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COSERIU

gDístico e

filolooio

LICOES DE LINGÜÍSTICA GE

Indústria e Co

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V I V

LIÇÕES DE LINGÜÍSTICA GERAL (Edição revista e corrigida pelo autor)

CLP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ.

CSf“

Coseriu, Eugenio. 4 . . .' • Lições, dc lingüística gbnrl / Eugenio Coseriu ; tradução do Prof. Evanildo Bepkarã. - ’Rio'üe. Janeiro :Ao Livro Técnico, 1980. (Coleção Lingüística c filologia) Tradução de’: Lczionc di lingüistica generale Bibliografia ISBN: 85-215-0024-6

1. Lingüística 1. Título II. Série.

80-

^

CDD - 4 1 0 CDU - 801

SUMÁRIO

Nota do editor italiano, V Apresentação, Vil 1.

Prefácio da tradução brasileira, VIII Premissas históricas da lingüística moderna, 1

2.

A ideologia positivista na lingüística 11

3. 4.

O antipositivismo, 21 A lingüística entre o positivismo e o antipositivismo, 27

5. 6.

Unidade e diversidade da lingüística atual, 37 O estruturalismo, 45

7.

O princípio da funcionalidade, 59

8.

Oposição, sistematicidade e neutralização, 71

9.

As transformações, 81

10.

Criatividade e técnica lingüística. Os três níveis da linguagem, 91

11.

A língua funcional, 101 Sistema, norma e falar concreto, 119

12.

Bibliografia, 127

NOTA DO EDITOR ITALIANO

Oferecemos aos professores e estudiosos italianos a possibilidade de 1er, reuni­ das em -volume, estas modelares lições do notável lingüista Eugenio Coseriu, cuja redação reelaborada mereceu aprovação do autor. Tais lições foram ministradas nos cursos de atualização organizados pela Direção geral do ensino secundário de pri­ meiro grau do Ministério da Educação Nacional da Itália, de 1968 a 1971, em Grottaferrata, Chieti e Viarcggio, para professores de literatura e de línguas estran­ geiras.

APRESENTAÇÃO

Nascido de uma série de aulas dadas em curso de atualização para professores de ensino secundário, este volume, de autoria de um dos estudiosos contemporâ­ neos de maior prestígio da teoria da linguagem, trata de maneira original os proble­ mas que levam à compreensão das modernas teorias lingüísticas. A lingüística moderna - mesmo em sua extrema diversidade de temas, concei­ tos e hipóteses, de que vem aqui oferecida uma breve mas completa apresentação — é interpretada, em suas raízes históricas e ideológicas que a aproximam a outras experiências fundamentais da cultura filosófica e científica contemporânea, como uma reação aos princípios do positivismo, entendido como metodologia geral das ciências. A originalidade da contribuição de Coseriu está, entretanto, em ter inserido a consideração estrutural e funcional em uma concepção dinâmica da língua e identi­ ficado três níveis da linguagem como atividade umversalmente humana: o nível universal (ouvimos talar em um quarto ao lado sem compreender o que se diz ou quem fala): o histórico (individualizamos que se está falando a língua x, isto é, segundo uma técnica historicamente determinada) e o individual (somos capazes de dizer: É Pedro quem fala). A estes níveis deveriam se referir as diferentes disciplinas lingüísticas (entre elas a “gramática” ), porque a eles correspondem também três planos funcionais ou de “conteúdo” lingüístico: a designação, o significado e o sentido.

PREFACIO DA TRADUÇÃO BRASILEIRA

Oferecendo ao público estudioso brasileiro estas preciosas Lições de lingüís­ tica geral do notável mestre Eugenio Coseriu, temos a certeza de que estamos contribuindo, num momento histórico da nossa disciplina, para uma revisão e orde­ namento de muitos conceitos e doutrinas até aqui expostos de modo insatisfatório e, o que a nosso ver é a grande inovação deste livro, uma visão de conjunto das principais correntes da lingüística moderna, fixando-lhes o alcance metodológico e buscando-lhes as relações implícitas e explícitas com o passado e com o presente. O professor Eugenio Coseriu é um pensador da estirpe dos melhores que a ciência da linguagem tem conhecido em todos os tempos - e a prova disto é a coerência que guardam suas originais teorias, quando se lhe comparam os estudos, dos primeiros aos mais recentes —, e sua extraordinária e polifacetada organização intelectual tem posto luz definitiva em muitos problemas que vêm preocupando os estudiosos desde a antigüidade. Esta produção acha-se, entretanto, disseminada por numerosas publicações — entre livros e artigos —, muitas das quais de difícil acesso ao geral do público brasileiro. Estas Lições de lingüística geral, proferidas para um grupo de professores secundários italianos de línguas e literaturas estrangeiras, representam a primeira obra de conjunto e,m que suas idéias vêm panorâmica e didaticamente expostas, sempre repetindo a clareza cristalina que ressuma de seus eruditos e profundos escritos. Muitas das idéias e conceitos aqui expendidos se acham mais largamente tratados em variados artigos, e foi de início nossa intenção não só assinalar tais reencontros de doutrina, mas ainda, quando, necessário, transcrever trechos do Autor que viessem reforçar e ampliar a lição contida na presente obra, dada a missão de compêndio didático que vai desempenhar nas aulas de lingüística dos

PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

nossos cursos de Letras. Já nesta edição, nos casos que por ora se nos impuseram, tomamos a liberdade de assim proceder, com o devido beneplácito do Autor. Outra importância de que se reveste a contribuição de Eugenio Coseriu: insis­ tir em que a missão precipua da lingüística é ser a ciência das línguas, e não a ciência do falar por meio das línguas. A consideração estrutural e funcional numa concepção dinâmica da língua parece-nos o caminho seguro para a lingüística teó­ rica poder contribuir fundamentalmente para aperfeiçoar a descrição e o ensino da língua materna ou estrangeira. Em atenção ainda às características de compêndio didático destas Lições, acrescentamos, na bibliografia, a indicação da existência de tradução para a língua portuguesa das obras aí inseridas. A tradução deste livro contou com a colaboração da Sr.a Dulcemar Silva Maciel que preparou a primeira versão da metade do texto e que, por motivo de saúde, teve de se afastar da empresa. A ela nossos sinceros agradecimentos. A redação definitiva desta parte e do final da obra é de nossa inteira responsabilidade, bem como as adaptações de exemplos para a língua portuguesa e as notas de pé de páginas, indicadas pela abreviatura (E.B.). O presente texto contou com a supervisão permanente do Autor que, conhe­ cendo a fundo a língua portuguesa, aclarou muitos passos, propôs melhores solu­ ções de versão para muitos outros e expurgou algumas falhas de tradução. Cabe ainda lembrar que o texto ora oferecido ao leitor não segue simplesmente a edição italiana original, mas apresenta uma radical correção e reelaboração do manuscrito destinado a uma segunda edição italiana, ainda não vinda a lume. Pelas qualidades e pelas perspectivas aqui lembradas é que pomos nas mãos de professores e alunos estas Lições, certo de que marcarão uma fase no ensino da lingüística entre nós. Por tudo isto, agradecemos ao dileto amigo Prof. Eugenio Coseriu a autoriza­ ção de verter ao português este livro e Ao Livro Técnico a oportunidade de agasa­ lhá-lo na coleção em tão boa hora entregue à coordenação de Carlos Eduardo Falcão Uchôa. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1979 Evanildo Bechara

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Premissas Históricas d.a Lingüística Moderna

1.1. Para oferecer uma idéia panorâmica da lingüística moderna toma-se neces­ sário, antes de tudo, colocá-la no seu contexto histórico, tanto mediato quanto imediato e, após ter procurado quais os motivos e intuições do passado que servem de base a teorias e orientações atuais, apresentar destas uma síntese orgânica, que permita formular uma serie de propostas satisfatórias a respeito do problema fun­ damental: “Que se entende, hoje, por linguagem?” 1.2. Comecemos por uma observação óbvia: quem quer que depois de ter seguido um curso de lingüística em uma universidade italiana, se detenha no estudo da cha­ mada lingüística moderna, entendendo como tal as várias correntes surgidas das primeiras décadas do nosso scculo, é surpreendido pela diferença entre os proble­ mas e os argumentos desta e daouela. É envolvido, por assim dizer, numa sensação de novidade, mais aparente do que real, quando cortfronta a pesquisa lingüística do século XIX com as formulações da lingüística “moderna” , como se entre estas duas existisse uma evidente rutura. Há mais ainda: quem procurar um seguro nexo condutor entre as várias expe­ riências da lingüística moderna e imaginar que poderá encontrar uma explicação coerente de certos fatos em manuais introdutórios, se sentirá frustrado e perceberá que os manuais, introduzindo o leitor, na realidade, numa determinada visão da lingüística, oferecem não um panorama completo mas sim setorial, com desconhe­ cimento freqüente de algumas orientações que outros manuais, por seu tum o, põem em evidência. A lingüística moderna apresenta uma tal variedade de temas, concepções e hipóteses (formuladas muitas vezes numa linguagem que não hesitaríamos em clas­ sificar de esotérica), que o iniciante, apesar de fascinado, não deixa de ficar tam ­ bém aturdido. Daí os lingüistas de profissão educados para trabalhar segundo

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

cânones tradicionais lhe darem seguidamente um valor negativo, colocando em re­ levo a escassa validade operacional, devida ao abismo existente entre arcabouço teórico e resultados práticos. A lingüística tradicional, a chamada histórica, era mais concreta, é o que se ouve dizer em muitos lugares, especialmente na Itália; mal­ grado existissem nela divergências até mesmo fundamentais, como entre os defen­ sores da lingüística genealógica e os da lingüística geográfica, havia um acordo subs­ tancial na escolha dos temas a enfrentar. Quem teria jamais discutido, por exemplo, sobre a teoria da sintaxe? 1.3. Primeiramente foi assinalado o caráter de aparente novidade, próprio da lin­ güística moderna. Ora, é oportuno distinguir entre novidade efetiva e desenvolvi­ mento, com roupagem moderna, de temas já conhecidos. Isto posto, não há dúvida de que a lingüística moderna encara, de um lado, problemas sobre a natureza e estrutura da linguagem que a lingüística tradicional havia desprezado; por outro lado, ela não se ocupa absolutamente com indagações históricas; ou então, procura justificar a história (desenvolvimento) partindo da descrição (estrutura). Entretanto, é evidente, antes de tudo, que, dado o caráter abstrato e quase filosófico dessas preocupações, a lingüística atual deve reelaborar e desenvolver a seu modo tais temas e problemas que, constituindo-se em interesses culturais particulares, caduca­ ram e não foram considerados como objetos de ciência, principalmente na segunda metade do século XIX. 1.4. É opinião comum, introduzida na realidade pelos estudiosos desses períodos, que a lingüística científica é aquela que se segue à difusão da comparação como estudo sistemático das correspondências entre as línguas. Mas se a esta visão, tão legítima quanto estreita, opusermos uma outra que considera lingüística qualquer forma de reflexão sobre a linguagem, a lingüística moderna parecer-nos-á um re­ tom o a temas essenciais da especulação lingüistica do século XVIII, a qual, por sua vez, reelaborava motivos intrínsecamente ligados às discussões mantidas já na anti­ güidade clássica sobre a origem e as características da linguagem. Distinguindo portanto a lingüística histórica e comparada da lingüística geral, teremos o seguinte quadro da sucessão dos interesses lingüísticos através dos tem­ pos: . . a) Da antigüidade clássica até o Renascimento predominam problemas de definição, relativos, por exemplo, à essência da linguagem e às categorias das lín­ guas, e problemas de descrição. Até o Renascimento quem se ocupou de línguas teorizou sobre a linguagem e descreveu língua, baseado freqüentemente no que já fora teorizado, por ele mesmo ou por outros. b) No Renascimento, mesmo não descurando por completo a preocupação teórica, há predominância de uma outra, que não fora absolutamente ignorada an­ tes: a histórico-comparativa. Comparam-se línguas diversas ou também fases histó­ ricas de uma mesma língua e se procura a explicação de fatos históricos. Exemplo

PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGÜÍSTICA MODERNA

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disto é a indagação por que o latim se transformou em italiano, francês, espanhol, etc. Muitas soluções da lingüística histórica do século XIX já tinham sido anuncia­ das no Renascimento mas, como é óbvio, com um reduzidíssimo instrumental teó­ rico. Formulava-se de fato uma hipótese sobre a evolução natural das línguas, ou as modificações eram atribuídas a influxos de substratos ou superstratos (ex.: para as línguas románicas, a influência de um superstrato germânico). Estas mesmas questões predominam até o final do século XVII. c) No século XVIII problemas antigos são retomados, discute-se novamente, por exemplo, a teoria e descrição. Esta é, com efeito, a época da gramática geral e da descrição de algumas das línguas modernas. De acordo com esta temática, não é surpreendente que na lingüística do século XVIII sejam encontradas várias questões passíveis de ser julgadas atuais. Quem ler, por exemplo, Hermes, de James Harris1, uma das obras lingüísticas mais importantes do século, poderá ter a impressão, ao menos no que diz respeito à colocação de certos problemas, de se achar diante de um trabalho de nossos dias. d) Com o século XIX temos, de certo modo, um retomo à problemática do Renascimento, estando o interesse voltado principalmente para comparação e his­ tória. Quem, entretanto, baseando-se no preconceito de que somente agora esti­ vesse nascendo um método histórico-crítico, fizesse coincidir com este século o nas­ cimento da lingüística moderna, certamente estaria ignorando a especulação pre­ cedente e sobretudo identificaria a lingüística moderna com a histórico-comparativarcom o se fosse esta a nossa verdadeira disciplina. Todavia apenas um motivo, não novo, é retomado, e além do mais — enquanto solicitado pelo contexto his­ tórico particular —oposto aos da lingüística do século XVIII. e) A lingüística atual é novamente dominada pelas questões seguintes: 1) o problema da teoria, com várias orientações e teorias da linguagem diferentes entre si; 2) o problema da descrição e da aplicação, com propostas de questões práticas também no âmbito da lingüística histórica. A lingüística atual, portanto, reelabora, mas à maneira de tese e antítese, a problemática do século XVIII. *

Com respeito à lingüística atual — sobretudo teórica, descritiva, sincrónica (referente a determinada fase de uma língua) e não diacrônica (relativa ao estudo da língua através do tempo) — a lingüística ¡mediatamente precedente pode ser considerada como uma espécie de parêntese no longo desenvolvimento dos pro­ blemas lingüísticos, a partir da antigüidade, isto é, desde quando esses problemas foram postos pela primeira vez no mundo ocidental, uma vez que, neste nosso pa­ norama, se omite deliberadamente, pela nenhuma repercussão em nossa cultura, a obra dos gramáticos hindus antigos, particularmente a de Pãnini.1 1 J. Harris, Hermes or a Philosophical Inquiry Conceming Language and Universal Grammar \Hermes ou pesquisa filosófica sobre a linguagem e a gramática universal], Londres, 1751.

LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

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1.5. No Renascimento e no século XIX prevaleceu o historicismo, e é natural que dessa natureza fosse também a lingüística de tal período, enquanto a preocupação que hqje domina a disciplina, de modo geral, é, como dissemos, de caráter teórico e descritivo. Por este motivo a lingüística moderna, em sua colocação essencial, não é absolutamente nova, antes retom a às suas tradições mais antigas. Trata-se de um retorno não declarado explícitamente e até mesmo por vezes ignorado pelos pró­ prios lingüistas. 1.5.1. O esquema seguinte mostra a sucessão e a intercessão das orientações da lingüística através dos tempos: Origens -*■ -*■ Renascimento Teoria e descrição

Renascimento -*■ -*■Séc. XVIII Comparação e história

Século XVIII Teoria e desorição

Século XIX

Século XX

Comparação .e história

Teoria e descrição

1.5.2. Eis alguns exemplos. A distinção entre “significante” (isto é, a parte material do signo lingüístico) e “significado” (ou seja, o conteúdo mental do próprio signo lingüístico) é atri­ buída, a maior parte das vezes, a Ferdinand de Saussure, que todavia definia o “sig­ nificante” como “imagem acústica” , de natureza psíquica e não física. Mas tal dis­ tinção é muito antiga: ela já aparece, com outras palavras, no De interpretatione de Aristóteles, que distingue o que está na voz rà èv tt? ipcovij daquilo que está na alma r à èv ttj vxij. .Nem ao menos se fala daquilo que está fora do homem; o que está na voz é símbolo do que está na alma. Tal distinção se tom a explícita na gra­ mática dos estoicos, que distinguem entre oruialvov e crqíKnvôpevov e, fora destes, (isso é fora do signo), npãyiia, “coisa” . Só se explica que esta distinção seja atri­ buída a Saussure porque se interrompeu a linha teórica no decorrer dos séculos. 1.5.3. Uma outra distinção que parece recentíssima é aquela que se estabelece en­ tre a linguagem que tem por objeto realidades extralingüísticas (chamá-la-emos “primária”) e a que tem por objeto a própria linguagem ou “metalinguagem”2. Por exemplo: casa

{

A casa tem dois andares Casa tem quatro letras *

(linguagem “primária”)

Casa se pronuncia com s sonoro ou s surdo

( “metalinguagem”)

2 Veja-se ainda o capítulo 12.

PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGÜfSTICA MODERNA

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Também esta distinção entre uso primário das palavras e uso “reflexivo” (aplicado às próprias palavras) não é nova, pois aparece já em forma explícita no De magistro de Santo Agostinho, onde, a respeito de verbum, se diz que é uma pa­ lavra ( verbum), do mesmo modo que o são “ casa!’, “cão” , “livro” , e que significa “palavra” ( “verbum”). Depois, tal distinção é retomada outras vezes na história das reflexões sobre linguagem, particularmente na lógica medieval, que distingue a suppositio formalis “hipótese formal” ou “ funcional” (consideração da linguagem como linguagem primária) da suppositio'materialis “hipótese material” (considera­ ção da linguagem como “metalinguagem”). Trata-se ainda de um retom o a questões já existentes; isto nos deveria con­ vencer de que muitos motivos e problemas da lingüística atual não são “novos” mas, retomados e redescobertos no curso da história, voltam hoje a ser postos à luz. 1.5.4. Um outro exemplo é a distinção entre sincronia e diacronia (cf. 1.4, e) tam ­ bém atribuída a Saussure, mas que já se acha, por exemplo, nas notas acrescentadas à edição francesa da obra já citada de Harris (cf. 1.4, c), traduzida por François Thurot, no quarto ano da República. Em uma das longas notas que ajunta à tradu­ ção, Thurot declara que, ao apresentar o verbo francês, adotará não o ponto de vista etimológico, mas o da “ordem sistemática” , atual, do verbo francês, ou seja, a descrição de um estado é oposta à história da língua. Esta distinção aflora também no século XIX, num autor m uito interessante e a que Saussure deve muitíssimo: Georg von der Gabelentz, autor da densa obra Die Sprachwissenschaft, Ihre Aufgabe, Methoden und bisherigen Ergebnisse (A lin­ güística, seus objetivos, métodos e recentes resultados), editada em 1891 e, após a morte do autor ocorrida em 1893, reeditada em 1901, com reelaboração de A. von der Schulenbuig, sobre a qual se reproduz a edição de 1969. Gabelentz distingue explicitamente entre fatos simultâneos (gleichzeitig “con­ temporâneos, sincrónicos”) e fatos que se sucedem um depois do outro, sucessivos (aufeinanderfolgend “sucessivos, diacrônicos”), e Saussure, na obra Cours de linguistique générale ( Curso de lingüística geral), publicação póstuma de 19163, re­ tom a estas definições e as traduz por faits synchroniques e termes successifs. E depois de Gabelentz, Dittrich, em uma obra de 1904 sobre a psicologia da lingua­ gem, faz distinção entre as duas formas de lingüística, que chama respectivamente synchronistisch e metachronistisch4.

3 Consulte-se a tradução italiana desse livio, dotada de amplo comentário, feita por T. de Mauro, Corso di lingüistica generóle, Laterza, Bari, 1968. 4 Trata-se da obra Grundzüge der Sprachpsychologie [Fundamentos de psicologia da linguagem |, onde se declara que o objetivo da psicologia da língua é entender “a língua como produto humano . . . no seu condicionamento através da organização psicofísica e da atividade da coletividade lingüística”.

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J .5.5. Uma outra distinção moderna que, na realidade, vem desde a antigüidade e que, por vezes, é retomada até com a mesma roupagem daquele tempo, é a que diz respeito a língua enquanto saber, técnica, e falar enquanto realização da técnica lingüística concreta —na terminologia saussuriana, entre langue a parole ou, segundo a oposição afim proposta recentemente por A. Noam Chomsky, entre competence (competência) e performance (desempenho). Na realidade, esta distinção, tampém atribuída correntemente a Saussure, está implícita em toda a gramática desde que existe uma disciplina gramatical, por­ que nenhuma gramática jamais descreveu o falar, o desempenho, mas sempre pre­ tendeu descrever a língua, o saber lingüístico, a langue, a competência. Isto, natu­ ralmente, de modo implícito. Depois, de modo explícito, a distinção aparece na Enciclopédia das ciências filosóficas de Hegel, parágrafo 459, dedicado à lingua­ gem. A fórmula de Hegel é muitíssimo simples: “ Die Rede und ihr System, die Sprache”, ‘o falar e seu sistema, a língua’. O cursivo é do próprio Hegel, e parece indicar um uso técnico para esses termos, ainda correntes com o mesmo valor na língua alemã. Entretanto, na obra de Gabelentz acima citada, esta distinção não é apenas formulada mas também discutida e tomada como fundamento de uma dis­ tinção correspondente entre disciplinas lingüísticas, descritivas e históricas. Gabelentz distingue na “linguagem” (Sprache) o “falar” (Rede), a “língua” (Einzelsprache) e a “faculdade da linguagem” (Sprachvermogem)-, no Curso de lin­ güística geral de Saussure, acham-se, através de conceitos praticamente análogos a estes, os termos parole, langue e faculté de langage Poder-se-ia obter daí o següinte esquema: Rede (Saussure, parole) Einzelsprache (língua determinada; Saussure, langue) Sprachvermógen (Saussure, faculte de langage)

{

Esta distinção é entendida por Gabelentz como fundamento de uma outra, entre as disciplinas lingüísticas que, no seu entender, deveriam ser subdivididas em. a) lingüística descritiva, isto é, uma disciplina que explica o falar e por isso des­ creve o sistema que o regula:. b) lingüística histórico-comparativa, que procura explicar historicamente a língua; c) lingüística geral, cujo objeto é a faculdade da linguagem em geral. 1.5.6. Ouve-se falar frequentemente da teoria da arbitrariedade do signo lingüís­ tico (árbitraire du signe, na terminologia de Saussure), segundo a qual as palavras consideradas em si não são motivadas naturalmente, isto é, não existe relação de causa entre a palavra e a coisa significada ou designada. A palavra mesa não se asse­ melha de modo nenhum ao objeto “mesa” nem ao respectivo conceito, e neste sen­ tido é arbitrária. Esta teoria também foi atribuída a Saussure. Em recente artigo

PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGOfSTICA MODERNA

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sobre oprobíenla5, demonstrei que se trata, porém, de uma tradição iniciada com Aristóteles e que o arbitraire du signe é a forma moderna da teoria aristotélica se­ gundo a qual o signo funciona não naturalmente, mas irará avvdivnpv “segundo uma instituição” , de acordo com as tradições estabelecidas socialmente. Encontrei também uma tradição ininterrupta, através de Boécio e da filosofia escolástica até a época moderna, da determinação do signo como arbitrário. E também o termo “ ar­ bitrário” remonta à antigüidade, hsNoctes atticae de Aulo Gélio. Novamente intro­ duzido por Júlio César Escalígero em lugar de ex instituto, ex institutione (cor­ rente na filosofia e na especulação lingüística medieval), foi depois retomado por muitos autores, dentre os quais podemos recordar Hobbes, no De homine (1658) e Schottel, na sua gramática alemã Ausführliche Arbeit von der Teutschen Haubt Sprache (1663). A expressão “arbitrariedade do signo” ocorre entretanto não ape­ nas como noção, mas também como termo, a partir de obras em língua latina até obras em línguas modernas. 1.5.7. Assim procedendo, pode-se chegar a descobrir também os precedentes de problemas científicos particulares, como ocorre com certas noções gramaticais. Em recénte artigo sobre categorias de pessoa, Émile Benveniste6 sustenta que as pessoas gramaticais são somente a primeira e a segunda, porque a terceira é, ao con­ trário, a não-pessoa; a primeira e a segunda, de fato, enquanto pessoas que parti­ cipam efetivamente do diálogo, são, na realidade, pessoas, enquanto a terceira, ou melhor, a chamada terceira pessoa, enquanto aquilo de que se fala, não é necessa­ riamente pessoa, mas pode ser uma coisa qualquer, ainda uma idéia abstrata: numa análise extrema, todo o resto do mundo. Também esta teoria e esta interpretação das pessoas gramaticais se encontram na obra já citada de Harris: em pequena nota ao pé de página, ele sustenta que exis­ tem somente a primeira e a segunda pessoas, enquanto a terceira é a não-pessoa (aliás Harris encampa expressamente uma tese de Apolônio Díscolo). 1.6. Tudo o que dissemos não pretende diminuir os méritos da lingüística moder­ na, mas mostrar que ela não está fora da tradição, como se ouve dizer seguidamente, e que, ao contrário, retoma posições teóricas sobre a linguagem existentes desde a

5 E. Coseriu, L 'arbitraire du signe, Zur Spàtgeschichte eines aristotelischen Begriffes [A arbitrariedade do signo. Sobre a história tardia de um conceito aritotélico\, Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, CXIX, vol. 204, N. 2, 81-112, 1967 (Agora inserido em Tradición y novedad en la ciencia del lenguaje, p. 13-61. Gredos, Madrid, 1977.) 6 E. Benveniste interessou-se pela primeira vez por esta questão em Structures des relations de personne dans le verbe [Estruturas de relações de pessoa no verbo], Bulletin de la Société de Linguistique, XLI11, vol. 1, N. 126, 946 e numa segunda vez em La nature des pronoms ]A natureza dos pronomes] no volume de homenagem For Román Jakobson (Haia, 1956). Ambos os artigos se acham agora recolhidos em Problémes de linguistique génerale [Problemas de lingüistica geral], Paris, 1966. Desta obra existe tradução para o portugués de Maria da Gloria Novak e Luiza Neri, com revisão de Isaac N. Salum, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976.

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antigüidade: o abismo e a ruptura, portanto, dizem respeito apenas à lingüística ¡mediatamente precedente, e, em particular, à lingüística dos últimos decênios do século XIX. Se, porém, em certo sentido, a lingüística moderna é antiga no que concerne aos temas e é, por isso mesmo, tradicional, isto não significa que o seja também em seu desenvolvimento. Poder-se-ia entretanto objetar que também a organização atual das disciplinas lingüísticas retoma de certo modo a tradicional, criada pelos gregos. Para estes, são quatro as disciplinas lingüísticas: enquanto a primeira delas, não denominada de modo específico, é identificável com a teoria, as outras três receberam um nome e se constituíram mesmo em objeto de estudo, na Antigüidade e na Idade Média .gramática, retórica e dialética. Aó lado da teoria ou filosofia da linguagem, a gramática tinha a tarefa de descrever a língua independentemente das circunstâncias do seu uso (hoje se diria aproximadamente, com terminologia gerativa, de maneira livre do contexto, context-free). Por exemplo, a formação dos tempos do verbo, do singular e do plural, do masculino e do feminino, etc., são fatos lingüísticos que valem para qualquer circunstância, independentes de circunstâncias determinadas. A retórica pretendia, por seu tum o, estudar a língua em usos específicos e com finalidade determinada; ocupava-se, portanto, por exemplo, das circunstâncias objetivas concernentes ao próprio objeto do falar, e daí derivava a distinção entre os diversos estilos, segundo a qualidade e a natureza do objeto em questão. A dialética finalmente estudava o uso da linguagem enquanto meio apto a descobrir a verdade, numa discussão em que se opõem tese e antítese. Ora, destas disciplinas, a gramática, bem ou mal, persiste viva, pelo menos como disciplina prática, nas escolas; quanto à retórica (em grande parte eliminada do ensino, sobretudo devida à influência exercida pela filosofia idealista nas con­ cepções lingüísticas do século passado e mais ainda do nosso), teve sua importância ressaltada nestes últimos tempos, provocando um movimento de retom o a ela por vários caminhos, entre os quais prevaleceu primeiramente a chamada “estilística da langue", representada sobretudo pela obra de Charles Bally7, um dos responsáveis do Curso de Saussure, isto é, o estudo das características afetivas e expressivas d í determiñados sistemas lingüísticos. Entre os lógicos, desempenha mais ou mer j s o mesmo papel da retórica antiga a chamada pragmática, ou seja, o estudo da lingua­ gem em seu uso na vida prática (nas relações humanas). A dialética, ao contrário, abandonada como disciplina no século passado (depois de 1830 também no ensino universitário; recorde-se que o uso da palavra tese, parà indicar o trabalho de doutorado, provém da dialética, pois que se apresen­ tava, de fato, uma determinada tése, que era defendida), foi retomada pelos lógicos modernos no estudo da sintaxe lógica da linguagem. A gramática, retórica e dialé­ tica correspondem, respectivamente, na distinção proposta por Rudolf Carnap e por 7 Veja-sc especialmente C. BalJy, Linguistique générale et linguistique française [Lin­ güistica geral e lingüistica francesaJ, 4.a cd., Francke, Berne, 1965. Há tradução italiana com apêndice de C. Segic, II Saggiatore, Milano, 1963.

PREMISSAS HISTÓRICAS DA LINGÜISTICA MODERNA

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outros lógicos modernos, a semántica (que trata, na realidade, da gramática em geral), pragmática e sintaxe lógica da linguagem. 1.7. Assinalamos os problemas lingüísticos da época clássica, da Idade Média e do século XVIII, e recordamos também que certas noções ou distinções se aproximam de llegel e Gabelentz. Ao menos em certo sentido, estas idéias e posições estiveram presentes também quando a lingüística foi dominada por outros interesses; por isso devemos modificar nosso esquema do desenvolvimento das idéias lingüísticas e ter presente que a problemática lingüística é e foi sempre complexa. De fato, quando se afirma que o objetivo essencial da lingüística é a teoria ou a descrição, isto não implica a ausência total de temas históricos: eles são apenas menos importantes e, obviamente, com respeito ao problema principal da descrição, a história lingüística se faz só de modo parcial e em função da própria descrição. Inversamente, quando os objetivos essenciais da lingüística foram a comparação e a história, a descrição certamente daí não desapareceu, mas passou, por assim dizer, ao segundo plano e, no caso, foi feita em função da história. Assim, se no século XIX a linha principal de desenvolvimento da lingüística passa pela lingüística histórica, pela comparação lingüística’, pela história das línguas e pela gramática histórica, ao mesmo tempo se desenrola, debaixo desta mesma linha, a lingüística/teórica e descritiva, que con­ tinua a tradição do século XVIII, tradição mais antiga e jamais desaparecida, a que pertencem estudiosos da envergadura de um Humboldt, na primeira metade do referido século, e de um Steinthal e Gabelentz, na segunda metade. Deste ponto de vista, a lingüística atual constitui um retorno, em primeiro plano, à lingüística teórica e descritiva; de certo modo, ela retoma a problemática do século XVIII, porém em outras direções, impostas pela ampla experiência do século XIX, quando a lingüística histórica se tinha tornado a lingüística por excelência. 1.8. Recapitulando: os temas teóricos e descritivos da lingüística atual recuam à Antigüidade e à Idade Média, e sobretudo ao século XVIII; os históricos e compara­ tivos, à lingüística do Renascimento e do século XIX. Isto no que tange ao contexto histórico geral da lingüística atual. Entretanto, no que concerne ao contexto histó­ rico imediato, necessário se faz ter presente que a lingüística atual constitui uma reação à lingüística imediatamente precedente. Para compreender nas suas raízes dialéticas a lingüística do início do século até hoje, é preciso lembrar uma reação decisiva a determinada ideologia, a dos neogramáticos, que outra coisa não era senão a forma que a ideologia evolucionista e positivista assumiu na lingüística. Não será surpreendente, portanto, que as reações a ideologias dos neogramá­ ticos sejam contemporâneas, na lingüística, a outras reações que se manifestam paralelamente em outros setores da cultura, e, de modo particular, na filosofia. Fixar-se-á, como data inicial, o período em torno de 1900, durante o qual foram várias as reações ao positivismo, desde a Estética de Croce8 até o chamado intui’ B. Croce, Estética come scienza dellespressione e lingüistica generóle {Estética como ciencia da expressão e lingüistica geral\, Laterza, Barí, 11.a ed., 1965.

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cionismo ou vitalismo de Bergson, à fenomenologia de Husserl (a obra em que se fundam e têm início as indagações lógicas de Husserl apareceu justamente em 1900, como reação ilógica e à gnoseologia do positivismo). Veremos em que sentido é possível afirmar que, em suas raízes, a lingüística atual, vista neste contexto ideológico geral, pode ser interpretada como uma reação ao positivismo. Tanto na lingüística quanto nas outras disciplinas, sob várias formas, segundo o objeto específico de cada uma; os princípios fundamentais sobre os quais tal reação se articula são, como veremos, os mesmos.

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2.1. Se em certo sentido se pode considerar que a lingüística atual volta a posições já assumidas em outras épocas — se não exatamente por uma disciplina específica que, além do mais, não existia, pelo menos no que conceme à problemática da linguagem —, duas observações, porém, devem ser feitas a esse propósito: freqüentemente não se trata senão de tentativas não desenvolvidas posteriormente, e os laços aos quais nos referimos são fortuitos. Em outras palavras: não se trata de um retorno efetivo a uma lingüística já existente, malgrado aquelas tentativas se tenham tomado motivos fundamentais da lingüística atual. Dizendo “tentativas” e “não desenvolvidas posteriormente” , se subentende a afirmativa de qúe na maioria dos casos faltam laços históricos efetivos, falta uma tradição ininterrupta da antigüidade à lingüística atual; e em alguns casos estes laços, se existentes, escapam a uma análise filológica. Serve como exemplo a diferença entre sincronia e diacronia e, na prática, entre exame sincrónico e exame diacrõnico de fenômenos lingüísticos, que já aparece em François Thurot, no final do século XVIII, depois no prefácio da gramá­ tica espanhola de Andrés Bello e também no prefácio à gramática alemã de K. Heyse. Não se pode, porém, estabelecer um fio condutor entre essas posições teóricas. Na lingüística atual, ao contrário, há efetivamente uma continuidade; todavia, se estes princípios são retomados, não constituem um retomo motivado ou historicamente consciente, porquanto muitas vezes não interessa a alguns lingüistas do nosso tempo uma visão histórica da sua disciplina, e lhes interessam ainda menos eventuais laços históricos com a tradição. Mais que qualquer outra coisa, uma identidade geral de posição pode conduzir por vezes a afirmações similares ou aná­ logas ou até mesmo quase idênticas, sem que, na realidade, entre estas, haja efetiva­ mente uma relação de dependência histórica. Assim é que não se dirá que Benveniste recordado anteriormente a propósito do modo de interpretar os pronomes

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pessoais (cf. 1.5.7), retome propriamente Harris; ao contrário, ele certamente ignorava que Harris havia dito a mesma coisa em pequena nota ao pé de página: é simplesmente o modo de pôr o problema, ou melhor, a atitude geral que pode conduzir também a soluções análogas dos mesmos problemas. Isto no que diz respeito ao propósito do contexto histórico mais amplo da lingüística atual. 2.2. No contexto histórico imediato, entretanto, a lingüística atual representa uma série de reações diferentes à chamada ideologia dos neogramáticos. A este respeito, porém, são necessários alguns esclarecimentos. A lingüística como ciência com um método próprio de indagação surgiu nos primeiros anos de 1800 como lingüística comparada e histórica, sem obviamente nenhuma ideologia positivista, que ainda não existia como tal, emprestada de uma ideologia romântica que apenas em parte é conservada e continuada pelo positi­ vismo. A lingüística comparada e histórica se afirma sobretudo como lingüística indo-européia, gramática comparada das línguas indo-européias, e principalmente das línguas clássicas, románicas e germânicas. Por volta de 1870, por um lado seguindo-se a um desenvolvimento interno porém não sem ligações com a ideologia predominante na cultura da época, por outro lado através da influência de um grande lingüista alemão, August Schleicher1, surge a chamada escola dos neogramáticos, cujos primeiros representantes foram Karl Brugmann, Berthold Delbrück, Hermann O sthoff e August Leskien. 2.3. Durante o século passado, a lingüística foi uma ciência quase que exclusiva­ mente alemã, embora não faltassem representantes também em outras nações. G. I. Ascoli, por exemplo, foi, na Itália, um neogramático; sua polêmica com os neogra­ máticos se refere, no caso, a questões de prioridade, para precisar quem primeiro sustentara idéias análogas. Também Saussure foi, no início de sua carreira, neogra­ mático, tendo, entre outras coisas, até mesmo estudado em um centro de lingüís­ tica dos neogramáticos, Leipzig. Do mesmo modo, o francês Antoine Meillet, no que concerne a método e ideologia, foi um estudioso neogramático. A gramática comparada e de reconstrução é, em sua quase totalidade, de caráter neogramático, não obstante derivações e reações parciais. 2.4. Como a nós interessa não tanto o desenvolvimento histórico da gramática comparada (que se pode comodamente achar nos manuais de história da lingüística), mas sobretudo de um lado a atitude e de outro o fundamento histórico da ideologia sobre que esta se baseia, deveremos considerar a ideologia neogramática não somente com relação ao desenvolvimento da lingüística mas ao da cultura em geral1

1 As suas obras mais conhecidas foram o Compendium der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen |Compêndio de gramática comparada das línguas indo-euro­ péias), Kurzer Abriss einer Laut - und Formenlehre der indogermanischen Ursprache (Weimar, 1861) [Breviario de fonética e morfología da primitiva língua indo-européia| e Die darwinsche Theorie und die Sprachwissenschaft (Weimar, 2.a ed., 1873) [A teoria de Darwin e a lingüís­ tica].

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e observar que se trata, como se dizia, de um reflexo, na lingüística, da ideologia positivista que dominou, sobretudo nos fins do século passado, as várias formas da cultura e não apenas as diversas disciplinas humanísticas. Que caracteriza, pois, tal ideologia? Ideologia positivista não significa neces­ sariamente filosofia positivista, até porque esta última, m uito longe de ser unitária, é formada de várias concepções filosóficas. Entendo por ideologia o modo pelo qual uma filosofia forma e determina urna disciplina particular, como, por exemplo, a psicologia, a ciência da literatura, a historia literária ou a lingüística' Ora, o posi­ tivismo, enquanto ideologia e metodologia das ciências, se caracteriza por quatro princípios: a) principio do individuo, do fato individual: tal princípio, na sucessiva reação ao positivismo, é chamado princípio do “atomismo” , com o qual se entende o interesse voltado ao estudo dos fenómenos particulares, individuais; b) principio da substância-, c) principio do evolucionismo-, d) principio do naturalismo. Tais princípios são para nós particularmente importantes porque a lingüística atual opõe a cada um deles ura princípio exatamente contrário. 2.4.1. O principio do individuo ou do atomismo científico significa que a atenção do cientista se concentra no fato singular e que a universalidade do fato é consi­ derada como o resultado de uma operação de generalização e de abstração. Não se reconhece, portanto, nenhuma universalidade ou generalidade do fato anterior a esta operação mediante a qual, na base de diversos fatos singulares e da generaliza­ ção de caracteres idênticos (os traços comuns dos fatos) é construída uma abstra­ ção. Assim em uma ciência qualquer, por exemplo na ciência da literatura, de que modo se procede para examinar uma forma literária? Examinam-se diversos indiví­ duos pertencentes a esta forma literária e se descobrem os traços comuns dos diversos indivíduos. Deduzir-se-á o que vem a ser uma tragédia e o que a caracteriza, por meio da descoberta das características idênticas em diversas tragédias. Poderse-á saber o que é uma árvore pelo confronto entre árvores diversas. Na psicologia se dirá que os conceitos se formam mediante as experiências atomísticas individuais, isto é, por meio da superposição de experiências diversas. Assim o menino, segundo a psicologia positivista, cria para si o conceito de elefante superpondo, uma sobre a outra, imagens de diversos elefantes e, obtidas as diversas experiências, vai reduzi-las ao que elas têm de comum. Parte-se, portanto, do indivíduo, e ainda que o indivíduo seja em certo sentido irredutível, pode-se, porém, generalizá-lo, e sobre a base de indivíduos se podem constituir classes. Segundo este princípio, a experiência do fato singular precede qualquer teoria, e a teoria não é possível senão como generalização na base do acúmulo de conhecimento do maior número possível de fatos. Essa atitude se encontra em diversas obras de época positivista, acompanhada às vezes de uma afirmação deste teor: “É cedo demais para construir uma teoria dos fatos, posto que não conhe­ cemos um número suficientemente grande deles” (a teoria seria portanto prema­ tura, pois esta é entendida como resultado da generalização com base nos fatos estudados).

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2.4.2. O princípio da substância significa que os fatos singulares são considerados por aquilo que são enquanto substância e elementos materiais, e não enquanto função. Referindo-nos novamente ao estudo da literatura, os chamados géneros literários, concebidos como classes, não são considerados segundo as funções que possam ter as obras singulares, ou seja, que um romance pode ter função análoga à de um poema, mas sim segundo a própria substância, de acordo com certos traços passíveis de serem encontrados naquilo que o fato efetivamente é na experiência imediata (às vezes na experiência física). Ficará em seguida mais claro que coisa significa o princípio de substância em relação à lingüística 2.4.3. O princípio do evolucionismo significa que os fatos singulares são conside­ rados duas vezes: em si próprios e na sua evolução. Em outras palavras, se presume que o fato singular se modifique e que também as classes tenham seu desenvolvi­ mento, quase em círculo fechado; ou seja uma vez criada a abstração “ gênero literário” , sustenta-se que os gêneros literários têm um desenvolvimento determi­ nado, que se poderia estudar como tal. Típico é o caso do crítico francês Brunetière, segundo o qual os gêneros literários nasceriam, se desenvolveriam e morreriam à semelhança dos organismos naturais. 2.4.4. 0 princípio do naturalismo significa antes de tudo que os fatos são redu­ zidos à classe dos fatos naturais; aissim vimos para os gêneros literários e assim será visto em seguida para as línguas. Em geral, considera-se que todos os fatos estejam sujeitos às leis da causalidade e da necessidade, como na natureza. Os diversos fatos são portanto considerados como fatos naturais e como tais são concebidos; a conse­ qüência metodológica disto é aplicar aos fatos uma metodologia naturalista, para a qual aquilo que se procura nos fatos são as suas causas, uma legalidade de tipo natural, satisfeita quando se consegue, como se acredita, descobrir algumas leis que os regulam, como, por exemplo, algumas leis de desenvolvimento. Segundo o prin­ cípio formulado por Augusto Comte, “savoir pour prévoir afín de pourvoir” ( “saber para prever a fim de prover” ), imagina-se que o conhecimento dos fatos e sua gene­ ralização nos permitiriam estabelecer-lhes normas gerais, que nos possibilitariam, por sua vez, prever desenvolvimentos ulteriores. 2.5. Tem-se portanto a convicção de que uma ciência chega à sua maturidade na medida em que é capaz de prever. Neste caso, qual será o comportamento nos confrontos da linguagem, levando-se em conta aquilo que já é observado a respeito? Em outras palavras; como se manifestou na lingüística esta ideologia que prevalecia em todas as disciplinas? 2.5.1. “ Atenção concentrada no indivíduo” significa, em lingüística, que aquilo que conta em primeiro lugar é o fato lingüístico avulso, individual, por exemplo um som. Como foi seguidamente sublinhado pela lingüística positivista, cada som efetivamente pronunciado é diferente de qualquer outro som. Isto é verdade, mas

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não quer dizer, como brevemente se verá, que não exista em outro sentido urna unidade destes sons infinitamente diversos. Urna disciplina que se desenvolveu exatamente na época positivista, a fonética experimental, concentrando-se sobre­ tudo no simples fato fónico e sustentando que na realidade não subsiste nenhuma unidade entre os diversos individuos (no caso específico entre os sons isolados), afirma que cada som é diferente do outro. Não existem duas vogais a iguais, não apenas na pronúncia de dois indivíduos, mas na pronúncia do mesmo indivíduo. Podem-se encontrar apenas alguns traços.idênticos nesses diversos sonse constituir várias classes, uma de sons a , outra de sons e, etc., mediante uma operação de generalização. Como é possível delimitar as classes e estabelecer, por exemplo, que se passou de um o aberto para um o médio ou fechado, dado que na realidade existem apenas diferenças graduais, é um outro problema, que os princípios posi­ tivistas não podem resolver. Porém a consideração do fato singular e sua sucessiva generalização levam-nos, entre outras coisas, a considerar sons análogos em línguas diferentes como unidades efetivamente existentes em cada uma dessas línguas. Assim, em italiano e em francês há uma classe de e fechados, como por exemplo em [vénti] “ vinte” e [parlé], “parlé, p a r le f\ e uma de e abertos, como em [vènti] “ventos” e' [parléJ, “parlais". Também em espanhol voltam estas classes, mas sim­ plesmente como classes de sons sem funções distintas no âmbito do significado: uma afirmação como esta, porém, extrapola os limites da lingüística positivista. No que diz respeito à gramática, procurava-se estabelecer a acepção em cada frase de uma forma gramatical determinada e construir, depois, mediante abstração e generalização, tipos de acepções e significados típicos. Uma obra que, de certo modo, se pode considerar capital e que reflete exatamente este tipo de ideologia, são as Vorlesungen über Syntax (Lições de sintaxe) de Jacob Wackernagel, publi­ cadas em Basiléia, nos anos de 1920 e 1924. Wackernagel, examinando nessas lições á j partes do discurso nas línguas clássicas e, entre as modernas, especialmente no*alemão, procufá de início estabele­ cer o significado contextual, ou seja, os tipos de significados. Do aoristo, por exemplo, diz que pode ser puntual, ingressivo, terminativo, etc., com base em teste• munhos de textos gregos. Aplicando este método ao italiano, ao imperfeito do indicativo, por exemplo, encontrar-se-iam vários tipos de imperfeito, entre os quais um que é efetivamente passado (ieri si diceva cosi) e um que não o é necessaria­ mente (como aquele que aparece em contextos condicionais, por exemplo, se mi piaceva, lo compravo), um durativo e um, ao contrário, momentâneo (como o da linguagem jornalística e administrativa em frases como la polizia si recava al dom i­ cilio del bandito e lo arrestava). Achamos então uma série de significados não redutíveis a um valor únjco, porque os do aoristo grego não se podem reduzir ao único valor terminativo ou ingressivo, nem os do imperfeito ao valor durativo ou puntual: são tipos diversos de valores, e neste ponto se esgota a generalização que parte do exame do fato singular. A generalização se realiza exatamente partindo disto, seja do ponto de vista físico, por exemplo no estudo dos sons, seja do ponto de vista do conteúdo, como na determinação do valor das formas do verbo. Em

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ambos os casos é necessário primeramente estabelecer o que é o fato singular, e depois identificar, aínda com base em fatos isolados, alguns tipos, ou seja, genera­ lizar com base nos traços comuns. O corolário deste princípio ( “estudo empírico antes da teoria” ) é típico da maior parte dos lingüistas positivistas que, não se propondo problemas teóricos, estudam, como afirmam, os fatos, independentemente de qualquer filosofia. Esta atitude sobrevive em parte também em nossos dias, e nas obras de lingüística encontram-se afirmações que ratificam este princípio: a filosofia é considerada, mais ou menos, como algo nebulosamente desorientador. Do mesmo modo Meillet, apesar de se interessar pela lingüística geral, afirmava que, para desenvolver comple­ tamente uma teoria lingüística, faltam os fatos que ainda não se estudaram; somen­ te continuando a estudar língua após língua poder-se-ia construir finalmente uma teoria dos caracteres gerais das línguas e dos fenômenos lingüísticos. 2.5.2. O princípio da substância significa que os fatos, no nosso caso os lingüís­ ticos, são considerados não em suas relações funcionais, mas sim na sua substancialidade. E, se se trata de aspectos materiais, estes são considerados na sua materia­ lidade. Temos assim dois modos de identificar os fatos entre línguas diversas: pela identidade (ou analogia) material e pela identidade do conteúdo determinado ou “ da fala” (acepção), enquanto na história de uma mesma língua se tem como base da identificação a analogia material e, do ponto de vista do conteúdo, novamente a constância da “ acepção” , isto é, o mesmo valor determinado em textos diferentes (e não um valor que eventualmente justifique acepções diversas nestes textos). O modo como são apresentados os problemas implica estes dois tipos de identificação. Por exemplo, diz-se que em italiano, como em espanhol, há um e aberto e um e fechado, um o aberto e um o fechado. Estes fatos, enquanto substan­ ciais, existem efetivamente tanto em espanhol quanto em italiano, pois também em espanhol aparecem um e aberto e um o aberto, ainda que nem sempre com con­ textos fonéticos análogos àqueles italianos. Observando, por exemplo, que em espanhol se diz [(ièrde] (verde) com e aberto antes de r e [késo] (queso) com e fechado, e que, enquanto [ròsa] (que se pronuncia com r forte inicial de palavra) tem o o aberto, {esposa] tem, entretanto, o fechado, se conclui que os fatos do espanhol e do italiano são idénticos, porque em ambas as línguas existem as classes dos e abertos e fechados (cf. italiano [détto] e [sètte]) e o abertos e fechados (cf. italiano [còtto] e (sótto]). E na história de uma língua, os fatos são considerados idênticos se há entre eles relação de continuidade material (por exemplo, Iat. bovem fr. boeuf, lat. nigrum fr. noir), mesmo que a sua função, conforme teremos oportu­ nidade de observar, não seja a mesma. Do ponto de vista do significado, assim como se estabelecem sobre a base das acepções os valores funcionais em uma língua, também se identificam como valores funcionais acepções análogas de línguas diferentes, sem se perguntar, por exemplo, se o papel de um determinado tempo do verbo é o mesmo em relação ao sistema de que faz parte. Pergunta-se, entretanto, se a possibilidade de exprimir determinadas

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acepções coincide em vários textos, partindo do elemento “ substancial” da matéria e do conteúdo das formas estudadas e considerando, por exemplo, como idénticos os vários tempos verbais materialmente semelhantes de línguas diferentes, enquanto tenham as mesmas acepções, mesmo se, na realidade, seus valores não sejam idên­ ticos. 2.5.3. O princípio do evolucionismo significa que o objeto principal da lingüística só pode ser a história da língua, compreendida também, como veremos, no sentido positivista; pois, se o desenvolvimento é considerado antes do modo de ser das coisas - no nosso caso, antes do modo de ser das línguas —, temos como única científica a lingüística histórica ou, melhor, a gramática histórica que, coordenando cronologicamente os fatos, estabelece, por exemplo, as diversas fases de desenvol­ vimento do italiano partindo do latim. E também as gramáticas descritivas orien­ tam-se pelo enfoque histórico-evolutivo, como o demonstram títulos característicos de obras surgidas na época positivista ou sequazes de tal ideologia: ‘gramática descritiva da língua x com bases históricas’. Presuifte-se então que o passado das formas, a maneira como estas nasceram e se desenvolveram, explique também o seu “ ser” atual e sua função. As únicas identidades consideradas válidas são as de origem, independentemente do fato de serem ou não identidades atuais. Para retomar um exemplo de Saussure, o vocábulo francês pas seria o mesmo elemento, quer com função de negação (je ne sais pas, “eu não sei”), quer como função léxica, com o significado de “passo” , porque a origem da forma é única: o vocábulo latino passus, “ passo” . Na realidade, para a consciência lingüística, exclusivamente sincrónica, esses dois elementos do francés falado atual são totalmente diversos, porque ninguém que fale uma língua “ natural” , como se sói dizer hoje, pode depreender eventuais identidades apenas etimológicas. Mas na ideologia positivista se definem frèqüentemente identidades etimológicas ou se explicam funções de palavras diversas através de hipóteses sobre a sua origem e o seu desenvolvimento. A gramática descritiva se reduz, em sua parte essencial, à descrição do desenvolvimento das formas estudadas, e às vezes se nega até que seja possível estabelecer limites funcionais de certas categorias, porque — diz-se — as formas ‘passam de uma função a outra’. Assim um estudioso que, a este respeito, permanece ligado à ideologia dos neogramáticos, Bruno Migliorini, na obra Dal nome proprio al nome comune, publicada pela primeira vez em Genebra em 19272, sustenta, entre outras coisas, que é impossível estabelecer com exatidão o que seja um nome próprio, porque os nomes próprios se tom am comuns e os comuns se tomam próprios. A contradição é óbvia porque, se se fala de passagem de uma categoria a outra, está implícito o conhecimento dos termos entre os quais se dá1

1 B. Migliorini, Dal nome proprio al nome comune. Studi semantici sul mutamento dei nomi di persona in nomi comuni negli idiomi romanzi {Do nome próprio ao comum. Estudos semânticos sobre a mudança dos nomes próprios a comum nos idiomas románicos]. Olschki Firenzi, reimpressa em 1968.

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essa passagem. Entretanto, mesmo nesse modo extremamente probabilista de colocar os problemas, ou seja, considerando o desenvolvimento ou a passagem formal, os limites desaparecem só aparentemente, mas na realidade devem ser supostos como tais para que uma afirmação como essa tenha sentido. Resumindo: o esquema geral da lingüística sob este ângulo é, ou quase exclu­ sivamente história, e nesse caso a parte descritiva é considerada como fato prático, didático, ou, no máximo, primeiro história e depois descrição, mas fazendo sempre depender a descrição da história. 2.5.4. Finalmente, o naturalismo em lingüística significa que as línguas deveriam ser consideradas como organismos naturais,, dotados de um desenvolvimento pró­ prio; fala-se então de “vida” das línguas e das palavras, com metáforas, não há dúvida, mas também as metáforas têm o seu porquê e refletem uma determinada ideologia. Também se fala, por exemplo, de línguas-“ mães” , de línguas-“ filhas” , de “ famílias” de línguas, e em parte essas metáforas estão estabelecidas na terminolo­ gia corrente, e não apenas na lingüística. Ao mesmo tempo, os fatos lingüísticos são interpretados em sentido causal, e se pode perguntar, por exemplo, qual é a “ causa” de uma determinada mudança lingüística. E, sendo a evolução o problema principal, observa-se que se passa de um estádio de língua A a um de língua B e se pergunta quais são as “causas” de tal “evolução” . Não se considerando, com efeito, a criativi­ dade lingüística como fato primário, tem-se, entretanto, como objeto primário de estudo a condição objetiva dos fatos e a partir desta passa-se a examinar a sua “evolução” , que constitui sempre o problema por excelência deste tipo de lingüís­ tica. Quanto às “causas” , considera-se que podem ser análogas àquelas observáveis no estudo dos fatos da natureza; fala-se até mesmo da influência do clima ou do ambiente geográfico no desenvolvimento das línguas, como na história da literatura Hippolyte Taine tenta explicá-la referindo-se a influências e determinações diversas, entre as quais o ambiente geográfico, social etc. Também a história lingüística se faz, mais ou menos, desta maneira; e se não é possível fazê-la assim - sendo a empresa muito difícil —, considera-se que convém limitar-se a registrar os “ fatos” de um desenvolvimento, sem explicá-los. Quanto à metodologia, por se julgar científica por excelencia a das ciências naturais, consi­ dera-se que a lingüística poderá ser ciência verdadeira e própria somente quando chegar a se assemelhai a estas, isto é, quando puder estabelecer leis de causalidade análogas às das ciências naturais. Característico deste tipo de lingüística é o conceito de “ lei fonética” , segundo o qual os desenvolvimentos fonéticos observados entre dois ou mais estádios diversos de uma mesma língua são regulares e sem exceção. Sirvam de exemplo os seguintes fatos: lat. plãnum, plênum lat. jlam m a, florem :éctum, octõ

> ital. piano, pieno, i. é, PL > /pj/ > ital. fiamma, fiore, i. é, FL > /íj/ > ital. tetto, o tto , i. é, CT> /tt/

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Tais desenvolvimentos atribuídos, conforme a lingüística positivista, à ação de leis análogas às naturais, são classificados como “leis fonéticas” e proporcionam a satisfação científica, positivisticamente motivada, de ter-se descoberto que também nas línguas ocorre algo análogo ao que acontece na natureza, demonstrando-se com isto que existe uma necessidade intema das línguas, exemplificada por estas leis. Disso passa-se a dizer que uma ciência capaz de estabelecer e formular leis já é uma ciência madura e que de algum modo poderá também chegar a prever desenvolvi­ mentos ulteriores. A este propósito observava Meillet, não sem um certo queixume, que mesmo assim a lingüística não é ciência madura, nem é ciência como as ciências naturais, porque não está ainda em condições de fornecer previsões: todas as leis até agora estabelecidas aplicam-se de fato ao passado, não ao futuro. As leis gerais do desenvolvimento das línguas nos seriam, portanto, desconhecidas. Está claro que quem aceita isso tem a convicção de que, em algum momento, será possível formu­ lar tais leis; no momento atual, porém, não poderíamos fazê-lo por uma, digamos assim, insuficiência provisória, pois ainda não conheceríamos cabalmente os fatos.

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O Antipositivismo

3.0. À ideologia positivista sucederam-se outras, em parte antipositivistas, em parte ainda presas àquela ideologia, mas todas apuradas no que tange à superação do positivismo do fim do século XIX. Que significa em geral antipositivismo em relação ao positivismo? 3.1.1. Em primeiro lugar, o princípio do indivíduo e da conseqüente generalização é substituido pelo da universalidade do individuo. Tal principio metodológico está totalmente patente, por exemplo, no posicionamento da fenomenología de Husseri, • para a qual nenhum individuo é só e exclusivamente individuo, mas cpntém em si a própria universalidade. A mesa sobre a qual escrevo é simplesmente uma mesa reconhecida como tal; é também ‘mesa em geral’. De modo análogo, qualquer indivíduo não é simplesmente indivíduo, e, neste sentido, impossível de ser repe­ tido, mas é também um modo geral de ser. Para sermos exatos, este princípio não foi criado por Husseri, pois ascende a Aristóteles através do próprio mestre de Husseri, Brentano. Teve todavia um realce particular na fenomenología, concepção filosófica que, como vimos (cf. 1.8), se afirmou nos primordios do nosso século. Nc antipositivismo (na sua forma fen ornen ológica) observa-se que a universa­ lidade não é conhecida através da generalização, pois esta operação já implica uma intuição da universalidade. Não podemos, assim, estabelecer o que é a tragédia considerando diversas tragédias, porque, para delimitar nosso campo de observação, devemos de algum modo saber o que é “tragédia” . Senão, por que não examinamos também casas, árvores, cadeiras, etc., mas apenas tragédias? Em outras palavras, antes de afirmar algo sobre alguma coisa, devemos ter um ‘conhecimento antepredi­ cativo’, uma intuição essencial do que é a coisa por ser examinada. Isto implica que a teoria é necessária antes mesmo da observação dos fatos, porque aquela não é o resultado da generalização, mas sim a base e suporte desta.

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3.1.2. Devemos porém distinguir dois conceitos que aparecem na ideologia añtiV i positivista: o de generalidade e o de universalidade. Esta distinção significa, entre outras coisas, que o ser das coisas (“ essência” ) nãò se pode identificar com a abstração. A generalidade, aquilo que efetivamente se encontra ñas coisas e que se pode abstrair, é constituida de caracteres constantes, que podem também não ser necessários, mas que simplesmente se acham nas coisas. A universalidade é, ao contrário, o modo de ser das coisas, e tal .modo é necessário porque é o conjunto dos caracteres sem os quais as coisas não seriam o que são (uma coisa não seria aquilo que é). Tomemos um fácil exemplo: supondo que se tenham encontrado somente folhas verdes, poderíamos pensar que o caráter “verde” fosse necessário às folhas. Penetrando porém m ás de perto no conceito de “ folha” , verificamos que o caráter “verde” não é absolutamente necessário, mas apenas um fato empírico de generáidade: as folhas poderiam ter também uma outra cor e desempenhar suas funções mesmo se não fossem verdes. Recordemos também outro exemplo, aristotélico: diz-se que somente o homem ri e que o fato de rir é aquilo que se chama o seu proprium. T á fato, porém, não é necessário para a definição do homem; é simplesmente um fato de ordem gerá. Que todos os homens riam e que somente o homem ria não pertence à definição, à essência do “homem” . Em outras páavras, esses fatos poderiam também achar a sua justificação na essência das coisas, mas, em primeiro lugar, são fatos simplesmente observados como gerás. E se os fatos gerás não podem ser justificados pela universáidade, não são necessários nem se apresentam ainda como tás. Eis agora um exemplo lingüístico muito simples deste princípio. Algumas línguas não têm sílabas fechadas; de fato, as sílabas têm apenas esta estrutura: (c)(c)c+v; isto é: consoante + vogal (c+v) la-na; consoante + consoante + vogá (c+c+v) spu-(rna)\ consoante + consoante + consoante + vogá (c+c+c+v) stra\da) Outras línguas conhecem também sílabas fechadas, isto é, sílabas com a seguinte estrutura: (c)(c)c+v+c: consoante + vogal + consoante (c+v+c) per-(do); consoante + consoante + vogal * consoante (c+c+v+c) ster-(piy, consoante + consoante + consoante + vogal + consoante (c+c+c+v+c) stran-igolare) Enquanto existem línguas sem sílabas fechadas, não existem línguas sem sílabas abertas, ou melhor dizendo, não conhecemos tais línguas; trata-se simples­ mente de uma constatação empírica geral. Entretanto, uma língua que não tivesse

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esta característica e que, por exemplo, não tivesse sílabas do tipo de la na, stra-da, seria ainda uma língua? Certamente que sim. Isto porque não vemos nenhuma necessidade de não considerar como língua um sistema de expressão só pelo fato de não posssuir sílabas deste tipo. Portanto, mesmo se todas as línguas efetivamente apresentassem este caráter, ou seja, se as sílabas abertas fossem efetivamente gerais em todas as línguas, como parecem sê-lo para as línguas até aqui observadas, este dado não seria um caráter universal das línguas. De fato, não se faz necessária esta condição para que uma língua seja “língua” . 3.1.3. O princípio do atomismo é substituído pelo princípio do sistema ou da estrutura, isto é, o indivíduo passa a ser considerado não de modo isolado, mas inserido numa estrutura mais ampla, num sistema de relações do qual faz parte. Ou, melhor dizendo, afirma-se que não existe conhecimento possível do indivíduo enquanto isolado, mas que ele é conhecido e mesmo percebido unicamente pelas suas relações. Com um exemplo extraído do âmbito da percepção, referir-nos-emos a uma brincadeira de televisão, em que se apresentavam certos objetos e se perguntava o que eram. Freqüentemente esses objetos não eram reconhecíveis, justamente porque não podiam ser imaginados senão em um contexto determinado e em certo relacionamento com outros objetos. Segundo um princípio fundamental dachamada psicologia da forma (em alemão, Gestaltpsychologie; lembre-se de que Gestalt significa “ forma, forma organizada”), a forma é essencial para a própria percepção, enquanto a percepção pode dar-se apenas em uma estrutura. Em outras palâvras, a identificação dos indivíduos é impossível se estes estão isolados das estruturas através das quais são percebidos. Se por exemplo nos perguntamos o que são certos objetos e o que têm em comum, mas os examinamos isoladamente, pode ser difícil acharmos que tenham algo em comum; para nós são objetos diferentes e não conseguimos identificá-los nem como objetos tomados individualmente nem como tipos de objetos. Se, ao contrário, os consideramos em uma estrutura, estes objetos são identificados em primeiro lugar como parte de um todo, e, em segundo lugar, como o mesmo tipo de objetos. Os objetos que, tomados individualmente, não eram semelhantes, agora se tomam parecidos e são interpretados como o mesmo objeto, a mesma classe e o mesmo tipo de objetos, se considerados no resto do contexto e se vistos em relação com uma estrutura determinada. 3.1.4. Em geral, o princípio estrutural do sistema de relações substitui, na reação ao positivismo, o princípio do fato isolado e individual. Em lugar de partir do indivíduo para chegar ao sistema e de descobrir dedutivamente as estruturas, é com base em uma consideração sistemática, e com procedimento totalmente contrário, que se procura estabelecer até a individualidade do simples indivíduo. Assim proce­ dendo, pode-se chegar mesmo a negar qualquer importância ao fato isolado e a consi­ derar as relações entre as coisas como único fato efetivamente real, enquanto indiví­ duos e fatos isolados seriam apenas pontos unidos entre si por determinadas rela­ ções funcionais. Os pontos extremos, os próprios fatos, os fatos isolados ligados entre

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si por uma função ou relação, não teriam importância e poderiam até ser ignorados. Por conseguinte, afirma-se que os pontos functivos, isto é, os pontos entre os quais se estabelece uma relação, têm sentido somente nesta relação1. Até mesmo fatos considerados essenciais, como, por exemplo, o sujeito e o objeto em geral, apare­ cem, consoante este enfoque, como simples fatos extremos entre os quais se esta­ belece uma função, uma tensão. Dir-se-á, entretanto, que a única realidade é a tensão entre sujeito e objeto e não, ao contrária, a realidade do sujeito ou do objeto. Sobre este princípio se fundamenta a filosofia do italiano Antonio Banfi, na sua primeira forma, isto é, antes que ele procurasse adaptar a sua filosofia ao mate­ rialismo dialético. A idéia central era esta: os fatos são em certo sentido secundários e justificáveis somente através da função, como não constitutivos da realidade, enquanto a tensão é constitutiva da realidade, ao representar a relação funcional entre sujeito e objeto. 3.1.5. Nestes dois sentidos, portanto, é substituído o princípio do indivíduo: o indivíduo não é somente concebido como tal (não se esgota nele), mas contém um modo universal de ser, a sua universalidade. O indivíduo é conhecido não apenas como fato isolado, mas no interior de uma estrutura, em um sistema de relações. Também na lingüística atual, ao princípio positivista do fato isolado e da generalização com base no fato isolado se opõe, como veremos, o princípio da universalidade do fato e, por vezes, também o do sistema e da estrutura nos quais o fato isolado é observado. 3.2. Ao princípio da substância se opõe, no antipositivismo, o princípio da fun­ ção, ou seja, procura-se determinar a essência das coisas e dos objetos, não na base da sua substância, mas sim de sua função. À oposição entre substância e função, dois conceitos da história bastante complexa, o filósofo Emst Cassirer dedicou um livro inteiro.2 O conceito de função encontra-se praticamente em todas as.várias formas do antipositivismo. Segundo Heidegger, por exemplo, a essência do martelo se revela no martelar, porque não é possível estabelecer a essência do martelo somente segundo a sua substância específica, material, mas para fazê-lo é necessário considerá-lo na sua função. Às vezes, porém, o conceito de função é compreendido não

1 O termo functivo foi introduzido por Hjelmslev, a respeito do qual assim se pronuncia: “Com a introdução do termo técnico função pretendemos evitar a ambigüidade no uso conven­ cional que dele se faz na linguagem científica, onde designa não só a dependência entre dois terminais mas ainda um ou os dois próprios terminais —este último quando a respeito de um deles se declara que é ‘função’ do outro. A introdução do termo técnico functivo permite evitar esta ambigüidade, e o próprio objetivo se dá não dizendo que um functivo ‘é função’ do outro, mas afirmando ao contrário, que tem função com o outro” (L. Hjelmslev, Prolegómenos a una teoria del lenguaje, Credos, Madrid, 1971, pág. 56). (E.B.) 1 E. Cassirer, Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Substância e junção], Berlim, 1910.

O ANTIPOSITIVISMO

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no sentido ativo que implica, mas sim como conceito matemático de função. Neste caso a função aparece reduzida à relação, pois, como se sabe, o conceito matemá­ tico de função é dado pela relação que se estabelece entre dois elementos que, como mencionamos em 3.5, são chamados functivos. Também em lingüística, e precisa­ mente em uma corrente atual, a glossemática da escola de Copenhague, o conceito de função é reduzido quase inteiramente ao conceito de relação.

3.3. Ao princípio da evolução se opõe a consideração do estado das coisas, istoé, a consideração da essência dos objetos vista de maneira atemporal. Afirma-se, então, em clara ligação com q .primeiro princípio, que a universalidade da coisa não se pode estabelecer através de seu desenvolvimento, porque se a coisa tem uma univer­ salidade própria, tal universalidade deve ser permanente e se encontrar em cada momento do seu desenvolvimento. Não é possível, por exemplo, estabelecer a essência da arte estudando-lhe as origens, como pretendiam os estudiosos de orien­ tação positivista. Se estes propuserem achar as origens da arte no trabalho ou no jogo, especialmente com base no estudo das manifestações dos povos primitivos e até mesmo das do mundo animal, tal proposta pode ainda ser válida em sentido genético, mas a este tipo de explicação se alia a consciência de que o esquema jogo -*• arte ou trabalho -*• arte não explica o que é a arte, porque o momento essencial é justamente esta passagem de um para outro, isto é, do trabalho ou do jogo à arte. Também o problema das origens pode ser obviamente discutido, mas no campo fenomenológico importa sobretudo sublinhar que a origem não explica necessariamente o ser atual e que, pelo contrário, para se poder falar de mudanças, é necessário conhecer o ser permanente das coisas.

3.4.1. Finalmente, ao princípio do naturalismo se opõem concepções filosóficas antipositivistas que não aceitam as ciências naturais como modelo da ciência em geral. Segundo tais correntes, variando o objeto das ciências, mudam-se também os métodos, pois varia a finalidade das ciências e seu objeto é concebido de maneira diferente. Ao mundo da causalidade, da natureza, onde os fatos são determinados por causas, opõe-se o mundo da liberdade, o mundo propriamente humano, ortde os fatos não são determinados por causas, mas acontecem em virtude de uma finalidade. Neste sentido, os fatos humanos não têm “causas” , porque a sua causa é o próprio homem que a produz, .e são, portanto, determinados finalisticamente. Não devemos, portanto, perguntar por quê e por. quais causas os fatos acontecem (? -*■ Fato), mas em vista de quê são produzidos: Fato -*• ? (Finalidade). Este esquema, que corresponde ao mundo da liberdade, deve ser aplicado ao interpretar-se a linguagem, o mito, a religião, a arte, a filosofia, a ciência, isto é, as várias formas da cultura que são determinadas em sentido finalístico. Na Itália esta distinção é bem conhecida, e poder-se-ia dizê-la antiga, pois provém de Vico. O positivismo a havia esquecido, reduzindo os diversos objetos a objetos naturais, e as

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ciências a ciências naturais. No começo do nosso século retomam esta distinção, ainda que sem fazer menção a Vico, em particular Rickert3 e Cassirer4. Se os objetos culturais são determinados finalisticamente, também a sua ciência deverá ser diferente da ciência da natureza, em que se admite a necessidade causai e se estabelecem leis gerais que se aplicam aos fatos individuais presentes e futuros, leis cuja condição essencial é não admitirem exceção. A ciência da natu­ reza, de certo ponto de vista, ao “prever” um fato individual, na realidade nada prevê, porque apenas afirma que no mundo da natureza continuará a acontecer aquilo que sempre aconteceu: a água continuará a ferver a 100 graus centígrados porque foi experimentado que, em condições barométricas normais, ela ferve exata­ mente a 100 graus centígrados. Em outras palavras, não se pode nem mesmo pensar que entretanto as leis mudaram, porque tomamos como válido o fato de que a natureza não nos engana. Se pensássemos que um diabinho qualquer, o da liber­ dade, por exemplo, intervém também na natureza, mudando neste meio lempo as leis, não poderíamos obviamente prever nada, põrque também a hipótese de que tal ou qual pressão atmosférica é normal não é outra coisa senão a aplicação da lei ao fato isolado. 3.4.2. Que acontece, em lugar disso, nos eventos da liberdade? Para esses vale, sim, o sistema e a realização ou então uma lei normativa com aplicação da própria norma, mas vige sempre a possibilidade de que entretanto o dito sistema se tome um outro, ao qual não mais se aplique a mesma lei. No âmbito dum sistema de realização, isto é, da manifestação do sistema nos fatos isolados, as ciências da cultura prevêem exatamente do mesmo modo que as ciências da natureza; por isso se pode afirmar que o fato isolado se apresentará de certa maneira, admitindo-se que o sistema seja ainda o mesmo. Tomemos um exemplo lingüístico: considere-se a praxe filológica da emenda de um texto ou da sua restauração com o preenchimento das lacunas. Se em um texto latino se encontra, por exemplo, sitie e o que se segue a esta preposição não está claro ou completo (por exemplo, se só estiver stikl . . . ) , dir-se-á que deve seguir um ablativo (studio ou studiis,), ou seja, se “prevê” que este sine particular deve ser seguido de ablativo como qualquer outro sine em latim. Este método é válido, desde que, neste meio tempo, o sistema não tenha sido mudado, e sine não apareça, por exemplo, em um texto latino tardio, onde eventualmente já não se construísse com o ablativo.

3 H. Rickert, Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft [Ciência da cultura e ciência da natureza], Tübingen, 1899. Trad. esp. Ciencia cultural y ciencia natural, Buenos Aires, EspasaCalpe, 1943. 4 E. Cassirer, Logik der Kulturwissenscha/ten [Lógica da ciência da cultura], Goteborg, 1942; dela existe uma tradução inglesa com o título The Logic o fth e Humamties, Univeisity of Yale, 1960; trad. esp. Las ciencias de la cultura, México, Fondo de Cultura Económica, 1951.

4 A Lingüística entre o . Positivismo e o Antipositivismo

4.1. Dos quatro princípios antipositivistas, a lingüística atual aplica com certa coerência, de modo mais ou menos explícito, os três primeiros, que se identificam com diversas reações à ideologia dos neogramáticos. Muito menos aplicado é o quarto princípio, que diz respeito à distinção entre ciência da natureza e ciência da cultura. Isto acontece por várias razões, historicamente determináveis, entre as quais as mais significativas são talvez as seguintes: a idéia das ciências da natureza como exemplares se mantém na ideologia corrente, embora não mais no nível filosófico; em segundo lugar, a reação antipositivista na lingüística não se prende sempre a movimentos filosóficos contrários ao positivismo, mas produz-se ainda no próprio âmbito do positivismo. A lingüística atual muito deve a Saussure, que na realidade era um pensador de formação positivista. Por isso, se a lingüística atual aplica em parte principios antipositivistas, fá-lo, em certo sentido, apesar de e não com base nos seus principios filosóficos, ao menos na medida em que se admite que os tenha realmente. Nos Estados Unidos a lingüística atual deve muitíssimo a Leonard Bloomfield que permanece no ámbito positivista mais ainda que Saussure, pertecendo a uma reação intema ao próprio positivismo, o chamado behaviorismo (ou comportamentismo). Em oposição a Bloomfield deve-se recordar, na lingüística americana, Edward Sapir, um dos poucos lingüistas estrangeiros que citaCroce em sua obra. Todavia, na história da lingüística americana, o livro Language, de Bloom­ field, ainda qu • aparecido em 1933*1, exerceu maior influência que o livro homô­ nimo de Sapir, aparecido doze anos antes2. É bem verdade que Chomsky declara

1 L. Bloomfield, Language [A Linguagem], New York, 1933. 1 E. Sapir, Language. An ¡ntroduction to the Study ofSpeech [A linguagem. Introdução ao estudo da fala], New York, 1921. Deste livro existe excelente tradução para o portugués feita pelo lingüista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr. (Acadêmica, Rio de Janeiro, 1954).

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voltar antes a Sapir que a Bloomfield, mas também Chomsky, cuja preparação filosófica é escassa e unilateral, depende de diversas correntes neopositivistas, em­ bora o seu pensamento original tenha orientação muito diferente. Daí o fato de se encontrar, na sua obra, uma série de contradições, sobretudo do ponto de vista teórico. . Portanto, ainda que estejam presentes na lingüística motivos antinaturalistas que afloram sobretudo em duas correntes, primeiro no idealismo lingüístico e de­ pois na gramática transformacional, o quarto princípio não é aplicado com coe­ rência e, neste sentido, a lingüística atual continua a ser de tipo positivista. 4.2. Até agora falamos de ideologia do neogramáticos e dissemos que a esta se opõem os princípios da lingüística atual. Mas quem são estes neogramáticos que representam tal ideologia? Já citamos alguns deles (cf. 2.2 e 2.3), mas se procuraria em vão, na sua obra, uma declaração coerente dos quatro princípios do positivismo. Isso acontece, em parte porque a realidade da linguagem se impõe a todos, mesmo àqueles que estão dominados por tal ou qual ideologia, e, em parte, porque estes princípios são mais implícitos que explícitos. A ideologia dos neogramáticos é um tanto genérica; ou, melhor, se examinarmos um representante neogramático, em particular Hermann Paul3, acharemos aí princípios e afirmações totalmente contrá­ rios ao positivismo. Trata-se de uma ideologia substancialmente esquemática, como o é mais ou menos a ideologia corrente do lingüista de tipo “acadêmico” que, sem filosofia nem princípios, aplica simplesmente os aspectos mais esquemáticos da sua disciplina; não é certamente a ideologia do criador, que manifesta sempre uma decidida independência de julgamento. A mesma coisa deve-se dizer do antipositivismo: os princípios contrários ao positivismo constituem antes a unidade, a base genérica, implícita, da nova lingüís­ tica, ainda que em formas e modos nem sempre coerentes e, eventualmente, como se verá, com originalidades específicas nas várias orientações. 4.3.1.1. Ao aplicar-se o princípio da universalidade ao fato isolado, acontecerá que, por exemplo, no som considerado em si, infinitamente variável, se descobrirá a “invariante” , o fonema, e se dirá: aquilo que importa não é o som, a parte variável, mas a invariante, o fonema, em certo sentido as classes estabelecidas pela fonética experimental, como, por exemplo i, é aberto, ê fechado, etc., consideradas, porém, na sua funcionalidade. Tais classes, como observou Sapir, podem ser estabelecidas somente sobre a base duma intuição implícita do fonema; de outro modo, seria totalmente impossível estabelecer classes, pois entre os sons não existe material­ mente nenhum limite, mas uma continuidade total. Mesmo examinando os sons

* H. Paul, Prinzipien der Sprachgeschichte (1880) [Princípios de história da língua], Nicmeycr, Halle A. S., 8.a ed., 1968. Temos tradução portuguesa deste livro, preparada por Maria Luisa Schemann, com o título Princípios fundamentais da história da língua, F. Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1970.

A LINGÜÍSTICA ENTRE O POSITIVISMO E O ANTIPOSITIVISMO

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pronunciados por um único individuo, acharemos uma série efetivamente infinita que passaria, por exemplo, de a a um e muito aberto, daí a um e aberto, a um e médio, e gradualmente a um e mais fechado, a um i aberto, a um / fechado, etc., não havendo nunca um limite. Os limites são estabelecidos porque se intui uma unidade sui generis, o fonema, um ponto de referência fônica que pode ser intuido no âmbito da nossa língua ou da de outrem. Dizemos, portanto, que o italiano tem determinadas classes de sons, tais como e aberto, e fechado, o aberto, o fechado, porque em italiano existem também efetivas diferenças fonemáticas correspon­ dentes a tais classes. E se estabelecemos classes análogas para o espanhol, fazemo-lo do ponto de vista do italiano (ou de outras línguas que possuem tais fonemas). De fato, se não conhecêssemos outras línguas, não pensaríamos absolutamente em estabelecer estas diferenças para o espanhol; simplesmente apontaríamos uma só classe de e, que iria das formas mais abertas às mais fechadas. 4.3.1.2. Analogamente, procura-se o significado e o valor geral de determinadas formas. Em certo sentido, volta-se também aqui a uma intuição antiga, manifestada nos próprios nomes das categorias gramaticais. Uma categoria gramatical se chama, por exemplo, aoristo ou imperfeito porque estes nomes, em sua definição originária, constituíam uma espécie de definição abreviada. Foi precisamente ao procurar esta­ belecer o valor fundamental e abrangente destas categorias que a primeira delas foi definida como aoristo, isto é, tempo “indeterminado” , em relação aos valores gerais dos outros tempos do verbo grego. Analogamente, com imperfeito, enquanto termo técnico, damos uma definição resumida da função de certas formas do verbo, com o reconhecimento implícito de certo valor unitário, ainda que se possa discutir se a definição é justa ou não. A formulação explícita do conceito de fonema corresponde, do mesmo modo, a uma intuição antiga, que já se manifestara, por exemplo, na invenção do alfabeto, composto de um número finito de letras: todos os alfabetos, de fato, implicam princípios fonemáticos, ainda que não sejam sempre formulados ou aplicados com coerência. Muito antes de que se falasse de “ fonema” , houve tentativas, na história da língua italiana, de introduzir letras diferentes para os dois o e para os dois e, porque já se intuíra que, em italiano, os dois o e os dois e eram unidades funcionais diferentes. 4.3.1.3. A respeito dos conceitos de sistema e de estrutura, enquanto sistema de relações, grande é a variedade de pontos de vista na lingüística atual, dependendo isso do tipo de relações que sejam postas em evidência de modo prioritário, embora não haja corrente na lingüística atual que não considere os fatos em suas relações. Assim, a geografia lingüística examina as relações que subsistem entre os diversos fatos lingüísticos no espaço. Não nos aprofundaremos neste assunto, limi­ tando-nos a assinalar um só exemplo: a consoante /£/ intervocálica se pronuncia [z] em Florença, em outros lugares [|], enquanto em Roma é pronunciada como Iggl, de modo que, por exemplo, a palavra ragione pronuncia-se [rajfjÇone], e não [ragoneJ; este ou qualquer outro fato do gênero é considerado pela lingüística

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geográfica à luz de relações espaciais, na base das quais se procurou também trazer algumas deduções de caráter geral. As correntes sociológicas da lingüística se con­ centram, ao contrário, nas relações entre a variedade da língua e a estrutura (estratificação) da sociedade. E já houve lingüista que quis achar analogias entre as estru­ turas das línguas e as estruturas sociais; e, mesmo que seja duvidoso até que ponto as relações deste tipo possam ser válidas, é digno de nota o fato de que se haja, pelo menos, pensado na possibilidade de estabelecê-las. A estilística de tipo idealista se propõe estabelecer a relação entre um fato expressivo individual dum texto e o resto do próprio texto. Por isso não se diz mais; “Esta é em si uma expressão metafórica e tem tal valor", mas, pelo contrário, prefere-se enunciar a coisa assim; “Esta expressão tem um valor diferente dependendo do texto em que se encontre” . Uma mesma metáfora pode ser ora sublime, ora vulgar, uma vez que o valor expres­ sivo de cada fato é determinado pelas relações com o resto do texto. A estilística de tipo idealista é portanto fundada sobre este princípio: não mais levantar, por exem­ plo, catálogos de metáforas ou de desvios de um uso lingüístico considerado como “normal” , mas sim pretender ser o exame das relações efetivas em um texto deter­ minado, em que os fatos registrados no catálogo podem assumir valores totalmente diversos. No estruturalismo se trata de relações na própria língua, relações entre uma forma e outras formas, entre um conteúdo e outros conteúdos da mesma língua. E de relações se trata também na gramática transformado nal, precisamente de relações entre a “ estrutura superficial” e a chamada “ estrutura profunda” , e, em particular, de relações de equivalência na designação, por exemplo, entre uma cons­ trução ativa e a construção passiva equivalente no “ meaning” (ou seja, no fundo, quanto à realidade extralingüística designada). Concluindo: apesar da grande variedade de relações, o conceito mesmo de relações está presente em cada corrente da lingüística atual. Neste sentido se pode dizer que não somente a lingüística estrutural, mas toda a lingüística atual é “ antiatomista” . 4.3.1.4. No que tange ao primeiro princípio, já falamos da universidade do fato individual e das relações dum fato com outros fatos num sistema, numa estrutura ou num contexto. Mas este princípio apresenta também um outro aspecto: a revalo­ rização da teoria, porque esta não constitui o resultado final do estudo dos fatos, mas precede o seu próprio estudo; não se pode imaginar o estudo dos fatos sem uma teoria, pelo menos implícita. Este aspecto é particularmente posto em relevo pela lingüística atual, que muito freqüentemente se apresenta quer como teoria da lin­ guagem ou teoria dos fatos lingüísticos, quer como metodologia, enquanto a lin­ güística tradicional, ao contrário, se caracterizava pela atenção voltada para os fatos, como colheita cada vez mais ampla de fatos. Isto não quer dizer que a lingüística atual despreze os fatos, mas muitas vezes os considera como já conheci­ dos, pois o que importa é o método pelo qual eles são interpretados ou apresenta­ dos. Disto deriva, em muitos trabalhos da lingüística atual, certo aspecto tautoló­ gico, pleonástico, a respeito dos fatos. Os tradicionalistas, que exigem fatos mate-

A LINGÜÍSTICA ENTRE O POSITIVISMO E O ANTIPOSITIVISMO

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rialmente novos, perguntam-se o que há de novo em trabalhos de tal género, porque os fatos examinados já se conhecem ou até já foram estabelecidos há bastante tempo. Há, efetivamente, algo de verdade nesta objeção, mas a razio é que o centro de interesse é outro: apresentar sob uma nova luz fatos já conhecidos, dar-lhes uma nova e exaustiva sistematização. Parte-se, por isso, seguidamente, de coleções já existentes de fatos que são interpretados e apresentados de maneira nova. Este aspecto da pesquisa foi levado a conseqüências extremas pela gramática transformacional, onde todos os fatos são considerados como já conhecidos e o que se estuda é uma nova maneira de formular as regras que unem os diversos fatos; supõe-se que a análise dos fatos já tenha sido totalmente feita e que haja apenas a necessidade de uma maneira coerente de apresentá-los. 4.3.2.1. O princípio da função se liga em parte ao precedente: trata-se de estabele­ cer não mais relações materiais, mas sim funcionais, de identificar, portanto, as unidades lingüísticas com base na sua função, o que em parte foi sem dúvida feito pela lingüística tradicional, mas que na atual se torna um princípio explícito. Voltando mais uma vez às nossas classes de sons, perguntar-se-á: estas classes que, seja em italiano ou em espanhol, podem ser estabelecidas do ponto de vista físico, são ou não classes funcionais? Para o italiano se responderá que são, porque servem para distinguir significados, ou melhor, distinguem significantes que têm significado diverso, enquanto em espanhol não o são, porque não distinguem signifi­ cantes que tenham significado diverso. Em espanhol tanto faz pronunciar por exem­ plo a palavra queso “ queijo” , com e aberto ou fechado (como efetivamente se pronuncia /késo/), ao passo que em italiano alguns pares de palavras, por exemplo, légge- lègge, accétta-accètta, pésca pesca, se distinguem exclusivamente por meio da oposição entre e fechado e e aberto. Em espanhol, portanto, há um só fonema ¡e¡, que se realiza às vezes como /él e às vezes como [é], enquanto em italiano, pelo menos em sílaba tônica, se encontram dois fonemas: /é/ fechado e /è/ aberto. Não se admitindo mais a identificação com base na substancia, reconhece-se como unidade aquilo que é funcionaimente unitário. Analogamente, a propósito do significado (ou conteúdo), não se fala, por exemplo, de diversos valores do presente ou do imperfeito, isto é, de diversos fatos de substancia significativa encontrada efetivamente nos textos, mas se procura estabelecer uma função que corresponda a este complexo de significados textuais efetivamente existentes. Portanto, reduzir as unidades à função das próprias unidades não significa absolutamente que se ignore a sua variedade efetiva. Sabemos muito bem que várias são, por exemplo, as realiza­ ções de um fonema, e também que algumas delas são obrigatórias em certos contex­ tos. Afirma-se apenas que o que importa em primeiro lugar na técnica lingüística é esta unidade de função, enquanto menos importante é o modo pelo qual se realizam no falar as unidades lingüísticas. Não se exclui, assim, que as formas do verbo tenham várias acepções, mas se procura achar a unidade funcional de tais formas, em vista de uma definição que, de certo modo, resuma, de fato, o valor unitário, não apenas como soma de diversas acepções, valor que poderá ser individualizado

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somente se vierem combinados o primeiro ao segundo princípio, estabelecendo quais sejam as relações entre um conteúdo e outros conteúdos da mesma língua. Ou então se dirá, por exemplo, que o presente é funcionalmente definido com base em suas relações com o futuro e com o pretérito (it. “ passato remoto” ) e que é tudo aquilo que estas outras formas não são. Com isto não se exclui que o presente também tenha um sentido próprio, positivamente entendido, mas apenas que os seus conteúdos são delimitados por outros conteúdos da língua considerada. A este respeito, porém, é preciso distinguir entre aquilo que uma língua pode eventualmente dizer e aquilo que normalmente diz e deve dizer. Parece, de fato, que cada língua pode exprimir tudo aquilo que exprime uma outra e que, pelo menos em princípio, não há diferença entre as línguas, no que tange às suas possibilidades. Destarte, se uma língua tem nutrierais somente até 4, o 5 será indicado, por exem­ plo, por uma das mãos, o 10 pelas duas, o 15 pelas duas mãos e um pé, o 20 pelas duas mãos e os dois pés. Nesta língua não se dirá normalmente, por exemplo, 86, porque de 4 em diante se dirá genericamente “ muitos” ; mas a possibilidade de dizer 86 existirá, ainda que de forma complexa (quatro vezes as duas mãos e os dois pés + uma mão + 1) que, quando simplificada, se traduzirá por algo parecido com o francês quatre-vingt-six. O problema não consiste, pois, no que se pode dizer e no que se pode achar efetivamente expresso em proposições concretas. O problema é este: aquilo que se diz constitui uma função unitária e constante da respectiva língua? E esta função é, na língua respectiva, uma função diferente das outras? Quais são os limites funcionais nesta língua? Portanto a idéia de função, combinada com o primei­ ro princípio das relações sistemáticas, é reformulada como idéia de limite funcional. Em italiano, por exemplo, é possível que a ação simples e a repetida venham de fato expressas por uma mesma forma verbal em uma frase determinada e que, em um contexto, canta signifique “ canta neste, momento” (ação simples), e em outro signifique “ canta com freqüência e seguidamente” (ação iterada ou habitual). Deve­ mos, porém, nos perguntar se estes fatos, efetivamente verificáveis em textos italia­ nos, constituem ou não unidades funcionais, porque o italiano não dispõe, neste caso, como acontece com as línguas eslavas, de formas diversas para exprimir estas duas funções, mas emprega a mesma forma e é só o contexto o que indica qual é a acepção específica e particular usada num caso determinado. As funções, ao contrário, são duas, também em certa fase do latim na qual, para indicar que um determinado sujeito “ canta agora, somente uma vez, neste momento” , se dizia canit, enquanto, para indicar que “ canta seguida e habitualmente” , se dizia cantat. Em latim havia, portanto, duas unidades funcionais diversas, com um limite, im­ posto pela língua como sistema, isto é, pela langue, entre um conteúdo e outro. 4.3.2.2. A idéia de função não deve ser, porém, limitada à descrição dos sistemas lingüísticos. Mesmo na análise de um texto, deverão ser estabelecidas determinadas funções; portanto, por exemplo, o conceito novo de metáfora, na estilística atual, é o da metáfora em um texto determinado, com sua própria função nesse texto, e em nenhum outro.

A LINGÜISTICA ENTRE O POSITIVISMO E O ANTIPOSITIVISMO

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Também em outros casos a lingüística atual n lo examina tanto a substancia dos fatos quanto a sua função, interpretando-os do ponto de vista funcional. Assim como. na indagação histórica se pensa primeiro em quais sejam as mudanças e os desenvolvimentos funcionais de determinadas formas e de que modo elas passaram para uma função diferente na história da língua, assim também, ha comparação lingüística, em lugar de confrontar formas substanciais entre si, procede-se a uma comparação funcional, procurando determinar se funções similares são expressas pelas línguas que estão sendo estudadas e quais são essas funções. Ou dito de outra forma: um dos axiomas didáticos fundamentais é o de assinalar, desde o princípio, que as funções de línguas diferentes podem ser diferentes e que o pior modo de aprender uma língua estrangeira é buscar as funções da nossa língua na outra que se quer aprender. Se nossa língua nos abre uma janela em direção a uma outra, é preciso ao mesmo tempo lembrar que a outra língua poderá apresentar funções diferentes. Portanto, jamais aprenderão línguas estrangeiras aqueles que perguntam como se diz, na outra língua, o que sabem dizei na sua própria, ou aqueles que lamentam não poder exprimir exatamente na outra língua o mesmo conceito: como se dizia outrora, eles não percebem o esprit des langues. Um-exemplo de Román Jakobson é digno de nota a este respeito. Um inglês diz a um russo: “ I wrote to my friend” , e o russo replica: “Aquilo que dizes não está claro; antes de mais nada, gostaria de saber se se trata de um amigo ou de uma amiga, e depois se acabaste ou não de escrever” . E se o texto fosse escrito, o russo poderia também perguntar se o sujeito / corresponde a uma pessoa masculina ou feminina. De fato, em russo, o pretérito do verbo indica o genero da pessoa que funciona como sujeito, e a forma do verbo indica se a ação (neste caso, a de escrever) está ou não acabada, e o substantivo que exerce a função de complemento especifica, ainda no nosso exemplo, se se trata de um amigo ou de uma amiga. Obviamente se poderá objetar que o inglês, se quiser, pode dizer girl-friend para precisar este último ponto. Normalmente, porém, não o faz. Neste caso não se exprime, em inglês, aquilo que é, entretanto, necessário explicitar em russo; em outros casos, acontece o contrário, e o inglês explicita distinções que o russo não pode absolutamente fazer, como, por exemplo, aquelas distinções manifestadas através do uso do artigo que em russo, como em latim, não existe. %

4.3.2.3. A idéia de funcionalidade está presente, portanto, na descrição da língua dos textos, na história lingüística (na medida em que até agora foi feita história funcional das línguas), na comparação lingüística e também nas aplicações da lin­ güística ao ensino das línguas estrangeiras (a chamada lingüística aplicada). 4.3.3. À idéia de evolução se opõe, como dissemos, à dos “ estados” das coisas, à diacronia se opõe a sincronia, e na lingüística atual se fazem quase exclusivamente pesquisas sincrónicas, com base na simples limitação empírica ou também na idéia de que a história seria menos importante do que a descrição sincrónica. Ou então se inverte a ordem seguida pela lingüística positivista e, em lugar de gramática fundada

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em princípios históricos, faz-se primeiro descrição e depois história ou hisiôra baseada na descrição, quer dizer que, para uma determinada mudança lingüística, se procuram estímulos e motivações no estado da língua, ou, pelo menos, se parte da descrição para fazer a história. Notável é que esta atitude não é apenas característica da lingüística descritiva por excelência, a lingüística estrutural em suas várias for­ mas, mas de toda a lingüística atual, mesmo da orientada historicamente e da “ historicista” . A descrição constitui, portanto,«de certo modo, a base também de outras orientações que nada têm a ver com o estruturalismo, como, por exemplo, a geogra­ fia lingüística. Deve-se, de fato, a Matteo Bartoli4 o enunciado de quatro normas ditas “ areais” , normas relativas à distribuição geográfica dos fenômenos lingüísticos e mediante as quais certos indícios sincrónicos são transformados em indícios de sucessão histórica. De acordo com uma destas normas, chamada “ norma das áreas laterais” , se num território lingüístico outrora homogêneo certas formas se acham nas áreas marginais e outras formas, funcionalmente equivalentes, aparecem na área central, as formas das áreas laterais são mais antigas, pois que representam um “estrato” anterior, não substituído pelas inovações oriundas do centro deste domí­ nio lingüístico. Procede-se, portanto, ao exame de condições sincrónicas, como as que são encontradas no estádio de uma língua atual. Em outras palavras, estes fatos (A e B) são primeiro registrados na sua relação espacial atual para depois concluir que, historicamente, A precede B, exatamente com base nesta distribuição espacial. Eis alguns exemplos: enquanto na Ibéria e na Romênia, regiões laterais do domínio lingüístico románico, o conceito de “ formoso” é expresso por formas que con­ tinuam o latim formosus (em português formoso, em espanhol hermoso, em ro­ meno frum ós), na Itália e na Gália, quer dizer, no centro do domínio lingüístico, acham-se ao contrário continuações do latim bellus (it. bello, fr. beau)\ analoga­ mente, ao português mais, ao espanhol más e ao romeno mai, do latim mçgis, se opõem no centro os continuadores do latim plus, com o francês plus e o italiano piü. Pode-se concluir disso que form osus e magis, em suas respectivas funções, são anteriores a bellus e plus. De fato, se em uma zona lingüística homogênea se difunde do centro uma inovação, esta dificilmente chega às áreas laterais e consegue conquistar todo o território lingüístico. Todavia o que importa, sobretudo, é pôr em relevo que esta norma, expressão característica da geografia lingüística (ou lingüística espacial), dá a possibilidade de interpretar historicamente um fato sincró­ nico, transformando a constatação de condições contemporâneas em apresentação de fatos sucessivos. Tenha-se presente que o ponto de partida não é mais a sucessão, mas, ao contrário, a simultaneidade das formas, simultaneidade da qual se deduz a 4 Vejam-se de M. Bartoli as seguintes obras: Introduzionc alia neolinguistica [Introdução à neolinguistica), Genebra, 1925; em colaboração com G. Bertoni, Breviario di neolinguistica [Breviario de neolinguistica| STEM, Moderna, 1928; e mais os artigos inseridos em Saggi di lingüistica spaziale [Estudos de lingüistica espacial], Rosenbcrg & Sellier, Torinò, 1945; e, em colaboração com G. Vidossi, Lineamenti di lingüistica spaziale [Rudimentos de lingüistica espacial]. Le Litigue Estere, Milano, 1943.

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cronologia relativa das referidas formas, manifestada, por assim dizer, nas condições sincrónicas: da descrição se chega à história. Também alguns lingüistas históricos afastados, por sua formação, de qual­ quer ligação com o estruturalismo chegam às vezes a formulações deste tipo. A lingüística tradicional nos habituou, por exemplo, a partir do latim para chegar ao italiano, do indo-europeu ao anglo-saxão, logo ao inglês médio da época de Chaucer e finalmente ao inglês moderno. Entretanto alguns lingüistas, mesmo operando ainda em âmbito historicista, afirmam hoje que uma história mais racional seria aquela que, partindo por exemplo do italiano atual, procurasse explicar como se formou este idioma, vale dizer que propõem uma história que, considerando os fatos atualmente válidos em italiano, explique o seu complexo percurso histórico, não se interessando em como o latim se transformou, mas sim em como se formou o italiano. Alguns trabalhos que se fundamentam em tal concepção descrevem de fato como se formou tal ou qual língua e, de certo modo paradoxalmente, tomam como ponto de partida o de chegada, para explicar historicamente como e por que se chegou a este e não a outro resultado. Para o italiano esta tese tem sido sustenta­ da por um lingüista que pode ser chamado histórico por excelência: Vittore Pisani5. 4.3.4.1. Com a difusão dos princípios do antipositivismo na lingüística, não é mais tomado, como ponto de partida, o fato individual, ao qual se segue abstração e generalização, mas em primeiro lugar se considera a universalidade mesmo do fato singular, que vem delimitado e descrito com base na posição que ocupa numa estrutura, numa rede de relações. Em segundo lugar, não se tem mais interesse pela substância, isto é, de que coisa é feito um objeto, mas sim pela função (que faz, para que serve este objeto). A definição e a identificação dos fatos, no nosso caso das unidades lingüísticas, baseiam-se na sua função, e não na sua constituição ime­ diata, material. Também se, por vezes, as duas coisas se distinguem e não se afirma que a unidade depende da funcionalidade, não há dúvida de que é nesta última que se põe maior atenção. Com efeito, as duas coisas (unidades e funções), por vezes se distinguem: é o caso de Daniel Jones que, no seu livro dedicado à fonología, dá uma definição substancial do fonema, formulada do ponto de vista da substância física6 . Jones define de fato o fonema como uma família de sons; ou antes, deseja distinguir o que o fonema é na sua constituição material do que o fonema/az, da sua função distintiva. A atitude geral da lingüística atual é, entretanto, não distinguir aquilo que uma coisa é daquilo que uma coisa faz, mas considerar, não apenas em primeiro lugar mas exclusivamente, aquilo que a coisa faz, e definir os objetos do ponto de vista da sua função. 5 Importantes artigos de V. Pisani acham-se reunidos em Saggi di lingüística storica [Estudos de lingüistica histórica|, Rosenberg & Sellier, Torino, 1959, e cm Linguc e culture [Línguas e culturas|, Paideia, Brescia, 1969. 6 De D. Jones, para quem o fonema é uma classe ou família de sons entre os quais ressalta um som importante da língua, veja-sc o utilíssimo An Outlinc o f English Phonetics [Esboço de fonética inglesa |, Dutton, New York, 1956, c o estudo teórico The Phonema |O fonema\, Cambridge, 1950, 2.a ed. 1963.

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Em terceiro lugar, não interessa a evolução do objeto, mas a sua descrição; a relação entre história e descrição é entendida no sentido de que não se faz descrição sobre base histórica, mas sim ao contrário, história sobre base descritiva. Em certo sentido, a história se torna sincrónica, o que corresponde, em última análise, a um modo mais genuíno de entender a própria história, pois.interpretar uma situação histórica significa reconstituí-la na própria mente, ou seja, compreendê-la sincróni­ camente. Ainda que na história lingüística não sejam numerosos os exemplos deste procedimento, pode ser citado ao menos o método seguido por Antonino Pagliaro7 no artigo sobre a etimologia do it. messa, “ missa” , em que se sustenta que a etimo­ logia não é apenas registrar o desenvolvimento de formas e significados, mas recons­ trução de uma situação originária, compreensão de tal situação e da inovação na forma ou no significado que surgiu nesta situação. No artigo supracitado é recons­ truída uma determinada situação na base da qual é explicada a inovação por que o lat. missa que, enquanto participio de mittere, significava simplesmente “ enviada” , passou a significar “ missa” no sehtido que damos hoje a esta palavra. 4.3.4.2. Já se disse que do quarto princípio não se acha, na lingüística atual, uma aplicação coerente. A este respeito, grande parte da lingüística atual permanece no ámbito da ideologia positivista. Ainda que a distinção respectiva seja feita no idea­ lismo lingüístico e, de modo menos claro e menos coerente, na gramática transformacional, não se pode falar, neste caso, de uma característica geral da lingüística atual, porque se continuam, na realidade, a aplicar princípios e métodoscausalísticos em várias orientações de nossa discipliná, particularmente no estruturalismo. O idealismo lingüístico, certamente, distingue entre ciências da natureza e ciências da cultura, mas não conseguiu impor este ponto de vista, também pela escassa capacidade especulativa de seus representantes. Em particular Karl Vossler, corifeu máximo da lingüística idealista na Alemanha, era um pensador de capacidade especulativa por demais modesta para conduzir o idealismo lingüístico a um sistema coerente que permitisse considerar os vários aspectos da linguagem dum ponto de vista efetivamente idealista8.1

1 De A. Pagliaro, além dos livros// segno vívente. Saggi sulla língua e altri simboli [A vida do sinaL Ensaios sobre a língua e outros símbolos), Edizioni Scicntifiche Italiane, Napoli, 1952, trad. portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian, a cargo de Aníbal Pinto dc Castro, Lisboa, 1967, e La parola e ¡’immagine \A palavra e a imagem], Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, 1957, vejam-se as coletâneas de artigos cm Saggi di critica semántica [Estudos de críticas semántica |, D’Anna, Messina-Firenze, 1953, Nuovi saggi di critica semántico [Novos estudos de crítica semántica], ibid., 1956 e Altri saggi di critica semántica [Outros estudos de crítica semântica], ibid., 1961, onde aparece o artigo referido no texto, “La formula Ite, missa est” (p. 127-32). ' De K. Vossler devem ser lembradas as seguintes obras-.Positivismus und Idealismus in der Sprachwissenschaft [Positivismo e idealismo na lingüística], Heildelberg, 1904, e Sprache ais Schòpfung und Entwicklung [A linguagem como criação e evolução |, Heidelberg, 1905 (destes dois livros há tradução italiana de T. Gnoli (Laterza, Bari, 1908) e espanhola de José F. Pastor (Editorial Poblet, Madrid, 1929).

5 Unidade e Diversidade da Lingüística Atual

5.1.1. Os quatro princípios que discutimos até agora deveriam pelo menos consti­ tuir a unidade de uma lingüística não positivista. Tal unidade, porém, não implica ausência de diferenças que, ao contrário, são notáveis na lingüística atual e consti­ tuem motivo de interesse pela multiplicidade das correntes e das orientações. A lin­ güística tradicional (pelo menos assim se diz) era mais unitária, e isto porque nela não se colocavam problemas gerais de concepção ou de método. 5.1.2. Se as diferenças entre duas lingüísticas são devidas apenas ao objeto que se examina, tais diferenças são de pouca relevância, ao menos para quem, como nós, se interessa pela ideologia que subjaz aos dois métodos. Se, por exemplo, se faz geo­ grafia lingüística, toma-sc para exame um aspecto determinado do objeto “lingua­ gem” e se consideram as diferenças lingüísticas no espaço. Esta disciplina, entre­ tanto, determinada como é pelo seu objeto particular, precisamente por aquele objeto que ela escolhe no objeto “linguagem” como seu tema peculiar, exige obvia­ mente também uma metodologia particular. Muito mais importantes são as diferen­ ças que se devem à diversidade na concepção geral da linguagem e/ou da ciência. 5.2.1. Assim, as diferenças devidas à concepção geral da linguagem podem se ma­ nifestar até na organização das disciplinas lingüísticas, enquanto se considera uma determinada disciplina como a disciplina lingüística por excelência, da qual deri­ variam as outras. Segundo o idealismo lingüístico, cujo escasso relevo no contexto cultural internacional é necessário admitir, a linguagem é essencialmente criação e deve portanto ser estudada no seu próprio surgir, e não como técnica ou uso de uma linguagem já feita. Esta criação, este surgir, poderá se encontrarem forma concreta sobretudo em textos individuais e, em particular, nos literários, que formarão por isso o objeto principal da pesquisa. A disciplina lingüística capaz de surpreender a linguagem no seu momento de origem é, segundo o idealismo, a estilística, e a esti-

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lística dos textos será por conseguinte considerada como disciplina primária, en­ quanto o resto será construido sobre a base e do ponto de vista da estilística, da qual o idealista se ocupará em primeiro lugar ou quase exclusivamente. Segundo o estruturalismo, que considera a linguagem primordialmente no seu aspecto técnico-instrumental e sobretudo enquanto estrutura, o-interesse pri­ mário da lingüística será, pelo contrário, a descrição da língua, a “gramática’*. E, em tal ámbito, o estruturalismo dará maior relevo às partes nas quais as estruturas podem ser depreendidas de modo mais imediato: fonología, morfología e sintaxe. Por outro lado, dará menor relevo àquela parte na qual as estruturas não se obser­ vam de modo imediato mas são, como se costuma dizer, “abertas” , isto é, no léxico. 5.2.2. Segundo uma outra corrente da lingüística atual, o neo-humooldtismo, representado sobretudo na Alemanha por Jost Trier e Leo Weisgerber1, a lingua­ gem é constituída de dois estratos: o primeiro representa a organização ime­ diata do mundo por parte do homem, uma espécie de “intermundo” (em alemão: Zwischenwelt) , responsável pela organização do mundo como tal mediante a lin­ guagem, enquanto o segundo diz respeito ao falar sobre diversas situações do mundo, mas com os elementos dados neste intermundo. De um lado se terá então o léxico, que organiza de maneira imediata o mundo extralingüístico, de outro lado, a gramática; e a linguagem seria constituída de um estrato léxico, correspondente ao mundo enquanto conhecido e dominado pelo homem por meio da linguagem, e dum outro estrato, gramatical, correspondente à combinação desses elementos, isto é, do mundo já transformado em linguagem. A lexicología deveria ser, portanto, a primeira disciplina lingüística, enquanto estudo lingüístico do modo e da ordem em que é organizado o mundo. Também as diferenças entre as línguas postas em relevo pelo neo-humboldtismo são sobretudo as lexicais, porque se supõe que a um léxico diferente corresponde uma maneira diferente de organizar, e, assim, de con­ ceber a experiência do mundo exterior. 5.2.3. O chamado “ marrismo” isto é, a metodologia lingüística do lingüista sovié­ tico N. J. Marr, hoje caído em desagrado na própria U.R.S.S. depois da condenação oficial do partido através de duas célebres intervenções de Stalin2, sublinha primei1 Recorde-se de J. Trier, criador da teoria do “campo semântico” (al. Bedeutungsfeld), a obra fundamental (de que só apareceu o voL I) Der Deutsche Wortschatz im Sinnbezirk des Verstandes vocabulário alemão na área conceituai do entendimento | , Heidelberg, 1931. As idéias gerais de L. Weisgerber acham-se particularmente expostas em Muttersprache und Gertesbildung \L(ngua materna e formação do espirito), Gottingen, 3.a ed., 1941, e em Das Gesetz der Sprache [A lei da língua], Heidelberg, 1951. J A obra de N. J. Marr constituiu a doutrina oficial da lingüística soviética ainda depois da morte desse estudioso, ocorrida em 1934. Suas teorias foram contestadas por J. V. Stalin, em dois artigos, O marxismo na lingüística cA propósito de algumas questões relativas à lingüística, aparecidos na Pravda, respectivamente a 20 de junho e 4 de julho de 1950. Entre os maiores lingüistas da União Soviética deve-se hoje citar Sebastian Konstantinovic Saumjan, promotor de uma teoria fundamentalmente gerativo-transformacional exposta em Struktumaja lingvistika, Moscou,-1965 |tradução italiana de E. Rigotti, Lingüistica dinámica, Laterza, Bari, 19701. [ O

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ramente a unidade dialética entre língua e pensamento, que se manifestaria em pri­ meiro lugar na estrutura das frases, correspondente a estruturas do pensamento sobre o mundo. Para o marrismo, a primeira disciplina lingüística é, por isso, a sin­ taxe, emanando todo o resto deste ponto de vista. 5.2.4. Embora por motivos totalmente diversos, também a gramática transformacional, que considera a língua do ponto de vista da capacidade de construir frases (ou melhor, todas as frases possíveis, já ditas ou não), identifica o corpo central da lingüística com a sintaxe, a que se relacionam, de um lado, a fonología e a fonética, e, de outro, a lexicología e a semântica, conforme um esquema como o seguinte: semântica

t

t

t

sintaxe i

i

i

fo n é tic a A s in ta x e c o n s titu i, p o r ta n to , o c o rp o c e n tr a l, e a seu la d o situ am -se as d u a s “ in te r ­ p re ta ç õ e s ” d as frases: a in te rp re ta ç ã o s e m â n tic a , q u e faz u so d a le x ic o lo g ía , e a fo n é tic a , q u e in te r p r e ta n o s e n tid o m a te ria l a e s tr u tu r a d as frases, c o n s titu in d o assim a c h a m a d a ‘m o rfo lo g ía ’, q u e se d e fin e m e lh o r c o m o m o rfo n ê m ic a o u m o rfo fo n è m ic a (o u “ fo n é tic a das frases” ).

5.2.5. Voltaremos mais adiante a este tema; agora nos interessa assinalar que a própria organização das disciplinas lingüísticas e o ponto de partida também na des­ crição pode ser diferente segundo a atitude e a concepção que se elegem. Por isso estilística, gramática, lexicología e sintaxe apresentam-se alternativamente como disciplinas primárias ou, em certos casos, como disciplinas exclusivas. 5.3. As diferenças no interior de uma determinada corrente da lingüística, inclu­ sive do estruturalismo, podem-se ainda reconduzir a modos de conceber a linguagem (ou melhor, em certos casos não a linguagem em geral, mas a língua como sistema), ou a maneiras de conceber a ciência. Certos aspectos que podem parecer discutíveis ou até mesmo errados, são justificáveis nos próprios limites das diversas concep­ ções, com base nos princípios adotados como fundamentais. Vejamos algumas des­ tas diferenças devidas, precisamente, a princípios teóricos ou metodológicos. 5.3.1. Uma corrente estruturalista que toma o nome de glossemática e cujo promo­ to r foi Louis Hjelmslev3, se propõe transformar a descrição lingüística em umaes3 Veja-se mais adiante 6.4.

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pécie de álgebra da linguagem. Tal aspecto da glossemática foi muito discutido e criticado. Foi dito, por exemplo, que é um erro ignorar os fatos de substância na linguagem; sob certos aspectos é realmente um erro, mas na glossemática tal orien­ tação se prende a um principio rigoroso e a uma concepção particular da língua, baseada no fato de que ela não seria outra coisa senão uma forma pura sem urna substância determinada; ou seja, segundo um conceito que já aparece em Saussure, a língua, enquanto forma, seria independente da substancia na qual se manifesta. Melhor dizendo, manifestando-se a língua na substância gráfica (a língua escrita), ou se manifestando na substância fônica (a língua falada), ou em qualquer outra substância (os signos poderiam ser construídos com vários materiais), para Hjelmslev, a estrutura ideal, enquanto fica sempre a mesma, carece de substância. Por este motivo o estudo das unidades da expressão (na prática: das formas lingüísticas) será próprio de uma disciplina chamada cenemática (do grego nevóÇ “vazio”), que se ocupará das unidades vazias de substância; e do estudo das rela­ ções abstratas entre unidades vazias de substância se passará à fonemática, grafemática e outras disciplinas que estudarão estas unidades não mais como unidades vazias, mas como unidades fônicas, gráficas, etc. A fonologia ( “cenemática”), em âmbito glossemático, será, portanto, uma disciplina muito genérica e abstrata que considerará somente os fatos que são equivalentes em todo sistema de expressão de uma determinada língua e são comuns, por exemplo, à fonemática e à grafemática. Evidentemente não se falará de elementos materiais, mas apenas de certas relações que possam se apresentar análogas na língua escrita e na falada. Podemos, natural­ mente, não estar de acordo com isso. Mas para criticar a concepção da fonologia em Hjelmslev, deveremos, com uma crítica radical, observar, por exemplo, que a lin­ guagem não é forma pura do tipo das formas matemáticas, não determinadas quan­ to à substância. É difícil ou arbitrário, portanto, discutir um único aspecto da teo­ ria, fruto de uma concepção internamente coerente da linguagem ou melhor di­ zendo, como se viu, da língua. 5.3.2. Partindo de uma concepção particular da ciência, Bloomfield exclui da lin­ güística o estudo do significado lexical, ao passo que admite o do significado gra­ matical. A exclusão do significado lexical se prende à premissa de que o que as pala­ vras significam, no tocante ao mundo extralingüístico, não pode ser estabelecido pela lingüística, mas apenas pelas disciplinas que se ocupam das coisas designadas. O significado de “ sal” , é, segundo Bloomfield, um problema da química e não um problema lingüístico. Esta tese, oposta àquela neo-humboldtiana segundo a qual a lexicología é a disciplina lingüística primária, foi criticada com freqüência, sem que se levasse em conta a extrema coerência interna do pensamento de Bloomfield. Na realidade, ele renuncia ao significado, ainda que sabendo perfeitamente que as palavras significam e que o significado é, portanto, fundamento da linguagem. Mais ainda: todas as definições contidas em Language são feitas com base no significado, e sempre se lêem fórmulas do tipo: tal unidade é uma forma x com um significado y . Entretanto, a exclusão do significado é devida à concepção particular que da

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ciência tinha Bloomfield que, como comportamentista (ou behaviorista), entendia que o significado lingüístico, não sendo encontrado nos fatos de comportamento exterior (ninguém jamais viu um significado!), e não sendo passível de verificação senão operativamente, não podia ser estudado científicamente. Conhecemos o sig­ nificado através da introspecção, enquanto pensamos nele, mas, segundo a meto­ dologia comportamentista, da qual a instrospecção fica excluída, não podemos referir-nos àquilo que sabemos de nós mesmos enquanto sujeitos falantes, e sim somente àquilo que pode ser observado exteriormente e que poderia ser observado também por uma máquina bem construída. Portanto, se o significado não pode ser observado nos fatos exteriores de comportamento, não pode ser estudado objeti­ vamente. Bloomfield entende de fato a ciência como objetividade absoluta, como objetividade fisicista: deve, por isso, excluir de seu âmbito o significado. Para criticar este princípio, indubitavelmente errado, é necessário ter presente a própria concepção da ciência em Bloomfield, observando, por exemplo, que a objetividade da lingüística não deve ser entendida no sentido em que possam ou devem ser objetivas as ciências naturais, ou então que a objetividade que se procura não é uma objetividade fisicista, como aquela que pode ser observada por uma má­ quina. Se a objetividade consiste na completa adequação ao objeto, no caso do objeto linguagem, a completa adequação cai .por terra se eliminamos o único ele­ mento que a permite: o significado. Por isso, também no behaviorismo, o signifi­ cado, que, segundo esta concepção não pode ser estudado com base na introspec­ ção, é examinado com critérios distributivos, istò é, identificando todos os con­ textos e todas as situações em que um elemento lingüístico ocorre. Com efeito, na obra de Bloomfield e de seus seguidores o significado, do qual se deve inevitavel­ mente falar de algum modo, é reduzido operativamente às combinações de uma palavra ou à totalidade das situações em que se emprega. Que seja praticamente impossível examinar a totalidade das situações é já um outro problema e, ao mesmo tempo, uma das mais graves dificuldades que se apresentam ao querer considerar o significado de um ponto de vista estritamente bloomfieldiano. 5.3.3. Um outro exemplo. Com referência às unidades lingüísticas que se distin­ guem na fonología (os fonemas) ou na gramática (segundo alguns estruturalistas, os morfemas), apresentam-se dois problemas: o da identificação das unidades e o da descrição das unidades identificadas. O prirheiro problema, por exemplo, é: quais são os fonemas do italiano? O i de Piera e o l í de pira são dois fonemas diversos ou um só? Uma vez, porém, identificadas as unidades, é preciso descrevê-las. Segundo os princípios já tradicio­ nais da escola fonológica de Praga, os fonemas se identificam com critérios fun­ cionais, mediante o método chamado da “ comutação” : substitúindo-se um som de uma palavra por um outro que se suspeita pertencer ao mesmç fonema, pergunta-se se com isto o significado muda ou não. Se o significàdo não muda, isto é, se per­ manece invariável para uma determinada consciência lingüística, os dois sons em questão pertencem à mesma unidade e não são unidades diversas. Substituamos,

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por exemplo, um e aberto por um e fechado na sílaba tônica de uma palavra espa­ nhola e de uma italiana; em espanhol, o significado permanece o mesmo, enquanto em italiano, pelo menos em alguns casos, muda (cf. outra vez légge-lègge, péscapèsca, etc.); e por isso em italiano são duas unidades diferentes e em espanhol uma só, isto é, um único fonema com duas variantes ou “ alofones” . No que concerne à descrição, esta se realiza de acordo com a substância fônica (ou seja, indicam-se os traços articulatorios ou acústicos efetivos destas unidades); assim, uma unidade como ital. /b¡ será definida como consoante oral, oclusiva, sonora, bilabial. Disto podemos deduzir claramente que a escola de Praga, não ignorando o significado, se refere a ele na identificação dos fonemas e, não ignorando a substância, se refere a ela na descrição. Segundo a orientação glossemática, que também admite a consideração do significado, a identificação dos fonemas pode igualmente acontecer com critérios funcionais, isto é, mediante o método da comutação. Impossível é, porém, a des­ crição do ponto de vista da substância fônica, porque a glossemática não admite a substância, que corresponderia a um uso — quer fônico, quer gráfico, ou com qual­ quer outra substância — da língua, e não à língua em geral (como forma pura). Por­ tanto, para a descrição se recorre à distribuição: não se dirá, por exemplo, de uma unidade como o ital. /ô / que é consoante oral, oclusiva, sonora, bilabial, mas que se pode encontrar em tais e quais posiçOes, por exemplo, no início ou no interior de uma palavra, e nunca no fim. A descrição, ou como se costuma dizer de modo inexato, a “ definição” das unidades será feita na glossemática com critérios distri­ butivos, sem recorrer à substância, e sem dizer que /ò / é uma consoante oral, oclu­ siva, etc., porque se procuram os traços comuns ao fonema //>/ e aos grafemas b, B. No bloomfieldismo estrito a identificação não pode ser feita com base em cri­ térios funcionais, porque não é lícito se referir ao significado. Sem negar que os fonemas sejam distintivos, nega-sc, entretanto, que se possa recorrer àquilo que nós como falantes sabemos e que sabem também os falantes que examinamos. Excluído o recurso ao significado, a identificação se faz mediante a distribuição, e assim se dirá: dois elementos diversos que aparecem exatamente no mesmo contexto per­ tencem a fonemas diversos. Pelo contrário, com base na chamada “ distribuição exclusiva” , se onde aparece A não aparece B ou vice-versa, tratar-se-á muito pro­ vavelmente do mesmo fonema; mas já que este critério nem sempre é suficiente, acrescenta-se também, para a identificação, a exigência da semelhança fônica. De fato, o critério distribucional é insuficiente, porque certos elementos, cuja distri­ buição é “exclusiva” , dificilmente poderiam ser atribuídos ao mesmo fonema. Por exemplo, /p/ e //i/ em inglês, jamais se acham no mesmo contexto, mas o primeiro pode estar na posição final de palavra ou sílaba, onde jamais aparecerá o segundo, e vice-versa. Muitas palavras inglesas terminam de fato por ng (em grafia fonética Ivl), mas nenhuma com //*/ aspirado. Ora, segundo o critério da distribuição exclu­ siva, ter-se-ia de dizer que se trata do mesmo fonema, o que é obviamente contradi­ tado pela ausência de semelhança fônica. Ao contrário, no caso do italiano, onde existem diversos tipos de /n¡ (o que está antes de lk / é diferente do que está antes

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de /t/, etc.), e o tipo palatal [ñ] (diante de /c / em maneia, diante de Igl em matigia, etc.), mas não diante de /r/, se diz que este [ñ] e [tj] pertencem ao mesmo fonema, recorrendo ao critério da distribuição exclusiva ou complementar. A descrição, po­ rém, poderá perfeitamente ser feita do ponto de vista da substância, porque o bloomfieldismo admite a substância fônica; o som [ú], em italiano, será identificado com [n], [17] na base da distribuição complementar, e se dirá que todos os três per­ tencem ao mesmo fonema /n/, o qual poderá ser descrito em termos de fonética acústica e articulatoria, por exemplo, coiriú “ consoante nasal não bilabial” . Este exemplo serve para patentear o modo pelo qual a coerência com uma determinada concepção implica conseqüências metodológicas até mesmo nas opera­ ções de descrição: a escola de Praga realiza a identificação mediante o significado, porque o admite, e realiza a descrição mediante a substância, porque também a admite. Para a glossemática, entretanto, a identificação se faz mediante o signifi­ cado, mas a descrição não se faz mediante a substância, mas sim através de critérios distribucionais. No bloomfieldismo acontece exatamente o contrário: a identifica­ ção é feita através da distribuição, porque o significado está excluído, e a descrição é feita através da substância. 5.3.4. As modalidades das descrições não são, portanto, arbitrárias nas várias con­ cepções lingüísticas, sobre cujos princípios e fundamentos é preciso sempre refletir antes de criticar-lhes as aplicações. Também do ponto de vista prático é necessário ter presente as diferenças entre os pontos de Vista, porque um mesmo termo, como fonem a, não tem o mesmo valor num texto filiado à escola de Praga e noutro ligado à glossemática. Por isso, embora falemos freqüentemente da “lingüística atual” em geral, como duma unidade, é preciso não esquecer que ela não é totalmente unitária: segundo os estudiosos, surgem por vezes divergências totais no exame de elementos idênticos, porque, como dizia Saussure, é o ponto de vista que cria o objeto, e os fatos são diferentes se apresentados de pontos de vista diferentes. 5.4. Também a dificuldade terminológica da lingüística atual pode ser atribuída a diferenças de concepção. Na glossemática, por exemplo, toda a terminologia é nova porque o seu fundador, Hjelmslev, achou necessário sublinhar a novidade dos con­ ceitos e dos procedimentos através do recurso a uma nova terminologia. Ainda que lingüistas de outras escolas empreguem em parte uma terminologia tradicional, também esta assume valores diversos conforme concepções metodoló­ gicas gerais. Exemplificando: o vocábulo morfema, bastante freqüente na lingüís­ tica atual, tomado entre os lingüistas que continuam a usar parcialmente a termino­ logia tradicional, se opõe a semantema ou lexema, sendo o morfema o instrumento gramatical e o semantema o fundamento, a base lexical de uma forma lingüística, considerada do ponto de vista quer da substância física, quer do significado. Por­ tanto, de uma forma verbal italiana, vamos supor veniamo, diremos que ven é a parte semantemática e iamo a morfemática, porque indica as funções gramaticais

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desta forma. O morfema será considerado tanto no seu aspecto material, como desinencia, por exemplo, quanto no funcional, indicando qual seja a função dessa desinência, etc.; falar-se-á assim da função do morfema artigo, preposição, desinéncia, etc. Numa outra corrente da lingüística, que não corresponde, porém, nem mesmo à divisão entre lingüística européia e lingüística americana, sendo própria da norteamericana e de uma parte da escola de Praga, morfema significa unidade mínima de forma lingüística; já para ela, no veniamo do nosso exemplo, o morfema lexical ven é seguido do gramatical iamo. Os morfemas são então as unidades últimas que se podem separar e identificar em formas lingüísticas não passíveis de divisão ulterior. Segundo esta concepção, morfema, enquanto forma lingüística mínima, pode coin­ cidir também com uma forma lexidãl: di, e, ogni, è, enquanto não ulteriormente divisíveis, serão classificados como morfemas. Na concepção glossemática, entretanto, morfema significa elemento gramati­ cal, porém não enquanto forma lingüística do ponto de vista da substância, mas exclusivamente quanto à sua função: a própria função gramatical é morfema. Por exemplo, no latim rosae, o morfema não é ae, mas sim o genitivo; no italiano il tavolo, il não é morfema, mas morfema é a função do artigo, a atualização que se exprime através de il. Morfema é, pois, a própria função gramatical, e neste sentido é um fato de conteúdo, não de expressão, fato conceituai e não material. Portanto, um glossemático dirá que a palavra Giovanni contém o artigo, e, à objeção óbvia de que o referido artigo falta, replicará que ele está implícito, porque, ainda que não apareça o artigo material, a sua função deve ser considerada implícita em Giovanni. Os nomes próprios, por isso, para o glossemático, têm implícito o morfema de artigo, porque, enquanto já atualizados, não têm necessidade de ser ulteriormente atualizados, mediante anteposição ou, em outras línguas, posposição de um artigo. Com efeito, dizendo Giovanni estou aludindo a uma pessoa determinada, ao passo que, se digo libri-ne ho letti molti [de livros, li muitos], estou-me referindo a livros de um modo não especificado; será diferente se eu disser/' libri che ho leito mi sono piaciuti [os livros que li me agradaram], porque, ainda que não os indicando particularmente, estou aludindo a livros determinados, isto é, aos que li, opostos àqueles, certamente mais numerosos, que não li; neste sentido, tanto Giovanni quanto i libri, como dizia Bally, estão “ atualizados” . Por isso é possível dizer que os nomes próprios “ contêm” a função de artigo mesmo sem ostentar-lhe a subs­ tância correspondente.

5.5. Concluindo, antes de proceder à leitura de uma obra de lingüística atual, é necessário procurar saber a que escola ou concepção ela pertence; assim não pro­ cedendo, será difícil e, além do mais, incoerente criticar as afirmações que lhe são específicas. Já que tais afirmações só podem ser discutidas à luz da concepção ge­ ral, impõe-se-lhe, ao leitor, remontar-lhe aos princípios para poder eventualmente contentar tal ou qual conseqüência particular.

6 O Estruturalismo

6.1. Depois de ter delineado as características da lingüística atual em geral, detenhamo-nos'agora na lingüística descritiva cm particular e, portanto, na chamada lingüistica estrutural, que é de notável interesse também para o ensino das línguas estrangeiras. Daremos aqui um esquema do estruturalismo que permita esclarecer o entrelaçamento das diferentes correntes de que se compõe. 6.2.1. Inicia-se o estruturalismo europeu com Ferdinand de Saussure, precisa­ mente com seu Curso de lingüistica geral. Saussure, com ser um ponto de partida, representa também um ponto de che­ gada, porque, como dissemos, para certos conceitos, remonta a Georg von derGabelentz1. Entretanto não são claras as relações, conquanto geralmente reconhecidas, com outros estudiosos, entre os quais cabe menção particular ao sociólogo francês Emile Durkheim. Além disto, ainda que não se saiba como e quando ocorreu, é evidente a afinidade de pensamento entre Saussure e dois estudiosos poloneses que ensinavam na Rússia: Jan Baudouin de Courtenay, de origem francesa, que por volta do ano de 1870 ensinava na universidade de Kazan’, e seu discípulo Mikolay Kruszewski, professor na mesma universidade. Baudouin de Courtenay e Kruszewski são os precursores e, de certo modo, os fundadores da fonologia, mais no sentido psicológico do que objetivamente funcional, porque introduziram o con­ ceito de “ fonema” , como unidade psíquica de sons diferentes na pronúncia. Ambos escreveram suas obras em russo, e Baudoin de Courtenay também em alemão, não 1 E. Coseriu, em extenso artigo inserido agora, em espanhol, no livro Tradición y novedad en la ciencia dei lenguaje, Gredos, Madrid, 1977, “Georg von der Gabclantz y la lingüística sincrónica” , mostra que as relações entre o lingüista alemão e Saussure não são simples coincidencias, mas refletem decisiva influencia, que passaram despercebidas à maioria dos estudiosos das raízes do pensamento lingüístico do mestre de Genebra. (E.B.)

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estando ainda muito claro até que ponto Salissure as tenha utilizado12. De outra parte, a noção de fonema tinha sido intuida, em 1876, por J. Winteler, que atentou para as diferenças fônicas a que correspondem diferenças quer de significado lexi­ cal, quer gramaticais, ao lado daquelas diferenças a que nío corresponde nenhuma diferença deste tipo. O vocábulo fonem a já tinha sido usado por Saussure no seu livro Mémoire sur le systéme p rim itif des voyelles indo -européennes [Memoria sobre o sistema primitivo das vogais indo-européias], aparecido em 1878. K.ruszewski adotou-o em 1880 para indicar o equivalente psíquico do som, e de modo análogo o usou em 1895 Baudouin de Courtenay. 6.2.2. Todavia, por explícito reconhecimento, derivam de Saussure as seguintes escolas lingüísticas européias: a) A escola que entre 1925 e 1939 liderou o Círculo lingüístico de Praga, de cujos membros, porém, nem todos ensinavam em Praga (um dos mais importantes, o russo N. S. Trubetzkoy, ensinava em Viena). Além de Trubetzkoy que, com os seus Fundamentos de fonología3, pode ser considerado o verdadeiro e efetivo criador da fonología, devemos recordar, entre os membros mais significativos do Círculo, o russo Román Jakobson, que se transferira da Rússia para a Tchecoslováquia, indo depois para a Suécia e finalmente para os Estados Unidos, onde ensinou durante muitos anos na Universidade de Harvard. b) A Escola de Genebra,-constituída pelos seguidores e colaboradores diretos de Saussure, Charles Bally, Albert Sechehaye (que publicaram o Curso, coligindo apon­ tamentos de lições acadêmicas proferidas entre 1907 e 1911 e elaborando-lhe a re­ dação com que hoje o conhecemos), e sobretudo H. Frei, verdadeiro estruturalista. Esta Escola, antes da criação da fonologia (com as Teses do Círculo lingüístico de Praga, de 1929, trabalho sobretudo de Trubetzkoy, Jakobson e Sergej Karcevskij), não havia aprofundado princípios estruturalistas, mas tão somente alguns outros aspectos da doutrina lingüística de Sauslure. Entre os representantes atuais dessa Escola cabe recordar particularmente Robert Godel, que publicou as fontes manus­ critas do Curso. c) A Escola dinamarquesa de Copenhague que, no início, adotou o nome de “ estruturalismo” (com Viggo Brindai), e depois, por volta de 1935, se identificou com a doutrina lingüística de Hjelmslev, a glossemática. Se estas escolas são mais ou menos caracterizáveis como saussurianas (a pri­ meira através da distinção entre langue e parole refletida em âmbito fonológico com

1 Estas relações mereceram dois estudos de R. Jakobson: A Escola polonesa de lingüística e seu papel no desenvolvimento internacional da fonologia (1960) e A importância de Kruszewski para o desenvolvimento da lingüistica geral (1965), ambos traduzidos para francês e inseridos no vol. II de Essaisde linguistique générale, Editions de Minuit, Paris, 1973. (E.B.) 3 Apareceram esses Fundamentos postumamente, em 1939, como vol. 7 dos Travaux du Cercle linguistique de Prague. Há desta obra tradução para o francês, italiano, inglês e espanhoL entre outras línguas.

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a diferença entre fonología enquanto ciencia da langue, e fonética enquanto ciência da parole; a segunda, pelo aprofundamento das características da langue, estudadas por Bally com particular atenção ao francês e ao alemão, e ainda pelo interesse do elemento psicológico na linguagem; a terceira, pela elaboração teoricamente conseqüencial da teoria que diz ser a langue forma e não substancia, enquanto conjunto de sinais que, por sua vez, são valores e não objetos), outros estruturalistas que se referem a estas escolas, como, por exemplo, o francês André Martinet4 , promotor de um funcionalismo em sua opinião decididamente realista, são praticamente re­ presentantes da escola de Praga. 6.2.3. Na União Soviética a orientação estrutural é representada por L. V. Scerba e sua escola, cujo estruturalismo é todavia diferente daquele que poderíamos definir como centro-europeu. O estruturalismo inglês provém de dois filões: um fonético, cujas origens devem ser buscadas em Henry Sweet e Daniel Jones, e um etnológico, pela impor­ tância assumida por Bronislaw Malinowski em ámbito lingüístico. Como verdadeiro fundador da escola lingüística inglesa pode-se considerar J. R. Firths , cuja ativi­ dade principal pode ser situada em tom o dos anos 50; atualmente a escola é re­ presentada por M. A. K. Halliday, W. Haas e W. S. Alien - o primeiro, conhecedor de chinês e o terceiro, de línguas clássicas, entre as quais principalmente o sáns­ crito: os interesses da escola não são, portanto, de caráter exclusivamente especu­ lativo —e outros, entre os quais o-veterano foneticista David Abercrombie. A escola inglesa pode, de certo modo, ser considerada um elo de ligação entre o estrutura­ lismo europeu e o norte-americano. 6.3.0. O estruturalismo americano tem sobretudo origens práticas, porque foi de­ terminado pela necessidade imediata de estudar e descrever as línguas indígenas dos índios da América: através da observação de certas categorias não redutíveis àque­ las conhecidas das línguas indo-européias, descritas pela lingüística tradicional, fo­ ram descobertos, na América do Norte, os princípios de uma descrição estrutural. O primeiro representante de uma concepção estrutural da língua nos Estados Unidos foi Edward Sapir, de origem alemã mas radicado na América desde menino; nele teve a maior influência a atividade, mais de antropólogo do que de lingüista, desenvolvida por Franz Boas, e dele deriva uma seção do estruturalismo americano que sofreu, em parte, também a influência de Bloomfield. Dela fazem parte K. L. 4 De A. Martinet recordem-se especialmente Éléments de linguistique genérale [Ele­ mentos de lingüistica geral], Paris, 1961, de que existe boa tradução para o português, a cargo de Jorge Morais-Barbosa, Sá da Costa Editora, Lisboa, e Economia des changements phonétiques [Economia das mudanças fonéticas], Berne, 1955, além das preleções contidas em A Functional View o f Language [A linguagem do ponto de vista funcional], O xford, 1962. s Os estudos mais im portantes de J. R. Firth foram reunidos em Papers in Linguistics 1934-1951 [Estudos de lingüistica], Londres, 1957 e Selected Papers o f J. R. Firth 1952-1959 [Estudos seletos de J. R. Firth 1952-1959], Longmans, Londres, 1968.

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Pike, Benjamin Lee Whorf, E. Pike e E. A. Nida. A obra principal de Sapir, como já o dissemos, foi A linguagem, publicada cm 1921, em Nova Iorque. 6.3.1. Entretanto deve-se considerar como verdadeiro fundador do estruturalismo americano Bloomfield que, além de Boas e Sapir, teve presente as idéias de Saussure. Bloomfield foi um lingüista muito bem informado, como mostra a vasta bibliogra­ fia de Language, enquanto não se pode dizer o mesmo de seus seguidores que.em geral, não têm tido o cuidado de pesquisar as raízes do pensamento de seu mestre, de cuja vasta cultura d io fé também numerosas e muitas veZes ásperas recensões publicadas nos primeiros anos da revista da Sociedade lingüística americana Lan­ guage. Bloomfield criou uma metodologia e uma terminologia na lingüística descri­ tiva norte-americana, se bem que, mais do que de estruturalismo (embora este ter­ mo seja correntemente usado nos Estados Unidos), seria adequado falar de “ descritivismo” norte-americano, que é uma metodologia nova, enquanto para o resto (par­ ticularmente para a lingüística histórica) Bloomfield reelabora substancialmente a lingüística tradicional, compreendendo-se aí também a geografia lingüística. De fato, a segunda parte de Language é um excelente compêndio da ideologia neogramatical referente à lingüística histórica e encerra também um panorama muito bem feito da geografia lingüística. 6.3.2. De Bloomfield descende uma série de estudiosos, quase todos norte-america­ nos não formados na Europa, entre os quais Zellig S. Harris6 (cujos primeiros tra­ balhos levam a extremas conseqüências o bloomfieldismo, afirmando, como único método, o distributivo), A. A. Hill, Ch. E. Hockett, R. A. Hall Jr. e outros. Um excelente resumo da lingüística descritiva norte-americana em suas duas orientações principais encontra-se no livro de H. A. Gleason J r.7, que contém também um ca­ pítulo sobre a gramática transformacional. Esta última tendência remonta em parte a Sapir (elogiosamente citado por Chomsky), em oposição, portanto, a Bloomfield e aos bloomfieldianos, e em parte a Harris que, juntamente com Chomsky, foi, no começo, o maior expoente da gra­ mática transformacional. Chomsky8, depois dos primeiros trabalhos, nos quais a influência de Harris é evidente, intensificou as referências à lingüística européia.

* Merece referência particular a obra de Z. S. Harris, Methods in Strudural Linguistics |Métodos na lingüística estrutural], Chicago, 1951, republicada com o título Strudural Lin­ guistics [Lingüística estrutural], Chicago, 1963. 1 H. A. Gleason Jt.,A n Introduction to Descriptive Linguistics (Introdução à lingüística descritiva J, New York, 1955, 2.a ed., 1961. Desta obra há tradução portuguesa de João Pin­ gúelo, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1978. * Recordem-se, entre as obras principais de N. A. Chomsky, Syntactic Structures IEstru­ turas sintáticas], Haia, 1957 e os escritos reunidos em Saggi linguistici \Estudos lingüísticos], trad. italiana, 3 vols., Boringhieri, Torino, 1969-70, onde estão incluídos também os Aspectos da teoria da sintaxe, de 1965. Desta última obra há tradução portuguesa de José Antônio Meireles e Eduardo Paiva Raposo, Armênio Amado Editor, Coimbra, 1975.

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em particular a Saussure e Humboldt, acreditando achar as origens da sua metodo­ logia, a assim chamada “ gramática gerativa” , na gramática geral e racional de Port Royal, ligada ao racionalismo cartesiano (donde o título de Cartesian Linguistics [Lingüistica cartesianaJ dado a um seu trabalho, aparecido em 1966); o nom t gerativa aplicado à sua concepção da gramática faz referência quer ao aspecto “ criativo” da linguagem, segundo o filão sapiriano em Chomsky, quer ao uso que, na lógica matemática, se faz da palavra “gerar” com significado de “ determinar através de regras” , “ formalizar” um determinado processo (no caso específico o processo de formação das frases); o nome transformado nal se aplica a esta gramática porque na “geração” das frases se vale, entre outfas coisas, de certas regras chamadas, precisa­ mente, “ de transformação” . 6.4. O quadro aqui apresentado corresponde à lingüística estrutural, isto é, àquela que se ocupa das estruturas da linguagem; como porém por “ estrutura” se podem entender coisas diferentes, a unidade é dada mais pelo conceito genérico de estru­ tura e não pelo objeto específico da pesquisa. A gramática transformacional e gerativa, como se pode deduzir claramente de tudo o que dissemos até aqui, se distingue de todas as outras tendências estruturalistas, porque o estruturalismo é um método analítico, que procura estabelecer e descobrir, mediante a análise, as unidades mínimas das línguas, as quais se combi­ nam na expressão. Este procedimento se mostra evidente até pelos nomes adotados, como por exemplo o de “ glossemática” : as unidades mínimas, da expressão ou do conteúdo (segundo Hjelmslev a função de signo se põe entre duas entidades, uma expressão e um conteúdo)9, são chamadas por Hjelmslev de glossemas, e a análise da língua se propõe, justamente, depreender os glossemas e mostrar, depois, como estes se combinam em unidade de ordem superior, ou figuras. O que caracteriza esta ciência é a aspiração à descoberta das unidades lingüísticas, e os procedimentos que ela emprega são —para usar um termo próprio da gramática gerativa - procedimen­ tos “ de descoberta” : busca-se descobrir os elementos mínimos e estabelecer os mé­ todos para tal descoberta em uma língua determinada e também para línguas que não se conhecem, cujas estruturas devem ser efetivamente “ descobertas” . .$. A gramática gerativa não oferece, entretanto, procedimentos de descoberta: muito ao contrário, em certo sentido, nega ou põe em dúvida a possibilidade de es­ tabelecer com plena coerência procedimentos de descoberta e propõe, antes, um modo de apresentar as estruturas já conhecidas pelos sujeitos falantes. Trata-se, assim, de um procedimento de representação e, em certo sentido, a gramática ge­ rativa supõe que análises e descobertas já têm sido feitas ou, pelo menos, que o falante já conhece as funções e as unidades combinadas e possui delas, segundo um 6

9 Veja-se L. Hjelmslev, Prolegomena to a Theory o f Language [Prolegómenos à teoria da língua \t trad. inglesa de F. J. Whitfield (Baltimore, 1953) do original dinamarquês aparecido em 1943, p. 30.

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termo técnico desta corrente, uma competência (competence) que atua na concre­ tização do desempenho (performance). A descrição se apresenta sob forma de regras (rules) e não de listas ou de pa­ radigmas classificatórios dos elementos reencontrados na lingua: tal método abs­ trato e sintético de apresentar a descrição, sob forma de regras dispostas em certa ordem, se chama, como já foi mencionado, método gerativo, porque “ gera” ou define determinadas estruturas que podem ser'recursivas. Regras de transformação se encontram também na gramática tradicional e, em parte com finalidades descri­ tivas, na obra de Gabelentz, já várias vezes citada, na qual um capítulo bastante im­ portante traz precisamente o título: Verwandlung der S'dtze in Satztheile [Trans­ formação das orações em membros da oração]10. Ainda que não se possa apurar ne­ nhum liame histórico entre Gabelentz e Chomsky, este capítulo e os fatos que o autor nos apresenta pertencem à mesma série dos tratados na gramática transformacional. Idéias “ transformacionais” encontram-se aliás na mesma gramática tradi­ cional, e também na obra de certos lingüistas não estruturalistas ou estruturalistas não “ ortodoxos” de nosso século, como por exemplo na Gramática inglesa e na Filosofia da gramática de Otto Jespersen 11 e em alguns estudos de Wal ter Porzig 12 e de J. Kuryfowicz. 6 .6

. Como já dissemos, o conceito de estrutura não é unívoco; existem dela pelo menos três, podendo-se entender como estrutura: a)a configuração ; b ) a estrutura paradigmática; c) a estrutura sintagmática. 6 .6 . 1 .

O conceito de “ configuração” ao que aqui aludimos não é propriamente estruturalista, trias se encontra em Saussure e foi retomado por Bally e na lexico­ logía chamada estrutural de Georges Matoré13, na França. Não se trata, neste caso, de analisar unidades lingüísticas em elementos menores que as compõem, nem tam­ pouco de relações efetivas entre elementos do enunciado, mas sim de laços externos que subsistem entre as unidades lingüísticas por semelhança material ou de con­ teúdo, ou então por associação, também entre elementos contrários. Uma confi10 Gabelentz, Die Sprachwissenschaft, loc. cit. pp. 436-70. Como, entretanto, fiz notar na introdução à recente reedição, este autor não pensa porém que a gramática sintética possa substituir a analítica (p. 35). 1' Devem ser particularmente lembradas as seguintes obras teóricas de O. Jespersen Ipron. yéspersen, e não géspersen | I.anguage, íts Nature, Development and Origin tA linguagem, sua natureza, evolução e origem ], Londres 1922, PhUosophy o f Grammar [Filosofia da gramá­ tica], Londres, 1924, além da importantíssima/! Modem English Grammar [Gramática do inglés moderno \, Copenhague, 1909-49, em sete volumes. 1J *• Lembre-se de W. Porzig o volume Das Wtinder der Sprache. Probleme Methode und Ergebnisse der modernen Sprachwissenschaft [A maravilha da linguagem. Problemas, métodos e objetivos da lingüistica moderna], Berne, 1950, de que há tradução espanhola publicada pela Gredos, de Madrid. ' *1 G. Matoré, La méthode en lexicologie. Domaine français [O método em lexicología. Domínio francês |, Paris, 1953.

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guração na fonología consistiria, por exemplo, em estabelecer as diversas relações de uma unidade / el não analisada, que se apresentaria em relação com todas as vo­ gais, com todos os sons anteriores, com os sons abertos, etc. Quer dizer que, em cada caso, se estabelece uma rede de relações, que pode continuar até os últimoslimites do dominio considerado (no caso em tela: no dominio dos fonemas de urna língua determinada) e há sempre um centro do qual, por assim dizer, se irradiam , essas relações. Tal conceito de estrutura se apresenta para a gramática e para o léxico na parte do Curso de lingüistica geral que trata das chamadas relações associativas: Saussure, examinando a palavra enseignement, “ensino” , liga-a a outros termos que terminam em -ment e com outros que contêm enseigne-, entre os quais também o verbo enseigner, “ensinar” . Está assim formada uma família de palavras, e se estabe­ lecem então liames de conteúdo com outras palavras que tém significado afim (tais como éducation, instruction), ou liames de substância com palavras formalmente semelhantes, como, por exemplo, com a palavra enseigne, “ insígnia” , que não guar­ da atualmente nenhum nexo semântico com ò conceito de “ ensinar” . Evidentemente, só um aspecto destas associações pode ser interpretado como estrutura paradigmática real da língua considerada, porque essas relações são infini­ tas, podendo-se passar de qualquer uma delas a outras. Com efeito, se se parte de um centro qualquer, e deste se passa a palavras semelhantes, daí a outras semelhan­ tes por sua vez a essas, advertimos que não existe solução de continuidade nem limi­ te na conceituação de uma tal estrutura: é praticamente infinita a rede de relações que se podem estabelecer por meio da associação. Este conceito de estrutura apa­ rece, como já foi dito, na obra de Bally e na lexicología “ estrutural” de Georges Matoré (e de Pierre Guiraud), que estuda configurações do léxico, mas não analisa as unidades do léxico como tais. Com base em procedimentos deste tipo de lexicología “estrutural” , Guiraud14 pôde estabelecer uma série muito complexa de relações para certas palavras: os limites que ele estabelece para a palavra fran­ cesa chat, “gato” , são por ele considerados como o “ campo morfo-semântico” desta palavra, em sua opinião associável a outras duas mil ou duas mil e duzentas palavras. 6.6.2. São muito mais características do verdadeiro estruturalismo e distinguem algumas de suas orientações os conceitos de estrutura paradigmática (pela qual se compreende a estrutura das unidades lingüísticas que estão em oposição imediata entre elas ou, como se costuma dizer, se acham no eixo dos paradigmas ou da “ se­ leção” ) e de estrutura sintagmática (pela qual se compreende a estrutura das combi­ nações, isto é, dos elementos presentes no eixo das “ combinações” ou sintagmas). Estes dois conceitos se referem às estruturas que se podem encontrar na lin­ guagem, entendendo-se que a expressão se move sobre dois eixos: o dos sintagmas ou combinações (melhor dizendo, das co-ordenações, do grego o v w ú o o c j “ coor­ deno” , “ ponho em ordem conjuntamente” ), e o dos paradigmas, isto é, das classes

14 Numa série de artigos publicados no Bulletin de la Société de Linguistique de Pariu.

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finitas (do grego vapábevypa., “ modelo” ) dentro das quais se opera uma escolha em cada momento de falar. Por exemplo, o nosso amigo chegou hoje, enquanto sin­ tagma, tem uma determinada estrutura combinatoria, porque, como ensina a escola elementar, o nosso amigo se combina com chegou hoje, o nosso com amigo, o com nosso, chegou com hoje. Uma representação gráfica desta estrutura, que indique como estes elementos se acham combinados, dará um gráfico em forma de árvore, assim estruturada:

A mesma frase implica determinadas “ estruturas” no eixo dos paradigmas, no qual sempre se operam escolhas imediatas, em qualquer momento da atividade de falar, entre unt elemento que, escolhido, se apresenta efetivamente e, outros ele­ mentos que não se apresentam, enquanto não escolhidos. A estrutura sintagmática se poderá chamar também estrutura in praesentia, enquanto a paradigmática, será estrutura in absentia, consoante uma terminologia já instaurada por Saussure, por­ que nesta um só elemento está presente e se opõe de modo imediato aos elementos ausentes. Na nossa frase, por exemplo, em lugar de o - nosso - amigo, etc., poderse-ia dizer um, aquele, este, nenhum - vosso, seu, teu, querido, bom, ingrato, etc., — conhecido, intimo, parente, colega - chega, chegará, chegou, chegava, partia, par­ tirá, etc. - ontem, amanhã, daqui a um ano, o ano passado, etc. para se ter aquele querido conhecido chegará amanhã ou outras possíveis combinações (nenhum vosso colega partia onten}, este teu parente chegou o ano passado, etc.), conforme as es­ colhas lexicais e gramaticais que se façam, de momento a momento, no falar. É óbvio que, do ponto de vista gramatical, se se escolhe amigo, se elimina imediata­ mente amiga, enquanto do ponto de vista lexical, se queremos exprimir a idéia de que “ o nosso amigo chegou hoje” , devemos excluir, do âmbito das possíveis esco­ lhas: um, nenhum, enquanto diferentes de o; vosso, teu, seu, deles, enquanto dife­ rentes de nosso; partia, partirá, enquanto diferentes de chegou; ontem, amanhã, o ano passado, enquanto diferentes de hoje. De fato, se são possíveis várias combina­ ções sintagmáticas, as escolhas paradigmáticas excluem a priori todas aquelas das

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q u ais nasce u m sig n ific a d o d ife re n te . A ssim , se a e sc o lh a se re fe re a to d a a o ra ç ã o , escolher-se-á e n tre a o ra ç ã o p o sitiv a o u a firm a tiv a e a n eg ativ a, p e la q u a l a o ra ç ã o in te ira o nosso amigo chegou hoje se o p õ e a o nosso amigo não chegou hoje-, o u e n ­ tã o as d u a s o ra ç õ e s c o n tê m ig u a lm e n te u m a d e c la ra ç ã o , em fo rm a p o sitiv a e em fo rm a n eg ativ a e se o p õ e m , p o r ta n to , ig u a lm e n te , à o ra ç ã o in te rro g a tiv a chegou

hoje o nosso amigo? Além disso, o sintagma o nosso amigo poderia opor-se a o amigo nosso, por­ que, em português, à diferente posição do adjetivo em relação ao substantivo, antes ou depois dele, pode corresponder significado diferente: o nosso amigo não subli­ nha o fato de que não seja também seu, enquanto o amigo nosso (exceto em deter­ minadas circunstâncias em que a posposição ou anteposição do possessivo é obriga­ tória, como, entre outras, em construções do tipo Nossa Senhora, filho meu não faz isso, etc.) pode indicar que se trata de amigo nosso e não seu. Por exemplo, dirse-á este é um livro meu, e não de um outro autor, do mesmo- modo que Dante disse o amigo meu, e não da ventura (l'amico mio, e non de la ventura, Inferno, II. 61). Analogamente entre o homem pobre e o pobre homem se observa a escolha entre duas estruturas diversas, porque os dois sintagmas têm significado diverso. Assim, também, se dizemos a senhorita tem um vestido verde, não se elimina imediatamente elegante, feio, bonito, etc. (isto porque o vestido poderia ser verde e bonito, verde e elegante, verde e feio, etc.), mas sim branco, vermelho, azul, etc. Se numa frase se encontra a palavra dia, elimina-se imediatamente nessa posição hora, semana, ano, etc. Enfim, o número gramatical é, na maior parte das línguas conhecidas, singular e plural, mas, se uma língua, além desses números, possui tam­ bém o dual, a escolha será feita entre essas três possibilidades em vez de entre duas. Este é o sentido que damos ao termo paradigma. 6.6.3. Ao contrário, por estrutura paradigmática ou estrutura opositiva entende-se a estrutura interna dos elementos de um paradigma, pelos quais estes são em parte semelhantes e em parte diferentes: todos os elementos de um paradigma contêm, de fato, uma parte igual que é a base do paradigma e partes diferentes, mediante as quais estes elementos se opõem uns aos outros. Por exemplo, no caso de singular e plural, apreendemos imediatamente a dife­ rença entre os dois números gramaticais, mas no paradigma existe, antes de mais nada, um fato unitário, o número gramatical, que pode ser singular ou plural. No caso de chegou, chega, chegará, etc., todas estas formas pertencem ao verbo chegar e as diferenças dizem respeito ao tempo do verbo. No caso de vermelho, verde, etc., o conceito básico é a cor em geral, não especificada, e as diferenças estão dadas de acordo com as diversas especificações. Num paradigma fonético, se /b/ se opõe diretamente em português a /p/e/m /, o elemento comum encontra-se na (bi)-labialidade, ao lado da qual existem diferenças específicas. No paradigma, portanto, há sempre um elemento unitário, um tertium comparationis, e a seu lado elementos diferenciais. O resultado de uma análise em ele­ mentos unitários e diferenciais constitui-se numa estrutura paradigmática, que co-

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loca em evidencia a composição das unidades, partindo-se do pressuposto de que as unidades são analisáveis em um paradigma determinado. Pela sua estrutura paradig­ mática, /b / é bilabial como /p / e como /m /; é oral como /p/, mas não como /m /; é sonoro como /m / mas não como /p /; é oclusivo como /p/, mas não como /m/. Des­ tarte, a unidade /b/, embora que única, ê composta de outros elementos menores, que ela evidentemente implica, mas que não se apresentam separadamente: a “ bilabialidade” , a “ sonoridade” , a “ oralidade” não se apresentam, com efeito, sozinhas, mas somente combinadas numa determinada unidade. Analogamente, o “presente” não se apresenta sem tempo verbal, nem o “ singular” sem número gramatical, isto é, sem a parte que pode constituir o elemento comum, o tertium comparationis, de diversas unidades ou também de todo um paradigma como, referindo-se ao que cha­ mava “base de comparação” , observou Trubetzkoy nos seus Fundamentos de fo n o ­ logía1s . 6.6.4. A estrutura paradigmática pode ser chamada também opositiva, porque revela as oposições que existem no interior de um paradigma; a sintagmática não é opositiva, porque nela os elementos não se opõem, mas vêm combinados para for­ mar outras unidades superiores. Por exemplo, dois “ morfemas” combinam-se numa unidade que será uma palavra; duas ou mais palavras, por sua vez, passam a uma outra unidade que será o grupo de palavras; da combinação de grupos de palavras teremos unidades ainda superiores (orações), e da combinação destas, pelo menos segundo alguns, os períodos. 6.7. Também as funções consideradas nestes dois tipos de estruturas são dife­ rentes. A estrutura paradigmática diz respeito às funções próprias de cada elemento. Por exemplo, o singular diz respeito ao elemento amigo, e ao mesmo tempo é uma função diferente da de amigos, que não ocorre onde se apresenta o elemento amigo. A estrutura sintagmática, ao contrário, diz respeito às funções de um ele­ mento em relação a outro, também presente. Por exemplo, as funções “sujeito” , “ predicado” , são sempre funções relacionais porque o elemento “sujeito” é uma função de “ predicado” , e, vice-versa, o elemento “ predicado” é uma função do ele­ mento “ sujeito” . As funções de certos elementos em relação a outros podem ser estabelecidas em qualquer nível da análise lingüística, ainda que isto nem sempre seja evidente. Por exemplo, no latim aquilae (genit. sing.), a função paradigmática é representada pelo genitivo, enquanto não-nominativo, não-acusativo, etc., ao passo que a função sintagmática indicará que aquil- serve de base e -ae de desinencia, mais precisa­ mente de genitivo e, como tal, pertence a um paradigma. A função de -ae em rela­ ção a aquil- não será a de um “ genitivo” mas, por assim dizer, de um “genitivador” : ■ae, de fato, não é “genitivo” , e a função de -ae é a de um “genitivador” , isto é, de ' 5 Veja-se, na tradução italiana da obra de Trubetzkoy, a pág. 81. Há desse livro versões para o francês (aí, a pág. é 69), inglês (p. 68) e espanhol (p. 60).

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um elemento que forma o genitivo de palavras do tipo de aquila, em combinação com bases como aqui 1-. Analogamente, quando se afirma que o artigo tem a função de “ atualizar” ou de transformar um “ conceito” em um “ objeto” , não se está diante de uma função paradigmática, mas sim de urna sintagmática, ou seja, a função que de “ atualizador” tem, por exemplo, o o em o amigo, em relação a amigo. Em sentido paradigmático, por outro lado, o amigo se opõe como “ atualizado” a amigo, que é um “ não atuali­ zado” ou “ virtual” (como também se opõe a um amigo, este amigo, etc., que, além da atualização, contêm outras determinações). No que concerne às funções sintagmáticas que são atribuídas aos adjetivos, deveríamos aqui distinguir os especificativos e os explicativos. Por exemplo, em o vasto oceano, o adjetivo vasto é explicativo, porque não especifica um tipo de oceano entre muitos, mas revela somente uma qualidade contida e implícita em oceano. Se, entretanto, existissem oceanos pequenos e grandes, e se se quisesse indi­ car “grande” em oposição a outros que fossem ""pequenos", deveríamos dizer o oceano vasto, e vasto seria, neste caso, adjetivo especificativo. 6.8. 0 estruturalismo europeu e o americano anterior à gramática transformadonal compreendem por estrutura os dois tipos acima discutidos, privilegiando, po­ rém, de modo particular, a estrutura paradigmática. Ou, melhor, no estruturalismo europeu entende-se por estrutura o resultado da análise das unidades, isto é, a estru­ tura interna das diversas unidades. 0 mesmo acontece no estruturalismo bloomfieldiano, malgrado se identifiquem aqui dois conceitos que é preferível manter dis­ tintos, o de “ classe” e o de “ paradigma” . Dois são, portanto, os tipos possíveis de estrutura, ainda que o estruturalismo europeu, pondo em destaque a estrutura paradigmática, se interesse sobretudo por constituir paradigmas e por analisar as unidades em elementos mínimos que, salvo casos particulares, não se apresentam como unidades e que, como veremos, se cha­ mam “ traços distintivos” das unidades mesmas. Ao contrário, a gramática transformacional compreende por estrutura exclu­ sivamente a estrutura sintagmática ou combinatoria. Isto é muito significativo, por­ que mostra a diferença entre o estruturalismo propriamente dito e a gramática transformacional. A gramática transformacional, embora concorde, quanto à defi­ nição de estrutura sintagmática, com as outras correntes estruturalistas (pois tam­ bém considera como “estrutura” a própria constituição das orações), propõe-se, porém, reduzir a estruturas sintagmáticas do mesmo tipo também fatos que o estru­ turalismo propriamente dito considera como paradigmáticos. E clássico o exemplo da oposição entre oração ativa e oração passiva. Em ‘ lugar de constituírem um paradigma, constituirão para os transformacionalistas dois sintagmas diferentes, pois a oração passiva, segundo o modelo mais recente da gramática transformacional, teria o mesmo esquema da oração ativa, com mais um índice de passividade, a ser considerado como um elemento combinado com os outros. Ainda no nível da oração, a oração interrogativa teria no núcleo uma estru-

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tura análoga à da oração afirmativa, com mais um elemento “ operador” que ficaria combinado com o núcleo: a interrogação. Por este motivo, fatos de oposição são reduzidos na gramática transformacional a fatos de combinação e, se isto não é pos­ sível, apresentam-se pelo menos de modo análogo, como acontece no caso da aná­ lise lexical. 6.8.1. Nesta, de fato, não se apresentará o significado, mas a sua interpretação, entendida em cada uma de suas fases como escolha entre diversas possibilidades combinatorias. Procede-se quase como numa divisão, em que, em lugar de dividir, se faz uma seleção, exatamente aquela que se apresenta em cada momento da inter­ pretação. Assim, interpretando um exemplo já bem conhecido, o do inglês bachelor16, perguntar-se-á: ser humano ou animal? Se animal, tratar-se-á de “ uma foca macho sem companheira” ; se humano, apresentam-se duas possibilidades: “ título aca­ dêmico” ou “ não título acadêmico” ; se não se trata de título de estudo, dever-se-á escolher entre “ adulto” e “ não adulto” ; se adulto, será um “ solteiro” ; se não é adulto, uma espécie de “ ajudante de cavaleiro” , o empregado de um senhor, seu “ escudeiro” . Também a estrutura “semântica” de bachelor (ou seja, a estrutura da interpretação deste significante) é apresentada portanto como sintagmática, como se se tratasse da combinação efetiva de elementos, e figurada com o seguinte gráfico: bachelor ser humano

(“ solteiro” )

animal

(“ escudeiro” )

Os fatos paradigmáticos passam assim, na gramática transformacional, a fatos sintagmáticos (de combinação), e aqueles que não são passíveis de tal maneira de representação, tomam-se matrizes de elementos, como se pode observar a propósito da fonética e das chamadas regras de subcategorização. 16 Veja-se de J. J. Katz e J. A. Fodor, The Structure o f a Semantic Theory [A estrutura de uma teoria semântica), in Language, vol. 39, 170-210, 1963 e depois inserido em TheStructure o f Language, coletânea preparada por estes dois autores, Prentice-Hall, New Jersev, 1964.

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6.9. Concluindo, entre os três diferentes conceitos de estrutura, o configurativo está, de certo modo, à margem do estruturalismo; o paradigmático é típico do estruturalismo propriamente dito e em particular do europeu; o sintagmático, en­ tretanto, é privilegiado especialmente pela gramática transformacional gerativa.

7 O Princípio da Funcionalidade

7.1. 0 estruturalismo ou, melhor dizendo, o estruturalismo propriamente dito.se atribui a finalidade de examinar e analisar a língua nos seus elementos funcionais e estabelecer os paradigmas das unidades da língua, depois de tê-las reduzido aos ele­ mentos mínimos, com um procedimento de identificação e de análise das mesmas unidades. A orientação geral é, portanto, analítica. O problema que enfrenta este tipo de estruturalismo analítico se diferencia, destarte, daquele que enfrenta a gramática transformacional gerativa, que consiste, ao contrário, em apresentar, de modo coerente e mediante regras, a técnica que o falante usa na execução do falar, a sua competência, entendida como sendo o saber concemente à formação das frases “ corretas” . Também os outros tipos de estrutu­ ralismo concebem a língua como saber, e identificar e analisar as unidades da língua consiste, por isso, em identificar e analisar as unidades do saber lingüístico do fa­ lante. A diferença reside, todavia, na orientação: o estruturalismo enfrenta o pro­ blema da descoberta e da análise da língua (também de uma língua desconhecida), enquanto a gramática transformacional gerativa enfrenta o problema de apresentar este saber sob a forma de regras de “ produção” das frases (excluindo, portanto, o caso de uma língua desconhecida). Na realidade trata-se de duas metodologias, em certo sentido, paralelas e que poderiam cooperar; entretanto, o estruturalismo tradicional identifica a descrição com a análise, enquanto a gramática transformacional gerativa identifica a descri­ ção com a apresentação, sem, na realidade, oferecer métodos de análise ou de iden­ tificação. Nos primordios do estruturalismo, mais uma vez Gabelentz havia visto clara­ mente que a gramática, a descrição da língua, devia ter dois aspectos, um analítico e outró sintético, e, além da necessidade analítica de descobrir as unidades simples, afirmara, com respeito à parte da gramática que chamou “ sintética” , que se fazia

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necessário estudar a maneira pela qual as unidades são combinadas e usadas no falar,, estabelecendo as regras de produção das frases (entre as quais também as “ transfor­ mações” ). 7.2. São quatro os princípios do estruturalismo analítico que, embora não tenham sido nunca expostos de maneira explícita, se podem deduzir das diferentes afirma­ ções dos estruturalistas: *

a) o princípio da funcionalidade, com um importante corolário que diz res­ peito ao significado, e precisamente à postulação do caráter unitário do próprio significado, da qual depende intimamente o método da comutação; b) o princípio da oposição, que tem como corolário metodológico a análise em traços distintivos; c) o princípio da sistematicidade; d) o princípio da neutralização. Os primeiros três princípios caracterizam o estruturalismo em geral; o quarto é próprio do estruturalismo europeu e, conquanto uma conseqüência dos outros, não é reconhecido pelo estruturalismo norte-americano que, limitando-se em geral à parte material da linguagem, apresenta os casos de neutralização como de “ dis­ tribuição lacunar” . 7.3.1. Pode-se formular do seguinte modo o princípio da funcionalidade: uma uni­ dade “ material” qualquer existe como unidade funcional duma língua - quer dizer, como fafo de langue e não apenas como fato de parole (ou como fato de langue não funcional) — se na mesma língua lhe corresponde também uma unidade de signifi­ cado, e vice-versa. Funda-se este princípio, portanto, no postulado da solidariedade entre os dois planos da linguagem: o da expressão ou significante, ou plano “ ma­ terial” da linguagem, e o plano do conteúdo ou do significado, ou plano puramente mental da linguagem. A uma unidade de língua no plano da expressão, deve (em geral) corresponder uma unidade no plano do conteúdo, diferente das outras uni­ dades da mesma língua; e a uma unidade de conteúdo deve (em princípio) corres­ ponder uma unidade de expressão. 7.3.2.1. Se tomarmos por exemplo o italiano, em Vamico (o amigo), il libro (o li­ vro), Io studente (o estudante), teremos três elementos materiais bem identificáveis, diferentes no plano da expressão ( /' il, lo). Mas a estes três elementos corresponde no plano do conteúdo um valor único e não três valores diferentes; por isso, do ponto de vista da langue, eles constituem apenas uma variação não funcional do plano da expressão. Se não há variação no plano do conteúdo, trata-se de uma só unidade de expressão, da qual se dirá: a unidade — o morfema, que é o artigo mas­ culino — é constituída, em italiano, dessas três formas — l \ il, lo —, que têm uma particular distribuição segundo o contexto fônico. Estas três formas constituem

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uma unidade só e, segundo a terminologia que os lingüistas norte-americanos usam nestes casos, são “ alomorfes” de um só “ morfema” . 7.3.2.2. Em inglês, na formação do plural, encontram-se estas trés realidades fóni­ cas: [-s] (em books), [-z] (em wings), [-iz] (em roses). Estes três elementos diferen­ tes constituem, porém, um só morfema, porque entre eles não existe diferença de conteúdo. Tal tipo de correspondência permite distinguir imediatamente entre unidade funcional e variante-, embora não se ignore a diferença material, como no plural inglês e em outros casos, do ponto de vista funcional trata-se da mesma coisa. É preciso, de fato, distinguir o plano funcional ou das unidades funcionais, do plano das variantes, que podcm ser obrigatórias, como no caso da formação do plural em inglês e, na maior parte dos contextos, também no caso do artigo singular masculino em italiano, ou então facultativas, como por exemplo em alguns usos do artigo masculino singular em italiano. Para alguns falantes que dizem indiferen­ temente lo ou il psicólogo, as duas variantes são facultativas, enquanto para aqueles que adotam somente lo psicólogo, como exige aliás a gramática normativa, a vari­ ante lo é -obrigatória. Não existe, entretanto, variante facultativa, pelo menos no uso “ normal” do italiano, diante do chamado s- “ impuro” e do z: no uso “ normal” diz-se lo studente (ainda que, no plural, alguns usem também i studenti), assim como se emprega lo zio (apesar de que regionalmente haja quem utilize il zio, como Leopardi escreveu il zappator (II sábulo del villaggio, verso 29). Variantes facultati­ vas ocorrem, todavia, com palavras que começam' com grz (ilgnocco ou lo gnoccol) e dizem exclusivamente respeito ao plano da expressão, correspondendo-lhes, como já se afirmou, um conteúdo unitário e específico. «

7.3.3.1. O mesmo vale, naturalmente, também para as unidades e variantes do con­ teúdo. Por exemplo, o imperfeito e o pretérito (“ passato remoto” ), com funções diversas em italiano, a qual conteúdo correspondem em inglês ou em alemão? Cer­ tamente, aquilo que se exprime em italiano pelo imperfeito ou pelo “ passato re­ m oto” , pode ser expresso em determinado texto também em inglês ou alemão, e assim, no momento de traduzir estas línguas, se deverá usar o imperfeito ou o “ pas­ sato remoto” italiano, segundo os casos, Esta diferença, entretanto, não é funcional em inglês e em alemão, se bem que ambos os significados sejam possíveis no nível das “ acepções” , e a ausência de funcionalidade se deve à inexistência de duas for­ mas diferentes de imperfeito e de pretérito em inglês e em alemão. Uma diferença que não se acha na língua inglesa ou na língua alemã (entendida como langue, como sistema) pode, entretanto, ser encontrada na parole, em textos de ambas as línguas. 7.3.3.2. Do mesmo modo, o presente de um verbo italiano como passare pode assu­ mir uma ampla série de acepções na fala (isto é, em termos saussurianos, na parole-, de agora em diante língua e fala corresponderão, respectivamente, a langue e pa­ role). Em o tempo passa temos um presente eterno, ilimitado; em passa uma

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nuvem, ao contrário, um presente limitado ao hic et nunc, com valor “ semelfactivo” , isto é, de algo que acontece uma só fez. Em o ônibus passa por aqui, enfim, o valor de passar é “ freqüentativo” , ou “ iterativo” , (ação freqüente ou repetida). Tais valores, ainda que existindo efetivamente e sendo encontrados em determinados textos, em determinados atos de fala, não são, porém, funções do italiano enquanto língua, porque a diferença não é marcada através de formas diferentes, mas uma só forma, segundo os contextos, pode assumir esta ou aquela acepção. Concluir-se-á, portanto, que em italiano, como língua, não existe diferença entre semelfactivo, iterativo e freqüentativo, porque uma mesma forma pode exprimir valores diversos, constituindo variantes contextuáis do significado e não o significado de uma forma do verbo. Analogamente, em um texto inglês ou alemão os valores do imperfeito e do “ passado remoto” são variantes de conteúdo do ponto de vista das respectivas línguas, porque se exprimem mediante uma única forma. 7.3.3.3. Consideremos agora uma ação verbal no seu ato de desenvolvimento entre dois pontos (que podem também coincidir), seja, por exemplo, o ato de “escrever'’. Em italiano, com sto, stavo scrivendo, se indica, em geral, uma ação não interrom­ pida ou também uma ação duradoura interrompida de quando em quando. Em es­ panhol e português a ação considerada entre dois pontos se exprime, como em ita­ liano, com a perífrase com estar - estoy escribiendo / estou escrevendo (ou a escre­ ver), estaba escribiendo / estava escrevendo (ou a escrever) - enquanto a ação duradoura interrompida, isto é, que se desenrola com algumas interrupções, através da perífrase com andar, por exemplo, anduve escribiendo / andei escrevendo. En­ quanto em italiano só se depreende do contexto se se trata de ação interrompida ou ininterrupta, e a diferença de conteúdo não é funcional, porque não é realizada por formas específicas em nível de expressão, em espanhol e português temos, neste caso, dois fatos funcionais diferentes, com dois diferentes conteúdos e duas dife­ rentes expressões. 7.3.3.4. As diversas “ acepções” das formas lingüísticas, de que se ocupava a lin­ güística tradicional e que a corrente neogramática identificava e procurava reduzir a tipos diversos, devem ser consideradas como fatos próprios de outro plano, o das variantes, as quais correspondem em cada caso a uma só unidade funcional. O as­ pecto novo e interessante a ser notado na declaração “existem variantes e existe unidade funcional” , é o afirmar-se que a unidade funcional não é simplesmente a soma das variantes, mas constitui um outro plano, e que este plano, enquanto pró­ prio da língua, é realmente importante, enquanto o outro, próprio da fala, depende da situação ou do contexto. O verbo achar (it. trovare) no sentido de “ acabar de procurar” , é momentâneo; não se poderá dizer, portanto, eu acho agora o relógio que perdi, mas achei, e menos ainda se poderá dizer estou achando o cão perdido; achava, entretanto, se usará no sentido de “ achar diversas vezes” , e o verbo achar ocorre ainda em contextos nos quais significa “ considerar, julgar” (e em tal acepção se poderá dizer agora acho que você procedeu bem) ou “ descobrir, vir a saber”

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(por exemplo, acho neste livro idéias diferentes das habituais). Todos estes fatos pertencem à gramática das línguas aqui exemplificadas, enquanto são implícitos no valor léxico do verbo, que se deve considerar parte essencial da gramática de uma língua, a qual já não se limitará, portanto, à morfología e à sintaxe funcional dessa mesma língua, mas deverá prever também as diversas variantes do conteúdo, reali­ zadas em contextos bem definidos. 7.3.3.5. Ainda um exemplo: é possível exprimir em italiano ou em português um plural limitado a dois? Sim {dite pere / duas peras, due mele / duas maçãs, due libri / dois livros, e também due virtü / duas virtudes, por exemplo em quell’uomo ha due virtü, modestia e pazienza, ma non ha una terza virtü, la bontà / aquele homem tem duas virtudes, modéstia e paciência, mas não tem uma terceira virtude, a bon­ dade), usando explícitamente due / dois-duas-, mas em si amano molto / amam-se muito, due / dois estío implícitos, se sabemos que esta expressão corresponde a quei due si vogliono molto bene / aqueles dois se querem muito bem. Existe, por­ tanto, no italiano e no português o plural limitado a dois, ou seja, o dual? A res­ posta é obviamente não, porque, além de ambedue, ambo (que agora são antiquados e já o eram talvez quando Dante escrevia Am bo le man per lo dolor mi morsi. In­ ferno XXXIII, 58) e entrambi, ao lado do portugués ambos (antigamente e hoje em desuso: ambosros dois, ambos de dois, ambos a dois e os dois ambos), não existem nestas línguas formas específicas que exprimam este número. O dual existia porém como categoria e unidade funcional, por exemplo, no grego ático e no sánscrito, que tinham formas específicas para exprimir este conteúdo no nome e no verbo; e algumas línguas têm até um trial, isto é, referência especial a três. 7.3.4.1. Por homofonia pode acontecer que a formas idênticas correspondam va­ lores diversos. Lei, por exemplo, em italiano, tem pelo menos dois significados: lei “ ela” , e lei, “ o senhor, a senhora, você” (por exemplo, em: Lei, professore . . . , “o senhor professor” )- E nalguns contextos até pode haver ambigüidade; por exem­ plo: lei [“ela” ] dice delle cose giuste e lei [“ professore” ] dice delle cosegiuste. Pela forma material destas palavras poder-se-ia supor que se trata da mesma unidade fun­ cional. Mas isso só é lícito se também os conteúdos puderem ser reduzidos a um sig­ nificado unitário; se não, é preciso considerar os contextos nos quais os dois con­ teúdos aparecem. E, no caso do nosso exemplo, o lei, pronome de tratamento res­ peitoso (como em lei, professore) aparece com freqüência em combinações dife­ rentes das de lei, “ ela” , pronome feminino da terceira pessoa do singular, de ma­ neira que s maioria das vezes não há dificuldade para distinguir o lei que pode ser substituído por voi do lei que não admite esta substituição mas pode ser substituído por um nome comum ou próprio, feminino {la ragazza, Marcella, Giovanna, etc.). Em tais casos (de ambigüidade por homofonia) poder-se-á, portanto, considerar como pertencentes à forma gramatical (ou lexical), além da constituição material das formas lingüísticas, também as suas combinações E para distinguir os signifi­ cados, poder-se-á empregar a técnica das substituições exclusivas. Desta maneira.

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torna-se relativamente fácil estabelecer que se trata de unidades diferentes, não obs­ tante a identidade na constituição material. 7.3.4.2. Certos casos porém são difíceis de resolver. Por exemplo, como estabe­ lecer se caro, em italiano (ou em português), é um ou dois elementos, quer dizer, se o caro de il pane è caro [“o pão é caro” ] é ou não a mesma coisa que o caro de mio caro Luigi [“ meu caro Luís” ]. Poder-se-ia observar que também neste caso as combinações são diferentes, mas a diferença não será simples e obrigatoriamente exaurida do contexto; com efeito, em certas situações, mesmo raras, se poderá dizer que alguém reputa “ caro” (“ querido” , “ amado” ) o pouco pão que tem, mes­ mo se este não custa muito, e que um amigo foi “caro” para alguém que gastou muito dinheiro com ele. O problema subsiste, portanto, para diversos casos, nos quais é duvidoso responder se se trata de uma ou de duas unidades de conteúdo, assim como, no nível da expressão, se poderá perguntar se um dado som corres­ ponde a um só fonema ou a dois fonemas em tal ou qual língua. Tais casos são to­ davia marginais. 7.4.1. Muito mais importante é que, como já se disse, o princípio da funcionalidade implica o corolário do significado unitário. Com efeito, se, dada a solidariedade dos dois planos da língua, para que haja diferença funcional de significado, deve existir também diferença de expressão (pelo menos nas combinações que as formas admi­ tem), não é menos necessário admitir que também as diferentes acepções possíveis duma mesma forma pertencem a uma única zona do significado e que tudo aquilo que pertence a esta zona constitui manifestação do mesmo significado, como valor de língua. Distinguir-se-á, justamente, entre significado e acepção, entre significado funcionalmente autônomo — ou “ significado de língua” — e “ significado de fala” , ou entre significado constante e ocasional. Isto, como princípio, parece simples, mas do ponto de vista descritivo é complicado. Vejamos que procedimento seguir para identificar um significado unitário, isto é, em que consiste a unidade do signi­ ficado de uma forma lingüística. 7.4.2. É muito difícil, por exemplo, reduzir à unidade cada um dos tempos do verbo. Assim, o imperfeito, em italiano e português, pode indicar ação repetida ou ação única (e até momentânea), e mesmo uma ação hipotética: da ragazzo leggevo spesso quel libro / quando menino, lia freqüentem ente aquele livro; alie tre di stanotte leggevo quel libro / às três da madrugada lia aquele livro ; se ieri lo compravo, oggi leggevo quel libro / se o comprava ontem, hoje lia aquele livro. Não obstante isto, estas acepções, à primeira vista heterogêneas (e o elenco de variedades não se esgota aqui) podem ser reunidas num valor único de “ não atual” , em oposição ao plano do presente (pretérito — presente — futuro), enfeixado sob o valor único de “ atual” . Em outros casos, o significado unitário pode ser interpretado como aquele que justifica (pode explicar) as variantes (acepções), ainda que não as “ contenha” . Certo é, por outro lado, que partindo das variantes não se chega nem a justificar um

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valor unitário nem tampouco a explicar o fato de que os falantes, de um modo ou de outro, têm dele conhecimento e intuição, dado que usam para essas acepções a mesma forma. Esta afirmação vale também para os casos em que as variantes, ou pelo menos algumas das variantes contextuáis, são incomparavelmente mais ricas do que o valor atribuido ao significado que se poderia apontar como fundamental e responsável pelas variantes mesmas. Por exemplo, qual é o valor unitário do dimi­ nutivo em italiano e portugués? Se nos textos o diminutivo tem valor afetivo, cari­ nhoso, irônico, etc., não significa necessàriamente uma diminuição real do objeto designado. Também acerca de uma casa muito grande, alguém que a considere com afeto (ou com ironia) dirá: “ Que casinha!” / Che casetta! O diminutivo professorino / professorzinho não implica necessariamente a baixa estatura do professor em questão; pode se tratar de uma diminuição subjetiva, correspondente a um modo afetuoso de apresentá-lo, adotado por exemplo, pela sua mãe, a sua mulher ou a sua amada. Pois bem, estes diversos valores que se podem encontrar no uso do diminu­ tivo, e que vão do afeto até a ironia, não podem se justificar reciprocamente nem podem justificar um significado unitário. Com efeito, são às vezes até contraditórios entre si (por exemplo Che beü'omino\ / Que belo homenzinho\), pode ser dito acerca de um menino bom e sério, no sentido positivamente afetivo, ou de um ho­ mem que fez muitas trapaças, no sentido irônico-depreciativo, e portanto negativa­ mente afetivo) e não apresentam nenhuma unidade. Pode-se, pelo contrário, consi­ derar como significado fundamental (primário) o da diminuição objetiva, porque este pode justificar as variantes subjetivas e porque se pode demonstrar que, na falta de outros elementos contextuáis, a interpretação imediata é, precisamente, a da di­ minuição objetiva. Por exemplo, se ouvimos dizer alberello / arvorezinha, casetta / casinha, pensamos imediatamente numa árvore pequena e numa casa pequena. Mas a diminuição objetiva fica, por assim dizer, suspensa, e é substituída por uma dimi­ nuição subjetiva, quando as coisas são apresentadas com intenção como menores do que realmente o são, como quando uma mãe diz do seu filho, em tom afetuoso, il mio professorino / o meu professorzinho, ou quando a diminuição só pode ser qualitativa e é, por exemplo, uma evidente manifestação de desprezo como em: quella ragazza fa la santarellina / aquela moça se faz de santinha). A suspensão da diminuição objetiva é óbvia quando o objeto a que se refere está presente e, preci­ samente, não é pequeno: por exemplo, um proprietário pode dizer a um conhe­ cido, mostrando-lhe a casa bastante espaçosa que construiu: ecco la mia casetta / eis a minha casinha. E os conceitos abstratos podem ser diminuídos apenas quali­ tativamente (un vizietto, una bellezina / um viciozinho, uma belezinha) assim como certos nomes de matéria ou massa,1 porque cada uma de suas partes é chamada do mesmo modo: uma parte pequeníssima de ouro, de farinha, etc., tem o mesmo nome de todo o ouro, de toda a farinha do mundo. 1 Tal denominação ocorre também nas gramáticas do português: “Nomes dc matéria ou massa são aqueles que denotam substâncias sem limites definidos, as quais não constituem unidades: água. ferro. ouro. ar vinho” (M. Said Ali, Gramática secundária, 53). (E.B.)

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

7.4.3. Uma interpretação análoga parece ser válida também para significados dis­ postos em certa ordem, onde é necessário supor a passagem de um significado pri­ mário a um significado secundário e assim por diante. Para julgar qual possa ser o significado primário do reflexivo, consideram-se as frases:

A

a) João se lava b) João e Ana se esbofeteiam c) a letra d se escreve assim

A

^ A

reflexivo próprio B

reflexivo recíproco reflexivo impessoal

No caso a), a ação recai sobre o agente que é também objeto; no caso b), a ação é reciprocamente realizada pelos dois sujeitos; no caso c), a açáo não é reali­ zada pelo sujeito. Será possível uma unidade entre esses diversos usos do reflexivo? Também aqui parece que se pode interpretar o significado unitário como significado básico que se apresenta de maneira imediata, se não fica suspenso pelo contexto. Com efeito, admitindo que o significado próprio seja o do caso a), se passará ao se­ gundo significado, recíproco, se no contexto se apresentam dois agentes e se é im­ possível que a ação volte para um só deles ou que seja entendida como individual­ mente reflexiva. Dada a frase: os homens se escrevem frequentemente, pelo fato de se excluir que os homens sejam o objeto direto da ação de escrever ou que cada um se escreva a si mesmo, como também a frase signifique que é hábito escrever as pa­ lavras “ os homens” , a ação indicada só pode ser recíproca: A escreve a B e B es­ creve a A. Se, ao contrário, também a segunda possibilidade é excluída porque o sujeito não pode ser agente, se passará ao terceiro significado e teremos uma frase do tipo c), a letra d se escreve assim, Roma se escreve com R maiúsculo, porque o conhecimehto da realidade nos exclui tanto a interpretação reflexiva como a recí­ proca (por exemplo, no caso de: as coisas se escrevem quando se pensa nelas). Que não se trata de um fato de língua mas que esta passagem de uma interpretação a outra é determinada pelo nosso conhecimento da realidade, demonstra-o a eventua­ lidade de imaginar como realidade — uma realidade, obviamente, “ surrealista” e válida apenas como ficção —, o fato de uma letra se escrever a si mesma e dizer por.tanto: “ Olhem, prefiro me escrever assim.” Isto poderia acontecer, por exemplo, em Alice no Pais das Maravilhas. 7.5.í. A comutação é, como já dissemos, o corolário metodológico do princípio da funcionalidade. Dada a solidariedade entre plano de expressão e plano de con­ teúdo da língua, o método que se aplica para identificar as unidades é o de substi­ tuir uma parte da expressão para observar se, assim procedendo, acontece uma mu­ dança também no conteúdo e, ao contrário, o de substituir uma parte do conteúdo para observar se com isto se modifica também o plano da expressão. Se também no outro plano acontece uma mudança, isto significa que foi ultrapassado um limite

O PRINCIPIO DA FUNCIONALIDADE

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funcional, que se passou a uma outra unidade, ou seja, que a diferença introduzida é “ traço distintivo na língua considerada. Se, pelo contrário, no outro plano não acontece nada, isto é sinal de que a mudança no primeiro não é funcional, ou seja, que ficamos dentro da mesma unidade da língua. 7.5.2. Por conseguinte, dados dois (ou mais) elementos de expressão (ou de con­ teúdo) identificáveis como tais, pela prova da comutação podemos verificar se são ou não são funcionais na língua considerada, isto é, se lhes correspondem necessa­ riamente também elementos diferentes de conteúdo (ou, no segundo caso) de ex­ pressão. Por exemplo, há diferença funcional entre Vamico e lo amico, isto é, entre a forma italiana normal neste caso (P) e a forma lo, que aparece em certos contex­ tos e que em outros contextos é mesmo obrigatória? A expressão lo amico não é usual, mas mesmo assim se disséssemos lo amico, o significado não mudaria. Igual­ mente, se disséssemos il amico, poder-se-ia reprovar o “ erro” , mas seriamos enten­ didos do mesmo modo. II, lo, V são, portanto, variantes de expressão, porque, subs­ tituindo uma forma pela outra, não acontece nenhuma mudança no plano do con­ teúdo. Ao contrário, se, em lugar de lo, il, usássemos la, a expressão la amico nos fará pensar em uma senhora que tem, como sobrenome, A m ico: há uma mudança também no plano do conteúdo e, portanto, a diferença entre l ’ - il - lo e la é fun­ cional. Do mesmo modo podemos proceder, do ponto de vista do conteúdo, com as diversas acepções que identificamos nos atos do falar, nos textos: podemos nos per­ guntar o que aconteceria no plano da expressão se no conteúdo substituíssemos um valor A por um valor B. No caso de, no outro plano, não se observar nenhuma dife­ rença, permanecendo inalterada a forma que exprime A também quando se quer exprimir B, diremos que os dois valores pertencem a um único significado de lín­ gua, a uma única unidade de conteúdo, e não constituem duas unidades diversas. Por exemplo, para uma forma como canta podemos identificar nos textos acepções como: “ canta (ora)” / “canta (agora)” , “ canta (una volta)” / “ canta (uma vez)” , “canta (a lungo)” / “ canta (demoradamente)” , “ canta (di solito)” / “ canta (habi­ tualmente)” . Mas essas acepções se exprimem do mesmo modo, através de canta: em italiano (como no português), não há neste caso diferença necessária no plano da expressão; por conseguinte, todas essas acepções pertencem a uma única uni­ dade de conteúdo, constituem um só “ significado” . 7.5.3. Ainda um exemplo: a palavra velho / vecchio pode-se referir, em português e em italiano (e o fato pode repetir-se igualmente em outras línguas), a um homem, a um cão ou a uma casa. Em si, o ser “velho” destas três coisas é, sem dúvida, dife­ rente, mas em italiano e em português exprimimo-lo do mesmo modo, com a mes­ ma palavra velho / vecchio: a prová da comutação mostra que os traços “ dito de pessoas humanas” , “ dito de cães (ou de outros animais)” , “ dito de casas(ou de ou­ tras coisas do mesmo tipo)” não são, portanto, traços distintivos do significado “velho” / “ vecchio” em português e em italiano. Em latim, ao contrário, no pri-

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

meiro caso se dizia senex\ no segundo, vetulus; e no terceiro vetus. O esquema distributivo é o seguinte: port. ital.

velho vecchio

(

dito de pessoas dito de animais e plantas dito de coisas

lat.

senex vetulus . vetus

Em latim, portanto, os traços “ dito de pessoas” , “ dito de animais oü plan­ tas” , “ dito de coisas” eram, neste caso, traços distintivos, pois determinavam três unidades de conteúdo, com expressão diferente. Uma distinção em parte análoga faz-se (ao falar da “ idade” de seres e coisas) em italiano e, até certo ponto, tam­ bém em portugués, para o contrário de “velho” , mas diferenciando apenas, dum lado, “ seres vivos” (homens, animais, plantas) e, de outro lado, “coisas” : giovane - jovem / nuovo - novo. 7.5.4. As línguas diferenciam-se, neste sentido, pelos traços distintivos que utili­ zam, pois o que é traço distintivo numa língua pode não sê-lo em outra, e vice­ versa. Assim, o latim distinguia o “ branco brilhante” do “ branco opaco” . Também em português e em italiano podemos dizer de um branco brilhante como o da neve que é cándido / it. candido. Mas trata-se de latinismos, e a palavra geral e usual para qualquer tipo de “ branco” (brilhante ou opaco) é simplesmente ¿raneo, it. bianco: não temos uma palavra especial para um branco opaco, por exemplo, de um tecido, ou para um branco como o do leite. Isto é, se em portugués ou em italiano substi­ tuimos no significado “ branco” o traço “ brilhante” pelo traço “ opaco” , nada acon­ tece necessariamente no plano da expressão, pois que a palavra usada é sempre branco it. bianco, e somente se quisermos especificar diremos branco como a neve ¡ bianco come la neve, branco como o mármore / bianco como il marmo, como o leite / come il latte, etc. Em latim, ao contrário, para um branco brilhante deve­ mos dizer candidus, e para um branco opaco, albus\ e a distinção se torna ainda mais complexa pela existência de uma terceira palavra canus (lembremo-nos dos cabelos brancos, da canicie, em portugués as cas). Não importa a este respeito, que certos “ significados” sejam pensados e bem conhecidos pela denominação das coisas designadas; o que importa é se a língua faz ou não distinção e se em cada caso existem ou não existem limites semânticos dados na língua mesma. Nós, por exemplo, ainda que distinguindo a avó materna da paterna, chamamos a ambas avós (vovós), it. nonne, enquanto os suecos, não somente as distinguem como nós, na realidade extralingüística, mas as distinguem também lingüísticamente, chamando à avó materna mormor (literalmente “ mãe da mãe) e a avó paterna, farmor ( “ mãe do pai” ). Se, por exemplo, em um livro portu­ guês ou italiano se fala de avó, it. nonna, o sueco que o traduza deverá se pergun­ tar se se trata de avó materna ou paterna e, se o texto não o explicitar, deverá de­ cidir por conta própria se chamará àquele personagem de mormor ou farmor. Ana­ logamente ao traduzir do inglês para o português ou para italiano, devemos intro-

O PRINCIPIO OA FUNCIONALIDADE

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duzir certas distinções, isto é, adotar certos traços distintivos que o inglés normal­ mente n ío utiliza mas que em nossas línguas sáo indispensáveis. No caso de “ ami­ go” / “ amiga” , a distinção poderá ser imediata, se o texto inglés especificar que se trata de urnagirl-friend. Mas, por exemplo, no caso de “ cozinheiro” / “ cozinheiza” , se a diferença nffo é especificada pelo contexto, o leitor português ou italiano po­ derá perguntar-se o que designa cook e, no caso de n ío lhe ser dado, pelo texto, nenhum esclarecimento, deverá decidir a seu critério se traduzirá por cozinheiro, it. cuoco, ou por cozinheira, it. cuaca.

8 Oposição, Sistematicidade e Neutralização

8.1.0. O princípio da oposição se refere ao modo por que se manifesta a funciona­ lidade, que existe na língua se, para cada valor admitido pela mesma língua, há um outro diferente que se opõe àquele. Este princípio se poderia representar esque­ máticamente assim:

Isto quer dizer o seguinte: dadas duas unidades A e B compostas de mais de um elemento, e de tal modo que tenham uma parte em comum (a), estas duas uni­ dades se acharão em oposição uma com a outra e funcionarão como unidades inde­ pendentes pelas partes que não possuem em comum (b e c). Trata-se ainda daquilo que dissemos a propósito da comutação, que consiste na substituição de um ele­ mento da expressão por um outro, para ver se o significado muda, ou, ao contrá­ rio, na substituição de um elemento do conteúdo para ver se a expressão muda. Voltando ao nosso esquema, substituamos, uma pela outra, as duas partes ter­ minais de A e B diferentes entre si, para ver o que acontece no outro plano da lín­ gua. Se algo acontecer, o elemento é funcional e, conseqüentemente, o são também estas suas partes. O princípio da oposição corresponde, assim, ao modo de existir da funcionalidade, que não existe como funcionalidade isolada, mas em conse­ qüência da oposição entre diferentes termos da língua. A bem dizer, aplica-se aqui o princípio geral da relação, que afirma que as unidades existem como unidades da língua na medida em que se encontram num sistema de relações.

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

O presente e o futuro, em italiano (ou em portugués), por exemplo, têm uma parte igual e urna diferente, exatamente aquela que determina o valor respectivo de presente e de futuro. No resto, como veremos em breve, são iguais. 8.1.1. Na sua essência, o sistema verbal nas línguas románicas é constituido de acordo com duas linhas de tempo, e não conforme uma só linha, como em outras línguas: a linha da atualidade, em cujo centro está o presente, e a da não-atualidade, em cujo centro está o imperfeito. Sobre cada uma destas duas linhas se podem estabelecer algumas prospectivas nos dois sentidos: um futuro do presente (o fu­ turo propriamente dito) e um passado do presente (o “passato remoto” do italiano ou o pretérito do português, por exemplo), um futuro do imperfeito (o chamado “condicional” ), ao qual em português (mas não em italiano) corresponde como pas­ sado simples do imperfeito o mais-que-perfeito simples (tipo: fizera). 8.1.2. Uma diferença mínima entre duas unidades duma língua chama-se traço dis­ tintivo. Na oposição presente / futuro existe apenas um só traço distintivo, mas em geral as formas e os conteúdos funcionam em mais oposições, por diversos tra­ ços distintivos. A parte comum é cada vez diferente, de modo tal que, mediante um ou outro traço distintivo, uma unidade lingüística funciona em oposição a outros elementos. A consoante italiana /b/, por exemplo, funciona como consoante oral e não nasal em relação a /m /, como oclusiva e não fricativa em relação a /v/, como labial e não dental em relação a /d/, como sonora e não surda em relação a /p /, ao mesmo tempo que a oclusividade, a labialidade e a sonoridade constituem a parte comum de /b/ e /m /; a oralidade, a oclusividade e a sonoridade, a parte comum de /b / e /d /; a oralidade, a labialidade e a sonoridade, a parte comum de /b/ e /v/; a orali­ dade, a labialidade e a oclusividade, a parte comum de /b / e /p/. Em outras palavras, a unidade ¡b¡ funciona em cada uma destas oposições mediante outro traço, en­ quanto o resto, a base de comparação a que nos referimos acima, é diferente em cada caso mas igual para cada oposição. A totalidade das oposições nas quais uma unidade funciona numa língua permite analisar essa unidade nos seus traços distin­ tivos. Assim que, como conseqüência do princípio da oposição, se dirá que uma unidade lingüística é constituída por uma série de traços distintivos, precisamente por todos aqueles traços que a opõem de modo imediato a outras unidades da lín­ gua. Assim, nossa unidade fb/ será, em relação às outras consoantes do italiano: oral + oclusiva + labial + sonora. Portanto, certos elementos constantes numa unidade não são constitutivos dela se não implicam uma oposição a outras unidades. A aspiração, por exemplo, que na maior parte dos contextos da palavra acompanha a pronúncia de /p/, /t/ e /k / em inglês, não é um traço distintivo destas consoantes, porque nenhuma oposi­ ção é caracterizada apenas por este fato; nenhum par de palavras inglesas se dis­ tingue no plano do significado porque uma delas começa com /p/, fi/ ou /k/, aSpi-

OPOSIÇÃO, SISTEM ATI CIDADE E NEUTRALIZAÇÃO

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rados e a outra não: pronunciando table com /t/ aspirado, [th], como efetivamente se pronuncia, ou com /t/ não aspirado, [t], o significado será o mesmo. Analoga­ mente, na pronúncia do italiano central, as vogais que precedem uma consoante simples são longaá, enquanto as que precedem uma consoante dupla ( “intensa”) são breves. Entretanto, quer proferidas longas ou breves, as vogais nestes casos não se opõem, em italiano, a nenhuma outra possível articulação das referidas vogais, ou seja, em italiano, nenhum par de palavras poderia ser distinguido no plano do conteúdo com base na oposição entre vogal breve e vogal longa, diante de con­ soante simples ou dupla, porque, nesta posição, o fato de serem as vogais longas ou breves é obrigatório. 8.1.3. O que se vem dizendo das unidades lingüísticas vale tanto para as unidades da expressão como para as do conteúdo, que também podem ser analisadas em tra­ ços distintivos. Por exemplo, o presente, em italiano, será “ atual” enquanto oposto ao imperfeito, e “presente” enquanto oposto ao passado remoto e ao futuro. Efeti­ vamente, o presente do italiano (e románico) é determinado por uma diferença de plano do tempo ( “atual” / “não atual” ) e, no plano da atualidade por uma dife-* rença de “perspectiva” (passado — presente — futuro). Neste sentido é que o pre­ sente (como qualquer outro tempo do verbo) pode ser analisado com base nas oposições em que ele entra. E se numa língua não houvesse a possibilidade de um tem­ po “inatual” (como o imperfeito románico), o presente não seria “ atual” ; se não ocorresse a possibilidade do futuro, o presente não seria “presente” e ao mesmo tempo não-futuro e não-passado, mas, p o r exemplo, somente um “não-passado” , como acontece com o presente inglês e alemão: de fato, nessas línguas, os tempos não perifrásticos são apenas aqueles que se chamam presente e pretérito, e o pre­ sente, opondo-se somente ao pretérito, funciona simplesmente como “não-pas­ sado” , vale dizer, ao mesmo tempo como presente e futuro. 8.1.4. Os elem entoí que, ao menos em certa posição, são constantes e todavia não constituem uma oposição, e portanto não são funcionais, dizem-se redundantes, e têm uma espécie de função auxiliar, a da redundância, que reforça a função prin­ cipal. Não é portanto completamente exato dizer-se que em italiano não tem im­ portância ser a vogal longa ou breve, visto que, se é verdade que tal oposição, de per si, não permite fazer distinguir duas palavras, no falar, a duração longa ou breve das vogais contribui, todavia, para diferençar melhor ou para fazer prever se a con­ soante seguinte é simples ou geminada e, em certo sentido, pode até mesmo subs­ tituir a sua realização porque, pronunciando uma vogal longa, ainda que depois, por outras razões, a consoante simples seguinte se pronuncie geminada, o signo lingüís­ tico é entendido exatamente em virtude da duração longa da vogal. Dizendo, por exemplo, vocalle (em vez de vocale) mas com um a particularmente prolongado, o significado da palavra se compreenderia perfeitamente, graças à maior duração do a.

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA CERAL

8.2.1. O principio da sistematicidade diz que os mesmos traços distintivos são nor­ malmente usados na língua não uma mas mais vezes, isto é, que um número limi­ tado de traços distintivos, utilizados várias vezes em várias combinações, permite constituir um número de unidades funcionais e superior ao dos próprios traços dis­ tintivos. Com efeito, se os elementos utilizados na língua para a construção das uni-, dades são os traços distintivos, e estes podem ser combinados de diversos modos, há sempre a possibilidade de haver mais unidades que traços distintivos. 8.2.2. Em italiano, por exemplo, a distinção entre consoante surda e sonora não funciona somente no caso da oposição entre /p/ e /b / mas também na oposição entre /t/ e /d/, /k / e /g/, etc. Analogamente, no sistema verbal a oposição entre pre­ sente e imperfeito se repete entre futuro e condicional, e o traço distintivo que funciona na oposição entre presente (faccio) e pret. perf. composto [it. passato prossimo], (ho fatto) funciona também na distinção entre futuro simples e futuro composto [it. fut. anteriore], entre condicional simples e composto, entre imper­ feito e mais-que-perfeito composto [it. traspassato prossimo], entre pret. perf. [it. passato remoto] e “ traspassato remoto” (farò/avrò fatto, farei/avrei fatto, facevo/ avevo fatto, feci/ebbi fatto). Neste sentido, as oposições, ou sejam, as várias unida­ des, estão em relações sistemáticas, e o princípio da sistematicidade consiste no fato de que, normalmente, as mesmas oposições se repetem um número x de vezes e um traço distintivo funciona numa série de casos. Oposições “sistemáticas” (repetidas) ocorrem também no léxico, por exem­ plo, na diferença entre ver, momentâneo, e olhar, durativo, análoga à que existe entre ouvir e escutar. 8.4.0. O princípio da neutralização que, como mencionamos, é típico sobretudo do estruturalismo europeu, toma em consideração precipua as restrições ao prin­ cípio da oposição, constituídas justamente pelos casos de suspensão das oposições, quer dizer de “neutralização” . 8.4.1. Dissemos que duas unidades entre si opostas têm uma parte comum e outra diferente, e dissemos que este tipo de oposição é freqüente nas línguas. No entanto, as oposições têm a miúdo a seguinte forma: uma unidade, é constituída somente pela parte comum de duas unidades e a outra unidade além desta parte, tem algo a mais. De modo que, por exemplo, se dissemos que, no caso de /p/ e /b/, o traço dis­ tintivo é o fato de que /p/ é surdo, se poderia também dizer que /p / é simples­ mente não sonoro, e que /b/, além de tudo o que possui /p/, tem também a sono­ ridade. No léxico, por exemplo, na oposição dia/noite, a primeira unidade pode significar também dia e noite juntos (24 horas), ao passo que o segundo significa somente noite, e nunca dia. Na gramática, o masculino em italiano (e em portu­ guês) não se opõe ao feminino por conter um traço distintivo particular, mas só por não ser feminino, ao passo que o feminino é caracterizado por um traço distintivo “ feminino” ; o masculino, de fato, pode ser usado também quando não se faz neces-

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sário distinguir o gênero gramatical, enquanto outro tanto não se pode dizer do feminino. Lendo Gli studenti dovranno sostenere un certo numero di esami {Os estudantes terão de prestar certo números de exames) ninguém pensa que se trate somente de estudantes homens, mas que também a frase inclui as estudantes, ao passo que, se escrevêssemos Le studentesse dovranno . . . (As estudantes terão — ), ninguém poderia pensar que os estudantes homens também fossem obrigados a pres­ tar aquele número de exames. Neste sentido, o masculino funciona como termo negativo da oposição como não fem inino, ao passo que o feminino é sempre e ex­ clusivamente termo positivo. Até um termo como uomo (homem) pode assumir um sentido indeterminado. Dado um título como L ’uomo, questo sconosciuto (O ho­ mem, esse desconhecido), quem teria pensado nos anos em que o livro correspon­ dente teve muita aceitação, que se tratasse somente do homem, e não também da mulher, isto é, que não se tratasse do ser humano em geral independentemente do sexo? 8.4.2. O termo caracterizado ou “marcado” , que tem algo a mais além da parte comum, se chama termo positivo ou “intensivo” , enquanto concentrado sobre um valor determinado, ao passo que o outro será dito negativo ou extensivo, enquanto capaz de assumir os dois valores. O termo que só contém a parte comum pode tam­ bém ser chamado “neutro” , porquanto não implica necessariamente o contrário do outro. Por exemplo, se dissermos i figli e le figlie, é claro que distinguimos os ho­ mens das mulheres; se dissermos i figli, aludimos indiferentemente a eles e a elas. Portanto, enquanto será razoável dizer/ figli stiano a destra e le figlie a sinistra, não será necessário dizer i genitori si preoccupano dei figli e delle figlie, e será pelo me­ nos ambíguo dizer i figli stiano a destra e a sinistra, se quisermos distinguir entre filhos e filhas, ao passo que será perfeitamente razoável dizer / genitori se preoc­ cupano dei figli (entendendo filhos e filhas). Assim, também, a gramática latina nos ensina que o dativo plural de filia é filiabus e o de dea é deabus. Mas se trata de ter­ mos marcados usados como tais; se não quisermos distinguir entre filhos e filhas, deuses e deusas, se dirá simplesmente filiis, diis, e somente para se indicar que se trata especificamente de filhos e filhas, deuses e deusas se dirá filiis et filiabus, diis et deabus. O termo marcado tem um só valor de língua, enquanto o não marcado tem dois, dos quais um é o contrário do valor do termo marcado e o outro é genérico (incluindo justamente também o termo marcado). Assim, giomo pode ser “dia” como contrário de noite, mas pode ser também “dia + noite” ; figli e studenti indi­ cam os “ filhos homens” e os “estudantes homens” , mas podem indicar também “filhos + filhas” , “o(s) estudante(s) + a(s) estudante(s)” . 8.4.3. Também o presente, que caracterizamos como elemento que contém o traço distintivo de “ presente” , funciona da mesma maneira, vale dizer, como negativo e neutro em relação ao futuro e ao pret. perfeito, enquanto o futuro e o pret. perfeito são efetivamente, cada um por sua vez, futuro e pret. perfeito. Assim, s?

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LIÇÕES DE LINGÜISTICA GERAL

se pode dizer verrò domani, partirá domani e vengo domani, parto dotnani, não é possível dizer ora sarò molto stanco [agora estarei muito cansado ], (entendendo por ora o próprio momento em que se fala), mas tão somente ora sono molto stanco [agora estou muito cansado]', poder-se-á dizer, usando o chamado presente “histó­ rico” , Napoleone nasce ad Ajaccio e muore a Sant 'Elena (Napoleão nasce em Ajácio e morre em S. Helena), em lugar de Napoleone nacque ad Ajaccio e morí a Sant ’ Elena [Ñapoleão nasceu em Ajácio e morreu em S. Helena], mas jamais domani partii [amanhã parti] por domani partirá [amanhãpartirei]. O presente, nos casos aqui examinados, deve ser considerado unidade “negativa” , “extensiva” , ao passo que o futuro e o pret. perfeito são, pelas suas funções próprias, termos “ positivos” e “ intensivos” . * Em geral, para identificar o termo neutro —no nosso exemplo, o presente — e distingui-lo dos marcados, é preciso considerar qual é o termo que pode substituir ao outro (ou aos outros) — o presente pode ser usado pelo futuro e pret. perfeito, mas não ao contrário —, e quais são os termos de valor bem definido: o termo neutro tem pelo menos dois valores de língua, enquanto os outros só têm um. 8.4.4. Este tipo de relações opositivas “neutralizáveis” caracteriza as línguas com referência aos sistemas lógicos e científicos, nos quais as oposições são unívocas e têm apenas a forma | A [ não-Ã | , isto é, uma coisa é-A e não pode ser também nãoA, ao passo que as oposições lingüísticas têm quase sempre a forma [ não-A HAJ I , isto é, uma coisa pode ser não-A e também A (mas não o contrário: A não pode ser não-A). Por exemplo, o singular, em relação ao plural, é nas nossas línguas não mar­ cado, neutro, negativo ( “ não plural” ), por isso se pode dizer iitaliano è cosi [o italiano é assim], no sentido de “gli italiani sono cosi” , mas nas línguas podem, na­ turalmente, existir também oposições com um termo especial para o valor neutro e outros termos para os valores positivos. Em italiano, uomo [homem], como con­ trário de donna [mulher], indica também a parte comum a “uomo” [homem] e “donna” [mulher] e significa também “ser humano em geral” , enquanto donna só denota o feminino; em latim, homo significa indistintamente “homem” e “mulher” , enquanto femina é termo exclusivo, exatamente como vir, “varão” . Em alemão existem Mensch, Mann e Frau: o primeiro significa homem e mulher indistinta­ mente, de maneira que uma mulher poderá dizer de si mesma: ich bin ein Mensch, mas não ich bin ein Mann, porque Mann (que significa também “marido”) é mar-' cado da mesma maneira que seu oposto Frau (que significa ainda “esposa”). 8.4.5. 0 term o marcado, ao conservar sempre seu valor, permite usos estilísticos tais que de outro modo seriam difíceis de explicar. Com efeito, esse termo adquire valores estilísticos quando usado em sentido “contraditório” . Por outro lado, os termos com que se combina devem ser adaptados a seu significado “de língua” e, neste caso, a expressão inteira passa a ter um particular valor estilístico.

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Vejamos algum exemplo. Se em alemão se usa o termo marcado Frau [mu­ lher] aplicado a um homem (varão), dado que esta palavra mantém seu valor femi­ nino, a expressão significa que se atribuem a tal homem características feminis. Se aplicarmos a uma cidade a palavra giovane ( “jovem ", que em italiano se aplica às não-coisas, isto é, como vimos, a homens, animais e plantas), essa cidade será con­ siderada como ser vivo, e mediante a expressão città giovane, ou faremos alusão à parte jovem da população ou ao fato de que tal cidade, dada a sua atividade, se as­ semelha, por suas características, a um ser vivo jovem. Em outras palavras, não se deve supor que o termo marcado não possa ser em­ pregado em combinações que não correspondem ao seu significado; ao contrário: precisamente porque conserva sempre o seu significado, as expressões com que apa­ rece combinado adquirem um valor especial. 8.4.6. De acordo com o princípio da neutralização, em determinados contextos,, uma oposição é suspensa ou “neutralizada” . Assim, entre e aberto e e fechado do italiano, a oposição é funcional em posição tônica, mas em posição átona, tal opo­ sição é neutralizada. Em posição átona só se apresenta o termo neutro. Por isso, en­ quanto lètto possui vogal tônica aberta, lettino tem um e fonéticamente fechado. Entretanto, esse e está em posição átona, onde não se faz distinção entre vogal aber­ ta e fechada, e ainda que houvesse uma diferença de pronúncia, ela não teria valor funcional. Também oposições entre duas unidades de conteúdo podem ser neutraliza­ das, precisamente nos casos em que não seja necessário especificar uma delas ou quando aludimos efetivamente apenas ao valor genérico, comum às duas unidades. Em tais casos se emprega o termo neutro, como vimos acima no caso de giomo [dia] aplicado a “giomo” [dia] e “ notte” [noite]. Porém é claro que, se desejamos indicar apenas a notte [noite], certamente não diremos giom o. Análogo é o caso do francês dominer / maitriser (aproximadamente “ dominar” / “ dominar, senhorear” : dominer, não marcado, usa-se para coisas ou seres vivos, ao passo que mai­ triser, marcado, só pode ser aplicado a seres vivos, enquanto dotados de intencionalidade; por conseguinte, em circunstâncias em que não queremos ou não é neces­ sário especificar, podemos usar simplesmente dominer. Assim, pode-se dizer ies étrangers dominent Ia ville [os estrangeiros dominam a cidade] e les montagnes dominent la vallée [as montanhas dominam o vale], sem nenhuma necessidade de especificar, porque, pelos termos étrangers e montagnes, se sabe que se trata de pessoas no primeiro caso e de coisas no segundo. Se, entretanto, se diz, les m on­ tagnes maitrisent la ville [as montanhas senhoreiam a cidade], está-se dando a m on­ tagnes um valor de seres vivos e se alude a “montanhas dotadas de intencionalidade” . Ao contrário, les étrangers maitrisent la ville [os estrangeiros senhoreiam a cidade] não terá esse valor estilístico, porque maitriser se usa para especificar que se trata de pessoas (como tais, dotadas de intencionalidade), e não de coisas. São “neutralizáveis” as oposições que podem ser suprimidas em certos con­ textos ou situações. Este é um dos fatos mais característicos da linguagem, e paja

s

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estudar e descrever com justeza uma língua é necessário especificar também em que circunstâncias uma oposição pode ser suspensa e, portanto, “neutralizada”. En­ quanto a oposição italiana figli / figlie [filhos / filhas] é neutralizável, porque figli pode indicar ambas as coisas, não é neutralizável, no mesmo nível, o francês fils / filies, pois que o fr. fils apenas significa “ filhos homens” e, em francês, para indicar “filhos" e “filhas” é necessário dizer fils et filies, ou então se recorre ales enfants. Outro tanto acontece em inglês e em alemão, onde não se podem usar, respectiva­ mente, sons e Sohne, aludindo a “filhos'e filhas” (mas children e Kinder): as oposições son - daughter, Sohn - Tochter não são neutralizáveis. 8.5. Como já se disse, a maioria dos estruturalistas europeus admite a neutraliza­ ção. Mas não a distingue de um fenômeno, quanto a mim, m uito diferente: o do sin­ cretismo. Efetivamente, enquanto por neutralização se há de entender a suspensão, em determinados contextos, de uma oposição funcional que existe na língua, por sincretismo se deve entender a não existência de uma oposição em certas partes de um paradigma material duma língua determinada. Por exemplo, a oposição entre /p / e /b / é neutralizável em italiano porque existe na língua e se apresenta na maioria dos contextos, mas pode ser suprimida junto a uma consoante surda. No italiano distingue-se normalmente um /p /d e um /b /(v . gr .palla, baila-, palto, batto), exceto numa palavra como ábside, onde o b fica “dessonorizado”. Ao contrário, um exem­ plo de sincretismo se pode ter na flexão, hoje antiquada, do imperfeito e do condi­ cional: (io) aveva e (egli) aveva, (io) saria e (egli) saria apresentam um fenômeno de sincretismo, porquanto aqui não se faz distinção material entre a primeira e a terceira pessoas, enquanto em outros casos do paradigma verbal, eu, melhor dizen­ do, em todos os outros casos com exceção destes, a primeira pessoa se diferencia da terceira (nos tempos do indicativo). No sincretismo aparece, com efeito, uma dis­ tinção implícita, não expressa, e não há uma “parte comum” , um termo neutro que só apareça no lugar dos termos opostos, como no caso da neutralização: o que se entende é a primeira ou a terceira pessoa, mas, não as duas juntas, e simplesmente esta diferença não aparece na expressão. Analogamente, o neutro apresenta em la­ tim, como no grego, no alemão, etc., coincidência no nominativo e acusativo, o que não significa que a distinção não exista. Pelo contrário, ela só não é feita neste caso, e só não se faz na expressão, porque a função fica determinada em cada contexto: ou será nominativo, ou será acusativo, e nunca “nominativo + acusativo” . De modo que se dirá que há sincretismo entre nominativo e acusativo, e não neutralização da oposição entre esses dois casos. Por conseguinte, pelo fenômeno de sincretismo, não se manifesta em certas circunstâncias no nível da expressão uma diferença de conteúdo; esta, porém, não só existe em outros casos, nos quais se apresenta também na expressão, mas subsiste também nos casos em que na expressão parece ficar suspensa. 8.6.1. Com os fenômenos da neutralização e do sincretismo relaciona-se um pro­ blema que aqui nos limitaremos a trazer à baila.

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Dissemos que entre e aberto e o fechado, em italiano, só ocorre a oposição em sílaba tônica, desaparecendo em posição átona. Certamente não podemos dizer que esta oposição é inteiramente análoga à que se dá entre /o / e /a/, que funciona em todas as posições, nem àquela entre /p/ e /b/, que, em algumas posições, pode ser suprimida. Efetivamente, enquanto a oposição entre /p / e /b/, como a entre /o / e /a/, é constante na língua e não ocorre o perigo de que venha a desaparecer, a opo­ sição entre e aberto e o fechado é muito débil e muitos já a suprimiram, adotando cm certos casos apenas e fechado, ao passo que outros optaram apenas pelo e aber­ to, sem perigo de confusão. Pelo contrário, ao suprimir a oposição entre /p/ e /b/, o perigo de desentendimentos é muito grave. Em virtude de casos como esses seria oportuno introduzir um novo conceito e dizer que em italiano há uma subdistinção, isto é: se, em certos casos bem deter­ minados, se suprime uma oposição, temos uma neutralização', se, pelo contrário, a oposição subsiste apenas em ceños casos bem determinados, temos uma subdistin­ ção, característica apenas de alguns contextos. Isto nos permite distinguir na língua três níveis de unidades: a) arqui-unidades: unidades que funcionam no caso de neutralização; b) unidades-, c) hipo-unidades: unidades que funcionam apenas em certos casos, isto é, quando se dá uma subdistinção. A necessidade de introduzir tal distinção é mais evidente na gramática e no léxico do que na fonética. Por exemplo, do ponto de vista da gramática corrente, o gênero “natiíral” constitui em inglês uma categoria funcional, embora na maior parte dos casos a oposição de gênero seja “neutralizada” . Na realidade, se se con­ sidera o modo normal de falar dos ingleses, se dá geralmente o contrário: na maior parte dos casos o substantivo da língua inglesa não tem gênero, e este vem expresso (por exemplo, através de he, she), só naqueles determinados casos em que se deseja introduzir uma subdistinção. 8.6.2. O mesmo acontece em geral em italiano no que diz respeito ao gênero na­ tural (ou “lexical”). Uma palavra como capra [cabra] (ainda que seja gramatical­ mente do gênero feminino) designa a espécie respectiva, sem distinção de sexo. Se surge a necessidade de especificar se se trata da “cabra macho” , pode-se fazê-lo usando a palavra caprone [bode], mas no nível das hipo-unidades. Se, de um lado, se faz distinção constante entre bue [boi] e mueca [vaca], tal distinção não ocorre para outros animais, cujo nome aparece sem especificação de sexo: diz-se volpe [raposa], tigre [tigre], mosca [mosca], sem indicar se se trata de animais machos ou fêmeos, e normalmente se dirá também lupo [lobo], sem especificar, embora seja possível fazê-lo se se trata de “lupo” [lobo [macho)] ou de ‘Tupa” [loba]. 8.6.3. Uma distinção análoga se pode fazer a propósito do sincretismo: dada a possibilidade de só algumas vezes estabelecermos uma diferenciação, é mais conve-

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rúente, na descrição de uma língua, admitir um sincretismo total, em quase todos os paradigmas, ou é melhor dizer que nesta língua não há “distinção” mas só uma “subdistinção” que aparece em certos casos? Embora não seja aqui o lugar próprio para insistirmos neste problema, é todavia oportuno assinalar a possibilidade de admitir na língua “distinções” funcionais e “subdistinções” , com três níveis de uni­ dades.

9 As Transformações

9.1. O que de novo a gramática gerativa transformacional acrescenta às noções tradicionais do estruturalismo é, sem dúvida, o conceito de transformação, que, embora em si não seja original, se pode considerar como um dado novo porque o próprio fato de acentuar a importância do fenômeno representa uma notável ino­ vação metodológica. As raízes do conceito são tradicionais e, em certo sentido, até óbvias. Já nos fins do século passado, Louis Couturat, lógico francês, considerava palavras como partida, chegada, etc. transformações nominais de verbos como partir, chegar, etc., e a gramática comparada das línguas indo-européias (particularmente do celta) se interessava pelos chamados nomes de ação ou nomes verbais. Na oração João parte, podemos transformar o verbo em substantivo e dizer a partida de João (e em algumas línguas célticas atuais esta é a única construção possível); a relação entre João e parte se mantém em a partida de João, porque João é o “ sujeito” ou, pelo menos, o agente da ação verbal presente também em partida. A novidade passou de Couturat a Jespersen que, no livro Filosofia da gramática1, considerou vocábulos como beleza e partida transformações de um predicado nominal (Maria é bela -*■a beleza de Maria) ou de um predicado verbal (João parte -* a partida de João). Sobre tal princípio insistem, ampliando-lhe o conteúdo, o alemão W. Porzig e o polonês J. Kuryíowicz, sendo este último particularmente importante porque funda em trans­ formações sucessivas uma sua teoria da derivação. 9.2. Também na gramática prática tradicional não é incomum o recurso ao princí­ pio da transformação, sobretudo como expediente didático. Por exemplo, em espa-1

1 Veja-se 6.5.

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nhol o complemento objetivo direto, quando constituído por nome aplicado a pes­ soa, vem precedido, da preposição a (veo a Juan “vejo João”), a mesma que também se usa junto a objeto indireto (doy un libro a Juan “ dou um livro a João"). Para ensinar a distinção entre os dois empregos, as gramáticas práticas aconseiham a transformar a expressão de ativa em passiva: se o complemento introduzido por a passa a sujeito (e se diz Juan es visto por mí, “ João é visto por mim” ) trata-se de objeto direto; ao contrário, se se diz un libro es dado por m í a Juan (“ um livro é dado por mim a Jo ío ” ), temos um objeto indireto. Ê conhecida também a transformação necessária em latim para indicar as relações entre sujeito e objeto direto, quando a oração subordinada é uma objetiva com verbo no infinitivo (o chamado “ acusativo com infinitivo”). Se em Credo Deum mundum creavisse (“ creio que Deus criou o mundo”) é supérflua a transfor­ mação passiva porque o significado “ creio que o mundo criou Deus” , ainda que ' possível gramaticalmente, é refutada pelo bom senso, já em Credo Hannibalem vicisse Romanos, qualquer que seja a disposição dos termos da oração, é necessária a transformação para esclarecer ao leitor se Haníbal venceu os romanos ou vice-versa, sendo possíveis ambas as interpretações gramaticais da oração. Conforme Haníbal ou os romanos sejam os vencedores, devemos dizer Credo Romanos victos esse ab Harmibale ou Credo Hannibalem victum esse a Romanis, e assim desaparecerá qual­ quer equívoco. Como dizíamos, fato novo e importante é a coerente aplicação do princípio das transformações, com o qual a gramática gerativa transformacional busca de­ monstrar que o fenômeno é muito amplo, e não tem somente valor prático, e que uma série de fatos pertencentes a paradigmas diferentes se encontram em determi­ nada relação entre si, como, aliás, os interpretam os próprios falantes, que bem percebem que alguns fatos são primários e outros secundários, sendo “ transfor­ mações” dos primeiros. Cada um sabe, por exemplo, que cavalinho é secundário com respeito a cavalo e não o contrário, vale dizer, que a forma primária cavalo passou por uma transformação, dando a derivada cavalinho e, graças a esta transfor­ mação, acrescenta a cavalo uma particular determinação “ quantitativa” (diminuti­ va). Analogamente, está claro que embarcar pressupõe barco ou barca, partida pressupõe partir. Mas já não é tão evidente que as orações subordinadas podem ser consideradas transformações de orações principais, como partes (membros) de ou­ tras principais. Assim, dadas as orações digo alguma coisa e João partiu, a segunda serve de objeto direto da primeira em digo que João partiu, em que alguma coisa é substituído por outro objeto, não mais constituído de um substantivo, mas de uma oração. As mesmas considerações podem fazer-se a propósito das duas orações como alguma coisa e às vezes tenho fom e, transformadas na estrutura mais com­ plexa como quando tenho fome. 9.3.1. Achamo-nos, destarte, diante de dois fatos importantes: a) os falantes in­ tuem e conhecem determinadas relações entre diferentes paradigmas da sua língua; b) essas relações podem ser diferentes em línguas diferentes.

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Assim, por exemplo, em italiano se diz il mio libro e U libro è mio, empregan­ do-se o mesmo mio quer como adjunto, quer como predicativo. Em inglês, porém, se dirá m y book mas the book is mine, e em francês mon livre e le livre est à moi. O falante de inglês e francês sabe que uma mesma função, se apresentada no sujeito ou no predicado, deve sê-lo de modo diferente: isto faz parte da língua e da “ compe­ tência” que o falante tem dela. Em latim, Romae significava “ dcs a, em Roma” , isto é, podia ser genitivo, dativo ou locativo. Porém as relações entre os paradigmas eram distintas para essas três funções. Para indicar “ os filhos de Roma” dizia-se filii Romae, e a forma Romae não mudava em “ os filhos da cidade de Roma” ,/i/ü urbis Romae, como não mudava para o dativo de urbs Rom a (urbi Romae). Pelo contrário, em “ estou em Roma” também se usava a mesma forma {sum Romae), mas, neste caso, para dizer “estou na cidade de Roma” , não se empregava sum urbis Romae e sim sum in urbe R om a Para o saber lingüístico latino era como se existissem duas formas diferentes Romae'. uma que no paradigma de urbs Rom a devia ser substituída pelo ablativo, e outra que se mantinha inalterada também com a palavra urbs.

9.3.2. O seguinte exemplo é válido para muitas línguas: o genitivo latino Iuliae e o seu correspondente italiano ou português di Giulia {de Júlia) podem ter valor “ sub­ jetivo” ou “ objetivo” . A m or Iuliae pode implicar Iutía amat aliquem, “Júlia ama alguém” , ou aliquis amat luliam, “ alguém ama Júlia” . Usando este tipo de genitivo não se faz qualquer distinção formal, mas os falantes fazem a distinção semântica, não entendendo algo que seja ao mesmo tempo “ sujeito” e “ objeto” ; Iuliae ou será agente ou paciente do amor. O mesmo se há de dizer da expressão italiana Vamore di Giulia {o amor de Júlia), que pode significar “o amor de Júlia (por Paulo)” ou “o amor de Paulo (por Júlia)” , mas não uma e outra coisa concomitantemente. Tratase, portanto, de um sincretismo sintático (cf. 8.5). Mas, qual é afinal a diferença entre o genitivo subjetivo e o objetivo? E por que temos a consciência de que esta diferença subsiste de algum modo? Sem dúvida porque sabemos que em algumas outras construções Iuliae ou di Giulia (de Júlia) funcionam como sujeito ou como objeto; em outras palavras, porque sabemos que tais genitivos se acham em relação com outras expressões em que o termo em questão funciona como sujeito ou como objeto. Essas outras expressões não ambí­ guas vão constituir, segundo a gramática transformacional, a chamada estrutura profunda (denominação proveniente da terminologia psicanalítica): assim, o geni­ tivo. objetivo e o subjetivo implicam duas diferentes “estruturas profundas” e a interpretação deles depende das relações que caracterizam as “ estruturas profundas respectivas” , que se transformam numa idêntica “ estrutura superficial” . No caso aqui examinado, a “ estrutura superficial” é ambígua e, segundo a gramática trans­ formacional, só pode ser esclarecida à luz de duas diferentes “estruturas profun­ das” .

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9.4. Conclui-se daí que os falantes têm consciência de dois tipos de estrutura lingüística: a superficial —aquela que efetivamente aparece — e a profunda, que está apenas implícita e da qual resulta a primeira. As duas estruturas podem ser iguais ou diferentes. Acabamos de ver um caso de divergência entre as duas “estruturas” . Um exemplo do mesmo fato pode ser o seguinte: em Giovanni portó Giulia a Londra e poi alia pazzia (João levou Julia a Londres e depois à loucura), as construções a Londra (a Londres) e alia pazzia (à loucura) são materialmente análogas e gramati­ calmente funcionam ambas como adjuntos adverbiais. Porém este modo de coorde­ nar se apresenta estranho e insólito, enquanto seriam perfeitamente “ normais” coordenações como Giovanni portó Giulia a Londra e poi a Parigi (João levou Júlia a Londres e depois a Paris), Giovanni portó Giulia prima alia pazzia e poi al suicidio {João levou Júlia primeiro à loucura e depois ao suicídio). A coordenação no nosso exemplo, não é “ normal” (ou tem um particular valor estilístico), porque os fatos designados pelas duas circunstâncias não são análogos, pois conduzir a Londres é diferente de conduzir à loucura, e, embora segundo a gramática corrente (e estrutu­ ral) essa diferença não subsiste, do ponto de vista do conteúdo pensado ou da realidade designada (“ estrutura profunda”), no primeiro caso se trata de conduzir Júlia (“objeto” ) a um lugar (Londres), no segundo de transformar Júlia em sujeito da loucura: se João levou Júlia a ponto de tornar-se louca, o adjunto à loucura tem uma “estrutura profunda” diversa da de a Londres. Também neste caso a “ estrutu­ ras superficiais” idênticas correspondem “ estruturas profundas” diferentes: num caso Júlia é objeto de levou, no outro é sujeito de enlouquecer, e o adjunto à loucura implica, na sua “ estrutura profunda” , uma oração como: {Por causa de João) Júlia {em Londres) ficou louca, que, unida a uma outra, João levou Júlia a Londres, se transforma com aquela na oração inicial João levou Júlia a Londres e depois à loucura. 9.4.1. As “ transformações” , enquanto são uma parte constitutiva da língua, per­ tencem ao conhecimento que tem o falante da sua língua. Assim entendidas, as transformações podem explicar dois aspectos funcionais (e, isto, no âmbito mesmo da concepção que o estruturalismo tem acerca da funcionalidade): a diferença de função e o seu oposto, a unidade de função. Os exemplos referidos nos parágrafos anteriores mostraram como à diversifi­ cação de funções denotativas correspondia diversidade nas “ transformações” . Um outro exemplo pode servir para ilustrar os dois aspectos: o uso do possessivo. 9.4.2. O uso do possessivo em certo paradigma, por exemplo, no grupo nominal do sujeito, onde encontramos mio {meu) e il mio {o meu), como em il mio babbo {o meu papai), mio padre {meu pai), mia madre {minha mãe), la mia mamma {a minha mamãe), la mia casa {a minha casa), la mia partenza {a minha partida), etc. poderia dar a impressão de que estávamos diante de uma e mesma função denotativa, de uma idêntica relação “ real” . Entretanto, se, aplicando critérios transformacionais.

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consideramos os diferentes casos em que pode aparecer o adjunto possessivo, e nos perguntamos se em todos estes casos é possível empregar o possessivo também no predicado, fica logo claro que a função denotativa, aparentemente idêntica, não é a mesma, porque podemos dizer il mió libro e questo libro è mio, enquanto dizemos mio padre mas não dizemos (no mesmo sentido) questo padre è mio. Quando muito, poderia dizê-lo uma criança que, considerada uma pluralidade de “ pais” e quase os tratando como brinquedo, dissesse\Ecco, questo babbo è mio (mas o diria no sentido em que se diz questo libro è m io , isto é, com o valor de: “ este pai me pertence”). Também no caso de la mia patria, il mio paese, a expressão questo paese è mio (menos inverossímel que questa patria è mia) poderia ser empregada por um conquistador que quisesse afirmar o próprio direito sobre um povo derrotado. Mas quem diria questa partenza è mia (entendendo-se que é ele que parte ou deve partir)? Por outro lado, se a estes exemplos acrescermos um outro, un libro mio e o confrontarmos com un padre m io, observaremos que também no sujeito (e no objeto, etc.) há algumas restrições no emprego de m io, que com certos substantivos não pode ser usado se eles se acham precedidos do artigo indefinido, mas tão somente se’ têm o artigo definido. Poder-se-á dizer também il mio Giovanni, mas não un mio Giovanni. São, estes, outros exemplos duma restrição do uso, análoga à que já foi assinalada e que poderá ser assim formulada: não é possível — no uso “ nor­ mal” , porquanto em situações de paradoxo pode perfeitamente ocorrer, empregar o possessivo com o artigo indefinido se o substantivo que indica o objeto da relação “possessiva” é um nome próprio (I.'Italia mia é possível, mas de u n ’Italia mia não se diz) ou denota de qualquer maneira um “ unicum” (p. ex., os pais).

9.4.3. Se se considera o possessivo não apenas num só paradigma, mas nos diversos paradigmas em que pode aparecer, ficará clara uma diversidade de funções contex­ tuáis: o problema consistirá em estabelecer qual é a sua função “ unitária” , que justifica os seus vários usos(cf. 7.4.) e a que razões se devem a diversidade funcional nos diferentes paradigmas sintáticos e as respectivas restrições rio uso. 0 termo “ possessivo” , aplicado a este tipo de pronomes adjetivos e substanti­ vos, é de escassa pertinência, porque de “possessão” se pode falarem casos comor'/ mio libro (embora ainda aqui mais se trata dum livro que comprei e não dum livro que eu escrevi), mas não certamente no caso de mio padre, mio figlio,é óbvio que também a expressão la mia partenza não implica relação de posse, e até la mia abitazione poderá entender-se tanto no sentido daquela que construí ou comprei e em que moro, quanto daquela em que me encontro. 0 conceito de “ posse” não é pois suficiente para caracterizar a unidade de função do possessivo, conquanto no uso predicativo o valor possessivo seja mais freqüente (e quase exclusivo): com efeito, não se poderá dizer questa partenza è mia nem questo padre è mio, e, se questa à la volta mia dificilmente pode entender-se como posse, questo libro è mio dificilmente póde entender-se de outra maneira.

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9:4.4. A unidade de função, neste caso, não pode ser entendida senão como uni­ dade de transformação: o chamado “ possessivo” não é outra coisa que o adjetivo correspondente ao “ genitivo” de um pronome pessoal (adjetivo que, por sua vez, pode ser substantivado: mio -* il m io), isto é, representa o resultado de urna única transformação “real” (implícita na língua). Assim é que se diz il libro di Giovanni, il padre di Giovanni, la partenza di Giovanni, usando sempre a preposição di. Entre­ tanto, se em lugar de Giovanni usamos o pronome pessoal io, il libro “di io” (como mais ou menos dizem as crianças que começam a falar) tomar-se-á/7 mió libro ou il libro mio.e il padre “di io” passará a il mió padre ou il padre mió, la partenza “di io” se transformará em la mia partenza, assim como di Rom a pode ser transformado em romano. Analogamente com tu, lui, lei, noi, voi, loro: il libro di lui (que pode também não transformar-se) passará a il libro suo ou il suo libro e, em certos casos de ambigüidade, il libro suo di lui, il libro suo di lei, especialmente usado nas respostas a perguntas do tipo de “ Di chi è il libro?” [De quem é o livrol] “È suo di hiC' (em português E seu dele). Isto, como se sabe, não ocorre em inglês e alemão, onde dois diferentes adjetivos possessivos distinguem uma terceira pessoa masculina (inglês his book, alemão sein Buch) da correspondente feminina (inglês her book, alemão ihr Buch2). 9.4.5, A função “ unitária” do possessivo, que justifica todos os seus usos, resulta, portanto, do fato de ele representar a adjetivação do “genitivo” de um pronome pessoal. Este é o seu “ significado” de língua. Ao contrário, a diversidade funcional que apresenta nos diversos paradigmas e as restrições no seu emprego refletem a diversidade das relações reais do próprio possessivo (e também, em última análise, do “genitivo” que lhe serve de base). Em particular, devem-se as restrições a que um “ genitivo” predicativo é tomado normalmente como “ possessivo” (onde, se temos il libro di Giovanni — il libro è di Giovanni, já não temos la partenza di Giovanni —la partenza è di Giovanni). Todavia, não se d«ve entender tudo isto como aplicação da gramática transformacional propriamente dita, mas apenas como constatação de processos transfor­ mativos “ reais” no quadro de uma gramática fundamentalmente funcional. 9.5.1. Por outro lado, como já se aludiu, as “ transformações” (ainda as não “ reais”) devem ter seu lugar numa gramática completa de uma língua como relações entre os paradigmas, relações que os falantes conhecem e podem “ atualizar” (utili­ zar) no seu falar. Com efeito, no que toca à gramática ,de sua língua, o falante conhece três ordens de fatos: a) sabe que funciona, isto é, sabe como é feita a expressão material da língua: conhece-lhe a “ morfología” ou a “ constituição” ; b) conhece (intuitiva­ mente) o porquê das diversas construções, vale dizer, as suas funções; c) conhece as

3 Cabe lembrar, entretanto, que ihr Buch significa também "il loro libro" (o livro deles).

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conexões entre construções de paradigmas diversos (“ relações” ), o como do funcio­ namento dessas mesmas construções, isto é, o modo de passar de um paradigma a outro ou de exprimir conteúdos análogos de pensamento (equivalencias denotati­ vas) em paradigmas diferentes. Desta forma, retomando o exemplo acima, o falante italiano sabe que pode dizer il mio amico, l ’a mico mio e un mio amico, un amico mio, enquanto o falante inglês, para a mesma idéia, só pode empregar m y friend - a friend o f mine. (“ o meu amigo” — “ um meu amigo”). %

9.5.2. Uma gramática completa de qualquer língua deveria portanto compreender três seções: uma seção “ constitucional” (ou “ morfologia” em sentido amplo, in­ cluindo a morfologia das orações e do período), uma seção “ funcional” (estudo dos significados gramaticais da língua) e uma seção “ relacipnal” . E, precisamente, a seção “ constitucional” e a “ relacionai” deveriam ser consideradas subordinada­ mente à seção funcional, isto é, deveriam ser consideradas à base e do ponto de vista das funções semânticas, que constituem a finalidade da linguagem e a razão de ser das línguas. Atualmente, nenhum tipo de gramática corresponde a essa “gramática ideal” , porque nenhuma delas leva em conta efetivamente essas três seções. 9.5.3. A gramática do tipo tradicional refere-se, não há dúvida, aos três aspectos aludidos, mas o faz sem coerência e de forma não exaustiva. De fato, as gramáticas tradicionais de língua materna se destinam a falantes que já conhecem, conquanto intuitivamente, as construções e as funções (o quê e o porquê) da sua língua, de modo que tais aspectos não são inteiramente descritos e examinados. E nas gramáti­ cas de línguas estrangeiras se insiste sobretudo no que e no porquê “ diferenciais” , o que significa que esses aspectos vêm de preferência considerados na medida em que não correspondem à língua materna do aluno. Por exemplo, uma gramática tradi­ cional escrita para italianos que deseje aprender o inglês dirá que o artigo italiano il, lo, la, i, gli corresponde ao inglês the e tratará, de modo particular, como se fossem exceções ou “ desvios” aqueles usos de the que não concordam com o uso do artigo em italiano. Quanto aos aspectos “ relacionais” , estes, na gramática de língua materna, só esporadicamente vêm tratados, e, na maioria dos casos, só como expedientes da descrição funcional (cf. 9.2). E nas gramáticas de línguas estrangeiras eles são consi­ derados principalmente do ponto de vista prático; assim, ensina-se numa gramática latina de que modo se exprimem, nessa língua, o instrumento, o fim, a “ matéria” , etc., ou então, segundo que regras se passa do discurso direto ao indireto (por exemplo, que todas as orações declarativas, inclusive as interrogativas “ retóricas” , se constroem, no discurso indireto, com o infinitivo, enquanto as orações subordina­ das e as independentes não declarativas se constroem com o subjuntivo). As gramáticas estruturais do tipo “ bloomfieldiano” (cf. *6.3.1.) se concentram particularmente na “ constituição” material, isto é, na descrição “morfológica” , enquanto tratam de maneira muito sucinta das funções e, em geral, deixam de lado as “relações” (ou, pelo menos, não as distinguem das funções propriamente ditas).

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A gramática inspirada nos principios da Escola de Praga também ignora, por seu turno, as “ relações” , embora considere com igual interesse os aspectos “ constitucio­ nais” e funcionais das línguas: isto pelo menos nas intenções, porque até hoje nenhuma gramática completa foi escrita conforme os princípios dessa escola e, em geral, o estruturalismo de tipo plagúense se dedicou muito pouco a certos níveis da gramática (em particular, à sintaxe das orações e do período). Por sua vez, a glossemática se dedica com particular interesse à identificação e descrição das funções, ocupando-se pouco da parte físico-material da gramática e desatende as “relações” . A gramática transformacional, finalmente, se ocupa da “constituição” e das “relações” e, como no âmbito da expressão, também na gramática ignora — e até deliberadamente — a parte central e determinante da língua: as funções (no sentido de que não faz delas objeto nem de descrição nem de indagação). É sintomática, a este respeito, a posição que assumem os transformacionalistas em relação aos fone­ mas: o fato da gramática transformacional ignorar (e poder, efetivamente,.para seus fins ignorar) as unidades funcionais interpreta-se como inexistência das unidades mesmas. No caso dos conteúdos gramaticais não se chega a este ponto, mas, como na gramática transformacional o próprio sentido da comutação (cf. 7.6) ainda não foi compreendido corretamente, supõe-se que a lingüística não disporia de nenhum “procedimento de descoberta” das unidades funcionais. Assim, atualmente, tem-se a seguinte “ distribuição” dos centros de interesse: Escola de Praga

Glossemática

*

*

gramática “ constitucional”

gramática funcional

t t ♦



gramática “ relacionai”

Bloomfieldianismo

I___________ I________ gramática tradicional

gramática transformacional

41

1

AS TRANSFORMAÇÕES

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Se se admite que formas, funções e relações gramaticais caracterizam e distin­ guem as línguas, é óbvio que o (fue, o porqué e o como devem ser igualmente levados cm conta: que sejam considerados mais por um ángulo que por outro, é muito menos relevante. 9.6.1. De resto, também do ponto de vista prático, no ensino de línguas - por exemplo, se nos propomos apresentar o inglés a estudantes italianos (ou portugue­ ses) —, devem-se considerar os três aspecto^ da gramática. Com efeito, no confronto entre duas línguas, podemos encontrar: a) b)

c)

construções diferentes para funções análogas: é o caso acima citado do artigo, variável em italiano e uniforme em inglés; diversidade de funções para construções análogas ou diferentes: é o caso do pretérito inglês, oposto ao imperfeito c pret. perf. [it. passato remoto] no italiano e do uso do condicional perifrástico com should + infinitivo, diferen­ te do condicional italiano, quer pela forma, quer pelo conteúdo; diversidade nas relações, isto é, nas passagens possíveis de um paradigma a outro; desejando traduzir ao inglês o italiano il mio amico e una lua amica. onde os elementos são individualmente opostos (il/una, m io/tua. amico/ amica) e apresentam uma estrutura paralela, devemos renunciar ao paralelismo e à homogeneidade estrutural c dizer m y friend and a girl-friend o f your.

9.6.2. Assim, também, em latim três diferentes funções distinguem as três formas Romae, Romam e Rom ã. como complementos circunstanciais de lugar; outro tanto ocorre em espanhol (e em português), onde existem, respectivamente, en (em) Roma, a Roma, de Roma, embora o que o latim indica através de desinências, o espanhol (e o português) o exprimam através de preposições: entre o latim e o espanhol (ou o português) há diferença de “ constituição” , mas não há (praticamente) diferença de funções. Se, ao contrário, traduzirmos para o italiano ou francês, observaremos uma diferença não só de “ constituição” (pelo uso das preposições em vez de desinên­ cias), mas ainda de funções: embora in Rom a e en R om e não estejam totalmente fora de uso, pelo menos em certos contextos, a expressão normal correspondente ao locativo Romae é a Roma, à Rom e, que coincide com a de movimento a um lugar (Romam — a Roma, à Rom e) e só se distingue daquela que denota movimento de procedência (Roma = da Roma, de Rom e). Entre o espanhol (ou o português) de um lado e o italiano e o francês do outro, não há (quase) diferença de “ consti­ tuição” , mas há diferença de função: e o espanhol e o português compartilharão, por sua vez, da diferença de “ constituição” (mas não de função), em relação ao latim, com o inglês e o alemão (que usam, respectivamente, nos três casos at e in. to e nac/i, from e von). Se considerarmos, outrossim, as “ transformações” , isto é, as “ relações” , observaremos que também estas são diferentes. Com efeito, diz-se em espanhol en

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Roma, a Roma, de Rom a e da mesma maneira en la ciudad, a la ciudad, de la ciudad e en la ciudad de Roma, a la ciudad de Roma, de la ciudad de Roma, enquanto em latim, ao lado de Romae, Romam, Romã, tem-se in urbe, in urbem, ex urbe e in urbe Romã, in urbem Romam, ex urbe Rom ã (de modo que “ constitucionalmente” o latim, neste caso, se aproxima um pouco das línguas románicas). E em italiano diz-se (sono, vado) in città e (sono, vado) nella città di Roma (vale dizer, a coinci-déncia entre estar num lugar e ir a um lugar se mantém, só que agora a preposição é in, e não a). 9.7.1. As “ transformações” (tanto as “ reais” quanto as que, no fundo, não são mais que conexões entre paradigmas) são particularmente importantes, quer no ámbito da descrição de uma mesma língua, quer no da comparação entre línguas diferentes, quando são específicas de certas línguas ou quando constituem procedimentos formativos, possibilidades abertas — e eventualmente ilimitadas — de produção (ou criação) lingüística. »

9.7.2. Como exemplos de transformações características de uma língua, e inexis­ tentes em outras, recordemos, dentro da gramática latina, o caso da construção da oração objetiva com infinitivo, o nominativo com infinitivo, o ablativo absoluto: tais construções ou não aparecem nas línguas románicas ou nelas foram parcial­ mente reintroduzidas, como latinismos cultos, na época do Humanismo e do Renas­ cimento. 9.7.3. Como exemplos do segundo caso podemos apontar, mormente no campo da “conversão” entre categorias verbais (partes do discurso) e da formação de palavras, onde mais claramente — e de maneira mais imediata e geral — se patenteia a criatividade lingüística “ aberta” . Assim, perante o francês, o alemão é caracteri­ zado, entre outras coisas, por uma possibilidade de transformações em série e por uma criatividade atual que o francês não conhece: enquanto em alemão todo verbo pode ser substantivado (gehen “ ir” , das Gehen “ o ir” , “ a ida” ), isto não se dá em francês, e os poucos casos que nessa língua se nos deparam, não constituem casos “ abertos” de produtividade atual, mas tão somente casos já fixados lexicalmente: le manger, por exemplo, não significa a ação de comer, mas o que se come (a comida). Apenas em textos filosóficos o infinitivo substantivado é bastante usual em francês (provavelmente por influxo alemão). Entre as línguas románicas, o espanhol, o português e o romeno conhecem essa mesma possibilidade aberta do alemão (e em romeno o chamado infinitivo “longo” é quase sempre um substantivo). Em italiano, o infinitivo substantivado é muito mais freqüente do que em francês, mas menos do que em espanhol e romeno; entretanto, a possibilidade “ aberta” é virtualmente a mesma (com efeito, o uso deste infinitivo, com preposições, é, pode-se dizer, ilimitado: cf. dal dire al fare, aveva cominciato col dire etc.).

Criatividade e Técnica Lingüística. Os Três Níveis de Linguagem

10. Vejamos agora como uma descrição realizada segundo princípios estruturais e funcionais (incluindo as transformações, na medida em que são “ reais” , isto é, na medida em que se trata de fatos propriamente funcionais) se enquadra no estudo não apenas da estrutura das línguas mas da linguagem em geral. 10.1.1. A linguagem é uma atividade humana universal que se realiza individualmente, mas sempre segundo técnicas historicamente determinadas (“ línguas” ). Com efeito, todos os seres humanos adultos e normais falam e, em certo sentido, falam sempre (o oposto de falar é o calar que, a rigor, só pode ser concebido com referência ao próprio falar: como um “ não falar ainda” qu um “ ter cessado” de falar”). Por outro lado, todo falante fala individualmente (mesmo no diálogo): a linguagem não é nunca atividade “ coral” . Por fim, a linguagem se apresenta sempre como historicamente determinada, como “ língua” (italiano, português, francês, alemão, etc.); não há falar que não seja falar uma língua. 10.1.2. Dentro da linguagem se podem distinguir portanto três níveis: um univer­ sal, outro histórico e outro individual, que de resto se distinguem mais ou menos claramente também do ponto de vista prático. Por exemplo, quando dizemos que uma criança ainda não fala, não queremos dizer com isso que ela ainda não fala italiano ou outra língua, mas que não realiza ainda a faculdade geral de falar; referimo-nos ao nível universal. Assim também estamos diante do nível universal quando ouvimos falar num aposento vizinho, mas que não entendemos nem o que se diz nem quem fala. Nesse nível captamos certos aspectos “ sintomáticos” da linguagem, porém, não compreendendo os significados lingüísticos como tais, pode­ mos incorrer em interpretações errôneas. Assim, não conhecendo a língua nem o caráter de quem fala, podemos vir a confundir um modo de falar barulhento, mas

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na realidade afetuoso, com uma rixa. Pode ainda acontecer que ao ouvir uma língua estrangeira se tenha a impressão, no nível universal, de um falar irritado, quando se trata apenas de uma característica prosódica dessa língua (é o que acontece com freqüência aos italianos ao ouvir falar alemão). Se, por outro lado, percebemos que se está falando numa língua x, identifica­ mos o nível histórico da linguagem, vale dizer, o falar, segundo uma técnica deter­ minada. E se, finalmente, dizemos E Pedro quem fala, identificamos também o nível individual da linguagem. 10.1.3. Estes três níveis são, até certo ponto, autônomos. Assim, o nível universal segue também normas próprias e (a começar pelos aspectos simplesmente materiais da voz) realiza também possibilidades suas, independentes das línguas particulares. Analogamente, não cabe considerar o nível individual como mera realização de uma historicidade determinada, porque nesse nível encontramos, de uma parte, indiví­ duos poliglotas, que conhecem e realizam diferentes tradições históricas, e de outra, não existe nenhum indivíduo que realize por si só toda uma tradição histórica. Por isso, o níyel individual supera em certo sentido o histórico, pelo fato do indivíduo poder falar mais de uma língua e, noutro sentido, o nível individual é mais limitado que o histórico, porque nenhum indivíduo realiza totalmente essa ou aquela língua; nenhum italiano domina todo o idioma italiano, nenhum inglês toda a língua inglesa e assim por diante. Também de um texto não podemos dizer que corresponde a uma só historicidade , porque podemos encontrar nele elementos de outras tradi­ ções lingüísticas, assinalados ou não como tais pelo falante (ou escritor). Esses elementos serão assinalados se o falante diz explicitamente (ou fá-lo entender que usa palavras duma língua diferente (pensc-se em locuções como grosso modo, ex novo)\ não assinalados, por exemplo, se são substancialmente “ erros” oriundos do conhecimento (mesmo limitado) de outra língua, isto é, da interferência de dois sistemas, que pode implicar a áplicação “ errônea” ou, ao contrário, a suspensão (a não-aplicação) de certas regras desses sistemas. Uma interferência deste último tipo pode ser observada quando uma pessoa, se conhece bem outra língua em que certas formas têm sentido obsceno, evita essas formas na própria língua. Assim é que, em romeno, a desmierda é vocábulo de uso corrente em quem não conhece outras línguas románicas, significa “acariciar, amimar” e se usa especialmente aplicado a crianças. Entretanto, não o usa aquele que, conhecendo alguma das outras línguas románicas, percebe nele uma aproximação que o faz ser sentido como vulgar: a interferência, portanto, pode ser, como neste caso, “ negativa” . 10.2.1. Por outro lado, a linguagem se realiza, certamente, de acordo com um saber adquirido como tal (“ aprendido” ) e se apresenta sob forma de fatos objetivos ou “produzidos” , mas, consoante célebre caracterização formulada em termos aris­ totélicos por W. von Humboldt, não é cssencialmente epyov, coisa feita, “ produto” , e sim evepyeia, atividade criadora (atividade que vai além de sua própria ÒvvapLÇ, “ potencialidade” , isto é, além da técnica “ aprendida” ). Portanto, pode serconside-

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rada como evepyeta, como bwapn<: ou como epyov, como fato de criação (atividade criadora ou, pelo menos, como atividade), como fato de técnica (“ potencialidade” , saber) ou como produto, e, isto, a cada um dos trés níveis que distinguimos. O resultado da combinação desses dois critérios (níveis e pontos de vista) é uma distinção de nove seções na estrutura geral da linguagem. 10.2.2. No nível universal, a linguagem, considerada como atividade, é o falar (em geral), não determinado historicamente; considerada do ângulo da técnica, é o “saber falar em geral” (saber elocucional); e considerada como produto é “o fa­ lado” , a totalidade do que se disse (ou ainda do que se pode dizer, sempre que se considere como “ coisa feita”). No nível individual, a linguagem como atividade é o discurso, isto é, o ato lingüístico (ou a série de atos lingüísticos conexos) de um determinado indivíduo numa dada situação; como saber, é o saber expressivo (saber relativo à elaboração dos “ discursos” ); e como produto é um texto (falado ou escrito). Analogamente, no nível histórico, a linguagem como atividade é a língua concreta, tal qual se manifesta no falar, como determinação histórica deste (p. ex., “o falar italiano” , o falar francês etc.); e como “ potencialidade” é a língua en­ quanto saber tradicional de uma comunidade (saber “idiomático”). Como produto, no entanto, a língua não se apresenta nunca de m odo concreto, uma vez que tudo o que nesse nível se “ produz” (se cria) ou redunda num hapax (expressão dita uma única vez) ou, se se adota e se fixa historicamente, passa a fazer parte do saber tradicional. Neste sentido, a língua não é nunca epyov: epyov, produto, só pode ser a língua abstrata, isto é, a língua extraída do falar e objetivada numa gramática ou num dicionário. Todas essas relações podem ser resumidas no seguinte quadro sinótico: pontos de vista

évépyeux atividade

búvctptx saber

epyov produto

nível universal

falar em geral

saber elocucional

totalidade do “ falado”

nível histórico

língua concreta

saber idiomático

(língua abstrata)

nível individual

discurso

saber expressivo

“tex to ”

, .. níveis

10.2.3. A diversidade das definições que se dão da linguagem deve-se, em parte, à diversidade de pontos de vista por que ela se considera no nível universal. Assim, quem define a linguagem como “ a atividade que usa (ou que produz ou cria)

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Lições

DE LINGÜISTICA GERAL

signos” , fá-lo considerando-a como atividade, como falar. Quem, por outro lado, define a linguagem como “ faculdade de falar (ou exprimir-se)” , já a considera como saber ou “ potencialidade” . E uma definição como aquela que, em certo contexto, dá Ludwig Wittgenstein — “ a linguagem é a totalidade das orações” — refere-se, evidentemente, a ela como “ produto” . Tal diversidade de enfoques, conquanto num outro sentido, ocorre tapibém com a h'ngua, no nivel histórico da linguagem. Os antigos concebiam a língua como determinação concreta do falar; com efeito, refe­ rindo-se às línguas, usavam verbos especiais (como, p. ex., em grego, òttu uÇeiv “falar ático” ) ou advérbios, isto é, justamente, determinações de uma atividade (p. ex., em latim: latine loqui, graece loqui, vale dizer, “ falar latinamente, “ falar gregamente” ). 0 falante moderno, ao contrário, concebe em-geral a língua como saber que se realiza em atos lingüísticos (as línguas “ se sabem” e “ se falam”). E os lingüistas e gramáticos consideram com freqüência a língua, não só como língua “abstrata” , elaborada como “ produto” (assim, F. de Saussure diz que daquilo que é efetivamente a langue se pode dar uma idéia através de uma gramática e de um dicionário). 10.3.1. Também a pesquisa lingüística, como descrição e como história, interes­ sa-se sobretudo com o aspecto técnico da linguagem, isto é, com o saber lingüístico, o que é, sem dúvida, perfeitamente compreensível, pois que o aspecto técnico é o que apresenta maior uniformidade e, destarte, pode mais facilmente tornar-se objeto de ciência. Não obstante, toda filosofia da linguagem digna deste nome e ainda uma lingüística que tenha consciência de sua tarefa deveriam insistir, de modo particular, na criatividade lingüística (que, aliás, impregna também as técnicas do falar, que são essencialmente técnicas abertas). E, no que diz respeito à técnica, pelo menos deveriam estudar-lhe de modo adequado os três níveis. 10.3.2. No entanto, a atenção dos lingüistas se tem concentrado até agora especial­ mente no nível histórico da técnica lingüística, vale dizer, nas línguas: a lingüística - tanto a “tradicional” quanto a “moderna” - tem sido substancialmente até nossos dias a lingüística das línguas. Mas, embora isto se justifique por especiais necessidades da pesquisa e por objetivos didáticos, não se deve por isso ignorar a importância dos outros dois planos: junto à lingüística das línguas há lugar pari uma lingüística do falar e uma lingüística do discurso (ou do texto), igualmente necessárias à compreensão efetiva da linguagem (e necessárias outrossim para se bem entender o funcionamento das línguas). 10.4.1. A lingüística do falar deveria estudar, em primeiro lugar, a técnica univer­ sal do falar como tal1. Com efeito, se é verdade que falamos sempre conforme uma

1 Cf. E. Coseriu, Determinación y entorno. Dos problemas de una lingüística del hablar; “Romanistisches Jahrbuch”, V, 1955-56, p. 29-54 (e agora também in Teoría del lenguaje y lingüística general, Madrid 1972 3.a edición, p. 282-323). Há tradução do livro para português a cargo da Editora Presença, Rio de Janeiro, 1979.

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determinada técnica histórica, não é menos verdade-que falamos também (e princi­ palmente) segundo uma técnica universal, porque no falar não usamos apenas da língua (o “ saber idiomático” ), mas também, certas possibilidades universais da lin­ guagem (p. ex., a entoação), de certas possibilidades expressivas não “ lingüísticas” (mímica, gestos), bem como de certos princípios do pensar válidos para a humanida­ de em geral e a permanente referência a fatos não lingüísticos: contextos objetivos, situações, conhecimento geral do “ mundo” . Alguns desses aspectos podem ser, em parte, “ históricos” ; é o que acontece com o uso de certos.gestos que pode corres­ ponder à tradição de determinada comunidade, e, ainda para fins de uma comunica­ ção efetiva e completa com indivíduos de outras comunidades, pode ser interessante fazer o levantamento dos gestos que se usam numa comunidade e estabelecer a medida de sua utilização. Mas com freqüência se trata de fatos efetivamente “ uni­ versais” . E, como quer que seja, a possibilidade de utilização de tais fatos no falar é uma possibilidade “ universal” . 10.4.2. Assim também os contextos extralingüísticos a que se faz alusão (implí­ cita) no falar podem ser de validade ampla ou limitada, mas a sua utilização e o saber utilizá-los pertencem à técnica universal da linguagem. Certos contextos va­ lem (virtualmente, pelo menos) para toda a humanidade: assim o contexto geral da experiência do mundo e de sua “ normalidade” . Todos dizemos, por exemplo, Saímos de casa (e expressões equivalentes em outras línguas), pressupondo que se pode sair, que a porta não está trancada, que continua havendo um “ fora” . Ou percebemos “fora” um barulho e pensamos: Alguém passa na rua, pressupondo que a rua continua existindo e que o mundo não sofreu, entretanto, mudança radical. Todos dizemos o sol brilha no céu, sem que tenhamos necessidade de aclarar a que sol e a que céu fazemos alusão, porque em nosso contexto “ natural” conhecemos um único sol e um único céu: não é que se trate de nomes próprios, mas sim de nomes comuns individualizados mediante o contexto “ natural” . Analogamente, num contexto muito mais limitado, o rio poderá designar sem ambigüidade o rio que passa pela nossa cidade, por exemplo. O mesmo poderá dizer-se, mutatis mutandis, dos contextos culturais. Em diversas comunidades do mundo se sabe que neste momento e já há bastante tempo há um só papa: por isso o papa, sem ser nome próprio, é uma expressão individuali­ zada graças a um contexto (praticamente) universal, tal como o doutor, o farmacêu­ tico podem sê-lo em contextos bem mais limitados, por exemplo numa povoação onde haja um único médico e um só farmacêutico.

10.4.3. Por outro lado, como já dissemos, o estudo da técnica universal também é necessário para determinar com exatidão o funcionamento das línguas, porquanto no falar a técnica universal e a técnica histórica se entrelaçam e completam recipro­ camente, amiúde até obrigatoriamente. Assim, ao dizer, em italiano, Mi lavo le mani, não há necessidade de precisar que se trata das minhas mãos: indico que a

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ação se refere a mim, mesmo através do emprego do m i reflexivo, com valor de complemento indireto; e —salvo se se deseja insistir na oposição às mãos de outrem - não se diz Lavo le mie maní Em inglês, no entanto, se diz / wash m y hands, com explícita indicação da “ possessividade” . E em português se diz apenas lavo asmãos que, traduzido literalmente, vale o it. “lavo le maní": a explicitação não é necessária se o que se lava, se enxuga, se limpa, etc. faz parte (do corpo) do agente. A utilização dos fatos contextuáis —no caso presente, duma relação entre o agente e o próprio corpo —, se realiza, pois, de maneira diferente nas três línguas. Os fatos deste tipo não foram, até agora, suficientemente estudados e, por* tanto, uma das dificuldades não só teóricas, mas também práticas (no ensino das línguas estrangeiras) consiste no indicar em que medida é possível (ou se deve) recorrer a relações e fatos extralingüísticos no falar ou escrever determinada língua. 10.4.4. O mesmo se há de dizer das referências a determinadas tradições culturais, referências freqüentes e “usuais” — ainda que não obrigatórias — no falar de qual­ quer comunidade. Por exemplo, as referências a certa mitologia são próprias da cultura grega e latina, razão por que se torna indispensável conhecer essa mitologia para compreender de maneira adequada os textos gregos e latinos. É certo que se trata de aspectos sobretudo filológicos, que dizem respeito a textos típicos de determinadas culturas, mas em parte se trata também de fatos característicos de textos em línguas determinadas e, em suma, de fatos que dizem respeito ao uso dessas línguas. É, certamente, oportuno distinguir os fatos filológicos dos propria­ mente lingüísticos, porém é outrossim necessário especificar quais são as possibilida­ des e os limites do uso de fatos culturais extralingüísticos no falar correspondente a uma língua determinada e num momento, também determinado, da sua história. 10.5.1. Estas considerações nos levam a outros problemas — também muito impor­ tantes, do ponto de vista prático —, que dizem respeito ao nível técnico individual e que, por isso, deveriam ser objeto da “ lingüística do discurso” ou “ do texto” . A lingüística do texto está representada na pesquisa glotológica atual, ainda que parcialmente, pela estilística dita “ crítica estilística” ou “ estilística da parole". A “ crítica semântica” de Pagliaro2 leva ainda melhor em conta o mesmo nível e não apenas do ponto de vista estilístico, mas também em relação a outros aspectos concernentes à interpretação de todo tipo de texto (mesmo que se trate de um texto jurídico, econômico, etc., sem que seja, portanto, necessariamente um texto literário stricto sensu). Em geral, porém, a lingüística do texto se acha pouco desenvolvida e muitos dos seus problema^ não se estudam ou não são sequer identi­ ficados como tais. Isto fica patente, entre outros indícios, na dificuldade em que quase sempre se encontram os professores de língua estrangeira a quem se apresenta um problema geral estreitamente ligado a essa lingüística: o problema da tradução.1

1 Veja-se 4.4.4.1.

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10.5.2. Com efeito, o que se traduz? Não se pode, certamente, transpor uma língua para outra na doce ilusão de que o fato se esgota na simples passagem da gramática e do léxico da língua A para uma língua B, uma vez que o que se traduz não é simplesmente “ língua” mas sempre um texto determinado. No entanto, quando se estudam a gramática e o léxico de uma língua estrangeira, a comparação se faz, no melhor dos casos, no nível das línguas e, com os resultados dessa compa­ ração, o tradutor deve enfrentar um probjema que, obviamente, não pode superar em tais condições: o problema de fazer que um texto numa língua x corresponda a outro texto na sua própria língua (ou ao revés). 10.5.3. Tomemos, para exemplo, as chamadas expressões idiomáticas, isto é, as expressões semánticamente “inanalisáveis” (vale dizer, cujo valor global não corres­ ponde à soma dos valores de língua dos seus elementos) e que, por conseqüência, se traduzem por inteiro, como se fossem textos ou fragmentos de textos. Pois bem, também o italiano M i dispiace (port. Tenho pena), usado como “ texto” autônomo e tomado em sentido absoluto, deve ser traduzido desta maneira e corresponde, por exemplo, em alemão, a Es tu t mir leid, e a I am sorry, em inglês. Entretanto, está claro que Mi dispiace não é em italiano uma expressão que não admite análise, como, por exemplo, in quattro e quattr’o tto (port. num abrir e fechar d ’olhos) ou tagliare la corda (port. "safar-se”, “ir-se embora”), que não valem pelo que signi­ ficam literalmente, mas sim como um todo e só podem ser traduzidas por expres­ sões globais de valor análogo (assim, por exemplo, a tagliare la corda —ou a levare le tende — pode corresponder em espanhol tomar las de Villadiego, que ao pé da letra significa em italiano “ prendere quelle di Villadiego” ): Mi dispiace só se torna expressão idiomática no momento da sua tradução porque não é passível de análise do ponto de vista de outras línguas, como o alemão e o inglês. Ao contrário, do ponto de vista do próprio italiano, a expressão representa tão somente um uso do verbo dispiacere, de modo que, se a tradução fosse feita no nível da língua, te­ ríamos como correspondências o alemão Es misfallt mir c o inglês I dislike it, porquanto neste nível (e em outros textos) o italiano dispiacere vale, com efeito, o mesmo que o alemão misfallen e o inglês to dislike (este último dito da pessoa a quem alguma coisa desagrada). 10.5.4. Além disso, o tradutor deve saber, não apenas como se traduz aquilo que efetivamente se traduz, mas também que expressões, em certos casos, não devem ser traduzidas (ou, ao contrário devem ser acrescidas). Tomemos o seguinte exemplo: se num texto italiano, encontramos com excessiva freqüência grazie, prego, poderemos concluir que esse texto foi traduzido do alemão, porque os italianos, sem dúvida, usam grazie e prego em determinadas circunstâncias, mas não com a mesma fre­ qüência dos alemães. Se um italiano entra numa loja e compra algo, dificilmente ele dirá ao empregado que lhe vendeu a mercadoria — como faz o freguês alemão — Grazie: o normal é exatamente o contrário. Traduzindo uma passagem em que se

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narra mais ou menos essa situação, deveremos juntar um danke schõn se aversão é do italiano ao alemão; se ocorrer o inverso, omitiremos a expressão de agradeci­ mento. I

10.5.5. O problema da tradução, como facilmente se pode deduzir destas conside­ rações, é um problema de lingüística do texto: ao traduzir devemos indagar o que e como diríamos, nessa mesma situação, na outra língua, ou melhor, na outra comu­ nidade lingüística, caracterizada, entre outras coisas, por tradições culturais diferen­ tes das nossas. 10.6.1. De resto, a distinção entre os três níveis da linguagem acima delimitados — o do falar em geral, o da língua e o do texto — deve ser feita também para as disciplinas lingüísticas parciais (incluída também a gramática), uma ve¿ que as tarefas dessas disciplinas são diferentes consoante o nível a que se referem. Destarte, a gramática concernente aos nossos três níveis será, respectivamente: gramática geral (não “gramática universal” — de todas as línguas —, coisa impossível e absurda, mas sim teoria-gramatical: gramática cujo propósito consiste em definir as categorias verbais — “ partes do discurso” —, e as categorias, as funções e os procedimentos gramaticais), gramática descritiva (dessa ou daquela língua em particular) e análise gramatical (de determinado texto). 10.6.2. A gramática geral, corretamente entendida, concerne ao falar em geral, porque não se pode definir verbo, substantivo, adjetivo, etc. em relação a uma determinada língua. Toda definição, com efeito, refere-se a uma categoria universal, a uma possibilidade da linguagem independente dessa ou daquela língua (ainda quando apareça em certas línguas e falte noutras). No que tange a uma língua determinada, poderemos apenas dizer se certa categoria se acha ou não representada nela e, em caso afirmativo, precisar-lhe as funções e descrever o esquema material da sua expressão: contrariamente ao que sustentam muitos estruturalistas norte-ameri­ canos (bloomfieldianos), é absurdo querer definir, por exemplo, “ o adjetivo em inglês” , porquanto no momento em que ele se define como “ adjetivo” , a definição se estende a qualquer língua que possua adjetivo. É certo, pelo contrário, que devemos também descrever — não definir! — “o adjetivo em inglés” , se o adjetivo existe nessa língua: a uma língua determinada refere-se, com efeito, a gramática descritiva, cujo objetivo, entre outras coisas é “ descrever” as categorias verbais próprias dessa língua, vale dizer, identificar essas categorias e estabelecer os esque­ mas materiais da sua expressão (operações, de resto, interdependentes). Enfim, em relação ao texto, a tarefa da gramática é a análise gramatical, isto é, a identificação das funções gramaticais efetivamente expressas num texto. Com efeito, muitas vezes as funções gramaticais só podem ser identificadas no nível do texto, ou, então, apresentam aspectos e matizes justificáveis só em razão de determinado texto. Ocorre isto, em parte, por ser possível uma coincidência parcial entre esquemas materiais dc diferentes categorias (p. exemplo, substantivo e adjetivo em: o sábio

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francés), em parte porque certas determinações gramaticais podem estar dadas im­ plicitamente, graças aos “ contextos” (cf. 10.4,2.). 10.7. Sobretudo, porém, a distinção dos três níveis da linguagem é importante e racionalmente necessária porque a esses três níveis correspondem também trêá n í­ veis de funcionalidade, três estratos do significar ou tipos de “ conteúdo” lingüís­ tico: a designação, o significado e o sentido (estratos que, é óbvio, nos fextos se apresentam simultaneamente). 10.7.1. A' designação é a referência à “ realidade” , isto é, a relação cada vez deter­ minada entre uma expressão lingüística e um “ estado de coisas” , entre signo e “coisa” designada. A designação pode corresponder a um significado de língua (que representa sua possibilidade), mas pode também não corresponder a ele e ser “ meta­ fórica” . Assim, ao ver um preto na rua, pode-se dizer de brincadeira Guarda un p o ’quel biondino (port. Veja o lourinhó), e neste caso biondino está aqui como designação de um “ preto” , embora no italiano não signifique “ preto” . 10.7.2. O significado é o conteúdo de um signo ou de uma expressão enquanto dado numa determinada língua e exclusivamente através dessa mesma língua: por exemplo, no caso de biondino (port. lourinho), o conteúdo que quem sabe italiano entende como possibilidade de designação deste significante (ainda fora de seu emprego concreto) e que pode ser parcialmente diferente (ou simplesmente não existir) em outras línguas. 10.7.3. O sentido é o conteúdo próprio de um texto, o que o texto exprime além e através da designação c do significado. Damo-nos facilmente conta desse estrato do significar nos casos em que, até no dia a dia, compreendendo ao pé da letra palavras e frases, nos perguntamos o que se quis dizer: com efeito, indagamos alguma coisa além do significado e da designação e alguma coisa de diferente desses conteúdos. Perguntamo-nos justamente qual é o “ sentido” (a intenção, o propósito, as implica­ ções, etc.) daquilo que “ lingüísticamente” , isto é, segundo os cânones da língua e do falar em geral, já tínhamos interpretado. Por exemplo, uma piada, sobre ter o seu “ significado” , isto é, além do significado que tem cada palavra e cada oração dela, tem também um sentido particular, cujo entendimento se faz necessário para com­ preendê-la; e “piada” (o fato de um discurso constituir “ piada” ) é, por sua vez, um “sentido” . 10.7.4. Com o sentido se relaciona também a importância particular que a lingüís­ tica do texto tem com respeito às conexões entre a teoria da linguagem e a da literatura. Com efeito, o plano do sentido é, por assim dizer, duplamente semiótico, porque nele um significante e um significado de língua constituem uma primeira série de relações, seguida de outra série, em que o significado de língua passa, por sua vez, a ser ‘significante’ para o conteúdo do texto ou “ sentido” . Os significados

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lingüísticos (e o que eles designam) constituem a parte material do texto ou da obra literária sendo a parte material, o “ significante” , de um outro signo cujo ‘signifi­ cado’ é o sentido do texto. Por conseguinte, tudo o que de urna obra se entende imediatamente, através dos signos lingüísticos, do ponto de vista do texto, não passa da percepção de um significante: Manzoni não fala de Dom Abbondio, do Innominato, de Perpetua, mas com. mediante Dom Abbondio, o Innominato, Per­ petua, enquanto símbolos, fala de outra coisa, que ó o sentido do seu romance. O plano do sentido e o do significado são sempre diferentes, mas, assim como o significado pode coincidir com a designação (cf. 11.1.4), o sentido pode coincidir com o significado. Neste caso, o sentido do texto é tão somente comunicativo, informativo, empírico ou “vital” , e não artístico ou literário (“ simbólico” ). De resto, há também formas de “ literatura” em que os fatos significados e designados são “ vitais” ; como, por exemplo, o romance policial que, exceto os casos em que se eleva à literatura artística, nos interessa, em sentido prático, pelos próprios fatos que narra, e não como criação simbólica. O romance policial interesse pelos acontecimentos e suas conexões, embora tais ocorrências sejam freqüentemente apresentadas pelo autor segundo um esquema determinado que torna menos fácil ou mais imprevisível a “ solução” , isto é, menòs evidente a conexão dos “ fatos” : quer dizer que interessa da mesma maneira uma narração de fatos efetivamente ocorridos, quando indagamos O que aconteceu?, embora não deixando de levar em conta a eventualidade de que o narrador possa dar-nos uma interpretação sua, ressaltando esta ou aquela particularidade, ou, em outras palavras, oferecendo-nos um texto de certa maneira “ literário” O plano do sentido é, portanto, importantíssimo e deveria ser estudado pelos lingüistas muito mais do que o fazem atualmente. Infelizmente, de uma lingüística do sentido só se vêem por enquanto delineadas as intenções.

A Língua Funcional

11.0.1. Passemos agora a examinar mais de perto o objeto tradicional da lingüís­ tica, isto é, o plano histórico da linguagem. Este plano pode ser identificado, como vimos, com o plano das línguas, das tradições técnicas, historicamente determina­ das, da linguagem de certas comunidades. Constitui aspecto fundamental da lingua­ gem o manifestar-se ela sempre como língua: conquanto criação, isto é, produção contínua de elementos novos, e, portanto, neste sentido, “ liberdade” , por outro lado, a linguagem é, ao mesmo tempo, “historicidade” , técnica histórica e tradição, vínculo com outros falantes presentes e passados. Em suma, solidariedade com a história atual e com a história anterior da comunidade dos falantes. Este fato tão característico da linguagem foi com muita nitidez enunciado porGiovanni Gentile, no breve capítulo dedicado à linguagem do seu Sumário de pedagogia, onde, depois de haver falado da liberdade da linguagem como criação, acrescenta: “ Então quer dizer que em vez de escrivaninha (tavolino) posso dizer caneta {penna)\ Abstrata­ mente, sim, mas concretamente não; porque eu que falo tenho uma história por trás de mim, ou melhor dizendo, dentro de mim e sou eu mesmo esta história: por isso é que digo e devo só dizer escrivaninha, e não outra coisa” .1 Não se trata portanto de uma limitação da liberdade (como vez por outra se pensa), mas da dimensão histórica da linguagem, que coincide com a própria histo­ ricidade do homem. Aliás, a liberdade humana não é arbítrio individual, é liberdade histórica e, como quer que seja, a língua não se “impõe” ao indivíduo (embora isso frequentemente se costume dizer): o indivíduo dispõe dela para manifestar sua li-

1 G. Gentile, Sommario di pedagogia, I, Sansoni, Firenze, 5.a ed., 1954, p. 65. Veja-se E. Coseriu, Der Mensch und seine Sprache, in “ Ursprung und Wesen des Menschen” (Tübingen, 1968), agora em trad. esp. em E. Coseriu, El hombre y su lenguaje, Madrid, Gredos, 1977, p. 32.

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berdade de expressão. E esta liberdade é quase ilimitada no plano do texto, onde os sentidos, embora não os significados, podem ser e realmente são sempre novos. 11.0.2. O plano histórico, está claro, é o plano dos “ significados” , das “ funções de língua” . Entretanto, para especificar o âmbito próprio de tais funções a “ lín­ gua funcional” (língua que funciona diretamente nos “ discursos” ) —, toma-se ne­ cessário percorrer um longo caminho e distinguir entre: 1) conhecimento da língua e conhecimento das “coisas” ; 2) linguágem e metalinguagem; 3) sincronia e diacronia; 4) técnica livre e “discurso repetido” ; 5) “ arquitetura” e “estrutura” da língua (ou língua histórica e língua funcional). 11.1.1. Em primeiro lugar, o plano do saber histórico não contém só fatos lin­ güísticos mas também outras tradições, relacionadas, estas, com as “coisas” , vale* dizer, com o mundo extralingüística. Para identificar o saber propriamente lingüís­ tico e estabelecer o que é a descrição da língua como tal, devemos pois fazer uma distinção preliminar entre conhecimento das coisas e saber idiomático. Com efeito, o conhecimento das “coisas” (incluindo as idéias e opiniões sobre as “coisas” ) mui­ tas vezes é confundido com o saber lingüístico (ou, pelo menos, não é distinguido dele). Assim, por exemplo. Charles Bally, retomando o conceito de ‘associação’ de F. de Saussure, afirma2 que a palavra b o eu f “ boi” vem associada em francés não só a vache, taureau, veau ( “vaca” , “ touro” , “ bezerro” ) e a comes, ruminer, beugler (“ chifres” , “ ruminar” , “mugir” ), mas também a labour, charme, joug (“ aradura” , “ arado” , “canga” ), e que ‘pode evocar, e evoca em francês’ idéias de ‘força, resis­ tência, trabalho paciente’ mas também de ‘lentidão, tardeza, passividade’. A tais associações e idéias corresponderiam modos de dizer como mettre la charme devant les boeufs (cf. em italiano o modo análogo pelo "sentido” , embora literalmente di­ verso: metiere il carro innanzi ai buoi), il est un b o eu f pour le travail, patient comme un boeuf, lourd comme un b o e u f ( ‘pôr o carro adiante dos bois’, ‘trabalha que nem um boi’, ‘paciente como um boi’, etc.). Ora, cabe perguntar-se se essas associações são todas do mesmo tipo e se todas são “ francesas” (isto é, fatos de língua francesa). Sem dúvida, a resposta será afir­ mativa no que tange às associações de b o eu f com vache, taureau, veau. Neste sen­ tido as “associações” eram diferentes, por exemplo, em latim, onde bos podia ser aplicado ao macho e à fêmea e significava “ boi” e “vaca” concomitantemente, en­ quanto vacca só se aplicava à fêmea. Também de modo diferente do francês procede o italiano, porque tem vacca e mueca, enquanto"b francês só possui vache e, por exemplo, a carne pode ser em italiano, conforme as circunstâncias, de manz,o ou de bue (e ainda de vacca, de vitellone), ao passo que em francês se diz normalmente viande de boeuf. Ao contrário, a associação de b o eu f com charme, por exemplo, é na realidade associação da “ coisa” real “boi” com o arado (também enquanto

’ Charles Bally, em “ Le Français Modeme”, • jl. VIII, 1940, p. 195.

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“coisa” ), e não é exclusiva da língua francesa (nem de nenhuma língua), e sim de uma ampla comunidade que tem do boi a experiência análoga (com efeito, a mesma associação se encontra na Itália, na Espanha, na Alemanha, etc.), enquanto, nas comunidades em que há outra experiência real do boi, o animal estará associauo, por exemplo ao templo, aos sacrifícios, a valores religiosos e sacramentais, como se dá na índia ou no Egito antigo. Quanto às idéias de resistência, trabalho paciente, tardeza etc., não há dúvida de que também elas dizem respeito ao próprio “ boi” e não à palavra b o e u f: essas associações seriam totalmente diferentes se tivéssemos do animal o conhecimento ou a idéia de que é inteligente, preguiçoso, impaciente, etc. 11.1.2. Uma mesma palavra pode, com efeito, estimular diversas associações ou produzir efeito exatamente contrário conforme as opiniões que por tradição ou por mero acaso se tenham formado em tom o das coisas que ela designa. Na Itália - pelo menos dentro do âmbito de certa tradição —, se dizemos de alguém que é un merlo (port. melro), entendemos que se trata de pessoa não muito inteligente; o oposto ocorre em. tcheco, pois aí, quando se diz to je kos “é um melro” , trata-se de um indivíduo muito astuto. Em português, especialmente no sul do Brasil, há já alguns anos, corre a expressão é um cavalo aplicada a pessoa que se mostra particularmente hábil e capacitada no seu trabalho; em espanhol, ao contrário, a mesma expressão {es un caballo) se aplica para alguém estúpido e grosseiro no comportamento físico e intelectual.3 O fato não depende, é óbvio, das relações lingüísticas que, dentro do português e do espanhol, tem o significado “ cavalo” , porquanto essas relações são, entretanto, as idéias acerca do próprio cavalo. Aliás, tais idéias e opiniões cons­ tituem tradições que, em geral, não coincidem com as lingüísticas, pois podem ter limites quer mais amplos, quer mais estreitos do que uma determinada comunidade lingüística,. Assim, as idéias que se têm do boi são mais ou menos as mesmas nas comunidades italiana, francesa, espanhola, etc. 11.1.3. É certo porém que o conhecimento das coisas e as idéias e opiniões acerca dessas mesmas coisas justificam provérbios, locuções, modos de dizer e assim por diante. Ora, não se pode pôr em dúvida a eficácia da expressão pôr o carro diante dos bois, com uma metáfora que põe logo em relevo um contexto claramente para­ doxal: o carro deve estar puxado pelos bois e isso só pode ocorrer se estiver atrás desses mesmos bois: se antes, impediria sua marcha, ou, fora da metáfora, impe­ diria o regular desenvolvimento de certo processo. Ao contrário, se disséssemos, por exemplo, pôr o fim antes do principio ou p o ro carro antes da casa, a expressão ou seria pouco eficaz ou seria pobre de sentido. Entretanto, é evidente que a expres­ são pôr o carro diante dos bois (it. metiere il carro innanzi ai buoi), como a sua cor­ respondente francesa m ettre la charrue devant les boeufs, deve sua força às “coisas” 5 A exemplificação do Autor restringe-se ao sul do Brasil, como declara. Na maior parte do país, o português coincide com a idéia que os falantes de espanhol têm do cavalo. (E.B.)

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mesmas e a associações e idéias relativas às coisas, mas não a associações puramente lingüísticas pertencentes à língua portuguesa (ou italiana, ou francesa). 11.1.4. Também as linguagens técnicas — onde os significados coincidem com as designações (no sentido de que são objetivamente motivados) — pertencem à tradi­ ção que se refere ao conhecimento das “coisas” , e isto não vale apenas para as lin­ guagens das ciências e das técnicas constituídas como tais, senão, também para o léxico da ciência e técnica populares: para tudo o que, numa tradição lingüística, é “ nomenclatura” (nomes de utensílios e suas partes, nomes de plantas ou de ani­ mais no nível das espécies, etc.). Essas nomenclaturas extrapolam o saber lingüís­ tico como tal, pois implicam um saber relativo às próprias coisas, ou seja, um tipo de saber científico ou técnico, ainda que popular. De fato, tais nomenclaturas não são suficientemente familiares a todos os falantes de uma comunidade lingüística, mas tão somente a certos grupos (nem sempre os mesmos), e, por outro lado, é perfeitamente possível conhecer bem uma língua e desconhecer, por exemplo, as denominações de flores ou de peixes. Na maioria das vezes o falante comum se limita a usar p nome genérico (essa flor por essa dália, esse peixe por esse chem e) ou então se contenta com saber vagamente que se trata de flores ou de peixes, dei­ xando aos entendidos e aos estudiosos de botânica ou de zoologia popular o conhe­ cimento mais exato das “coisas” e respectivos nomes. Ao atribuir o significado le­ xical às ciências das coisas4 5, L. Bloomfield tinha, pois, razão no que diz respeito à linguagem técnica, mas, ao mesmo tempo, se equivocava atribuindo às ciências das coisas todo significado lexical, isto é, considerando, em suma, todo significado como “técnico” : a definição dos “significados” dos 300.000 e tantos termos da química pertencem, sem dúvida, à química, mas não existe nenhuma ciência a que se possa pedir a definição de significados como, por exemplo, “andar” , “trazer” , “pedir” , “querer” , que são conteúdos da língua portuguesa e de mais nenhum outro saber. 11.2.1. Uma segunda distinção muito importante, já no âmbito do saber lingüís­ tico, é a que se põe entre linguagem e metalinguagems . Por “ metalinguagem” enten­ de-se uma linguagem cujo objeto também é uma linguagem; por exemplo, o falar das palavras, das frases. A linguagem ou, melhor dizendo, a linguagem primária, é linguagem cujo objeto não é por sua vez uma linguagem. Como dissemos, esta dis­ tinção já se encontra esboçada no De magistro de Santo Agostinho. A metalinguagem, enquanto representa certo uso da linguagem, pertence ao domínio da lingüística do falar; e neste sentido não possui nenhuma estrutura nem se pode estruturar no nível do saber idiomático, sendo infinito. Com efeito, numa metalinguagem de base italiana (ou portuguesa), por exemplo, podemos falar de

4 Veja-se 5. 5 Esta distinção já foi prenunciada anteriormente em 1.5.3.

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todas as línguas do mundo, incluindo o próprio italiano, e até de línguas imaginá­ rias, e podemos referir-nos, a nosso bel-prazer, ou a expressões e palavras inteiras, ou a cada uma de suas partes. Destarte, podemos dizer “a lb r o ” é uma palavra ita­ liana, enquanto “orbaco” è uma palavra dialetal6; -zione é um sufixo m uito usado-, "kalt” em alemão significa "frio ”\ - “ing”, em inglês, é um sufixo-, “Hampr” é uma palavra inventada, etc. 11.2.2. Certas dificuldades da teoria lingüística devem-se à confusão (ou à não dis­ tinção) entre linguagem primária e metalinguagem. Assim, uma das dificuldades que se encontra na definição de “palavra” —dificuldade, aliás, mais aparente que real — reside no fato de que se quer defini-la na linguagem primária e, ao mesmo tempo, na metalinguagem. Ora, isso é simplesmente impossível, porque na metalinguagem (inclusive na metalinguagem usada junto com a linguagem primária, no falar cor­ rente) todo e qualquer segmento de uma palavra pode tomar-se “palavra” . Se, por exemplo, acerca de algo digo que é amarelo, pode um interloculor corrigir-me ju n ­ tando apenas “-lão” , isto é, tratando o sufixo como uma palavra da mesma natu­ reza que amarelo. Ou ainda: se, por engano, profiro, em italiano, le casa (port. as casa), e o rtteu interlocutor me corrige dizendo “ -e” , isto é, indicando a desinência necessária para formar o plural de casa, também esse "-e” é uma palavra (e até uma oração), da metalinguagem. naturalmente. 11.2.3. Por motivos análogos, essa mesma distinção tem importância particular também para a gramática. Por exemplo, é erro assaz freqüente nas gramáticas esco­ lares asseverar que todas as classes de palavras podem funcionar como sujeito, até mesmo um adjetivo, porque se pode dizer "verde” é um atributo, ou um advérbio, pois Dante já disse o sim e o não brigam dentro de m im (il si e i no nel capo m i ten­ dona, Inf. VIII, 111). Ora, na realidade só uma classe de palavra pode ser sujeito: o substantivo (como nome ou pronome). Entretanto, todas as palavras do “léxico” próprio da metalinguagem são, justamente, substantivos: o nome de uma letra, de uma palavra (que pode ser adjetivo, verbo, advérbio, etc.), de uma categoria — tudo é substantivo enquanto nome de alguma coisa. E mais ainda: na metalinguagem até orações inteiras e fragmentos de palavras passam a “ nomes” e “ substantivos” (p. ex., "Dize-me" é um imperativo-, "di-” è a primeira silaba de “d i z e - m e e m “Dize-m e” há três vogais; "Dize-me sim ” é o oposto de "Dize-me não") e podem, por isso, exercer o ofício de sujeito. 11.2.4. Doutra parte, se o léxico metalingüístico, por ser virtual e ilimitado, não é estruturável (de fato, na metalinguagem as “ palavras” criam-se à vontade, no mo­ mento mesmo da sua utilização), o uso da metalinguagem pode também manifestar uma técnica própria numa determinada tradição lingüística; ou seja. pode haver 6 folha. (E.B.)

Trata-se de dois vocábulos usados em italiano para indicar a árvore loureiro ou a sua

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uma gramática da metalinguagem (gramática, na realidade, muito pouco estudada, mas que mereceria sê-lo com mais atenção). Em italiano, por exemplo, valem para este caso certas regras relativas ao uso do artigo; diz-se “fiu m e ” (rio) é um substan­ tivo masculino, “-are" é uma desinência de infinitivo, “p iü ” (mais) e “m eno" (me­ nos) formam comparativos (ao lado de " l ’a (o, a) do nominativo singulaf’, " ia (o a) longo do tema” , etc.], e se se dissesse il fium e (o rio) não mais estaríamos no âmbito da metalinguagem, e sim da linguagem primária. Em grego antigo, os nomes metalingüísticos são todos neutros; assim é que, se ò injroÇ significa “o cavalo” , como ani­ mal, tò inirÇ significa “ a palavra tm rof” . Do mesmo modo, se ore significa “quan­ do” , rò ôre passa a significar (além de “ o quando” , substantivado) “ a palavra Ôre”. O único sinal desta utilização no âmbito metalingüístico é portanto o artigo neutro, com patentes sincretismos quando a palavra de que se trata já é de per si um neutro. 11.2.5. A descrição da língua se refere, naturalmente, à linguagem primária, e não à metalinguagem, na medida em que esta última não é estruturável no nível do “ sa­ ber idiomático” . Mas, uma vez que a metalinguagem pode ter, neste mesmo nível, a sua própria gramática, diferente da gramática da linguagem primária a ela corres­ pondente, ao descrever uma língua se deveriam indicar também as suas normas para o uso metalingüístico; e, no nível da análise gramatical do texto, se deveria distin­ guir a técnica da linguagem primária da técnica da metalinguagem. 11.3.1. Uma distinção essencial na linguagem primária (mas que também se pode estender à “gramática” da metalinguagem) é a distinção entre sincronia e diacronia, ou seja, entre a língua num dado momento do seu devenir histórico (e considerada no seu funcionamento no falar) e a língua “ através do tempo” , isto é, justamente no seu devenir histórico. Trata-se de uma distinção bem conhecida e nela não insis­ tiremos aqui7, limitando-nos a assinalar que a descrição de uma língua é, natural­ mente, “sincrónica” , no sentido de que considera a língua no seu funcionamento (e não no seu devenir histórico). Todavia, é conveniente distinguir entre estado de lingua real e sincronia considerada idealmente e, por assim dizer, “ absoluta” . Com efeito, também no estado de língua está implícita uma dimensão diacrônica, porque os falantes consideram certas formas e construções como antiquadas ou, ao con­ trário, como recentes e, quando as usam, levam em conta esses valores para dar aos seus discursos um sabor de arcaicidade ou modernismo. Assim, se digo em italiano tu tti si assisero, o falante médio entende o sentido de assisero, interpreta-o como “ se sentaram” , mas percebe na expressão um ar de solenidade, aquele, justamente, que eu pretendia conferir às minhas palavras e comunicar com elas8. Sobretudo quando uma tradição literária da língua invade a língua falada, patenteia-se a coexis7 Sobre os vários problemas que a distinção suscita, veja-se E. Coseriu, Sincronia, discronia e historia, 2.a cd., Madrid. 1973, trad. port.. Rio de Janeiro, Presença, 1979. Comparem-se em português modos de dizer como: sói acontecer, em que pese a. asstsfo no Rio [ - moro), aluguer (por aluguel), etc. (E.B.)

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tência de dois ou mais estadios no estado de língua, coexistência que, em última análise, reflete a própria vida da língua, no seu perene intercâmbio. 11.3.2. Trata-se, aliás, de uma diacronia “subjetiva” ou “diacronia dos falantes” (intuída como tal por estes mesmos) e que pode ser inteiramente diversa da dia­ cronia estabelecida por um estudioso da história da língua. Em italiano, por exem­ plo, há quem distingue udire de sentire, usando o primeiro com o valor do port. ouvir e sentire com o valor do port. sentir e considera o emprego de sentire por udire como molesta novidade; outros falantes, ao contrário, empregam somente sentire com os dois valores e, para estes, Ho udito un rumore (Ouvi um barulho) tem um ranço entre afetado e envelhecido. Pois bem, do ponto de vista da história “objetiva” udire só é “ antiquado” para os falantes que o não utilizam mais corren­ temente e o uso de “sentire” por “ouvir“ não representa de fato uma novidade; encontra-se já em Dante e data, com certeza, de época ainda mais recuada, por­ quanto se encontra também em outras línguas románicas (é normal em catalão, e regional e dialetal em espanhol), e talvez se deva a um influxo grego no latim vulgar ( “calco” ), porquanto também em grego antigo aíodávopai, “sentir” se estendia a expensas de ócnoveiv, “ ouvir” . Entretanto, nada disto importa do ponto de vista do funcionamento da língua e da maneira de proceder dos falantes que, no fundo, são os que o determinam. Também na descrição de um estado de língua se deverão, por­ tanto, levar em conta esses fatos de diacronia implícita, através dos quais certas dis­ tinções, efetivamente cronológicas ou não, têm determinado valor funcional para os falantes: todo fato subjetivamente “diacrònico” deverá ser descrito na sua pró­ pria “ sincronia” (vale dizer, no seu funcionamento). 11.4.1. No estado de língua “ sincrónico” é preciso distinguir duas espécies de tra­ dição: a técnica livre do discurso e o discurso repetido. A técnica livre compreende os elementos da língua e as regras “ atuais” pertinentes à sua modificação e combi­ nação, ou seja, as “ palavras” e os instrumentos e procedimentos lexicais e gramati­ cais. 0 discurso repetido, por seu tum o, compreende tudo o que, no falar de uma comunidade, se repete tal e qual, como discurso já produzido ou combinação mais ou menos fixa, como fragmento, longo ou curto, do “já falado” . Assim, il buon milanese é um fato de técnica livre, enquanto il buon samaritano (combinação já existente como tal) é um fato de discurso repetido9. Por este prisma, um discurso concreto pode amiúde ser análogo a um quadro executado, em parte, por “collage” : no quadro além das partes pintadas com a técnica do pintor que o compõe, po­ dem-se encontrar também porções tomadas de outras telas, compostas por outros pintores.

9 Em português teríamos bom menino ao lado de bom dia, este último um discurso repetido. (E.B.)

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11.4.2. 0 discurso repetido pode ser de “citação” : tomada de partes de textos — literários ou não — conhecidos como tais. Assim, se digo nel mezzo del cammin di riostra vita, questo matrimonio non s'ha da fare, refiro-me a textos determinados (neste caso, de Dante e de Manzoni), a que posso aludir também variando-os em parte e dizendo, por exemplo, questa lezione non s'ha da fare, nel mezzo del cam­ min di questo libro (em certos casos, a alusão ao texto se configura, justamente, como imitação ou parodia duma obra literária)101. Além dessas alusões a textos mais ou menos divulgados de autores conhecidos e desconhecidos, o mesmo tipo de tradição lingüística compreende diversas outras formas: provérbios, locuções fixas, modos de dizer, fórmulas tradicionais de com­ paração - com ou sem como (it. buono come il pane, cattivo come la peste, con­ tento come una Pasqua, ubriaco fradicio) —, etc. Todas estas formas apresentam um traço comum: seus elementos não são lingüísticamente “estruturáveis” , porque, na medida em que são fixos, não podem ser substituídos (não são “ comutáveis” ) e, por conseqüência, não entram em oposições funcionais atuais. Assim, não po­ deríamos dizer la Pasqua, em lugar de una Pasqua, na expressão contento come una Pasqua, nem il gatto em tanto va la gatta al lardo (e, mesmo que isto assim ocor­ resse, tai& variações não modificariam o valor destes dizeres)11. De resto, o discurso repetido pode obedecer a regras de língua que não vigoram mais, conter formas que se não identificam (quem sabe hoje o que significa resta [port. tiste| na expressão con la lancia in resta [port. de lança em riste] ou qual seja o sentido de in canna (literalmente, em cana em povero in canna [correspondente ao português (estar) em extrema penúria]?) ou até pertencer a outras línguas (cf., por exemplo, em dis­ cursos italianos more uxorio, ça ira ou selfm ade man). 11.4.3. Certos tipos de discurso repetido (além dos fatos que se prendem às lite­ raturas correspondentes) são característicos de algumas comunidades e deveriam portanto ser levados em consideração de maneira especial na descrição e no apren­ dizado das tradições lingüísticas. Assim, são característicos da comunidade lingüís­ tica espanhola os chamados “refranes” (refrãos). E na comunidade lingüística ita­ liana é típica a repetição de inícios de trechos de óperas líricas, como un bel di vedremo (de Madame Butterfly, de Puccini), la donna è mobile (do Rigoletto, de Verdi), il cavallo scalpita (da Cavalleria rusticana, de Mascagni), che gélida manina (da Boheme de Puccini), fórmulas amplamente conhecidas e usadas também por 10 Por exemplo, encontram-sc em Carlos Drummond de Andrade e outros autores, antigos e modernos, numerosos enxertos de trechos de Camões, como neste passo: "Confesseilhe. em meu saber de ignorancias feito, que . .." (Caminhos de João Brandão). De Camões se petrificaram expressões como “por mares nunca dantes navegados”, “é tarde, Inés é morta”, “se vão da lei da morte libertando", “cesse tudo o que a antiga musa canta”, “outro valor mais alto se levanta”, transcrições fiéis ou variantes que são freqüentes nos discursos, literários ou não, escritos ou orais, do brasileiro escolarizado. (E.B.) 11 Seria o mesmo que, em português ocorreria com a substituição de gato por o gato, um gato, gata, etc. em passou pelo assunto como gato por brasas. Não mudaria de todo o. sentido da expressão ainda quc.se dissesse como lebre por brasas, por exemplo. (E.B.)

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aqueles que não conhecem as óperas de que fazem parte. Ñas comunidades protes­ tantes (na Inglaterra, na Alemanha, na Suécia, nos Estados Unidos) está difundido o conhecimento da Bíblia e são freqüentes as alusões a esse texto; o que já não poderia ocorrer nas comunidades católicas onde o conhecimento da Bíbliaé quase nenhum, de modo que tais referências correriam aí o risco de passar despercebidas, na maior parte das vezes. E na comunidade grega antiga, pelo menos na de certo nível cultural, eram amiudadas as alusões à mitologia e a Homero. 11.4.4. Porém como inserir o discurso repetido na descrição lingüística estrutural e funcional, se os seus elementos, conforme se disse, não são “estruturáveis” e fogem por isso a uma consideração estrutural? Pois bem, é patente que o objeto precipuo da descrição estrutural é a técnica livre; importa, porém, observar que, se os elementos do discurso repetido análogos aos da técnica livre ( “palavras” , ins­ trumentos gramaticais) não são comutáveis, as suas combinações, ou seja, as unida­ des deste discurso, correspondem funcionalmente à unidade de diversos níveis da técnica livre, com os quais são comutáveis, e podem, por isso, ser considerados como unidades “ não analisáveis” da mesma técnica, nos níveis de estruturação gra­ matical em que funcionam. Deste ponto de vista certas formas do discurso repetido não pertencem de modo algum à técnica idiomática, porquanto não eqüivalem a unidades combináveis dela: tais formas são aquelas que correspondem a textos inteiros (ou a frag­ mentos de textos de sentido completo), como as citações e os provérbios. Nestes casos não pode haver oposições no interior da técnica idiomática, mas apenas entre um e outro texto: na realidade, trata-se de uma forma da “literatura” (tomada aqui em sentido amplo, incluindo também moral, ideologia, etc.), de tradições literárias inseridas na tradição lingüística e que por isso deveriam ser estudadas pela lingüís­ tica do texto e pela filologia. E, com efeito, uma disciplina filológica —a paremiologia ou ciência dos provérbios (do grego trapoipia “provérbio” ) - em parte se ocupa desses fatos. Entretanto, há outras formas pertencentes ao mesmo tipo e que deveriam ser estudadas mais do que na verdade o são; é o que acontece, por exem­ plo, com os chamados wellerismos, isto é, os modos de dizer introduzidos por - ou acompanhados de — uma das formas seguintes ou formas equivalentes: como dizia aquele que, como disse o outro, etc.12 e que por isso pretendem referir-se a uma reação verbal de alguém numa determinada situação (mesmo que muitas vezes se trate de reações e situações imaginárias, como, por exemplo: Que não é uma situa­ ção agradável não é, como dizia aquele a quem quebravam nozes na cabeça). Outras formas de discurso repetido correspondem funcionalmente a “ sin­ tagmas” (combinações de palavras) da técnica livre, são comutáveis com sintagmas (se opõem a eles) e, por isso, deveriam ser estudadas em nível sintagmático. Assim, por exemplo, cavársela p eril rotto delia cuffia corresponde, mais ou menos, em por-1 11 Chamam-se wellerismos porque um célebre personagem de Dickens chamado Sam Weller (em Pickwick) faz largo uso dessas expressões.

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tugues a “sair de uma situação perigosa com pouco ou nenhum dano” . A este mes­ mo tipo pertencem rendere pan per focaccia (port. “ pagar na mesma moeda”), vedersela brutta, farsi vivo, faria franca, etc.13 Um terceiro tipo é constituído pelas “perífrases lexicais” , que correspondem a uma só palavra da técnica livre, assim, por exemplo, o it. in quatro e quatr'otto, equivalente a “ rapidamente” , “ imediata­ mente” e que se opõe a adagio, lentamente, no nível das unidades lexicais.14 Aná­ logo é o caso de tagliare la corda (port. “ sumir” , “ ir-se embora” ), levare le tende (port. “levantar acampamento” , “ ir-se embora” ), a mano a man (port. “gradual­ mente” ), etc. Por fim, um quarto tipo funciona em nível dos morfemas, isto é, dos instrumentos gramaticais; é o que acontece com as “expressões de comparação” que funcionam como morfemas de superlativo absoluto ( “elativo” ), conforme se pode ver em escuro que nem breu = escurissimo, vermelho como um camarão = vermelhissimo, mais feio que a morte = feissimo (cf. em italiano contento come una Pasqua = contentíssimo). Os tipos segundo, terceiro e quarto aqui apontados do discurso repetido evi­ denciam que ele deveria ser estudado como uma larga seção autônoma do “saber idiomático” .' 11.5.0. Como quer que seja, o objeto por excelência da descrição estrutural é a língua enquanto técnica sincrónica do discurso. Entretanto, numa língua histórica (língua constituída historicamente como unidade ideal e identificada como tal pelos seus próprios falantes e pelos falantes de outras línguas, habitualmente através de um adjetivo “ próprio” : língua portuguesa, língua italiana, língua inglesa, língua francesa, etc.), esta técnica não é nunca perfeitamente homogênea. Muito ao con­ trário: em geral representa um conjunto assaz complexo de tradições lingüísticas historicamente conexas, mas diferentes e só em parte concordantes. Em outros ter­ mos: uma língua histórica apresenta sempre variedade interna. Mais precisamente, podemos nela encontrar diferenças mais ou menos profundas pertencentes substan­ cialmente a três tipos: a) diferenças diatópicas, isto é, diferenças no espaço geográ­ fico (do grego b iá “ através de” e rórrof “lugar” ); b) diferenças diastráticas, isto é, diferenças entre os estratos sócio-culturais da comunidade lingüística (do gr. 6 iá e o latim stratum); e c) diferenças diafásicas, ou seja, diferenças entre os diversos tipos de modalidade expressiva (do gr. 5 iá e ¡pácnÇ “expressão” ) 15. As variedades lingüísticas que caracterizam — no mesmo estrato sócio-cultural — os grupos “ bio13 Tais expressões corresponderiam —servindo também de exemplificação para o que se diz aqui - às nossas "pagar na mesma moeda”, ‘‘estar em maus lençóis” , “quem é vivo sempre aparece” e "sair incólume”, respectivamente. (E.B.) 14 Seria em português num abrir e fechar d ’olhos, equivalente a “ rapidamente”, “ime­ diatamente” e oposto a vagarosamente, lentamente. (E.B.) 15 Os termos diatópico e diastrático foram pela primeira vez propostos por L. Flydal, “ Remarques sur certains rapports entre le style et 1’état de langue” , Norsk Tidsskrift for Sprogvidenskab, vol. 16, 1951, p. 240-257. Ao adotá-los, acrescentamos o termo diáfásico para referir-nos às diferenças ditas “estilísticas”.

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lógicos” (homens, mulheres, crianças, jovens) e os grupos profissionais podem ser considerados como “diafásicas” . 11.5.1. É em nível de língua popular (“ dialetal” ) que as diferenças diatópicas são geralmente notórias, pois aí, de fato, nas línguas européias e especialmente em cer­ tas comunidades (a italiana, francesa ou alemã) elas aparecem com mais evidência. Entretanto, essas diferenças existem também em nível da língua comum (língua de uso “super-regional” e hiperdialetal). Assim, na Itália, reconhece-se freqüentemente também nesse nível a procedência dos falantes pela pronúncia, por alguns fonemas, por palavras e construções; e até se vão estabelecendo certos tipos regionais de lín­ gua comum (um tipo “setentrional” , um tipo “ meridional” , um tipo “central” ). Porém se trata, por ora. mais de variedade determinada pelos dialetos a eles “subja­ centes” do que de variedades estáveis e autônomas do italiano comum. Mais estáveis e, neste sentido, melhor caracterizadas são tais variedades em línguas históricas fa­ ladas em diversos países, politicamente independentes e culturalmente autônomos: é o caso do inglês, do espanhol e do português da Europa e da América. Não obs­ tante a unidade da técnica fundamental dessas línguas, há entre os tipos europeus e americanos diferenças de pronúncia, de léxico e, em parte, também de gramática, mesmo em nível da língua comum (e literária). 11.5.2. As diferenças diastráticas são particularmente acentuadas nas comunidades cm que existem grandes variedades culturais entre os diversos estratos sociais e, na­ turalmente, naquelas onde há castas. Assim, por exemplo, essas diferenças eram ra­ dicais na índia antiga: no antigo teatro indiano (teatro “ realista” , a esse respeito), os reis, os nobres e os sacerdotes falam sánscrito (a língua das classes superiores e língua “culta” por excelência), enquanto os representantes das classes inferiores (também por exemplo, os comerciantes), e as mulheres e as crianças (de todas as classes) falam várias formas do prácrito, isto é, da língua popular. E ainda hoje são notáveis essas diferenças em diversas comunidades da Ásia (persa, indonésia, japo­ nesa). Mas também se encontram diferenças diastráticas mais ou menos profundas nas comunidades européias, e, justamente, também naquelas em que estas diferen­ ças não coincidem com as existentes entre língua comum e “ dialeto” (como “lín­ gua popular”). Destarte, existem um francês popular e um inglês popular (muito diversos das formas “ cultas” dessas línguas), um espanhol popular e, até certo ponto, também um italiano popular (como forma do italiano comum). 11.5.3. As diferenças diafásicas podem ser notáveis —segundo as comunidades —, por exemplo, entre língua falada e língua escrita, entre língua “ usual” (alemão Umgangssprache) e língua literária, entre o modo de faíar familiar e um modo “ pú­ blico” (ou, eventualmente, solene), entre linguagem corrente e linguagem cerimo­ niosa, etc. E na língua literária podem existir diferenças sensíveis entre a poesia (cm versos) e a prosa, entre a poesia épica e a lírica, etc. Na Itália, até há muito pouco tempo e por uma tradição própria da poesia lírica, se usavam nesta última, no imperfeito, formas em -ea, -ia, enquanto, na língua corrente, as mesmas formas

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terminavam em -eva, -iva (avea, partia por aveva, partivà), ou se usavam palavras co­ mo augello, alma, que raramente se teriam usado em prosa (e nunca na língua fala­ da). Somente nos últimos setente anos se alterou essa tradição e hoje nenhum poeta escreveria mais como Carducci, um dos últimos representantes desta tradição lingüístico-retórica da poesia italiana. Um caso bastante diferente é o da literatura an­ tiga grega, onde as diferenças diafásicas sao muito profundas, por corresponderem a diferenças de tipo “ diatópico” caracterizado ras dos vários gêneros literários: escreve-se a poesia épica em dialeto ‘"homérico” (essencialmente jônio), a lírica (poe­ sia mélica) monódica em eólio, a lírica coral em dórico, enquanto a prosa, a tragé­ dia e a comédia (ressalvadas as partes corais) são em ático; e o prestígio da tradição homérica é tamanho, que até a idade bizantina (e ainda nesta) quem quer que escre­ vesse poesia épica — e até, simplesmente, poesia em hexámetros — adotava, em es­ sência, o dialeto homérico. 11.5.4. A estes três tipos de diferenças correspondem, em sentido contrário, (vale dizer, no sentido da relativa homogeneidade das tradições lingüísticas), três tipos de unidades de sistemas lingüísticos mais ou menos uniformes, ou seja, de “línguas” pertencentes à mesma língua histórica: unidades consideradas em um só ponto do espaço ou que (praticamente) não apresentam diversidade espacial, isto é, unidades sintópicas ou dialetos (termo que poderá aplicar-se a todos os tipos de variedades regionais compreendidas na língua histórica, inclusive àquelas da língua comum); unidades consideradas num só estrato sócio-cultural ou que (praticamente) não apresentam diversidade deste ponto de vista: unidades sinstráticas ou níveis de lín­ gua (são os chamados “ dialetos sociais” ); e unidades de modalidade expressiva, sem diferenças diafásicas, isto é, unidades sinfásicas ou estilos de língua (por exemplo: estilo familiar, estilo literário épico, etc.). Neste sentido, pode-se dizer que uma língua histórica não é bem um sistema lingüístico e sim um diassistema, um conjunto mais ou menos complexo de “ dia­ letos” , “ níveis” e “estilos de língua” : Dialetos l

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Observe-se ainda, que, normalmente, nenhum desses “ sistemas” é (mais ou menos) homogêneo, quando considerado de um só pontQ de vista: para cada dia­ leto se podem estabelecer diferenças diastráticas e diafásicas (e daí níveis e estilos de língua); para cada nível, diferenças diatópicas e diafásicas (dialetos e estilos) e para cada estilo, diferenças diatópicas e diastráticas (dialetos e níveis). Outrossim, os limites entre níveis e entre estilos de língua podem ser diferentes segundo os vá­ rios dialetos, e os limites entre os estilos podem também ser diferentes conforme os vários níveis.

11.5.5. Por isso uma língua histórica não pode ser descrita estrutural e funcional­ mente como um sistema lingüístico, como um a.estrutura unitária e homogénea, simplesmente porque não o é; ao contrário, contém, em geral, sistemas lingüísticos bastante diferenciados, às vezes não menos diferenciados do que certas línguas his­ tóricas reconhecidas como tais (pense-se, por exemplo, nos dialetos italianos seten­ trionais e meridionais). Por outro lado, uma descrição estrutural única de toda uma língua histórica, sobre ser racional e empíricamente impossível, não teria nenhum interesse prático, uma vez qup a língua histórica “não se fala” : não é realizada, como tal e de modo imediato, no falar, mas apenas através dessa ou daquela de suas formas determinadas em sentido diatópico, diastrático e diafásico. Nenhuma pessoa pode falar (simultaneamente) o italiano todo ou o inglês todo, o inglês “sem adje­ tivo” ou o italiano “ sem adjetivo” (por exemplo, um italiano que não seja nem toscano, nem romano, nem milanês, etc., nem popular nem culto, etc., nem familiar nem solene, etc., ou, ao contrário, um italiano milanés e ao mesmo tempo siciliano, popular e ao mesmo tempo culto, familiar e aò mesmo tempo solene, etc.). Sempre se fala uma determinada forma de italiano, nunca o italiano, mas em todo caso um italiano (v. gr., o italiano comum romano de nível médio e em estilo familiar). Uma técnica lingüística determinada (isto é: unitária e homogênea) dos três pontos de vista de que se vem falando — quer dizer, um só dialeto em um só nível e num só estilo de língua - ou, em outros termos, uma língua sintópica, sinstrática e sinfásica, pode ser chamada língua funcional. O adjetivo “ funcional” encontra, neste caso, sua justificação no fato de que somente esta língua entra efetivamente nos discursos (ou “ textos”). Num só e mesmo discurso pode, é claro, ocorrer mais de uma língua funcional (por exemplo, num discurso narrativo, um modo de falar do narrador e outro modo dos seus personagens, ou diversos modos de falar que caracterizem esses mesmos personagens), mas a cada momento do discurso se apre­ senta sempre e necessariamente uma língua funcional determinada. O italiano, o inglês, o francês, o português, etc., como geralmente são entendidos, não se reali­ zam diretamente nos discursos e por isso não são línguas funcionais: são, a rigor, “ coleções” de línguas funcionais, enquanto uma língua funcional é uma forma inteiramente determinada de italiano, de inglés, de francês, de português, etc. Uma língua comum fortemente unificada e rigidamente codificada (como, por exemplo, o francês “ oficial”) aproxima-se deste conceito de língua funcional, mas não lhe

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corresponde exatamente, porque também numa língua desse tipo há pelo menos diferenças “estilísticas” . 11.6.1. O objeto próprio da descrição lingüística, entendida como descrição estru­ tural e funcional, é, justamente, a “ língua funcional” ou, repetindo mais uma vez: um só “ dialeto” , considerado em determinado “nível” e num determinado “estilo de língua” . Isto porque só no âmbito de tal tipo de língua, e não numa língua his­ tórica considerada em sua plenitude, é que tém validade, de modo não ambíguo, as oposições, estruturas e funções que se encontram numa tradição idiomática, bem como as suas relações sistêmicas (mesmo que uma oposição, estrutura ou função possa ser comum a várias línguas funcionais). Ao contráno, tratando-se de uma língua histórica, a descrição estrutural de­ veria ser feita separadamente por cada uma das línguas funcionais que nela se dis­ tinguem: à “coleção” de línguas funcionais deveria a rigor corresponder uma “ co­ leção” de descrições. Neste sentido, a descrição estrutural não pode ser apenas sincrónica (como já se admite geralmence), mas deve ser (e, na realidade, é necessariamente) também sintópica, sinstrática e sinfásica. Quando se fala de “gramática estrutural do inglês” (“ do francês” , “ do italiano” , “do português” ), sempre se entende, com efeito, que se trata ‘de um tipo determinado de inglês’ ( ‘de francês’, ‘de italiano’, ‘de portu­ guês’). Uma gramática estrutural “italiana” (= “do italiano” ) e mesmo uma gramá­ tica descritiva “do italiano” - isto é, uma descrição simultânea de todas as modali­ dades do italiano (dialetos, níveis, estilos de língua) - é tarefa de todo impossível. É bem verdade que na lingüística estrutural a exigência de se limitar, em cada caso, à língua funcional se acha na maioria das vezes implícita. Só raramente ela se reco­ nhece explícitamente. Assim, por exemplo, isto se dá com D. Jones, Z. Harris — que, no seu livro dedicado à lingüística estrutural, alude também, embora de forma um tanto vaga, ao caráter unitário da língua que se descreve estruturalmente — e, em certo sentido, com Chomsky, que, nos Aspectos da teoria da sintaxe - embora sem fazer as distinções que aqui propusemos - afirma praticamente, com seu con­ ceito de ‘falante-ouvinte ideal’, a necessidade científica da unidade da “língua” en­ quanto objeto de descrição (mas, por outro lado, parece querer identificar tal lín­ gua unitária simplesmente com a língua histórica). 11.6.2. A língua funcional tem, como já se disse, a vantagem de ser a língua ¡me­ diatamente “ realizada” nos discursos (ou “ textos” ) e de ser homogênea (de ser pro­ priamente “ uma única língua”). Por outra parte, porém, do ângulo de uma descri­ ção “ funcional-integral” (isto é, de uma descrição que, também por exigência de ordem prática, aspire a refletir o saber idiomático efetivo dos falantes de uma língua histórica ou, pelo menos, de certo número de falantes reais), a língua funcional apresenta o inconveniente de não poder ser facilmente deduzida dos textos nem tampouco do falar de um só indivíduo. Com efeito, embora a cada momento de um texto se realize uma determinada língua funcional, os textos em que ocorre mais de

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uma língua funcional —textos, no tocante a este aspecto, “ plurilingües” - , são fre­ qüentíssimos. E, se a língua histórica não corresponde, por “ excessiva” , ao saber lingüístico dos falantes - porque normalmente, exceto o caso de línguas históricas limitadas a pouquíssimas línguas funcionais (ou a uma só), nenhum falante conhece toda uma língua histórica a língua funcional não corresponde a esse saber lin­ güístico por “ restrita” , uma vez que todo falante conhece, pelo menos até certo ponto, mais de uma língua funcional. Assim, no que tange à variedade diátópica, um falante toscano conhece, ainda que passivamente ou cm forma de imitação imperfeita, as características mais evi­ dentes de muitas outras variedades regionais c as identifica imediatamente, por exemplo, no teatro ou no cinema, onde tais tipos dialetais são usados com finali­ dade mais humorística do que como expressão de realismo. Está claro que delimitar quais aspectos de outras variedades dialetais são conhecidas dos falantes de determi­ nada variedade é tarefa um tanto árdua; entretanto, para descrever o que efetiva­ mente sabem os falantes acerca da sua língua, é necessário ilustrar também o conhe­ cimento que definimos como “ passivo” (porque só em circunstâncias particulares, especialmente de imitação com propósito zombeteiro, passa também a “ ativo” ), isto é, que apenas em casos determinados passa do “poder” ao “ fazer” , de um saber genérico a uma (igualmente genérica) realização. Por exemplo, a canção napolitana e o teatro dos autores e atores napolitanos têm divulgado por toda a Itália uma infinidade de formas napolitanas e meridionais (como capa, ’n coppa, iamme, scètarse, piccerillo, saccio, gaaglioné [port. “cabeça” , “sobre” , “vamos” , “ acordar” , “pequeno” , “ sei” , “ rapaz” ], etc.). Essas formas pertencem, pelo menos “passiva­ mente” , ao “ saber idiomático” de muitíssimos italianos que falam outros dialetos e a língua comum (ou tão somente esta última) e deveriam por isso ser levadas ein conta pela descrição desse mesmo saber. 11.6.3. Para tanto não basta a descrição de dialetos isolados, pois esta não nos diz que aspectos de um dialeto conhecem os falantes de outro dialeto. E também não basta porque quase sempre não se trata de um conhecimento efetivo e exato de outros dialetos, mas apenas de “linguagens de imitação” (ou “ dialetos híbridos” ). Cabe recordar, neste particular, como caso típico, a imitação “errada” do florentino (ou do toscano em geral) por parte dos falantes de outros dialetos: trata-se, na realidade, daquilo que os falantes destes outros tipos dialetais sabem (ou supõem saber) a respeito do florentino. É característico do florentino o fenômeno da chamada “gorgia” , ou seja, a aspiração da consoante velar surda c simples e intervocálica (e menos da bilabial surda p e da dental surda /). O florentino tem, precisamente, três tipos de c (= k ): um simples aspirado, intervocálico; um simples não aspirado, depois da consoante, e um reforçado ( “ duplo” ), ainda em início de palavra, pelo conhecido fenômeno de “ reforço inicial” , depois de oxítonos, depois de uma série de monossílabos vocálicos ou terminados em vogal (a, è, e, da, piu, etc.) e em alguns outros casos. Diz-se, por isso, la hasa, i hani, mas in casa, per casa, un cañe, il cañe (ou iccane) e a ccasa. Entretanto, quem imita o florentino (e o

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toscano) lhe atribui um só tipo articulatorio, o aspirado, em qualquer posição (ou, pelo menos, nos casos em que o c se escreve singelo) e diz, não apenas la hasa e / hani, mas ainda in hasa, il hane, a hasa (e até toshanol). A este propósito, um jovem estudioso italiano (toscano, naturalmente) distinguiu, com evidente e não injustificado desdém, uma “gorgia toscana” (autêntica) de uma “gorgia beota” (beócia) (a dos imitadores ignorantes). Mas também os “beodos” têm suas boas razões, porque a sua “gorgia” representa enfim uma tradição lingüística, ainda que híbrida: ela pertence a um florentino “inexistente” como tal, mas que efetivamente existe como modo tradicional não toscano de imitar o florentino (e o toscano em geral). ^ Às vezes ocorre que tais formas de imitação passam a tradições literárias: é, até certo ponto, o caso do dórico que, na tragédia ática, é o dialeto dos coros, enquanto os diálogos correspondem substancialmente ao ático. De fato, este dórico da tragédia não é o dialeto dórico, por exemplo, de Esparta, mas um dórico vindo de tradição literária: o do gênero literário “ poesia lírica coral” que, na Grécia antiga, começou e continuou a ser composta em língua com certas características dóricas, mas que, ao menos tanto quanto sabemos, não coincide com o dialeto de uma determinada polis dórica. Caso análogo é o que se dá com o chamado “ gauchesco” da literatura hispano-americana (em particular, argentina e uruguaia): o “ gauchesco” é o modo de falar dos gaúchos, isto é, da gente dos campos (camponeses e, sobretudo, pas­ tores e vaqueiros), mas não reproduzido tal e qual, e sim estilizado sob forma lite­ rária, com vocábulos, modos de dizer e construções que os gaúchos ou de fato não usam (pelo menos hoje) ou não usam com a mesma freqüência e nas mesmas circunstâncias. E também na Itália certas características dialetais têm experimen­ tado uma utilização literária numa forma que só parcialmente coincide com o dialeto de que são deduzidas. Destarte, as expressões que Gadda16 usa para imitar vários dialetos não reproduzem exatamente um determinado dialeto (pois além do mais, em tal caso seriam incompreensíveis), mas o que em geral se pensa desse ou daquele dialeto; se outros escritores seguissem o exemplo de Gadda, usando seu modo pessoal de imitar certos dialetos sem efetivamente reproduzi-los, poderia disto nascer uma tradição, substancialmente não diversa das do gauchesco e da “gorgia beota” . 11.6.4. E, naturalmente, o que vale para a variedade diatópica vale em proporção ainda maior para a variedade diastrática (porquanto é constante a comunicação entre níveis diferentes), e mais ainda para a variedade diafásica, já que todo falante fala diversos “estilos de língua” . Neste sentido, todo falante é, dentro de sua língua histórica, plurilingüe ou “poliglota” . É bem verdade que o saber “interdialetal” é. 16 Trata-se do escritor italiano Cario Emílio Gadda (1893-1973) que, nas suas obras, se serve amiúdè de um idioma privativo, à maneira do dialeto dos expressionistas. Pelo seu estilo tem sido comparado a James Joyce. (E.B.)

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na maioria das vezes, fragmentário e que, de ordinário, os níveis e os estilos só parcialmente divergem (ou seja, que as mesmas estruturas e funções análogas valem quase sempre para mais níveis ou para mais estilos). 11.6.5. Uma descrição “ funcional-integral” — seja na lingüística científica como na glotodidática - deverá de qualquer maneira tratar de conciliar a exigência da homogeneidade do objeto da descrição estrutural com a exigência de Corresponder a um saber idiomático real. Para tal fim, será, certamente, preciso escolher como objeto principal da descrição uma língua funcional determinada, porém, por outro lado, toda vez que se apresentar a necessidade, será também preciso descrever para­ lelamente, como “ desvio” possível dessa língua, o que os seus próprios falantes sabem (pelo menos passivamente) acerca de outras línguas funcionais. E, em parti­ cular na glotodidática, será razoável e conveniente escolher como base da descrição a língua funcional que tiver a maior difusão possível nos três sentidos da variedade lingüística e que apresentar o máximo de coincidências com outras línguas funcio­ nais, isto é, normalmente, uma forma da língua comum, no nível médio (conhecido, em geral, também dos falantes de nível superior e, em certa medida, dos de níveis inferiores) e num estilo de língua “neutro” . No tocante aos “desvios” dignos de registro, esses podem ser de tipos diver­ sos, segundo as comunidades lingüísticas. No caso do italiano, por exemplo, será preciso indicar, em primeiro lugar, ao lado da variedade só “estilística” , os “ des­ vios” diatópicos (“ dialetais” ) que são mais amplamente conhecidos e usuais, tam­ bém assim no caso do alemão. Ao contrário, no caso do francês e do inglês, será oportuno referir-se mais amiúde ao nível popular e, às vezes, será necessário chegar até o argot e o slang (de fato, na comunidade lingüística francesa, e, em grande parte, também na inglesa, o nível popular da língua comum tem freqüentemente a função sócio-lingüística que nas comunidades italiana e alemã possui o dialeto). E no caso do grego antigo literário (aquele, precisamente, que se estuda), se tomará como base o ático ou a koiné (o grego comum da idade helenística), ao passo que outras variedades (dialeto homérico.jõnio da Ásia, eólico, dórico) se terão presentes na medida em que funcionam como “estilos de língua” na literatura (cf. 11.5.3). Entretanto, em cada caso, os dialetos, os níveis e os estilos deverão ser mantidos distintos e se indicará em que medida sua mistura deve ser evitada e em que circuns­ tâncias, ao contrário, é lícito (e conveniente) usar nos mesmos discursos — de maneira conscientemente diferenciada — dialetos, níveis ou estilos diversos.

12 Sistema, Norma e Falar Concreto

12.1. As estruturas, oposições e funções “ idiomáticas” (= de língua) devem ser identificadas e estabelecidas na técnica da língua funcional, ou mais exatamcnte, no seu “sistema” . De fato, a língua funcional apresenta diferentes ordens ou níveis de estruturação. Isto também foi intuído, pelo menos em parte, pelos representantes da gramática gerativa transformacional, que falam de “ níveis de gramaticalidade” , ainda que sem terem formulado critérios precisos com que se possam distinguir esses níveis e sem terem delimitado exatamente os níveis como tais. Cómo já tive ocasião de mostrar noutro lugar1, as ordens de estruturação a serem distinguidas são quatro, precisamente, a ordem da realização (Jalar con­ creto) e três ordens de técnica propriamente dita ou técnica virtual (saber enquanto tal): a norma, o sistema da língua e o tipo lingüístico:

técnica virtual

técnica realizada:

! 4. tipo lingüístico 3. sistema 2. norma 1. falar concreto

O falar concreto mais ou menos corresponde a parole de F. de Saussure e se poderia também chamar “ fala” (no sentido de processo, de dinâmica, que contém o vocábulo discurso), tendo-se de compreender o termo português no sentido saussu1 Sistem a, norm a y habla, Montevideo 1952 e "Sincronía, diacronía y tipología”, in: Actas del XI Congresso Internacional de Lingüistica y filología Románicas, Madrid 196: p. 269-281.

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nano. A norma e o sistema2 da língua correspondem, juntos, aproximadamente à langue saussuriana. E o tipo lingüístico é uma ordem de estruturação que não foi identificada como tal por Saussure. 12.2.1. Observe-se que a norma da Língua, o sistema e o tipo lingüístico não consti­ tuem variedade interna da língua histórica, mas representam a medida ou o grau de estruturação dessa mesma língua. É çportuno, a este respeito, distinguir, com Flydal,3 arquitetura e estrutura: a diversidade interna na língua, isto é, o fato de na mesma língua histórica coexistirem, para funções análogas, estruturas diferentes (e vice-versa) representa a “ arquitetura” e o fato da técnica lingüística ser estruturada (isto é, apresentar oposições funcionais na expressão e no conteúdo) constitui a “estrutura” da língua. Ou melhor: a circunstância de uma língua histórica encerrar uma coleção de línguas funcionais, em parte coincidentes, em parte diferentes, representa a sua arquitetura ou “estrutura extem a” , enquanto a circunstância de, entre os elementos duma mesma língua funcional (isto é, de uma língua unitária e homogênea), existirem determinadas relações, constitui a “estrutura interna” , ou simplesmente a estrutura, desta língua. 12.2.2. Disse-se, por exemplo, que há falantes italianos que usam udire e sentire, enquanto outros falantes empregam apenas sentire. Ora, este não é um fato de estrutura, mas de arquitetura do italiano: não podemos examinar os dois usos simultaneamente, confundindo-os e declarando, por exemplo, que sentire tem um significado não bem delimitado, porque ora significa “perceber através de outros órgãos sensoriais” (port. “ sentir”) e também “ouvir” , ora somente “perceber através de outros órgãos sensoriais” (port. “sentir”), e não também “ouvir” . Na realidade, o significado de sentire é perfeitamente claro em qualquer dessas duas estruturas, mas estas estruturas se acham parcialmente superpostas na diversidade interna do italiano. A oposição entre pret. perfeito composto [it. passato prossimo J e pret. perfei­ to [it passato remoto] (hofa tto ¡feci) não se encontra nem pode ser estudada em geral, em toda a extensão do italiano, porque nas várias regiões da Itália são diferen­ tes as oposições em que entram estas formas: em algumas regiões existem feci e ho fa tto , em outras só aparece ho fa tto ou só fe c i, e aí é obviamente impossível estabe­ lecer uma oposição entre as duas formas, uma vez que só se usa uma delas. Ainda neste caso estamos diante de um fato de arquitetura do italiano, e também aqui não

3 Ó lingüista português José G. Herculano de Carvalho (Teoria da linguagem, Coimbra, 1973,1, p. 273, adotando a tricotomía de E. Coseriu, preferiu o termo esquema (de Hjelmslev) a sistema, “para evitar ocultar que também a norma é sistema”. Entre nós brasileiros, Mattoso Câmara preferia discurso ao termo fala, para evitar a idéia errada de que o conceito só sc apli­ cava à língua oral. O Prof. Coseriu não usa neste caso o termo discurso porque este termo, como já se viu (10.2.2.), o reserva para um dos níveis da linguagem em geral. (E.B.) 3 Art. cit., particularmente na p. 244.

SISTEMA, NORMA E FALAR CONCRETO

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se dirá que tal oposição é pouco clara “em italiano” , mas sim, que em italiano existem oposições distintas, conforme as regiões: no Norte, o uso do tipo ho fa tto se opõe, por exemplo, a faccio, far'o\ ao Sul, o tipo feci se opõe a essas mesmas formas; no toscano, feci e ho fa tto se opõem, em primeiro lugar, entre si, e depois a faccio, farò. As oposições, consideradas nelas mesmas, são todas perfeitamente claras, porém se trata de oposições diferentes, e não da mesma em cada caso. Freqüentemente, nas descrições de línguas e, de modo especial, ñas críticas dirigidas a descrições estruturalistas, confundem-se esses dois aspectos e se diz que tal ou qual oposição não é clara “em italiano” porque as formas e funções que lhe correspondem não são igualmente distribuídas em todos os tipos regionais do italiano; em realidade, não se trata, porém, como se viu, de falta de clareza, mas de oposições diferentes e que devem ser descritas separadamente. Se alguns falantes usam duas formas enquanto outros não empregam senão uma delas, ignorando a oposição dessas formas, também isto constitui um fato de arquitetura da língua, não de estrutura. Ao contrário, o fato de, num mesmo modo de falar, terem fe c i e ho fa tto significado diferente, porque se usam em situações e contextos diversos (por exemplo quando usei il “Corso ” Saussure era m orto, m asÊ in casa Giovanni? No, è uscito), constitui um fato de estrutura. 12.2.3. Os fatos de estrutura da língua (salvo o caso das formas homófonas e dos “ sinônimos”) correspondem à fórmula:

F i :----------------- F2

V , ------------------Vj Isto é: formas diferentes para valores também diferentes. Os fatos de arqui­ tetura, ao contrário, correspondem às fórmulas:

Isto é: formas análogas (ou praticamente idênticas) para valores diferentes ou, de modo inverso, formas diferentes para valores análogos (ou praticamente idên­ ticos). Na essência, isto não é diferente do que se dá quando se trata de línguas históricas distintas. Só quantitativamente, e não qualitativamente, a variedade no interior da arquitetura de uma língua é diversa da que ocorre entre línguas históri­ cas independentes; e, às vezes, nem mesmo quantitativamente. Acerca deste último caso, cabe lembrar aqueles dialetos italianos que apresentam o máximo de diferencia-

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ção (por exemplo, o piemontês e o calabrês) ao lado de línguas históricas muito semelhantes entre si, como as línguas semíticas ou, na Europa, o sueco, o dinamar­ quês e o norueguês ou ainda o espanhol e o português. Justamente por isto é que se faz necessário estabelecer as estruturas e funções lingüísticas para cada uma das línguas funcionais que se encerram numa língua histórica, sem confundir a língua funcional, objeto próprio da lingüística estrutural (e, no fundo, também da gramá­ tica gerativa transformacional), com a língua histórica, que, por sua vez, é um conjunto, uma “coleção” de técnicas (e, portanto, é também muito mais complexa do que uma língua funcional). 123.1. O falar concreto apresenta a técnica lingüística como técnica efetivamente realizada; e esta se reconhece como tal no mesmo sentido em que, falando, por exemplo, de um quadro, dizemos: Que técnica nesse quadro', ou Quanto à técnica, não M nada que dizer. Entretanto, naturalmente, além da realização da técnica, o falar concreto contém também toda uma série de determinações próprias que, no fundo, o fazem, em qualquer caso, “inédito” . 123.2. A norma da língua, ao contrário, contém tudo o que, no falar correspor dente a uma língua funcional, é fato tradicional, comum e constante, ainda que nã i necessariamente funcional: todo fato que se diz e se entende “dessa maneira e não de outro m odo” . Por exemplo, vimos que em inglês as consoantes oclusivas surdas, particularmente em determinados pontos do vocábulo (mas nunca depois de s), são proferidas com aspiração; ora, este é o modo normal da sua realização e assim se pronunciam, ainda que a aspiração não seja funcional e, que portanto, a compreen­ são seja possível mesmo que se proferissem não aspiradas: mas se pronunciam do primeiro modo porque manda assim a norma. Analogamente, na norma toscana (e chamemo-la simplesmente do italiano “clássico” , porque se trata da norma ideal de todo o italiano comum) não se diz [a kása] mas [akkasa], nem [a roma] mas [arroma], nem [è lui'éi] mas [èlluígij. Este reforço fono-sintático é, como vimos, uma norma de realização obrigatória cm determinados casos; entretanto, com ser obrigatório e automático, não é funcional: uma pronúncia como [vabène] — em vez de [vabbène] - não é “normal” neste tipo de italiano, porém é compreendida sem dificuldade. A norma, pois, pode, em certos casos, exigir a realização de aspectos não funcionais e aceita a sua possível “redun­ dância” .4 12.33. Se a norma contém tudo o que é fato de realização tradicional, o sistenw contém as oposições funcionais: tudo aquilo que na técnica lingüística é distintivo e que, se fosse diferente, teria (ou seria) uma outra função de língua, ou não teria (nem seria) nenhuma função na língua respectiva, podendo, eventualmente, 4 Ver outros exemplos dos vários setores e planos da norma no estudo citado na nota 1 deste capítulo, Sistema, norma y habla.

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tomar-se irreconhecível (ou incompreensível). Portanto, todos os traços que assina­ lamos como distintivos pertencem ao sistema. A norma é, em certo sentido, mais ampia do que o sistema: com efeito, ela encerra também os traços não funcionais, enquanto o sistema contém só os traços distintivos necessários para que uma unidade da língua (quer no plano da expressão, quer no do conteúdo) não se confunda com outra. Assim, por exemplo, a distinção entre s sonoro e s surdo intervocálico é funcional em toscano, onde serve para diferençar certos significantes (como fu so , participio do verbo fondere, e fu so , substantativo, “instrumento para fiar à roca”). Em toscano, portanto, a sonoridade do s intervocálico é traço distintivo, pertence ao sistema. Ao contrário, no italiano comum do tipo setentrional, a distinção entre os dois s não existe, porquanto o s intervocálico é pronunciado sempre sonoro; a sonoridade, neste caso, não pertence ao sistema: é apenas um traço “suplementar” (embora praticamente obrigatório) da norma deste tipo de italiano. Dir-se-á o mesmo do traço “ abertura” do e aberto nos tipos de italiano em que a distinção entre [é] e [è] não é funcional. Em espanhol, o fonema Ibl é, no sistema, somente “oral” , “bilabial” e “sonoro” (outros traços não são necessários para as oposições de que tal fonema participa); na norma, entre­ tanto, é ainda “ oclusivo” em certos casos (em posição inicial absoluta e depois de nasal) e “fricativo” nos demais. Neste sentido, o sistema é menos amplo do que a norma e está “contido” nesta:

NORMA SISTEMA

Contudo, já em outro sentido, o sistema é mais amplo que a norma, já que é menos determinado (por exemplo, o fonema espanhol |b| “contém” as possibili­ dades mais determinadas requeridas pela norma), e contém também possibilidades não realizadas na norma da mesma língua. De fato, o sistema, contendo apenas as oposições funcionais, encerra também tudo o que na língua seria possível, mesmo se não é realizado na norma. Em outras palavras, a norma abrange fatos lingüísticos efetivamente realizados e existentes ná tradição, ao passo que o sistema é uma técnica aberta que abrange virtualmente também os fatos ainda não realizados, mas possíveis de acordo com as mesmas oposições distintivas e as regras de combinação que governam o seu uso. Lembremos, por exemplo, a formação de palavras. Ainda que eu não saiba se em italiano exista a palavra tavolaio (e admitindo que não tenha tempo nem desejo de verificar a sua eventual existência no dicionário), posso usá-la com tranqüilidade, estando seguro de ser compreendido, e, certamente,

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ninguém a impugnará como “não italiana” . Analogamente, poderei dizer bicchiercàe ( “vidraceiro” , “ quem faz ou vende copos”) e estarei sendo entendido. Quanto à questão da existência efetiva desta palavra, posso até crer que a tenha inventado eu mesmo, caso não a encontre em nenhum dicionário ou não me preocupe de consultar registros de sobrenomes já que um especialista em onomás­ tica me poderia dizer que, como o nome próprio, já efetivamente existiu em certo tempo e lugar). Ou podemos então tomar o caso de toda uma série de derivados “possívéis” . De giocare deriva-se giocherellare, que está consoante a norma e, assim, é um fato não só “sistêmico” , mas também realizado. Ora, para indicar a ação repetida do “giocherellare” dir-se-á, querendo, rigiócherellare, e, na base desse termo, dificil­ mente documentável, poderão ser modelados o nome de ação rigiocherellamento e o nome de agente rigiocherellatore. E a respeito de quem afirme a necessidade do rigiocherellamento se dirá que é rigiocherellamentista, e, como adjetivo correspon­ dente a este substantivo, teremos rigiocherellamentistiCo, do que se poderão formar o advérbio rigiocherellamentisticamente e o verbo rigiocherellamentisticizzare, e assim por diantes . Tudo isto, se não real, é possível em italiano. Acerca de tais palavras se' poderá dizer: “Não existem em italiano” , querendo significai, obvia­ mente, que não existem na norma, mas não que “não são italianas” ,'falando, já agora, do sistema. Com efeito, elas são formadas conforme regras próprias do italiano e correspondem a possibilidades do sistema italiano: rigiocherellamentistico, por exemplo, não destoa de comportamentistico (no que toca ao seu final). A única objeção que me poderiam fazer é que a ocasião ou a situação de uso dessas palavras “ muito extensas” é exatamente rara, como aliás bem sabe quem tem um pouco de prática de estatística lingüística, porquanto a freqüência de uso das palavras é,em geral, inversamente proporcional à sua extensão (naturalmente, não por causa da dimensão enquanto tal, mas sim porque as palavras compridas contém, de ordinário, várias determinações sucessivas e cada determinação limita as possibilidades de uso). O de que aqui se trata é da possibilidade mesma de formação que oferece o sistema, independentemente da eventual utilização; e neste sentido se trata, portanto, de palavras “italianas” , e não alemãs, francesas ou inglesas. Já se dissermos vidergiocherellàre, acudir-nos-á súbito a impressão de que esta não é uma palavra italiana, porque vider- (italianização gráfica do alemão wieder, “de novo” , usada como prefixo que indica repetição ou retomada de ação, por exemplo em wiederdeginnen, “recomeçar” , oposto a beginnen, “começar” como os correspondentes italianos ricominciare e cominciare) não pertence ao sistema italiano; a mesma coisa ocorrerá se dissermos, afrancesando, [rigiocherellamã], ou seja, se em vez do italiano -mente usarmos o sufixo francês [-mã] (escrito -ment).5

5 Analogamente, poderemos ter, entre numerosos outros exemplos em português, o seguinte caso, acompanhando a par e passo o modelo apresentado pelo nosso autor: pedalar / peda tejar / repedalejar / repeda lejamen to / repedalejador / repedalejista / repedalejfstico / repedalejisticam ente / repedalejisticizar. (E.B.)

SISTEMA, NORMA E FALAR CONCRETO

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Ncste sentido —e graças, justamente, ao sistema, que é em essência sistema de possibilidades —, uma língua não é apenas aquilo que já está feito por meio da sua técnica, mas é também aquilo que, mediante esta mesma técnica, se pode fazer; não é somente passado e presente, mas possui uma dimensão de futuro. O italiano, por exemplo, como o português, são o italiano e o português “ existentes” (já realizados) e ainda.a sua possibilidade infinita de ulteriores (e em parte inéditas) realizações. I

( 12.3.4. Por cima do sistema, o tipo lingüístico encerra os princípios funcionais e as categorias técnicas da língua: os tipos de procedimentos e de funções, as categorias de distinções, oposições e estruturas que caracterizam essa língua. Conseqüente­ mente, o tipo lingüístico representa a coerência e a unidade funcional das várias seções do sistema; pode, porém, corresponder a mais de um sistema (como, aliás, um mesmo sistema pode corresponder a mais de uma norma). Nas línguas romá­ nicas, por exemplo (com exceção do francês moderno), existe como princípio tipológico a distinção geral entre funções “não atuais” ou “não relacionais” (como o gênero e o número) e funções “atuais” ou “relacionais” (como o caso —enquanto função óu a comparação), distinção que, de maneiras materialmente diferentes, mas no tundo idealmente idênticas, encontra a sua aplicação nas várias seções dos respectivos sistemas lingüísticos: na chamada morfología e na sintaxe, na sintaxe das formas nominais e verbais, na sintaxe das orações e do período, no léxico e na formação de palavras6 Entretanto, a tipologia lingüística entendida deste modo (e que representa seu sentido originário, autêntico e científicamente proveitoso) está ainda nos seus inícios, ao passo que o que hoje se faz sob o nome de “tipologia lingüística” outra coisa não é, as mais das vezes, senão gramática contrastiva no nível dos sistemas e classificação tautológica de procedimentos lingüísticos.

6 Veja-se o estudo já citado Sincronia, diacronia y tipologia.

BIBLIOGRAFIA

Para que se oriente acerca de problemas discutidos nestas páginas e a fim de ’ que neles se aprofunde, pode o leitor recorrer às seguintes obras: BALLY, Charles. Linguistique générale et linguistique française. 4 .a ed. fieme, Francke, 1965. Há tradução italiana com apêndice de C. Segre. Milano, II Saggiatore, 1971. BENVENISTE, Émile. Problémes de linguistique générale. Paris, Gallimard, 1966. Há tradução brasileira de Maria da Gloria Novak e Luiz Neri, com revisão de Isaac Nicolau Salum. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1976. BLOOMFIELD, Leonard. Language. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1933. CHOMSKY, Noam. Saggi linguistici, trad.: A. de Palma e outros. Torino, Boringhieri, 1969-70. 3 v. De algumas obras de Chomsky há traduções brasi­ leiras saídas na Vozes Editora e dos Aspectos há tradução portuguesa pelo Armênio Amado —Editor. COSER1U, Eugenio. Teoria del ¡inguaggio e lingüistica generóle. Sette studi. Trad. R. Simone. Barí, Laterza, 1971. Dos estudos ai inseridos só três se repetem na coletânea homônima em espanhol, com cinco estudos, Teoria del lenguaje y lingüística general (Madrid, Gredos, 1973, 3.a ed.) de que se fez tradução brasileira, saída no Rio de Janeiro, Presença, 1979. _________ Sincronia, diacronia e historia. Madrid, Gredos, 1978, 3.a ed.; trad. port.. Rio de Janeiro, Presença, 1979. _________ Principios de semántica estructural. Madrid, Gredos, 1977.

128

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Introduções e exposições históricas da lingüística se encontram em: APRESJAN, Ju. D. Elém ents sur les idées et les m éthodes de la linguistique structurale contemporaine. Trad. do russo de J.-P. de Wrangel, Paris, Dunod, 1973. Há traduções para outras línguas. DUCROT, Oswald, TODOROV, T. et alii. Quést-ce que le structuralisme. Paris, Seuil, 1973. DINNEN, Francis Patrick. A n introduction to general linguistics. New York, Holt, Rinehart and Winston, 1967.

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Úteis añtologias com esboços históricos introdutórios: BOLELLI, Tristano. Per una storia delta ricerca lingüistica. Napoli, Morano, 1965. _________ Lingüistica generóle, strutturalismo, lingüistica storica. Pisa, Nistri-Lischi, 1971.

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