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Apontamentos sobre a tragédia em José Bonifácio de Andrada e Silva, um homem de dois mundos

Luis Guilherme Camfield Barbosa Marcos Pascotto Palermo

Se não, me é dado remontar seguro Ao alcançar sublime da Memória Ao menos não submerge o esquecimento O meu nome de todo, e venturoso Pelas gentis Camenas bafejado, Sobre as ondas do tempo irá boiando. (Américo Elísio, cognome lírico de José Bonifácio de Andrada e Silva)

Um dos principais motivos de se estudar o pensamento político de determinado autor ou de determinados autores, consiste em refletir sobre estilos, ideias e formas de pensar politicamente que, ao se mostrarem persistentes ao tempo, acabam por se (inter)relacionar ao contexto de sua época (BRANDÃO, 2007, pp. 29). Tomado dessa maneira – a longo prazo –, o pensamento político torna-se parte constituinte da realidade social e por ela também passa a ser constituído. Nesse entrelaçamento, o passado é constantemente convidado a iluminar o caminho do presente de forma reflexiva. Por conseguinte, notamos não poucas vezes, que a dimensão humana da política é colocada de lado em detrimento de outros fatores conjunturais e estruturais – a bem da verdade, tão importantes quanto – quando analisamos a política, seja ela contemporânea ou pretérita. Então propomos, para as páginas que seguem, o desafio de abordarmos a dimensão política nesses termos: conjunturais e idiossincraticamente humanos. Entretanto, precisamos de um objeto para o nosso olhar no seguir deste capítulo. Alguém que reúna em sua trajetória os componentes passiveis de serem analisados a partir dessa ótica. Uma pessoa que, espremida pelo humor volátil da fortuna tenha agido com virtú transformando, dessa maneira, uma determinada realidade política e, consequentemente, tenha sido por ela também modificada. Assim sendo, nesses

termos, a figura sob escrutínio nas próximas páginas será José Bonifácio de Andrada e Silva. Cientista mineralogista por profissão e estadista por vocação, o mais ilustre dos irmãos Andrada entraria para à política já no outono de sua vida aos 58 anos, em 1821, quando assumiu posto na Junta Governativa da Província de São Paulo, então parte do Brasil português. Nos meses que seguem, até a sua prisão e exílio em novembro de 1823, José Bonifácio lidera e consolida o momento político mais importante da história brasileira: o processo de Independência. Nas linhas que se apresentam, prestaremos atenção sobretudo ao caráter dramático latente de sua atuação ao longo da secessão brasileira. Uma ação política que viu seus limites entre duas forças concêntricas: o declínio do império português de além-mar e a emancipação e criação de um país improvável.

De Santos a Lisboa, e de volta – uma breve trajetória biográfica Nascido em 1763 em uma família de avós portugueses na vila de Santos, teve doze irmãos e irmãs1 e foi um dos principais cérebros que ajudaram a traçar as linhas da história brasileira do século XIX. Poeta em sua juventude (AMORA, 1963), cientista quando adulto (LIBERALLI, 1972; LIBERALLI, 1972 b) e estadista ao fim de sua vida (VIANNA FILHO, 1963), José Bonifácio ficaria conhecido postumamente por seus compatriotas como o “patriarca da Independência brasileira” (DOLHINKOFF, 2012). Aos vinte anos de idade, em 1783, transporia o oceano até Portugal indo completar seus estudos em uma Universidade de Coimbra já reformada pela administração pombalina (1750-1777) e na esteira do “iluminismo português”2. Ali, matricular-se-ia nos cursos de estudos jurídicos (1783), matemática e filosofia (1784). Assim, Bonifácio toma contato e aprofunda suas leituras de Voltaire, Locke, Montesquieu e Rousseau; também dos

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Desses, destacam-se Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, e Martim Francisco Ribeiro de Andrada, que junto com José Bonifácio ficariam conhecidos como “os irmãos Andrada”. Personalidades importantes para a política brasileira nas primeiras décadas do século XIX (MENDONÇA, 1963). 2 A literatura que se ocupa do século XVIII português é vastíssima, contudo, dados os limites do presente capítulo, por hora nos limitamos a citar três autores que se debruçaram sobre o assunto a partir de diferentes abordagens: SÉRGIO, 1979 (sob uma ótica mais geral, o autor trata do processo histórico português desde a sua gênese); AZEVEDO, 1990 (busca lançar luz especificamente sobre à figura de Pombal e sua administração); CALAFETE, 2006 (aborda às implicações e desdobramentos do Iluminismo português do século XVIII).

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poetas: Pope, Virgílio, Camões e Horácio; e de cientistas modernos, como Lavoisier, Leibniz, Newton e Descartes (SILVA, 1963). Dessa maneira, José Bonifácio absorve nos círculos acadêmicos europeus toda uma cultura iluminista que estava proibida no Brasil colônia por ser considerada “subversiva” pelas autoridades metropolitanas (COSTA, 1999). Finda a sua instrução, seria admitido no ano de 1789 à recém-formada Academia Real das Ciências de Lisboa3, partindo no ano seguinte para uma viagem científica custeada pela mesma através da Europa, passando dez anos em comitiva 4 e visitando países como: França5 (observando pessoalmente os desdobramentos da Revolução), Inglaterra, Áustria, Suécia, Itália, Noruega e Saxônia6 - onde se diplomou pela Escola de Minas de Freiburg em mineralogia. Em 1801, pela carta régia de 15 de abril, José Bonifácio foi indicado para prover a cátedra de Metalurgia na Universidade de Coimbra. Na mesma data, foi habilitado a receber o capelo doutoral da Faculdade de Filosofia, dispensado de teses e de exame privado, tendo sido efetivado na sessão pública de 20 de junho de 1802. Pela carta régia de 18 de maio de 1801, foi nomeado “Intendente Geral das Minas e Metais do Reino” e membro do Tribunal de Minas, cabendo-lhe dirigir as Casas da Moeda, Minas e Bosques de todo Portugal. Por decreto de 8 de julho de 1801, foi designado para administrar as antigas minas de carvão de Buarcos e restabelecer as antigas fundições de Vinhos e Avelar. Por decreto de 12 de novembro de 1801, foi nomeado diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa, com a 3

Devemos também prestar uma citação aos “facilitadores” de José Bonifácio dentro da sociedade portuguesa. São figuras que o colocaram em contato com outros círculos sociais e lhe deram oportunidades diferenciadas em relação aos demais homens de sua época: “Para tão bem sucedida carreira, de muita valia terá sido a ajuda de altas personalidades ligadas ao governo e à administração: inicialmente o duque de Lafões, tio da rainha D. Maria I, fundador da Academia de Ciências de Lisboa, que lhe propiciou uma viagem de estudos pelos principais países da Europa, durante dez anos, e, a seguir, D. Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares, ministro de D. João VI, a cuja proteção deveu certamente a indicação para numerosas missões” (COSTA, 1999. pp. 63). 4 José Bonifácio partiria com outros dois colegas na expedição de estudos, são eles: Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, e Joaquim Pedro Fragoso de Siqueira (LIBERALLI, 1972). 5 Em França, deveriam estagiar por determinação das normas aceitas para a viagem, publicadas em portaria do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, de 1º de março de 1790, nos laboratórios de Fourcroy e Balthasar George Sage. Depois, Bonifácio estagiaria também com Jean Pierre François Guillot Duhamel. Publica no ano de 1792 as memórias intituladas Sur les diamants du Brésil. Portanto, segundo constam as datas da viagem científica de José Bonifácio, quando da publicação do referido trabalho ele já não mais estava em território francês (LIBERALLI, 1972). 6 Seguem duas citações que cobrem alguns detalhes da passagem de José Bonifácio pelo território dos Estados Alemães: “Desde antes da saída de Portugal, a rota da Alemanha estava determinada, pois era a própria finalidade da viagem. Paris não passava de um estágio preparatório. [...]. Essa obrigação estava fixada a priori pelo governo português” (LIBERALLI, 1972 b. pp. 390). “Tenhamos em mente que a Alemanha desse tempo, teoricamente um Império, era uma confederação de reinos, principados e ducados soberanos; e a entrada ou permanência em cada um deles era matéria de competência privativa dos respectivos governos, que se deveriam mostrar tanto mais cautelosos quanto receavam a difusão das ideias “francesas”” (LIBERALLI, 1972 b. pp. 396).

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incumbência de organizar os trabalhos experimentais de química e docimasia metalúrgica. No mesmo ano, foi galardoado com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, por Portaria de 17 de julho. [...]. Pela carta régia de primeiro de julho de 1802, recebeu a incumbência de administrar e ativar as sementeiras de pinhais nos areais das costas marítimas. Por alvará de 13 de julho de 1807, foi nomeado superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas da Cidade de Coimbra, bem como diretor das obras de encanamento e dos serviços hidráulicos do mesmo rio. (CARNEIRO DA SILVA, 2015. pp. 1920).

No mesmo ano de 1807, Portugal seria invadido por tropas do então imperador francês Napoleão Bonaparte, acontecimento que obrigaria à família real e a corte portuguesa a buscarem refúgio no Brasil. Esse fato acabaria por desencadear um processo que colocaria em xeque o domínio português sobre a colônia brasileira no intervalo de apenas uma geração (COSTA, 1999). Contudo, Bonifácio permaneceria em Portugal desempenhando funções militares. Em 1809 foi nomeado major e posteriormente tenente-coronel. Após à (re)conquista do Porto, tornou-se intendente interino da Polícia e superintendente da Alfândega e da Marinha. E, em 1810 com Lisboa ainda ameaçada, reuniu o Corpo Militar Acadêmico (o qual havia sido nomeado comandante) opondo-se no posto de Peniche às tropas napoleônicas. Em 1812 José Bonifácio seria nomeado secretário perpétuo da Academia das ciências de Lisboa, ocupando o cargo até a data de seu retorno ao Brasil em 1819. Enfim, ao retornar a Santos, Bonifácio tinha intenção de se aposentar da vida pública e dedicar os anos que lhe restavam de vida à pesquisa mineralógica dos recursos naturais do solo brasileiro. Porém, as transformações empreendidas por D. João VI desde sua chegada ao Rio de Janeiro modificaram radicalmente o país que Bonifácio havia deixado para trás em 1783. Dentro de pouco tempo, as reformas colocadas em movimento tratariam de reconfigurar o lugar do Brasil dentro do Império português e também no cenário internacional. Somadas à nomeação do Gabinete do governo em 10 de março de 1808 no Rio de Janeiro, a abertura dos portos brasileiros e a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil (que estava proibida desde 1785), tratariam de liberar a economia brasileira de três séculos de monopólio colonial7. No

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Myriam Ellis (1973) traz uma importante contribuição para relativizarmos em alguns pontos esse monopólio colonial, fortemente sustentado pelos decretos reais de caráter proibitivo. Segundo ela, o contrabando e a contravenção, tanto por parte dos navegantes estrangeiros quanto dos agentes lusobrasileiros responsáveis pela fiscalização, acabariam por colocar em xeque a estrutura do monopólio (em

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entanto, as transformações culminariam em dezembro de 1815, ano em que D. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e promoveu o Rio de Janeiro a sede oficial da Coroa (COSTA, 1999; PRADO JR., 2001). Ao partir com destino a Coimbra, José Bonifácio havia vislumbrado o litoral brasileiro pela última vez no longínquo ano de 1783. É de primeira importância para o nosso entendimento que o Andrada passa a virada do século XVIII para o século XIX viajando pela Europa e vivenciando uma série de experiências ímpares para os portugueses contemporâneos seus. A formação intelectual humanista e científica que teve acesso; o contexto efervescente de um continente que há pouco vivera os augúrios e a fascinação da queda do absolutismo em França; a reação contrarrevolucionária e a ascensão do imperador Napoleão Bonaparte; tudo isso causaria um impacto fortíssimo na trajetória de José Bonifácio e, por consequência, na história da Independência brasileira.

Um Brasil que foi feito independente – características da ação política de José Bonifácio8 Não obstante a vitória inglesa na Guerra Peninsular, a situação dramática de Portugal se estenderia pelos próximos anos. Após a retirada das tropas francesas lideradas pelo general Junot, o botim espoliado pelas tropas napoleônicas passaria às mãos britânicas a despeito dos prejuízos da população portuguesa ao longo da ocupação. Também, em um crescendo, a insatisfação dos portugueses com a ausência

certo grau). Segue citação: “Da torrente de arribadas, para aguada, reparos, refresco ou tratamento de embarcadiços vítimas do escorbuto, de naus britânicas e yankees ao porto do Rio de Janeiro, em trânsito para os confins do Atlântico sul-americano, muitos comandantes lançavam mão de mil pretextos e artimanhas para ancorar junto aos portos brasileiros: vazavam parte da aguada de bordo, promoviam rombos no casco das próprias embarcações e mais avarias, lançavam ao mar vergas e mastaréus, como recursos justificativos de aproximação e permanência. Em terra, à força do interesse, captavam os forasteiros a passividade e a conivência dos guardas das alfândegas e assobiavam àquele desenfreado e escandaloso tráfico os comerciantes das praças litorâneas que garantiam a introdução clandestina das manufaturas estrangeiras com que inundavam o mercado, defraudavam o fisco e facilitavam o escoamento do pau-brasil, do ouro, dos diamantes e do açúcar e demais produtos da terra para o exterior” (ELLIS, 1973. pp. 346). 8 Por conta do espaço a ser preenchido neste capítulo, os autores optaram por não inserirem comentários relativos à atuação maçônica de José Bonifácio, o que demandaria um trabalho a parte.

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do soberano passava a fomentar revoltas cada vez mais frequentes9. Chegando ao limite nas contestações ao absolutismo a partir do movimento que ficaria conhecido como a Revolução do Porto (ou Revolução Liberal do Porto) em 1820. Nesse momento, um impasse colocou-se frente a D. João: caso retornasse a Portugal, conforme exigiam os portugueses, arriscaria perder o domínio sobre o Brasil, que poderia seguir o exemplo de suas vizinhas colônias espanholas e marchar em direção da independência; por outro lado, caso permanecesse em território brasileiro, poderia colocar em risco o próprio Portugal, na altura embalado pela retórica liberal da já mencionada Revolução do Porto10. Preparando a jornada da Independência, houve o problema das Cortes. Reuniram-se por força dum impulso adequado ao tempo, para dar feitio liberal e constitucionalista ao Estado português; e para a sua composição foram convocados deputados brasileiros, já que os dois reinos se achavam formalmente unidos. Na verdade, porém, Portugal tinha continuado a ser sede tácita das decisões, e ponto de referência das conveniências; era seu o comando militar, tanto quanto a ascendência econômica. E àquelas alturas havia a presença do príncipe Pedro, filho do rei João VI e implicitamente nosso dirigente [brasileiro] em potencial – mas de Portugal também, e as andarelas em torno da Constituição a ser votada em Lisboa eram também dos ziguezagues de nossa expectativa nacional (SALDANHA, 2001. pp. 87).

Frente ao quadro político de tensão lá e cá, coube a D. João VI tomar a decisão de voltar a Lisboa em abril de 1821, assumindo como príncipe regente em território brasileiro D. Pedro (posteriormente D. Pedro I, no Brasil, e D. Pedro IV em Portugal). É nesse contexto histórico de atribulações políticas que convulsionavam tanto Brasil quanto Portugal, que José Bonifácio passaria à vida pública brasileira de forma

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“A abertura dos portos a todas as nações em 1808, a localização da sede do governo no Rio de Janeiro, a elevação, em 1815, do Brasil à categoria de Reino Unido e as medidas objetivando dotar a colônia de uma série de instituições adequadas à sua nova função de sede de governo prejudicaram profundamente os interesses metropolitanos. Entre aquelas medidas, talvez as mais nefastas aos portugueses tenham sido a extinção do monopólio comercial e a abertura dos portos” (COSTA, 1999. pp. 38). 10 Sobre o peso histórico e a influência da Revolução Francesa para as revoluções do Porto e da Independência do Brasil: “A Revolução Constitucionalista, significou para Portugal e para o Brasil o início decisivo da influência dos princípios da Revolução Francesa a nossos países: o final do absolutismo e o começo de Constituintes exprimindo a vontade do povo. Em nosso país, já a significativa e importante Revolução Pernambucana [1817] e a sua Constituição, havia provado a expansão já existente desses princípios, no Brasil, todavia mais localmente do que ocorrerá em 1821” (BARATA, 1972. pp. 324-325).

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decisiva11. Durante os trinta e um meses que contaram entre junho de 1821 e novembro de 1823, liderou e consumou o processo político mais importante da história brasileira. Devemos salientar que, mesmo após a partida de D. João, importantes forças políticas brasileiras continuavam a defender a manutenção dos laços com Portugal12. Entre os que ainda defendiam a União figurava inclusive José Bonifácio, então membro da junta governativa de São Paulo (VIANNA FILHO, 1963). Ocupando esse cargo, redigiria uma série de apontamentos13 aos representantes paulistas que deveriam participar das Cortes em Lisboa naquele ano [1821]. Desde a primeira página do documento, transparece a intenção de manutenção do Reino Unido entre Portugal e Brasil sem citar em nenhum momento o tema de secessão: Esta nos parece ser a marcha que deve seguir do soberano Congresso para completar o augusto projeto da nossa regeneração política e recíproca união; objeto capital, que requer de todo o bom patriota a imparcialidade e boa-fé, madureza e crítica apurada, para que os laços indissolúveis, que hão de prender as diferentes partes da monarquia em ambos os hemisférios, sejam eternos como esperamos; afiançando ao Reino Unido, ao do Brasil e às suas respectivas províncias os seus competentes direitos e encargos; e determinando o modo por que cada uma delas deve concorrer para se conseguirem tão necessários e faustíssimos fins (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 109).

Ressaltamos que o “patriotismo” evocado por Bonifácio acima não dizia respeito à nação brasileira, inexistente, mas sim a Portugal como Reino Unido e Império. Além do interesse na indivisibilidade e manutenção do Reino Unido, outros pontos arrolados no item “Negócios da União14” são tão relevantes quanto: a reafirmação da igualdade

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Acerca do contexto social da Independência brasileira, e da importância do jogo de forças palaciano ao qual Bonifácio tomou parte: “D. João VI voltou a Portugal em 1821, sob pressão do movimento constitucionalista do Porto. Antes de fazê-lo, porém, e antecipando a capacidade descentralização do poder que seria a do Império, derrotou, em 1817, um movimento revolucionário em Recife. Voltou a Portugal com cerca de três mil cortesãos, deixando o poder na colônia em mãos de seu filho D. Pedro, que no ano seguinte proclamou a independência. Não obstante o Brasil ainda colonial que, em 1821, se despede do rei tivesse 95% de analfabetos, limitando-se, portanto, a política – e ainda mais a cultura – a uma ínfima minoria, a elite vivia desde 1808 a consciência de participar de um intenso processo de construção histórica” (WEFFORT, 2011. pp. 158). 12 Mesmo após do “dia do Fico”, em 9 de janeiro de 1822, “tentava-se manter aberta a possibilidade de se construir uma monarquia dual com sede simultânea em Portugal e no Brasil [...]. Ao mesmo tempo, procurava-se preservar a autonomia administrativa e comercial alcançada” (COSTA, 1999. pp. 46-47). 13 Faremos uso desse texto andradino em específico, pois, acreditamos que em larga escala ele reúne boa parte das características do pensamento político de José Bonifácio de Andrada e Silva, bem como lança luz sobre alguns aspectos bastante relevantes do momento político em tela. 14 O documento contém ao todo três mil cento e dez palavras, e é dividido internamente em três itens: Negócios de União, Negócios do Reino do Brasil e Negócios da Província de São Paulo.

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de direitos políticos entre portugueses e brasileiros; a chamada para que se determine onde e como seria a sede da monarquia portuguesa; os trechos destinados ao comércio interno e externo com observação para as liberdades de “ambos os reinos” na tentativa de conciliar os seus recíprocos interesses, sempre que possível; bem como acerca da fundação de um “Tesouro da União”, que ultrapassaria os limites dos Tesouros particulares de Portugal e Brasil. O documento em questão redigido por José Bonifácio também traz apontamentos sobre uma certa engenharia institucional: Para que haja justiça e igualdade nas decisões das Cortes Gerais e ordinárias da nação portuguesa, parece necessário que os seus deputados, tanto do Reino de Portugal como do Ultramar, sejam sempre em número igual, qualquer que seja para o futuro a população dos estados da união. Esses deputados poderão ser reelegíveis para as outras legislaturas; porque convém que sempre haja no corpo legislativo homens com experiência, e que vigiem pela conservação da sua própria obra. Esta reelegibilidade porém poderá cessar por algumas legislaturas, se se adotar o renovar dos deputados pela metade em cada dois anos, tirando os que devem sair à sorte, contanto que, desta metade que deve sair, seja uma parte igual dos deputados do Reino de Portugal e outra dos deputados dos Estados Ultramarinos (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 113).

Ao que compete ao Brasil, o texto é bastante esclarecedor quanto à forma governativa proposta que aqui deveria se instaurar: um governo geral centralizado, administrado pelo herdeiro da coroa lusitana. Dessa maneira, José Bonifácio antecipava um ponto que se mostraria constante em seu pensamento político durante o período em que foi ministro do Reino de D. Pedro: a consolidação da Independência brasileira e a manutenção territorial da nova nação passariam diretamente pelo uso da monarquia e da figura do imperador como elementos aglutinadores e apaziguadores (VIANNA FILHO, 1963). E isso se daria em duas frentes, uma interna e outra externa15: de um lado para amainar os dissidentes radicais e regressistas que viviam no Brasil, e também para cooptar, senão a anuência, pelo menos a imparcialidade da Santa Aliança europeia que, na época, era liderada pela coroa austríaca16 - ligada ao Brasil pelo matrimônio entre D. Pedro I e a Princesa Leopoldina.

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Deve-se comentar que, olhando para o quadro político em mãos e sabendo do peso das disposições internacionais para a consolidação da Independência brasileira (especialmente as opiniões de França e Inglaterra), Bonifácio usa as suas prerrogativas ministeriais e não tarda em nomear diplomatas para ocuparem posto em Londres, Paris, Buenos Aires e Washington. (COSTA, 1999; WRIGHT, 1973). 16 (COSTA, 1999); (PRADO JR., 2001); (SILVA, 1963); (VIANNA FILHO, 1963).

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Acusando uma sutil influência de Montesquieu, o documento redigido por José Bonifácio para servir de memento aos deputados brasileiros nas Cortes de Lisboa, aponta para uma adaptabilidade do Código Civil das províncias brasileiras segundo “a diversidade de circunstâncias do clima e estado da povoação” (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 115). Nessa diversidade estariam, além das condições climáticas e geográficas, também a composição social da população: sua etnia e classe (escrava, liberta ou livre). Outrossim, cabe ressaltar os pontos destacados acerca das preocupações sociais17 andradinas sobre a situação dos povos indígenas bem como a dos escravos brasileiros nos Apontamentos: Que se cuide em legislar e dar as providências mais sábias e enérgicas sobre dois objetos da maior importância para a prosperidade e conservação do Reino do Brasil: a 1º) sobre a catequização e civilização progressiva dos índios bravos, que vagueiam pelas matas e brenhas; [...]; o 2º) requer imperiosamente iguais cuidados da legislatura sobre melhorar a sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em cidadãos ativos e virtuosos; vigiando sobre os senhores dos mesmos escravos para que estes os tratem como homens cristão, e não como brutos animais, [...], mas tudo isso com tal circunspecção que os miseráveis escravos não reclamem estes direitos com tumultos e insurreições, que podem trazer cenas de sangue e de horrores (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 116).

Adiante, o documento traz à baila a questão da educação. Conforme exposto, seria interesse político dos deputados paulistas a defesa de uma maior instrução do gentio brasileiro. O argumento redigido por José Bonifácio sustenta a criação de escolas em todas as cidades, vilas e freguesias das províncias brasileiras que ensinassem as primeiras letras à população. Também, defende um ensino secundário ginasial para as “classes abastadas” onde se ensinariam as “ciências úteis”. Por fim, a criação de uma universidade em território brasileiro com os cursos de filosofia (ciências naturais, matemáticas pura e aplicada e de filosofia especulativa e boas artes), medicina, jurisprudência e de economia, fazenda e governo. Para tal, Bonifácio justificaria o seu argumento citando Bentham: “as ciências são como as plantas, que têm crescimento em

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Para além de sua importância para as questões políticas imediatas à Independência, Raul de Andrada e Silva (1972) chama atenção para outro aspecto do pensamento de José Bonifácio: o seu pensamento socioeconômico reformista; no âmago da questão, Bonifácio se batia contra a contradição de existirem no brasil duas classes de gente: os livres e predominantemente brancos, e os marginalizados índios e negros. O objetivo defendido por ele era a criação de uma homogeneidade social relativa, capaz de consolidar o Brasil como nação.

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dois sentidos, em superfície e altura; e quanto às mais úteis, é melhor espalhá-las que adiantá-las” (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 116). Também, antecipando-se à criação de Brasília em mais de um século, o texto andradino expõe: Parece-nos também muito útil que se levante uma cidade central no interior do Brasil para o assento da Corte ou da Regência, que poderá ser na latitude pouco mais ou menos de 15 graus em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável. Deste modo fica a Corte ou assento da Regência livre de qualquer assalto e surpresa externa; e se chama para as províncias centrais o excesso da povoação vadia das cidades marítimas e mercantis. Desta Corte central dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar; para que se comuniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do Governo, e se favoreça por elas o comércio interno do vasto Império do Brasil (ANDRADA E SILVA, 2013. pp. 117-118).

À frustração com os caminhos tomados pelas Cortes, sucederiam um conjunto de acontecimentos que desaguariam da Independência Brasileira18. Em todos eles, José Bonifácio teve, ao lado de D. Pedro, um papel protagonista. Após o “Fico19”, a política brasileira divide-se em três grupos: 1) um predominantemente composto de comerciantes portugueses, desejoso dos privilégios de outrora, 2) outro formado por homens de posse que viam com bons olhos a monarquia dual, 3) e por último, o Partido Republicano, formado por profissionais liberais das zonas urbanas e declaradamente separatistas. Nesse cenário, Bonifácio foi chamado para o primeiro ministério de D. Pedro e logo se indispôs com os elementos radicais nacionalistas e regressistas. Entre outras ações, atribui-se a ele o enfrentamento de ambos os grupos políticos, que defendiam conjuntamente a expulsão de D. Pedro para Portugal. Assim, é curioso notar que da sua experiência europeia ficou-lhe uma resistência ao democratismo demagógico por um 18

Salientamos, então, a importância do resultado político das Cortes de Lisboa para o encaminhamento do processo da independência brasileira: “Mas ocorria, em particular, o que Euclides da Cunha chamou de “uma antinomia notável”: as Cortes eram liberais no referente a Portugal, mas visavam recolonizar o Brasil, de sorte que o absolutismo (com o rei aqui) tinha sido mais suportável para a consciência brasileira do que o liberalismo oficial de agora. As medidas planejadas devolviam às competências metropolitanas o controle total sobre nossa vida. [...]. Eram essas as circunstâncias que viriam condicionar as tomadas de posição por parte dos condutores da política brasileira, quando se consumasse a independência. Não havia ainda conteúdos “ideológicos” nem antinomias partidárias profundas; mas os desentendimentos dentro mesmo do grupo que comandou as coisas ao fazer marchar o processo da emancipação política (com seu séquito de soluções jurídicas, econômicas, parlamentares), esses desentendimentos correspondendo, como correspondiam, ou a interesses materiais distintos, ou a diferentes concepções da trama que se vivia, seriam a matriz das divergências que iriam marcar a vida das cúpulas políticas no país de todo o período dos dois reinados” (SALDANHA, 2001. pp. 87-88). 19 No dia 9 de janeiro de 1822.

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lado e ao absolutismo por outro. Isso se daria pela triste impressão que teve da Revolução Francesa, somada aos estudos do pensamento iluminista. Bonifácio se colocaria então em um ponto arquimediano entre os democratas e os absolutistas, defendendo veementemente a monarquia constitucional como estrutura política para a consolidação do processo de Independência e para a manutenção territorial do Brasil. Na realidade, esse estudioso erudito, formado no convívio Europeu, impregnado de ideias ilustradas, pertencendo à elite econômica e cultural do país, desconfiando da massa de mestiços, negros livres e escravos, sonhava com uma “aristocracia republicana”, um governo dos “sábios e honrados” (COSTA, 1999. pp. 86). [...] verdadeiro caminho que para José Bonifácio era, como vimos, governo de centro, nem absolutista nem democrático, governo monárquico controlado pelo dispositivo constitucional e pelo sistema representativo, com exclusão do voto popular (COSTA, 1999. pp. 100).

Contudo, o pensamento e a ação de José Bonifácio também continham uma série de contradições: fia-se nos membros conservadores da sociedade brasileira que apoiavam a emancipação para consolidar o processo de secessão, mas também fere os seus interesses, quando por exemplo, se mostra favorável à abolição da escravidão; entretanto, ao mesmo tempo em que apoiava a libertação dos cativos, temia a revolta desses, que poderiam vir a exigir melhores condições de vida através do uso da violência; criticava a corrupção das elites, mas defendia um modelo político que excluía o voto popular e beneficiava as mesmas elites, perpetuando-as no poder. Incoerências à parte, ao longo da segunda metade do século XIX, Bonifácio acabaria postumamente valorizado pelos abolicionistas por seu programa emancipador, pelos progressistas por suas avançadas ideias econômicas e sociais, e pelos conservadores por suas ideias políticas conservadoras e pragmáticas.

As Américas e a Europa na política externa de José Bonifácio A atuação de José Bonifácio como Secretário dos Negócios Estrangeiros, é datada entre 182220 e 1823. Em seu período e no subsequente, a performance diplomática

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Salienta -se o decreto de 02 de maio de 1822, que separou a referida secretaria, da Secretaria dos Negócios da Guerra, ainda na vigência do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Todavia, a assunção

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brasileira se dá no sentido de buscar a legitimação da independência, através do reconhecimento das potências europeias, da Santa Sé 21e, principalmente, levar a bom termo a regularização da relação entre Portugal e Brasil. É o início do ciclo que poderia ser definido, como o período patrimonial do Itamaraty. A vinda da Corte portuguesa havia favorecido a prática diplomática nos moldes nobiliárquicos lusitanos, recebendo o Brasil melhor tratamento na Europa, por sua condição monárquica, se comparado à atenção dispensados aos seus vizinhos latinoamericanos (CHEIBUB, 1985). Outrossim, é a ideia da transposição do Estado português à colônia, em termos da condução da política externa, o que desponta a opinião da existência da instituição estatal, ou antes, do estamento estatal, previamente à nação conformada. É o caminho inverso do que ocorreu com outras realidades sul-americanas, como o caso argentino (TRINDADE, 1985). Nas anotações de Pedro Brasil Bandecchi acerca dos escritos políticos de José Bonifácio, há a vinculação do “Manifesto de 06 de agosto de 1822”, às Nações amigas, cuja assinatura é de Dom Pedro, mas no qual a autoria do Andrada é apontada. Nele as linhas gerais da diplomacia estão dadas, entre elas: a) denúncia da exploração das riquezas, território e gente do Brasil, perpetrada outrora pelos portugueses; b) não aceitação de retorno à condição de colônia, asseverando a independência e integridade territorial brasileira, dentro do desejo de manutenção de laços com o Reino Unido; c) a afirmação de que o rei Dom João VI era feito cativo e vivia sob coerção das Cortes, d) proposição do envio e recebimento de representantes diplomáticos, a partir do Rio de Janeiro e da disposição de manutenção dos portos brasileiros estarem abertos ao comércio com as nações amigas, inclusive europeias, bem como a aceitação de possíveis imigrantes. Todavia, há quem registre, como o representante austríaco Mareschal, que antes do 07 de setembro, Bonifácio chegara a falar da necessidade de uma Aliança ou

ao cargo se deu em 16 de janeiro 1822, como Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino e dos Negócios Estrangeiros (OLIVEIRA CASTRO, 2009). 21 A nomeação do agente consular para a Santa Sé, só se deu, todavia, em 07 de agosto de 1824, com a indicação de Francisco Correa Vidigal (OLIVEIRA CASTRO, 2009). Esta indicação foi importante, porque na atuação de Monsenhor Vidigal, houve o estabelecimento do acordo de Padroado, que ligava a Igreja Católica ao Estado, conservando certa autonomia ao poder temporal do Imperador na sua relação com o clero. (MOURA, 2003).

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Federação Americana de comércio e que caso houvesse uma oposição europeia, o Brasil poderia fechar os portos ao estilo da China (SOUZA, 1974). Com Bonifácio no comando ministerial, ajudava-se a afirmar a inconformidade com um regresso ao status quo colonial, anterior ao Reino Unido de 1815. Destaca –se, nessa linha, o envio de emissários em outros Estados. Como agente consular em Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara (24 de maio de 1822). Para o posto de agentes diplomáticos: Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, Marquês de Barbacena, para o Reino Unido da Grã-Bretanha, Manuel Rodrigues Gameiro Pessoa, barão e visconde com grandeza de Itabaiana, para a França, e, Luis Moutinho Lima Alvares e Silva para a então novel cidade de Washington, Estados Unidos. (12 de agosto de 1822)22. Na análise da correspondência com Correia da Câmara, Bonifácio vem afirmar os interesses brasileiros no Uruguai (então província Cisplatina) e oferece amizade e reconhecimento ao governo de Buenos Aires e de partes adjacentes (em especial, citase o Paraguai), revelando as vantagens de um apoio à independência brasileira para a causa da independência das ex-colônias espanholas (nesse sentido, menciona-se a ideia de uma confederação ou tratado defensivo com esse intuito). Com Brant e Gameiro, vêse a habilidade do Andrada em demonstrar as mesmas coisas às distintas nações, o que se deduz da semelhança da linguagem nas cartas dirigidas a ambos: mais vantagens comerciais teriam, as que primeiro reconhecessem a causa da independência. Igualmente, os agentes deveriam trabalhar na conquista da opinião pública à referida causa, distribuindo, traduzindo e imprimindo periódicos simpáticos. Deveriam, ainda, estarem atentos às possíveis maquinações dos enviados de Lisboa, em Londres e Paris respectivamente (ANDRADA E SILVA, 2003). Da lavra de Bonifácio, ainda haveria a missão de Jorge Antônio von Schäffer, para a Áustria e estados do que seria a futura Alemanha, procurando estabelecer ligação de informações com os dois agentes anteriormente citados, similarmente nos moldes da atuação diplomática instruída para ambos. Além de ser o país do sogro de Dom Pedro,

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(OLIVEIRA CASTRO, 2009). Comparando a análise da documentação diplomática com as datas das nomeações, vê-se que a busca de contato com a Europa é estabelecida de forma clara, após o Manifesto de 06 de agosto de 1822.

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duas outras providências deveriam ser tomadas: não confrontar o Brasil com a Santa Aliança23 e procurar colonos que servissem militarmente, em certo período, no Brasil (21 de agosto de 1822). Na sequência, reforçando a independência, Antônio Telles da Silva Caminha e Menezes, o Marquês de Resende, foi mandado em missão para a Áustria, em 1823 (ANDRADA E SILVA, 2003). Fato é que Bonifácio, não obstante possíveis dificuldades de recursos, foi assim responsável pela primeira organização diplomática e estruturação burocrática das relações exteriores do Brasil. Como parte das tramas de uma tragédia política, Bonifácio veria no posto de chanceler24, como um de seus sucessores, anos depois, João Carlos Augusto de Oeynhausen-Gravenburg, o Marquês de Aracati, cuja ação já havia se oposto à dos Andradas, na Junta de Governo de São Paulo. Longe da diplomacia, José Bonifácio emitiria o seu parecer acerca do Tratado de Paz e Aliança com Portugal, o Tratado do Rio de Janeiro de 182525, que viria a selar a paz e o reconhecimento da independência brasileira: um coice na boca do estômago, mas ao menos se teria a independência. Chamaria, ainda, a João VI de “João Burro” e Pedro I de “Pedro Malasartes” (LUSTOSA, 2006). O que se observa, ao olhar para o ano 1822, é que gradativamente Bonifácio reconheceu a impossibilidade de sua ideia inicial: a manutenção da independência brasileira, em unidade com Portugal. Nele poderia se pensar a preservação do Reino Unido e a garantia de uma supremacia do Brasil dentro do mesmo (CASTRO, 1984). Essa perspectiva foi afastada pela atuação das Cortes de Lisboa.

Um homem de dois mundos – o intelectual desterrado

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Pacto entre Áustria, Rússia e Prússia, regulando as relações internacionais por um sistema arcaico, baseado no legitimismo monárquico, esmagamento de revoltas populares e misticismo cristão (CERVO e BUENO, 2008). Na prática se tornou uma reação absolutista ao liberalismo. 24 Aqui se prefere o uso da expressão atual. Contudo, é importante lembrar: “Não se usava, ainda, chamar de Chanceler o Ministro das Relações Exteriores (ou dos Negócios Estrangeiros). Essa expressão só foi consagrada depois que o Barão do Rio Branco, já na República, tornou-se Ministro das Relações Exteriores, quando, então, ele passou a ser “apelidado” de “Chanceler”, depois denominação oficial que vem até os nossos dias. ” (SILVA e GONÇALVES, 2009, p. 18) 25 Aqui se observa que a independência interessava aos britânicos, mas a negociações tomadas por Brant, ainda em 1822 para o reconhecimento dos mesmos, frente à situação brasileira esbarrou em um fator: a recusa na abolição do tráfico de escravos. (CERVO e BUENO, 2008).

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Na aurora do século XIX, o pacto colonial que unia Brasil a Portugal começaria a dar sinais de exaustão. Pouco a pouco ficaria mais difícil para a metrópole conter as ambições e interesses comerciais de brasileiros e estrangeiros, muitos estimulados pelo crescimento de importância econômica da colônia, que passavam a enxergar como um entrave a relação de monopólio entre Portugal e Brasil (COSTA, 1999; PRADO JR., 2001). A expansão do mercado interno após o descobrimento de metais preciosos nas Minas Gerais, somado ao interesse internacional no galope da Revolução Industrial, faziam com que a cada dia se somassem novos motivos para os brasileiros desgostarem do sistema colonial, e com que potências externas aumentassem a sua cobiça para as possibilidades de negócios altamente lucrativos com o Brasil sem o intermédio da metrópole lusitana. Nesse contexto, o desembarque da família real no Rio de Janeiro trataria de, paradoxalmente, colocar em xeque boa parte das estruturas de controle colonial até então vigentes. Não tão lentamente, os entraves que faziam do Brasil um território dependente de Portugal foram sendo retirados. Ao fim, quando da elevação à condição de Reino Unido, um completo programa emancipatório havia sido colocado em movimento, fazendo com que praticamente todas as instituições necessárias para a independência de um país aqui fossem instauradas de cima para baixo e do Estado para fora, tudo isso com o selo real. São abolidas, uma atrás da outra, as velhas engrenagens da administração colonial, e substituídas por outras já de uma nação soberana. Caem as restrições econômicas e passam para um primeiro plano das cogitações políticas do governo os interesses do país. São esses os efeitos diretos e imediatos da chegada da Corte. Naquele mesmo ano de 1808 são adotadas mais ou menos todas as medidas que mesmo um governo propriamente nacional não poderia ultrapassar (PRADO JR., 2001. pp. 47).

A convocação feita por D. Pedro da Assembleia Constituinte no dia 3 de junho de 1822, soaria como declaração de guerra em Lisboa. Conjunturalmente, D. Pedro se via compelido a proclamar a Independência e os irmãos Andrada eram chamados de traidores na antiga metrópole (COSTA, 1999). Como o principal ministro de D. Pedro, José Bonifácio via-se com a tarefa de, ao mesmo tempo, dar seguimento e controle a um movimento que parecia irrefreável. Assim, reprimiu vigorosamente o que compreendia como atos e posturas “demagógicas” e “agitações políticas” tanto 15

daqueles que eram abertamente separatistas quanto dos chamados “pés-de-chumbo” – portugueses e brasileiros suspeitos de serem contrários ao processo de Independência. O fazia, fundamentado em questões pessoais, mas também tendo em vistas o controle do movimento de secessão e, por consequência, da unidade política e territorial do Brasil. Nesse sentido, na mesma medida em que José Bonifácio aumentava o aparato repressivo por ele usado, cresciam também o número de seus opositores. Os portugueses fiéis a Coroa o viam como um traidor, e os brasileiros partidários da secessão o chamavam de absolutista. Contudo, até a Proclamação da Independência em 7 de setembro de 1822, esses antagonismos seriam contidos em boa medida, pela unidade criada na defesa das reformas posteriores à 1808 e a oposição às Cortes de Lisboa. Porém, uma vez proclamada a Independência, essas contrariedades entre José Bonifácio e os grupos políticos aos quais divergia viriam à tona. A história do primeiro reinado não é mais que o longo desfilar de choques entre o poder absoluto do imperador e os nativistas. O domínio destes, que se vinha prolongando desde a partida de D. João, com o ministério dos Andradas no poder, deu lugar ao de seus adversários. [...]. Enfraquecido pela cisão que provoca a atitude dos Andradas, o partido nacional acaba finalmente por perder o controle dos negócios públicos. Quando cai José Bonifácio, quem o substitui são os absolutistas, que ascendem ao poder com o ministério de 17 de julho de 1823. Daí até a abdicação de D. Pedro são eles que dominam (PRADO JR., 2001. Pp. 60).

Dos desafetos da sua figura e ações políticas, viria o exílio. Por ordem de D. Pedro, anteriormente seu aliado político, José Bonifácio embarcaria para a França na charrua Lucônia, no dia 20 de novembro de 1823. Aos 61 anos de idade, deixaria para trás um país emancipado, monárquico, constitucional e com a exclusão do sufrágio popular. Assim, notamos que mesmo amargando o exílio em França imposto por seu antes defendido monarca, Bonifácio, ao final, sai politicamente vitorioso do processo de Independência: o Brasil que é feito independente tem a marca do seu pensamento político. Apesar da importância de José Bonifácio de Andrada e Silva para a história brasileira, ao examinarmos sua trajetória com certa atenção, notamos que o Patriarca da Independência era uma personalidade predominantemente portuguesa para todos 16

os efeitos (DOLHINKOFF, 2012). Conforme observamos, Bonifácio nasceu em Santos, na capitania de São Paulo, entretanto, mudou-se para Coimbra aos vinte anos de idade no início de sua vida adulta em 1783. Após concluídos os seus estudos universitários, embarcaria em uma expedição científica pela Europa (financiada pela Coroa portuguesa) em 1790. Terminada sua viagem no virar do século XVIII para o século XIX, assumiria vários cargos públicos na metrópole, retornando ao Brasil somente após sua “aposentadoria” ao final do ano de 1819 com uma experiência de pesquisador acadêmico, administrador público e militar pouco comparável à de outros brasileiros de sua época. Ao fim e ao cabo, José Bonifácio passaria quase quarenta anos na Europa (três quartos de sua vida adulta), retornando ao Brasil para guiar o processo de secessão e ser exilado quatro anos após o seu retorno. Essa trajetória brevemente narrada, expõe a dimensão dramática da política em Bonifácio. Contudo, mesmo expatriado, acabaria saindo vitorioso do embate político que definiu a institucionalidade brasileira nos momentos posteriores à Independência: em boa medida, o que se viu consolidar fora o seu projeto de poder monarquista e constitucional. Outro ponto notável desse estadista por hora examinado, fora uma espécie de visão “binocular” apresentada por ele. José Bonifácio de Andrada e Silva antecipou uma série de contradições e desafios a serem enfrentados pelo Estado brasileiro ao longo do século XIX (alguns interpretes estenderiam essa problemática até meados do século XX, conforme a disponibilidade de variáveis sob análise). Entre esses problemas antevistos por Bonifácio, certamente os mais candentes seriam os limites do liberalismo brasileiro durante o período e as suas contradições. Nesse sentido, as linhas dedicadas por ele à questão indígenas e dos afrodescendentes brasileiros são reveladoras. Além dos limitadores de ordem material como o analfabetismo, os escassos meios de comunicação e infraestrutura, a marginalização do gentio, a realidade política brasileira se mostraria como o principal entrave ao liberalismo em um primeiro momento. Enquanto na Europa o liberalismo se desenvolvera através do embate das ideias “ilustradas” e burguesas contra o Antigo Regime absolutista, no Brasil a ordem se inverteria. Não havia no Brasil da virada do Dezenove uma classe burguesa, urbana e ilustrada combatendo os privilégios de uma aristocracia e monarquia decadentes. Antes, as ideias liberais seriam importadas 17

diretamente da Europa, e os seus defensores no Brasil seriam, em boa medida, membros do patronato rural e seus asseclas. Com vistas na manutenção dos privilégios e liberdades ganhos com a autonomia trazida junto com a família real em 1808, essa elite brasileira empenhar-se-ia no projeto da emancipação nacional, em grande parte, para se contrapor às exigências das Cortes de Lisboa. Não estariam, contudo, dispostos a abrir mão do latifúndio, dos privilégios de mando e nem à propriedade escrava: todos itens que o liberal-conservador e reformista José Bonifácio de Andrada e Silva se bateu contra ao longo de toda a sua breve, mas profícua, vida política.

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