O Trecho

  • October 2019
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  • Words: 2,146
  • Pages: 7
Parecia mesmo que Ana Vera havia perdido a Razão. No carro da reportagem em direção à estação, o câmera e o motorista se entreolhavam e olhavam no retrovisor, alternadamente. No banco de trás, Ana Vera Cabral, com os olhos ora cheio de lágrimas, ora sorrindo. - Endoidou! Pensavam os dois. O narrador que deve permanecer objetivo vai ordenar os fatos para o leitor pois mesmo “se” ou “quando” houver leitor, devem ser sempre bem informados. Portanto, vamos dar uma olhada na agenda da manhã dos nossos três personagens.

Antonieta

6h30 Acorda. Sai do quarto às 7h05 arrumada, vaporosa, maquiada, perfumada e toda elegante, como de costume. Desce para o café da manhã com o filho Bruno, que pergunta pelo pai e distraída responde: - Trabalhando, querido. Ele está trabalhando. Sai em seguida e chega no portão do colégio às 7h45. Despede-se do filho com um beijo, a recomendação de que não se suje, a

João

Ana Vera

7h45 João está plantado na 7h45 atravessa a rua porta da pastelaria. Segue correndo, mete-se na com o olhar Ana Vera. Às multidão toda 7h46 o celular começa a esbaforida e as custas tocar e sem ser atendido de algumas cotoveladas toca novamente às 7h48, e da ajuda do seu 7h50, 7h58. câmera, que fala, espantado: Às 7h59 o menino de 6 anos parado ao lado - Anda Ana! O que te esquerdo de João na porta deu? Você está da pastelaria passa o atrasada! bolinho de bacalhau da mão direita para a As 7h46 está cara a cara com o Raposo, esquerda, com a direita posiciona o microfone e segura a calça de João na faz a pergunta mais altura do joelho, dá dois imbecil de toda sua puxões e fala; vida profissional: - Moço! Não vai atender - Como está se seu celular, não?

declaração de que o ama muito e de que virá buscalo às 17h00, como de costume. Tudo absolutamente normal e como de costume. E, como de costume dirige-se, para a casa de Maria Felicidade, sorrindo.

seu celular, não?

- Como está se sentindo?

João ouve essa vozinha como se fosse a do Grilo Falante e obediente atende o homem berrando na linha:

Todas as perguntas feitas nos minutos seguintes foram tão irrelevantes para o entendimento do - João! O que te deu? Você assunto em pauta e para está atrasado! o esclarecimento da população quanto esta. - Já chego aí. No entanto, Ana Vera, está sorrindo. Diz, sorrindo.

Para a pergunta: - O que te deu? Bem que, tanto João quanto Ana, gostariam de dar a resposta verdadeira: - Acabo de encontrar a(o) mulher (homem) que amo. Falar de amor a essas horas? Seriam tachados de loucos, irresponsáveis, xingados e amaldiçoados por perder tempo com besteiras quando há a tanto por fazer, por resolver. Para o Cotidiano, Amor não é prioridade. Sabem que essa resposta - apesar de ser a mais estrita verdade - soaria incompreensível e mesmo ridícula para qualquer pessoa. Talvez, apenas o menininho que fez o papel de Grilo Falante - e se aproveitou disso para deixar uma grande mancha de gordura e um ou dois pedacinhos do bolinho de bacalhau na calça de João - poderia ouvir isso assim e se dar por satisfeito: - Ahhh tá. Que legal, moço. E seguiria feliz mastigando seu resto de bolinho e bem satisfeito com essa resposta. Pois seja lá o que for esse tal de Amor, pelo sorriso que João tinha estampado na cara, pareceria mesmo ser bem legal. Mas, o menino não ouviu essa declaração, ouviu foi Dona Brilhantina comentando no balcão enquanto João se afastava, sem pedir sequer um cafezinho:

- Viram só que antipático como ele derrubou a moça? Ana Vera não era por natureza disciplinada e metódica como João. Apaixonada, impulsiva, pediu sua transferência para a universidade do sul quando não suportou mais a indiferença e a covardia dele. Esperou durante toda a semana, carregando “A Cidade e as Serras” na bolsa, ainda emocionada e transbordante de amor, apesar da decepção quando percebeu que João ao sair naquela noite, não voltaria para sequer ver no lençol a pequena mancha de sangue de sua virgindade que se fora. Uma semana esperando por algo tão desejado é de matar qualquer um de exasperação. Passou o final de semana ainda mais irritada com a atitude dele. Na segundafeira foi para a aula cheia de esperanças, de mini-saia e blusa justa. Na terça, acordou atrasada, menstruada e com cólicas, vestiu-se de qualquer jeito e quando finalmente o viu, explodiu sua frustração chicoteando seu próprio nome contra a cara de um João sem reação. E as palavras que eram um vaticínio: - Tu vais querer muito pedir-me perdão. Depois disso ao vê-lo por algumas vezes se aproximar todo vacilante, sentiu seu desconforto e falta de determinação como uma ofensa e se afastou, esperando no íntimo que ele a chamasse, que corresse, que fizesse algum gesto mais determinado para não perde-la. Mas, não. Ele apenas se conformava e se afastava, cabisbaixo. Isso doía, e doía cada vez mais fundo e fazia com que Ana desejasse ao mesmo tempo: bater violentamente nele / sair correndo / sentar no meio-fio chorando desconsoladamente / enche-lo de beijos e pedir que não se fosse embora jamais... Achou que longe dele, esqueceria. Era jovem e não sabia ainda que essas coisas que se acham em situações assim logo são perdidas. Como esquecer sequer a primeira vez que notou João? Na lanchonete da faculdade procurava um lugar vago para sentar e comer seu sanduíche. No lúgubre galpão estreito e de imenso pé direito que servia de lanchonete as mesas foram separadas com paredes de treliça onde folhagens artificiais entrelaçadas procuravam dar um ar mais jovial e aconchegante ao lugar. Espelhos estratégicos nas laterais disfarçavam a pouca largura. E foi ao lado de uma dessas mesas espelhadas que Ana achou lugar, sentou e viu então João refletido no espelho. Sem a poder notar, lado a lado com ela, separados por folhas de plástico, João conversava com amigos, todo entusiasmado com um livro que encontrara há alguns dias.

Ana reparou primeiro em seus olhos. Expressivos, levemente puxados, escuros, tinham uma certa inocência misturada com uma surpreendente ironia mal disfarçada. Ironia , sinal de inteligência aguçada, nem sempre percebida pelos colegas, como Ana reparou. Notou em seguida as mãos grandes que pontuavam com elegância a conversa. Mãos, olhos, a bonita voz. Ficou ali esquecida, involuntariamente ouvindo a conversa, mastigando cada vez mais lentamente seu sanduíche. Um bem estar crescente, físico, inusitado, um prazer doce em estar ali ouvindo e vendo aquele rapaz e seus comentários, às vezes João até lia um trecho para os amigos e na voz carinho e admiração pelas palavras do autor. Ana sabia que eles precisavam estar juntos! Que ela e ele fariam uma combinação preciosa e rara como um vaso chinês. Quando naquela noite na livraria sentiu sua presença, seu corpo se aqueceu na mesma sensação deliciosa da primeira vez. Era a sua oportunidade de se fazer notar, de conversar com ele. Sair dançando completamente encantada em sua perseguição pelas estantes, foi absolutamente natural. E ao iniciarem a conversa no início meio sem sentido, viu todas as concordâncias que tinham e as que discordâncias lançavam apenas mais coisas por saber, por entender, por conhecer. Harmonizavam-se em suas diferenças, cúmplices e companheiros. E agora, encerrando às 18h45 a última reunião de pauta do dia, após a bronca do editor, o espanto dos colegas pela matéria chocha e pelo seu ar ausente, sentia a dor de ter ficado tantos anos longe. E a extrema maravilhosa, louca alegria de ter reencontrado. Passou todo o dia revendo mentalmente as cenas do seu breve encontro. E agora se dá conta de que havia aquele leve brilho dourado na mão esquerda de João. Até o noticiário da noite ser exibido João e Ana seguiram seus compromissos a custo e como puderam. Antonieta, esta seguiu em seu caminho suave. Antonieta? Ela sempre soube ser homossexual. É claro que alguém como ela jamais sairia declarando isso em praça pública. Antonieta não era do tipo que empunharia nenhuma bandeira, não lutaria por nenhuma causa, não causaria sequer o constrangimento de uma transgressão de transito quanto mais de vida. Caçula das três irmãs com uma boa diferença de idade, era tratada como uma bonequinha por elas. Cheia de mimos e cuidados de toda a família, o bom e o melhor para ela. A sua beleza e delicadeza fazia com que todos a tratassem como se fosse um anjo. De fato, Antonieta sempre teve corretos sentimentos com relação a todos, agindo sempre com a maior boa educação, só se inflamava em sentimentos acalorados com a amiga Maria Felicidade.

Momentos descompostos. Eram as horas em que ... digamos assim, ela perdia a classe que tão bem a caracterizava. Aceitou o casamento meio arranjado com João de boa cara, desejava ter um filho e o status de esposa para dar sua cota de satisfação à sociedade. Maria Felicidade também era filha de uma das tradicionais famílias da Velha Cidade e todos achavam muito natural a amizade íntima e até grudada das duas. - São como irmãs, que lindo isso! Diziam todos, aprovando tão elevados e fraternos sentimentos entre as representantes do que havia de mais tradicional, respeitável e bem educado na sociedade. Antonieta e Felicidade mantinham as aparências, afinal existiam fortunas em jogo nos negócios das duas famílias. Felicidade, filha única, tocava os negócios da família desde a morte do pai, com mão de ferro, e todas suas delicadezas eram dirigidas apenas para Antonieta. Amavam-se, de fato. Por João, Antonieta sentia afeto e cuidados, no entanto suportou João com uma certa alegria em seu corpo somente até ter engravidado do Bruno e após isso apenas com resignação. Detestava as diferenças físicas entre ela e o homem. Para a sua extrema delicadeza apenas as curvas e suavidades de Felicidade a agradavam e excitavam, jamais os ângulos retos, as mãos grandes, a altura, o peso ou mesmo o cheiro másculo de João que lhe causavam até repugnância. Torcia seu delicado narizinho à lembrança das pernas cabeludas do marido, apesar de ter sido justamente esse um dos motivos de aceita-lo pois João não era do tipo excessivamente peludo. Se ele fosse, ela casaria com outro. João. Esse segue seu caminho para o escritório. Atordoado e com fome entra na sala e no caos provocado por sua breve ausência. A secretária enlouquecida arregala os olhos para esse Doutor meio amarfanhado e de calça manchada O cliente, a quem dera o maior cano na noite anterior, espumava de raiva. Sentindo que ele mesmo estava enlouquecido - só que de paixão - sequer reparou que no caminho andando pelas ruas ensolaradas a sua sombra alegremente voltou a acompanhá-lo. Com ar ausente cumpriu seus compromissos, deu desculpas vagas ao cliente, orientações conflitantes para a secretária e uma ordem para si mesmo: Ir atrás dela. A soma das intensas emoções vividas por João desde o dia anterior, a noite pouco e mal dormida, somada a falta de alimento mais o violento encontrão físico com Ana Vera resultou em um safanão na sua psique. Aquelas caixas internas onde

guardava rapidamente todo acontecimento ameaçador à sua disciplinada personalidade - como um menino que guarda ávido em uma caixa de charutos todas as suas preciosidades e tão bem escondidas que as esconde até de si mesmo - se escancaram. Talvez nunca antes João tenha olhado para esses objetos preciosos de sua vida emocional assim à luz plena do dia. E, lá no meio de outras menores resplandecia com todas suas cores, Ana Vera Cabral. No diálogo cheio de cumplicidade na livraria, na alegre conversa cheia de risadas de perder o fôlego até chegar na casa de Ana, na intensidade das horas de amor ele esteve inteiro. Nunca antes a palavra despido fora tão verdadeira. Com Ana foi inteiro, tudo o que era e tudo o que poderia vir a ser. Na pele de Ana Vera, cometia ousadias e recuava, encabulado. Para logo em seguida rir e se desmanchar em delicadezas carinhosas com suas mãos grandes de rapaz nos cabelos desgrenhados. Afundava-se em seus cheiros. O medo de João vinha daí. Ana fora a única pessoa que o vira tão completamente despido, sem máscaras, sem disciplina, sem compromissos. Simplesmente um ser humano masculino de casual nome João no encontro com outro ser humano também despido - e esse, feminino até as raízes dos cabelos encaracolados - de casual nome Ana. Só agora, vinte anos depois, percebe o quanto sua trajetória de vida foi determinada por temores. Nos breves momentos em que seus olhos castanhos cruzaram com os olhos verdes de Ana Vera, pode ver a dor da separação e mais que isso. Ela ainda o queria! O cético e ateu João não se pode impedir de dar graças. Que a penitencia de sua covardia passada não seja perder Ana Vera em definitivo.

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