Ele estava sentado a mesa do cafe quando veio a vontade incontroHivel de ver Samira. Pede desculpas aos companheiros com quemjogava cartas, empurra a cadeira e sai a rua. F azia muito calor e 0 sol batia com for~a em sua cabe~a, mas nao ia ·desistir por isso. Viu urn trod, deu 0 sinal e se atirou no banco traseiro, dizendo ao motorista: - Rua ... Encolhido no assento, sentiu urn pensamento trai~oeiro tomar conta de si: - Isso e desonesto... Voce vai se encontrar com Samira porque nao consegue fazer nada sem ela. E 0 vazio que te empurra para essa mulher. Esb~aum sorriso meio orgulhoso e repele seeamente 0 pensamento: - Vou porque quero essa mulher. E so isso. Sentia, no entanto, sua garganta se fechar a medida que 0 carro se aproximava do destino. Isso sempre lhe acontecia quando se preparava para resolver algum problema importante. Seu olhar desce para as costas das maos. Observa como as veias estao inchadas. Procura uma saida facil,pensando: - Nao e a primeira vez que yOU me encontrar com Samira. Alem do mais, preciso dela•..
Volta 0 olhar para as pessoas que desfilam atrado vidro. Elas nao fazem mais do que passar umas pelas outras, cada qual atirada em seu pr6prio caminho. Vem de qualquer lugar e VaGa parte nenhuma. Tenta entao convencer a si pr6prio de que gozava de uma vida inteiramente normal, tranqiiila. Fazia 0 que queria, indo.onde lhe dava na cab~a. Sua vida nunca havia sofrido qualquer abalo serio. Nenhuma perturba«;ao poderia minar a confian«;a que tinha em sua pr6pria for«;a.Afinal, 0 que poderia ser capaz de perturbar sua paz de espirito? Lembrava-se c1aramente das circunstancias em que tinha visitado Samira quando da morte de seu pai. Havia dito entao a urn amigo que ela era tudo 0 que tinha no mundo, 0 unico ser de quem conhecia tao bem 0 lado de fora como 0 de dentro ... Quem poderia compreender que ela era sua verdade, que nao tinha outra verdade a nao ser essa mulher? Ali, no carro, sentiu que possuia alguma coisa que 0 situava acima do formigueiro de passantes ... Mas 0 que? - Que diabo sou eu, na realidade? Sacode a cabe«;a. Sabia que era superior, por uma ou outra razao que nao era 0 caso de definir naquele instante. Contentava-se com essa convic«;iointima que lhe dilatava 0 cora«;ao, inchava as veias e apertava estranhamente sua garganta. Onde quer que eu pare? - perguntou 0 choyeS
Onde quiser, aqui nesta rua ... Pagou e olhou para 0 rosto do motorista. Teve a impressao de que 0 homem sabia para onde ele estava indo. Mas nao sentiu vergonha. Sorriu, pensando: - Este motorista serviu para me trazer ate aqui; do mesmo jeito que Samira e necessaria para minha felicidade. A compara«;ao refor~a nele 0 sentimento de supe-
rioridade. 0 motorlsta sabia que 0 havia levado a urn lugar onde se sentiria feliz. Samira sabia, por sua vez, que deveria faz.e-Iofeliz. Era como se ele fosse 0 centro motor em torno do qual urn planeta iria gravitar. Ate all, as coisas andavam como queria. Toda a energia de seu corpo explodia. Sentia a garganta apertar-se mais quanto mais perto chegava: - Desta vez meu corpo inteiro a deseja. Otimo. Aconteceu de, nos ultimos dias, ele ter perdido todo 0 desejo assim que se aproximava daquela mulher. A crispa~ao passava da garganta para 0 estomago. Via-se enta~ desprovido de qualquer em~ao, 0 que 0 deixava quase louco. Agora, no entanto, era bem diferente. "Se Samira morasse numa rua comum, ela me pouparia 0 caminho por estes becos tristes. Por que ela nao mora numa casa facit de urn taxi atingir?" Ele via passar os rostos, que ja escasseavam quando se enfiou pelo ultimo beco. Parecia-lhe ridiculo que todas essas pessoas vivessem tao perto de Samira sem que lhes passasse pela cab~a que ele ia se encontrar com ela. Reprimiuum sorriso cheio de sarcasmo ao pensar que muitas delas talvez a conhecessem. Caso se deixasse arrastar pelas coisas que ia imaginando enquanto andava, deteria cada urn dos homens com quem cruzava, agarrando-os pelos omb.ros e gritando: - Seus pobres imbecis! Mas por que Samira nao vivia numa rua acessivel a automoveis? "Talvez ela tenha medo da policia. Talvez nao tenha dinheiro suficiente. Nao importa. Importa que e urn lugar esp~oso, confortflvel, e que Samira ... " Seu corpo continuava ardendo de desejo, 0 que lheproporcionava uma sens~ao de alegria indizivel. Logo viu 0 gato. Estava sentado numa esquina molhada do beco, com 0 rabo inerte, 0 pesc~o esticado,
olhando para as pessoas com seus olhos redondos im6veis. Era meio estranho para um gato. Assim que 0 viu, antes de passar pelo animal, uma pergunta ingenua the passou pela cab~a: - Por que esse gato nao se mexe? Poderia deixar a pergunta sem resposta, mas. ao chegar perto do bicho nao conseguiu. Deu uma volta ao redor dele procurando uma explica~ao. Entao viu. As patas traseiras esmagadas, estendidas sobre a terra. 0 sangue, mesc1adoaos pelos, estava seco e as patas arrebentadas pareciam nao pertencer ao resto do corpo. Rodeou outra vez 0 animal e observou seus olhos: vislumbrou neles uma pungente mistura de esperan~a e resigna~ao. Sentiu um tremor que 0 sacudiu da cab~a aos pes. Completou os ultimos passos.que 0 separavam da casa de Samira pensando que nao poderia esquecer aquilo. Bateu a porta, abra~ou Samira e como de costume sentou-se diante dela. Quanto mais a olhava, mais s~ sentia atordoado. Como uma estatua enfeiti~ada, ela 0 seduzia a distancia; mas, de perto, era apenas um bloco de pedra. Nao dizia nada a voce. Com certeza, havia uma explicac;ao para isso. Por que voce se sentia atraido por essa estatua se ela era somente... ? Elaera somente 0 que? Ele sentia vontade de abra,r;ar essa estatua, 0 desejo de dissolver-setodo nela. Esse desejo inundava seu peito. A crispac;ao·na garganta era agora a sensac;ao de um corte. - Seu rosto esta muito palido - diz ela. - Voce ~sta doente? - Eu? A pergunta desaba de repente. Foi, com certeza, um carro veloz que esmagou as patas do gato. Mas como um carro havia conseguido passar por aquele beco?
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Voce esta. doente? Seu rosto esta. ficando inais branco ... Quer urn cha.? - Cha? Nao. Diga uma coisa. Um gato com as patas traseiras esmagadas poderia se arrastar desde a entrada darua ate .•. metade do caminho daqui, bem onde fica 0 chafariz? - Urn gato, se arrastar? 0 que e que voce tern? Esta com febre? Ela se levanta para preparar 0 cha, enquanto ele come~a a pensar que realmente pode estar com febre. Passando as costas da mao pela testa, sente 0 suor abundante. Estica 0 corpo na poltrona e se esfor~a para pensar em outra coisa. o quarto de uma put a tern cheiro caracteristico, urn cheiro que deve vir de alguma coisa em particular. Da cama? Das cortinas? Ou seria seu proprio nariz? Nao. E urn cheiro definido, reconheclvel. Ele 0 sentia, farejando cO,mose fosse urn cao de ca~a ... Um cao ... Mas como e que 0 gato chegou ate a metade do beco? Ele se endireita na poltrona. Samira voita com 0 chao Usava uma camisola rosada. Olhando para 0 corpo dela, percebe que nao a deseja realmente. - Estava pens an do em sua pergunta - ela diz. - 0 gato estava morrendo? Acho que sim. Ele estava espetando, pelo Nesse caso, ele se arrastou ate ali para morrer. E por que quis morrer nesse local? Pergunte a ele... Eu nao sou urn gato! Ela ri, com a vulgaridade de seu personagem. Depois se senta ao lado dele, pondo 0 brac;o muito branco sobre seus ombros. - Mas que forc;a deu impulso a ele para se arrastar da entrada da rua ate 0 chafariz? - pergunta ele.
Levanta-se a seguir e sacode a cab~a, como que· rendo espantar 0 pensamento que a ocupava. Da alguns passos pelo quarto, procurando pensar em alguma coisa menos tenebrosa. - Por que voce mora aqui? Por que nao procura uma casa comum, na rua, para evitar que seus clientes venham por esse beco deprimente? Ela ri outra vez. Levanta-se da poltrona e estende o corpo na cama, simulando cans~o. Depois, responde, observando-o com 0 canto dos olhos: - 56 chegam ate aqui os que me querem de ver~ade ... Quem nao tem nenhuma atr~ao por mim com certeza vai achar cansativo fazer esse longo caminho pelo beco. Vai preferir nao vir. Quando alguem me quer, como voce, ele faz 0 caminho ... Ele enfia as maos nos bolsos da cal~a e recom~a a caminhar pelo quarto. Sua cab~a estava agora completamente vazia. 5entia nauseas. "Quando alguem me quer, como voce, ele faz 0 caminho. " Olbou para a parede. Queria esmagar a frase que ecoava dentro de seu cramo como 0 uivo de um lobo desesperado. Havia urn quadro pendurado alL Vma queda d' agua espumante. Sob 0 quadro, uma mulher nua, sem cab~a, feita de martnore barato. Estava sobre uma mesa. Atras da mesa, uma cadeira, um espelbo, a cama. Samira estava deitada, fumando. Ouviu a voz, em que ela parecia colocar toda sua sensualidade para provoca-lo: - Quando alguem me quer, como voce, ele faz 0 caminho ... - Entaoeisso? -Como? Isso 0 que? - 0 gato arrastou-se ate 0 chafariz com as patas traseiras esmagadas ... para morrer all? Ela se ergue da cama e grita, revelando sua magoana voz:
Que esta havendoeom voce hoje? Esta maIuco? Nunea vi voce desse jeito antes ..• Quem pensa' que eu sou, uma professora? Para fiear com essas perguntas ... perguntas ... A voz de Samira ainda eeoava em seus ouvidos muito depois _queele deixou 0 dinheiro sobre a mesa e saiu eaminhando pelo triste beeo.