O Gato Preto - E A Poe

  • June 2020
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  • Words: 8,930
  • Pages: 15
O Gato Preto Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram. No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror _ mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum _ uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais. Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem. Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento. Pluto _ assim se chamava o gato _ era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento _ enrubesço ao confessá-lo _ sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim _ que outro mal pode se comparar ao álcool? _ e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão _ dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera. Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restavame ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível. Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero. Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo _ coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal. Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via. Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo. Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme _ tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um

único pêlo branco em todo o corpo _ e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito. Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apresseime em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse _ detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciálo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê _ seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente _ , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste. Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo _ apresso-me a confessá-lo _ , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar _ sim, mesmo nesta cela de criminoso _ , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível _ que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa _, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte! Na verdade, naquele momento eu era um miserável _ um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma bestafera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso _ encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim _ pousado eternamente sobre o meu coração! Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros _ os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade _ e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido. Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas. Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão". O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma. Transcorreram o segundo e o terceiro dia _ e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura. No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. _ Senhores _ disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada _ , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes _ os senhores já se vão? _ , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação. Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes. Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

Por; FERNANDO PESSOA (1888-1935)

O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais «Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais. É só isso e nada mais.» Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais — Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais! Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo, «É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isso e nada mais». E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, «Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais. Noite, noite e nada mais. A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Isto só e nada mais. Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. «Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.» Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. «É o vento, e nada mais.» Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais. Foi, pousou, e nada mais. E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura Com o solene decoro de seus ares rituais. «Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.» Disse-me o corvo, «Nunca mais». Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome «Nunca mais». Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais». Disse o corvo, «Nunca mais». A alma súbito movida por frase tão bem cabida, «Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais Era este «Nunca mais». Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais, Com aquele «Nunca mais». Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, Reclinar-se-á nunca mais! Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. «Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!» Disse o corvo, «Nunca mais». «Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais, Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!» Disse o corvo, «Nunca mais». «Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!» Disse o corvo, «Nunca mais». E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais, E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais, Libertar-se-á... nunca mais!

Edgar Allan Poe.In: Histórias Extraordinárias.

a filosofia da composição, de Edgar Allan Poe Charles Dickens, numa nota que agora está à minha frente, aludindo a uma análise que fiz, certa vez, do mecanismo do Barnaby Rudge, diz: "De passagem, sabe que Godwin escreveu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primeiramente seu herói numa teia de dificuldades, que formava o segundo volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procurando um modo de explicar o que havia feito." Não posso imaginar que esse seja o modo preciso de proceder de Godwin, e, de fato, o que ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia do Sr. Dickens. Mas o autor de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perceber a vantagem procedente de um processo pelo menos um tanto semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em relação ao epílogo antes que se tente qualquer coisa com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou casualidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua

intenção. Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir-se uma ficção. Ou a história nos concede uma tese ou uma é sugerida por um incidente do dia; ou, no melhor caso, o autor senta-se para formar simplesmente a base da narrativa, planejando, geralmente, encher de descrições, diálogos ou comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tornar aparentes, de página a página. Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista (pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável), digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros efeitos ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasião atual, escolher?" Tendo escolhido primeiro um assunto novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom – com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes quanto do tom – depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito. Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos escritores – especialmente os poetas – preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição extática, e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero, como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpelações, numa palavra: para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança do cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário. Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas. As sugestões, em geral, tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas de maneira semelhante. Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem, em qualquer tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas composições; e, desde que o interesse de uma análise ou reconstrução, tal como a que tenho considerado um desideratum, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não se deve encarar como falta de decoro de minha parte o mostrar o modus operandi pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi O Corvo, como a mais geralmente conhecida. É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.

Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema per se, a circunstância ou, digamos, a necessidade que em primeiro lugar deu origem à intenção de compor um poema que, a um tempo, agradasse ao gosto do público e da crítica. Comecemos, pois, a partir dessa intenção. A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vantagem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos, isto é, de breves efeitos poéticos. É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões correspondentes; e o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico: a totalidade ou unidade de efeito. Parece evidente, pois, que há um limite distinto no que se refere à extensão: para todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada; e que, embora em certas espécies de composição em prosa, tais como Róbinson Crusoé (que não exige unidade), esse limite possa ser vantajosamente superado, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um poema. Dentro desse limite a extensão de um poema deve ser calculada para conservar relação matemática com seu mérito; noutras palavras: com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos: com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pretendido, e isto com uma condição: a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente, para a produção de qualquer efeito. Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação que eu não colocava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei ser a extensão conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem versos. De fato, ele tem cento e oito. Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão ou efeito a ser obtido; e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longo demais meu assunto imediato se fosse demonstrar um ponto sobre o qual tenho repetidamente insistido e que, entre poetas, não tem a menor necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a Beleza é a única província legítima do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram a inclinação para interpretar mal. O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de Beleza querem exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; referem-se, em suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma – e não da inteligência ou do coração – de que venho falando e que se experimenta em conseqüência da contemplação do "belo". Ora, designo a Beleza como a província do poema

simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houve ainda bastante tolo para negar que a elevação especial a que aludi é mais prontamente atingida num poema. Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, e o objetivo Paixão, ou a excitação do coração, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa extensão, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade (o verdadeiramente apaixonado me compreenderá) que são inteiramente antagônicas daquela Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão, e mesmo a verdade, não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçará, em primeiro lugar, para harmonizá-las na submissão conveniente ao alvo predominante e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema. Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos. Estando assim determinados a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na construção do poema, algum eixo sobre que toda a estrutura devesse girar. Passando cuidadosamente em revista todos os efeitos artísticos usuais – ou, mais propriamente, situações, no sentido teatral – não deixei de perceber de imediato que nenhum tinha sido tão universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise. Considerei-o, contudo, em relação à sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi logo que ainda se achava num estado primitivo. Como é comumente usado, o refrão poético ou estribilho não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som como na idéia. O prazer somente se extrai pelo sentido de identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo, em geral, à monotonia do som, porém continuamente variando na idéia; isto é, decidi produzir continuamente novos efeitos pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior parte das vezes, invariável. Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a natureza de meu refrão. Desde que sua aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevidade da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da variação. Isso imediatamente me levou a uma só palavra como o melhor refrão. Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um refrão, a divisão do poema em estâncias surgia, naturalmente, como corolário, formando o refrão o fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada e tais considerações inevitavelmente me levaram ao o prolongado, como a mais aproveitável.

Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia predeterminada como o tom do poema. Em tal busca teria sido absolutamente impossível que escapasse a palavra nevermore. De fato, foi ela a primeira que se apresentou. O desiderato seguinte era um pretexto para o uso contínuo da palavra nevermore (nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar razão suficientemente plausível para sua contínua repetição, não deixei de perceber que essa dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser contínua ou monotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de perceber, em suma, que a dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por parte da criatura que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se imediatamente a idéia de uma criatura não racional, capaz de falar, e muito naturalmente foi sugerida, de início, a de um papagaio, que foi logo substituída pela de um corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação com o tom pretendido. Eu já havia chegado à idéia de um corvo, a ave do mau agouro, repetindo monotonamente a expressão "nunca mais" na conclusão de cada estância de um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o objetivo – o superlativo, ou a perfeição em todos os pontos –, perguntei-me: "De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da humanidade, é o mais melancólico?" A Morte – foi a resposta evidente. "E quando – insisti – esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente, a resposta também aí era evidente: "Quando ele é, inquestionavelmente, o mais poético tema do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor." Tinha, pois, de combinar as duas idéias: a de um amante lamentando sua morta amada e a de um corvo continuamente repetindo a locução "nunca mais". E tinha de combiná-las tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da palavra repetida; mas a única maneira inteligível de tal combinação era a de imaginar o corvo empregando a palavra em resposta às perguntas do amante. E então aí vi, imediatamente, a oportunidade concedida para o efeito do qual eu tinha estado dependente, isto é, o efeito da variação da aplicação. Vi que poderia fazer da primeira pergunta apresentada pelo amante – a primeira pergunta a que o corvo deveria responder "nunca mais" –, que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-comum; da segunda uma expressão menos comum; da terceira ainda menos, e assim por diante, até que o amante, arrancado de sua displicência primitiva pelo caráter melancólico da própria palavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra reputação da ave que a pronunciava, fosse afinal excitado à superstição e loucamente fizesse perguntas de espécie muito diversa, perguntas cuja resposta lhe interessavam apaixonadamente ao coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela espécie de desespero que se deleita na própria tortura, fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter profético ou demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma lição aprendida rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer em organizar suas perguntas para receber do esperado "nunca mais" a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia – ou, mais estritamente, que se me impunha no desenrolar da composição –, estabeleci na mente o clímax ou a pergunta conclusiva: aquela pergunta de que o "nunca mais" seria, pela última vez, a resposta, aquela pergunta em resposta à qual o "nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de tristeza e de

desespero. Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo: pelo fim, por onde devem começar todas as obras de arte; porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela primeira vez, tomei do papel e da pena para compor a estância: "Prophet!", said I, "thing of evil! – prophet still, if bird or devil! By that heaven that bends above us – by that God we both adore – Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore – Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore." Quoth the Raven, "Nevermore". Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente porque, estabelecendo o ponto culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e importância, as perguntas precedentes, do amante; e, em segundo lugar, porque poderia definitivamente assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral da estância, assim como graduar as estâncias que a deviam preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz na composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas, não teria hesitações em enfraquecê-las propositadamente, para que não interferissem com o efeito culminante. E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versificação. Meu primeiro objetivo, como de costume, era a originalidade. A amplitude com que esta tem sido negligenciada na versificação é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no ritmo, permanece claro, porém, que as variedades possíveis do metro e da estância são absolutamente infinitas; e, contudo, durante séculos, nenhum homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa original. A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente e, embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação. Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originalidade, quer no ritmo, quer no metro de O Corvo. O primeiro é trocaico, e o segundo octâmetro acatalético, alternando-se com um heptâmetro catalético repetido no refrão do quinto verso, e terminando com um tetrâmetro catalético. Falando menos pedantescamente, o pé empregado no poema (troqueu) consiste de uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, dois terços); o terceiro de oito; o quarto de sete e meio; o quinto de sete e meio; o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que O Corvo tem está em sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproximasse dessa combinação. O efeito dessa originalidade de combinação é ajudado por outros efeitos incomuns, alguns inteiramente novos, oriundos de uma ampliação da aplicação dos princípios de rima e de aliteração. O ponto seguinte a ser considerado era o modo de juntar o amante e o corvo, e o primeiro ramo dessa consideração era o local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral

para conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar. Determinei, então, colocar o amante em seu quarto – num quarto para ele sagrado pela recordação daquela que o freqüentara. O quarto é apresentado como ricamente mobiliado, isso na simples continuação das idéias que eu já tinha explanado a respeito da Beleza como a única verdadeira tese poética. Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave, e o pensamento de introduzi-la pela janela era inevitável. A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, que o tatalar das asas da ave contra o postigo é um "batido" à porta originou-se dum desejo de aumentar, pela prolongação, a curiosidade do leitor, e dum desejo de admitir o efeito casual surgindo do fato de o amante abrir a porta, achar tudo escuro e depois aceitar a semi-fantasia de que fora o espírito de sua amada que batera. Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o corvo procurava entrar e, em segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que reinava dentro do quarto. Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para efeito de contraste entre o mármore e a plumagem – sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássaro; escolhi o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais com a erudição do amante e, em segundo lugar, pela sonoridade da própria palavra Minerva. Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do contraste, tendo em vista aprofundar a impressão derradeira. Por exemplo, um ar do fantástico – aproximando-se o mais possível do burlesco – é dado à entrada do corvo. Ele entra "em tumulto, a esvoaçar". Not the least obeisance made he – not a moment stoped or stayed he But with mien of lord or lady, perched above my chamber door, Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door. Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente salientado: Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling By the grave and stern decorum of the countenance it wore, "Though thy crest be shorn and shaven thou", I said, "art sure no craven Ghastly grim and ancient Raven wandering from the nightly shore – Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore?" Quoth the Raven "Nevermore". Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly Though its answer little meaning – little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door – Bird or beast upon the aculptured bust above his chamber door, With such name as "Nevermore". Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento, imediatamente troquei o fantástico por um tom da mais profunda seriedade, começando esse tom na estância imediatamente seguinte à última citada, com o verso: But the Raven, sitting lonely on that placid bust spoke only, etc. Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer

coisa de fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como "horrendo torvo, ominoso e antigo", sentindo "da ave, incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolução do pensamento ou da imaginação da parte do amante, destina-se a provocar uma semelhante da parte do leitor, levar o espírito a uma disposição própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto possível. Com o desenlace conveniente, com a resposta do corvo "Nunca mais" à pergunta final do amante sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o poema, em sua fase evidente, que é a da simples narrativa, pode ser considerado como completo. Até aí, tudo está dentro dos limites do explicável, do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer apenas a palavra Nevermore, e tendo escapado à vigilância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio à violência de uma tempestade, a buscar entrada numa janela pela qual se vê ainda a luz brilhar: a janela do quarto de um estudante ocupado entre folhear um volume e sonhar com uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao tumultuar das asas da ave, esta pousa no sítio mais conveniente e fora do alcance imediato do estudante que, divertido pelo incidente e pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, de brinquedo e sem esperar resposta, por seu nome. O corvo interrogado responde com seu costumeiro Nevermore, palavra que logo encontra eco no coração melancólico do estudante que, dando expressão, em voz alta, a certos pensamentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do Nevermore do corvo. O estudante adivinha então a real causa do acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em parte, pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, graças à esperada palavra "Nunca mais". Levando até o extremo essa autotortura, a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, tem um fim natural e até aí não ultrapassou os limites do real. Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente que o sejam, por mais vivas riquezas de incidentes que possuam, há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de complexidade ou, mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcorrente, embora indefinida, de sentido. Esta última, afinal, é que dá a uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz) que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido, é torná-lo a corrente superior em vez da subcorrente do tema que transforma em prosa (e prosa da mais chata espécie) a assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas. Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua sugestividade destinada a penetrar toda a narrativa que as precede. A subcorrente de significação torna-se primeiramente evidente no verso. Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!" Quoth the Raven "Nevermore". Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a primeira expressão metafórica no poema. Elas, com a resposta "nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral em tudo quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o corvo como simbólico; mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distintamente ser vista a intenção de torná-lo um emblema da

Recordação lutuosa e infindável: And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting, On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming, And the lamplight o`er him streaming throws his shadow on the floor; And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted – nevermore.

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