Greening, Thomas (org.). Psicologia Existencial-humanista - Introdução + Caps. 1 E 2.pdf

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C.

T hom as

G r e e n in g

O rg an izad o r .

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EXISIENfilAI-HHMANISIA Tradução de E d u a r d o d e A l m e id a

ZAHAR

ED IT O R E S

RIO DE JANEIRO

flfítulo original: Existential Humanistic Psychology Traduzido da primeira edição, publicada em 1973 por Brooks/Cole Publishing Company, de Belmont, Califórnia, Estados Unidos da América.

ÍNDICE Copyright © 1971 by Wadsworth "Publishing Co., Inc. Prefácio

capa de E

r i co

1975

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por ZAHAR

EDITORES

Caixa Postal 207, ZC-00, Rio que se reservam a propriedade desta versão Impresso no Brasil

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Introdução

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Psicologia Existencial e Humanista: Respostas a Desafios Contem­ porâneos Charlotte Bühler

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Teoria Humanista: A Terceira Revolução em Psicologia Floyd W . Matson

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O Eu: Processo ou Ilusão? James F. T. Bugental

83

Grupos de Encontro, da Perspectiva do Humanismo Existencial Thomas C. Greening

105

O Futuro da Perspectiva Existencial-Humanista em Educ«ç2o .. W illis W. Harman

147 /

Humanismo e Psicologia Existencial 'William J. Ríchardson, S. J.

167

Humanismo Existencial: Reflexos na Literatura Henrt Peyre

,185 .

Humanismo Existencial e Direito Christopher T>. Stone

205

O Homem Auto-Realizador na Sociedade Contemporânea: Modos Filosóficos Clássicos num Modelo Psicológico Corrente Raghavan N. lyer

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Pós-Escrito

259

A Abe Maslow

Prefácio

■.A . s tendências existencial e humanista estão fírmandò-se cada vez mais como importantes acontecimentos no cenário da Psicologia contemporânea. A nossa imagem do homem e os nossos métodos de abordagem dos problemas e desafios huma­ nos estão passando por radical e fértil renovação. Este livro ilustra essas tendências com capítulos sobre a terapia individual, grupos de encontro, literatura, educação e direito. Outros capí­ tulos fornecem uma panorâmica histórica dessas tendências e algumas de suas fontes filosóficas, assim como uma perspectiva sobre a auto-realização e as vidas individuais, vistas em seu curso total. Embora vários dos autores sejam psicólogos, este livro não foi especialmente preparado para psicólogos e estudantes de Psi­ cologia. . A maioria dos capítulos ^foi originalmente apresentada como conferências para um público heterogêneo na Universidade da Califórnia em Los Angeles e destina-se a quaisquer leitores que se interessem pelos problemas da Psicologia atual. A fina­ lidade geral foi tornar a leitura compreensível a não-psicólogos, embora as idéias apresentadas, em alguns lugares, possam ser particularmente estimulantes para leitores com formação psico­ lógica avançada. O humanismo existencial é uma vasta orientação em desen­ volvimento que se apóia numa ampla gama de contribuidores e se reveste de importância para muitos empreendimentos huma­ nos. 0 presente livro ilustra esse ponto. Por exemplo, consi­ dere-se a justaposição de um capítulo sobre a .literatura existen­ cialista francesa ( Peyre) e de um sobre a responsabilidade huma­ nista do Direito americano (Stone). Algumas das inter-relações entre os capítulos serão evidentes; outras vezes, os leitores des­ cobrirão ligações.implícitas no que foi escrito, mas ainda:não formalmente enunciado pelos autotcs».;____

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P r e f á c io

P r e f á c io

A Psicologia Existencial-Humanista interessa-se pela natu­ reza do homem —- especialmente pelo seu potencial positivo — e de que modo essa natureza é criada e revelada no ser exis­ tencial. Os psicólogos expressam amiúde esse interesse mediante a prática da terapia individual ou a promoção de métodos de grupo que facilitem o crescimento in d iv id u a lM a s a terapia e os métodos de grupo são, cada vez mais, parte integrante do todo cultural, influenciando-o e sendo por ele influenciado. Assim, o humanismo existencial, em toda a sua diversidade, converte-se em empreendimento comum, enriquecido e promo­ vido por numerosos contribuintes. Este livro apresenta algu­ mas facetas básicas desse empreendimento e reúne-as na espe­ rança de que elas se elucidem mutuamente. Desejo agradecer a Charlotte Bühler o conceito original da série de conferências, que foi a principal fonte destes ensaios, assim como as suas importantes contribuições para a Psicologia Existencial e Humanista — contribuições que servem como ali­ cerces sobre os quais um livro como este pode ser construído. Recordo com grande prazer a tarde de domingo em que Char­ lotte Bühler e eu nos reunimos para planejar a série de confe­ rências. Trocamos sugestões sobre os conferencistas e os temas que melhor poderiam constituir um programa rico e variado e que fizesse jus às muitas fontes e expressões do humanismo existencial. Foi para mim uma espécie de maravilhosa excursão intelectual, à medida que a Dr.a. Bühler recapitulava seus vastos conhecimentos sobre muitas pessoas e livros que, em sua opi­ nião, consubstanciam uma Psicologia vital em franca expansão. Espero que ela veja este volume como possuidor de alguma da látitude e profundidade que lhe augurou durante a nossa con­ versa desse dia. Também estou agradecido ao pessoal do departamento de Artes, Humanidades e Ciências Sociais da U .C .L .A . Outrossim, Robert Haas e Lois Smith, como Diretor e Subdiretora do Departamento, tiveram um papel decisivo para tornar possível o programa original. De um modo todo especial, endereço meus calorosos agradecimentos a Edwin Monsson, representante da UCLA nos programas de extensão universitária, com quem tra­ balhei intimamente. Ele demonstrou, por certo, que é possível preservar uma orientação humanista apesar de assoberbado por responsabilidades administrativas, .

Por tudo o que realizo como psicólogo, estou imensamente grato, em múltiplos aspectos, aos meus sócios da Psycbological Services Associates : Alvin Lasko, Gerard Haigh, William Zielonka e Harris Monosoff. Durante os 12 anos em que exerci a prática clínica, mantive discussões intelectuais e alimentei ami­ zades na PSA, eles proporcionaram-me grande parte da com­ preensão que hoje tenho da Psicologia da Terceira Força. James Bugental também foi sócio da PSA até data recente e destaco-o em meu especial apreço, que ampliarei na introdução ao capítulo de sua autoria. Estou grato às seguintes pessoas por seus valiosos comen­ tários durante a revisão do manuscrito: James Fadiman, da Uni­ versidade Stanford; Eleanor Criswell, do Colégio Estadual de Sonoma; e John Mitchell, da Universidade de Alberta. Tam­ bém desejo agradecer aos meus datilógrafos, Terry Maglic e Phyllis Wittenberg, por sua persistente ordenação da um caos de fitas gravadas e páginas corrigidas.

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Thomas C. Greening

Introdução

s t e livro baseia-se, em grande parte, numa série de confe­ rências apresentadas no outono de 1969 dentro dos programas de extensão universitária da Universidade da Califórnia, Los Angeles. O título da série foi Existential and Humanistic Psy­ chology: Trends and Impact, e atuei como moderador. Um livro está longe de ser um encontro face a face, mas eu gostaria de saudar o leitor com as mesmas esperanças com que dei as boas-vindas ao público na sessão inaugural do ciclo de confe­ rências. Imagino que os leitores deste livro serão razoavelmente semelhantes aos do público de Los Angeles, com toda a sua varie­ dade de antecedentes, educação, idade, ocupação e atitudes em relação ao existencialismo, humanismo e Psicologia em geral. Havia estudantes, homens de negócios, professores de Psicologia, mestres-escolas, engenheiros, donas-de-casa, hippies, diretores de cinema e um ocasional cachorro, que simplesmente entrava por ver a porta aberta. Nenhuma série de conferências ou livro, mesmo abrangendo um tema tão amplo, pode alimentar a espe­ rança de fornecer algo a todos e a cada um, e tentar fazê-lo seria fragmentário e difuso. Mas fui encorajado pela reação desse heterogêneo público a acreditar que este livro atrairá um grupo igualmente diverso de leitores. Alguns dos artigos são de natureza teórica e erudita; outros são clínicos, coloquiais ou concretamente ilustrados por exemplos da vida cotidiana.

E

__ IpO livro não pretende ser um levantamento sistemático do vasto campo da Psicologia Existencial e Humanista contempo­ rânea. Pelo contrário, é a coletânea de depoimentos individuais por autores que encaram a Psicologia Existencial e Humanista do‘ ponto de vista especializado de suas respectivas obras e idéiasTj Em que medida, por exemplo, um advogado, um psicó­ logo, um físico e um crítico literário estão falando do mesmo ele„ fante, quando descrevem o que cada um deles entende por essa

I ntrodução

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corpulenta e estranha criatura? E em que medida temas comuns se fazem presentes através de suas descrições dos impactos da Psicologia Existencial e Humanista sobre suas distintas expe­ riências profissionais? Cada leitor poderá decidir por si mesmo, depois de explorar o que há de diverso e de comum nos ensaios aqui reunidos. Neste capítulo introdutório, apresentarei alguns dos concei­ tos básicos que vão ser desenvolvidos, farei uma breve pano­ râmica da Psicologia Existencial e Humanista, e oferecerei, a título de exposição prévia, um resumo de cada seleção, com o intuito de guiar o leitor e de tentá-lo a prosseguir na leitura até ao fim do livro. Antes de cada capítulo, farei a apresentação do respectivo autor, referindo-me, em alguns casos, a associa­ ções pessoais que servem de base à minha apreciação do homem e suas idéias. Primeiro, tomarei a liberdade de apresentar-me e de usar tal abordagem como um meio de ilustrar alguns dos aspectos mais gerais dos recentes desenvolvimentos ocorridos na área da Psicologia. Numa era anterior, uma pessoa como eu não teria, provavelmente, contato algum com a Psicologia acadêmica ou clínica. Minha família, infância e formação cultural enfatizaram o domínio das forças naturais e econômicas através das virtudes comuns de trabalho árduo, conformismo social e ciência aplicada que eram comuns ao imigrante americano. Henry Ford e Thomas Edison tinham feito o que se supunha que todos os homens deviam fazer. Heróis populares, como Washington, Franklin e Jefferson, tinham de ser imitados em sua eficácia prática; eu visualizava-os mais como generais, inventores e administradores de plantações ou fazendas do que como pensadores. William James era para mim um ilustre desconhecido. Ingressei na uni­ versidade para ser engenheiro mecânico e ganhei, orgulhosa­ mente, uma nota dez em desenho de máquinas. Com habilidade, era possível descrever e criar o mundo por meio de linhas pre­ cisas, traçadas a tinta, que desenhavam aqueles objetos em que a civilização se baseava. Quase escapei à influência insidiosa das artes liberais, mas fui solicitado a matricular-me num’ curso de 'Literatura de Lín­ gua Inglesa para estudantes de Engenharia. O professor parecia alimentar sentimentos intensos a respeito dos livros e de seus personagens. Poderiam homens já crescidos avaliar as pessoas e como elas viviam suas vidas estudando semelhantes temas?

Com algum apoio de meu pai engenheiro e a tranqüilidade de um bom teste psicológico de interesses vocacionais, aventurei-me a concluir o curso de Literatura Inglesa. Chaucer e Milton subs­ tituíram as engrenagens e alavancas, mas ainda me pareciam distanciados da vida em meu redor. Que cursos são ensinados sobre a vida? Psicologia . . . talvez fosse a resposta! Avancei penosamente através da Psicologia Introdutória, instigado pela promessa de que os cursos subseqüentes compensariam o tédio inicial. Depois, matriculei-me em Teorias Contemporâneas de Psicologia, ávido por aprender como os grandes pensadores conceptualizam a natureza humana. Resultou que o objeto de nosso estudo tinha pêlo branco, quatro patas e dois olhinhos redondos, que observavam com curiosidade os labirintos onde tinham de correr e as alavancas que lhes cumpria acionar. Em outros cur­ sos, aprendi sobre o homem neurótico e psicótico, o homem-soldado sob tensão de combate e o homem aborígine engenhoso. Eu queria algo mais e algo diferente, mas tinha dificuldade em saber onde procurá-lo, dentro da área psicológica.

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A literatura moderna parecia povoada de gente que era mais real, gente que enfrentava o desafio de criar relações e significado contra a maré do nada na “idade do desespero”. Felizmente, tive uma oportunidade de travar conhecimento com o existencialismo num curso de Literatura Francesa, lecionado por Henri Peyre, o autor do Capítulo 8. Também tentei escre­ ver obra de ficção, em busca de realização e comunhão criadora através da interpretação em moldes fictícios e da repartição de experiências vividas. Os outros estudantes escritores refletiam a mesma intensidade de preocupação em torno da condição hu­ mana que me seduzia. Entretanto, os meus escritos não tardaram em atingir um teto intransponível. Depois da universidade, fui para Viena, li obras sobre Psicanálise e vivi no velho bairro onde Freud residira, na espe­ rança de infusões osmóticas de sabedoria. Um domínio inade­ quado do alemão, o estado decadente da Psicologia vienense no pós-guerra e a minha atração pelos esquis limitaram essa busca intelectual. Ouvi Sartre falar durante uma manifestação de 1.° de Maio e voltei para casa, abrindo caminho na multidão e per­ guntando a mim mesmo se o comunismo iria fazer que a Psico­ logia parecesse um passatempo extravagante para estetas do século XIX.

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De regresso aos Estados Unidos, matriculei-me num pro­ grama de pós-graduação em Psicologia e ponderei as minhas opções: obter uma especialização através do curso montado sobre os conceitos básicos da disciplina ou realizar o treinamento bá­ sico no Exército. Um professor sugeriu que eu talvez apren­ desse mais sobre as pessoas se me decidisse pela segunda opção. Contudo, preferi arrastar-me pela Estatística, em vez da lama, fiz rodar no computador o meu quinbão de dados de pesquisa e saí disso tudo com um diploma do que passava por ser um Psicólogo Clínico. Se os alvores da Psicologia Existencial e Humanista já despontavam no horizonte (o livro 'Existence, de Rollo May, foi publicado em 1958, o ano em que recebi o meu doutorado), eu ignorava-o por completo. Dediquei-me à prá­ tica clínica com uma orientação psicanalítica e cultivei esse espi­ nhoso jardim com as ferramentas semi-utilizáveis que tinha her­ dado, As minhas outras saídas consistiram em alguns escritos, ensino em algum curso ocasional de Psicologia e Literatura Con­ temporânea, e um pouco de treino de sensibilidade. Apercebi-me gradualmente de que a terapia individual e as abordagens de grupo estavam sendo conceptualizadas por alguns terapeutas em termos do encontro Eu-Tu de Buber e de que as introvisões obtidas através da literatura estavam a tornar-se cen­ trais para uma nova Psicologia. Em 1962, essas e outras ten­ dências resultaram na fundação da Associação de Psicologia H u­ manista, com um de meus sócios, James Bugental, como seu primeiro presidente. A história do desenvolvimento dessa Psico­ logia é contada de várias maneiras neste livro. É hoje um alívio ler sobre tanta coisa que estava a acon­ tecer fora da minha estreita experiência pessoal e da bitolada Psicologia acadêmica daqueles anos, tendências que finalmente se impuseram como a Terceira Força, ou Psicologia Existencial e Humanista. Estou grato pelo enriquecimento e vitalidade que esse novo pensamento trouxe à minha experiência cotidiana como psicoterapeuta. A minha profissão já não parece análoga à de um cirurgião de campanha numa guerra absurda. Ajudar indivíduos sempre foi para mim uma tarefa significativa e indi­ vidualista, mas envolve o risco concomitante de nos fazer sentir separados e fúteis a respeito do resto do mundo. Ajudar as pessoas dentro do quadro da vida existencial e humanisticamente observada acarretou um sentimento mais intenso de propósito e participação. Agora, aprecio mais o convívio com os meus

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pacientes e colegas e vislumbro em todas as nossas existências novas dimensões que não eram elucidadas pelas teorias reducionistas e mecanomórficas.1 Hoje, quando um paciente inicia a sua sessão como na transcrição abaixo, sinto-me mais equipado para ir ao seu encontro: Aqui estou de novo. Sinto-me como se presume que tenho de atuar. Chego aqui e tenho pela frente a tarefa de olhar para as partes irreaüzadás da minha vida que evitei encarar durante toda a semana. Acho que deveria falar sobre alguma “terrível angústia”, mas só sinto a angústia geral de ser o que sou.

É encorajador vermos que estão sendo dadas respostas a essa angústia, mesmo num mundo dilacerado pela guerra, polui­ ção, pobreza e alienação. A Psicologia orientada para a pessoa está interatuando com a sociedade de novas e múltiplas maneiras, algumas das quais serão estudadas nos capítulos que se seguem. Os grupos de encontro e os centros de crescimento estão fazendo das tendências existenciais e humanistas um acontecimento experiencial, aqui-e-agora, na vida das pessoas. Cari Rogers e Abraham Maslow, que serviram como presidentes da Associação Psi­ cológica Americana, são nomes familiares para muitos não-psicólogos. Uma revolução está começando na área da educação; pro­ gramas que incluem a aprendizagem autodirigida e efetiva atin­ girão finalmente milhares de estudantes muito longe do cená­ rio de Summerhill.,2 A busca de novos valores e novos cami­ nhos de ser humano em organizações complexas tornou-se preo­ cupação explícita de homens de negócios, cientistas e autoridades governamentais. Assim, os executivos recorrem aos psicólogos humanistas (Maslow, 1965), os cientistas reservam tempo para explorar suas relações recíprocas (Davis, 1967) e até o Depar1 Os críticos da teoria psicanalítica e da teoria da aprendizagem afirmam que a concepção do homem apresentada por essas teorias reduz a sua natureza a componentes supersimplificados que violam a sua tota­ lidade e unicidade orgânicas. ■ Do mesmo modo, os modelos mecânico ou hidráulico do homem enfatizam a canalização e bloqueio da energia, e negligenciam a sua busca de significado e de afinidades. 2 Summerhill é a escola inglesa que foi pioneira em muitos dos métodos hoje empregados em escolas americanas^ dotadas de espírito ino­ vador. Os alunos tomam parte ativa no planejamento de suas próprias experiências de aprendizagem, emocional e intelectual, num contexto de interação de grupos de pares e professores pessoalmente envolvidos. Ver A. S. Neill, Summerhill: A Radical Approacb to Child Rearing. Nova York: Hart, 1964.

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tamento de Estado norte-americano tem utilizado o treino de sensibilidade como parte do seu desenvolvimento organizacional (Marro w, 1966). Para os que ainda não ouviram falar nem leram coisa algu­ ma sobre existencialismo, um filme baseado em O Estrangeiro, de Camus, poderá ser visto no cinema do seu bairro. Se o despertar de Meursault para um mundo existencial, num cárcere do Norte de África, ainda parecer demasiado remoto, tivemos a guerra do Vietnã, os choques com a polícia e os tumultos nos guetos, e a crise ecológica, para fornecer traduções atualizadas dos taciturnos romancistas franceses e túrgidos filósofos ale­ mães. O absurdo, a contingência e a responsabilidade ansiosa do homem pela criação do homem impregnaram a consciência pública e, por conseguinte, levaram ao crescente interesse por novas teorias e novos métodos psicológicos. Um exemplo da tentativa de satisfazer esse interesse foi a série de conferências da UCLA, a qual teve por finalidade ava­ liar as tendências e os impactos recentes da Psicologia Existen­ cial e Humanista. Embora grato pela oportunidade que me foi dada de atuar como moderador nessa série, confesso que, no começo, estava cético sobre se a apresentação dessa Psicologia através de conferências e livros teria qualquer efeito discernível sobre a vida das pessoas que acorreram. Em meu trabalho como psicoterapeuta, vejo muitos pacientes que assistiram a conferên­ cias e leram livros de Psicologia sem que essas atividades tenham qualquer impacto em suas vidas. Um conferencista na tribuna ou as palavras de "um livro farão mais do que encher a cabeça das pessoas com um novo jargão e novas intelectualizações que lhes servem para fazer o jogo em vez de ajudarem ao seu cres­ cimento? Como cerca de 70 pessoas no público estavam freqüentando a série completa para obter créditos, decidi explorar essa questão por meio de tarefas para as provas escritas do primeiro semestre e do final do ano letivo. A tarefa consistia, de cada vez, em escrever sobre a conferência e o material de leitura, tal como era concretamente ilustrado e vivido na situação da vida corrente do próprio estudante. Os meus comentários introdutórios, na primeira sessão, também foram orientados no sentido de con­ vidar ao envolvimento pessoal e são igualmente adequados como introdução para os leitores deste livro:

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Como a Psicologia Humanista procura lidar com a totalidade de cada pessoa no processo de vir-a-ser, espero que este curso acarrete o vosso envolvimento como pessoas reais. E como a Psicologia Existencial tenta colocar o homem em confronto com a real condição humana neste planeta, espero que este curso VOS' ajude a fazer frente às vossas próprias vidas cotidianas, numa acepção existencial. Apresentar-vos-ei algumas interrogações para que sobre elas meditem durante o curso. Se tiverem essas questões em mente durante as conferências e leituras, talvez vos ajudem a ver mais claramente em que consiste a Psicologia Existencial e Huma­ nista. O que significa ser plenamente humano? Qual é a visão emergente do homem sobre o homem e o universo? Onde deveremos buscar significado e propósito? Que sentimento decorre do fato de estar vivo agora? Como deveremos nos tratar uns aos outros? .

A importância pessoal e a alta qualidade dos ensaios escritos em decorrência das tarefas atribuídas a cada estudante foram impressionantes. Houve, é claro, a usual e brilhante reapresentação das conferências em novas formas, com o que o autor se mantinha prudentemente desligado e se limitava a emprestar seu cérebro para um exercício intelectual. Não obstante, muitos dos ensaios revelaram que os estudantes tinham ressoado em nível experiencial muito mais intensamente do que eu acreditava ser possível ocorrer numa série de conferências. Tinham encon­ trado, com freqüência, novas maneiras de ver e de sentir em sua existência e atividade cotidianas; e, depois, tinham-se empe­ nhado em novas espécies de ação criadora e expressiva. O ensaio de um estudante incluiu um convite de casamento, como apêndice à descrição do modo como a aquisição de novos valores e introvisões, através do curso, o habilitara a expandir-se mais autenticamente e a converter uma amizade em matrimônio. Uma mulher descreveu como conseguira, finalqnente, completar sua prolongada luta para enfrentar a futilidade de seu casamento e gerar suficiente fé em si mesma e no mundo para construir uma vida própria. Uma enfermeira apercebeu-se de que estava estag­ nada em suas relações rotineiras com os doentes e procurou ser destacada para um serviço especial que lhe proporcionava opor­ tunidades de mais profunda entrega humariâ. O filho de um famoso psicólogo tradicionalista falou sobre como aprofundara o seu compromisso com a educação humanista e sua crescente

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capacidade para definir uma identidade própria, distinta da de seu pai. O nosso propósito não é relatar aqui depoimentos, mas ilus­ trar p impacto pessoal de conferências que pretendiam mais re­ tratar tendências ideológicas do que promover mudanças nos estudantes. As pessoas, ao que parece, reagem intensamente a teorias psicológicas que sublinhem a responsabilidade existencial do homem em défrontar-se consigo mesmo como a criatura cuja natureza corisistè em criar a sua própria natureza e que postulem possuir o homem um impulso para a individuação 3 ou auto-realização do pleno potencial de sua natureza. A interação de teoria e fenômenos é aqui evidente; aprendemos da Física moderna que o observador, pelo seu ato de observação, afeta os eventos que estuda “objetivamente”. Na Psicologia, o processo é ainda mais desconcertante, visto que, segundo parece, até a mera expressão de uma teoria afeta as pessoas a cujo respeito essa teoria foi formulada. Como Raghavan Iyer sublinha no Capítulo 9, o aspecto assustador de algumas teorias psicológicas desumanizantes não é o fato de serem verdadeiras, mas de que possam vir a ser verdadeiras. A nossa esperança é que, se as teorias apresentadas neste livro tendem a tornar-se verdadeiras, contri­ buirão para o gênero de crescimento pessoal evidenciado nos ensaios que li de estudantes que os apresentaram como próva de final de ano. Tendo resumido alguns dos acontecimentos que me orien­ taram para o pensamento existencial e humanista, e tendo des­ crito alguns impactos suscitados nos estudantes pelâ série de con­ ferências de que o presente livro é um frutô*, explicarei agora. a origem e o significado do termo “humanismo existencial”, tal como é aqui utilizado. Escolhi essa expressão para significar a combinação produtiva do pensamento existencial e humanista que está vitalizando um ramo da Psicologia contemporânea. A Psicologia Existencial e a Psicologia Humanista são freqiiente3 Individuação (ou auto-realização) é o termo usado, pelos psicó­ logos humanistas, como Maslow, para descrever a tendência básica dos indivíduos à persistirem no desenvolvimento e manifestação de suas poten­ cialidades latentes. Em vez de procurar o equilíbrio homeostático e a redução de tensões, o homem é considerado uma criatura que busca inces­ sante e criativamente'níveis superiores de ser-em-si, de ser no mundo material, de ser com as pessoas que lhe são afins e com a raça humana em geral.

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mente confundidas ou os termos são usados indistintamente. Contudo, existem certos aspectos em que o pensamento exis­ tencial e o humanista são contraditórios e potencialmente incom­ patíveis. Um dos mais simples e mais diretos enunciados dessa questão encontra-se em Existentialism > de Sartre, um opúsculo que representa a primeira tradução em língua inglesa (1947) da Filosofia de Sartre. O título francês, UExisíentialisme est un humanisme, enuncia a posição de Sartre: o existencialismo é um humanismo ou, pelo menos, uma forma de humanismo. Tanto o existencialismo como o humanismo enfocam o homem como a fonte e o centro de valores, e rejeitam os sistemas mate­ rialistas, naturalistas e deístas. Deus, Freud e Marx não podem formar-nos. O homem faz-se a si mesmo. Sartre, entretanto, não aceita o humanismo estreito ou mais antigo que faz do homem, simplesmente, o valor último das preocupações huma­ nas. “O existencialista jamais considerará o homem como um fim porque ele está sempre em formação” (pág. 59). Vê o homem em contínuo crescimento desde o ponto em que está, no sentido de uma projeção de si mesmo que é mais do que a sua existência presente. Refere-se a esse .crescimento do homem como um “estado constante de süperação de si mesmo”. É essa busca de metas transcendentes e a sua intersubjetividade com outros homens que impedem o homem de acabar fechado em si mesmo. Sartre emprega a expressão “humanismo existencial” para descrever essa teoria do homem e acredita ser a única teo­ ria que confere ao homem dignidade e não o reduz a um objeto. A esse respeito, o existencialismo parece quase idêntico à Psicologia Humanista contemporânea, porquanto em ambos os casos se sublinha o potencial do homem para realizar-se em níveis de ser e de relacionar-se para além do seu estado atual. Existem várias diferenças, porém, quanto ao grau de oti­ mismo e de fé alimentado pelos psicólogos humanistas e existen­ ciais. Algumas das diferenças são reais e outras imaginadas, baseadas em erros de interpretação. O existencialismo é amiúde considerado uma doutrina sombria de desespero e angústia. O Dicionário de Webster (1959), por exemplo, define existen­ cialismo como “um culto literário-filosófico do niilismo e do pessimismo. . . ” Isso é uma definição falsa e depreciativa, mas há certas razões pelas quais o existencialismo é encarado, por vezes, dessa maneira. Embora os existencialistas afirmem não sustentar uma concepção permanente da natureza ou condição

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do homem, parecem insistir amiúde no absurdo, contingência, ansiedade e desespero que o assediamT/ [Talvez essa ênfase seja compreensível quando recordamos que grande parte do desen­ volvimento e popularidade do existencialismo surgiu da II Guer­ ra Mundial; com efeito, a brutalidade dos soldados alemães tal­ vez tenha feito mais para promover o existencialismo do que os ensinamentos de filósofos alemães como HeideggerJ Os inte­ lectuais franceses, como Sartre e Camus, tiveram ae realizar algumas opções difíceis para criar uma significação, encontrar um sentido, no meio da irremediável derrota e ocupação por anti-humanos disfarçados de homens. Uma Filosofia concebida, literalmente, a curta distância dos gritos das vítimas de torturas não podia expressar, de modo algum, uma fácil crença no poten­ cial humano. Não obstante, surgiu, de fato, uma fé severamente testada e madura.

cialismo deposita fé total no homem como o criador do seu pró­ prio destino e assinala, assim, o caminho para a única esperança não baseada em ilusões:

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Outra causa do caráter lúgubre por vezes atribuído ao exis­ tencialismo é a sua declaração de que somente o homem é res­ ponsável pelo homem, “ . . . o primeiro esforço do existencia­ lismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir total responsabilidade da sua existência. E, quan­ do dizemos que o homem é responsável por si próprio, não que­ remos dizer que o homem é responsável pela sua restrita indivi­ dualidade, mas que é responsável por todos os homens”. (Sar­ tre, 1947, pág. 20.) Isto é uma doutrina austera e exigente, com uma tônica distinta da de alguns proponentes da Psicologia Humanista que preferem celebrar a capacidade do homem para a alegria e viagens de expansão da consciência. De fato, é extra­ ordinário que exista tanto otimismo no existencialismo, pois este requer que comecemos por enfrentar os duros fatos da nossa existência aqui-e-agora, como homens “jogados” num planeta sem outro apoio além das nossas próprias e falíveis capacidades. Como disse Sartre, estamos “condenados, momento a momento, a inventar o homem” (pág. 28). Também aqui a escolha da palavra “condenados” parece destacar o fardo e o pessimismo da situação do homem, em contraste com a perspectiva huma­ nista mais afirmativa de que o homem possui um impulso para a auto-realizaçao que o liberta para inventar o homem, em vez de condená-lo. Entretanto, o homem certamente atua, grande parte do tempo, como se estivesse condenado e tentasse evadir-sè, em vez de ser livre e tentar realizar-se. Sartre responde a essa acusação de derrotismo afirmando que somente o existen-

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Assim respondemos, creio eu, a um certo número de censuras referentes ao existencialismo. Vedes bem que ele não pode ser considerado como uma filosofia do quietismo, visto que define o homem pela ação; nem como uma descrição pessimista do homem: não há doutrina mais otimista, uma vez que o destino do homem está nas suas mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir, visto que lhe diz não haver esperança senão na sua ação, e que a única coisa que permite ao homem viver é o ato. Por conseguinte, neste plano, preocupamo-nos com uma moral de ação e de compromisso (pág. 42).

Responsabilidade, envolvimento e ação, somados à crença em que o homem é capaz de escolha e crescimento: estes prin­ cípios ligam o existencialismo ao humanismo moderno. Ambas as orientações valorizam também o eu-em-processo intimamente experimentado e distinto do eu em encontro ou ação. Contudo, os psicólogos humanistas sustentam uma concepção da essência dcLhomem ou, pelo menos, de seu potencial, que vai muito além da existência do homem de uma forma que o existencialista rigo­ roso não poderia aceitar. Os psicólogos humanistas enfatizam que o homem é não só responsável pela sua individuação, mas também tem um impulso positivo e a necessidade de fazê-lo. Em vez de ser uma criatura orientada para a segurança que busca a homeostase, a menos que instigada por severas admoestações existencialistas, tem uma tendência básica para realizar o seu potencial máximo, mesmo quando contrariado por problemas internos e oposição externa. O humanismo existencial, como orientação psicológica, com­ bina aspectos do existencialismo e do humanismo de um modo que reconhece a contribuição de ambas as abordagens, ao mesmo tempo que procura evitar algumas de suas limitações. Assim, é mais afirmativo que boa parte do existencialismo, mas também mais cognoscitivo, da fmitude e contingência que acompanham a auto-realização do homém do que o humanismo centrado no otimismo e no crescimento. O humanismo existencial inclui o reconhecimento do caos, absurdo, contingência, desespero e de­ samparo do ser humano num mundo em que só ele é responsável pelo seu devir, como quer o existencialismo. Também inclui o postuladp humanista de que o homem dispõe de um gigantescp

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potencial para transformar-se e de um irreprimível impulso para experimentar sua plena realização, ao testar os limites desse po­ tencial contra os obstáculos inerentes na existência.

A maioria das conferências foi extensamente reelaborada pelos respectivos autores, em alguns casos, para incluir idéias estimuladas pelos períodos de debate. Talvez, nesse sentido, os membros da assistência possam ser creditados por ter contri­ buído para um fecundo diálogo. Alguns deles sentiram-se frus­ trados pelo fato de não terem sido incluídos mais encontros como parte do programa. Espero que eles encontrem neste livro algu­ mas provas de que a comunicação não foi tão unidirecional quanto eles temiam.

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Quando fala do potencial do homem e de seu impulso para a auto-realização, o psicólogo humanista não se opõe, necessaria­ mente, ao existencialista nem afirma que o homem possui uma essência básica que precede a suá existência. -A essência funda­ mental do homem ainda está para ser criada a partir de suas opções existenciais em devir. As tendências para a individuação devem competir com muitas outras tendências â medida que o homem progride para realizar a sua própria natureza. É conce­ bível que o homem possa desenvolver-se de tal modo que perca o seu impulso para a individuação e diminua o seu potencial. Atualmente, porém, os psicólogos humanistas parecem estar cer­ tos ao afirmar a realidade da individuação e os psicólogos exis­ tenciais parecem estar igualmente certos ao advertirem que mui­ tas escolhas difíceis è saltos arriscados terão de ser feitos antes que se possa dizer que essência ou natureza o homem criará para si mesmo, a partir de sua existência. Este livro apresenta o humanismo existencial como tendo sido desenvolvido por vários contribuidores. Seria demasiado simples dizer que os autores são todos humanistas existenciais: o campo é novo e confuso demais para suportar essa premissa e cada um tem sua identidade própria. Mas, à sua maneira, cada autor oferece idéias que se conjugam, gradualmente, na nova Psicologia do humanismo existencial. Algumas palavras sobre as alterações efetuadas ao transfor­ mar as conferências em capítulos de um livro. O formato foi ligeiramente reorganizado para fornecer, creio eu, um fluxo mais claro de idéias. Originalmente, Charlotte Bühler proferiu duas conferências; uma delas consistiu numa panorâmica geral e a outra focalizou a abordagem biográfica da pessoa. Essas seções foram escritas de novo e combinadas num só capítulo, com uma transição que faz da segunda parte uma decorrência natural da primeira. A conferência de Cari Rogers sobre “O Grupo de Encontro: Mudança Individual e Organizacional” ( “The Encounter Group: Individual and Organizational Change” ) foi entregue para publicação em outra parte, pelo que tomei a mim a incumbência de escrever um capítulo muito diferente sobre gru­ pos de encontro.

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O livro avança de capítulos conceptuais gerais para os capí­ tulos sobre pontos de vista existencial-humanísticos relacionados com a Educação, a Literatura e o Direito, passando por dois que tratam de progressos específicos no trabalho com indivíduos e grupos; e fecha com um capítulo que focaliza o homem auto-realizador. No Capítulo 1, Charlotte Bühler começa por examinar as razões do corrente interesse vital pela Psicologia Existencial-Humanista. Recapitula os antecedentes europeus dessas abor­ dagens, descreve a sua adaptação à cena americana contempo­ rânea e apresenta casos ilustrativos das tendências humanas bási­ cas que a autora considera em ação nas vidas humanas, obser­ vadas em seu curso total. Floyd Matson continua a panorâmica geral da Psicologia da Terceira Força no Capítulo 2, dedicando particular atenção à teoria humanista. Deplora o fato de grande parte da Psicologia estudar o comportamento mecanicista e irracional. A Psicologia Humanista preocupa-se em estudar o processo de ser humano e, ainda mais exclusivamente, dedica-se ao estudo do devir huma­ no. Matson cita a afirmação de Tillich de que devemos encon­ trar-nos e envolver-nos com o “outro” a fim de compreendê-lo. Rejeita a ciência da observação desinteressada e da modelação manipulatíva do comportamento, e propõe que a Psicologia Hu­ manista pode converter-se em poderosa força para a liberdade psicológica. Com o Cápítulo 3, passamos ao nível humano concreto da prática clínica e sentamo-nos com James Bugental quando ele tem um novo paciente à sua frente. The Search for Authenticity .(1965), do Dr. Bugental, foi uma completa e penetrante explo­ ração da abordagem existencial-analítica em psicoterapia. No capítulo a que nos referimos agora, o Dr. Bugental amplia essa

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abordagem e fornece uma vívida ilustração do humanismo exis­ tencial num encontro de duas pessoas. A minha contribuição pessoal, o Capítulo 4, examina o atualmente popular movimento dos grupos de encontro do ponto de vista existencial e humanista, e argumenta que, longe de ser uma passageira moda, os grupos de encontro constituem, em sua melhor expressão, um profundo tentame filosófico. Analiso algumas das críticas aos grupos de encontro e adoto a posição de que muitos percalços podem ser evitados se os facilitadores e participantes explorarem mais abertamente seus pressupostos sobre a natureza do homem e seus estilos de interação com as qualidades existenciais dos grupos. Willis Harman está muito empenhado na criação de estra­ tégias educacionais orientadas para o futuro. O Capítulo 5 con­ tém seus pontos de vista sobre os problemas enfrentados pela educação que promanam da necessidade de mudanças básicas em nossas premissas culturais. A sua análise das decisões existenciais com que o homem depara, como zelador da sua espécie e do planeta em que habita, lembra a observação de Pogo: “Estamos diante de oportunidades intransponíveis”. Harman invoca a Filosofia perene de Huxley e sugere que a verdadeira educação se converta em “A Busca do Centro Divino” . No Capítulo 6, William Richardson assume a provocante tarefa de apresentar a teoria existencial, com particular refe­ rência a Heidegger, de um modo que elucida recentes interesses em nossa cultura esquizóide. A qualidade mais notável do homem não é, simplesmente, a sua capacidade de raciocínio, como a metafísica vem proclamando desde Aristóteles, mas a sua franca disposição para Ser. Nesse sentido, sublinha Richardson, Heidegger leva-nos além do humanismo convencional que se concentra na humanidade, mas não compreende adequada­ mente as relações fundamentais da humanidade com o Ser. So­ mente o homem pode dizer “é”, e somente ele pode determinar a sua própria existência, descobrindo, criando e comunicando quem é. A vontade de habilitar outros a realizarem sua liber­ dade e lograrem sua ligação com o Ser é, assim, um compo­ nente básico do amor. As relações especiais de interdependência entre o huma­ nismo existencial e a literatura são desenvolvidas por Henri Peyre no Capítulo 7. A obra de ficção de Sartre e Camus, por çxemplo, é muitç mais que um reflçxo do impacto do hum£-

nismo existencial; também é uma fonte primária de muito do que há de novb em Psicologia, tal como é vigorosamente vivido por personagens verossímeis. A vida imita a arte ou, talvez mais exatamente, a arte adianta-se à vida . . . e à Psicologia. Disse Camus: “Se você quer ser filósofo, escreva romances” . De fato, diz Peyre, quem quiser entender o humanismo existencial deve ler romances. A lei é algo com que temos grande contato nestes contur­ bados tempos atuais. Muitas pessoas que teriam habitualmente escasso contato com a polícia, os tribunais e a lei em dias mais calmos, estão hoje experimentando seus primeiros envolvimentos com essas forças. O Capítulo 8, de Christopher Stone, apresen­ ta-nos o Direito como poucos dentre nós o conhecem — uma força complexa e potencialmente humanizante em nossa socie­ dade, atuando através de uma espécie de diálogo para colocar-nos diante de opções existenciais devidamente elucidadas. O próprio Direito também realiza tais opções ao preencher suas funções como uma das principais vias através da qual o homem faz a sua própria natureza. Os juizes e outros agentes da lei assumem riscos existenciais em suas opções para apoiar, permitir, restringir ou punir as ações individuais. As opções derivam de suas concepções sobre a natureza atual e o potencial futuro do homem. O fator de contingência é elevado; eles podem julgar erroneamente a natureza do homem, seu potencial e as conse­ qüências de suas sentenças. Stone ilustra esses pontos com casos e ajuda-nos a ver como o humanismo existencial pode resultar dos conflitos e decisões na arena judicial. Raghavan Iyer, no Capítulo 9, conclui o livro com uma análise do homem auto-realizador, desde o ponto de vista filo­ sófico. Sublinha que um quadro psicológico estritamente contem­ porâneo não é suficiente para compreendermos todas as ramifi­ cações da auto-realização. Os autores clássicos, ocidentais e orien­ tais, forneceram uma valiosa base conceptual sobre os modos como as ^pessoas crescem. O Professor Iyer deixa-nos com o provocante lembrete de que mal estamos começando a entender a auto-realização e de que precisamos de toda a ajuda possível tanto do passado clássico como do presente em que vivemos.

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Nova York:

m dos prazeres e privilégios, para mim, de ser psicólogo em Los Angeles é a oportunidade que me foi propiciada de conhe­ cer a Dr.a Charlotte Bühler. Quando cheguei pela primeira vez a esta cidade, há 12 anos, ela e seu marido, Karl Bühler, eram nomes meus conhecidos pela reputação de que gozavam como psicólogos criativos, autores de importantes contribuições na área da Psicologia desde a I Guerra Mundial. Em anos recen­ tes, a Dr.a Bühler continuou sua surpreendente produtividade, inspirando-me e a muitos outros com seu envolvimento pessoal na cena local e seu envolvimento erudito na comunidade psico­ lógica internacional..

U

Tendo obtido o seu diploma de Doutor em Filosofia na Universidade de Munique, Charlotte Bühler tornou-se, de 1928 a 1938, Professora Agregada de Psicologia da Universidade de Viena e, depois, diretora das Clínicas de Orientação Infantil em Viena, Londres e Oslo. Após sua imigração permanente nos Estados Unidos, em 1940, a Dr.a Bühler foi Professora de Psicologia no St. Catherine College, Minnesota, e Chefe dos Serviços de Psicologia Clí­ nica do Hospital Geral de Minneapolis. De 1945 e 1953 chefiou os serviços de Psicologia Clínica do Hospital Geral do Condado de Los Angeles e exerceu o cargo de Professor-Assístente de Clí­ nica Psiquiátrica na Escola de Medicina da Universidade do Sul da Califórnia. Atualmente, mantém sua clínica particular em Beverly Hills. A Dr.a Bühler faz parte da Junta de Diretores da Associação de Psicologia Humanista, da qual foi presidente do biênio de 1966-67.

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Charlotte Büh ler

Seus livros foram traduzidos em 12 idiomas e publicou numerosos artigos e ensaios nos campos da Psicologia do Desen­ volvimento, Psicologia da Vida Humana, Teoria da Personalidade e Psicologia Clínica. Dois de seus livros mais recentes são espe­ cialmente importantes para o humanismo existencial: Values in Psychotherapy e The Course of Human Life : A Study of Goals in the Humanistie Perspective, organizados em colaboração com Fred Massarik. Muito antes do termo tornar-se popular, a Dr.a Bühler já era uma psicóloga humanista. Por exemplo, foi pioneira no uso de material biográfico e autobiográfico nos estudos psicoló­ gicos da pessoa como um todo. No presente capítulo, ela apoia­ sse em sua vasta formação cultural européia e americana para descrever a sua perspectiva sobre a Psicologia Existencial e Hu­ manista e a importância de que se reveste para as pessoas que a Dr.a Bühler tem visto em psicoterapia. As idéias apresentadas neste capítulo foram ampliadas no livro de Charlotte Bühler e Melanie Allen, Introâuction to Humanistic Psychology (Belmont, Calif.: Brooks/Cole, 1972).

Psicologia Existencial e Humanista: Respostas a Desafios Contemporâneos Charlotte Bühler

um longo período de orientação predominantemente materialista, o pensamento existencial e humanista está tornan­ do-se hoje cada vez mais importante. Esse movimento encontra a sua expressão mais vigorosa e, gosto de pensar, sua liderança e fundamento na moderna Psicologia, a caçula entre as nossas ciências. Este livro sobre psicologia Existencial e Humanista foi planejado a fim de levar ao leitor uma noção palpável — e um conhecimento — dessas novas tendências ideológicas e de seu impacto em nossas próprias vidas. Os autores analisam essas tendências em muitos domínios da atividade humana: as ciências e as artes, a condução prática dos assuntos humanos nas esferas social, legal, educacional e administrativa; e, final­ mente, nas áreas desnutridas de nossas necessidades metafísicas, em nosso pensamento sobre o universo e o possível papel que desempenhamos no universo. Eu disse tendências “ideológicas”, o que pode levantar a suspeita de que se trata de um livro de Filosofia. Ainda que a nossa intenção seja discutir Psicologia e não Filosofia, não se pode negar que, subjacentes em toda a nossa pesquisa sobre o homem, estão certas direções que a nossa mente assume ao sele­ cionar e interpretar os dados que tentamos reunir. Por muito fatuais e objetivos que sejamos, a enorme complexidade de todos os fatos força-nos a vê-los em certos quadros de referência e a organizá-los de acordo com crertas categorias. Esse processo faz-nos necessariamente seletivos, o que nos leva a enfatizar um agrupamento de dados em vezr de outro. Tentarei demonstrar mais adiante até que ponto isso é ver­ dade, quanto comparar sucintamente a interpretação freudiana .A . pós

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Charlotte Buhler

dos processos de motivação com a humanista, as quais se baseiam ambas em provas fatuais e, no entanto, interpretam os dados de maneiras diferentes. Embora não se negue que uma orientação filosófica está implícita em nossa busca de conhecimento — como acontece enjt qualquer época — este livro, por conseguinte, não se esten­ derá sobre o existencialismo e humanismo como filosofias, mas como eles se fazem presentes na Psicologia ^hodierna. / A principal finalidade deste capítulo é familiarizar os leito­ res com o significado da Psicologia Existencial e Humanista e explicar a razão pela qual esses desenvolvimentos parecem res­ ponder a uma grande necessidade do nosso tempo. Esse propó­ sito requer um breve resumo das raízes históricas desses dois movimentos interligados, seguido pela descrição e exemplifica­ ção de cada um deles em nossos estudos e vidas atuais. Antecedentes

Essa nova tendência ideológica da Psicologia moderna e suas aplicações tem uma longa e ilustre história. E, embora não nos proponhamos aqui a tarefa de descrever os complexos e interes­ santes pormenores dessa história, acho que será útil para a com­ preensão dos conceitos de existencialismo e humanismo conhe­ cer alguns fatos sobre as suas origens e uso através do tem po.1 Na história antiga, o termo humanismo designava um movi­ mento real, cujo apogeu ocorreria durante o Renascimento qua­ trocentista na Itália, o qual enfatizava o estudo dos clássicos gregos e romanos. O movimento foi considerado de “liberdade de pensamento”, porquanto representava uma ruptura com o sis­ te m a escolástico medieval de pensamento, desenvolvido pelos filósofos da Igreja, Embora não acarretasse grandes realizações filosóficas, esta­ va aberta a porta para o pensamento crítico independente. Por exemplo, Nicolau V (1447-1455), o primeiro Papa humanista, 1 Manifesto a minha gratidão a Melanie Allen por sua assistência nas pesquisas realizadas para efeitos deste estudo.

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/ encorajou a ascendência do humanismo sobre a devoção ou a ortodoxia, a moral e a religião. Um tipo de paganismo resultou, pois, dessa adulação das antigas culturas, culminando em nova soltura do comportamento moral, como Bertrand Russell assinalou. As vidas de alguns Papas demonstram pitorescamente o clima moral predominante. Por outro lado, o pensamento independente não impediu alguns humanistas de tentarem uma reconciliação com a Igreja, especial­ mente quando a morte se avizinhava. Tampouco evitou o que Bertrand Russell chamaria “mergulhos” em toda espécie de “absurdos arcaicos”, como os experimentos astrológicos. De que modo, exatamente, o movimento humanista do Re­ nascimento se relaciona com o que hoje consideramos o pensa­ mento de orientação humanista nas Ciências Sociais? Creio que a resposta se apresenta do modo mais nítido nas obras de Erasmo de Roterdã, o mais notável dos primeiros humanistas. Homem muito religioso, Erasmo também acreditava na liberdade essen­ cial do homem e no poder criador do indivíduo. Assim, diferia de Martínho Lutero, o qual afirmou que o homem era incapaz de deixar de pecar, exceto pela graça de Deus. Em Do Livre Arbítrio , de Erasmo, o grande livro desse período, encontramos a mesma luta pelo estabelecimento e definição da liberdade inte­ rior que os psicólogos de hoje, especialmente nós, os psicoterapeutas, também procuramos representar. Essa liberdade inte­ rior, que os intelectuais de antanho tentaram descobrir mediante a leitura de velhos alfarrábios, é uma liberdade que tentamos ago­ ra esclarecer experiencialmente, não através de estudos. Paul Oskar Kristeller (1955), um dos mais bem informa­ dos autores sobre esse período, afirma que a orientação para os valores a que hoje se chama “humanistas” foi apenas acidental no movimento humanista original, que destacava os estudos clás­ sicos. Entretanto, pergunto a mim própria se essa ênfase sobre os estudos clássicos não seria, simplesmente, a expressão parti­ cular da nova e mais fundamental determinação de conquistar a liberdade intelectual e de sentir-se livre como ser humano. Petrarca, freqüentemente chamado o “pai do humanismo”, já exal­ tara a “dignidade do homem” . Esses valores de dignidade indi­ vidual, liberdade interior e criatividade existiram, por certo, como precursores do movimento humanista atual. O desenvolvimento do existencialismo tem origens muito mais recentes que o humanismo. O filósofo dinamarquês Kier-

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kegaard, cujos principais escritos vieram a lume na década de 1840, é geralmente considerado o seu originador. Contudo, Kaufman, em seu livro Existentialism frotn Dostoevsky to Sartre (1956), considera as Memórias do Subterrâneo, de Dostoievsky, a melhor abertura para o existencialismo que se escreveu até hoje, Uma das características do existencialismo é que cada um dos seus representantes tem seu próprio ponto de vista, e esses diversos pontos de vista não se concatenam, realmente, numa só escola de pensamento, Tudo o que os autores do existencia­ lismo — um termo criado por Sartre — têm em comum é a especulação filosófica em torno da existência humana, em sua maior parte marcada por uma tendência trágica e carente de esperança. A essência é que o homem reflete sua própria expe­ riência, que é tudo o que ele pode ter da realidade. O mundo, diz Kierkegaard, não tem papel algum em ajudar o homem a estabelecer a sua “condição humana”. Essa condi­ ção é uma imprescindibiíidade que requer escolha e decisão. A ética não é questão de ver, mas de tomar uma decisão. Sinto medo, diz ele, no aturdimento da minha liberdade; e a minha escolha é feita com temor e tremor. Parece-me que essa ênfase sobre a ética e a 'escolha é o que leva Heidegger a repudiar Kierkegaard como autor meramente religioso, Heidegger foi fortemente influenciado por Nietzsche e Jaspers, e os três são considerados os fundadores da Filosofia Existencial, por eles concebida como uma interpretação do Ser. Destacam as limitações da ciência como um modo de conheci­ mento. Heidegger interessava-se pela “ontologia fundamental” — isto é, o estudo do nosso Ser enquanto Ser — e esperava penetrar na essência do Ser-mesmo. Tentou analisar a existên­ cia do homem, o fato de nos encontrarmos “lançados” na exis­ tência. E perguntou: “Por que é que existe o Ser e não o nada, o não-Ser?” Sartre, de certo modo o arauto do existencialismo, reaproxima-nos de Kierkegaard ao retornar à condiçãó humana e ao absurdo e trágico fato de que devemos tomar compromissos e decisões sem um conhecimento adequado de suas conseqüências para nós próprios e os outros. Diferindo dos outros pensadores anteriormente citados, Sartre considera que seus escritos são Psi­ cologia. Examina o desespero, a decisão, o temor e a auto-sugestão enquanto baseados na experiência.

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Além disso, destaca a escolha como o principal aspecto da vida humana, mas insiste em afirmar que a situação trágica do homem não exclui a integridade da escolha, em oposição à depen­ dência da utilidade social. De um modo que lembra Shakespeare, Sartre diz: “Há situações èm que, seja qual for a escolha que façamos, não podemos escapar à culpa.” Os psiçoterapeutas contemporâneos reconhecem cada vez mais a freqüência com que seus pacientes se debatem com a culpa existencial e não simplesmente neurótica. Camus, em seu livro O Estrangeiro (1954), acrescentou a esse quadro pessimista a comovente descrição do isolamento de um indivíduo. Romances como esse previram o que atualmente encontramos em nóssa vasta experiência com pessoas alienadas. Meursault, o passivo protagonista de O Estrangeiro, passou a simbolizar a alienação do homem do século XX em relação a si mesmo e aos outros. Em resumo, nesta breve panorâmica vimos os existencia­ listas preocupados com a nossa condição humana como tal, concebendo-a, predominantemente, em termos trágicos ou absurdos. Vemos Sartre tentar a reconciliação de si mesmo com o nosso destino humano ou, melhor dito, fazer-lhe frente com coragem e integridade. Autores americanos recentes mostram-se perturbados diante da preocupação dos pensadores existenciais com o temor, a angús­ tia, o desespero e a “náusea” (por exemplo, ver Rollo May, 1961). Consideram essa postura mais européia do que ameri­ cana. Maslow observou que os pacientes americanos podem sofrer tão profundamente e estar tão angustiados por suas vidas insípidas e vazias quanto os pacientes europeus, mas que a ênfase sobre a resignação, a aceitação — até mesmo a “coragem de ser”, de Paul Tillich, ou a aceitação de responsabilidade e a busca de significado no sofrimento, de Viktor Frankl —■ parece mais européia que americana. No passado, os americanos alimentaram sempre considerá­ vel dose de otimismo a respeito da vida e quiseram sempre sentir que podem superar quaisquer dificuldades. Além disso, provaram, em certos aspectos, ser capazes de realizar o que mui­ tas vezes parecia quase impossível. Sua perspectiva mais otiymista sobre a natureza humana coloca-os mais perto dos huma­ nistas que dos existencialistas. Aí está uma das mais signifi­ cativas diferenças anteriores entre as duas escolas. Homens

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como Erasmo acreditavam no “livre arbítrio” como poder cria­ dor; ele considerou a capacidade de escolha o maior privilégio e potencial da criatura humana. Por outro lado, homens como Kierkegaard e Sartre, sentem temor e vêem o absurdo que existe em sermos forçados a fazer escolhas, quando realmente não pos­ suímos conhecimento algum da realidade de nossa existência, É também nesse ponto, evidentemente, que os psicoterapeutas modernos criam algumas das experiências mais cruciais com seus pacientes. Os terapeutas perguntam-se: Poderemos ajudar pessoas neuróticas a desenvolver a capacidade de experi­ mentarem uma liberdade íntima de escolha e a experimentarem essa capacidade como concretização de potencialidades, em vez de uma responsabilidade assustadora, assumida com temor e tremor em face de conseqüências desconhecidas?

Outra ilustração da perspectiva otimista americana sobre a existência humana, em comparação com a dos escritores euro­ peus, encontra-se no comentário de Allport sobre as obras de Maslow. Este enfatiza a capacidade da pessoa sadia para sèntir a escolha, a responsabilidade e o futuro como aspectos positivos de sua vida. Maslow, diz Allport (1961), vê o existencialismo como aprofundamento dos conceitos que definem a condição humana. Ao fazê-lo, o existencialismo “prepara ao caminho (pela primeira vez) para uma psicologia da humanidade” . Este ponto é verdadeiro, E, como gosto de acrescentar, há nos americanos a tendência para confiar mais num propósito construtivo no universo do que os existencialistas franceses expressaram. Colin "Wilson (1967) enunciou alguns argumen­ tos importantes a respeito de nossas necessidades metafísicas. Referiu-se ao fato do nosso sentimento de propósito ou intenção só poder existir se aceitarmos primeiro o pressuposto de que “existe um padrão de valores externo à consciência humana, tal como se reflete no cotidiano”. Pessoalmente, penso que se pode explorar ainda mais os argumentos em favor de um propó­ sito construtivo no universo, recorrendo inclusive a considera­ ções perfeitamente científicas que envolvem a Física moderna. Crise e Resposta

Embora possam existir bases para todo esse otimismo, ainda não acredito que o atual interesse generalizado e intenso

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por essas novas Filosofias se desenvolvesse, pura e simplesmente, porque as pessoas estão hoje mais ávidas do que em épocas pretéritas por encontrar um caminho para sua melhor individua­ ção, maiór autocompreensão, vidas mais plenamente realizadas e crenças mais cientificamente fundamentadas. Acredito, pelo contrário, que uma grande parte do interesse decorre do predo­ mínio, sobretudo na juventude de hoje, de mais ansiedade e até mais desespero do que era perceptível em gerações anteriores, Ainda recordo as minhas primeiras visitas aos Estados Uni­ dos, e como me foi dito por colegas americanos, quando analisei e discuti diários de adolescentes como reveladores de sofrimen­ tos adolescentes, que esse tipo de introversão era europeu. Os jovens americanos (tal como me foram descritos, por exemplo, pela Dr.a Leta Hollingworth, especialista em adolescência) são extrovertidos e felizes, E foi com assombro que eu, vivendo então como estudante numa Casa Internacional, ouvi os esfusiantes relatos de universitários que tinham estado nesta ou naquela festa e as achavam todas maravilhosas. Nós, em Viena, tínhamos freqüentemente achado que tais festas eram demasiado superficiais e vazias para satisfazer as nossas necessidades inte­ riores de comunicação e compreensão, Agora, tantos anos depois, estou ouvindo nos Estados Unidos queixas semelhantes por parte da juventude. “Na casa onde vivo há festas e reuniões freqüentes”, diz Betty, “e encontro-me com toda essa gente, a coisa é divertida, sim; mas desejaria encontrar alguém que me entendesse e me ajudasse em minha solidão.” Isso significa um novo estado de espírito, comparado com o tempo em que “diversão” era tudo o que as pessoas busca­ vam. Existe agora uma introversão anteriormente desconhecida, uma expressão de infelicidade, desespero e absurdo, Como expli­ car essa reviravolta? Um certo numero de' fatos levou a esse desenvolvimento. A'eclosão da II Guerra Mundial destruiu as esperanças ingênuas dos que esperavam que a I Guerra Mundial acabasse de uma vez para sempre com as guerras. Evadindo-se do manicômio que era a sociedade hitlerista, psicólogos como Karen Horney e Erich Fromm chegaram aos Estados Unidos dizendo: “Como poderemos confiar na sociedade?” Contraímos sérias dúvidas sobre o progresso moral da espécie humana,- temor da bomba atôpica e medo da autodestruição da humanidade, descrita de forma tão realista por Neyil Shute em On the fieacb

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(1957). Depois vieram a Coréia e o Vietnã, mais guerra e mais juventude sacrificada. A seguir, negros enfurecidos come­ çaram, finalmente, a levantar a cabeça e surgiram na América flagrantes tensões e disputas raciais. Revelações chocantes foram feitas sobre a grande proporção de pobreza nessa sociedade afluente. Todos esses acontecimentos fizeram a juventude duvi­ dar dos valores e da moralidade tradicionais e ver apenas hipo­ crisia no que a geração mais velha proclamava como valores. Além disso, surgiram dúvidas religiosas, em conseqüência das descobertas científicas, dúvidas sobre os dogmas e pregações da Igreja, somadas à perturbadora interrogação: “Existe um desíg­ nio no Universo?” A isto responderam alguns escritores: “Não existe. Deus está morto.” Os sentimentos dos jovens e também as interrogações de adultos mais profundos em suas meditações foram sacudidos e expressos em termos tais como: Qual é o significado de tudo? Quem somos nós, quem sou eu? Qual o modo certo de viver? Muito além da adolescência, essas interrogações incomodavam as pessoas, provocavam confusão e despertavam-nas para idéias e pensamentos completamente novos. Reagiram de múltiplas ma­ neiras a esses problemas e essas interrogações. Essas reações parecem conglomerar-se em muitos grupos diferentes, entre os quais encontraremos diversos graus de afinidade com o movi­ mento humanista. Em ppmeiro lugar, há aqueles em quem as tradições e valores estao enraizados profundamente demais para admitirem revisões. Essas pessoas e grupos conservadores aderem às suas convicções e aos seus modos estabelecidos e herdados de pensar e viver. Apóiam as opiniões conservadoras na política, educa­ ção, religião e vida corrente. É em confronto com esses grupos e pessoas que grande parte dos jovens sente o chamado “conflito de gerações” —• o generation gap. Algumas dessas pessoas fecham-se rigidamente a qualquer conscientização dós proble­ mas que surgiram, esperando que, de um modo ou de outro, os velhos rumos provem ser duradouros.

velha, que toleram ou até defendem tais padrões. Sentindo-se impotente em sua oposição e alienada daqueles que pertencem à sociedade estabelecida e institucionalizada, essa facção do grupo rebelde prefere afastar-se e segregar-se, amiúde em colônias semiprimitivas próprias. O movimento hippie da década de 1960 atraiu os jovens que rejeitavam os sistemas educacionais vigentes, que lhes pareciam irrelevantes, assim como uma sociedade mate­ rialista que consideravam dominada pelo complexo militar-industrial. Preferiam uma vida mais simples, sustentada por ocupa­ ções como o artesanato e o cultivo da terra, ou viajavam para lugares distantes com a vaga esperança de encontrar sua plena realização na sabedoria do Oriente ou nas grutas de Salonica. Também buscaram cada vez mais, é claro, obter satisfação atra­ vés das drogas, que eles acreditavam ampliar sua percepção além das fronteiras da consciência e fazê-los sentir mais vivos. Con­ tudo, esse grupo de jovens alienados sofria as conseqüências da indecisão de rumos, da confusão ideológica. Embora a facção precedente seja mais ou menos confusa em suas perspectivas e algo passiva em sua atitude perante a sociedade, outra facção da juventude rebelde é agressiva e luta por reformas. Esse grupo possui idéias e convicções mais ou menos definidas, as quais podem ser políticas na acepção mais específica da palavra ou girar em torno da liberdade e dos direi­ tos humanos, num sentido mais genérico. E, nesta última ver­ são, aproximam-se mais, ainda que através de programas irrea­ listas, da Filosofia Humariista do que qualquer dos outros gru­ pos previamente mencionados. Numa duvidosa relação com o pensamento humanista, acho, pessoalmente, outro grupo de contestadores cujos participantes não são apenas jovens, mas pessoas de todos os grupos etários, incluindo profissionais liberais. Esse grupo de protesto proclama a libertação da escravidão dos tabus tradicionais, sob o estan­ darte da criatividade e da autenticidade de sentimentos. Alguns membros podem explorar a liberdade sexual, novas abordagens da intimidade físick e sensações corporais, fruição sensual e auto-expressão física. Alguns também se entregam a experimentos no uso de drogas, pois acreditam que estas aumentám a consciên­ cia e sensibilidade perceptuais e intensificam a sensação de estar vivo. O filme Bob & Carol & Ted & Alice apresentou uma de­ núncia bem-humorada, mas algo profunda, dos modos como esse grupo explora, por vezes, de maneira canhestra e superficial,

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Existem, depois, os grupos rebeldes. Encontramos aqui numerosas facções diferentes. Uma facção consiste naqueles cuja rebelião é predominantemente negativa, na medida em que igno­ ram que novos valores querem abraçar, em vez dos antigos. Rejeitam simplesmente a sociedade tal como é, condenando a hipocrisia e os preconceitos do Establishment e da geração mais

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a sua pseudoliberdade. Alice’s Restaurant é outro filme que revela as confusas bem-aventuranças dos novos padrões de vida. Entre algumas atraentes cenas de vida comunitária e liberdade, ocorrem erupções trágicas, como a morte pelas drogas, a promis­ cuidade adolescente e a alienação no seio de festividades. Uma vigorosa expressão dos aspectos deprimentes desse movimento é apresentada no musical Hair que, apesar de sua interessante e excitante música, oferece-nos uma história triste. Por exemplo, numa cena, no meio -de uma compacta multidão que proclama o amor como seu credo, vemos Jeanie, a moça grá­ vida que necessita de ternura e carinhos mais do que qualquer outra pessoa, andar à toa como uma alma perdida, sem que alguém lhe preste atenção. Noutro ponto, ouvimos a multidão exortar Sheila, a estrela, que realmente ama Berger, a não se prender a ele, mas deixar que qualquer um a ame. Vários especialistas psicológicos adotaram diferentes pon­ tos de vista a respeito dessas tendências rebeldes. Por exemplo, Bruno Bettelheim (1969) atribui a culpa aos pais americanos, que não souberam dar à juventude de hoje o equipamento emo­ cional necessário para se engajarem em movimentos de pro­ testo racional e construtivo. Contudo, esse ponto de vista parece ser uma simplificação quando se considera a crise cultural que impregnou toda a civilização ocidental. Acredito que o que está acontecendo hoje promana de uma crise iniciada na Europa antes da I Guerra Mundial, quando os jovens europeus, como os “Wandervögel” e “ Pfadfinders” ale­ mães, combateram a hipocrisia da geração mais velha, os prazeres frívolos do que nos Estados Unidos se chamou “the Gay Nineties” . Esses jovens criticavam o militarismo jactancioso do Kaiser e escreviam poemas e diários repletos de “tédio” ( W elt­ schmerz)I e anseios de um mundo melhor. Movimentos seme­ lhantes surgiram na Rússia e outros países. Entre o s . muitos escritores para quem os jovens rebeldes se voltavam nesses tem­ pos estavam Karl Marx e Hermann Hesse. Hoje, muitos anos depois, assistimos à continuação dessa inquieta busca e contes­ tação, quando tantos jovens se entregam às idéias de Herbert Marcuse e à redescoberta de Hesse. Na primeira metade deste século, a juventude rebelde não estava organizada nem era sufi­ cientemente numerosa para influir no curso da história. Cresce­ ram e adaptaram-se à sociedade em que viviam, até à hitlerista, ou a sua rebelião manteve-se latente...................

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Atualmente, quando toda sorte de revoltas se manifesta em campo aberto e influi na sociedade através dos ativistas, é quase impossível conseguir-se uma visão objetiva e global. Psi­ cólogos de muitos tipos diferentes estão procurando meios de expressar o seu crescente sentimento de co-responsabilidade pelo bem-estar das comunidades. Alguns procuram ajudar com ser­ viços gratuitos para as classes econômica e racialmente desprivilegiadas, por exemplo, através de clínicas gratuitas. Um dos movimentos educacionais de maior êxito, o Head Start , está sob liderança psicológica. Os psicólogos, não obstante, encontram-se intensamente divididos no que se refere à avaliação e manipulação das várias expressões de rebeldia. S. I. Hayakawa, um dos patrocinadores da fundação da Associação de Psicologia Humanista, dominou com firmeza a rebelião de 1968 no Colégio Estadual de São Francisco da Califórnia. Em contrapartida, Sidney Jourard, tam­ bém co-fundador da APH, expressou a sua aprovação do uso de drogas psicodélicas pelos jovens. Considerou “o uso de drogas psicodélicas uma forma de protesto contra a rigidez do status quo . . . uma declaração de que os padrões de vida ( tal como são definidos pelas leis, os costumes e os líderes institucionais) obstruem o crescimento, frustram a experiência e engendram o o tédio, a ira ou desesperança” (Jourard, 1968). A minha opinião pessoal é que o uso de drogas constitui uma forma de protesto e de busca infeliz, estéril e perigosa para a saúde, tendo muito pouco a ver com a Psicologia Existencial ou Humanista. Esta opinião é compartilhada por, entre outros, Stanley Krippner, um dos estudiosos mais bem informados sobre drogas e as teorias de percepção ampliada (1968) e Floyd Matson, um dos colaboradores deste volume. Um ponto de vista mais profundo é adotado por Rollo May no seu livro Love and W ill (1968) [publicado no Brasil com o título de Eros e Repressão]. Considera “uma grosseira e des­ trutiva simplificação supor que os problemas psicológicos surgem todos desligados”, mas acredita que eles expressam “algo de importante que está acontecendo em níveis inconscientes e inarticulados, e que se esforça portganhar expressão”. May refere-se ao nosso, mundo como um “mundo esquizóide” onde tem lugar tal despersonalização que incapacita as pessoas para o amor ver­ dadeiro e as habilita, por outro lado, a presenciar um homicídio sem pestanejar, a manter a calma em todas as situações, a pra­ ticar o sexo sem sentimento e a colocar excessiva ênfase na habi-

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Iidade para produzir um orgasmo. As pessoas que crescem e se movimentam nesse despersonalizado mundo moderno buscam desesperadamente uma identidade pessoal e algo em que acre­ ditar. Mas não é simples para os seguidores dessas novas liber­ dades serem felizes, realizados, e muitos deles sentem-se irreme­ diavelmente perdidos. G poema que se segue, de autoria de uma jovem estudante, expressa alguns desses sentimentos: I ’m going to Berkeley to find some friends something to believe in for a while at least again To do my own thing dress the way I want feel a part of the Revolution ( whether there is one or not) so many things to believe in so many ways to turn Ah — but I am apart at the seams and so is this scene Split into splinters of triumphant “make-believe’’ So you leave one scene exchange it for another in another country or another city But it always comes down to the same old thing the System is rotten — but so am I And finally — at the end of it all You come round to see That systems arenft where it's at And you say — O . K . — or — oh no — shit And fuck the whole thing and go lie on the beach — But if you care at all and you do because you're still here Then you laugh in meaningless patches Light fires without matches cover your body with ashes and take 'a trip — to there — and back to here — nowhere . And you never face the scandal that there’s nothing you can handle because everything — moving at the speed of light is so huge — so far away And you can't go home again and you cant't really stay here And somewhere in you — you really believe there must be a meaning — somewhere. —

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[Estou indo para Berkeley/para encontrar alguns amigos/algo em que acre­ ditar/por algum tempo, pelo menos/Para fazer o que me der na veneta/ Vestir-me da maneira que quiser/sentir-me parte da Revolução/(quer haja uma ou não)/tantas coisas em que acreditar/tantos caminhos por onde enveredar/Ah — mas estou dilacerada nas costuras/e o mesmo acontece com esta cena/Despedaçada em estilhaços/de triunfante “faz-de-conta”/A s­ sim se abandona uma cena/troca-se por outra/em outro país ou outra cídade/M as sempre vera a dar na mesma coisa antiga/o Sistema está podre — mas eu também/E, finalmente — no fim de tudo/Acaba-se por ver/Que os sistemas não estão onde a gente está/E você diz — O. K. — ou oh, não — merda/E a coisa toda que se dane/E vamos estender-nos na praia — /M as se a gente se preocupa/e isso acontece porque ainda aqui esta­ mos /Então rimo-nos era frouxos sem sentido/Acendemos fogueiras sem fósforos/Cobrimos o corpo de cínzas/E fazemos uma viagem — para lá — e de volta aqui — a parte nenhuma/E nunca se enfrenta o escân­ dalo/de nada haver que possamos controlar/porque tudo — movendo-se à velocidade da luz/é tão gigantesco — tão distante/E não se pode voltar para casa/E não se pode realmente ficar aqui/E algures no nosso íntimo — acreditamos realmente/que deve existir um sentido — algures.]

Considero que os jovens que discutem estas questões com os adultos constituem um terceiro e construtivo grupo. Em contraste com os grupos rigidamente conservadores e os grupos rebeldes que passam aos atos, esses jovens construtivos vêem a necessidade de aperfeiçoamentos em nossa existência pessoal e social, e tentam-formular novas soluções com a ajuda de pes­ soas mais velhas em quem confiam. Querem ajuda para encon­ trar valores e crenças mais profundos e mais válidos; querem assistência para libertar sua criatividade e expressar suas melho­ res potencialidades; são os veículos da Psicologia Humanista para o seu futuro. O difícil problema enfrentado pelos adultos que poderiam desejar servir de líderes, guias ou modelos é que eles não.podem afirmar coisa alguma aos jovens com segurança e certeza do que dizem. Não só os pais, mas toda pessoa, todo. ser pensante, devem reavaliar agora os seus conceitos de existência como humanos e sua orientação ao dirigirem-se a si mesmos e a outros que buscam a sua ajuda e conselho. E a essência do problema central de nosso tempo e cultura resume-se nesta interrogação: Quem pode explicar o quê a quem? Novas Abordagens da Psicologia Humanista

É neste ponto que a Psicologia Humanista oferece algu­ mas novas abordagens para esses problemas do nosso tempo, em particular as crises da juventude.

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A Busca de Valores. Em primeiro lugar, e da maior impor­ tância, a busca de valores é considerada, na Psicologia Huma­ nista, uma necessidade inerente à pessoa humana, Essa busca recebe suas diretrizes do eu cõmo sistema nuclear central, pre­ sente desde o começo da vida do indivíduo. Nessa teoria, existe uma diferença decisiva em relação à Psicanálise, na medida em que esta considerou a busca de valores ura objetivo secundário, uma meta perseguida sob a pressão da sociedade somente quando os impulsos do indivíduo não puderam ser satisfeitos. Os psicó­ logos humanistas concorrem em postular a natureza primária da busca de valores. Por outras palavras, partem do princípio de que o eu mais recôndito, mais central, do indivíduo pode des­ cobrir que a busca de certos valores promove o desenvolvimento de suas próprias potencialidades — isto é, a realização de suas capacidades e necessidades mais profundas. Esses fatores dife­ rem em indivíduos distintos por causa das inclinações e recursos de cada um. Na. descoberta de suas potencialidades, um indiví­ duo poderá necessitar de- ajuda e é aí que o psicoterapeuta huma­ nista entra em cena. A psicoterápia, como recurso moderno de crescimento pes­ soal, tem tido um tremendo progresso e expansão. Hoje em dia, os terapeutas e seus pacientes sabem que as pessoas neces­ sitam de assistência para se dirigirem no sentido de metas sadias e apropriadas na vida. Assim, não estamos trabalhando apenas com a neurose, mas também, ainda mais, com o problema do significado e propósito adequados da vida. Necessitamos de uma nova imagem do homem. i “O que está certo?”, perguntou uma das minhas pacientes de 30 anos (chamemos-lhe Marie) do grupo de terapia a que ela pertencia, “Devemos querer todos ser pessoas casadas? Será esse, forçosamente, o modo certo de viver?”

“solícito” e caracterizado pela troca de idéias e mútuas suges­ tões, assim como a enfrentar diretamente questões de valores e metas pessoais. Tem uma relação de pessoa a pessoa com o seu paciente, revelando-se, portanto, tal como é. Pesquisas recentes sobre os fatores associados ao êxito psicoterapêutico mostraram a crucial importância da personalidade e sinceridade do terapeuta como ser humano (Truax e Carkhuff, 1964). Um dos principais objetivos do terapeuta humanista é aju­ dar o paciente a descobrir-se, descobrir o que quer da vida, descobrir os seus melhores potenciais. O terapeuta não lhe dirá o que fazer ou onde ir. O terapeuta acredita na liberdade de escolha do pacientei/uma vez liberto de suas fixações neuróticas; e também acredita na existência de um potencial criador em cada ser humano. Em resposta a questões sobre os modos apropriados e satisfatórios de viver, ou uma interpretação do nosso papel no universo, os psicólogos atuais podem, por vezes, oferecer conjeturalmente suas interpretações pessoais, Têm, contudo, o cuidado de enfatizar a natureza conjetural de suas idéias e não esperam, em absoluto, que um paciente seja meramente um seguidor. O terapeuta deve também pesar cuidadosamente o momento oportuno em que expressará suas opiniões a respeito da capacidade do paciente para avaliar o que quer e o que é.

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É clarò, Marie sabe que tem uma fixação a respeito de sexo. Mas, enquanto trabalhava em seu problema, ela também ques­ tionou a direção certa a tomar se uma pessoa quiser viver apro­ priadamente. O que é certo? Sabemos? O papel do psicoterapeuta é hoje completamente diferente do papel desempenhado outrora pelo psicanalista. O psicote­ rapeuta moderno não é uma autoridade indiscutível que se senta numa torre de marfim. Não é uma figura sobranceira que con­ sidera os valores subprodutos neuróticos de superegos hipersocializados. Pelo contrário, está disposto a participar num encontro

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Enfoque sobre as Relações. O principal valor humanista geralmente reconhecido em nossos dias é a busca laboriosa de melhores relações humanas. Para alguns, esse valor está combi­ nado com o pensamento metafísico modernizado sobre um pro­ pósito esperançosamente construtivo no universo e o papel da existência humana nesse mesmo universo. Para outros, trata-se mais da elaboração de uma reforma sociopolítica. Existem mui­ tos jovens, assim como pessoas mais velhas, cuja reação à hipo­ crisia e à alienação constitui um desejo de ajudar os indivíduos a alcançar melhor compreensão e sentimento mútuo de comu­ nidade. Este foi o tema comoventemente expresso pelo traba­ lhador Yefrim Poduyev no romance de Alexander Soljenitzin, Pavilhão de Cancerosos (1968). Poduyev, um homem simples, tinha trabalhado e amealhado arduamente a vida inteira. Jamais estivera doente nem por um só día, mas vê-se agora confinado num pavilhão para cancerosos, confuso sobre o significado da vida e tudo o mais. Poduyev também nunca lera um livro; depara, por acaso, com um pequeno volume em que havia um artigo cujo título era a seguinte pergunta: “O que impele as

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pessoas a viver?” O que impele as pessoas a viver?, pergunta o pobre homem a si mesmo e aos outros pacientes do pavilhão. Uns dizem que as rações, outros o salário, ainda outros o seu negócio. Essas eram as idéias que também ele tivera. Mas não. Poduyev leu o livro e Tolstói diz-lhe: “As pessoas vivem pelo amor”.

claro dos modos mais adequados de viver. Quais são, exata­ mente, as principais características do indivíduo sadio, apropria­ do, os modos convincentes de viver da pessoa comum em sua existência cotidiana, com seus dotes e deficiências, seus proble­ mas e conflitos, objetivos e satisfações? Existirá algo a que possamos chamar um todo apropriado do curso vital de uma pessoa? Como poderemos determiná-lo? Em que espécie de modelo poderemos apreender esse tipo de biografia e descrevê-la de modo a enxergar-se realmente o todo, a compreender sua natureza, seus procedimentos, metas e significados?

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A Abordagem Biográfica. Infelizmente, só no final de sua vida é que Poduyev fez essa interrogação vital: O que impele as pessoas a viver? A Psicologia Humanista, especialmente atra­ vés do estudo de todo o curso da vida humana, procura ajudar as pessoas a formularem e responderem a essa questão ao longo de suas vidas, de modo que não deparem subitamente com ela quando o tempo está prestes a esgotar-se. Como afirma o exis­ tencialismo, a natureza do homem consiste em criar a sua pró­ pria natureza e a melhor forma de ver esse processo em ação é através do estudo pormenorizado dos indivíduos ao realizarem escolhas existenciais concretas em vários pontos de suas exis­ tências. Assim, a abordagem biográfica constitui um método fundamentalmente importante na Psicologia Humanista e Exis­ tencial. O que se entende por abordagem biográfica, è por que é significativa nesse contexto? Entendemos por abordagem bio­ gráfica o estudo psicológico de biografias. Essas histórias de vidas podem ser encontradas na forma de biografias publicadas, autobiografias, diários ou memórias; ou podem basear-se em entrevistas psicoterapêuticas ou de psicodiagnóstico. Também podem resultar de estudos de desenvolvimento em longitude, se tais estudos forem preparados no sentido de uma recapitulação geral da pessoa como um todo. Esse é o ponto que nos importa — a compreensão da pes­ soa como um todo. Por quê? A principal razão psicológica é que só se conhecermos mais sobre a pessoa como um todo é que poderemos conhecer mais sobre o modo como os seres huma' nos vivem suas vidas. Isso é alguma novidade?, poderão perguntar. As Ciências Sociais não tentaram sempre isso, exatamente: estudar as vidas humanas — na História, Literatura, Sociologia, Antropologia, Assistência Social e, especialmente, em Psicologia? Sim, é claro que sim. Mas parece que, apesar de todos os seus estudos, ainda não possuímos um quadro suficientemente

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Existem, é claro, milhares de biografias, assim como histó­ ricos de casos em que vidas são descritas e interpretadas. Tam­ bém dispomos de numerosos modelos de acordo com os quais os dados podem ser agrupados e classificados em categorias, de modo a obter-se uma noção correta dos propósitos de uma pessoa. O que queremos dizer com os propósitos de uma pessoa? Referimo-nos ao fato de que, para toda e qualquer pessoa, certas coisas parecem importar mais do que outras. E o que significa importar? Significa haver certas coisas que a pessoa almeja mais do que outras; que, persistentemente ou de forma errática, a pessoa comporta-se de um modo que mostra -'estar pretendendo alguma coisa ou disposta a conseguir alguma coisa. As pessoas têm metas, a curto ou a longo prazo, racionais ou irracionais, construtivas, fúteis ou até destrutivas. Na verdade, deparamos com pessoas para quem nada parece importar. Parecem errar na vida ao sabor do acaso, fazer agora isto, logo aquilo, sem um rumo determinado. É possível que tais pessoas sintam estar prestes a soçobrar, sintam estar na iminência de naufragar, por­ que reconhecem, em seu íntimo, que deveriam fazer algo com um rumo certo, algo com uma meta definida. Deveriam —r em que sentido? Quem lhes vai dizer qual o rumo certo ou a meta? O “dever” é o que algumas pessoas sentem em si mes­ mas, uma sensação de “desperdício” por não possuírem alguma meta. Outras pessoas também sentem que costumavam ter uma meta e que isso foi um desperdício, porque era a meta “errada”. Errada — em que sentido? Reverteremos adiante a esta ques­ tão de “erro” . Indaguemos primeiro, entretanto, como as coisas permane­ cem coesas para aqueles que sabem o que estão fazendo e sabem o que querem. Como ê que tudo se apresenta coeso e o que

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Existirão metas totais e fundamentais? Serão aplicáveis a todos ou apenas a alguns? E haverá uma fórmula que nos ajude a conceptualizar esse todo? Freud forneceu um tipo de conceptualização para as vidas que observava em seu trabalho psiquiátrico. A sua teoria foi que todos os seres humanos querem, primordialmente, satisfazer seus impulsos; e então, se forem contrariados nessa pretensão e se forem capazes de resignar-se às frustrações, aceitarão as nega­ tivas da realidade e as exigências da sociedade, tal como lhes são impostas por seus pais. E farão tudo isso porque, indiretamente, lhes acarretará alguma satisfação. Se as pessoas os aceitarem e amarem por causa de seu conformismo, isso lhes devolverá, indi­ retamente, aquele prazer de amor que esses indivíduos almejam obter em primeiro lugar. Prazer e amor, é claro, significam muitas coisas em todos esses casos, a começar pelo1prazer da amamentação e terminando, por exemplo, com o comprimento de obrigações para agradar e a satisfação por fazê-lo. Essa teoria psicanalítica original, depois de ter sido criti­ cada por muitos dos sucessores e discípulos de Freud, foi modi­ ficada e reformulada numa versão mais científica, a saber: Todo esforço humano possui uma tendência básica — no sentido da recuperação do equilíbrio continuamente perdido no processo de viver. Esta é a teoria da homeostase, hoje largamente aceita, sendo homeostase a palavra grega que significa equilíbrio. O pressuposto básico é que o indivíduo at|ia sempre para recuperar ou manter o seu equilíbrio interno, quer por meio da satisfação de impulsos perseguida pelo que Freud chamou o id de uma pessoa, ou por meio da adaptação à realidade pelo que Freud chamou o ego, ou por meio da aceitação das exigências e impo­ sições da sociedade através do que Freud chamou o superego , aliás, consciência. A principal ilação a aduzir disso é que um ser humano necessita de equilíbrio, mais do que de qualquer outra coisa. E esse equilíbrio, ou homeostase, só é alcançado depois de ter ocorrido uma descarga de todas as tensões. Por­ tanto, a descarga de tensão é a meta final de todos os processos e ações em que um indivíduo se empenha. A descarga de ten­ são é considerada a meta principal pelos teóricos da homeostase, quer seja efetuada consciente ou inconscientemente. Embora considerada ainda válida por muitos, essa teoria foi rejeitada por numerosos psicólogos e psiquiatras que não a

significa isso?

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julgam capaz de fornecer um quadro adequado do que é que preocupa, fundamentalmente, os seres humanos. Em minha opinião, a crítica científica mais convincente foi a do neurofisiologista Kurt Goldstein (1939), o qual analisou em detalhe o fato de só a pessoa doente estar procurando cons­ tantemente obter a descarga de tensão, ao passo que a pessoa sadia suporta de bom grado certas quantidades de tensão no interesse de outras metas completamente distintas. Goldstein chamou a essas outras metas o interesse da pessoa em sua auto-realizaçao ( self-actualization). Esse conceito foi adotado por Maslow (1954). Em estudos de pessoas sadias, ele demonstrou que o principal interesse des­ sas pessoas residia em tornarem-se criadoramente ativas no mun­ do e que a sua auto-realização criadora ( a que Maslow chamaria individuação) era a meta que mais lhes importava. No mesmo período, as décadas de 1940 e 1950, Karen Horney e Erich Fromm apresentavam argumentos psicológicos contra a teoria da homeostase e consideravam o autodesenvolvimento a meta huma­ na básica, uma ligeira variação do conceito de auto-realização. Em meus próprios escritos, expressei a opinião de que a homeostase não é meta nenhuma, apenas uma confortável base de funcionamento, e que a meta real da vida dos seres humanos é aquilo a que chamei realização, a qual eles esperam alcançar pelas várias coisas que realizam em si mesmos e no mundo exte­ rior. A partir de 1933, tentei demonstrar essa tendência para a realização por meio de biografias. Algumas excelentes pesquisas sobre pessoas criativas (por exemplo, Barron, 1963; Eiduson, 1962) mostraram, entremen­ tes, que essas pessoas não só não evitam as dificuldades, mas também buscam problemas complexos que exijam esforço para a sua solução. Por conseguinte, um certo montante de esforço é interessante para elas. Essa tensão criadora difere da tensão resultante da pura frustração, mas, de qualquer modo, não deixa de ser também uma tensão. Também se descobriu (conforme sumariado numa investi­ gação de Eiduson, 1968 ) que muitas crianças pequenas perse­ guem ativamente os estímulos e exploram seu ambiente com uma curiosidade que aumenta a tensão, indiferentes ao que pode­ ria ser para elas uma posição mais confortável. São as descobertas desse gênero que formam as convicções básicas dos psicólogos humanistas — notadamente, que a ten-



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dência básica de um ser humano é para a realização, obtida por meio da auto-realização ou individuação ao fazer certas coisas. Discutiremos adiante esse “fazer”. Horney descreveu a auto-realizaçao como a revelação e concretização dos melhores poten­ ciais de uma pessoa; e acreditava, com otimismo, que esses potenciais seriam os melhores não só para a própria pessoa, mas também para o ambiente em que ela vive. Temos aqui um problema, é claro. Poderemos realmente supor que o que é melhor para a pessoa também é sempre o melhor para o ambiente? E o que significa exatamente “o melhor”? Vêm, depois, as outras perguntas: O que é que sabemos agora sobre a pessoa? O que podemos fazer com o que sabemos agora? Não creio que possamos fazer o bastante com o que sabemos agora. Um exemplo ilustrará esse ponto. Joe, um assistente social de 22 anos de idade, apresenta-se-me para psicoterapia. Diz-me estar'sempre inseguro a respeito de si mesmo, que se vigia sempre a si mesmo e aos outros para apurar se as pessoas gostam dele ou não. Era incapaz de agir espontaneamente, estava sempre em guarda. Joe pensa que herdou esse traço de seus pais, que também estavam sempre preocupados com o que a gente pensava deles. Aceitava o que seus pais diziam e acreditava que eles estavam sempre certos. Nos últimos meses, porém, tornou-se subitamente cônscio de seu próprio comportamento em comparação com o de alguns amigos. E desagradou-lhe a sua falta de espontaneidade, não gostou dos valores em que acreditara até então. Sentia que estava tudo errado; contudo, não sabia como mudá-lo ou como encontrar outros valores em que acreditar. Ora, esse caso é muito típico do nosso tempo. Se anali­ sarmos o que esse moço diz sobre as suas metas anteriores, vere­ mos que tudo o que ele queria antes era que as pessoas gostas­ sem dele, não porque elas, como pessoas, fossem importantes para ele, mas porque a sua aceitação fazia-o sentir-se mais seguro. Alfred Adler enfatizou essa necessidade de segurança e apresentou a idéia dos complexos de inferioridade. Não creio que as necessidades de segurança tenham de ser consideradas, forçosamente, no contexto dos sentimentos de inferioridade. Acredito que estes constituem um sinal de incapacidade neuró­

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tica para enfrentar a vida, ao passo que a necessidade de segu­ rança parece-me ser fruto natural da nossa existência humana como tal. Faz parte de nossa condição humana não apenas sen­ tir, mas, de fato, vivemos toda a nossa vida em circunstâncias inseguras. É verdade, sem dúvida, que a pessoa sadia não está preocupada com o assunto. Com efeito, algumas pessoas sadias percorrem a vida, muitas vezes, como se fossem imortais ou estivessem imunizadas para qualquer desastre ou até doença. Não obstante, cada indivíduo tem uma necessidade básica de segurança, a qual me parece ter mais a ver com a sobrevivência do que com o amor. No caso de Joe, entretanto, deparamos com algo diferente dessa necessidade existencial básica de segurança. Joe faz algo que ele mesmo não aprova. Conduz-se na defensiva, perdeu toda a espontaneidade. Vigia constantemente as pessoas para ver se estas o aprovam. Diz ignorar tudo a seu próprio respeito; não possui valores próprios; limitou-se a adotar os valores de seus pais. Não tem rumo próprio e já não sabe exatamente em que acreditar. Se observarmos essa situação em termos de auto-realização, podemos ver que esse homem não se realizava a si mesmo, de forma alguma. Mas, para compreendermos o que ele está fazen­ do, cumpre-nos examinar Joe em maior detalhe. Joe está obviamente fazendo o oposto da auto-realização. Ao cercear a sua espontaneidade, a fim de perseguir valores em que não pode acreditar, ele vive de acordo com o que chama­ remos uma excessiva adaptação autolimitadora. Para preservar uma ordem interna, faz o que lhe parece certo, de acordo com o que aprendera. Mas, para sua consternação, já não achava certo esse excessivo conformismo, que realizava mediante a re­ pressão de seus próprios impulsos. Como se sabe, a Psiquiatria aprendeu esta última interpretação com a Psicanálise; e os con­ ceitos, estudo e tratamento da repressão constituem uma das mais duradouras contribuições dessa escola. Ao reprimir os seus próprios impulsos e sentimentos desde o começo da infância, Joe conformou-se com as exigências do seu ambiente; mas, ao fazê-lo, nunca foi ele mesmo. Como se comporta, pois, uma pessoa que persegue real­ mente com êxito a sua auto-realização? Dá, simplesmente, lar­ gas aos seus impulsos, obedecendo-lhes sem desfalecimento? Esse passo é o que algumas pessoas parecem recomendar atual­

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mente. Vão para o extremo oposto da repressão e fazem o que querem. Mas a auto-realizaçao consistirá em fazer tudo o que uma pessoa gosta de fazer? Primeiro, temos a questão do que uma pessoa gosta de fazer. Como todos sabem, através de seus desejos e divagações, há inumeráveis coisas diferentes que uma pessoa pode gostar de fazer, desde o desejo comparativamente inofensivo de comer e beber qualquer coisa que se queira até ao desejo de praticar o sexo sempre que e onde quer que isso apeteça, à satisfação do desejo de exercer a violência ou o poder para obter certas gratificações proibidas ou inacessíveis. As carências das pessoas, no tocante à satisfação de neces­ sidades, parecem ser extremamente diferentes em tipo e grau. Gostaria que houvesse algum estudo verdadeiramente esclare­ cedor do modo como as pessoas que vivem suas vidas para lograr satisfação própria descobrem o grau e tipo de desejos que tive­ ram de preencher para sentirem-se felizes. Uma coisa é certa: os extremos de se fazer tudo o que se quer não parecem dar bons resultados. Tanto os Casanovas e Don Juans de outrora como os “casais trocados” do romance de John Updike não se saíram muito bem; e desconheço o que aconteceu, em termos de aná­ lise mais profunda, aos membros da Liga pela Liberdade Sexual. Por outro lado, mesmo em nossa sociedade afluente, há milhões de pessoas para quem a satisfação de necessidades bási­ cas continua a ser um impulso que sobrepuja tudo o mais. Michael Harrington, em The Qther America (1963), calculou que cerca de 50 milhões de pessoas nos Estados Unidos são pobres. Os novos-pobres, como Harrington chama aos que fica­ ram para trás quando o resto da sociedade americana marchava para a abundância, vivem sem aspirações, num sistema inaces­ sível à esperança. Essa outra América, diz ele, “não contém a busca aventurosa de uma nova vida e uma nova terra. É povoa­ da de fracassos, de gente expulsa da terra e confundida pela metrópole, de velhos subitamente a braços com os tormentos da solidão e da pobreza, e de minorias que esbarram contra a mura­ lha do preconceito” . Mas até na pobreza abjeta podemos descortinar o fato de que as necessidades humanas vão além da mera sobrevivência material. No comovente estudo de Oscar Lewis sobre os portorriquenhos, La Viâa (1965), a permanentemente faminta Feli­ cita, com seus cinco filhos, diz ao autor:

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O que eu mais desejaria para os meus filhos é que estudas­ sem e ver se assim poderão ser gente. Não uma coisa miiito ambi­ ciosa, porque não tenho recursos para mandá-los à universidade. Mas espero que, pelo menos, terminem o secundário e tenham uma profissão, para que possam arranjar bons empregos. E gostaria que as minhas filhas fossem virgens e casassem de véu e grinalda. Quero que sejam pessoas decentes, melhor do que eu. É preciso viver sempre com esperança. Mas enquanto eu viver em Porto Rico não sei como poderei ir para a frente.

No meio da maior pobreza, eis uma visualização de metas que suplantam a satisfação das necessidades físicas mais básicas. Embora a satisfação de necessidades psicofísicas seja, por certo, uma tendência básica, ela não acarreta, por si só, a expe­ riência plenamente satisfatória da auto-realização. Pode apenas contribuir para ela, em medida individualmente variável. A área que parece contribuir mais para a experiência de auto-realização é a da atividade criadora. Na maioria das bio­ grafias de pessoas cujas vidas são descritas como admiráveis em algum sentido e, freqüentemente, como realizadas, existe sem­ pre uma atividade criadora que representa o aspecto central des­ sa vida. Criatividade não significa apenas, necessariamente, a produção engenhosa de algum grande artista, cientista ou líder mundial. A criatividade também inclui — como os americanos, em particular, têm enfatizado — a condição imaginativa da vida cotidiana: a culinária inventiva de uma dona-de-casa, a terna compreensão com que os pais criam sua família, o desenvolvi­ mento bem planejado de um negócio, a eficiência comunicativa de um vendedor, o trabalho manual de um artesão ou a nova e bela rosa criada por um jardineiro. Criatividade também pode significar a pintura de uma criança ou o poema de um adoles­ cente. Esses talentos e atividades criadores, é claro, não impedem, necessariamente, que uma pessoa tenha uma vida infeliz ou pro­ fundamente perturbada. Mas, entre todas as experiências que podem redundar em êxtase ou que levam ao que Maslow chamou “experiências culminantes”, a criatividade é a que vai mais longe e se avizinha mais do êxtase de amor. Os exemplos de Maslow de pessoas auto-realizadoras referem-se todos a indivíduos muito criativos. Na minha própria experiência de psicoterapeuta, verifiquei que aquelas pessoas que se esforçavam por chegar a alguma espécia de atividade criadora sentiam-se melhor a respeito de si me$-

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mas e da vida, mesmo que alguns de seus problemas ou conflitos continuassem por resolver. A razão consiste em que a atividade criadora é experimentada pela pessoa como uma auto-expressao em que os sentimentos se libertam de forma tal que o resul­ tado é um produto, o qual significa algo de valioso tanto para as outras pessoas como para ela mesma e contribui, portanto, para uma criatividade compartilhada em que as culturas huma­ nas se baseiam. O que faz as pessoas sentirem que estão produ­ zindo algo de mérito ou valor é que elas se empenham esforça­ damente nesse cometimento e que isso resulta de seu trabalho mental e (ou) manual como algo útil ou belo, algo que possui um certo valor para a comunidade.

a encarregar-se de seus filhos e de sua casa, para que ela pudesse dedicar-se a outros interesses, o que ainda deixava por resolver a questão sobre o que poderia ser ganho com essa atividade — por exemplo, a obtenção de um diploma universitário e uma carreira no ensino, enquanto outra pessoa lhe criava os filhos?

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Neste contexto, é interessante a história da mudança radi­ cal de uma paciente que passou da completa preocupação com a infelicidade, autocomiseràção e rancor para um interesse cria­ tivo pela sua família. Zoe, uma mulher de seus 33 anos, casada, com dois filhos pequenos, recorreu à psicoterapia por cerca de um ano; veio abar­ rotada de queixas sobre sua vida infeliz. Achava que seus pais nunca a tinham amado nem se preocupado muito com ela, o que, provavelmente, era verdade em grande parte; que o homem com quem casara, embora a amasse, era preguiçoso, ineficiente e ganhava um salário insuficiente; que ela tinha de ajudar fa­ zendo trabalho de secretária em regime de meio horário, além de cuidar da casa e das crianças; que estava impossibilitada de fazer qualquer das coisas que realmente lhe interessavam, por falta de tempo e de dinheiro. A paciente desabafou todos os seus ressentimentos e hosti­ lidades durante boa parte do ano, vacilando entre a completa rejeição de tudo e todos em sua vida e a formulação de planos para mudar as coisas, de modo que sua mãe acabasse por amá- ) -la e seu marido se tornasse mais ambicioso e dinâmico. Após atingir uma espécie de exaustão e ao dar-se conta, finalmente, de que todos esses planos não funcionariam, por uma razão ou outra, foi-lhe perguntado o que pensava, exatamente, da vida humana. Achava que sua vida, seu futuro, qualquer espécie de satisfação e realização, continuavam a depender do fato de sua mãe acabar por aceitá-la e amá-la, uma situação que ela parecia ter reconhecido como irrealizável? Dependiam esses fatores de uma crescente ambição e agressividade por parte de seu marido, o que parecia improvável? Além disso? havia alguém disposto

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Nesse ponto, o psicoterapeuta expressou também a sua opi­ nião a respeito da situação. Disse que, embora fosse lamen­ tável ter tido Zoe a espécie de pais que tivera, ela possuía agora um marido que a amava e recebera aceitação sistemática e com­ preensão afetuosa por parte do psicoterapeuta, o que demons­ trava obviamente o reconhecimento de seu valor aos olhos des­ sas pessoas. Zoe negou esses pontos positivos, depreciando constante­ mente o modo de ser de seu marido e considerando axiomática a aceitação do psicoterapeuta, pois estava apenas desempenhando o seu papel. Também ignorou a importância de ter filhos que pareciam dispostos a amar e a aceitar uma mãe que, no fim de contas, não era muito amorosa. O terapeuta acreditava ter chegado o momento de Zoe se aperceber da sua completa relutância em aceitar quaisquer condi­ ções de vida desagradáveis ou difíceis ou em mostrar gratidão por qualquer coisa. Embora exigisse para si apenas boas coisas, ela dava realmente muito pouco e estava prestes a converter-se numa mulher tão áspera quanto a mãe. Essa reviravolta na atitude do terapeuta, assim como a avaliação por ele apresentada, chocaram imensamente Zòe. Ela chorou, encolerizou-se e saiu, após declarar que se sentia aban­ donada e rejeitada. Zoe voltou na semana seguinte e parecia outra pessoa. Disse ter-se apercebido de que não fizera outra coisa senão queixar-se sobre o que lhe tinha acontecido e continuava a acon­ tecer, e que isso não era, realmente, uma forma de viver, sobre­ tudo porque, as circunstâncias dadas não iriam mudar. Assim, talvez fosse preferível tentar aceitá-las e ver o que ela própria poderia fazer de sua vida. Queria pensar sobre o que poderia ser a sua vida. É claro, a vez seguinte Zoe apresentou-se novamente cons­ ternada a respeito de alguma coisa que acontecera entre ela e algumas de suas amigas, de cuja aceitação e compreensão tarribém dependia muito, obviamente.

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Na vez seguinte, porém, as coisas tinham começado a desa­ nuviar. Ao meditar sobre sua vida, Zoe chegara à conclusão de que queria que a vida fosse algo suscetível de ser conduzido por ela, algo que ela pudesse formar. E disse:

expande o seu domínio vital de modo a incluir outros em sua criação. Este ponto pode ser ilustrado pela biografia de um de meus pacientes que, após um desenvolvimento inicial extremamente infeliz, deprimido e conflitado, encontrou seu valor pessoal no trabalho criativo. Esse trabalho não resolveu todos os seus pro­ blemas e conflitos, mas, pelo menos, proporcionou-lhe a satis­ fação de fazer algo meritório e de sentir-se prestável ao fazê-lo. Podemos chamar Ellery a esse homem. Está hoje com 51 anos, sendo o fundador e proprietário de uma fábrica de tama­ nho médio de artigos eletrônicos. Eis um resumo de seus ante­ cedentes. Nasceu numa pequena cidade do Centro-Oeste. Sua mãe tinha sido criada por uma ríspida madrasta. Aos 20 anos casara com um rapaz de 18, com quem saiu da cidade. Seu pai, que era jovial e bonachão, ganhava a vida em transporte em caminhão. Ellery era filho único. Presenciando as brigas entre os pais, tentava amiúde meter-se entre eles e proteger a mãe, que era rígida e austera. Ela ressentia-se de Ellery, que lhe causara grande sofrimento durante o parto. O pai, entediado com a seriedade da esposa e sua aversão pelo sexo, abandonou a família quando o rapaz tinha cinco anos. A mãe ficou mer­ gulhada em azedume e grande pobreza. Na dinâmica emocional de Ellery, durante esses anos e os seguintes, podemos estabelecer estas tendências principais:

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O meu casamento, os meus filhos, vi subitamente que ê como barro. Ou o deixamos quieto onde está ou fazemos alguma coisa com ele. D e manhã, acordo, isto é para o meu filho e quero fazê-lo. Isso é um dia de vida e posso exercer algum controle, fazer alguma coisa com ele, em vez de acordar zangada e frustrada. Vejo os meus filhos como meus, que posso magoar ou fazer algo de bom por eles .. • dentro de cinco anos verei o que fiz pelos meus filhos. Nada tenho feito por eles . . . como se nunca tivesse percebido isso. Posso fazer alguma coisa com a minha vida.

Embora fazer e produzir algo possa ser satisfatório, não quero dizer que toda a produção planejada no mundo seja comprovadamente valiosa. Todos sabemos quanta produção basica­ mente inútil se processa diariamente no mundo inteiro, sem bene­ fício algum para a humanidade ou até capaz de destruí-la. Mas esse problema, embora seja uma importante questão social para o desenvolvimento da humanidade, não cabe no pre­ sente contexto. Felizmente, registra-se uma preocupação cada vez maior no sentido da coordenação de esforços individuais e necessidades genuínas da sociedade, como na pesquisa ecológica. O ponto que queremos sublinhar aqui é que o trabalho produ­ tivo pode fornecer uma experiência subjetiva de valor pessoal a indivíduos, anteriormente retraídos, passivamente hostis, soli­ tários ou deprimidos. Também pode ajudar as pessoas colhidas em toda espécie de conflitos por resolver, se elas forem capazes de desvencilhar-se o bastante para fazer algo com uma certa convicção em seu valor social, para escrever um poema, compor uma canção, cozinhar uma refeição decente, limpar a casa para sua própria satisfação ou até, meramente, dar-se ao trabalho de cuidar de uma aparência física atraente. O desejo de pertencer de algum modo à família do homem parece fortalecer a crença de uma pessoa no esforço constru­ tivo. Muitas pessoas, como Zoe, dão o seu primeiro passo bá­ sico no caminho da auto-realização quando, livres de sua solidão e desespero, começam a fazer algo construtivo para expressar seus sentimentos íntimos de um modo que pode ser comparti­ lhado com outras pessoas. Dou a essa tendência o nome de expansão criadora porque, nessa espécie de atividade, a pessoa

1.

2.

3.

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Sentimentos conflitantes de medo, devoção, ressentimento e desejo de proteção em relação aos pais. Vagos sentimentos de culpa por alguma co-responsabilidade no sofrimento da mãe. Não se sente chegado ao pai nem à mãe. Humilhação e sentimentos de inutilidade devidos à pobreza, ao tratamento sofrível por parte de outras pessoas. Incapacitação, isolamento devido a freqüentes doenças e constantes mudanças. Atitude conformista, identificação com a austeridade materna, sentimentos^ esmagadores de obrigação em relação a ela e de dívida, instilados pela mãe.

Em sua adolescência, Ellery sentiu-se invadido de uma profunda depressão, que não conseguiu rechaçar. Para isso concorreu, preponderantemente, um sentimento de inutilidade que nunca o abandonou, apesar de seus subseqüentes êxitos escolares; um sentimento de co-responsabilidade e culpa a res­ peito. da deserção do pai, experimentado por tantas crianças; mágoa por não ter pai; humilhação e pobreza; 0 confrangimento

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causado pelo fato da mãe repisar a todo instante quantas obri­ gações ele lhe devia; incapacidade para compreender como integrar-se socialmente; fraca iniciação no relacionamento sexual. Ellery ingressou no curso de Engenharia com uma bolsa de estudos; seu espírito brilhante tornou-se cada vez mais evidente à medida que avançava no colégio e depois na faculdade. Mas, por volta dos 28 anos, depois de ter tido vários empregos, ocorreu uma reviravolta. Ellery apercebeu-se de que a Engenharia era ape­ nas uma parte de seus interesses, que ganhar dinheiro, procurar segurança para sua mãe e ele próprio não lhe bastavam. Dinhei­ ro e segurança não o ajudariam a sentir-se meritório. Sentiu serem necessárias coisas diferentes para fazê-lo acreditar em seus méritos. Primeiro, queria criar algo, produzir alguma coisa que expressasse melhor o seu eu. Ao mesmo tempo, tornou-se gradualmente cônscio de outro aspecto de sua vida onde sentia ser carente de realização plena. Até esse momento, a vida de Ellery gravitara em torno do uso de habilitações que aprendera a fim de ganhar dinheiro e gran­ jear segurança para si e sua mãe, cumprindo suas obrigações para com ela. As outras pessoas não existiam como partes essenciais de sua vida e propósitos. O momento decisivo, por volta dos 28 anos, relacionou-se com a emancipação parcial da estreiteza de seus rumos anterio­ res e o despertar para perspectivas. muito mais amplas. O que ele sentia vagamente, segundo me descreveu anos depois, era a vontade de um maior grau de liberdade pessoal do que a permi­ tida por um emprego assalariado. Começou a sentir que podia ser criativo, que era ambicioso e que desejava envolver-se pessoal­ mente com gente, de um modo mais direto. Em suas próprias palavras: A complexidade fascina-me e intriga-me; assim, ocotreu-me a idéia de um negócio como uma complexa comunidade de inte­ resses, envolvendo coisas, pessoas, um dos mais totais envolvimen­ tos de coisas físicas e seres humanos, uma forma sumamente intri­ gante de processamento mecânico de produtos — coisas úteis e bené■ ficas que satisfaçam as necessidades das pessoas — e as relações com os outros que ajudam a produzir isso e a satisfazer as neces­ sidades das pessoas — enfim, a fascinante complexidade de aborda­ gem do problema da monotonia e do tédio, dos esforços repetitivos. Posso lidar com tudo isso de um modo criativo — estou per­ feitamente cônscio de que posso. Tentei equilibrar o relaciona­ mento de tudo isso.

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É claro, eu sabia que, quando fundasse a minha empresa, seria completamente inadequado no trato com as pessoas; o que me impeliu a seguir avante foi, sobretudo, a complexidade da ini­ ciativa.

O interesse de Ellery pela complexidade como saída cria­ dora foi a base da sua decisão de iniciar um negócio por conta própria. Nos termos da minha teoria de fases, em minha psicologia da vida humana, Ellery vivera dos 12 aos 28 anos, aproximada­ mente, com uma meta preliminar da vida, determinada pelos motivos básicos de medo e obrigações, interesses especiais e a busca de segurança. Agora, com o início de uma autodeterminação definitiva, no sentido de uma meta vital muito mais abrangente e completa, Ellery abria espaço para o desenvolvimento expansivo de sua criatividade e, pela primeira vez, imaginou trabalhar numa comu­ nidade de pessoas. Enquanto batalhava para descobrir um meio de realizar a sua nova meta, Ellery encontrou Larry, um dos dois amigos que fizera na universidade. Larry revelou uma ambição semelhante de iniciar negócios por conta própria; por conseguinte, os dois homens abriram uma pequena oficina de eletrônica que, nos 20 anos seguintes, se converteu numa firma relativamente gran­ de. À parte a sua sociedade em questões de produção e desen­ volvimento do negócio, os dois tinham pouco em comum, pois Larry queria, principalmente, enriquecer e tornar-se poderoso, ao passo que Ellery, como vimos, alimentava intenções muito mais complexas. Durante os primeiros dez anos de luta, Ellery sentia-se tolhido porque ainda temia um fracasso na busca de segurança. Havia ainda a contínua pressão da mãe; e não se atenuara a sua incapacidade de relacionamento com pessoas, exceto na área dos negócios. Por outras palavras, ainda não criara a sua pró­ pria felicidade. Aos 35 anos, casou com a moça que era sua secretária. Phyllis era 10 anos mais jovem do que ele, razoavelmente atraen­ te, ambiciosa e, provavelmente, foi ela quem tomou a inicia­ tiva de seu relacionamento. Era de índole agradável, capaz de divertir-se e, segundo tudo levava a crer, seria capaz de levar alegria à vida de Ellery.

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Pedi-lhe um exemplo e Ellery contou o seguinte: Esse casamento não foi realmente um êxito. Phyllis era um tanto superficial, carente de interesses e de tato social. Além disso, Ellery, nessa época, ainda era incapaz de desenvolver rela­ ções humanas mais profundas. Para nenhum dos dois, o casa­ mento se baseara num verdadeiro amor. Phyllis tinha fortes impulsos sexuais e recriminava Ellery pela sua falta de ardor. Nesse período, ele estava por demais reprimido para permitir-se uma livre fruição do sexo. Ellery acha que, dos 28 aos 37 anos, ele e seu sócio tinham conseguido desenvolver um negócio médio com razoável grau de segurança e êxito; mas estava completamente insatisfeito com o seu progresso, como pessoa, e com a sua habilidade para lidar com a gente, fora e dentro da fábrica, daquele modo cooperativo que tanto almejava. — Lido com as pessoas a distância — disse ele, quando recorreu à psicoterapia, aos 37 anos de idade. Sentiu a necessidade de ajuda. Era incapaz de libertar-se das forças opressoras e depressivas que haviam dominado os começos do seu desenvolvimento e o incapacitavam para viver uma vida satisfatória e relacionar-se com as pessoas do modo que almejava. No decurso de sua terapia, Ellery pôde desenvolver rela­ ções humanas com os seus empregados, em paralelo com o seu próprio desenvolvimento como pessoa. O seu estabelecimento industrial e comercial consistia num “grupo consolidado” de 150 empregados numa fábrica que se estendia por cerca de 11.000 metros quadrados e abrangia cinco edifícios, incluindo os escritórios. Ao projetar e equipar os edifícios, a principal consi­ deração de Ellery tinha sido pelas pessoas que iriam trabalhar neles. Todo mundo era importante e participava nas reuniões mensais de cada departamento. Qualquer empregado podia apre­ sentar suas reclamações ou queixas a Ellery, mas aquele que as fazia tinha também de apresentar sugestões para aperfeiçoa­ mentos. Todos podiam falar nas reuniões. Diz Ellery: A minha própria experiência como empregado contribuiu para o modo como organizei as coisas . . . A terapia deu-me maior cer­ teza quanto ao valor das coisas que eu poderia incluir, como boas e cordiais relações pessoais, sem cair na condescendência. Nessas reuniões, relacionamo-nos çntrç nós como serçs hymanos,

Um dos nossos motoristas de caminhão é um tipo de soltei­ rona mexeriqueira. Apanha 25% dos fatos e fornece o resto, mas é um bom motorista, apesar de tudo. No começo da minha firma, eu tê-lo-ia posto no olho da rua. Hoje, deixo que todos compreen­ dam o que fazemos, de modo que nada fique por dizer e ele não tem como arranjar matéria para mexericos. Outro homem, o fiel de armazém, é extremamente eficiente quando discorre sobre assuntos funcionais, mas, no tocante às pes­ soas, exagera e deixa-se envolver emocionalmente. Falamos livre­ mente sobre isso numa das reuniões.

Existe um plano de participação dos empregados nos lucros e toda espécie de instalações e facilidades para eles. Contudo, mais importantes são as relações humanas que esse homem criou em conjunto com um sistema de produção altamente compen­ sador. Ellery resumiu a situação nestes termos: “Tenho sido muitas vezes grato à psicoterapia durante a minha vida; agra­ deço a Deus por isso. O meu prazer costumava ser fruto de coisas e abstrações; elas estão hoje muito abaixo, em comparação com as pessoas.” Ellery instalou uma fábrica baseada em grupos de encon­ tro — isto é, em grupos de relacionamento verdadeiramente humano. Ele próprio, entretanto, precisou de extensa e pro­ funda psicoterapia para funcionar com as pessoas e realizar essas coisas em atenção às pessoas. Durante o período de desenvolvimento de seu trabalho cria­ dor, Ellery encontrara e estabelecera também uma profunda relação amorosa com uma divorciada com quem esperava casar. Contudo, ele era ainda uma pessoa algo inibida no contexto mais amplo das relações e reuniões puramente sociais; e ainda não se deixava envolver em bastantes atividades puramente agra­ dáveis, como esportes, excursões ou viagens. Estava fortemente dominado por seu impulso criador para poder ampliar-se sufi­ cientemente em outras direções de convívio humano. Sabia ser demasiado unilateral e sentia que isso estava errado. Entretanto, ainda não estava apto a permitir-se o gozo de prázeres, mesmo em termos de suficiente recreação e atividades frívolas. Plantar rosas em seu jardim era o mais longe que iria nessa direção. Disse que ele sentia ser isso errado. Ora, o que queria ele dizer exatamente com isso? Nada tinha a ver, é claro, com faltas morais, na acepção tradicional de moralidade. Isso é um novo

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tipo de erro que muitas pessoas experimentam em si mesmas quando começam a conscientizar-se como pessoas. Esse sentimento de “errado” promana do quadro de refe­ rência de um novo tipo de moralidade, a saber, o sentimento de apropriação decorrente de se ser uma pessoa total. Apropriação aos olhos de quem, de acordo com o julga­ mento de quem? Por estranho que pareça, aos olhos e segundo o julgamento da própria pessoa. Essa apropriação é um novo conceito de Ser da pessoa, diferente dos antigos conceitos de “excelência” e de “ ajustamento” . A excelência que se relaciona com ideais inalcançáveis, como as “estrelas inatingíveis ” de Man of La Mancha, sempre foi uma busca ameaçada pela hipocrisia, de um lado, e o quixotismo, do outro. Não fomos feitos, preci­ samente, para sermos virtuosos nem santos, o que não significa que não possamos ter ideais situados algures no horizonte dis­ tante. Enquanto que a “excelência” sempre pareceu suspeita, o “ajustamento” tornou-se igualmente inválido à luz das manca­ das da sociedade, desde o terrorismo — como o de Hitler — até outras injustiças raciais e sociais. O “ajustamento” é dese­ jável dentro do quadro de referência de certas condições e cir­ cunstâncias. Não é uma meta da vida humana. Mas a apropriação da existência como ser humano, como pessoa total, que parece ser sentida por muitas pessoas em nossa época, é algo que elas querem .realizar. Querem viver plena­ mente, querem ser totais e querem-no ser de um modo que expe­ rimentem como “certo”. E em que consiste o “certo” ? É o certo que o anterior­ mente citado Joe estava procurando, quando sentiu que não podia orientar sua vida apenas pelo que seus pais lhe diziam, mas tinha de encontrar-se a si mesmo como pessoa e descobrir algo em que acreditar. O sentimento de ser agora capaz de viver “certo” foi expe­ rimentado por Arlene, uma paciente minha de 31 anos, homos­ sexual e de tendências alcoólicas, quando concluiu a psicoterapia após três anos de tratamento. Em sua última sessão de terapia de grupo, ela resumiu o que sentia a seu próprio res­ peito: Sou muito mais independente, tenho a liberdade interior que quero, grande auto-estima e estou cônscia de minha capacidade.

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Embora pensasse sempre que não era sequer de inteligência média, agora penso que a tenho e que posso obter um diploma universi­ tário. Não sou muito criativa nem dotada para as artes, mas tenho recursos bastantes para cuidar de minha casa e jardim. Sou uma pessoa amorável, sentimental, compassiva, e também honesta. Sou agora eu mesma. Gosto de mim e da vida. N o aspecto negativo: Ainda tenho uma tendência para ser algo passiva. Pela primeira vez na vida comecei realmente a pen­ sar: Quero pensar nas coisas a fundo. Beber também é uma coisa negativa. Tenho sentimentos ambivalentes: não vale a pena arris­ car . . . não preciso que isso seja aceito . . . mas, por vezes, dá-me que pensar. Minhas metas futuras: o meu relacionamento com Jenny é muito importante e espero ter um futuro. É excitante, pensar no que poderá acontecer. Sinto-me nascer de novo.

Ora, o que acontece a essa pessoa na terapia? Primeiro, como ela própria disse, adquiriu uma liberdade interior de que necessitava desesperadamente. Também adquiriu o sentimento de auto-estima que nunca possuíra antes. Juntou-se a isso a consciência de si mesma, a honestidade e a certeza de ser uma pessoa amorável e sentimental. Não era uma pessoa muito cria­ tiva, mas o bastante para sentir prazer ativo nos cuidados de sua casa e jardim, assim como em seu trabalho como recepcio­ nista. Também adquiriu uma certa perspectiva quanto ao futuro em que nunca pensara antes e sabia o que era importante para ela. Isso não fez dela uma pessoa perfeita. Ainda tinha suas fraquezas e sentia ser demasiado tarde para abandonar seu padrão homossexual, que impedia de desenvolver a vida em sua totalidade. Mas, pondo isso de parte, Arlene adquirira valiosas características humanas que considero representativas da nova imagem do homem. No padrão que preenche essa imagem, é importante que as tendências para a satisfação de necessidades, para a adaptação autolimitadora e a expansão criativa sejam todas integradas por um eu mantenedor da ordem. Essa tendência para a manutenção da ordem, que representa o eu nuclear, diz à pessoa se ela é livre ou não, honesta ou não, e se, como pessoa, é coesa e bem integrada. Também a informa quando está desorganizada ou presa de conflitos íntimos. Ao observarmos as biografias de pessoas, descrevemo-las em função de quatro tendências básicas, dirigidas no sentido da plena realização da vida. As quatro tendências são: a satisfação de

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necessidades, a adaptação autolimitadora, a expansão criadora e a manutenção da ordem interna. Segundo parece, as pessoas estão plenamente satisfeitas consigo mesmas quando sentem que essas tendências funcionam em perfeito equilíbrio e em integração, em vez de atuarem em conflito ou confusa desordem. Nesse processo de ordenamento interno, levados em conta todos os fatores que o compõem, a pessoa sabe se vive a vida para sua própria satisfação ou não. E, ao atingirem a velhice, muitas pessoas declaram amiúde se as suas vidas foram essencial­ mente realizadas ou se foram um fracasso. Essas afirmações, por vezes, não são completamente corroboradas pelos fatos, tal como o clínico que as analisa os vê. A maioria das pessoas mostra-se ansiosa, quando o fim se avizinha, por sentir que não víveu inteiramente em vão e sem deixar no mundo algo de valor, alguma recordação carinhosa de sua passagem pela Terra. Mas, dentro do nosso quadro de referência, o ponto que queremos salientar é que a maioria dos seres humanos, ao acercar-se do final de suas vidas, sente a necessidade de avaliar sua existência total, em termos referentes a realização ou fracasso, de acordo com algumas metas que eles consideram significativas.

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A ll po r t, G .

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Dr. Floyd Matson foi presidente da Associação de Psico­ logia Humanista no biênio 1969-70 e parte deste capítulo baseia-se na conferência por ele proferida na convenção de Z969 da­ quela organização. Seus antecedentes incluem um período como repórter e redator,de jornal, membro da U. S. Air Corps, ana­ lista de imprensa e propaganda a serviço das forças americanas de ocupação no Japão e Administrador-Residente do Programa Universitário no Extremo Oriente da Universidade da Califór­ nia. Recebeu seus graus de bacharel, mestre e doutor em Filo­ sofia n a ' Universidade da Califórnia, Berkeley, onde lecionou por muitos anos no Departamento de Elocução. É atualmente professor de Estudos Americanos na Universidade do Havaí. Além de seu trabalho na Associação de Psicologia Huma­ nista, o Dr. Matson é consultor do Instituto Esalen, do Instituto de Pesquisa Stanford, do Serviço de Testes Educacionais e da Federação Nacional do Cego. Um de seus livros intitula-se: Hope Deferred: Public Welfare and the Blind (Berkeley: Uni­ versity of California Press). Em 1955, recebeu o Woodrow Wilson Award da Associação Americana de Ciências Políticas por outro livro, Prejudice, War and the Constitution (Berkeley: University of California Press). Um de seus livros mais conhe­ cidos ê The Broken Image, publicado em 1964 (Nova York: Braziller). Organizou depois um volume intitulado Voices of Crisis (Nova York: Odyssey) e, em colaboração com Ashley Montagu, outro volume intitulado The Human Dialogue: Pers­ pectives on Communication (Nova York: Free Press). O seu livro mais recente, Being, Becoming and Behavior (Nova York: Braziller, 1967), é especialmente importante para o humanismo existencial.

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Teoria Humanista: A Terceira Revolução em Psicologia Floyd W. Matson

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certo ocorrerá ao leitor atento, algures no decorrer deste

livro, que o tão freqüentemente usado termo “Psicologia Huma­ nista” lhe pareça ser aquilo a que os semânticos chamam uma tautologia redundante. Afinal de contas, a Psicologia é a ciência da mente, não é? E a mente não é a propriedade por excelência dos seres humanos? E a Psicologia, portanto, não é toda ela humanista? As respostas a essas interrogações resumem-se a uma só palavra: não. A Psicologia é o estudo de mais que a mente e de menos que a mente. É-a ciência do comportamento, muito do qual não implica a existência da mente: é “irracional” . Tam­ pouco o comportamento estudado pelos psicólogos é unicamente o de seres humanos; boa parte dele, talvez a maior parte, é o de animais. E quando o objeto de estudo é o comportamento humano, recai, com freqüência, sobre o fisiológico, mais do que sobre o psíquico. Não seria uma excessiva violação da verdade observar que grande parte do que ocorre em Psicologia nada tem de “psicológico” . E isso nos leva à razão que gerou a Ter­ ceira Revolução — o renascimento do humanismo em Psicologia. A Psicologia Humanista tenta explicá-la não como é, mas como devia ser. Procura levar a Psicologia de volta à sua fonte, a psique, onde tudo começou e onde tudo, finalmente, culmina. Mas há mais do que isso. A Psicologia Humanista não é apenas o estudo do “ser humano” ; é um compromisso com o devir humano. Foi um filósofo humanista do nosso tem po,. Kurt Riezler (1950), quem disse que a “ciênda começa com o respeito pelo

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seu objeto de estudo”. Lamentavelmente, isso não é verdadeiro a respeito de todos os cientistas, quer nas ciências mais rígidas da natureza como nas ciências mais flexíveis do homem e da mente. Em meu entender, é quase uma característica defini­ dora da Psicologia Behaviorista que ela começa com o desrespeito pelo objeto de estudo e, por conseguinte, leva diretamente ao que Norbert Wiener (1950), ele próprio um cientista inflexível, chamou o “uso desumano de seres humanos”. De qualquer modo, não conheço maior desrespeito pelo sujeito humano que tratá-lo como objeto — a menos que seja para degradar ainda mais esse objeto, fragmentando-o em impulsos, traços, reflexos e outros dispositivos mecânicos. Mas esse é o procedimento do behaviorismo, se não de toda a Psicologia experimental; é um procedimento abertamente admitido, na verdade, triunfante­ mente proclamado, ém nome da Ciência e Verdade, da Objeti­ vidade e Rigor, e de tudo o mais que é sacrossanto nessas áreas. E leva em linha reta da torre de marfim ao admirável mundo de Walden Two. Estou certo de que todos se lembram desse curioso romance utópico, Walden Two, escrito há mais de 20 anos pelo eminente behaviorista de nossa geração, B. F. Skinner (1948). Seu livro apresentou um cenário tão desolado de engrenagem do compor­ tamento e manipulação da mente, uma tamanha abdicação “con­ dicionada” de autonomia e liberdade por parte de seus dóceis personagens, que muitos leitores supuseram erroneamente, nessa época, tratar-se de uma inteligente e engenhosa metáfora, uma profecia satírica da forma de pesadelo que as coisás adotariam se a sociedade livre relaxasse alguma vez sua defesa vigilante dos valores de liberdade e responsabilidade, sobretudo a liber­ dade e responsabilidade de escolha. Pois isso foi o que o roman­ ce de Skinner abertamente desafiou e amesquinhou; a comuni­ dade paradisíaca que o livro projeta é uma espécie de palácio de cristal (ou de útero com uma janela), dentro do qual a paz e segurança perfeitas habitam para sempre — tranqüilidade sem trauma, prazer sem dor, realização sem luta — e tudo isso ao preço módico e trivial da liberdade de escolha, do direito —■ por assim dizer — de cometer enganos. A chave do reino de Walden Two era o Condicionamento Operante: graças a essa técnica mágica, aplicada a todos os residentes desde o nasci­ mento, a “ síndrome de Hamlet” (a angústia de escolha) era eficientemente eliminada. Tal como aquela maravilhosa Senhora

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Prothro, no conto de Natal de Dylan Thomas, que “dizia sem­ pre a coisa certa”, também as criaturas do romance de Skinner estavam condicionadas para efetuar as escolhas certas automati­ camente. Era a certeza instantânea, pelo preço de toda a voli­ ção; à semelhança dos cães de Pavlov, as pessoas de Skinner só tinham reações e respostas condicionadas ao estímulo da voz do seu dono. Reconheçamos que tal paraíso homeostático, como a socie­ dade sem classes e a cidade celestial, tem grande efeito sedutor para muitos, especialmente numa época de angústia e de difi­ culdades. Seduz, sobretudo, as pessoas com baixa tolerância da ambigüidade e alto apreço pela ordem. Creio ter sido Thomas Huxley, o avô de Aldous, quem se confessou tão temeroso do acaso e da escolha, com todos os riscos que isso comporta, que se lhe fosse oferecido um mundo de absoluta segurança e cer­ teza, ao preço de abdicar de sua liberdade pessoal, fecharia ime­ diatamente negócio. Ao invés de seu neto, cujo romance futu­ rista defende justamente a tese oposta, o velho Huxley teria certamente gostado da vida estagnada no Pântano Walden de Skinner. Permitam-me recordar agora uma diferente disposição, tanto existencial como humanista. Trata-se do homem do subterrâneo, de Dostoievsky, esforçando-se por ser ouvido pelas Instituições acima de sua cabeça. Diz ele: No fim de contas, não insisto realmente em sofrer ou em prosperar. Insisto no meu capricho e isso está:iíie sendo garan­ tido, sempre que necessário. O sofrimento seria deslocado em vaudevilles, por exemplo; sei disso. No palácio de cristal é até impensável; o sofrimento significa dúvida, significa negação e que vantagem haveria num palácio de cristal se pudesse existir alguma dúvida a seu respeito?. . . Vocês acreditam num edifício de cris­ tal que nunca pode ser destruído; isto é, um edifício onde nin< guém poderia botar a língua de fora nem zombar de outro à socapa. E talvez eu tenha medo desse edifício apenas porque é de cristal, nunca poderá ser destruído e ninguém é capaz de botar a língua de fora, mesmo às escondidas (Dostoievsky, 1945, pág. 152).

Ora, é inegável que existe aí um existencialismo que é um humanismo, como diria Sartre. f Em minha opinião, existiram três revoluções conceptuais /distintas na Psicologia, no decurso do século atual. A primeira ideias, a do Behaviorismo, eclodiu com a força de uma revelação /-•por volta de 1913 e abalou os alicerces da Psicologia acadêmica

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por toda uma geração. O behaviorismo surgiu em reação à excessiva preocupação da Psicologia do século XIX com a cons­ ciência e com a introspecção como método de chegar aos dados da atividade mental consciente. Os behavioristas reagiram vio­ lentamente. Jogaram fora não só a consciência, mas também todos os recursos da mente. Para eles, a mente era o fantasma na máquina e nenhum behaviorista acreditava em fantasmas. O fundador do movimento, John B. Watson, explicou-se desta maneira numa proclamação que representou uma espécie de Manifesto Behaviorista: “O behaviorista começa por varrer todas as concepções medievais. Retira do seu vocabulário científico todos os termos subjetivos, como sensação, percepção, imagem, desejo, intenção e até pensamento e emoção, tal como foram j subjetivamente definidos” (Watson, 1958, págs. 5-6). O comportamento manifesto, aquele que podia ser visto e medido, era tudo o que contava. E tudo o que se precisava para explicá-lo era a simples e clássica fórmula de estímulo-resposta, à qual se acrescentava agora um refinamento: o reflexo condicionado. Foi esse conceito de condicionamento, recebido dos laboratórios russos de Pavlov e Bechterev, que proporcionou o verdadeiro impulso revolucionário ao movimento behaviorista de Watson. Condicionamento era poder: era controle. Não se tratava meramente de Psicologia objetiva, apesar de todas as suas pretensões científicas; era uma Psicologia aplicada . . . e aquilo a que se aplicava ou, melhor, contra quem se aplicava era o homem. Disse Watson: “O interesse do behaviorista é mais do que o interesse de um espectador; ele quer controlar as reações do homem, tal como os cientistas físicos querem contro­ lar e manipular outros fenômenos naturais” (Watson, 1958, pág. 11). Assim como o homem consistia, simplesmente, em “uma máquina orgânica montada e pronta para funcionar”, tam­ bém o behaviorista não era um cientista puro, mas um mecâ­ nico incapafc de resistir à tentação de mexer com a maquinaria. Ao sublinhar que ciências tais como a Química e a Biologia estavam adquirindo controle sobre seus objetos de estudo, Watson perguntou: “Poderá a Psicologia obter alguma vez esse controle? Poderei fazer que alguém que não receia as serpen­ tes, fique com medo delas e como?” A.resposta era clara: E como! “Em resumo”, disse Watson, “o brado do behaviorista é: ‘Dêem-me o bebê e o meu mundo para criá-lo e eu fá-lo-ei

engatinhar e caminhar; fá-lo-ei trepar e usar as mãos para cons­ truir casas de pedra ou madeira; farei dele um ladrão, um pisto­ leiro ou um toxicômano. A possibilidade de moldá-lo em qual­ quer direção é quase infinita” (Watson, 1926, pág. 35). Isso deve ser bastante para sugerir o caráter geral ( e a per­ sonalidade autoritária) da Psicologia Behaviorista — a primeira das três revoluções psicológicas que ocorreram em nosso século. A segunda revolução foi, é claro, a de Freud. Cumpre assi­ nalar que a Psicanálise e o Behaviorismo surgiram mais ou menos aó mesmo tempo, uma década a mais ou a menos, e que cada um desses movimentos eclodiu em reação contra a ênfase sobre a consciência na Psicologia tradicional. À parte essas coincidências, entretanto, havia pouco em comum entre os dois movimentos e muita coisa que os colocava em pólos opostos. Enquanto o Behaviorismo dava todo o destaque ao ambiente externo (aos estímulos recebidos de fora) como fator contro­ lador do comportamento, a Psicanálise enfatizava o ambiente interno, ou os estímulos recebidos de dentro sob a forma de impulsos e instintos. Para Freud, o homem era sobretudo uma criaturlTdélns tintos e, em particular, de dois instintos primários, o de vida e j j de morte._( de Eros e Tânatos). Esses dois. instin­ tos èstãvam em conflito, não só entre si, mas também com o mundo, com a cultura. A sociedade baseava-se (disse Freud) na renúncia dos instintos, através do mecanismo de repressão; mas os instintos não se rendiam sem luta. De fato, nunca se renderam; não podiam ser vencidos, apenas temporariamente blo­ queados. A vida, portanto, era uma constante alternação entre frustração e agressao. Tanto para a pessoa individual como para a cultura não existia solução permanente nem desfecho feliz; apenas havia compromissos, expedientes, ajustamentos ope­ racionais. Com efeito, o preço da civilização era a neurose em massa — o resultado da necessária supressão dos instintos natu­ rais do homem. Mas, se isso parecia ruim, a alternativa ainda era pior; sempre que as forças repressivas são por um momento relaxadas, declarou Freud, “vemos o homem como um animal selvagem, a quem é estranho o pensamento de poupar os de sua própria espécie” (Freud, 1930, pág. 86). Talvez o . mais interessante, para não dizer o mais assus­ tador conceito proposto por Freud fosse o de Tânatos, o instinto de morte ou de. agressão, que ele considerou um impulso inato e irresistível para a autodestruição ou a destruição de outros.

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Especialmente significativo nesse sombrio conceito da natureza agressiva do homem é o seu “retorno” em anos recentes, após um longo período de quase total eclipse. A corrente ressurreição do lado sombrio de Freud, de suas meditações e devaneios pes­ simistas dos últimos anos de vida, diz-nos menos sobre Freud do que sobre as disposição de espírito predominante em nosso próprio tempo. Voltarei a falar disso um pouco mais adiante. O principal ponto que quero frisar imediatamente sobre o movimento psicanalítico, em sua forma freudiana, é que ele apresenta uma imagem do homem como “vítima-espectador”, na expressão de Gordon Allport, de forças cegas que operam nele e através dele. Apesar de todas as suas diferenças com o Behaviorismo, a teoria freudiana concorda com a imagem fundamental do homem como máquina de estímuío-resposta, embora os estí­ mulos que impõem sua voritade ao ser humano provenham de dentro e não de fora. O determinismo de Freud não era ambien­ tal, como o de Watson, mas psicogenético; não obstante, era um determinismo e deixava pouca margem para a espontaneidade, a criatividade, a racionalidade ou a responsabilidade. A fé decla­ rada na razão consciente, subentendida na terapia freudiana (mais do que na teoria freudiana), não o impediu de minimizar insistentemente o papel da razão como determinante real ou potencial da personalidade e conduta, nem, por outro lado, de valorizar ao máximo o ímpeto de forças irracionais que se empe­ nham em impor suas reivindicações tanto de “baixo” (o id) como de “cima” (o superego). No mapa topográfico da mente, elaborado por Freud, o ego (ele mesmo só parcialmente cons­ ciente) jamais obtém autonomia plena, mas funciona como uma espécie de estado-tampão entre duas potências rivais, a do instin­ to e da cultura introjetada — da natureza animal e da criação social. Fui.deliberadamente severo com Freud, nestes comentários, a fim de enfatizar aqueles aspectos de sua teoria e terapia que, em virtude de seu pessimismo e determinismo, suscitaram no decorrer dos anos a resposta crítica e criativa a que (à falta de melhor termo) poderemos chamar “Psicologia Humanista” . Ésta nova Psicologia, a terceira revolução, representa uma reação con­ tra o Behaviorismo e a Psicanálise ortodoxa; por esse motivo é que a Psicologia Humanista foi denominada a “Terceira Força”. Mas talvez a primeira coisa a dizer a seu respeito é que, ao invés dos dois movimentos de pensamento que a precedem e se

lhe opõem, a Psicologia Humanista não constitui um corpo único de teoria, mas uma coleção ou convergência de numerosas diretrizes e escolas de pensamento. Se nada deve ao Behavio­ rismo, deve muito à Psicanálise, embora menos, talvez, ao pró­ prio Freud do que a considerável número de heréticos e desviacionistas freudianos, a começar pelos seus próprios parceiros do Círculo de Viena e culminando nos chamados neofreudianos (na realidade, antifreudianos) da segunda geração. Com efeito, apesar de muitas divergências entre eles, os que se afastaram, um a um, do lado de Freud compartilhavam nume­ rosos compromissos e conceitos comuns a todo o movimento psicanalítico dissidente. Adler, Jung, Rank, Stekel, Ferenczi — todos estes associados da primeira hora viram-se impossibilitados de aceitar a teoria do determinismo instintivo de Freud (especi­ ficamente, a sua teoria da libido) e a sua tendência para atribuir a origem de toda a dificuldade e motivação no passado remoto. Esses desviacionistas começaram por atribuir igual ou maior ênfase ao presente (ao aqui-e-agora, à “presença” do paciente) e também ao futuro (a atração da aspiração e do propósito, a meta ou- plano de vida do indivíduo). O que isso implicou foi um maior e- mais confiante apoio na conscientização da pessoa em análise ou terapia, distinguindo-a de seu inconsciente; um novo respeito pela sua força de vontade e poder da razão, pela sua capacidade de escolha e compreensão. Em Adler, essa abordagem assumiu a forma de conversão virtual da sessão de terapia psicanalítica num diálogo ou con­ versão em nível consciente (o que, é claro, enfureceu Freud, que pensou ter Adler atraiçoado o postulado básico da moti­ vação inconsciente). Em Jung, a nova abordagem tomou a forma de enfatização do que ele chamou o “fator prospectivo”, o ímpeto deliberado em oposição ao ímpeto instintivo (e, èm particular, do instinto erotico). Também assumiu a forma, -nos últimos anos de Jung, de crescente ênfase sobre a compreensão do outro (quer o paciente neurótico, quer o indivíduo normal) em sua identidade singular — uma espécie de compreensão intui­ tiva a que deu o nome de consentimento ( einfühlen); Jung dis­ tinguia o con-sentimento do conhecimento científico, o que o levou, finalmente, a advogar o abandono total de compêndios em qualquer atividade de assistência ou cura psicoterapêutica. No caso de Otto Rank, outro dos hereges do círculo freu­ diano original, o desvio adotou a forma de ênfase na vontade

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existencial da pessoa: a sua capacidade de autodireção e auto­ controle. O denominador comum nessas várias linhas de teoria e tera­ pia foi, creio eu, o respeito pela pessoa — o reconhecimento do outro não como um caso, ou um objeto, ou um campo de forças, ou um feixe de instintos, mas como ela mesma. Em termos teóricos, isso significou respeito pelos poderes de criati­ vidade e responsabilidade do ser humano; em termos terapêu­ ticos, significou respeito pelos seus valores, intenções e, sobre­ tudo, sua identidade peculiar. { ' Esse reconhecimento do homem em pessoa, em contraste com o homem em geral, vai ao âmago da diferença entre a Psico­ logia Humanista (em qualquer de suas formas ou escolas) e tais Psicologias científicas como o Behaviorismo. Não só na Psica­ nálise, mas também em outros campos, uma quantidade cres­ cente de estudantes está sendo levada à inquietante conclusão de que as características' definitivas de um ser humano não podem ser delineadas desde uma “distância psicológica” , por assim dizer, mas só têm possibilidade de ser focalizadas mediante a compreensão da perspectiva única do próprio indivíduo. / Essa ênfase sobre a pessoa humana, sobre o indivíduo em sua totalidade e unicidade, é uma característica central da “Psi­ cologia do Humanismo” .J Contudo, existe um importante coro­ lário, sem o qual a ênfase personalista seria inadequada e destor­ cida. Esse corolário é o reconhecimento, para usarmos uma frase de Rank, de que “o eu precisa do òutró”. Esse reconhecimento é expresso de várias maneiras: para os neofreudianos, assinala a importância do relacionamento no crescimento da personalidade; para os existencialistas, leva a enfatizar a importância dos temas de diálogo, encontro, reunião, intersubjetividade etc. Embora esse reconhecimento seja amplamente compartilhado por psicoterapeutas humanistas, analistas, teóricos da personalidade, psicó­ logos da percepção e outros, talvez o mais impressionante e siste­ mático desenvolvimento da idéia tenha sido proporcionado pelos pensadores existencialistas, tanto na área da Psicologia como da Filosofia. Existe uma semelhança flagrante na formulação desse relacionamento eu-outro por vários existencialistas. A Filosofia do Diálogo, de Martin Buber, gravitando em tomo da relação Eu-Tu, „é provavelmente a mais influente e possivelmente a mais profunda (Buber, 1937). ( Entre outros efeitos; fecundos, deu

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origem à “Psicologia da Reunião, a qual encontra seu modelo no encontro terapêutico.) O significado do conceito geral de Buber foi bem descrito por Will Herberg: O termo Eu-Tu assinala uma relação de pessoa a pessoa, de sujeito a sujeito, uma relação de reciprocidade que envolve “reu­ nião” e “encontro”, ao passo que o termo Eu-Objeto assinala uma relação de pessoa a coisa, de sujeito a objeto, que envolve alguma forma de utilização, de dominação ou controle, mesmo que se trate apenas do chamado conhecimento "objetivo”. A relação Eu-Tu, que Buber designa usualmente por “relação” par excellence, é aquela em que a pessoa só pode entrar com todo o seu ser, como pessoa genuína (Herberg, 1956, pág. 14).

Segue-se que a relação terapêutica, em seu desenvolvimento ideal, representa um autêntico encontro “à beira abrupta da existência” entre dois seres humanos, um procurando ajuda e o outro ajudando. Esse reconhecimento mútuo, que nunca é imediato, mas apenas uma possibilidade a ser realizada, abre caminho através das defesas e posturas convencionais dos dois parceiros, a fim de permitir que um deles, como pessoa, chegue até ao outro, como pessoa. O que se exige do médico em parti­ cular, diz Buber, é que “ele próprio saia de sua protegida supe­ rioridade profissional e aceite a situação elementar entre um ser humano solicitado e um que solicita” (Friedman, 1960, pág. 190). Independentemente de seus usos por psicólogos e psicana­ listas existenciais, como Ludwig Binswanger, Viktor Frankl e Rollo May, o conceito imensamente fértil de “reunião” Eu-Tu, de Buber, encontra paralelos e reverberações na obra de outros filósofos existenciais, sobretudo aqueles que são comumente cita­ dos como existencialistas religiosos ou teólogos existenciais. Para Gabriel Mareei, que chegou independentemente à fórmula Eu-e-Tu, o sentido de encontro genuíno é veiculado pelo termo “intersubjetividade”, o qual subentende uma comunicação autên­ tica na ordem de comunhão. Escreveu Mareei: “O fato é que podemos entender-nos a nós mesmos a partir do outro, ou de outros, e só partindo deles; . . . somente nessa perspectiva é que poderá ser concebido um legítimo amor do eu” (Mareei, 1960, pág. 9). Esse discernimento, muito semelhante ao con­ ceito de Fromm de amor produtivo e auto-realização, implica uma reciprocidade de conhecimento em que o que “Eu sou”, assim como o que “Tu és”, só se tornam conhecidos através da

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experiência mútua do que “nós somos”. Cada comunicante reco­ nhece o outro em si mesmo e reconhece-se a si mesmo no outro.

mais do que qualquer outro ser reconhecido como “pai espiri­ tual” do movimento humanista èm Psicologia; Gordon Allport, o grande teórico americano da personalidade e herdeiro do manto de William James; Rollo May, que introduziu a abordagem existencial na Psicologia americana e a desenvolveu em termos de originalidade criadora; Cari Rogers, cujo mandato terapêutico de “respeito incondicional” pelo cliente se assemelha à filosofia da preocupação fundamental de Tillich; Erich Fromm, o mais influente dos neofreudianos, que há muito se trasladou da Psica­ nálise para os domínios mais altos da Filosofia Social e da Crí­ tica Cultural; Henry A. Murray, inspirado mestre e exemplar de humanismo; Charlotte Bühler, que nos tornou a todos côns­ cios da importância, para a compreensão psicológica, dos valores-metas pessoais e do curso total de uma vida humana.

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Na “teologia terapêutica” de Paul Tillich (1952), essa apre­ ciação geral do papel esclarecedor do encontro é aplicada direta­ mente à psicoterapia — encarada como a “comunidade de cura” . Tillich, em comum com outros existencialistas, acredita que as dificuldades pessoais representadas pela neurose promanam, fun­ damentalmente, de falhas no relacionamento com outros, resul­ tando em auto-alienação de qualquer contato genuíno com o mundo. Assim, o problema terapêutico central passa a ser o de “aceitação”, mais precisamente, de sucessivas fases de aceita­ ção que culminam na aceitação do eu e do mundo dos outros. Nessa nova espécie de encontro terapêutico — e eis-nos diante de outro princípio humanista — não existem “sócios comanditários”. O terapeuta existencial (isto é, o- terapeuta humanista) deixou de ser a tela branca ou o “catalisador silen­ cioso” que era no tempo de Freud; pelo contrário, é um parti­ cipante ativo com a totalidade do seu ser. Participa não só para ajudar, mas, ainda mais basicamente, para conhecer e com­ preender. Segundo Tillich, “é preciso participar num eu para saber o que é isso. Pela participação, o eu muda” (Tillich, 1952, pág. 124). A inferência é que a espécie de conhecimento essencial à Psicologia e Psicoterapia não pode ser adquirido pela observação indiferente, mas, outros sim, pela observação parti­ cipante (para usarmos a expressão de Harry Stack Sullívan). Através do desprendimento ou indiferença, talvez seja possível adquirir conhecimentos “úteis”; mas só através da participação é possível obter o conhecimento proveitoso. Em qualquer descrição adequada das fontes e forças que alimentaram o movimento da Psicologia Humanista (o que este breve esboço não pretende ser), muito mais precisaria ser dito em reconhecimento das contribuições dadas por cada teórico e terapeuta. Felizmente, dispomos de um certo número de tra­ balhos abrangentes, entre eles, os livros de James Bugental, Challenges of Humanistic Psychology (1967), Anthony Sutich e Miles Vich, Keadings in Humanistic Psychology (1969) e o meu próprio The Broken Image (1964), especialmente os Capí­ tulos 6 e 7. Mas até o presente ensaio não poderá deixar de mencionar, pelo menos, alguns dos promotores e agitadores da terceira revolução, notadaménte, Abraham Maslow, que merece

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Ao terminar, desejo sugerir algo do potencial ativista da Psicologia Humanista, citando 'alguns parágrafos da conferência que proferi em 1969, como presidente recém-eleito da Associação de Psicologia Humanista, perante a sua assembléia anual (Matson, 1969): . . . Gostaria de propor uma linha de compromisso, e de pro­ testo, que poderíamos adotar perfeitamente como psicólogos huma­ nistas. Essa linha consiste,,, como diria Jefferson, em jurar perma­ nente oposição a todas as formas de tirania sobre a mente do homem. Proponho que nos comprometamos a defender a liber­ dade psicológica; pois acredito que, muito possivelmente, a maior ameaça que paira sobre a liberdade no mundo de hoje (e de ama­ nhã) é a ameaça à liberdade mental, que consiste, em última instân­ cia, no poder de escolha. Essa liberdade é hoje ameaçada por todos os lados. É amea­ çada pelo que Herbert Marcuse chamou a “sociedade unidimen­ sional”, a qual procura reduzir as categorias de pensamento e dis­ curso a uma espécie de endosso consensual das diretrizes impostas por uma cultura agressiva e aquisitiva. É ameaçada pela tecno­ logia da sociedade de massa, cultura de massa e comunicação de massa, a qual fabrica (com todo o respeito devido a Marshall McLuhan) um mundo amorfo de prazeres plásticos, em que os mansos conduzem interminavelmente os mansos para o mar da tran­ qüilidade. A liberdade mental também é ameaçada pela revolução bioló­ gica e seüs corolários psicológicos — não só pelo familiar ninho de cuco das lobotomias e tratamentos de choque, sobre o qual nin­ guém pode voar, mas pelos iminentes avanços da “cirurgia estética” e intervenções afins, os quais prometem tornar viável a reciclagem e reprogramação do mecanismo cerebral.

F loyd W . M a t so n Talvez do modo mais crítico de todos, a nossa liberdade psi­ cológica é ameaçada pela falta de coragem e de fibra; pela nossa incapacidade para viver de acordo com (e viver além de) o dogma democrático, o qual assenta na fé na capacidade do ser humano comum para conduzir sua própria vida, abrir o seu próprio cami­ nho, ser ele mesmo, conhecer-se e tornar-se mais ele mesmo. Essa falta de coragem predomina no campo da educação; é uma espé­ cie de doença ocupacional do trabalho social, em que a pessoa assistida passa a ser um cliente que é tratado como paciente e diag­ nosticado como incurável. E isso é uma característica generalizada na paisagem da Psicologia acadêmica e ciência do comportamento, em tantos aspectos deprimentes que seria necessário um livro (que já escrevi) para enumerá-los todos. Mas citarei apenas um dos aspectos em que essa falta de coragem se manifesta no estudo do homem. A velha doutrina reacionária do Pecado Original, da depravação inata, está desfru­ tando nos últimos tempos uma ressurreição muito popular e em larga escala. Assume a forma da hipótese de agressão como dota­ ção instintiva fixa do homem — como se fosse uma mancha gené­ tica no sangue, uma sombria mácula na dupla hélice de cada um de nós. A alegada descoberta ou redescoberta desse instinto assassino está sendo \ saudada nos clubes do livro e em revistas populares como se fosse a bênção final, a boa nova derradeira no caminho da redenção do homem. Como explicar a popularidade dessa tese sombriamente pessimista? Como explicar o status de best-seller conquistado por livros como On Agression (1966), de Lorenz; The Territorial Jmperative (1966) e African Genesis (1961), de Ardrey; e The Naked A pe (1967), de Desmond Morris? Creio que a resposta é clara: uma falta de coragem em massa. Nada poderia ser melhor calculado para nos livrar do incomodo anzol da responsabilidade pessoal, do autodomínio^ e da autode­ terminação, do que essa doutrina de nossas propensões inatas para a agressividade. É por isso que guerreamos; é por tsso que odia­ mos; é por isso que não podemos amar-nos uns aos outros nem a nós mesmos. As pessoas não prestam — e acabou-se. Bem, não acredito que os psicólogos humanistas aceitem essa armadilha. Proponho, por conseguinte, que lancemos todo o peso do nosso movimento, a totalidade da Terceira Força, contra essa e todas as outras ameaças à liberdade mental e à autonomia da pessoa. Tornemo-nos a consciência ativa da fraternidade psicoló­ gica, buscando, expondo e condenando toda e cada força desumanizante, despersonalizante e desmoralizante que nos empurraria cada vez .mais para o caminho do Admirável Mundo Novo e da sociedade tecnocrática — esse laboratório dos sonhos do behaviorista e dos pesadelos do humanista. Pois nesse caminho está não apenas o fim da liberdade psico­ lógica, mas também a morte da humanidade.

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