, João Batista Alves – o J. B. Alves, apresentava-se como proprietário da Rádio Comunitária Retiro FM. Figurando como laranja do deputado estadual Ismar Marques e do vereador esperantinense Jânio Aguiar, ambos à época afiliados ao PFL, J.B. esforçava-se para que eu aceitasse um convite para conduzir um programa de variedades em sua emissora. A idéia, que me atraia dado a sua essência e meu histórico de rádio, era veementemente rechaçada por mim por conta dos métodos pouco éticos utilizados pelo radialista em sua missão de comunicar. Fazia da emissora um instrumento de lavagem cerebral dos ouvintes como forma de garantir a hegemonia dos políticos desonestos pelos quais era apadrinhado.
28
Depois de cerca de um ano de renitente negativa, e disposto a tudo para que meu grande projeto de transformação social lograsse êxito, resolvi aceitar o convite do radialista e passei a integrar, mesmo a contra gosto, a grade de programação daquela emissora político-partidária. Era outubro de 2000, ano da crise. Sem saber ao certo o que iria dizer ou tocar, entrava no ar o programa de radiodifusão Chibata Show – uma espécie de talk show matinal que acabaria por despertar a ira de prefeitos, secretários de estado, governador e da polícia de inteligência do próprio país, dentre tantos outros exponentes do poder institucional brasileiro. Foram sete dias que se arrastaram com o peso de séculos. Obras literárias e estudos analíticos poderiam ser, facilmente, inspirados por aquela semana de inovações. Criou-se um programa diferenciado, um misto de denúncias, humor e situações virtuais. O som de um helicóptero, extraído do álbum The Wall (Pink Floyd) abria e encerrava o polêmico programa. Apelidado de chibacóptero, derivado do tema do programa – uma chibata, o veículo imaginário era usado em verdadeiras caçadas aos corruptos da cidade. Assim como numa perseguição cinematográfica ao gângster do romance, o chibacóptero ainda contava com o apoio de unidades terrestres batizadas de chibamóveis. Utilizando dos sons de carros policiais captados a partir de filmes americanos do gênero, os chibamóveis seguiam por terra em reforço ao cerco popular aos transgressores dos direitos dos cidadãos esperantinenses. Localizados e presos em nosso imaginário radiofônico, após ouvirem a denúncia e a exposição das provas cabais, eram eles, os corruptos de Esperantina, submetidos a uma lição de moral e penalizados com uma surra de chibatadas também virtuais. Uma vinheta foi especialmente criada para esta situação. Era, sem dúvida, o momento mais esperado do programa, criação que fascinava e levava o grande público ouvinte a gargalhadas intermináveis. O som de alguém chorando e gritando de dor, associado a pessoa de uma autoridade desonesta e de nosso cotidiano, levou o povo a sorrir das próprias misérias, transformando 29
o fardo pessoal e coletivo em algo mais leve e cômodo de se carregar. Esperança a muito perdida, o Chibata Show devolveu aquele povo a auto estima e o direito de voltar a sonhar. Quando cheguei a emissora para levar ao ar a oitava edição daquele matinal, encontrei suas portas cerradas. Ouvi de J.B. que por motivos políticos o meu programa havia sido suspenso por tempo indeterminado. Pedi acesso ao microfone para despedir-me dos meus ouvintes, ou mesmo justificar. Fui violentamente impedido. No mesmo dia as ruas estavam cheia: caciques políticos locais haviam se consorciado e pago por aquela deliberação a quantia de dez mil reais. Peguei o chibacóptero e fui-me embora, desvalido e desnorteado que fiquei. 10 – UMA JUMENTA A PESO DE OURO Existia no município de Esperantina cinco emissoras de rádio, sendo quatro comunitárias e uma, a pioneira, de concessão comercial. Embora pertencente a grupos distintos, todas possuíam um fator em comum: eram legítimas representantes de grupos político-partidários e mantidas, sem exceção, com o nítido objetivo de aferir lucros eleitorais. Assim que o programa Chibata Show foi retirado do ar, por força e graça da censura dos coronéis locais, vi fortalecer-se a tese de que vivemos em uma nação que ainda respira, tão somente, a promessa de um estado democrático. Sentia-me ferido e violentado, além de preocupar-me o fato de não ter tido a oportunidade de despedir-me de meus ouvintes, explicando-lhes as verdadeiras razões da agressão da qual havíamos sido vítimas. Recebi aquela deliberação como uma mutilação aos meus direitos de expressar, com liberdade, minhas opiniões.
30
Tomado por forte indignação, bati à porta das outras quatro emissoras de rádio da cidade a fim de conseguir espaço para que fosse entrevistado sobre o ocorrido. Amarguei novo fracasso, uma nova censura me foi imposta. As autoridades do município foram mais ágeis e fizeram-se entender com rapidez. Decretaram minha inexistência e ponto final. A força daquele trabalho e a paixão com que o realizei não poderiam ser desprezados de forma tão vil e inconcebível. Dois anos de luta já haviam se passado e as vitórias e derrotas contabilizadas fizeram-me crer que, em algum lugar ou de alguma forma, haveria uma saída para aquele ultrajante xeque-mate. Era hora de se levantar da rasteira tomada, sacudir a poeira e seguir adiante. Estava decidido a pedir a revanche. Se era pela guerra que eles clamavam, pois os tormentos da guerra haveriam de viver. Sem dinheiro nem sequer para comer, recorri a um amigo o qual me emprestou uma humilde carroça de onde extraia o sustento de sua família. Seu burro, um animal velho mas aparentemente esforçado, fez-me crer que seria de grande valia para minha estratégia de contra-ataque aos tiranos que insistiam em usurpar minha liberdade. Procurei em seguida pelo advogado e vereador Arimatéia Dantas, um petista que, dois anos depois, tornouse conhecido no mundo inteiro por conta do polêmico projeto de sua autoria que instituiu, em Esperantina, o Dia Municipal do Orgasmo. Consegui com ele o empréstimo de um conjunto de caixas acústicas, um toca-fitas e um microfone, os quais adaptei com facilidade à carroça do Pedro. Como estímulo para que levasse adiante meus esforços em inibir os hábitos de corrupção, enraizados no serviço público, e de combater as locupletações corrosivas dos políticos da terra, que irmanados constróem a tragédia nordestina que tantas vidas consome, um pequeno comerciante da cidade, que trabalhava com recargas de bateria, Mourão, cedeu-me a título de empréstimo uma das que mantinha guardada em sua oficina. Pronto. Lá estava eu diante de meu tanque de guerra - um sistema amplificado de som movido a tração animal, com direito a um microfone que me haviam negado e um burro de 31
nome Arrocha. A idéia, a princípio risível e de êxito para muitos duvidável, acabou se tornando num sucesso de público e numa poderosa arma que acirrou meu confronto com os donos de Esperantina. Foram exatos quinze dias, os quais exigiram de mim espírito de aventureiro e esforço de pugilista. Iniciava minha peregrinação religiosamente às sete horas, tendo como primeira parada obrigatória a região do grande mercado municipal de hortifrutigranjeiro. Parava a carroça, subia em suas caixas de som e, empunhando uma chibata de vaqueiro feita de couro de bode, iniciava o Chibata Show levando ao conhecimento dos que me ouviam os resultados de minhas investigações. Aos poucos foram formando-se pequenas multidões ao meu redor. Como forma de tornar a carroça de som mais interativa, facultava a palavra aos presentes que reclamavam, com justa razão, das misérias e injustiças de que também eram vítimas. Minha coragem e ousadia causaram entre nós, eu e aquele povo miseravelmente saqueado, uma cumplicidade extraordinária, razão pela qual passei, em poucos dias, a ser acompanhado por um exército de esperantinenses que me seguiam os passos pelos muitos bairros e vilas da cidade. Mesmo sem a parceria dos anunciantes que, intimidados pelas ameaças das autoridades políticas passaram a me evitar como o diabo à cruz, os munícipes da terra começaram a me ajudar voluntariosamente, oferecendo-me, como que por retribuição aos meus esforços em melhorar-lhes a vida, desde pratos de comida e lanches até significativos presentes como orações, imagens de santos e outros adereços de estímulo a fé que me movia. Certa vez, durante o programa etinerante, enquanto externava minha indignação pela opressão das rádios locais em não permitir programas populares e que fiscalizassem os agentes públicos, fui interrompido em minha explanação por um jovem, cuja identidade já me era conhecida. Profissional do ramo de montagem de torres, linhas de transmissão e antenas de rádio e tevê, Valdivino Miranda Leite havia perdido o pai a pouco mais de um 32
ano e, por direito, herdado um pequeno patrimônio o qual incluía uma jumenta que, dado a idade avançada, desnutrição e os muitos infortúnios da vida, já não possuía mais parte do rabo e nem mesmo os dentes. Inútil ao dia-a-dia da propriedade, o pobre animal vivia a ermo a espera da morte. _ Gente, o Felipe é um sinal de que ainda há uma alternativa real para que possamos melhorar as coisas em Esperantina. Nós não podemos ficar de braços cruzados, assistindo ao nosso patrimônio ser saqueado à luz do dia. Eu me proponho a dar o primeiro passo para ajudar este repórter que luta por nós com amor e rara coragem. Eu tenho uma jumenta que herdei do meu pai. Sugiro que façamos um bingo dela e, com o dinheiro apurado, compremos os equipamentos de uma rádio que será nossa, do povo de Esperantina. Com a colaboração de todos faremos nascer a Rádio Chibata FM, local onde o Felipe fará seu programa do jeito que tem de ser: verdadeiro, imparcial e sem o covarde cala-boca que sabemos existir nas outras. Aplaudido efusivamente por uma grande platéia de entusiastas, e como que inspirado por uma legião de espíritos de luz, meu amigo Valdivino acabava de promover, mesmo sem ter noção das conseqüências milagrosas que nasceriam daquela doação, uma histórica virada no jogo do poder em Esperantina. A partir daquele feito assistiría-mos, perplexos e gradualmente, a uma inevitável inversão de forças, tornando-se os coronéis da cidade em reféns da vontade imperiosa e de direito da multidão. Febre entre os moradores de Esperantina, o Bingo da Jumenta ganhou a simpatia de considerável parcela da população. As cartelas, ao custo de um real cada, passaram a ser encaradas como uma espécie de ação de sociedade simbólica da emissora a caminho da fundação. O sucesso do negócio foi uma resposta daquele povo à falta de compromisso social dos governantes e à cultura do coronelismo que institucionalizou, no nordeste brasileiro, a pessoa em poder público. 33
Com o dinheiro apurado, fundamos a Associação Comunitária de Rádio e Jornalismo Investigativo de Esperantina, gestora popular da Rádio Humanitária Chibata FM. Adquirimos os equipamentos básicos de radiodifusão, locamos um imóvel no centro da cidade e consolidamos, desta forma, uma ampla aliança de combate à corrupção e de defesa da cidadania. Quanto à jumenta, tornou-se ela no mais caro exemplar da espécie de toda a história da humanidade. Cinco mil reais por uma jumenta, só mesmo em Esperantina, no Piauí. 11 – A MISÉRIA VISTA EM SUA INDIVIDUALIDADE É FRÁGIL A cidade, antes sem novidades e de hábitos individuais, passou a incluir no seu cotidiano uma novela da vida real transformando a todos em personagens principais. Passamos a ser protagonistas de um filme policial onde, ao invés de ladrões de banco e criminosos comuns, o alvo escolhido era os políticos desonestos e seu subordinados - ambos adeptos das práticas de corrupção que nos emperravam dias promissores. A Rádio Humanitária Chibata FM, construída com recursos exclusivamente populares, tornou-se, em pouco tempo, numa espécie de meca para aquela legião de famintos e deserdados da própria sorte. Para o prédio sede da emissora convergiam verdadeiras romarias de homens, mulheres e crianças que nutriam fome pela verdade e uma sede por justiça capaz de devolver-lhes a dignidade tomada de assalto. Respaldados por unanimidade, tomamos a decisão de registrá-la como rádio humanitária, pois depois da tirania que nos empurrou ao calvário, tendo a carroça como cruz, nos era impossível não assimilar o termo rádio comunitária como uma alusão às emissoras de gestão político-partidária. No universo da radiodifusão esperantinense, comunitária passou a ser sinônimo de 34
autoritária. Éramos, portanto, humanitários. Diferente de nossos algozes que se diziam comunitários e, portanto, usurpadores da boa fé da opinião pública que deformavam com o emprego de mentiras falseadas de verdades. Li recentemente, na camiseta dos formandos do ensino fundamental da Escola Hermínio Castelo Branco (Esperantina), dos quais tive a honra de ser paraninfo, que o futuro não nos dá nem nos trás nada. Nós é que, para construí-lo, é que devemos dar-lhe tudo”. Eis uma verdade que nos era clara diante das obras enebriantes que nosso trabalho humanístico produzia e que, não raras vezes, levaram uma cidade inteira a derramar lágrimas provocadas por emoções que jamais nos abandonarão as lembranças. Os desvios de recursos públicos e, às vezes, a obrigatoriedade em justificá-los entregando a obra à comunidade em flagrante engodo à fiscalização, a exemplo do programa federal do Governo Fernando Henrique Cardoso – o Morar Melhor, cujo o restante do montante, subtraído os agrados e comissões exorbitantes, obrigavam-lhes a entregar aos moradores material insuficiente para o reparo de seus imóveis, fez com que muitas casas ruíssem, sentenciando famílias humildes e cuja Justiça não alcança à penúria do relento. A inacessibilidade aos governantes, ato de crueldade que tem sucumbido muitas vidas nordestinas, levavam esta gente a buscar refúgio junto a nós, na emissora que lhes pertencia. Uma cozinha foi improvisada, graças a doações de comerciantes da cidade que passaram a contribuir, escondidos no anonimato, com nossa causa de remendo para tantos estragos sociais. Aos poucos, nossa humilde, mas numerosa família, foi tendo a compreensão da profundidade do provérbio bíblico que diz que o pouco com Deus é muito, e o muito sem Ele é nada. O pobre passou a gostar de ver o meio quilo de arroz que nos doava, multiplicar-se em alimento que passou a estancar a fome de dezenas de famintos como ele. O Fome Zero, de Luís Inácio Lula da Silva,
35
há muito que já vem sendo encampado com sucesso pelo Movimento Chibata. Os casos mais graves, os quais requeriam recursos adicionais para serem resolvidos, eram por mim levados ao ar nos momentos em que passamos a chamar de Campanha de Solidariedade do Chibata Show. Se não fosse o vasto material em vídeo, onde se documentou algumas destas impressionantes experiências, tornar-se-ia difícil acreditarmos em tais feitos tendo como base apenas os relatos do autor. A metodologia era simples: iniciava a entrevista, ao vivo, servindo de ponte entre o necessitado e a multidão de esperantinenses que nos ouvia do outro lado do seu rádio. Procurava aproximá-los ao máximo, extraindo do aflito entrevistado detalhes aprofundados de seu drama. Em seguida, após uma reflexão sobre o infortúnio de meu interlocutor, descorria sobre a falta de moralidade e de compromisso de nossos gestores ante as mazelas de nosso povo. Ao final, a população era convocada para uma demonstração de solidariedade aquele irmão companheiro, alguém que, como nós, necessitava de amparo. Fazia-os ver que nossa união em torno de nossos próprios infortúnios era o suficiente para que os dizimássemos, um a um, sem para isso ter que nos submeter às humilhações dos agourentos coronéis locais. As cenas que se produziam em seguida eram divinas, fruto de uma Interferência Maior capaz de remover os mais petrificados dos corações. O estúdio, antes vazio, congestionava-se em questão de minutos. Era impossível não se emocionar diante de uma invasão de centenas de populares que acotovelavam-se em busca de uma oportunidade para entregar, em mãos, o donativo ao irmão menos afortunado. Doavam o necessário e faziam uso da palavra, externando, cada um a sua maneira, toda a indignação de uma vida inteira, reprimida pelo autoritarismo e ambição desmedidos de nossos algozes públicos. Comprávamos passagens aéreas e buscávamos tratamentos especializados fora do Estado, quando assim se fazia necessário. Nossas mulheres eram curadas, crianças 36
reencontraram proteção e nossos homens, bravos sobreviventes de uma guerra desumana, viam, na solidariedade de seus conterrâneos, um motivo maior e indestrutível de crer, com esperança, em dias melhores e verdadeiramente altaneiros. O paralítico voltou a andar, com a ajuda de cadeira de rodas, mas andou. Casas que ameaçavam ruir, sepultando famílias inteiras, tiveram suas coberturas reparadas, paredes reforçadas e seus alicerces garantidos. Parturientes, antes desprovidas da dignidade que lhe conferissem uma maternidade tranqüila, eram presenteadas com enxovais, roupas e dinheiro para custeio do nascimento de seus filhos. Não havia, entre nós, aquele que não fosse abençoado pelo sentimento reparador do amor. Servindo ainda de balcão de informações e de prestação de serviços de auto-ajuda, a Chibata FM também travou compromisso com a conscientização do nosso povo, apresentando-lhes seus direitos, seus deveres e fazendo-lhes crer no poder adormecido dentre de cada um de nós, pronto a agir a partir de nossa pré-disposição em despertá-lo. Fi-los ver que muito daquilo que antes era rotulado de inútil, frágil, simplório e, portanto, sem efeito algum aos olhos do mundo, era na realidade funcional, forte, importante e empreendedor à luz da verdade. Estava criado o Tribunal da Opinião Pública – um púlpito de pregações, não demagogas, mas autênticas e que passaram a resolver graves ferimentos e incisões sociais e econômicos. A união dos mais fracos tornou-se visível e temida aos olhos dos grandes. A fragilidade de nós miseráveis, ao nos unirmos todos em formação a uma espécie de escudo humano de proteção, fez com que fôssemos vistos e, mesmo que por covardia dos tiranos em reconhecimento à sua documentada falta de razão, respeitados em nossos direitos e preservados em nossos sonhos. Iniciava ali, um período marcado pela certeza coletiva de que possuíamos, efetivamente, o poder de mudar nossas vidas. Um poder que deveria ser exercitado, à exaustão, por todos nós.
37
12 – UMA CIDADE SOB O FASCÍNIO DA INVESTIGAÇÃO Paralelo às ações filantrópicas e de reparo ao trágico rastro deixado pelo corruptos tupiniquins, ações em sua maioria paliativas mas necessárias e encampadas com ardor, a Chibata FM seguia, destemida e ousada, em sua vocação nata de esmiuçar, fazendo uso das técnicas do jornalismo investigativo, as muitas transações realizadas na esfera dos poderes Executivo e Legislativo, tanto municipal como estadual. Rasteávamos cada passo de nossos governantes, atento à suas intenções e metodologia no trato com o patrimônio público. Prestações de contas, processos licitatórios e condução da patente de autoridade no dia-a-dia eram, por nós, investigados com rigor e caprichoso interesse. Foi exatamente neste período, setembro de 2001, que decidi levar a termo meu compromisso de união com a bela e jovem Lysmara de Amorim Castro. Embora ainda na flor de sua jovialidade, Lys reunia em si atributos dos mais raros, além de uma vocação e coragem extraordinárias para a investigação. Hábil, perspicaz e inteligente, minha terceira esposa (sempre tive dificuldade em manter meus casamentos por conta da vida arriscada que escolhi levar) é tida por mim como um dos achados mais valiosos de minha história de vida. Além de completar-me como ser humano, sua experiência e sensibilidade para com os problemas sociais de seus patrícios trouxeram grandes avanços à Revolução, inspirando-me confiança, cumplicidade e sentimento de companheirismo. Estava formada a dupla que iria, em pouco tempo, tornar-se em um terrível pesadelo aos inimigos públicos de nosso povo. Éramos a tampa e a panela, uma engrenagem perfeita em pleno funcionamento. Juntos, eu e Lys criamos o que poderia ser considerado um sistema integrado de vigilância pública, o que, dado aos expedientes utilizados e metodologia empreendida passou a se denominar de Rede Chibata de Informação – RCI. Constituída de 38
arquivos - hoje com mais de três mil fotografias, centenas de horas de gravação de vídeo e áudio, documentos diversos e um arsenal de depoimentos e narrativas extremamente reveladores e elucidantes, a RCI conta com vários equipamentos tecnológicos e utiliza-se com freqüência da Internet para buscar informações e parcerias para seus intentos. Um caseiro, mas eficiente célula nordestina no universo da espionagem. Tento a nosso favor, praticava-se nos corredores do poder, em Esperantina, uma corrupção grosseira e ainda rudimentar. Como que distraídos por cumulativa impunidade – fator fortalecido pela inexistência, no passado, da presença de uma entidade diligente e denunciativa, os locupletados públicos desta história tornaram-se, por herança, presas fáceis e inócuas. Ruas calçadas nos papéis, mas cuja lama dava nas canelas e vaqueiros e capatazes transformados em proprietários de construtoras, ou ainda em preferenciais fornecedores de produtos farmacêuticos e hospitalares, eram facilmente desmascarados pela RCI e suas farsas tornadas públicas por intermédio do Chibata Show. A simpatia pelo nosso trabalho e o fascínio que este causava aos milhares de habitantes de Esperantina, fizeram com que um verdadeiro exército de investigadores se voluntariasse, sendo ele arregimentado por nós nas muitas operações secretas que operacionalizamos. Todos queriam contribuir instigados pela coragem que passou a ser uma marca entre os esperantinenses. Vários micro-gravadores foram, estrategicamente, espalhados em mãos de populares. Tínhamos informantes, os quais costumávamos chamar de chibateiros, presentes em muitos órgãos públicos e em locais de freqüente concentração de nossas caças. Nosso chibateiros multiplicavam-se numa velocidade impressionante. As adesões à RCI representavam uma constante em nosso movimento revolucionário local. Passamos, inclusive, a enxergar e a ouvir por intermédio daqueles que, vítimas de suas humilhações diárias, serviam domesticamente aos nossos algozes. Fechávamo-lhes o cerco a fim de espreitar-lhes as intenções e antepormo-nos aos seus golpes. 39
Foi agindo assim que, empreendendo audaciosas investidas, conseguimos inibir, em parte, o assolante processo de manutenção da indústria da miséria entre nós, além de termos desnudado tantos outros casos de corrupção anteriormente consumados. Uma quadrilha especializada em desvios de recursos do SUS, e que tinha o Hospital Estadual Júlio Hartman (em Esperantina) como ralo para suas subtrações milionárias, foi desmascarada e o processo de mortes, cujas causas residiam na negligência médica e falta de medicamentos, interrompido e denunciado ao Ministério da Saúde e Ministério Público Federal. A sociedade assistiu vitoriosa a volta da merenda escolar e do material didático gratuito ao cotidiano de nossos alunos da rede pública. Nossas ruas, antes sob intenso breu, voltou a ter na iluminação pública uma aliada na moderação da criminalidade. Ao menor anúncio de denúncia pautada na falta de ação de serviços básicos da municipalidade, assistíamos à imediata movimentação dos responsáveis públicos em busca de solucionar o que lhes era reclamado. Por incontáveis vezes, antes mesmo do encerramento do Chibata Show, palco das denúncias formuladas, fazíamos o registro da solução do problema. Com humildade, reconhecíamos publicamente ao esforço do servidor municipal, antes sob reprimenda, como forma de estimulá-lo a não mais causar dolos por conta de sua má vontade e ou descompromisso. As conquistas, todas advindas do tripé união, persistência e coragem, ponteadas até aqui sob forma de sucinta amostragem, se experimentadas em outros municípios brasileiros teríamos então, seguramente, uma nação esplendorosa, onde as desigualdade sociais e os infortúnios do povo tão explorados pela grande imprensa não mais encontrariam moradia. Nenhuma nação do mundo, depois de exaurida busca pela história da humanidade, experimentou, a exemplo de Esperantina, o poder transformador que emana de um povo quando este está sob o fascínio da investigação.
40
13 – ADENTRANDO NA MANSÃO DOS MORTOS Havia, nesta época, apenas dois hospitais em Esperantina. Um, o mais antigo, pertencente a rede hospitalar pública – Hospital Estadual Júlio Hartman (homenagem ao médico prático alemão que viveu no município nos primórdios do século passado. Fugitivo da Segunda Guerra Mundial, Hartman passou a desenvolver sua medicina em benefício de seus hospedeiros). Construído para atender a toda a microregião, da qual Esperantina se orgulhava de ser a capital, o hospital estadual era obrigado, muitas vezes, a sacrificar-se para ver atendido outros enfermos que vinham de várias cidades do vizinho estado do Maranhão. Já o outro, de origem diferente do primeiro – de propriedade privada, também exercitava a prática da medicina hospitalar pública. O Hospital das Clínicas Iracema Gomes se sustentava às expensas do SUS - Sistema Único de Saúde, de quem sempre foi conveniado. Embora tratando-se de dois hospitais distintos, um público e outro privado, a história do primeiro acabou fundindo-se com a história do segundo por conta de um detalhe revelador – embrião de uma história que culminaria com a minha crucificação no sertão piauiense durante o período eleitoral de 2002. O proprietário do hospital particular, o médico Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto, praticante de uma medicina que causa assombro e pânico, era também o diretor geral do seu único concorrente na região – o Hospital Estadual Júlio Hartman, a quem transformou numa espécie de mansão dos mortos, ou ainda Vale da Morte. Os fatos que passamos a narrar, todos disponíveis no arquivo da RCI (os quais se fazem acompanhar de vasto material comprobatório), são descritos com base no depoimento das vítimas e na investigação apurada de seus detalhes – 41
método e preocupação preponderantes no trabalho do autor. Algumas destas tragédias foram devidamente denunciadas às autoridades competentes e outras, macabras e fruto da ganância insana, tornam-se públicas pela primeira vez por intermédio desta obra. Mas ainda mais grave é assistir, nos dias atuais, aos responsáveis gozando de flagrante e imoral impunidade. Todos condecorados pela imprensa piauiense, a grande responsável pela permanência deles no poder e no manuseio de bisturis a sepultar multidões. Trata-se do desbravamento de um Brasil assassino que sustenta-se, pelas mãos de Menfis, acima da própria Lei. _ Felipe, meu filho olhava para mim e dizia: “Papai, não me deixe morrer”. Respondi que ele segurasse firme minha mão, pois tudo acabaria bem. Caminhei horas com ele nos braços. Não achei quem salvasse meu filho... Os seus olhos, marejados desde o início, não demorou a desabar em lágrimas sentidas. Assistia atônico aquele trabalhador rural, de mãos calejadas e maltratada feição, chorar como uma criança desprotegida a morte de seu filho de sete anos, cuja vida foi encurtada por mãos que deveriam mantê-la. Francisco Fernandes Bezerra, sofrido lavrador, residente da zona rural do município, gozava a fama de homem virtuoso – honesto trabalhador, rígido na hora de honrar com seus compromissos e pai amoroso. Pobre sobrevivente da caatinga, mantinha sua família, às duras penas, sob o teto da humildade e da simplicidade. Ensinava-os a conformar-se diante da sorte que Deus havia lhes reservado. Motivo de orgulho e de grandes alegrias da família, o filho mais velho de Francisco – o pequeno Antonio José Bezerra da Silva, de sete anos de idade, impressionava a todos pela inteligência e espírito solidário. Francisco e seu filho Antonio nutriam entre si verdadeira adoração. Companheiro inseparável das incursões de seu pai, o menino Antonio José crescia esnobando saúde e respirando as virtudes de seu progenitor. 42
Tudo corria bem até quatro dias antes daquele fatídico episódio, momento em que vira partir seu mais precioso bem. O silêncio da madrugada foi interrompido por fortes gemidos que partiam do pequeno quarto do menino Antonio José. Despertado de seu sono, Francisco observou que seu filho inchava, vítima de inesperada e desconhecida enfermidade. Agonizante, a criança inspirava cuidados médicos, procedimentos disponíveis apenas nos hospitais da cidade. Antes mesmo que o dia amanhecesse, seguiu com o filho para beira da estrada a fim de embarcar no primeiro carro de linha que por lá passasse. Eram sete horas da manhã de 21 de maio de 2001. Francisco, tomado de aflição, esperava na recepção do Hospital Estadual Júlio Hartman o médico plantonista que custava a aparecer. Vendo que o mal estar do filho mantinha-se inalterado, resolveu partir para o Hospital das Clínicas, de propriedade do Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto, onde conseguiu internar o filho pelo período de três dias incompletos. Sob alta médica, o pequeno Antonio José, já apresentando melhoras em seu quadro clínico, retornou para casa na companhia de seu pai. Antes, porém, o lavrador passou em uma farmácia e adquiriu uma caixa de comprimidos prescritos pelo Dr. Franklin. Ao ingerir a segunda cápsula do remédio, a enfermidade voltou a se manifestar, desta vez de forma mais acentuada do que antes. Como que prevendo o pior, Francisco retornou no mesmo dia ao hospital estadual, em busca de cura para o menino. Nova decepção. Sem médico, passou a noite na recepção, sendo seu filho atendido somente na manhã do dia seguinte – 24 de maio. Sem receber qualquer atendimento médico, o filho de Francisco recebeu apenas uma guia de encaminhamento para o hospital da capital, Teresina – viagem que só poderia ser realizada, segundo o médico que a prescreveu, no dia seguinte, às sete horas da manhã. Chegado o dia e a hora, Francisco Fernandes apareceu no hospital conduzindo seu filho, Antonio José, 43
pelas mãos. O menino, embora gravemente acometido de uma doença que acabou por não ser diagnosticada, ainda chegou no hospital caminhando, sob os próprios pés. Ao vê-los chegando no Júlio Hartman, e não havendo razão nenhuma que justificasse, o Dr. Franklin detratou impiedosamente o já aflito Francisco e, aos berros, antecipou-se ao próprio pai dizendo que não autorizaria ambulância alguma para o transporte daquele menor. Francisco estava desnorteado e passou a ter dificuldade para raciocinar. Com a falta da lógica, seguiu pela ruas da cidade carregando a esmo, nos braços, seu filho que lhe implorava por socorro. Ao encontrar uma funcionária da prefeitura, soube dela que o Dr. Franklin teria voltado atrás, se arrependido, e disponibilizado a ambulância para seu filho desvalido. Em vão. Pela quarta vez viu-lhe faltar o chão naquele hospital público. O pequeno Antonio José, assistindo a tudo com consciência, suportou todas aquelas agressões com resignação e santidade. Carregado pelos braços já sem forças do pai, mirou Francisco nos olhos e assacou-lhe em sua voz de menino: _ Pai, por favor, não me deixe morrer! Entrou com o filho em um ônibus e seguiu até o município de Barras, a ......... quilômetros de Esperantina. Meia hora após sua permanência no hospital regional daquela cidade, o pequeno e sempre alegre Antonio José, deu um sorriso para o pai e partiu de junto dele. Assistiu-se ali a morte de um anjo. A insensibilidade do Dr. Franklin, notório predador de vidas humanas, fez apagar mais um, dentre tantos outros pontos de luz sucumbidos por sua ambição assassina. (Ilustrar com Termo de Denúncia, firmado por Francisco aos auditores do Ministério da Saúde, em 19 de outubro de 2001 – cerca de 5 meses após a morte de Antonio José. / Destacar trecho, pág.02: (...) como lá não houvesse médico (...) com receita de medicamento (...) prescrita pelo Dr. Franklin (...) 44
como a criança houvesse piorada na ingestão do segundo comprimido (...) não encontrou médico no hospital (...) que ainda permanecia sem médico (...) o Dr. Franklin negou transporte (...) o Dr. Franklin tratou-o de forma agressiva (...) lhe informou que a ambulância do Hospital Estadual faria a remoção (...) mais uma vez teve negado a ambulância (...) a criança foi atendida no Hospital de Barras, e meia hora após chegar ao Hospital veio a falecer (...) não lhe foi fornecido o atestado de óbito (...). Desenvolver uma arte de forma a expor com qualidade uma foto do garoto Antonio José). Há muito que farejávamos a ação de uma quadrilha especializada em desvios de recursos do SUS, operando em conjunto com os dois hospitais. O que não sabíamos era que vidas estavam sendo sacrificadas e outras tantas usurpadas. Em busca de deformidades meramente administrativas, acabamos descortinando um quadro fúnebre e sombrio, uma espécie de abatedouro de vidas humanas. A medida que novas denúncias iam chegando, catalogamos mais histórias predominadas pelo medo, covardia e terror. Escorria de nossos arquivos o sangue de inocentes, derramado tal qual oferendas a principados e potestades. Um mergulho na noite turva com a própria morte a nos espreitar. Demos, eu e Lys, passos arrastados, pois adentrávamos na traiçoeira Mansão dos Mortos. 14 – SERIAL KILLER POR AMBIÇÃO E NEGLIGÊNCIA Manhã do dia 4 de novembro de 1999. Elaine de Farias Sampaio de Carvalho, 18 anos de idade, apresentase na recepção do Hospital Estadual Júlio Hartman. Grávida, e já excedendo os nove meses de gestação, reclama de dores as quais, 45
por instinto, julga ser o sinal do tão esperado momento. Passado duas horas desde a sua chegada naquela casa de saúde, período em que foi submetida a uma inominável sessão de tortura, Elaine recebe a notícia que a traumatizaria por todo o resto de sua vida: sua filha estava morta. _ “Eu fiz todo o pré-natal com o Dr. Eduardo, da Secretaria Municipal de Esperantina. Foram nove meses de uma gravidez sadia. Minha filha era uma menininha e se chamaria Bianca. Ao matarem minha filha... (Elaine chora). Mataram também um pedaço de mim”. Era só mais uma história de parto mal sucedido naquele lixo hospitalar. Elaine engrossava a fileira das muitas parturientes que, após ingressar naquele hospital sombrio, tiveram a vida de seus filhos, quando não as suas próprias, interrompidas pela estupidez humana. É hoje mais uma das sobreviventes de um médico que a corrupção piauiense transformou em assassino. Novamente ele, Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto, tinha seu rastro documentado por nossas investigações. Assim como no relato do capítulo anterior, uma nova vítima foi sucumbida por ele, desta vez em flagrante e absoluto consentimento ao crime praticado. Assistiu a tudo e nada fez. _ “Minha gravidez foi saudável. A ultrasonografia prova o que estou dizendo”. O relógio marcava dez e meia da manhã quando Elaine deu entrada no hospital. Sempre em companhia da cunhada, a cabeleireira Marinete Freitas de Carvalho, a jovem mãe aguardou pelo atendimento por longas quatro horas até que uma funcionária surgiu na enfermaria para levá-la à sala de parto. Elaine sentia contrações ainda bastante espaçada uma da outra, mas estava feliz e confiante, pois finalmente seria apresentada à sua primeira filha. 46
_ “Eu já tive filho, e quando é hora de parir, quando termina uma dor já é começando outra”. O desabafo é da cabeleireira Marinete Freitas de Carvalho, que afirma que a gestante foi induzida ao trabalho de parto em momento ainda não adequado. Irmã do marido de Elaine, Marinete foi quem acompanhou a cunhada durante toda sua estada no hospital público. Depois de obter sinal verde do setor de enfermagem, a cabeleireira participou do parto, fotografando importantes momentos da carnificina que se seguiu. O diretor do Júlio Hartman, Dr. Franklin, estava presente no hospital, pois ele era o médico responsável por aquele plantão. Mesmo ciente da presença da parturiente no Centro Cirúrgico, o médico não compareceu para conduzir o parto. Depois de muitas investigações, ouvindo outras mães que conceberam seus filhos em plantões do Dr. Franklin, descobrimos que o médico sempre se ausentava no momento do parto. Fosse ele normal ou cesariana, era sempre entregue pelo doutor às mãos desabilitadas de auxiliares de enfermagem que integravam o corpo clínico hospitalar. A ele cabia apenas a função de assinar o prontuário e receber do SUS (Sistema Único de Saúde) os valores correspondentes ao procedimento médico praticado. Foram duas horas de tentativas desastrosas para trazer a pequena Bianca ao convívio de seus pais. Duas auxiliares de enfermagem colocaram-se ao lado de Elaine e deram início ao ritual de um parto normal. No início, a duas parteiras utilizaram-se de todos os mecanismos para estimular a gestante a forçar pelo nascimento do bebê. Durante o parto, uma das auxiliares de enfermagem chegou a reconhecer que Elaine não tinha força suficiente para conceber a criança em regime normal. Afirmando-se sempre muito experiente, disse que reconhecia a necessidade de uma cesariana urgente, pois o caso havia se complicado inesperadamente.
47
_ “Eu vi a cabecinha da criança. Não havia espaço para minha sobrinha nascer”. No depoimento emocionado que nos concedeu à época, a cabeleireira narra o momento em que uma das auxiliares de enfermagem saiu da sala em busca de alguém que as ajudassem a salvar a vida da criança e de sua mãe, pois o caso estava ficando fora de controle. Marinete lembra que não demorou muito e a viu retornar na companhia de um faxineiro do hospital – Antonio Francisco F. de Oliveira, o Toinho. _ “Ele se debruçou sobre ela e começou a forçar sua barriga com os cotovelos. Mesmo que sem intenção, aquilo acabou matando minha sobrinha asfixiada”. Um clima de tensão passou a predominar e, reforçando a necessidade de uma cirurgia para a retirada da criança, a auxiliar de enfermagem saiu novamente do Centro Cirúrgico, desta vez atrás do médico plantonista. A morte, naquele momento, rondava mãe e filha na sala de parto do Júlio Hartman. _ “O Dr. Franklin entrou e autorizou uma injeção de força. Pegou no meu braço e saiu comigo da sala. Me convidou para tomar um cafezinho. Me deixou na cantina do hospital e saiu para atender outros pacientes, como se nada estivesse acontecendo”. Desesperada, e temendo pelo pior, Marinete foi até um telefone público instalado na calçada de frente do hospital e telefonou para outro médico da cidade, Dr. Jóe Alves de Alcântara. A princípio o médico recusou-se a intervir, alegando falta de ética e as normas do próprio hospital, já que o plantonista naquele momento era quem deveria tomar as providências de urgência. Entretanto, convencido da urgência, acabou cedendo ao 48
apelo e se deslocado até o hospital. Era tarde. Ao chegar no hospital a criança já estava morta. (Tomar um depoimento do Dr. Jóe sobre o episódio e transcrevê-lo aqui) CONCLUIR ESTE CAPÍTULO COM A MORTE DA ESPOSA DO MEU COMPADRE, O PARTO DE CÓCORAS NA ENFERMARIA, A PARTURIENTE CONCEBENDO NA PAPELARIA DO BOSCO, O FETO DA BOCA DO CACHORRO E O CEMITÉRIO CLANDESTINO 15 – AFERINDO LUCROS COM A MORTE DE INOCENTES Eu sempre defendi a tese de que o delinqüente que esfaqueia alguém é tão vítima quanto o esfaqueado. Trata-se de um criminoso, nem sempre por vocação ou instinto malévolo, moldado para aquele fim pelo próprio meio em que vive. O mais grave nesta situação é que, a medida que aprofundamos nossas investigações nos deparamos com situações que, a princípio corriqueiras e freqüentes no dia-a-dia da mídia nacional, escondem em suas causas as ações planejadas de autoridades constituídas pelo próprio delinqüente, hoje no banco dos réus. Há algo mais nestes crimes comentados de forma banal pela imprensa estadual e nacional. Persegue-nos a impressão de que grande parcela dos que roubam, invadem, matam e torturam integram uma espécie de milícia arregimentada para este fim, com o intuito de tornar o quadro social grave e susceptível a verbas oriundas de uma política pública, as quais são desviadas sem cerimônia nem dificuldade neste sistema acobertado pela 49
impunidade. Sem os ingredientes que culminam na violência (pobreza, fome, doenças e desemprego), afunilariam-se as verbas emergenciais e a fundo perdido que fazem a alegria dos corruptos brasileiros. A cada passo que damos em busca das causas para a miséria dizimante em Esperantina, desnudamos, aos poucos, um Piauí de gestores ensandecidos, malogrentos e predispostos a enraizar, cada vez mais, o câncer da corrupção que assola o nosso povo já nocauteado. Nos é cada vez mais claro que os problemas sociais não residem nas delegacias de polícia ou nos guetos de atuação de gangues e infratores diversos , como tenta nos fazer crer jornalistas da leva de Silas Freire, Pádua Araújo, Beto Rêgo, Galego e tantos outros que fazem das portas de cadeia suas redações, como se ali residissem as razões da existência da criminalidade. Ledo engano! O pior cego não é aquele que não quer ver, mas aquele que é pago para não enxergar. A bandidagem piauiense, responsável pelo estado de falência social e de aversão ao cumprimento das próprias Leis, sempre teve como endereço gabinetes da Assembléia Legislativa, das Câmaras Municipais, as salas ricamente decoradas do Governo e tantas outras onde se avista togas e fardas dependuradas como símbolos da impunidade virulenta e crescente entre nós. O setor privado, em especial os fornecedores do setor público e construtoras, completam esta secular engrenagem que faz mover, com precisão, a grande indústria da miséria piauiense, responsável por uma produção holocáustica e de assombrosas exclusões. As muitas mortes no Hospital Estadual Júlio Hartman requereriam de mim e de Lys que fôssemos muito além das usuais negligências médicas – as quais já havíamos documentado fartamente. Mesmo diante das evidências e, em muitos casos, das provas coletadas e propagadas publicamente à exaustão, as mortes provocadas naquele matadouro humano parecem não despertar o interesse das autoridades governamentais, policiais e nem da própria Justiça – esta provocada com freqüência e insistência 50
por nós. É como se houvesse algo ou alguém incontestável por detrás de toda aquela carnificina humana, alguém cujo poder fosse, por si só, suficiente para cessar toda e qualquer tentativa de responsabilidade dos envolvidos nas mortes e assaltos ao Júlio Hartman. Estávamos certo. Sob o comando do deputado estadual Themístocles de Sampaio Pereira Filho (PMDB), a quadrilha especializada em desvios de recursos do SUS e responsável pela morte de dezenas de inocentes agia, impunemente, confiada no poder de um dos homens mais influentes do Governo do Estado. Deputado em seu segundo mandato (reeleito na eleição de 2002 pela terceira vez consecutiva), Themístocles Filho também acumulava, à época, o cargo de secretário estadual de Justiça e Cidadania. Homem de grande influência, o deputado que detinha o direito das indicações dos cargos estaduais em Esperantina, poder que se arrastou por sete e longos anos, era uma espécie de dono do hospital, das polícias civil e militar, da Educação e, para infortúnio de nosso povo, ainda gozava de impressionante prestígio junto à Superintendência da Polícia Federal no Piauí, usando a Instituição com freqüência para coibir, de forma arbitrária e intempestiva, os agentes federais para perseguir e inviabilizar nosso movimento de defesa da cidadania e combate à corrupção. A Polícia Federal, durante toda a gestão do ex-superintendente Robert Rios Magalhães, serviu de guarita para os muitos esquemas de corrupção e extorsão empreendidos pelo deputado. Sem outra renda que justifique sua astronômica evolução patrimonial, tendo como referência apenas seu salário de deputado estadual (cerca de seis mil reais), Themístocles Filho é hoje dono de um verdadeiro império que inclui carros de luxo, mansões, apartamentos, terrenos rurais, construtoras e uma factoring na capital – tudo em nome de laranjas, ou seja, assessores parlamentares, lobistas e funcionários particulares que emprestam seus nomes aos muitos negócios escusos e imorais do parlamentar.
51
(Período Manoel Galinha + data? + e auditoria / O uso de recursos de SUS na eleição de políticos / conversa com a chefe da farmácia – Toinha / cirurgia do Dr. Sampaio / Reunião pedindo votos para The e P. Lages / conclusão do dossiê e entrega aos auditores / condenação parcial do Franklin e envolvidos) 16 – UM MANDATO DE PERVERÇÃO (Construção da Penitenciária / denuncia do THE / a sugestão do Ministério da Justiça / jornais atuais / condenação da auditoria e na Justiça / perseguição dos processos / primeiro julgamento com os The / o incêndio na casa do velho / a entrevista na Retiro prevendo fechamento da Chibata FM ratificado pelas declarações do Robert Rios) 17 – PROSTITUINDO A INTELIGÊNCIA DA NAÇÃO (Fechamento da Rádio / prisão / apoio da Francisca Trindade / aproveitamento do Olavo Rebêlo / soltura / inquérito do Aírton Franco)
18 – RIOS FRAUDULENTOS
52
(Perseguição desenfreada de Robert Rios Magalhães / Entrev. no Tony / Carta pública / busca e apreensão ilegal dos equipamentos / inferno na imprensa / entrevista nas emissoras locais / pseudo agressão ao Maurício Costa / promotor especial) 19 – O PIAUÍ FORA DO ALCANCE DO CONGRESSO (Viagem a Brasília / comissões e apoios recebidos / hospedagem no apartamento funcional do W.Dias e seus posicionamento / proteção à vida negado / prisão em flagrante com a arma 20 – UM CHUPÃO NA BASE AÉREA (História dos aparelhos clandestinos de radiodifusão) 21 – A VOLTA DO CANGAÇO COMO ÚLTIMA ALTERNATIVA As eleições majoritárias de 2002, que deveriam transcorrer apenas como um exercício de democracia e elevado espírito de cidadania, transformaram-se para nosso movimento num período de sérias investidas contra nossa honra e, não raras vezes, contra nossa integridade. Lutávamos até ali, desde o início, contra poderosas forças políticas, todas com grande poder de decisão institucional no Piauí. Mesmo diante da espessa muralha popular que conseguimos construir em nossa defesa, a força contrária de nossos perseguidores era avassaladora, mutilante e destrutiva. 53
Mesmo contando com dois vereadores dentre os treze eleitos para a Câmara Municipal de Esperantina, nossos amigos edis tornaram-se impotentes diante da fúria de nosso exército inimigo, formado por deputados estaduais e federais, secretários de estado, prefeitos, procuradores de Justiça e tantos outros predadores que infestam os poderes institucionais piauienses. Usando a grande imprensa estadual como guarita, eles avançavam sobre nós com o poder destruidor dos grandes maremotos. Nossa fragilidade diante da ira dos grandes chefes era evidente, preocupante e sinalizadora de um futuro incerto e sem grandes expectativas de sobrevivência. Diante deste quadro que minava ferozmente nossas forças, era evidente de que deveríamos aproveitar aquele momento político nacional para formarmos novas parcerias, ampliando assim nossa pífia representatividade para além das fronteiras do município, a fim de nos revestirmos de maior segurança. Era chegado o momento de fincar bandeira na Assembléia Legislativa, na Câmara Federal e no Senado da República – um passo necessário, mas que desencadearia numa violenta e autoritária perseguição ao nosso povo e aos nomes por nós encampado naquela eleição. Pessoas humildes da comunidade, ao menor sinal de apoio aos nossos candidatos eram perseguidos, humilhados e intimidados com o abuso de autoridade que passou a campear impunemente na cidade de Esperantina. Cabos eleitorais voluntários e outros que trabalhavam na segurança pessoal de alguns membros do movimento - vítimas de constantes ameaças de morte, eram cercados e violentamente intimidados. Ao longo da campanha, somente um deles – Antonio Marcos, o Capim – foi surrado várias vezes por delinqüentes contratados pelo Dr. Franklin e preso e torturado por policiais militares patrocinados pelos coronéis em busca da renovação de seus mandatos. Armados e protegidos pelo escudo intransponível da impunidade, nossos algozes avançaram muito além das fronteiras da violência urbana. Transpondo os limites da própria crueldade, ensandeceram-se ao ponto de levar um homem
54
ao flagelo da crucificação. Algo somente similar ao cangaço dos sertões conduzindo as rédeas do poder absoluto entre nós. Há muito que já havia perdido a força de acovardar-me pelo caminho desonroso da desistência. Nosso trabalho entre os humildes, mesmo sob toda a opressão desumana de nossos opositores, condicionou nossa vitória à vitória dos oprimidos, pois não alcançaríamos a paz sem antes vencer todos os lances daquele calvário. Foram três meses de intensas atividades. Iniciamos a campanha da forma mais democrática possível. Percorremos, sem recursos e franciscanamente todos os bairros e grande parte das comunidades rurais. Discutimos com a população a postura ideal que o movimento deveria assumir diante daquele momento eleitoral, o qual éramos todos convocados a decidir o destino político de nosso país. Com a ajuda de uma caixa acústica e um quadro-negro, traçávamos juntos as metas a serem cumpridas e, dentre uma vasta lista de candidatos, elegemos, por intermédio de consulta popular, os nomes de Maria José Leão para deputada estadual, Júlio César de Carvalho Lima para deputado federal, Hugo Napoleão para governador e Heráclito Fortes como o nome a ser apoiado para o Senado. Dado a grande divergência quanto ao nome do candidato a presidente da República, chegou-se ao consenso de não empreendermos campanha em favor de nenhum deles. O fato de todos pertencerem ao Partido da Frente Liberal (PFL) deveu-se a uma tendência natural do nosso município que, ao longo da história do voto direto, consagrou memoráveis vitórias ao partido. Os nomes dos candidatos a deputados estadual e federal, Maria José Leão e Júlio César de Carvalho Lima foram os mais fáceis de serem aprovados por nossos, agora, criteriosos eleitores. Ela, professora e primeira-dama pela terceira vez do município de Floriano (Piauí), dedicou sua vida pública a promover a educação e as ações sociais de grande alcance e, ele, Júlio César, um homem público de extensa trajetória, dono de virtudes raras entre aqueles que integram a classe política brasileira. 55
Homem de elevado espírito de solidariedade e verdadeiramente vocacionado à dura missão do servir, é tido como celebridade dentre os fruticultores do país. Agricultor incansável, Júlio César figura hoje como um dos maiores exportadores de manga do Brasil, estando as frutas por ele cultivadas presentes nas mesas de americanos e europeus. Situação cada vez mais difícil entre os candidatos piauienses, ambos, Maria José e Júlio César, também nos cativaram pelo fato de nunca terem tido seus nomes estampados em páginas de jornais meio a escândalos de corrupção. Nomes testados e aprovados, resolvemos vestir suas camisas a fim de buscarmos em seus prováveis mandatos uma guarita para a proteção da dignidade de nosso povo e de defesa de nossa revolução. Agindo de acordo com a decisão da maioria dos trabalhadores e dos humildes cidadãos de nossa terra, firmamos compromisso em torno do nome do então governador Hugo Napoleão, embora seu candidato opositor despertasse em mim maior fascínio. O deputado federal Wellington Dias (PT), que havia me ajudado em minha curta incursão por Brasília, por ocasião da violência que sofri nas mãos dos agentes da Polícia Federal e da ANATEL, era o candidato das oposições e aquele que possuía, além de um irrepreensível currículo de vida pública, propostas das mais notáveis e capazes de promover a moralização tão necessária para a transformação social que aspiramos para o Piauí. Ainda assim, mesmo nutrindo pelo candidato petista grandes esperanças, foi-me impossível remover o movimento da idéia fixa de apoiar o candidato da situação. Vários foram os fatores que contribuíram para esta decisão, mas o mais influente deles residia no fato de que a grande maioria dos nossos opositores locais estavam entre os principais financiadores do petista em sua heróica trajetória ao Governo do Estado. Diante da grande decisão, coube a mim resignar-me em cumpri-la, mesmo ferido em meu sentimento de preferência. Tive oportunidade de expor minha posição pessoalmente ao candidato do PT em sua primeira passagem por Esperantina, ainda no primeiro mês de campanha. Em uma caminhada pelas ruas do centro comercial da cidade, encontrei-me 56
com Wellington e nos abraçamos. Naquele momento, mesmo sob os olhares furiosos e reprovadores de meus adversários, travei com o candidato o seguinte diálogo: _ Wellington, o amigo é muito bem vindo em nossa cidade. _ Felipe, você tem feito um trabalho extraordinário. Seu lugar é ao meu lado, me apoiando. Acredite em mim, eu serei o próximo governador. _ Eu não tenho dúvida de que você é o melhor nome para governar o nosso Piauí, e você não faz idéia do quanto que gostaria de estar lhe apoiando, mas eu não posso. Você conhecesse a situação política aqui e sabe que não há espaço em seu palanque para este amigo. Mas saiba que, embora trabalhando arduamente pela reeleição do Hugo, em momento algum faremos menção ao seu nome, ferindo-lhe com injustiça e comentários do qual você não é merecedor. _ Mesmo sentido por não tê-lo do meu lado, agradeço. Conte sempre comigo. Cumpri fielmente minha promessa, chegando muitas vezes a enaltecer, nos palanques, as virtudes e histórico de lutas populares de meu agora opositor. Mesmo sendo vítima dos ataques de seus correligionários, homens a quem o destino se incumbiu de sepultar nas urnas, mantive-me fiel aquele abraço atravessando todo o período sem responder as agressões que vinham de seu palanque. Sofri calado. Foi a forma que encontrei de contribuir com a candidatura daquele homem, cuja capacidade sempre me serviu de espelho para muitas das ações que empreendi em favor dos mais humildes. Aquela campanha nunca mais nos sairá das lembranças. Assim como uma onda de terrorismo, fomos vítimas de uma seqüência interminável de perseguições. Nossos cartazes eram arrancados ao longo das madrugadas e os cavaletes com o nome e número de nossos candidatos recolhidos por carros oficiais. 57
No dia seguinte a cada reunião nos bairros e povoados, nossos anfitriões eram visitados em seus lares e severamente ameaçados. A preocupação entre os chefes políticos locais, diferente de outras eleições, não residia agora na eleição dos candidatos que representavam, e sim na caçada impiedosa e incansável aos nossos eleitores cujos votos, diziam eles, deveriam ser mudados a qualquer preço. A medida que o tempo de campanha se esvaia, aumentava neles o desespero. A cada pesquisa de intenção de votos realizada no período, termômetro popular que revelava o impressionante crescimento dos candidatos apoiados por nosso movimento, assistíamos a uma nova onda de violência vitimarem nossos amigos e correligionários da mesma causa. Usando de mentiras, encampando calúnias e promovendo todo tipo de desordem, os coronéis locais começaram a provar do próprio veneno, sendo vítimas de seus próprios intentos. A cidade, cada vez mais distante do controle opressor que impunham, lotava nossos comícios e gritava em praça pública, em número cada vez maior, o grito de aprovação aos nossos candidatos. Desesperados com a eminente derrota, adentraram-se os coronéis em território insano, onde inexistem a razão e o senso de piedade cristã. Reunidos às vésperas das eleições de 6 de outubro de 2002, decidiram pelo pior. Entre eles, não havia mais o que discutir: era chegada a hora de eliminar-me ao velho modo. O cangaço, que no início do século passado havia feito, em Esperantina, verter ao chão, em praça pública, o sangue de vários ciganos indefesos, ganhava nos dias atuais uma nova versão. Como última alternativa de espalhar o pânico no município e tentar, em vão, obter resultados positivos nas urnas por intermédio da força e do terror, o repórter Felipe Santolia deveria ser expatriado da mansão dos vivos - baleado, crucificado e queimado enquanto ainda respirasse, assim diziam. Desta forma, acreditavam eles, que todos compreenderiam que se o mais forte fosse tombado ao chão, como não encerrariam os dias aqueles que ousassem me seguir, numa afronta ao poder que eles conservavam a mais de quatro gerações? 58
O plano, perfeito sob o aspecto negativo da criminalidade, acabou por naufragar dado a incompetência de quem o pôs em prática. Atendendo às máximas de que não há crime perfeito e que este não compensa, escapei com vida, embora que torturado e, como insistem os tablóides, crucificado por seis longas e difíceis horas não em uma cruz, mas em um pé de Guabiraba. 22 – A MORTE CANTA AO TELEFONE Os dias, a medida que se aproximava o momento do voto, tornavam-se mais atribulados e imprevisíveis. Coordenar aquela campanha foi uma das tarefas mais difíceis que já havia realizado. Diferente da campanha política de 1996, quando assumi o setor de Comunicação do então candidato a prefeito de Esperantina – Francisco das Chagas Rebêlo – o Chagô, a de 2002 trouxe-me experiências cuja a vida ainda não havia me oportunizado. Além dos discursos em torno dos nossos candidatos, da clipagem que se faz da grande imprensa para reprodução na Rádio Humanitária Chibata FM, e da dinamização do palanque e das atividades de grande concentração popular, havia mais a ser exigido de mim. Adentrava-me em novo território, lugar a ser desbravado e por onde deveria me guiar pelo instinto, já que me faltava experiência para reproduzir decisões já experimentadas. A todo instante um novo telefonema – meio pelo qual ficávamos informados de todas as ações de nossos candidatos. Incursionando incansavelmente pelo continental estado do Piauí, Maria José e Júlio César, paralelo ao trabalho de garimpagem de seus votos, davam notícias suas quase que diariamente. Aprendi muito acompanhando-os, principalmente ao Júlio César, de quem passei a ser mais próximo e um profundo admirador de sua disposição para as práticas do bem. Profundo conhecedor dos problemas do Piauí, Júlio César é um homem 59
sensível e talhado para exercer as mais altas funções de comando de nosso Estado. Nossa aproximação e a preocupação que nutria em ajudá-los com idéias que consagrassem suas vitórias nas urnas, pois a conquista daqueles mandatos representavam para nós, em Esperantina, uma fortaleza para enfrentar as muitas injustiças que nos abatiam, acabei me envolvendo em suas campanhas de forma mais íntima e participativa. Sempre que possível, assessoravaos e opinava em suas ações políticas encampadas em outras regiões piauienses. Nossa residência em Esperantina foi, inevitavelmente, transformada numa espécie de comitê eleitoral. Amanhecia, todos os dias, com um número cada vez maior de eleitores, correligionários e voluntários, todos em busca das últimas notícias, da programação a ser desenvolvida naquele dia e, sobretudo, trazendo notícias da movimentação de nossos adversários e opositores – fato bastante característico da tradição política do interior nordestino. Inaugurava-mos, mesmo que sem perceber, a política interativa, até então inexistente naquele sistema feudal em transcorria as eleições no município. A campanha em nosso município, a princípio pequena e modesta, tornou-se quase que sem controle, dado ao volume crescente das adesões que recebíamos. As reuniões públicas, antes possíveis com o auxílio apenas de uma caixa amplificada e de um quadro negro, foi dando vez a memoráveis comícios que, dado a grande concentração de público, requeria palco, sistema de som profissional, iluminação complementar e outros adereços necessários ao sucesso dos eventos. Sem recursos e órfãos de abastados apadrinhamentos locais, passamos a contribuir nós mesmos para o custeio de nossa cruzada municipal em prol da moralização da política piauiense. Dois amigos, que viviam da locação de sons profissionais, sempre que estavam sem contrato cediam-nos sem ônus suas estruturas de sonorização – datas para as quais programávamos os grandes comícios. Com pequenas contribuições, compramos 150 metros de fio 12, alguns bocais e 60
lâmpadas e fabricamos, nós mesmos, um sistema de iluminação que passou a suprir as necessidades dos eventos. Quanto aos transportes para a locomoção da nossa equipe e simpatizantes, para os muitos pontos distantes em que atuamos, estes eram fartos e, muitas vezes, seguiam vazios, não por falta de caronas, mas por excesso de veículos. Os fogos, imprescindíveis nestas ocasiões, eram levados pelo próprio público que nos ouvia. Integrados com nosso sonho de ver Esperantina transformada em um dos mais justos lugares da nação para se viver, participavam ativamente e somavam aos nossos esforços em fazer daquelas noites de campanha, momentos de grande valor para a história política do município. Era 3 de outubro de 2002, uma quintafeira. Há três dias da eleição, acordei-me antes mesmo do sol e pusme na frente do computador para repassar todas as ações que deveriam ser operacionalizadas ao longo daquele dia. A grande aproximação com o dia 6 de outubro (Dia da Eleição) é para nós, no nordeste brasileiro, um período melindroso, momento que requer policiamento ostensivo em cima dos adversários e uma habilidade douta em equacionar fatos imprevisíveis. Eu estava tenso, além de apreensivo e como que pressentindo que algo muito grave estivesse por acontecer. Naqueles dias aumentavam os rumores de que eu seria assassinado. Um vereador da cidade, conhecido por Moacir Rabo de Bode, segundo muitas fontes, teria dito, na região onde mantém uma propriedade rural, que líderes políticos locais estariam tramando o meu assassinato. Moradores vizinhos de sua fazenda, ouvindo-o falar, trataram de fazer com que a história chegasse até mim como meio de evitar, a tempo, a tocaia que me era armada. Porém, antes que a notícia alcançasse seu destino, seus portadores cuidaram de compartilhar com muitas outras pessoas daquilo que lhes foi confiado. Narravam o intento dos tiranos, nos quatro cantos da cidade, com paixão e grande ar de indignação. Preocupados com o futuro que me reservava os inimigos e, como que a procurar por uma solução junto aos outros, contavam a história acrescendo-lhe, como de costume, de detalhes, pormenores e, em 61
algumas versões, dando inclusive o nome do contratante, dos pistoleiros, além do local e da hora em que tombariam-me o corpo ao chão, sem jeito e já sem vida. Mesmo conhecendo os exageros que se misturavam à verdade das intenções, preocupava-me muito esta onda de boatarias que se anexavam aos dias já conturbados daquele início de outubro. Sabia, pela própria experiência, que onde há fumaça, há também o fogo a causar danos muitas vezes irreparáveis e às custas de grande sofrimento. Tinha, a meu favor, a legalidade de nossos atos (o que pouco representa no Piauí de tantas exclusões) e, graças ao nosso exército incontável de investigadores, uma idéia significativa do movimento de nossos adversários naquele, cada vez mais interessante, tabuleiro do poder. Minha fascinação pelo jogo de xadrez, modalidade que aprendi a gostar ainda na pré-adolescência, muito tem contribuído nesta etapa de minha vida, quando como que estudando a importância das peças e suas movimentações estratégicas no jogo, analiso com paciência e uso da exclusão por hipóteses em cada batalha travada com os corruptos que caçamos. Para combater a tirania, cuidei de estudá-la com profundidade. Ouvindo outras vítimas como eu e comparando suas histórias com as que aqueles quatro anos me permitiram testemunhar, mapeei, um a um dos coronéis e seus principais capatazes, catalogando suas virtudes e defeitos, percebendo o limite que cada um impunha a si próprio e procedendo à análise da intensidade de seus interesses ao ponto de arriscarem-se em participar de um atentado contra minha vida. Mas, tendo que estar em tantos lugares ao mesmo tempo, despachando com os companheiros e ouvindo outros tantos, resolvendo problemas que iam desde a cola que acabava aos desentendimentos internos, fruto da sobrecarga de trabalho e do estresse que provoca uma campanha, como ainda encontrar tempo para sentir medo de morrer ou qualquer outro sentimento do gênero? Não havia como parar. Segui com a embarcação no curso normal da correnteza, enfrentando todas as quedas e peitando as
62
rochas que nos opunham no caminho já estreito e tortuoso pelas limitações financeiras. Nesta manhã, tomei café com mais de vinte amigos que se apressavam em me narrar, alguns ao mesmo tempo, as muitas histórias e estórias que precediam aquela Eleição Majoritária de 2002. Já no meio da noite, por volta das ....... horas, o telefone tocou. Como que de costume, foi atendido por alguém da casa no ramal que fica na sala de estar, naquele momento servindo de concentração para os muitos técnicos da nossa seleção. Trancado em meu quarto, onde vestia-me para cumprir com a agenda de visitas a serem feitas naquela noite, ouvi alguém bater na porta e avisar-me de que um rapaz gostaria de falar-me ao telefone. Agradeci e atendi na extensão que mantinha comigo no dormitório. _ Alô! _ Pois não. _ Eu gostaria de falar com o Chibata! _ É ele quem está falando... _ Rapaz, aqui é o filho do Seu Manoel Preto, meu pai é um grande admirador seu e a gente quer muito te conhecer (...). A conversa transcorreu normal, como tantas outras que atendia diariamente. Meu histórico de luta e as grandes polêmicas que protagonizava-mos fez de mim alvo de grande curiosidade para os piauienses, sobretudo nas regiões em que continuamos a atuar. O município de Esperantina, embora com 36 mil habitantes, é possuidor de grande área territorial, sendo a grande parte localizada na zona rural e seus moradores, portanto, vivendo numa realidade meio que paralela à urbana. Era comum sermos procurados em nossa casa por esperantinenses até então desconhecidos, que visitam a mim e Lys apenas para nos conhecer, dizer o quanto nos admiram e deflagrar apoio a nossa causa. Somos muito fotografados e temos por hábito dedicar-lhes mensagens 63
escritas de próprio punho, por ocasião das visitas, onde falamos de coragem, de união e de um mundo onde se viva em melhores condições de vida, gozando de mais dignidade. Aquele rapaz dizia, ao telefone, que sua família reconhecia a grandeza de nossa luta e que, para que a alegria fosse maior, formulou-me convite para que eu fosse até sua casa, em um povoado distante da cidade, para que seu pai finalmente me conhecesse. Lembro-me de ter ouvido dele que sua família era numerosa e que todos, reunidos, dariam aos nossos candidatos a generosa votação de quinze votos. Aquilo me fez vibrar, não podia haver notícia melhor do que, há dois dias do pleito, uma família inteira da qual nós não tínhamos conhecimento, deflagrar tão substancial apoio eleitoral. Ainda no telefonema, o rapaz que se identificava apenas como filho do Seu Manoel Preto, deixava revelar a vontade da família em adquirir junto a mim quinze camisetas com o nome e número dos candidatos – artigo bastante disputado entre os eleitores mais humildes durante os períodos eleitorais. Achei aquilo tudo muito natural, predispus-me a ir ao encontro dos novos amigos na manhã do dia seguinte, 4 de outubro, dia em que se homenageia meu santo de devoção – São Francisco de Assis. _ Não, não dá certo. Infelizmente, Chibata, e nós não queremos que você nos leve a mal, você não pode vir durante o dia aqui em casa. Você sabe... O papai trabalha para o prefeito, o José Ivaldo, tem as perseguições, ele pode prejudicar... Meu interlocutor reagiu com descontento e preocupação ao fato de que só poderia estar junto aos seus familiares na manhã do dia seguinte. Expliquei-lhe que aquela altura da noite já havia contraído outros compromissos, os quais precisaria cumpri-los, sob pena de perder muitos votos. Naquela noite, seguindo a antiga tradição adotada pelos umbandistas da terra, à meia noite rufavam-se os tambores dos terreiros numa homenagem a 64
São Francisco de Assis, que no sincretismo religioso da Umbanda representa a figura do ..................... . Mesmo católico por batismo e tradição, ainda que simpatizante do preceito kardecista que tem a reencarnação como um dogma espiritual, sempre tive o cuidado de manter uma postura ecumênica diante das muitas tendências religiosas praticadas em Esperantina, pois acima das minhas preferências doutrinárias estavam os interesses do movimento em arregimentar a todos para nossa revolução social. Convidado para missas, cultos e manifestações afro-brasileiras, comparecia a todas que me eram possível, o que acabou me rendendo o carinhoso título de patuá dos cavalos de orixás – alusão que muito me orgulha e causa felicidade entre os umbandistas. Expliquei-lhe ao telefone pacientemente a impossibilidade de atender-lhe naquela noite. Insistente em removerme da negativa, o filho do Seu Manoel Preto soube, a exemplo daqueles que me conheciam com profundidade, exibir-me um bom argumento que faria com que eu fosse ao seu encontro na madrugada que se aproximava. _ Você precisa vir esta noite, é muito importante. Meu pai sabe coisas sobre o prefeito que vão te deixar muito interessado. São coisas horríveis que ele anda praticando por aqui. É muito importante que você venha, pode acreditar, você vai entender... Havia um grande mistério, e o fato de que seu pai tinha grandes revelações a me fazer sobre o prefeito de Esperantina foi a gota d’água para que aceitasse ao convite para aquela pequena viagem, em horário inconveniente, ao interior. Estava decidido, iria ao encontro, naquela madrugada, da família do Seu Manoel Pedro. _ Tudo bem, faça o seguinte... Eu estou muito cansado e devo permanecer pouco no Centro de Umbanda.
65
Creio que lá pelas duas horas eu deva estar chegando por ai. Você acha tarde? _ Não! Está ótimo, o horário é bom porque, como já te disse, o papai trabalha para o prefeito, e assim ninguém vai te ver. _ Me explique direitinho como eu faço para chegar até o interior de vocês, a casa... _ Não tem segredo, você segue a pista que dá acesso ao município de Joaquim Pires, logo depois do (...). Encerrado a conversa, desliguei o telefone. Havia muita gente em casa e, naquele momento, meus adversários realizavam seu último comício em praça pública central. Uma equipe nossa estava em ponto estratégico filmando o evento. O entre e sai de informantes era intenso. Esqueci do telefonema por algum tempo, mas antes tivesse o esquecido para sempre. Por volta das duas e meia da manhã chegava eu ao local descrito pelo rapaz do telefone. À margem da rodovia de acesso ao norte do estado, a região era escura e desértica. Dois motoqueiros me aguardavam à beira da pista, com os piscas alertas acionados. Estacionei o carro acreditando ser um deles o filho do Seu Manoel Preto. Era ele, mas usando de falsa identidade. Ao invés das camisas, queriam tirar de mim minha própria vida. Os momentos os quais passei a viver foram violentos e causadores de grande sofrimento. Meu sangue foi derramado ao chão por intermédio de um ritual de torturas sem precedentes na história do sertão piauiense, algo que, com justa razão, faz-nos reportar aos tempos da barbárie de Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião. Era a própria morte a me telefonar cantando-me uma cantiga que, se não fossem os contratempos, teria me feito calar para ouvi-la eternamente. Firmou-se em mim a certeza de que não se parte em trem de véspera, e que minha estada nesta instância de meu existir estaria assegurada por Alguém Maior, com poder infinitamente além daquele, mantido pelos coronéis de Esperantina. 66
Sabia estar sob o olhar d’Ele próprio, pois é humanamente impossível enfrentar a todos, e agora de uma só vez, logrando vitórias que sempre me pareceram fáceis, dado a esta força que me faz revolucionário sem temor algum. Ao me apresentarem à morte fizeram-me íntimo dela. Não há traços de horror em suas feições. Ela me sorriu e, com delicadeza, também sorri para ela. 23 – HÁ MUITO MAIS NA LIBERDADE DO QUE O MERO PODER PELO QUAL SE DESTRÓI _ Chibata! Para ai Chibata! O lugar deveria ser aquele. Um dos dois rapazes, que me acenavam da beira da pista, deveria ser o filho do Seu Manoel Preto – o rapaz que prometia acrescentar aos nossos esforços eleitorais quinze votos e ainda, de lambujem, contribuir para minhas investigações sobre o assombroso esquema de corrupção de José Ivaldo Franco (prefeito de Esperantina). A noite, razoavelmente clara, e com os piscas de alerta da motocicleta acionados, criaram um ambiente com iluminação suficiente para que eu visse, tendo ainda na memória, os dois homens que estavam de pé, na margem daquele acostamento. Havia um moreno claro, idade aproximada de 40 anos, corpo franzino e, aparentemente, de estilo calado, introvertido. O outro, diferente do primeiro, bem mais escuro, cerca de cinco anos mais jovem, corpo atlético, pouco mais alto (cerca de 1,80 m) e trejeitos de malandro, muito falante e apelativo. Este último, dono de uma voz bastante grave, fez-me reduzir a velocidade, avançando sobre a pista e chamando-me pelo apelido. Sinalizava para que eu estacionasse. Reconheci a voz, era definitivamente o rapaz do telefonema. 67
(trecho do meu depoimento na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Piauí onde eu falo do momento da rendição até a hora que eu acordei) Não existem palavras para descrever a intensidade da dor que senti ao ter aquele prego transfixado a palma da minha mão. Com a espessura similar a de uma caneta esferográfica Bic tradicional, atravessou-me a carne em um único golpe, seco, violento e sofrido. A dor que senti na alma, de tão intensa, fez-me voltar à consciência. Era como se meu espírito estivesse em brasas e minha carne em fogo. Parecia um pesadelo e custava a acreditar. Em dado momento, creio que desacreditado do que via, tomei sentido daquela situação de horror. Foi como se minha alma abrandasse, o que me permitiu analisar melhor aquilo tudo, a fim de buscar uma luz a iluminar uma saída. (trecho do meu depoimento na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Piauí onde eu falo do momento em que acordei e tive a boca amordaçada) A minha situação era de total imobilidade. Encontrava-me com a mão esquerda pregada em um tronco de Guabiraba (madeira verde), o que me provocava dores das quais jamais me esquecerei. Minha mão direita foi amarrada junto ao pescoço, e os dois no tronco de uma árvore fina que havia bem próximo (aproximadamente um metro de distância do pé de Guabiraba). Os pistoleiros utilizaram-se para isso de um pedaço de arame farpado de pouco mais de um metro de comprimento o que, dado meus esforços contrários, acabou causando em mim vários ferimentos. Como se não bastasse, ainda tive a boca amordaçada com firmeza, o que completou me estado de imobilidade. Mesmo sem poder me pronunciar direito, tentei, em vão, negociar com o moreno claro e franzino, pois era evidente sua posição de comando entre os dois. Com a voz deformada pela amarra – mas ainda assim 68
era possível compreender o que eu dizia, pedi a ele, em nome de Deus, que parasse um pouco para me ouvir, que me desse uma chance para que eu esclarecesse algumas coisas. Aleguei que poderia arrumar dinheiro e que nada daquilo seria levado ao conhecimento das autoridades. Não pedi os nomes daqueles que os haviam contratado e nada mais disse que o fizesse sentir delator – crime na Lei da Pistolagem punido com a morte do infrator. Apenas implorei, chorando copiosamente, que me ajudasse a encontrar uma forma de continuar vivendo. Tentei fazê-lo ver que estava sendo sentenciado daquela forma por amar e defender os humildes, pessoas como eles. Contei que eu era uma espécie de protetor para a pobreza e que, por me posicionar contrário às ações daqueles que oprimem nossa gente, fazendo do povo nordestino uma nação de miseráveis, estava sendo sentenciado com a morte por sofrimento. Clamei por misericórdia. Falei, reiteradas vezes, em nome de Jesus Cristo. Meus esforços caíram por terra. Estava diante de dois matadores de aluguel – espécie humana com quem a força do diálogo e da razão tornam-se impotentes. Seus ouvidos são como os do surdo e seu coração um rochedo sólido e sem vida. Depois de contratados, apenas benziam-se como que a preencher o lugar vazio da consciência. (trecho em que o moreno claro grita comigo e dispara contra minha coxa direita um tiro. Em seguida saem em busca de um suposto vasilhame de gasolina. Ameaçavamme queimar-me vivo) O barulho da motocicleta deixando o local, o que deveria me causar alívio e esperança, deixou-me ainda mais tenso e temeroso. A promessa dos pistoleiros de retornarem ao local para incendiar-me vivo, trouxe-me à lembrança a imagem do índio Pataxó carbonizado, enquanto dormia, em um ponto de ônibus da capital da República. Fui tomado por um pânico do qual jamais havia experimentado antes. Tentava raciocinar, buscando entender aquele episódio, mas a idéia de vê-los retornar com o vasilhame de 69
gasolina impedia-me de ordenar o raciocínio em busca de uma saída para escapar com vida daquela tocaia. Aqueles mesmos pensamentos devem ter povoado a cabeça do jornalista Tim Lopes antes de sua execução. Chorei, pois pressentia que havia chegado o meu fim e, o que é pior, de uma forma triste, horrível de se imaginar. Pus-me a rezar com ardor, invocando ao próprio Cristo para que tivesse piedade de mim. Lembrei-me de que era madrugada do dia 4 de outubro, dia de meu santo de devoção São Francisco de Assis. Pedi sua intercessão e implorei a ele que requisitasse junto a Deus um exército de anjos e arcanjos que pudessem, se não remover a idéia fixa daqueles homens em me carbonizar, cuidar de atrapalhá-los em seu percurso e impedi-los, por uma razão qualquer, de retornar ao meu encontro. Lembro-me que, por várias vezes, veio a minha mente a imagem do Dr. Franklin de Paiva Oliveira Neto. Quanto mais pensava, maior se tornava minha suspeita de sua participação naquele crime impiedoso. Sentindo muitas dores e com o espírito em aflição, sucumbi ao próprio cansaço, adormecendo por alguns momentos. Acordei sobressaltando. Havia mais alguém comigo. (trecho do momento em que ouvi passos de mais de uma pessoa vindo em minha direção) O dia começava a dar os primeiros sinais de vida, fazendo a luz chegar por entre as galhas das árvores, timidamente. Depois de algum esforço, consegui encontrar, usando para isso as pontas dos dedos de minha mão direita, os extremos do arame farpado que me ameaçava degolar. Girando os arames ao inverso, experimentei da felicidade de conseguir, por minha própria conta, separá-los e, empreendendo algum esforço mais, livrei-me do arame por completo. Sem ele e a mordaça, experimentei novamente a emoção de estar vivo, era como se estivesse a um passo de casa, protegido, longe daquele lugar. Precisava de tirar aquele prego de minha mão, a fim de me libertar, mas a coragem para o feito parecia sobre-humana e por demais impossível. A dor intolerável que 70
experimentei em tentar remover o prego me fez desistir por completo do intento. Minha mão, que permaneceu imóvel ao longo daquelas seis horas, estava irreconhecível. A cabeça do prego havia sumido no meio do inchaço provocado pelo ferimento. Usando de certo malabarismo consegui ficar de joelhos, o que me possibilitou avistar, a cerca de uns cem metros de onde estava, uma clareira. Percebi logo que se tratava da rodovia por onde carros passaram a cruzar. A cada nova oportunidade, ouvindo-os aproximarem-se em alta velocidade, gritava por socorro. Esforço em vão. Minha voz estava fraca e não se fez ouvir. Já era dia. Sentia-me esperançoso e acreditava, cada vez menos, na possibilidade de meus assassinos cumprirem sua promessa de retornar para incendiar-me vivo. Gritava com toda a força que ainda tinha nos pulmões. Fui tomado de novo desespero. Estava fraco e bastante ferido. Morreria de fome, sede e dor. (escolher um trecho, do meu depoimento ou de outrem, que descreve o momento em que fui salvo por populares) Deitado sobre as pernas daquele desconhecido, fui tomado de grande emoção. Estava vivo, salvo e a caminho de casa. Veria novamente minha esposa, meus filhos, meus amigos. Chorei como um recém-nascido, pois o era de fato. Toda a dor parecia ter sumido, pois ela tornou-se insignificante diante da alegria que sentia de estar vivo e com coragem redobrada para continuar combatendo o bom combate. As lágrimas que derramei eram sinais do meu agradecimento a Deus, por ter-me socorrido em momento de grande aflição. Pela primeira vez sentia-me salvo por um santo – São Francisco, o pobrezinho de Assis. Toda dor e incerteza que experimentei naquelas seis horas de tortura, agora me pareciam a assinatura do tratado definitivo que me uniria para sempre com aquela causa – o Nordeste Brasileiro. Precisava, a partir dali, estudar um meio de acordar a 71
nação para as coisas que vivemos nesta terra sem lei. Somos homens, mulheres e crianças vivendo os horrores de uma ditadura que nunca passou. Seus remanescentes estão aqui, entre nós, açoitando-nos sem dó nem piedade. Somos um Brasil diferente – filho do cruzamento entre a covardia dos tempos militares com os horrores de um passado presente – o cangaço. Havia uma razão para que Deus houvesse me permitido continuar vivendo. A revolução que travamos em Seu nome prosseguiria, e de agora em diante, de forma mais veemente e determinada, exercitaria aquele ideal. Seremos duros na queda e dóceis na solidariedade. Testemunharei, junto a eles, a vitória do sertanejo sobre os coronéis desta terra de Marlboro. Não importa o valor da causa, haveremos de pagar o preço. Há muito mais na liberdade do que este poder pelo qual se destroi e se mata. 24 – DE VÍTIMA A AGRESSOR _ Alô! _ Lysmara, é você? _ Diga... _ Eu não tenho uma notícia muito boa para te dar. Acharam o Felipe morto na estrada de Joaquim Pires... Minha mulher sentiu suas mãos ficarem trêmulas e um calafrio tomou-lhe conta do seu corpo. Isso é um pesadelo, pensou ela. Logo acordaria para recomeçar, ao meu lado, aquele penúltimo dia de campanha eleitoral. O portador da notícia, um comerciante amigo nosso, não demorou a ver, diante de si, a figura atônica de Lys que, em estado de choque, adentrou em seu supermercado ainda incrédula do que ouvira. 72
Começava ali, por volta das 9 horas da manhã daquela quinta-feira, 4 de outubro, um drama que levaria a cidade inteira a um estado de comoção e de loucura. Assim como um raio a partir o céu em dois, a notícia de minha morte alastrou-se pela cidade e pelos muitos povoados do município. Mulheres choravam e se batiam nas ruas, o soluço das crianças esperantinenses eram ouvidos por toda a parte. Carros, motocicletas e um sem fim de bicicletas passaram a cortar as ruas em busca de informações. Buzinas e rádios a toda altura acabaram por moldar o estado de pandemônio em que se viu transformada a nossa já tumultuada terra da esperança. Acionado por vários segmentos da sociedade, o secretário de Segurança do Estado do Piauí – Antonio José de Moraes, um bravo delegado da Polícia Federal aposentado, determinou imediatamente o deslocamento para Esperantina de uma equipe especial formada por militares e civis, todos a bordo do helicóptero da Secretaria. Delegados e policiais da região foram convocados a agir e a imprensa da capital, sempre ávida por fatos novos, passou a noticiar o caso em todos os seus jornalísticos. As informações desencontradas e, não raras vezes destorcidas, ocuparam rapidamente os muitos sites do mundo inteiro. Jornalistas dos maiores jornais do mundo ligavam a fim de saber pormenores sobre o Caso do jornalista crucificado vivo no Piauí. (expor um mural com vários recortes do Brasil e do mundo sobre o caso) O Fiat Uno que me transportava do local da tortura até o Hospital Estadual Júlio Hartman seguia rápido, com seu motorista visivelmente aturdido. No banco de trás do carro, com a cabeça deitada sobre o colo de alguém que só viria conhecer alguns meses mais tarde, encerrava-me entre a dor dos ferimentos e a alegria de ter escapado com vida da tocaia de meus inimigos. Ainda tomado de susto e certo pânico, me era impossível prever o drama que se abatera nas ruas. 73
A medida que nos aproximávamos do hospital, lembro-me de ter ouvido vários outros veículos juntarem-se ao nosso. Derrepente, o freio. Havíamos finalmente chegado. A viagem me parecia sem fim, a ansiedade fez com que aquele percurso se tornasse longo e aparentemente interminável. A porta do carro se abriu e, naquele momento, pude perceber o tamanho do transtorno que aqueles dois miseráveis (os pistoleiros) e seus contratantes haviam causado na população. Uma multidão tomou conta das ruas do hospital. Alguns, mais nervosos e desesperados, tentavam entrar no prédio forçando seus portões e derrubando tudo o que viam pela frente. Fui posto na maca por uma quantidade incontável de mãos. Tudo era muito confuso. Pessoas debruçavam e choravam sobre mim como se eu estivesse morto. Fui sufocado por uma multidão descontrolada e mostrando cada vez maior exaltação. Gritos e desabafos inflamados confundiam-se numa balbúrdia cada vez mais sonora. (Trecho do depoimento do Dr. Jóe falando do momento em que eu fui levado para o atendimento) O estado precário do hospital público e o sucateamento do aparelho de radiografia limitaram os médicos e enfermeiros a um atendimento superficial. Preocupados com a possibilidade de uma hemorragia ou de algum dano interno maior, resolveram pela minha imediata remoção para um hospital da capital, onde deveria ser submetido a uma bateria de exames para haver um diagnóstico mais preciso. Segui na ambulância do Júlio Hartman, deixando para trás uma legião de aflitos e um sentimento de vingança coletivo que acabaria por levar, poucas horas depois, milhares de pessoas a ocuparem as ruas da cidade a pedir por justiça. Já em Teresina (capital do Piauí), fui recebido na emergência do Hospital Estadual Getúlio Vargas por uma equipe médica que aguardava pela minha chegada. Ao abrirem a porta traseira da ambulância fiquei assustado com o exército de 74
repórteres, cinegrafistas e fotógrafos que disparavam seus flashes ininterruptamente contra mim. Fui levado para uma sala de atendimento médico onde fui examinado e, depois de bater algumas radiografias, autorizado para ir para casa, onde deveria repousar. Meus ferimentos, embora profundos e doloridos, não me colocavam sob risco de vida. Foi feito um curativo na mão que foi pregada e, quanto ao tiro, a bala havia transfixado a coxa direita, não causando danos ao osso e nem ao nervo. Tive sorte, o projétil havia atravessado apenas o músculo. Sai do hospital caminhando com os próprios pés, sem precisar da ajuda de muletas ou de uma cadeira de rodas. Hospedei-me em um hotel no centro da capital, onde permaneceria até o dia seguinte, sábado, dia 5 de outubro de 2002 – véspera da eleição. Sentia-me bem, mas apreensivo. Uma tempestade armava-se no céu de Esperantina e, mesmo sem sabê-la, pressentia sua aproximação. Era a matilha predadora agindo em minha ausência. Um novo ataque estava sendo preparado por meus algozes. E desta vez, não haveria tempo para desarmar-lhes a tocaia. De vítima, transformariam-me em agressor. 25 -
75