O Campinho A Noticia

  • November 2019
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A NOTÍCIA Vocês ouviram falar do pai de Alcides, iniciou a conversa Mateus Já. Uns dizem que desapareceu. Outros, que foi viajar, respondeu Toninho. Nada disso, atalhou Roberto, ouvi minha mãe falando, que ele saiu de casa para morar com outra mulher. Todos sentiram algo por dentro. Ninguém acreditava que isso aconteceria com um deles, porém o pai de Matias, da zona de baixo, também desaparecera. Depois descobriram: andava com outra. As possibilidades de acontecer com um deles, iam diminuindo. - Será que o pai do Tedesco também arrumou outra lá em São Paulo? São Paulo não, Rio, lá, as mulheres são bonitas e andam de biquíni nas ruas, comentou Mateus. - Você é doido mesmo, não é? Se Tedesco ouve uma coisa dessas, você vai ser um doido morto, atalhou Toninho. - Mas, que as viagens dele são muito demoradas, são, completou Mateus. - Vocês sabem o que mais eu ouvi falar? Roberto voltou ao assunto. - O que? - A mãe do Alcides anda dando para o leiteiro. Isso sim era muito interessante. Atiçava a imaginação de todos. Então o pai foi morar com outra, e o leiteiro anda comendo a mãe. A história precisava ser conferida, e, então, alguém propôs. - Amanhã cedo, na hora do leite, vamos dar uma espiada na casa dele? - Vamos! No dia seguinte, do alto do barranco do campinho, onde se conseguia ver a casa de Alcides, lá estavam os três, com frio e ainda sonolentos, às 7:00 horas da manhã. Antes, haviam passado em frente da casa para ver se havia algum detalhe incriminador. O leiteiro era o mesmo que entregava leite em quase todas as casas. Agora, muitas padarias e armazéns iniciaram a venda do leite em litros de vidro ou em sacos plásticos. O leiteiro transportava o leite em tonéis e usava uma carroça de um eixo, tipo charrete, puxada por uma mula de cor acinzentada. Ela estava acostumada com o trabalho, quando o leiteiro despejava o leite do tonel para uma vasilha e caminhava para a casa do freguês, saía sozinha e parava junto ao portão da próxima casa, esperando por ele. A carroça dobrou a esquina, e o leiteiro iniciou a distribuição naquela rua. Em muitas casas, a vasilha era deixada na porta, ele a enchia, colocava a tampa e voltava para a carroça. Na casa de Alcides, não havia nenhuma vasilha. O leiteiro contornou a casa e foi bater na porta dos fundos, a da cozinha. Entrou, não sem antes dar uma olhadinha para os lados. Os três também se olharam admirados. Toninho não teve dúvidas, desceu o barranco e foi para a casa de Alcides. Os outros o seguiram. A mula já estava parada na frente da casa ao lado. Tentou fazer com que o animal andasse, mas sem sucesso. Então, fingiu mexer nos latões de leite atrás da carroça, depois emitiu o som usual que o leiteiro incitava a mula que foi enganada e saiu caminhando, com seu passo lento, até a próxima casa. Mateus ficou para trás observando a casa, enquanto eles assumiram o controle da mula. Subiram na carroça e dobraram a esquina, levando-a para bem longe, fora do itinerário normal. Voltaram correndo, entraram pelo terreno da casa vizinha à de Alcides e foram para os fundos, numa posição em que podiam ver a porta da cozinha. -

Ficaram escondidos esperando. Não precisaram esperar muito. O leiteiro saiu pela porta com a vasilha vazia. Ninguém o acompanhou até a porta. Naquele dia, muita gente recebeu o leite atrasado. A mula, sentindo-se perdida, saiu andando, e o leiteiro demorou muito para localizá-la. Mateus e Toninho ficaram esperando-o passar em suas casas e recusaram o leite, por pura sacanagem. Alegaram ser muito tarde e não precisarem mais dele. No final do mês iriam abater da conta. O pobre homem falava e falava para se explicar. Era por isso que não gostavam dele, falava muito, era um prosador. Desconfiavam ser água parte do latão de leite. Não era possível produzir, todos os dias, aquela quantidade. Agora possuíam um trunfo na rivalidade com a turma da zona de cima, que aparentava um ar de superioridade que os incomodava em tudo. Alcides era de lá, e sempre estavam se cutucando. Moravam nas melhores casas e, alguns de seus pais. Possuíam automóveis. Ganhavam os melhores brinquedos e sempre venciam as competições. - E suas mães são as maiores putas, completava Mateus. Eles ficavam incomodados com certos brinquedos. Enquanto os carrinhos de lomba de Toninho e sua turma eram toscos e com três rolamentos, deslocavam-se pesados, atritando contra as pedras da rua ou das calçadas, fazendo a bunda tremer com a maior barulheira, os da zona de cima eram fabricados com quatro rodas, feitas com madeira maciça e embuchadas com rolamentos blindados. Eram revestidas externamente com borracha. Além de não fazer ruídos, o carro possuía uma enorme aderência e estabilidade, já que o eixo dianteiro era bi-articulado com um mecanismo de ferro, o que permitia um jogo de toda a carroceria na irregularidade das ruas. Contava, ainda, com sistema de freio eficiente, não quebrava à toa e uma borracha no lugar do assento evitava a bunda deslizar. Eram pintados com perfeição: vermelhinhos com branco, amarelos com verde, e com adesivos de carros esportivos colados. Carlinhos ganhou a competição organizada pela Prefeitura, na descida da Visconde. Usou uma dessas maravilhas tecnológicas imbatíveis. Além de todos esses recursos, o carro fora projetado com rodas um pouco maiores, e com a tábua, usada como corpo e assento, rebaixada rente ao solo. - Para reduzir o centro de gravidade, comentou professoralmente Carlinhos. - O que é centro de gravidade? perguntou Cabecinha ao seu irmão. - Cala a boca, respondeu Cabeça, não queria passar por ignorante. Com isso, ele quase não reduziu a velocidade, passou zunindo rente ao meio fio na curva acentuada no meio da descida. Chegou bem à frente do segundo colocado, também da zona de cima, mas que não estava equipado com aquele recurso. Todos os outros adversários da cidade ficaram bem para trás. Eles não deixavam ninguém experimentar os carrinhos. Isso deixava Toninho puto da cara. - Olhar pode, sentar não, decretou Carlinhos, orgulhoso do seu bólido. Toninho e Roberto trabalharam duro, durante uma semana, na construção de um novo carrinho. Também usaram rodas de madeira, com rolamentos usados. Eles conseguiram alguns numa oficina mecânica, tinham uma folguinha, mas dava para aproveitar. O carro foi até bem na largada, mas na curva a roda saltou do rolamento, e ele saiu de lado. Não se espatifou, junto ao meio-fio, porque haviam colocado uns pneus de automóvel para a proteção. Tedesco olhou com desdém para os carros dos adversários e perguntou a Carlinhos. - Foi o seu pai que fabricou, lá onde ele trabalha?

A pergunta poderia ser embaraçosa para outros, mas não era para os meninos da turma da zona cima. - Claro, lá tem tudo, mas nós fizemos a montagem, respondeu Carlinhos. - Então, vocês só sabem apertar parafusos! rebateu Tedesco. - Você está com inveja! Por que não manda seu pai fazer um igual? Tedesco engoliu seco e saiu remoendo a raiva. Não havia jeito de ganhar essa. Fabricar um carrinho daqueles exigia investimento, gastar um bom dinheiro para comprar o material e pagar um mecânico para fazer as peças. Decidiu que, no próximo ano, não participaria da corrida da Prefeitura. Isso reduziria a glória dos adversários, aliás, não estava mais a fim de brincar com carro de lomba, pelo menos agora. Da mesma forma eram os patinetes. Os seus fabricados com duas tábuas, uma na vertical servindo para fixar a direção e a roda dianteira, outra, na horizontal. Unidas por uma articulação, que quebrava facilmente, deslizavam pesado. Os da turma da zona de cima eram leves e ganhavam modificações nas rodas, direção e com uma peça bem feita na articulação. Tudo isso aumentava a eficiência dando uma maior velocidade. Tedesco e sua turma, quando queriam fazer novos estilingues, iam até o mato procurar nas árvores os galhos com as melhores forquilhas. Cortavam e retiravam a casca deixando-a secar para, depois, fazer a amarração com borracha de câmara de bicicleta, que eles imploravam para ganhar do borracheiro. Mesmo sendo usada queriam cobrar por ela. Os pedacinhos de couro flexível, para a atiradeira, conseguiam no sapateiro da esquina que, também, queria cobrar. A turma da zona de cima não ia até o mato para conseguir forquilhas. Eram feitas de barras de aço inoxidável, conseguidas pelos seus pais. O inox era usado só para ficarem mais bonitas. As borrachas e o couro, eles os compravam do sapateiro e borracheiro, eles ficaram mal acostumados e não queiram dar esse material. A maioria dos meninos da turma da zona de cima não estava mais freqüentando o Campinho para brincar nas horas de folga da escola. Não estudavam na escola do campinho, é claro, freqüentavam os colégios particulares do centro da cidade. Mesmo assim, o lugar para se brincar era ali, até que um dia Tedesco encontrou Marcelo, que ele até aturava, e convidou. - Vamos lá para o campinho brincar de pipa? - Não, você não viu o filme que vai passar hoje na TV? Não posso perder esse capítulo do seriado. Talvez, no sábado à tarde, eu apareça por lá. Então, tudo ficou claro, eles já possuíam um aparelho de televisão. Estavam trocando a rua pela casa. A curiosidade o deixou desassossegado, queria ver como era. Televisão ele já conhecia, em algumas lojas da avenida elas estavam na vitrine, ligadas para atrair os compradores. Como era ver um filme na televisão? E os desenhos? - Ainda não tenho televisão, meu pai vai comprar uma quando voltar de São Paulo, justificou-se. No campinho sempre se organizavam partidas de futebol. Tedesco tinha o seu time, jogava muito bem e sempre ficava entre os melhores. No campeonato deste ano nomearam uma comissão organizadora formada por adultos. O campeonato contaria com a participação de times de bairros distantes. Realizar-se-ia uma preliminar, e os quatro times vencedores fariam a final. No sorteio, o time de Tedesco e o de Alcides caíram na mesma chave. Tedesco achou muito bom, assim iriam ter um confronto e uma revanche, para mostrar quem era o melhor. - Vamos ganhar no jogo e no pau, incentivava o seu time.

O time de Tedesco ganhou as duas primeiras partidas contra adversários fracos e, no sábado à tarde, enfrentaria o time de Alcides, equipadíssimo com camisetas e chuteiras novas. Eles jogavam calçando velhos tênis tipo conga ou kichute. Vavá, que era o melhor jogador do time, descalço. Dizia preferir assim. A partida andava apertada. Apesar de o time de Tedesco jogar melhor, o jogo estava empatado em 1 x 1, e eles começavam a se cutucar pesado, com pontapés e empurrões, até que Vavá driblou dois adversários e entrou na área. Todos gritaram: - Chuta, Vavá! Quando foi chutar e fazer o gol, Alcides calçou seu pé por trás. Foi pé descalço contra chuteira nova. O juiz marcou pênalti. O pé de Vavá inchou, e ele também de tanta raiva. Não conseguiria mais jogar. Alcides queria levar o juiz na conversa e não queria deixar bater o pênalti. Aí, Vavá se levantou do chão, onde ficara se contorcendo de dor e partiu para os finalmente, gritando bem alto: - Seu filho da puta! Sua mãe é a maior puta da cidade, ela anda dando pro leiteiro! Passaram-se aqueles segundos em que tudo fica parado, para todos absorverem a notícia, se olharem, e verem se aquilo estava acontecendo de fato. Então, Alcides partiu contra Vavá, e todos foram entrando na briga. Saía socos e pontapés para todos os lados, foram apartados pelo juiz e pelos mais velhos. Os saldos da briga foram amplamente favoráveis ao time de Tedesco, batiam melhor, estavam mais acostumados com brigas. Bastava conferir os hematomas e a quantidade de sangue no rosto dos adversários. O resultado da partida, que foi cancelada, ficou para ser decidido pela comissão organizadora, e ela resolveu desclassificar, por indisciplina, os dois times. A turma de Alcides foi embora. Tedesco continuou no campinho. A única baixa foi Vavá com seu pé inchado. Cada um contava a sua história, e de como havia batido no adversário. Toninho estava contando a sua: - Aí, eu me desviei do soco e dei um joelhaço bem no saco. Ele se agachou, colocando as duas mãos para segurar as bolas. Recuei e bati bem no nariz, então, ele foi parar no chão zonzo de dor, com sangue saindo pelas ventas. Ainda dei um pontapé na boca do estômago. Agora, ele deve estar no colo da mamãe chorando. Todos estavam rindo quando Toninho sentiu uma pedrada nas costas e gritou de dor. Eles se voltaram e avistaram toda a turma da zona de cima, subindo o campinho. Alcides juntara todos os meninos da sua zona. Vinham armados até os dentes, com pedras nas mãos, estilingues e arco e flecha. Carlinhos carregava sua besta pendurada no ombro. Começaram arremessar as pedras das mãos, depois, puxaram os estilingues e mandaram mais pedras. Pegos de surpresa, desarmados e em menor número, espalharam-se para tentar dispersar o ataque. Ficou impossível reagir às pedras que chegavam com força e precisão. Então, só restou a humilhação de correr, fugindo campinho abaixo na direção de suas casas. Perseguidos por pedras e flechas, todos receberam alguma. A estratégia de um ataque maciço e de surpresa, com todos os armamentos, funcionara. Os meninos da zona de cima comemoraram entusiasmados a vitória. Não esperaram no campinho, foram logo embora com medo da revanche. Fora apenas uma batalha na guerra anunciada. Esperavam-se muitas outras. A tensão estava no pico. A turma da zona de cima sabia que perderia se os enfrentassem em igualdade de condições, e então, não foi mais ao campinho. A televisão lhes bastava, até que Mateus soube e contou a novidade: - Alcides não mora mais lá. Foi morar com o pai em Santa Catarina. Todos ficaram consternados. Agora, não iriam mais poder continuar a briga, perdera a graça.

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