UNI VER S I DADE CAT ÓL I CA DO S AL VADOR I NS T I T UT O DE CI ÊNCI AS B I OL ÓGI CAS DEPAR T AMENT O DE F UNDAMENT OS E MÉT ODOS
Monogr af ia
ET NOCONS E R VAÇÃO DA NAT UR EZ A E S AB E R E S T R ADI CI ONAI S NO VAL E DO PAT I CHAPADA DI AMANT I NA, B AHI A
T HI AGO MOT A CAR DOS O Or ient ador a: PR OF A. MS C. MYR T T HÂNI A DE S OUZ A CR U Z Co- or ient ador a: T AT I ANE F R E I T AS COEL HO
S alvador 2003
UNI VER S I DADE CAT ÓL I CA DO S AL VADOR I NS T I T UT O DE CI ÊNCI AS B I OL ÓGI CAS DEPAR T AMENT O DE F UNDAMENT OS E MÉT ODOS
ET NOCONS E R VAÇÃO DA NAT UR EZ A E S AB E R E S T R ADI CI ONAI S NO VAL E DO PAT I CHAPADA DI AMANT I NA, B AHI A
T HI AGO MOT A CAR DOS O Or ient ador a: PR OF A. MS C. MYR T T HÂNI A DE S OU Z A CR UZ Co- or ient ador a: T AT I ANE F R E I T AS COEL HO
Monogr af ia apr esent ada à B anca Examinador a, como exigência par a a obt enção de cr édit o par cial na disciplina B I O375 Ciências do Ambient e de L icenciat ur a em Ciências B iológicas, sob a or ient ação da Pr of a. Msc. Myr t T hânia de S ouza Cr uz e co-or ient ação de T at iane Fr eit as Coelho.
S alvador 2003
C268 Cardoso, T hiago Mota Etnoconservação da natureza e saberes tradicionais no Vale do Pati, Chapada Diamantina – Bahia. Salvador: UCSal, 2003. 104p. Monografia apresentada como exigência para a obtenção de crédito parcial na disciplina BI O375 Ciências do Ambiente na Graduação do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Católica do Salvador. 1. Parques Nacionais 2. Meio ambiente 3. Ecologia Social 4. Sociedade 5. Natureza 6. Populações T radicionais 7. Etnoconservação I .T ítulo CDU: 574
B ANCA E XAMI NADOR A P r of. F r ancisco José B ezer r a S out o. Universidade Estadual de Feira de Santana Ana Mar ia R ocha de Almeida. Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual de Feira de Santana L eonar do Mar ques P acheco. Universidade Estadual de Feira de Santana I nstituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
DEDI CAT ÓR I A
Dedico aos meus pais, Paulo e Ver a, que me colocar am nest e planet a e possibilit ar am t odas as condições necessár ias a r ealização dest e t r abalho. A t odos os mor ador es do Vale do Pat i, que me pr opor cionar am um apr endizado impar , me apr esent ando a ver dadeir a f ace da natur eza humana, a solidar iedade e o r espeit o. A t odas as comunidades humanas que lut am cont r a t odas as f or mas de opr essão e buscam a liber dade, a uma vida mais digna e a af ir mação da ident idade. A t odos os cient ist as engajados na constr ução de um mundo melhor .
AGR ADECI MENT OS Est e t r abalho não ocor r er ia sem a aj uda dos amigos. Gost ar ia de agr adecer as belas pessoas do Vale do P at i, especialment e ao S r . E duar do, Dona L ica , Dona Elenice, Vit or , Domingos, Viviane e Vir lene, que me acolher am de f or ma muit o amável. Ao S r . Massur , Jóia e L eu, B ezo e L inda, a T onho e L oma pelas boas conver sas e acolhiment o nas hor as necessár ias. Agr adeço t ambém as cr ianças pelas inf or mações e alegr ia, que fez o t r abalho ser mais pr azer oso. Agr adeço em especial a amiga e pr of essor a T at iane Coelho, que me “int r oduziu” no mundo pat izeir o e me f ez r ef let ir sobr e a impor t ância de ser comunit ár io. A minha quer ida or ient ador a Myr t T hânia, que me deu t ot al liber dade par a a pr odução dest e t r abalho. Não poder ia esquecer dos amigos do Gr upo Moviment o pelas const ant es e pr azer osas r ef lexões f ilosóf icas e ações ecosociais, em especial B r uno Mar chena,. E a amiga e companheir a da et noecologia, L eidiane Vieir a, pelos debat es e r ef lexões t eór icas. Agr adeço t ambém a Maj br it t Meincke pelo apoio bibliogr áf ico. A t odos muit o obr igado!
S UMÁR I O Pág RESUMO LI ST A DE FI GURAS LI ST A DE T ABELAS LI ST A DE FOT OGRAFI AS 1. I NT RODUÇÃO
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2. LOCALI ZAÇÃO E DESCRI ÇÃO DA ÁREA
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3. MET ODOLOGI A
22
4. EST ADO DA ART E 4.1. Sociedade e Natureza 4.2. Parques Nacionais: uma crítica necessária 4.2.1. Os Parques Nacionais no Brasil 4.2.2. O Parque Nacional da Chapada Diamantina 4.3. Populações T radicionais e Biodiversidade
25 25 30 37 44 47
5. O VALE DO PAT I 5.1. A História 5.2. A Cultura 5.3. Sentidos e Configurações da Paisagem 5.4. Conexões Bioculturais: Manejo dos Ecossistemas Naturais no Vale do Pati 5.4.1. I nterações com a Floresta 5.4.2. I nteração com a Fauna 5.5.Sistema de Acesso a T erra e aos Recursos Naturais
53 53 56 60 65 65 78 85
6. CONFLI T OS NA CONSERVAÇÃO: UM PONT O DE VI ST A
87
7. ECOLOGI A SOCI AL E ET NOCONSERVAÇÃO NO VALE DO PAT I
90
8. CONCLUSÕES
98
REFERÊNCI AS BI BLI OGRÁFI CAS
100
R ES UMO O Vale do Pati fica no coração do Parque Nacional da Chapada Diamantina, entre as Serras do Rio Preto e a Serra de Andaraí, na chamada Chapada Diamantina Meridional. O Vale do Pati é revestido pela Floresta Estacional Sempre Verde, possui uma rica fauna e abundância em recursos hídricos. Este trabalho apresenta uma descrição das práticas de manejo dos ecossistemas, pelos moradores do Pati, num contexto de interação biocultural e conflito social, propondo estratégias etnoconservacionistas. A metodologia, advinda da etnoecologia, busca um equilíbrio entre a abordagem ética e êmica na descrição do modo de vida tradicional, numa tentativa de atingir a interação entre o corpus, a práxis e o cosmos. Utilizamos a técnica do aprendizado vivencial, intercalada com entrevistas semiestruturadas, análise bibliográfica e de escritos da escola local, para posterior análise qualitativa. T anto o modo de vida, quanto os sistemas culturais, simbólicos e as formas de sociabilidade dos moradores do Pati são singulares. Estas pessoas se adaptaram e recriaram sua cultura, criando um modo de vida com uma miscigenação da cultura africana, dos grupos populacionais que adentraram o sertão da Chapada Diamantina e com grupos de europeus de cultura portuguesa, já mesclados da forte presença indígena. T al flexibilidade cultural influenciou nas práticas de manejo dos ecossistemas locais. A paisagem no Pati é descontínua, marcado por áreas florestais, capoeiras e roçados, onde o espaço e o acesso aos recursos naturais são em parte familiares e comunais. A paisagem construída pelo dinamismo natural e pela interação mutualistica entre a cultura e a natureza pode ser descrita como uma verdadeira paisagem em mosaico. A população combina atividades de policultura (Agricultura itinerante e pomares), extrativismo vegetal e caça. Estas atividades visam o uso familiar, a troca, a venda e também suprir os festejos locais. Hoje o ecoturismo aparece como uma atividade econômica importante para os moradores, apesar dos impactos culturais e ambientais decorrentes. Esta combinação de práticas e usos dos recursos naturais é uma forma de utilização do ecossistema segundo suas características e de acordo com os “ciclos naturais”. Existe no local uma extensa taxonomia Folk. Ao profissional da conservação cabe reforçar a cultura local, através da valorização dos conhecimentos e práticas tradicionais e do apoio a automobilização dos moradores, neste sentido a educação libertadora possui um papel relevante. A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina criou um conflito entre o espaço publico e o espaço comunitário segundo perspectivas e visões opostas de uso da terra. De um lado o Estado, representando uma elite urbana, reivindicando o espaço para preservação dos recursos naturais e das belezas cênicas e, de outro, a população do Pati, que teria que sacrificar seu modo de vida abandonando compulsoriamente seu território.
L I S T A DE F I GUR AS Figur a 1 Figur a 2 Figur a 3 Figur a 4 Figur a 5 Figur a 6 Figur a 7
-
Localização do Vale do Pati no interior do Parque Nacional da Chapada Diamantina Localizações significativas no Vale do Pati, segundo os moradores do Pati de Baixo Desenho dos Rios do Vale do Pati Homo sapiens - Unidade Biológica e Diversidade Cultural Unidades de Conservação de Proteção I ntegral no Brasil Desenho da Paisagem no Pati de Baixo Mapa da localização de alguns componentes da fauna local
16 17 18 29 40 62 83
L I S T A DE T AB EL AS T abela 1 T abela 2 T abela 3 T abela 4 T abela 5
-
Árvores identificadas pelos informantes no Pati de Baixo Extrativismo: espécies vegetais utilizadas Ervas e árvores utilizadas em pomares e hortas Principais representantes identificados de mamíferos e répteis Avefauna
63 67 70 80 81
L I S T A DE F OT OGR AF I AS Fot ogr af ia 1 - Mata Ciliar Fot ogr af ia 2 - Vale do Pati pela Ladeira do I mpério Fot ogr af ia 3 - Morador do Pati de Baixo na ladeira do I mpério Fot ogr af ia 4 - Pati de Cima Fot ogr af ia 5 - Ruinha no Pati de Cima Fot ogr af ia 6 - Gerais do Vieira Fot ogr af ia 7 - Morro do Castelo Fot ogr af ia 8 - Cachoeira do Calixto Fot ogr af ia 9 - Cachoeirão Fot ogr af ia 10 - Dona Lica, moradora do Cachoeirão Fot ogr af ia 11 - Sr. Eduardo, morador do Cachoeirão Fot ogr af ia 12 - Dona Elenice. Moradora do Cachoeirão Fot ogr af ia 13 - Sr Massur, morador do Pati de Baixo Fot ogr af ia 14 - Área de roçado Fot ogr af ia 15 - Área florestada Fot ogr af ia 16 - Victor e Coquinho num processo de Extração de I mbira Fot ogr af ia 17 - Victor e Coquinho num processo de Extração de I mbira Fot ogr af ia 18 - Victor e Coquinho num processo de Extração de I mbira Fot ogr af ia 19 - Pomar existente na moradia do Sr. Bezo Fot ogr af ia 20 - Pomar existente na casa do Sr. Massur Fot ogr af ia 21 - Dona Lica retirando amostras de ervas Fot ogr af ia 22 - Dona Lica retirando amostras de ervas Fot ogr af ia 23 - Processo de limpeza do terreno Fot ogr af ia 24 - Roça de mandioca Fot ogr af ia 25 - Processo de fabricação da farinha Fot ogr af ia 26 - Processo de fabricação da farinha Fot ogr af ia 27 - Processo de fabricação da farinha Fot ogr af ia 28 - Processo de fabricação da farinha Fot ogr af ia 29 - Processo de fabricação da farinha Fot ogr af ia 30 - Cobra Rabo de Fogo Fot ogr af ia 31 - Sr. Eduardo alimentando as galinhas Fot ogr af ia 32 - Reunião da ASCOPA Fot ogr af ia 33 - Escola Comunitária do Cachoeirão
19 19 19 20 20 20 21 21 21 58 58 59 59 64 64 68 68 68 71 71 72 72 76 76 77 77 77 77 77 84 84 97 97
1. I NT R ODUÇÃO A diversidade biológica dos trópicos pode ser perdida de forma irreversível devido à extinção em massa (WI LSON, 1986). I sto se torna preocupante devido a inteira dependência que os seres humanos possuem da biodiversidade1 para manter diversos processos vitais, econômicos e médicos, além da contribuição desta para a manutenção da complexidade ecológica de nosso planeta (MYERS, 1986). Segundo SHI VA (2001), as principais causas da deterioração em grande escala da biodiversidade
são:
a
Destruição
dos
habitats,
devido
a
projetos
financiados
internacionalmente (barragens, rodovias, indústria química, madeireiras, pastagens, minas e aqüiculturas)
e pressão tecnológica e econômica para substituir
diversidade por
homogeneidade na silvicultura, na agricultura, na piscicultura e na criação de animais. A devastação da biodiversidade dá ínicio a uma reação em cadeia. O desaparecimento de uma espécie ocasiona a extinção de inúmeras outras, ligadas pelas interações ecológicas (SHI VA, op.cit). Para a autora, a biodiversidade sempre foi um recurso local comunitário, porém apropriado pela iniciativa privada e Estados. E um recurso é propriedade comunitária quando existem sistemas sociais que o utilizam segundo princípios de justiça e sustentabilidade. A crise da biodiversidade, assim como a destruição da natureza em escala global apontam para uma possível ruptura de parte da sociedade com o meio. A sociedade industrial capitalista, ao contrário de muitas outras sociedades não estatais e de muitas populações tradicionais, está destruindo as bases de sustentação das comunidades humanas e naturais justamente por impor a força, um modo de produção crescente, não adaptado às condições ecológicas (FERREI RA, s/d). A sociedade capitalista é caracterizada principalmente pela hierarquização das relações sociais, pela propriedade privada e pela competitividade. Esta tríade oferece todas as condições para uma ruptura com a natureza. O domínio do homem pelo homem e, na mesma lógica, o domínio da natureza, proporcionado pela hierarquização, abre as portas para a instituição da propriedade privada, para a exploração e a implantação de um regime baseado no crescimento econômico competitivo (BOOKCHI N, 1993; GONÇALVES, 1998). Esta abordagem, que aponta a origem da crise ambiental, como fruto de sociedades hierarquizadas (como a sociedade capitalista), rompe com a noção genérica de 1
O termo biodiversidade ou diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte, compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas (PROBI O, 2001).
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“homem destruidor”, presente no discurso de muitos preservacionistas, que culpabilizam a humanidade pela crise ecológica e da biodiversidade, justamente pelo seu intrínseco crescimento populacional e pelo uso de tecnologias nocivas. Uma das estratégias propostas pelos preservacionistas, voltadas para reativar a natureza contra as ações humanas, seria a criação de áreas naturais protegidas onde estes não poderiam morar. A natureza selvagem (Wilderness) significaria “dar a vida” ao mundo natural para que este se expanda sem intervenção humana. Esta noção de áreas protegidas não teria bons resultados na prática, pois pressupõe uma separação entre a natureza e o homem e a noção de natureza intocada (COLCHEST ER, 1997; ARRUDA, 1998; DI EGUES, 2001). A concepção de áreas selvagens é uma proposição das elites urbanas, já estressadas pela vida degradante das cidades, que advogavam áreas livres das atividades humanas, com belezas cênicas que pudessem ser visitadas e desfrutadas... um retorno ao natural, mesmo num círculo de destruição!. No Brasil, e em grande parte dos países dos trópicos, a implantação de áreas naturais protegidas foi conflitante, pois a importação deste modelo norte-americano não levou em conta o contexto sociocultural existente. As florestas tropicais são manejadas de forma sustentável por populações tradicionais há séculos. E a implantação destes modelos de área protegida foi de encontro com esta realidade através da expulsão dos nativos ou restringindo o uso dos bens naturais (DI EGUES, 2001). A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, motivada pelas belezas cênicas e para incentivar a industria do turismo (FUNCH, 1997), foi feita sem a mínima consideração com as populações tradicionais que vivem em seu interior (SEABRA, 1998). Soma-se isto a insuficiente quantidade de estudos relevantes, que darão base à criação da área protegida na Chapada Diamantina, principalmente no Vale do Pati. Os moradores do Vale do Pati constituem uma cultura singular, com elementos indígenas (agricultura de pousio, alimentação, etc), dos negros (religião, alimentação, etc) e da cultura portuguesa já marcada fortemente pela presença indígena . Poderiam ser descritos como sertanejos, segundo a classificação antropológica vigente, mas esta miscigenação e as práticas utilizadas no Vale do Pati, não condizem com a realidade cultural desta população. Os patizeiros estão integrados à natureza e manejam o território através de técnicas adaptadas à ecologia local. A interação com a floresta é feita através de práticas extrativistas, da roça de derrubada-queima e plantio e dos pomares agroflorestais. A interação com a fauna se faz através de elementos mitológicos, da caça e da domestificação.
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A população do Pati possui um vasto conhecimento sobre os ecossistemas locais, adquirido pela experiência prática passada de geração em geração oralmente. O sistema de propriedade comunal2 começa a entrar em conflito com a concepção de Parque Nacional livre da presença humana. O território passa a ser reivindicado à força das leis pelo Estado, com base num saber cientifico preservacionista que não leva em conta o saber tradicional. As populações tradicionais vivem integradas a natureza, porém podem passar a ter práticas destrutivas. I sto se dá quando ocorre expropriação territorial ou inserção destas no mercado capitalista (DI EGUES, 2001). Mas mesmo esta situação não justificaria a expulsão e a manutenção do mito da natureza intocada. A ecologia têm de ser trabalhada não só na relação direta entre as sociedades e a natureza, mas fundamentalmente nas relações sociais, indicando a necessidade de estratégia baseadas na Ecologia Social e na Etnoconservação (BOOKCHI N, 1998; SARKAR, 1998; DI EGUES, 2000) O “saber” e o “saber fazer” tradicionais devem ser levados em consideração nas estratégias de conservação. Estas populações podem ser aliadas no processo penoso de defesa e restauração da biodiversidade contra as ações do mundo capitalista. Este trabalho objetiva realizar um estudo geral do modo de vida do patizeiro, os saberes e suas práticas de interação com o ambiente, propondo uma estratégia de etnoconservação local. I sto exigiria uma contextualização do conflito entre a comunidade do Vale do Pati e o Parque Nacional da Chapada Diamantina. Especificamente objetiva-se:
compreender as condições básicas da relação
sociedade/natureza; discutir criticamente sobre as Unidades de Conservação de Uso restrito; apresentar algumas definições sobre populações tradicionais; descrever de forma geral a cultura patizeira, as interações com a floresta e a fauna local, o sistemas de acesso a terra e aos bens naturais e o “saber fazer” sobre a paisagem no Vale do Pati; gerar dados que fundamentem proposta de etnoconservação no Pati.
2
Na Propriedade comunitária ou comunal, todos os (as) proprietários (as) possuem o mesmo direito para usar os recursos naturais, direito que não se perde se não se usa (pois continuam sendo membros da comunidade), e os não proprietários estão excluídos do uso (ALI ER, 1995).
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2. L OCAL I Z AÇÃO E DES CR I ÇÃO DA ÁR EA O Vale do Pati fica no interior do Parque Nacional da Chapada Diamantina (152.000 hectares - Coordenadas 12o25’ e 13o20’de latitude sul e 41o 05’e 41o35’de longitude oeste), entre as Serras do Rio Preto e a Serra de Andaraí ou Ramalho, na chamada Chapada Diamantina Meridional pertencente ao Município de Andaraí (Figura 1).
Faz parte do
conjunto de terras elevadas e de topo aplainado que se alonga desde a região central da Bahia até o norte de Minas Gerais, denominado Serra do Espinhaço (SEABRA, 1998). Os solos são predominantemente litólicos, com cobertura vegetal constituída de diversas espécies endêmicas pertencentes a gêneros cosmopolitas (SEABRA, 1998). O relevo da Chapada Diamantina varia entre 1.000 e 1.300 metros acima do nível do mar. O clima do Vale do Pati é tropical úmido e bastante diferenciado em relação ao conjunto da Chapada Diamantina, recebendo chuvas abundantes principalmente nos meses de novembro até fevereiro.
As baixas temperaturas à noite proporcionam um aumento
marcante da umidade do ar, favorecendo muitas espécies vegetais (FUNCH, 1997). Do ponto de vista faunístico e florístico, a Chapada Diamantina representa um importante refúgio ecológico do Estado da Bahia, apresentando diversos ecossistemas que se associam, muitas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. E é importante ressaltar que a área de Floresta Atlântica do Parque Nacional da Chapada Diamantina, além da extrema importância biológica (MMA, 2000), possui uma grande riqueza cultural devido a presença de populações tradicionais em seu interior. T odo o Vale do Pati e os grotões da serra são revestidos pela Floresta Estacional Sempre Verde. Nesta área, encontra-se grande número de quaresmeiras, palmeiras e canjeranas, além de outras espécies reconhecidas e utilizadas pelos moradores do Pati (SEABRA, 1998). É nestas Florestas que os moradores reproduzem sua vida social e simbólica, construindo sua casas e manejando as roças e a floresta. Os “gerais”, como os gerais do V ieira e o do Rio Preto, este último impedido de uso pelo I BAMA, são superfícies semi-aplainadas que variam de 1.000 a 1.200 metros, com vegetação rasteira composta predominantemente por gramíneas como os do gênero Paspalum sp, o Androspogum sp, o Panicum sp, a Aristida sp e a T ristachya sp, e pela associação de sempre-vivas, com destaque para as Paepalanthus ramosus e a Paepalanthus mucugensis (SEABRA, 1998). Os moradores do Pati constantemente utilizam os chamados “gerais” como área de pasto para criação d e burros.
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O Vale do Pati possui uma mata ciliar (Foto 1) em bom estado de conservação. As matas variam em largura, e sua extensão dependerá das condições edáficas, da topografia local e da frequência de enchentes. São árvores que variam, em média, de 10 a 20m de altura. Há muitas lianas, samambaias, epífitas e liquens. No vale, encontram-se algumas porções rochosas, principalmente no topo das serras, que compõem o chamado Campo Rupestre, caracterizado por uma vegetação baixa, de plantas lenhosas, palmas, orquídeas, trepadeiras, ervas pequenas e bromeliáceas. Os Rios que penetram e atravessam o Vale do Pati possuem água rica em ferro, o que da uma cor vermelha a sua composição. As frias águas do vale são pobres em vertebrados aquáticos. O Vale do Pati, segundo os patizeiros, divide-se em algumas áreas, que são de uso, morada e passagem. Pode-se chegar ao Pati de Baixo, andando ou montado, por Andaraí (cerca de 22 Km de trilhas), pelo Vale do Capão (cerca de 40 KM) ou pelo Guiné (cerca de 25 km horas pela Serra do Rio Preto). Os patizeiros dividem o território usando os critérios topográficos, de uso e morada e pela presença de Rios, da seguinte forma (Figuras 2 e 3):
1. O Pati de Baixo ou Cachoeirão (Fotos 2 e 3) fica próximo da serra de Andaraí e dos Vales que seguem até o Rio Paraguassú. Vivem no Pati de Baixo cerca de 30 pessoas. Os Rios que passam pelo Pati de Baixo são os Rios Grande, que encontra o Rio Cachoeirão3, formando o Rio Guariba indo até o Rio Paraguassú. Nesta área encontra-se a Escola Comunitária do Cachoeirão, que foi fechada pela Prefeitura Municipal de Andaraí em 2002 e tem funcionamento temporariamente assegurado pela mobilização dos moradores, das crianças e dos professores 4;
2. O Pati de Cima (Foto 4), ou simplesmente Pati, fica perto da Serra do Rio Preto e beirando o chamado Morro do Castelo5 (Foto 7). Passam por este lugar os chamados Rios da Ruinha, dos Funis, do Lagedo e Rio da Piaba que também são utilizado para captação de água.
É no Pati de Cima que encontra-se a antiga
Ruinha (Foto 5), onde, na época do café, existia algumas casas, vendas e uma
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O Rio Cachoeirão nasce em cimas das serras e forma a exuberante cachoeira, com o mesmo nome, que possui cerca de 280 metros de altura. 4 Em 2003 iniciou-se o processo de criação da Associação de Pais e Amigos da Escola Comunitária do Cachoeirão, com gestão local. A associação visava manter a estrutura física e pedagógica da escola em funcionamento, mesmo após o abandono desta pela Prefeitura de Andaraí. Até a revisão deste trabalho a Associação estava em processo de fechamento, por falta de recursos e apoios, levando à finalização das atividades escolares. 5 Nome dado ao Morro que situa-se na divisória entre o Pati de Cima e o Pati de Baixo, este nome deve-se a característica do Morro, que parece um castelo. É um dos principais pontos turísticos, para alguns aventureiros pode-se dormir numa gruta que situa-se em sua base.
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igreja. Encontra-se uma escola, neste local, mantida pela prefeitura de Guiné. Neste espaço vivem cerca de 50 pessoas;
3. O Vale da Lapinha, com um rio do mesmo nome, inicia-se com a Cachoeira do Calixto (Ponto turístico). Esta área do Vale do Pati possui muitas casas abandonadas, já tomadas pela floresta. Não há, atualmente, moradores neste vale, mas ainda constitui rota de passagem para o Vale do Capão e para pasto dos burros;
4. Os gerais do Vieira (Foto 6) e do Rio Preto são rotas para o Guiné, Mucugê e Capão. Por estes campos passam os patizeiros montados em seus animais e também os parentes que aparecem para um festejo tradicional e/ou religioso. Nos gerais também são deixados os burros para pastarem;
5. As serras são zonas de passagem e de caça do mocó (Kerondon rupestris ) . E neste local que vivem os macacos Barbados (Alouatta sp) e as onças-pintada (Pantera onca), presentes no imaginário e nas histórias dos patizeiros. É nas serras de Andaraí e I gatu que antigamente alguns jovens patizeiros, como o Sr. Mansur (hoje com 80 anos) do Pati de Baixo, já viveram sonhos... de ter em mãos um diamante das Lavras Diamantinas;
6. As cachoeiras também fazem parte da vida patizeira. Muitas pessoas, principalmente os mais jovens, trabalham como guias levando os turistas para conhecerem pontos como o Cachoeirão, Cachoeira dos Funis e do Calixto (Fotos 8 e 9). As cachoeiras são percebidas como um ponto de referencia em termos de localização dentro do vale, não sendo um símbolo de apreciação estética.
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Figur a 1 – Localização do Vale do Pati no interior do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Adaptado de BANDEI RA (1998)
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MAPA DO VALE DO PATI
Figur a 2– Localizações significativas no Vale do Pati, segundo os moradores do Pati de Baixo. Adaptado do site www.infochapada.com
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Figur a 3 – Desenho dos Rios do Vale do Pati, produzido pelos estudantes da Escola Comunitária do Cachoeirão, Vale do Pati, Chapada Diamantina, Bahia.
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F ot o 1 – Mata Ciliar
F ot o 2 – Vale do Pati visto pela ladeira do I mpério. Seta indica o Vale do Cachoeirão.
F ot o 3 – Morador do Pati de Baixo na ladeira do I mpério
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F ot o 4 – Pati de Cima
F ot o 5 – Ruinha no Pati de Cima
F ot o 6 - Gerais do Vieira
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F ot o 7 – Morro do Castelo
F ot o 8 – Cachoeira do Calixto
F ot o 9 – Cachoeirão
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3. MET ODOL OGI A A presente pesquisa monográfica busca a realização de uma ciência com consciência (MORI N, 2000), ou seja, a produção de um conhecimento científico que contenha em seu interior e durante todo seu processo de produção, a consciência da complexidade do real e de que a noção da busca pela verdade passa por elementos subjetivos intrínsecos ao cientista ou por uma abordagem conxetualizada e sistêmica. A ciência aqui proposta contém elementos subjetivos, da interpretação do autor e da auto-interpretação contida nas imagens, mesclada a objetivações da pesquisa bibliográfica e das discussões teóricas. Neste sentido a objetividade, tão cara aos cientistas naturais e sociais, perde terreno para uma análise que assume que a perspectiva das interpretações subjetivas estará sempre presente, e que fazer ciência, não consiste apenas em se “endurecer” mas sim, pelo contrário, produzir uma arte: a ciência é uma arte (MORI N, op.cit). A busca de se “esconder” no manto da neutralidade foge às minhas concepções iniciais de um cientista/artista iniciante. A partir do momento que busco descrever, num aprendizado vivencial, formas de manejo dos recursos naturais de uma cultura, me obrigo a tomar partido em relação aos fenômenos estudados cujo valor seria a de uma ética ambiental (T OLEDO, 1992), em vistas à sustentabilidade. I sto pressupõe uma transformação das realidades sociais, econômicas, políticas e ecológicas vigentes até o presente momento. Neste sentido pretendo ir além da “separação entre fato e valor” (T OLEDO, op.cit), típica da ciência contemporânea,
propondo/agindo na adoção de uma ética e de ações
ecologicamente apropriadas. A neutralidade se apresenta apenas no momento de coleta e análise dos dados. A ciência contemporânea está intimamente relacionada e interdependente da sociedade, das corporações, do estado, da política e, por conseguinte, da ideologia (MORI N, 2000). Neste sentido esta ciência é co-responsável pelo domínio da natureza e do homem pelo homem, bem com pelas atrocidades do mundo moderno e sua insustentabilidade ecológica. Busco romper com este paradigma atuando/pesquisando junto às populações tradicionais, rumo a emancipação, a autonomia e a produção e confluência de pensamentos livres e de um conhecimento que sirva verdadeiramente às coletividades e supra as individualidades com o saber. Outro elemento importante nesta pesquisa é a tentativa de rompimento com a noção prevalecente que de um lado “biologiza-se” o homem e de outro “sociologiza-o”, rompendo com o mundo natural. Sobre isto penso que o homem complexificou sua
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existência sem romper com a natureza, pelo contrário...por natureza o homem produz a cultura complexa. O fato de se estar trabalhando de forma “separada” os conceitos de sociedade e natureza, o que levaria a uma contradição deste trabalho, não aponta, necessariamente, para uma afirmação real desta falsa dicotomia. Viso apenas indicar que existe uma sociedade na natureza e fazer uma separação que facilite a interpretação. A pesquisa possui limitações evidentes num trabalho deste porte, onde buscamos uma iniciação à ciência. Muitas vezes falta-nos o rigor, necessário, pelo próprio caráter experimental, e, muitas vezes pela própria carência estrutural, como tempo e recurso para execução do trabalho. Concluo que o maior desafio deste trabalho foi justamente aliar a falta de recurso (basicamente suprido pelo “paitrocínio” e pela acolhida logística fundamental da comunidade), com o tempo curtíssimo e a longa distância do campo (para chegar no Vale do Pati tinha que viajar 9 horas de ônibus, com mais 6 horas de caminhada pela recortada Serra de Andaraí). A pesquisa foi realizada com todos os moradores do Pati de Baixo ou Cachoeirão. Motivado inicialmente pelo conflito instalado entre os patizeiros e o estado, fui gradativamente sendo cativado em conhecer/aprender/vivenciar durante os 20 dias de trabalho de campo intenso, entre os meses de janeiro a junho, com as pessoas do Vale do Pati. Outra motivação, não menos relevante, foi a ausência de bibliografias e de pesquisas mais abrangentes realizadas no Vale do Pati. O que aponta para a urgência de projetos sérios na região. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica buscando responder algumas questões conceituais sobre a relação entre as sociedades e a natureza, realizar uma teorização critica sobre os Parques Nacionais (no Mundo, no Brasil e na Chapada Diamantina), apresentar as principais definições de populações tradicionais e o histórico socioambiental da Chapada Diamantina e do Vale do Pati, bem como para sugerir uma estratégia etnoconservacionista no local. T odas estas questões se interligam num contexto de posse do território entre duas instituições conflitantes, o estado e a população (não homogênea) do Vale do Pati. Numa configuração de hierarquia de saberes e de poder. Nos capítulos que abordam o Vale do Pati, foi realizada, além da pesquisa bibliográfica, uma descrição geral do modo de vida do patizeiro optando por uma abordagem etnoecológica onde equilibram-se os dados êmicos e éticos (MARQUES, 2001), dando primazia aos dados éticos, não devido a “má vontade” de ir a fundo... mas sim devido ao
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curto espaço de tempo para coleta e análise dos dados. A etnoecologia é descrita por MARQUES (op.cit.) como... “(...) o estudo das interações entre a humanidade e o resto da ecosfera, através da busca da compreensão dos sentimentos, comportamentos, conhecimentos e crença a respeito da natureza, característicos de uma espécie biológica (Homo sapiens) altamente polimorfica, fenótipicamente plástica e ontogenéticamente dinâmica, cujas novas propriedades emergentes geram-lhe múltiplas descontinuidades com o resto da própria natureza. Sua ênfase deve-se então a sua diversidade biocultural e o seu objetivo principal, a integração entre o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico científico”.
Pretendi estudar, de forma geral, os aspectos práticos e cognitivos do modo de vida do patizeiro, o que T OLEDO (1992) chama de Práxis e Corpus. Não esquecendo também, o que fica aberto a novos estudos, que os elementos subjetivos da existência patizeira (Simbologias, Mitos e Cosmologias) permeiam todo o modo de vida e conhecimento local. Optou-se uma abordagem essencialmente qualitativa (MARQUES, 2002). Como técnica de pesquisa utilizou-se de um aprendizado vivencial, onde durante estes 20 dias o pesquisador ficou vivendo junto aos moradores e participando das principais atividades de interesse, buscando desta forma compreender com mais profundidade sentidos da cultura local, num contínuo processo de “aprender fazendo”. Aliado a observação foram realizadas oito entrevistas semi-estruturadas, seguindo um dialogo livre entre o pesquisador e informante, para obter informações sobre as formas de manejo vistas durante a observação e outras que não puderam ser observadas durante o trabalho de campo (VI ERT LER, 2002). A fotografia também se constitui como uma importante metodologia. Pretendi realizar um esboço de fotoetnografia, que ofereça, através da linguagem visual, novas perspectivas (olhares) da cultura patizeira, explorando sentidos até induzidos pela escrita. I ncentivando uma explicação visual dos fenômenos abordados e novas perspectivas para o leitor (ACHUT T I , 1997) O projeto atualmente desenvolvido na Escola Comunitária do Cachoeirão, que busca resgatar a história e fortalecer a cultura local, forneceu à pesquisa informações e relatos importantes dos estudantes, feitos através de dissertações e mapas do território e da biologia local. O projeto ocorreu sob orientação da professora responsável pela Escola. Os registros dos dados foram feitos através de um diário de campo, de fotografias e de desenhos e mapas êmicos. Pretende-se dar o retorno final aos moradores através da apresentação e discussão dos resultados da pesquisa e exposição fotoetnográfica. Além disto este trabalho será enviado diretamente ao órgão ambientais do Estado e entidades associativas.
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4. ES T ADO DA AR T E 4.1. S OCI EDADE E NAT UR EZ A O discurso institucionalizado da relação entre a sociedade e a natureza opera em dois pólos conflitivos e redutores. De um lado argumenta-se, de forma naturalizante, que o homem, como outro animal, atua segundo leis pré-determinadas de adaptação ecológica, perdendo desta forma a sua essência criativa sócio-cultural que se manifesta na capacidade e possibilidade de construir modelos de organização social diferenciados (FERREI RA, s/d). A sociedade, a espécie Homo sapiens ou a genérica civilização, como argumentam os preservacionistas, estaria pondo a natureza prístina em perigo devido ao crescimento demográfico e/ou uso inevitável de tecnologias
degradantes
(BOOKCHI N, 1993). Estas generalizações naturalistas nos oferecem sinais de impotência perante a crise ecológica, justamente quando se coloca na mesma linha de abordagem reducionista, o empresário da madeira e o trabalhador contigênciado, as sociedades indígenas e a européia, o burocrata estatal e o simples camponês, mascarando a verdadeira origem dos problemas ambientais. A crise ambiental em escala local e planetária está intimamente ligada a uma organização social notadamente marcada pela hierarquia e pela divisão de classes (BOI NO, 2003). Verificamos análises que apontam para uma autonomia da espécie humana em relação à natureza, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico (FERREI RA, s/d) que rompe com os laços naturais e torna-se, digamos, um ser ecotecnicisado. Esta abordagem justifica, ao mesmo tempo, uma relação com a natureza de forma desarmoniosa e uma conservação tecnocratizada, como se o homem do “Admirável mundo novo” e todo seu arcabouço técnico-cientifico pudessem conceber uma natureza nova, portanto artificializada. Demonstrando que separação histórica entre Homem e Natureza está imbuída em nossa sociedade-cultura (GONÇALVES, 1998). Necessita-se de novos paradigmas da relação sociedade natureza que, de forma sistêmica, ofereça respostas que permitam uma abordagem complexa e posições sobre a origem da crise ecológica na sociedade globalitária, com possibilidades de superação. A Ecologia Social aponta para este lado. Os argumentos reducionistas sobre a crise ecológica não consideram relevantes as diversas sociedades-culturas existentes, generalizando o conceito de
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homem. Estes argumentos muitas vezes sugerem a expulsão de muitas sociedades de seu meio natural (como na criação de Unidades de Conservação e no desenvolvimento econômico), chegando as vezes a considerar, num pensamento etnocentrista, as sociedades tradicionais como sendo inferiores, portanto selvagens e desprovidas de história, sem conhecimento e saberes, sujeitos à ignorância, a exploração e expulsão de suas terras (DI EGUES, 2001). A unidade biológica Homo sapiens produziu e produz sua diversidade cultural historicamente e isto se deve à especificidade de seu processo de socialização. Além disto, muitas sociedades evoluíram endogenamente e de forma conflitiva para uma maior hierarquia social. O filósofo BOOKCHI N (1998), expoente da ecologia social libertária aprofunda a questão colocando a ecologia num patamar social e interativo/complexo. No texto “Sociedade e Ecologia”, o autor, argumenta que a evolução da sociedade humana a níveis complexos deve-se a um processo de socialização, que possui um inicial (desenvolvimento de caracteres como bipedismo, aumento da caixa craniana, etc) e a constantes fatores de ordem biológica e psicológica (como na relação mãe e filho, onde a mãe neste caso seria a figura materna do cuidado, podendo neste caso ser os cuidados da comunidade ou de outra família). Nos seres humanos, este processo adquire um caráter diferenciado, permitindo o alongamento do processo de socialização e complexificação da linguagem, sempre de forma interativa com a natureza. O homem emerge de uma primeira natureza (biológica) para uma segunda natureza, que é a cultura complexa6, a auto-consciência, a criatividade e a liberdade, sem perder a primeira. O homem possui as dimensões culturais e biológicas em estreita interação. Durante o processo multidimensional de transformação do homem, do entrelaçamento dos fatores biológicos, psicológicos, afetivos e culturais, a linguagem provavelmente foi a possibilitadora do alcance de uma cultura complexa ou a segunda natureza. O Homo nem por isto escapa à animalidade durante essa transformação. O ser humano seria um superprimata, um supermamífero, um vertebrado médio... um sobrevivente, fruto dos desdobramentos biológicos que juntamente com a cultura complexa lhe dá uma identidade terrena (MORI N, 2001).
6 Conjunto de regras, conhecimentos, técnicas, saberes, mitos, que permite e assegura a alta complexidade do indivíduo e da sociedade humana, e que, não sendo inato, tem necessidade de ser transmitido e ensinado a cada indivíduo no seu período de aprendizagem para poder autoperpetuar-se e perpetuar a alta complexidade antropo-social (MORI N, 2001).
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Longe da renuncia a qualquer animalidade do ser humano, mas ao contrário, afirma-se que este ser possui um duplo estatuto. Por um lado apresenta totalmente sua natureza biológica, física e cósmica; por outro, a totalidade de sua cultura, ou seja do universo da palavra, do mito, da idéia, da razão e da consciência (MORI N, op.cit.). Esta abordagem une as sociedades na natureza e advoga uma ecologia social, a necessidade da construção de organizações sociais que apontam para formas de socialização que não haja supressões, coações ou opressões de nenhuma ordem, onde o domínio do homem pelo homem e da natureza sucumba à solidariedade, ao apoio mútuo e a liberdade, permitindo o pleno desenvolvimento da natureza humana. Esta interatividade complexa entre as sociedades e o ambiente, possibilitou a construção e criação de diversas formas organizativas nas variadas instituições sócioculturais-geográficas. E mais especificamente, possibilitou a critica ao argumento generalista de homem destruidor. “Um dos problemas da ecologia e do pensamento ecológico tem sido a questão do tratamento dado ao homem... Não é raro ouvirmos frases do tipo: o homem está destruindo a natureza!, ao mesmo tempo que se evoca o exemplo de comunidades indígenas como modelo e paradigma de relação homem-natureza. E aqui cabe a interrogação: não são os indígenas homens? Se o são, e essa é uma verdade inquestionável pelo menos para a Biologia, de que tipo de homem estamos falando quando se afirma que o homem está destruindo a natureza? Claro que quando se trata dos indígenas está-se falando em outra sociedade – de uma outra organização social, de uma outra cultura. Ora, se isto é verdadeiro, não são os homens enquanto categoria genérica que estão destruindo a natureza, mas sim o homem sob determinadas formas de organização social, no seio de uma cultura.” (GONÇALVES,1998)
e mais “...toda cultura é uma criação dos homens ; é instituída num processo cheio de tensões entre diversos possíveis históricos” e “...simplesmente colocamos em outras bases a especifidade do homem. A cultura humana não sai da natureza, ao contrário, é uma das suas qualidades. O homem, por natureza, produz cultura...”(I BI D, 1998)
Portanto entender a diversidade cultural e as formas distintas de organização social se faz imperioso, principalmente quando temos que analisar a destruição ecológica e quando propomos estratégias de conservação. O que não vêm acontecendo nas ciências, principalmente nas Biológicas, nem na ecologia clássica, apesar dos avanços atuais. Nesta abordagem, “T anto a Biologia, a ecologia como a geografia têm tratado o homem exclusivamente como espécie biológica, não levando em consideração e especificidade e complexidade deste animal-homem... passando por cima do fato de que o homem por natureza produz cultura
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...deixa de lado exatamente o essencial, isto é, o modo de organização social e cultural que institui uma determinada dinâmica de crescimento” (GONÇALVES op cit.)
Sendo assim GODELI ER (apud DI EGUES, 2001) conclui, aproximando-se do tema proposto sobre culturas/comunidades tradicionais, que: “...cada sistema econômico e social determina uma modalidade específica de uso dos recursos naturais e da força de trabalho humana, e utiliza, em consequência, normas específicas do bom e mau uso desses recursos: como por exemplo, cita os caçadores brancos e os índios Naskapi, da península do Labrador, em que os primeiros caçam os animais para retirar e vender peles no mercado e os segundos o fazem para subsistência... os caçadores brancos pertencem a um sistema econômico voltado para o lucro monetário, no qual a solidariedade familiar desapareceu, e depredam a natureza. Já os índios pertencem a uma sociedade cujo o fim é a reprodução da solidariedade e não a acumulação de bens, o que contribui para a conservação da natureza”
E o processo interativo da relação entre s sociedades e o entorno natural, depende fundamentalmente de como estão distribuídos os poderes endogenamente. Se existe hierarquias e processos decisórios centralizados. O poder é que definirá a forma de exploração dos recursos naturais em determinada sociedade-cultura. Neste sentido, os autores (FERREI RA, s/d; BOOKCHI N, 1998; GONÇALVES, 1998; DI EGUES, 2001) afirmam que são diversas as sociedades humanas e que cada uma possui características próprias que as distinguem ou as assemelham. Porém, o que definitivamente aponta para a crise ecológica está no caráter hierárquico das sociedades autoritárias e a tentativa constante de domínio do homem pelo homem, que converge com a lógica de domínio do meio natural. Neste sentido a atual sociedade capitalista é a responsável pela permanente crise social e da ecologia em nível global (BOOKCHI N, 1998; GONÇALVES, 1998; FERREI RA, s/d; LEFF, 2000) Segundo FERREI RA (s/d) o capitalismo e suas instituições fundamentais, Estados e corporações, se legitimam nas relações sociais hierarquizadas e de dominação que se identificam com as formas de produção e de consumo de bens e serviços, numa ótica competitiva, consumista e produtivista, logicamente, acarretando o agravamento da crise ambiental. A natureza assim está para a sociedade ocidental/capitalista, como uma fragmentação estática, voltada à produção / acumulação / exportação. Portanto deixa de ser um espaço/sistema onde os meios abióticos e bióticos se relacionam dinamicamente sugestionados por fatores genéticos, ambientais, sociais e culturais, no caso do homem, onde o bem estar, a harmonia e a justiça no uso dos recursos devem ser procurados e defendidos.
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Como afirma BOFF (1998) “Ecologia e Capitalismo se negam frontalmente. Não há acordo possível. Se, apesar disso, o capital assume o discurso ecológico, ou é para fazer ganhos com ele ou é para espiritualizá-lo. Ou simplesmente para impossibilitá-lo e portanto destruí-lo” ,e mais, “queremos mostrar como o capitalismo, como modo de cultura e produção, inviabiliza a ecologia tanto ambiental, quanto social”. Muitas sociedades tradicionais tiveram seus processos de ecodesenvolvimento em co-evolução com o entorno geográfico, interrompidos durante as conquistas, colonizações e integração ao mercado mundial (Figura 4). A natureza deixou de ser fonte de simbolização e significação da vida, suporte e potencial da riqueza material e espiritual dos povos, para se converter em fonte de matérias primas sem valor de uso, que alimentaram a acumulação do capital em escala global (LEFF, 2000).
C o n flito
U rb an o/In du strial C ap italista P esca d or A rtesa nal C aiçaras
U n id ad e B io ló g ica (H o m o sa pien s )
In dígenas
S itia n tes
D iv ersid ad e C u ltu ral
D a rcy R ib eiro (1 977 ), M a n uel D ieg ues J r (19 60 ) E A lceu M ay n ard d e A ra ú jo (1 973 ), citad os em A rru da & D iegu es. S ab eres T rad icio n ais e B iod iv ersid ade n o B rasil.
Va rjeiro s
Q uilom b olas
Figur a 4- Homo sapiens - Unidade Biológica e Diversidade Cultural
Com o olhar complexificado podemos tentar alcançar uma crítica aprofundada as práticas que destoam com o saber/fazer tradicional, justamente porque estas, ao
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invés da busca do lucro pelo domínio de outrem, muitas vezes subsistem numa outra lógica, a da solidariedade e da interação com a natureza. Podemos também aprofundar as criticas as sociedades tradicionais, que possuem ou passam a ter práticas, não compatíveis ao meio ambiente. Analisando a sociedade em todo seu contexto, com os conflitos latentes, cooperações e divisões podemos alcançar a origem da crise ecológica e as reais possibilidades de superação. Contradizendo os modelos propostos que eliminam a participação, excluem conhecimentos e práticas culturais diferenciadas e marginalizam as populações tradicionais em função de uma concepção homogeinizadora das sociedades humanas.
4.2. P AR QUES NACI ONAI S : Uma cr ít ica necessár ia A idéia de que a humanidade está separada da natureza ainda prevalece nos dias atuais e está enraizada nas sociedades ocidentais (COLCHEST ER, 2000). T al concepção é fortalecida, por um lado, pela visão predominantemente antropocêntrica, que acredita que a natureza selvagem tem que ser dominada, subjugada e deve servir aos interesses da sociedade civilizada. E por outro, por um biocentrismo que acredita que a natureza tem um valor intrínseco e qualquer interferência humana é considerada negativa para as relações ecológicas e para os elementos naturais (DI EGUES, 2000). Esta falsa dicotomia, que busca separar o inseparável, fundamentou diversas práticas autoritárias tanto no âmbito da chamada conservação da natureza, quanto no fortalecimento do atual modelo econômico e social (BOOKCHI N, 1998). Para o antropocentrismo, o homem possuiria os direitos de controle e posse sobre a natureza, sobretudo por meio da ciência moderna e da tecnologia. Sendo assim a natureza constituiria-se numa reserva de “recursos naturais” a serem explorados
economicamente pelo homem (DI EGUES, 2001). Esta concepção,
predominante na sociedade urbano-capitalista,
advém fundamentalmente da
concepção Judaico-Cristã da relação entre o homem e a natureza, que dava aos homens o direito moral de domínio sobre os animais (COLCHEST ER, 2000). A noção de “destino manifesto” para “domestificar” o selvagem tornou -se verdade fundamental e imperativo político (DI SI LVEST RO, 1993 apud COLCHEST ER, 1997). Como ilustra GOMEZ-POMPA & KAUS (1992),
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“Paisagens agrícolas são muitas vezes admiradas por sua beleza intrínseca, como obras primas vivas, criadas pelas mãos humanas a partir do selvagem. Constituem a confirmação de uma crença subjecente: a superioridade tecnológica humana sobre forças primitivas. Confirmam a fé em nossa habilidade de manejar o meio ambiente, um legado da revolução industrial enraizado no conceito de progresso e na noção bíblica do domínio humano sobre a natureza. Em Gênese (1:28), Deus diz a Adão e Eva: Frutificai e multiplicai-vos enchei a terra e subjulgue-a”
Em alguns setores da sociedade norte-americana, a partir do início do século XI X, essa desvalorização do mundo selvagem começou a mudar, e para isso contribuíram o avanço da Historia Natural, o respeito que os naturalistas tinham por áreas selvagens não-transformadas pelo homem e, sobretudo, o modo de vida degradante da sociedade urbano-industrial da época (DI EGUES, 2001). Henry David T horeu, um dos pensadores naturalistas mais influentes da época escreveu, “Nossas vidas precisam do descanso na natureza selvagem, onde floresce o pinheiro e o galo canta... pequenos oásis no deserto de nossa civilização” (USSHER, s.d apud COLCHEST ER, 1997). Esta noção de vida selvagem (Wilderness) teve grande influência na criação de áreas naturais protegidas, consideradas como “ilhas”, não habitadas, de grande beleza e valor estético que conduziam o ser humano à meditação das maravilhas da natureza intocada (DI EGUES, 2001).
John Muir, uma personalidade marcante no
movimento preservacionista7 da época e influenciador da criação dos primeiros parques nos Estados Unidos, argumentava que áreas de vida selvagem deveriam ser colocadas à parte para a recreação, de modo que satisfizessem uma necessidade emocional humana por lugares selvagens (COLCHEST ER, 1997). Surge então, nos Estados Unidos, uma poderosa concepção de conservação da natureza com base num programa de Parques Nacionais, virgens e intocados, livres de atividades humanas. O marco fundamental da estratégia do estabelecimento dos sistemas de áreas naturais protegidas foi a criação do Parque Nacional de Yellowstone nos EUA, em 1872. Com a crença de que os lugares mais selvagens e belos do mundo deveriam ser protegidos, como “fios de ouro na tapeçaria da cult ura humana” (HOLDGAT E, 1993 apud BRI T O, op.cit.). O pressuposto inicial que fundamentou a existência de áreas naturais protegidas em muitos paises foi a de socialização das belezas cênicas existentes nestes territórios (BRI T O, 1994).
7 Movimento filosófico predominante até os dias atuais, que objetiva preservar a natureza de qualquer ação humana, muitos se baseiam na Ecologia Profunda e na Biologia da Conservação mais ortodoxa. Por outro lado os conservacionistas buscam proteger a natureza, através do uso sustentável e da preservação, para a atual geração e as gerações futuras.
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Reforça-se então a falsa dicotomia Homem x Natureza e a noção generalista de que todo homem é destrutivo e deve portanto ser retirado das áreas selvagens. T al proposição foi posta em pratica já no primeiro parque nacional. Em Yellowstone, os residentes shoshones, os “demônios vermelhos rastejantes”, foram expulsos em violentos conflitos com as autoridades do parque, onde cerca de trezentos índios foram mortos em 1877 (KEMF, 1993 apud COLCHEST ER, 1997). I nicia-se o biocentrismo autoritário, baseado num mito da natureza intocada, que para DI EGUES (2001), “A noção de mito naturalista, da natureza intocada, do mundo selvagem diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiram áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado puro até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza. O homem seria, desse modo, um destruidor do mundo natural e, portanto, deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitariam de uma proteção total”
A filosofia preservacionista foi fundamentada numa importante legislação o Wilderness Act”, de 1964, nos EUA, que também continua definido áreas selvagens como as que não sofrem ação humana, onde o homem é visitante e não morador. (DEVALL & SESSI ONS, 1985 apud DI EGUES, 2001) . No inicio do século XX o modelo de Parques Nacionais já havia se espalhado por todo o planeta, mantendo-se a mesma concepção, com o acréscimo de pressupostos científicos de conservação da fauna e flora (BRI T O, 2000). Como bem ilustra VI ANNA (1996), “Acompanhando a evolução do conceito de conservação, os objetivos das áreas naturais protegidas também foram se transformando e/ou se ampliando neste processo. À idealização inicial da natureza como objeto de contemplação espiritual e de lazer, foi sobreposta a percepção cada vez mais premente do valor da natureza para a sobrevivência humana, considerando todas as suas formas como a água, o ar, a riqueza da biodiversidade e os sistemas ecológicos. Assim, a conservação da natureza tornou-se imperativo para a humanidade como um todo, embora os motivos desta postura sejam conseqüência da forma de atuar de parte da humanidade, a sociedade urbano-industrial”.
Surge então, em 1948, a União I nternacional para Proteção da Natureza (UI PN), com o objetivo de promover ações em bases científicas que possam garantir a perpetuidade dos recursos naturais, dos quais todos os seres vivos dependem (QUI NT ÃO,1983 apud BRI T O, 2000). A UI PN passa a ser chamada de União I nternacional para Conservação da Natureza (UI CN) em 1965. Dentro da UI CN foi criada a Comissão I nternacional de Parques Nacionais, em 1958, com o objetivo de inventariar, promover e monitorar os Parques Nacionais e
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outras áreas, dedicadas a proteção dos recursos naturais (AMEND & AMEND, 1992). No mesmo ano de criação da Comissão foi lançado o RED DAT A BOOK, com uma listagem de 135 espécies de animais ameaçados de extinção. Com o passar do tempo, o conceito de conservação da biodiversidade passa a ser incorporado nos objetivos dos sistemas naturais de áreas protegidas fazendo com que fossem ampliados os seus limites territoriais, para que os ecossistemas, seus processos biológicos fossem contemplados e mantidos (BRI T O, 2000). Os Parques Nacionais passam a ser temas de diversas conferências e tidos como modelo prioritário de áreas protegidas (AMEND & AMEND, 1992; BRI T O, 2000; DI EGUES, 2001). A consolidação do modelo de Áreas de Preservação de uso restrito, no século XX, deve-se muito à sua base científica, com perspectivas de conservação da natureza. Foram então realizados alguns importantes eventos visando debater conceitos e práticas, bem como a expansão do modelo de Parques Nacionais (AMEND & AMEND, 1992; BRI T O, 2000; DI EGUES, 2001). Na 10ª Assembléia Geral da UI CN em Nova Delhi (Í ndia, 1969), tentou-se uma definição unitária de parque nacional que fosse aplicado mundialmente. Segundo a UI CN,1990 apud AMEND & AMEND (op.cit.), um parque deveria ser uma área extensa, onde: 1.
Um ou
vários
ecossistemas
que não tenham sido alterados
materialmente pela exploração e ocupação humana; onde as plantas e animais, as condições geomorfológicas e os habitats sejam de especial interesse científico, educacional e recreacional, ou onde existam paisagens naturais de excepcional beleza; 2.
As autoridades centrais do país tomem medidas para impedir ou eliminar as possibilidades de exploração ou ocupação em toda área, e para garantir efetivamente o respeito e a conservação dos valores ecológicos, geomorfológicos e estéticos dos Parques Nacionais;
3.
As visitas sejam permitidas, sob normas especiais, para finalidade recreacionais, de inspiração, educacionais e culturais. Realmente,
como aponta GHI MI RE
(1994),
havia uma preocupação
internacional com a rápida perda da diversidade e extinção das
espécies,
principalmente nos trópicos, que incentivou a criação de muitas áreas protegidas nos
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países do terceiro-mundo. Além disso, a disponibilidade de fundos internacionais para a conservação e a possibilidade de geração de renda pelo turismo nas áreas naturais protegidas também são fatores explicativos deste aumento. Foi a partir de 1950, e principalmente nos anos 70, que tivemos um aumento expressivo de áreas protegidas. Cerca de 1.300 novos parques nacionais foram criados (BRI T O, 2000). E temos cerca de 4.502 áreas totalmente protegidas (I ncluindo Reservas
Naturais, os
Parques
Nacionais
e Monumentos), correspondendo a
499.446.000 Hectares (WRI , 1998 apud PRI MACK & RODRI GUES, 2001). Acredita-se que a criação de sistemas nacionais de áreas protegidas seja uma estratégia que deva ser estabelecida de forma a melhor representar a biodiversidade dos países e a responder as demandas para sua conservação (BRI T O, 2000). Este conceito e estratégia, que exclui o homem, foram reforçados por filosofias biocêntricas advindas dos EUA nos anos 60, como a Ecologia Profunda, termo cunhado em 1972 pelo filósofo norueguês Arne Ness, que, além de adotar postulados da ecologia cientifica, tinha intenções éticas, sobretudo com relação à tomada de uma consciência ecológica profunda (DI EGUES, 2000). A ecologia profunda possui os seguintes princípios: a vida humana e não humana têm valores intrínsecos independentes do utilitarismo; os humanos não têm o direito de reduzir a biodiversidade, exceto para satisfazer suas necessidades vitais; os florescimentos da vida humanos e das culturas são compatíveis com um decréscimo substancial da população humana; o florescimento da vida humana requer tal decréscimo; a intervenção humana na natureza é demasiada; as políticas devem ser mudadas afetando estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas (DI EGUES, 2001). Este enfoque tem grande influência espiritualista aproximando-se a uma adoração do mundo natural. E com relação às áreas naturais protegidas, considera que a natureza deve ser preservada por ela própria, independente da contribuição que as áreas naturais protegidas possam fazer ao bem estar humano (DI EGUES, op.cit.). A ecologia profunda sofre inúmeras criticas principalmente de ecologistas sociais, como GUHA (1989). Para este autor, ao se desviar a problemática ambiental para um suposto antropocentrismo, se estaria mascarando as verdadeiras causas da crise atual, que é a sobre-exploração da natureza pelo mundo industrializado e a militarização (inclusive nuclear). Outro argumento refere-se a noção de natureza selvagem (wilderness), que noção ao ser levada aos países do chamado terceiro mundo, onde vivem muitas populações tradicionais,
integrados com a natureza,
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promoveu a transferência de recursos dos pobres para os ricos. Além disto aponta o caráter imperialista na perspectiva de muitos ecologistas profundos A Ecologia Profunda influenciou grande parte do movimento preservacionista e a criação de parques nacionais e reservas naturais. Além disto influenciou muitos biólogos da conservação nos Estados Unidos 8, uma importante disciplina cientifica atualmente preponderante em todo mundo quanto à conservação da biodiversidade (DI EGUES, 2000). De fato, as áreas naturais protegidas livres da presença humana, sofreram muitas criticas quanto a sua eficácia e principalmente quanto à expansão destas aos países tropicais que possuem populações indígenas e “tradicionais” que habitam tais áreas. Alguns autores como KEMF (apud DI EGUES, 2001), criticam a expansão do modelo de parque nacional americano para outras regiões ecológica e culturalmente distintas. Segundo a autora, foram criadas muitas áreas preservadas, destinadas a recreação pública, sem moradores e sem uso dos recursos naturais, transferindo moradores, freqüentemente de maneira forçada, de áreas em que tinham vivido por séculos. Criticando tal modelo, ela afirma que poderia ter conseqüências terríveis. O fato conflitante é que o transplante do modelo norte-americano de preservação da natureza para outros paises com cultura e ecologia distintos, gerou graves conflitos. T al concepção mitológica (Mito Moderno ou Neomito) de áreas desabitadas, selvagens, não condiziam com o contexto, por exemplo, dos países tropicais (DI EGUES, 2001; COLCHEST ER, 1997; GUHA, 1997; ARRUDA, 1997). E de forma paradoxal, mesmo com o advento da conservação científica o pensamento técnico-racional, ainda hoje se vê parasitado pelo pensamento mítico e simbólico (MORI N, 1986 apud DI EGUES, 2001) E segundo o próprio DI EGUES (2001), 8 A Biologia da Conservação foi criada no final dos anos 60 com o objetivo de associar ciência e gestão ambiental (Diegues, 2000). A Biologia da Conservação enfatiza a proteção de ecossistemas inteiros, em que, os processos ecológicos possam ser mantidos. Estuda o tamanho necessário a uma reserva para que ela possa salvaguardar a Biodiversidade e determina o número de membros de espécies raras ou ameaçadas de extinção e sua distribuição para que possa perdurar ao longo das gerações. Oferece diretrizes para a formação de corredores ecológicos e define as condições necessárias para projetos de restauração (CALLENBACH, 2001). Os Biólogos da Conservação também atuam influenciando políticas públicas e realizando Educação Ambiental com público alvo definido. A Biologia da Conservação dos Estados Unidos foi muito criticada ao tentar implantar seus modelos em países dos trópicos, pois não levaram em conta o fator sociocultural e econômico destas regiões, sendo consideradas práticas cientificistas, autoritárias e até mesmo imperialistas (GUHA, 1989; DI EGUES, 2000; SARKAR, 1998). Porém muitas instituições e conservacionistas adeptos da Biologia da Conservação iniciaram uma abordagem mais integrativa, levando em conta os contextos sociais e culturais das populações humanas (PRI MACK & RODRI GUES, 2001).
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“Esse neomito foi transposto dos Estados Unidos para países do T erceiro Mundo, como o Brasil, onde a situação ecológica, cultural e social é totalmente distinta. Nesses países, mesmo nas florestas tropicais aparentemente vazias, vivem populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, de pescadores artesanais, portadores de uma outra cultura (tradicional), de seus mitos próprios e de relações com o mundo natural distintas das existentes nas sociedades urbano-industriais”.
No mesmo sentido, GOMEZ POMPA & KAUS (1992) diferenciam as visões conflitantes entre o pensamento preservacionista e o das comunidades rurais, no que refere-se a noção de área selvagem, expondo a importância do conhecimento tradicional: “O conceito de wilderness (mundo natural/selvagem) como terra intocada ou domesticada é, fundamentalmente, uma percepção urbana, uma visão de pessoas que vivem longe do ambiente natural de que dependem como fonte de matéria prima. Os habitantes da zona rural, têm percepções diferentes das áreas que os urbanos designam como wilderness e baseiam-se seu uso da terra em visões alternativas. Os grupos indígenas dos trópicos, por exemplo, não consideram a floresta tropical como selvagem: é sua casa. Muitos agricultores entram numa relação pessoal com o meio ambiente. A natureza não é mais um objeto, mas um mundo de complexidade em que os seres vivos são freqüentemente personificados e endeusados mediante mitos locais. Alguns desses mitos são baseados na experiência de gerações e suas representações das relações ecológicas podem estar mais pertos da realidade do que o conhecimento científico. O termo conservação pode não fazer parte de seu vocabulário mas é parte de seu modo de vida e de suas percepções das relações do homem com a natureza”
Muitas das práticas conservacionistas, como a implantação de Parques Nacionais e Reservas Naturais, são marcadas pelo autoritarismo de muitas das instituições
governamentais
e
de
varias
organizações
não-governamentais
conservacionistas. Essas práticas, muitas vezes, desrespeitam os direitos civis das populações locais, promovendo seu deslocamento forçado das áreas transformadas em Parques e ignorando seu vasto conhecimento e práticas de manejo dos ecossistemas (DI EGUES, 2000). Ficou evidente que, apesar das diferentes trajetórias históricas do movimento preservacionista, as necessidades e direitos dos povos nativos tiveram pouco respeito. Os Parques Nacionais e outras áreas protegidas de uso restrito impuseram visões da elite sobre o uso da terra que resultaram na alienação das terras comunais em favor do Estado (COLCHEST ER, 1997). Uma critica importante vem de alguns biólogos da conservação, históricos defensores das áreas de preservação restritiva. Estes consideram que a dependência de Parques e Reservas pode criar um “estado de sitio”, onde espécies e comunidades
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dentro dos parques são rigorosamente protegidos, enquanto as de fora podem livremente ser exploradas, degradadas e, por conseguinte contribui com a diminuição da diversidade dentro dos próprios Parques (PRI MACK & RODRI GUES, 2001). Fato que fica evidente na maioria dos casos, onde o esforço de conservação esbarra num modelo de sociedade capitalista intrinsecamente depredador dos ecossistemas. É interessante observar a absorção, por parte do Estado, do conceito de Parques Nacionais que excluem os Homens, mais particularmente os povos tradicionais do terceiro mundo. O discurso dos preservacionistas e o conseqüente poder deste saber, aliou-se ao poder coercitivo do Estado para obter o domínio de um território para fins de conservação, exploração econômica (turismo para a elite e bioprospecção) e possivelmente até biopirataria (SHI VA, 1996). As comunidades indígenas, rurais e tradicionais já sofridas por uma história de domínio
e
exploração
econômica
capitalista,
muitas
vezes
isolados
pelo
desenvolvimento econômico e pela expulsão de suas terras nativas, vêem-se agora diante de uma nova pratica autoritária, o imperialismo ecológico travestido de conservação e toda sua concepção de áreas protegidas desabitadas (GUHA, 1997). Reforçando o argumento que considera as sociedades humanas de pequena escala como colaboradoras nos processos conservação, a Comissão de Meio Ambiente, Economia e Políticas Sociais da UI CN – União I nternacional para Conservação da Natureza adverte que, “O Deslocamento forçado de comunidades com modo de vida e direitos tradicionais de uso dos recursos, dentro e no entorno das Áreas Protegidas, é inaceitável { Grifo nosso} ” (UI CN, 2003)
4.2.1. Os P ar ques Nacionais no B r asil A criação do Parque Nacional de Yellowstone incentivou o brasileiro André Rebouças a propor, sem sucesso, a criação dos Parques Nacionais de Sete Quedas e da I lha do Bananal em 1876. Já havia nesta época uma preocupação com a intensa destruição da natureza (BRI T O, 2000). Em 1934, surgiu o Código Florestal que, dentre outras determinações, conceituava os Parques Nacionais como sendo “Florestas Remanescentes de domínio público, onde era proibida qualquer atividade contra a fauna e a flora”. Os primeiros parques brasileiros estavam vinculados ao conceito de monumentos públicos naturais e visavam resguardar porções do território nacional que
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tivessem valor científico e estético. O primeiro parque nacional criado foi o de I tatiaia em 1937, objetivando a conservação da paisagem ali existente, incentivar a pesquisa científica e a recreação (DI EGUES, 2001; BRI T O, 2000). A atração e o uso destas áreas são sempre para as populações externas e não havia preocupação com as populações indígenas, de pescadores, ribeirinhas e de camponeses que nela moravam (DI EGUES, 2001). T ransfere-se para terra brasilis o mito da wilderness, da natureza intocada, que serviria para a elite urbana descansar do estresse da vida nas cidades. A criação de áreas naturais em parte deve-se à contrariedade do avanço da sociedade urbanoindustrial, porém grande parte das áreas, ditas intocadas, apresentam em seu interior comunidades humanas que nada têm de modernas ou tecnológicas (DI EGUES, 2001) Em 1965, com a aprovação do Código Florestal, os Parques Nacionais passam a ter a “finalidade de resguardar atributos ex cepcionais da natureza, conciliando a proteção da flora, da fauna e das belezas naturais com a utilização para objetivos educacionais, recreativas e científicos. Nessa área é proibida qualquer forma de exploração dos recursos naturais” (BRI T O,2000). Até os anos 60 a expansão do número de Parques Nacionais no Brasil foi lenta,com poucos parques criados principalmente na região sul e sudeste, as regiões mais urbanizadas e industrializadas do país. A partir daí, com a expansão das fronteiras agrícolas e a devastação das florestas, os parques foram se expandindo para outras regiões (DI EGUES, op.cit.). Nos anos 60 a criação dos Parques Nacionais no Brasil era justificada apenas com base na proteção de belezas cênicas (PÁDUA et al, 1984 apud BRI T O, op.cit.). Em 1967 foi criado o I nstituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (I BDF), que tinha como atribuições orientar, coordenar e executar medidas necessárias à utilização racional, à proteção e conservação dos
recursos
naturais
renováveis
e ao
desenvolvimento florestal do país. A partir dos anos 70, com o avanço das informações sobre a perda da diversidade biológica, bem como a noção clara de perda ininterrupta dos recursos naturais, fez com que a criação dos Parques Nacionais fossem incentivada por grupos e personalidades preservacionistas mais ortodoxas. Como ilustra ALMEI DA & ROCHA (1977), “T ipicamente, reagimos tarde, quando uma espécie já está a beira da extinção , quando todas, exceto a última, das primitivas paisagens tem sido alteradas além da capacidade de recuperação, ou quando a qualidade do ambiente tem sido reduzida a um nível intolerável,
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como no caso da poluição extrema... Somente através de áreas naturais (Parques Nacionais, Reservas Biológicas, reservas Florestais, Monumentos Nacionais) é que se tornará possível no futuro a manutenção de numerosas espécies da flora e fauna indígena, raras ou ameaçadas de extinção...T ais áreas de preservação deveriam ser relativamente grandes, com um mínimo de 2.500Km² cada(...) que deveriam ser mantidos e protegidos pelo poder público”.
É interessante notar a predominância do discurso mitológico de natureza intocada, virgem, selvagem, onde se reforça a importância de desocupar o território habitado pela população local para criação das áreas protegidas de uso restrito. Fortalece-se a visão de que a natureza e a humanidade são irreconciliáveis. “(...) conclui -se que , a criação de grande reservas em regiões virgens e a preservação do pouco que resta nas regiões alteradas, é de importância vital...Naturalmente, não basta a criação destas reservas pelo Poder Público, mas é fundamental que elas sejam efetivadas, as terras desapropriadas, os limites demarcados, os posseiros afastados, e defendidas contra qualquer tipo de transgressão { Grifo nosso} ” (I BI D, 1977).
Fica registrado que não se menciona que alguns grupos detentores de poder político e econômico são os principais causadores da crise ecológica no Brasil, mas sim o ser humano como um todo, incluindo neste argumento toda população tradicional. “Apenas com ca. 100.000 anos de existência a subespécie atual de Homo sapiens é, dentre todas as formas predadoras, a única que realmente tem sido prejudicial ‘as suas presas. Caracterizada pela tendência inata de esbanjar e desperdiçar, também é a única espécie zoológica que , de modo deliberado, destrói o habitat onde vive. A destruição ou degradação do patrimônio natural do Planeta tem sido , portanto, apanágio de Homo s. sapiens” (COI MBRA FI LHO, 1977).
O autor esqueceu que existe dentro da espécie humana uma diversidade de sociedades e, por conseguinte uma diversidade cultural tão importante para a biodiversidade, indo das sociedades autoritárias, socialistas de estado e capitalistas e as
populações
tradicionais.
Observa-se que não é considerada por
muitos
preservacionistas influentes na política ditatorial, a divisão dentro da própria sociedade estabelecida, com suas hierarquias e divisões de classes, étnicas, de gênero, etc. (BOOKCHI N, 1998). A posição autoritária de muitos preservacionistas fica evidente quando PÁDUA & COI MBRA FI LHO apud DI EGUES (2001) publicam, em 1979, o livro Os Parques Nacionais no Brasil. Neste os Parques são descritos do ponto de vista da riqueza natural. Quando se referem ‘a populações de moradores, a tratam de “posseira” e “degradadora”, indep endente de suas características e de sua história cultural e
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ecológica.
Afirmando que “não existe compatibilidade entre a presença de
comunidades indígenas e a proteção da biota”. O fato é que neste período (1970 – 1986) o discurso preservacionista teve bastante ressonância, tanto no meio científico quanto na burocracia ditatorial, chegando a ser o período onde houve um maior crescimento do número de unidades de conservação de proteção integral no Brasil (Figura 5). Segundo DI EGUES (op.cit.), a criação destas unidades era feita de cima para baixo, sem consultar as populações afetadas em seu modo de vida pelas restrições impostas. Este autoritarismo, que ainda perdura, fica evidente quando se considera o povo ignorante e sem consciência conservacionista e que para se conservar a fauna e flora nacionais deva-se atuar no legislativo, na administração, educação tradicional e principalmente repressão (COI MBRA FI LHO, 1977). Uma característica desta fase é a presença de um discurso dito científico (Neomito da natureza intocada) que justifica a conservação destas áreas naturais (DI EGUES, 2001). Como demonstra PI RES (1977), “Uma das questões de maior urgência é a preservação de amostras de ecossistemas naturais do País de maneira a permitir o estudo dos mecanismos ecológicos que os condicionam e os processos evolutivos que neles ocorrem”
PÁDUA (1977) afirma que os atuais Parques Nacionais não devem ser criados de forma ad hoc, sob a paixão conservacionista ou por pressão política, mas sim deve ter um caráter cientifico, o da conservação da natureza. E também deve-se reforçar a importância dos Parques para o turismo e educação para os visitantes (PI RES, 1977)
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Figur a 5 – Unidades de Conservação de Proteção I ntegral no Brasil I B AMA
Font e:
Em 1979 o I nstituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (I BDF) em sua I Etapa do Plano do Sistema de Unidades de Conservação do Brasil, estabelecia a região amazônica como prioritária para a criação de novas unidades de conservação no Brasil. E adotando os conceitos e diretrizes internacionais na criação e gestão das Unidades de Conservação, como escolha de extensas áreas pouco habitadas, relocação de ocupantes, aquisição das suas terras e elaboração do plano de manejo (BRI T O, 2000). Em 1982, foi implantada a I I Etapa do Plano do Sistema de Unidades de Conservação com proposições mais voltadas para a conservação da natureza. Neste documento, os sistemas de unidades de conservação são definidos como, “o conjunto de unidades de conservação devi damente selecionadas, que atendam da forma mais ampla possível aos objetivos nacionais de conservação da natureza ..., destacandose particularmente a proteção de parcelas significativa de todos os ecossistemas naturais existentes no país, com propósito de preservar populações geneticamente viáveis, representativas do maior número possível de espécies e sub espécies vegetais e animais, ... protegendo a diversidade biológica do país (BRASI L, 1989 apud BRI T O, 2000:65)
Em 1989, surge o I nstituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (I BAMA), buscando unificar a política ambiental brasileira e corrigir as ambivalências e distorções presentes na administração das Unidades de Conservação (BRI T O,
2000).
No mesmo ano o I BAMA, juntamente com a organização
preservacionista FUNAT URA (Fundação para Conservação da Natureza), elaboram uma proposta de um Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), com provável objetivo de organizar os conceitos, os objetivos e os tipos de categorias dessas unidades (I bid, 2000). O SNUC passou por diversos debates, sendo finalmente aprovado e decretado em julho de 2000 (Lei 9.985). T endo como objetivos: I - contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais; I I - proteger as espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional e nacional;
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I I I - contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas naturais; I V - promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais; V - promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da natureza no processo de desenvolvimento; VI - proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notável beleza cênica; VI I
-
proteger
as
características
relevantes
de natureza geológica,
geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural; VI I I - proteger e recuperar recursos hídricos e edáficos; I X - recuperar ou restaurar ecossistemas degradados; X - proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental; XI - valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica; XI I - favorecer condições e promover a educação e interpretação ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico; XI I I - proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente. O SNUC classifica os Parques Nacionais como Unidades de Proteção I ntegral e os define como áreas de preservação que têm como meta a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico. Além disto o “O Parque Nacional é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites serão desapropriadas” (SNUC, 2000). Com relação aos Parques Nacionais, manteve-se a política de deslocamento e reassentamento das populações locais, inclusive povos tradicionais, com indenizações. E em caso de criação de novas unidades de conservação de uso restrito deve ser realizada consulta prévia com a população local, exceto nas Estações Ecológicas e Reservas Biológicas (SNUC, op.cit.). Portanto, mantém-se a política vigente em relação
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ao direito de posse das populações tradicionais, que geraram e irão gerar conflitos vindouros. Conforme BRI T O (2000), houve um avanço com relação à conservação da biodiversidade no Brasil, porém os problemas estratégicos das Unidades de Conservação continuam os mesmos dos primórdios da utilização destes modelos. Os fatores que limitam a ação das unidades de conservação seriam, o contexto histórico da criação das unidades e conseqüente representatividade dos biomas, a falta de recursos financeiros, humanos e administrativos e, por último, os conflitos com as populações tradicionais. Segundo DI EGUES (2001), estas situações problemas são características do modelo de áreas protegidas de uso restrito, que são caras, de difícil controle e não levam em conta os fatores humanos e muitas vezes ecológicos. Devemos levar em conta que na América Latina 85, 9% dos Parques Nacionais são habitados e 50% dos Parques apresentam populações de camponeses e agricultores de subsistência (AMEND & AMEND, 1992). A expansão da sociedade capitalista, além de afetar o lado que esta de fora das áreas protegidas, aprofundou os problemas das populações tradicionais, como o da utilização e posse dos recursos naturais pela especulação imobiliária, industrias e fazendas, a poluição das áreas naturais de uso das populações locais e pressão do mercado sobre a cultura e o modo de vida local (DI EGUES, 2001). Alia-se aos problemas já existentes, a criação das áreas protegidas integralmente, que tiveram como política a expulsão destes povos de seus territórios ancestrais. Neste sentido, como anteriormente exposto, surgiram inúmeros movimentos ecológicos e sociais das populações tradicionais que lutavam pelo direito de uso dos territórios, dos recursos naturais e contra projetos ecologicamente degradantes. Além disto algumas populações entraram em conflito com as Unidades de Conservação e se auto-organizaram para defesa e reinvidicação do território. Como exemplo, podemos citar o Movimento Nacional dos Pescadores Artesanais, Movimentos I ndígenas, dos Seringueiros, O da luta dos caiçaras do Vale do Ribeira contra as Unidades de Conservação restritivas e a reinvidicação dos quilombolas (DI EGUES, 2000). Os movimento de conflito, gerados com a criação dos Parques Nacionais, acarretaram alguns resultados positivos como: a auto-organização política destas populações, uma maior visualização da problemática por parte de outros setores da sociedades, a realização de maiores estudos sobre o conhecimento tradicional e sua valorização, a discussão sobre a legitimidade e a viabilidade de criação das áreas
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protegidas de uso restrito nos países tropicais e a inserção de novas propostas de Unidades de Conservação de Uso Sustentável, como as Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável9. Para ARRUDA (1997), as populações tradicionais no Brasil são postas diante de um dilema cada vez mais insolúvel perante a sociedade envolvente e a concepção de preservação ambiental... “Ou continuam “tradicionais” tendo cada vez menos condições objetivas de manter os padrões usuais de reprodução sócio-cultural ou são assimiladas pela sociedade dominante, dissolvendo-se como comunidades e abrindo espaço para a disseminação do modelo hegemônico de exploração e uso dos recursos naturais. O modelo oficial de preservação ambiental calcado na criação de unidades de conservação de uso restrito tende a fortalecer a segunda opção, somando-se ‘as pressões para que as populações tradicionais deixem de sê-lo e adotem as mesmas práticas destrutivas que caracterizam a sociedade envolvente.”
Não existem dúvidas quanto à importância e urgência de se conservar a biodiversidade em toda sua amplitude. É de grande importância, neste sentido, apoiar e fortalecer as práticas e conhecimentos destas populações tradicionais, culturalmente distintas, que ajudaram a conservar a natureza (DI EGUES & ARRUDA, 2000). T endo-as como aliadas na conservação e promovendo sua autonomia, controle do território e autogestão política e econômica, num conflito permanente contra as imposições da sociedade capitalista e dos estados nacionais.
4.2.2. O Par que Nacional da Chapada Diamant ina
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O SNUC assim considera, Art. 18. A Reserva extrativista - RESEX é “uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e têm como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”. A reserva extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais. Prevê desapropriação de áreas particulares e será gerida por um conselho deliberativo. Art.20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável – RDS é “uma área que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais , desenvolvidos ao longo das gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manunteção da diversidade biológica”. T êm como objetivo “preservar a natureza e , ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações”. A RDS é de domínio público, sendo que as áreas particulares devem ser, quando necessário, desapropriadas. Será gerida por um conselho deliberativo. Em ambos os casos a presidência do Conselho será constituída por um representante do órgão responsável pela administração da reserva.
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Em 1985, através do decreto nº 91.655, foi criado o Parque Nacional da Chapada Diamantina. E no seu primeiro artigo, lê-se: “Fica criado o Parque Nacional da Chapada Diamantina com o objetivo de proteger as amostras dos ecossistemas da Serra do Sincorá, na Chapada Diamantina, assegurando a preservação dos seus recursos naturais e proporcionando oportunidades controladas para uso pelo público, educação, pesquisa científica e também contribuindo para a preservação de sítios e estruturas de interesse histórico-cultural existentes na área (...)”
O Parque Nacional da Chapada Diamantina foi criado mediante mobilização de políticos estaduais, ambientalistas e empresários locais com vistas a proteger os recursos naturais e paisagísticos da Serra do Sincorá, para o turismo, recreação e preservação dos recursos naturais. A criação do Parque deveu-se à intensa degradação ambiental que a Chapada Diamantina estava sofrendo desde a época colonial. Os primeiros relatórios apontavam tal necessidade de proteção, bem como delimitava a área que deveria ser preservada (FUNCH, 1982). Porém os relatórios não levaram em conta o modo de vida e as condições sócio-culturais das populações que ficariam no interior do mesmo. Colocava-se no mesmo patamar de ação destrutiva, quando da criação do Parque, o modo de vida tradicional e o modo capitalista de produção e uso do território. Muitas vezes, as práticas tradicionais de caça de subsistência, agricultura itinerante e o extrativismo em pequena escala eram responsabilizados pela destruição histórica dos ecossistemas da Chapada Diamantina sem nenhum estudo que embase tais afirmações. Como conseqüência o Parque Nacional foi criado sem estudos detalhados sobre os ecossistemas locais, bem como as populações tradicionais de agricultores e garimpeiros não foram consultados sobre a implantação da Área Protegida. O relatório realizado em 1982 por Roy Funch, “Chapada Diamantina: uma reserva natural”, que objetivava sugerir ao I BDF uma delimitação da maior área possível a ser preservada, fortaleceu o movimento para criação do Parque Nacional. Apresentando um breve e insuficiente estudo sobre a fauna, flora e geologia da região propôs-se a preservação da Serra do Sincorá. O mesmo relatório evidencia os motivos da preservação, “Essa área guarda uma memória histórica do ciclo diamantífero em seus garimpos abandonados, nas casas de pedra dos garimpeiros, nas centenas de quilômetros de caminhos nas serras e nos aquedutos antigos. Ao mesmo tempo, a área apresenta um aspecto selvagem, com suas serras quase inacessíveis, que até hoje abrigam uma enorme variedade de animais cujas espécies estão ameaçadas de extinção no Brasil. Aí encontram-se também milhares de
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espécies de plantas raras, incluindo-se grande variedade de orquídeas, plantas medicinais e comestíveis. Além disto não se pode esquecer que essa é uma área de grande beleza natural, com seus rios cristalinos, picos verdejantes, cachoeiras, paredões de pedra e vales escondidos.” (FUNCH, 1982)
Os maiores problemas sugeridos como fator motivador da criação do Parque, eram a caça indiscriminada, os garimpos, a agricultura e a pecuária. Ou seja, as atividades que eram realizadas, excetuando-se a pecuária, pelas populações tradicionais que habitam o interior do Parque Nacional. Ao mesmo tempo, modos de produção com intensa degradação (SEABRA, 1998) como a pecuária, garimpo mecânico, agricultura moderna e corte de madeira eram deixadas de fora da proposta de criação da Unidade de Conservação. “Nos leitos dos Rios Paraguaçu e Santo Antônio procede-se atualmente a uma exploração mecânica em larga escala, com grandes chances de sucesso. Mas somente nos rios e serras baixas, e não na serra, poderão ser encontradas grandes jazidas. Assim, preservandose as serras, não se estará entravando qualquer possível atividade mineradora...Os grandes plantios existentes nos “gerais”, ao sul de Mucugê, estão fora da área sugerida neste relatório como digna de proteção, até porque têm pequeno valor cênico ou inexpressíveis recursos naturais para merecer tratamento especial pelo I BDF” (FUNCH, 1982)
Fica evidente que a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina seguiu o princípio mitológico da natureza intocada, no qual o território deverá ser resguardado para a elite intelectual-urbana apreciar as exuberantes paisagens naturais. Fica em evidência outro real motivo da criação do Parque Nacional: alavancar o turismo, sob a sigla do Ecoturismo. Perde as populações tradicionais, a diversidade cultural e biológica, ganham os preservacionistas, a elite urbana e os empresários da crescente industria do turismo. E a importância da criação do Parque para o turismo é explicitada pelo Projeto RandamBrasil (FUNCH, 1997): “A região da Chapada Diamantina, como um todo, encerra grande potencial de atrativos naturais no que se diz respeito à possibilidade de elaboração de um zoneamento com propósitos turísticos ... A vegetação rupestre, com fisionomias botânicas exóticas, define refúgios ecológicos de relevos elevados e zonas de feições tipo “parque”, os quais constituem variável importante par atrair à região estudos específicos com o fito de incrementar atividades de turismo e lazer” .
E mais atualmente no I nformativo do Parque Nacional da Chapada Diamantina - I BAMA (2003),
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“Hoje a Chapada Diamantina representa um dos maiores potenciais turísticos do Brasil devido a sua extraordinária beleza e diversidade de atrativos naturais (...)”
Segundo FUNCH (1997) e BANDEI RA (1998), os principais problemas do Parque Nacional da Chapada Diamantina são: o garimpo manual, a caça, o pasto, a coleta de animais e flora silvestres e a roça. Ao mesmo tempo o roceiro é responsabilizado pelos desmatamentos de grandes áreas de floresta nativa e o fogo torna-se o inimigo número um do Parque Nacional. Como solução o I BAMA deverá iniciar um levantamento fundiário na área do Parque, a indenização destas pessoas, empregar as pessoas locais como fiscais, investir em educação ambiental e aumentar a área real do Parque (I BI D, 1997). As populações tradicionais que vivem no interior do Parque esperam o resultado do Plano de Manejo e do levantamento fundiário que decidirá o futuro dos mesmos. O I BAMA apresentou um resultado parcial dos trabalhos de levantamento fundiário onde aponta quatro categorias básicas para desapropriação e indenizações: área de uso turístico intensivo, área de proteção com potencial cênico e de recursos hídricos, áreas de uso agrícola ou habitacional cujos donos concordam com a indenização e zona de conflito por uso agrícola (PNCD, 2003) Em uma tese contundente, SEABRA (1998) afirma que o Parque, durante toda sua existência, não cumpriu sua finalidade como Unidade de Conservação. As transgressões a legislação ambiental são evidenciadas pelas mais diversas formas de degradação. Segundo o autor, o Parque Nacional foi criado sobre os escombros naturais e humanos da lavra diamantina, onde ocorre uma mudança de cena: “saem os garimpeiros e agricultores de base familiar abandonando seus postos tradicionais e entram os amantes da natureza e dos esportes radicais. São os ecos do turismo!”. No mesmo trabalho realiza-se uma critica à categorização da Área Protegida em Parque Nacional, afirmando que foi criado em uma área de histórico uso humano e com populações tradicionais. Nesta região, “as marcas do homem estão por toda parte, sem que exista um único pedaço de terra que não esteja revirado pela lavra diamantina, sulcado pelos cultivos comerciais e de subsistência, pisoteado pelo gado bovino ou mesmo açoitado pelo fogo” e conclui depois de verificar o insucesso da ação preservacionista na área “pode-se assegurar que o Parque Nacional da Chapada Diamantina, na concepção última da palavra, NUNCA FOI UM PARQUE NACI ONAL. Ele representa um equívoco jurídico institucional nacional”.Neste sentido realiza de forma independente um zoneamento da área inserindo as populações tradicionais em conjunto com as áreas de preservação e recuperação ambiental, visando o uso
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sustentável e criando restrições ao uso dos recursos naturais na região (SEABRA, 1998). O fato é que desde a criação do Parque até os dias de hoje não cesaram-se os incêndios, a degradação pela agricultura moderna e pecuária ainda é grande e o tão propalado “ecoturismo”, fator motivador da criação do Parque, se mostra, hoje, como uma das principais causas dos impactos ambientais, como na poluição dos rios em Lençóis, Vale do Capão e Andaraí. Além disto, aumentou substancialmente o lixo na região, inclusive dentro do Parque, e o turismo pode ser uma das principais causas da modificação da cultura local. Com o turismo aumentou a prostituição de menores, a violência e tráfico de drogas nas cidades de Lençóis, Andaraí e Vila do Capão. É evidente também o aprofundamento das desigualdades sociais (SEABRA, 1998). Por outro lado, no Pati, as florestas estão em pleno desenvolvimento, incêndios são raros ou inexistentes e o ecoturismo ainda possui bases locais, apesar dos atuais problemas de superpopulação de “ecoturistas” sazonais. Como fica evidente, a critica deste trabalho recai sobre a criação de uma Unidade de Conservação que, implantada sem a devida contextualização e estudos adequados, e principalmente sem o respeito aos direitos das populações tradicionais, aprofundou uma crise social já existente na Chapada Diamantina (SEABRA, 1998). A conservação da natureza, bem como a luta ecológica na Chapada Diamantina como um todo, é de extrema importância, não há dúvidas, porém a ecologia deve ser vista sob uma perspectiva das relações sociais e não apenas das ciências naturais. Deve-se separar o “joio do trigo” , como afirma BOOKCHI N (1998), quando formos apontar os verdadeiros grupos humanos que se utilizam indevidamente da natureza e os grupos resilientes que possuem um potencial real de uso sustentável dos recursos naturais. Além disto, a abordagem da Ecologia Social aponta para uma visão sistêmica em relação à conservação, nesta abordagem, não só a Serra do Sincorá seria de grande importância, mas também seu entorno. Ao criar o Parque Nacional da Chapada Diamantina, o Estado ignorou os elementos humanos da paisagem, as comunidades tradicionais de base familiar, lembranças vivas da história e cultura da Chapada Diamantina (SEABRA,1998). A pressão do Parque sobre as comunidades do Pati, aliada à pressão dos mercados
e do poder
local pode influenciar
decisivamente para lançar
na
marginalidade esta população. Perde a diversidade cultural e biológica: perde a Humanidade!
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4.3. P OPU L AÇÕES T R ADI CI ONAI S E B I ODI VER S I DADE Persiste até os dias atuais um intenso debate sobre as definições de populações tradicionais ou comunidades tradicionais. Estas definições possuem atualmente um caráter
permeado por
um viés
político,
que possibilita o
reconhecimento destas populações e de seus modos de vida, marcados pela interação direta com a natureza. A dificuldade de se realizar definições reside no dinamismo de cada sociedade-cultura, numa intensa confluência entre a tradição e a modernidade. O termo “tradicional” aparentemente denota um sentido de conformidade com o passado, através da transmissão de geração em geração de valores que regem as condutas individuais e coletivas, evidenciando um tanto de estabilidade e imutabilidade (BALANT I ER, 1997). Porém, as culturas e etnias estão sempre em interação, o que aponta para constantes transformações e recriações endo/exógenas, muitas vezes de forma conflitante engendrando novas condutas. Segundo este autor, “ (...) a tradição só joga em parte sobre as aparências de estabilidade ... a tradição ... está dissociada da mera conformidade, da simples continuidade por invariância ou reprodução estrita das formas sociais e culturais, a tradição só age enquanto portadora de um dinamismo que lhe permite a adaptação, dando-lhe a capacidade de tratar os acontecimentos e de explorar algumas das potencialidades alternativas”
O dinamismo preconizado nesta abordagem, além de retirar o ar de ingenuidade destas culturas, exprime uma importante característica das populações tradicionais, que é a constante intercomunicação com a sociedade envolvente o que explica, em parte, as inserções, muitas vezes traumáticas e homogeinizantes, destas populações nos processos econômicos e político, ditados pelo mercado e pelas leis estatais (DI EGUES & ARRUDA, 2001). A maioria das definições sobre populações tradicionais contém cargas etnocêntricas (I CI HI , 1987; BANCO MUNDI AL, 1990 apud COLCHEST ER, 1997). Uma definição mais condizente, apesar das limitações, pode ser encontrada em DI EGUES & ARRUDA (op.cit) onde as sociedades tradicionais seriam, “(...) grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza... refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”.
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Segundo os mesmos autores, os sistemas de manejo dos recursos naturais representam importantes fatores de definição, haja visto que muitas culturas tradicionais possuem um manejo marcado pelo respeito aos ciclos da natureza e pela sua exploração, observando-se a capacidade de recuperação das espécies de animais e plantas utilizadas. Revelando um conjunto complexo de conhecimentos adquiridos pela tradição herdada dos mais velhos, e pelas inter-relações e recriações com as culturas envolventes. A economia das sociedades tradicionais é baseada em uma produção de pequena escala voltada para satisfação das necessidades materiais da família nuclear e da comunidade e venda dos excedentes nos mercados das cidades e vilarejos vizinhos (DI EGUES, 2001). Esta economia de “subsistência” 10 têm como formas de manejo dos ecossistemas a integração entre diversas atividades como a agricultura, pesca, coleta, extração e artesanato. Utilizam-se de técnicas de produção endógenas ou adaptadas de outras culturas, caracterizada pelo baixo impacto e utilização de instrumentos adaptados ao ecossistema local, sendo ambientalmente apropriadas (COLCHEST ER, 1997). As sociedades de pequena escala desenvolveram muitas práticas adaptadas a ecologia local que podem contribuir, na maioria dos casos, para a produção e manutenção da biodiversidade (SMI T H & WI SHNI E, 2000) Um elemento fundamental na relação entre populações tradicionais e a natureza é a noção de território, que não depende somente do meio físico explotado, mas também das relações sociais existentes. Para as sociedades tradicionais camponesas o território teria dimensões mais definidas, apesar da agricultura
10 Pierre Clastres escreveu em sua obra fundamental, A Sociedade Contra o Estado (1978), que a definição de sociedades arcaicas sob o critério da Economia de Subsistência possuí um julgamento de valor, um preconceito, que “destrói a objetividade que ela pretende fixar-se”. Nesta abordagem, para ele etnocêntrica, “as sociedades arcaicas não vivem, mas sobrevivem, e a sua existência é um combate interminável contra a fome, pois elas são incapazes de produzir excedentes, por carência tecnológica e, além disto, cultural”. E afirma “nada de mais tenaz que esta visão de sociedade primitiva, e ao mesmo tempo nada de mais falso”. O principal argumento de Clastres é de que uma grande quantidade destas sociedades, na América do Sul como exemplo, produziam uma quantidade de excedente alimentar muitas vezes equivalente à massa necessária ao consumo anual da comunidade: produção portanto capaz de suprir duplamente as necessidades ou suportar um aumento populacional. O que explicaria os inúmeros momentos de descanso, festejos e rituais praticados pelas sociedades indígenas, por exemplo, em comparação às horas trabalhadas. T alvez possamos afirmar, com este conceito, que o trabalhador brasileiro iletrado e subalimentado, que se deveria qualificar de arcaico e a economia capitalista como a de subsistência, ainda mais porque trabalham para tentar suprir as necessidades diárias e muitas vezes não o consegue. O autor conclui sobre o assunto que a idéia de economia de subsistência advém da ideologia do Ocidente moderno, e de alguma forma do “arsenal conceptual de alguma ciência”. E esta noção etnocêntrica contribui para orientar as estratégias das nações industriais com relação ao “mundo subdesenvolvido”.
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itinerante de pousio, demarcar amplas áreas de uso, sem limites bem definidos (DI EGUES, 2001). Outro importante aspecto sobre a questão territorial,
refere-se a
descontinuidade deste, diferentemente das sociedade urbano-industriais, ou seja, a existência de um território marcado por vazios aparentes (terras em pousio, áreas de estuário usadas estacionalmente, áreas de coleta, caça, etc), o que têm levado os órgão governamentais à transformá-lo em Unidades de Conservação, pois são “selvagens”, gerando conflitos sociais (DI EGUES & ARRUDA, 2001). O território é também o locus das representações e do imaginário mitológico dessas sociedades (DI EGUES, op.cit) e está profundamente relacionado aos saberes locais. Muitas vezes, a íntima relação do homem com o meio em maior dependência e interação faz com que os ciclos naturais sejam associados a explicações míticas ou religiosas. O território das sociedades tradicionais, neste sentido, seria o espaço de uso e representações simbólicas, influenciado pelos saberes. Segundo CAST RO (1997), no campo dos saberes tradicionais as ações práticas respondem a um entendimento formulado na experiência das relações com a natureza, sendo acumulados por gerações. A existência das tradições nos meios ecológicos de alta complexidade deve-se aos saberes acumulados sobre o território. É de fundamental importância a noção de que o território é um espaço definido por e a partir de relações de poder (SOUZA, 1995). Esta definição coloca em questão não apenas as aspectos naturais e físico do espaço ou as ligações efetivas e de identidade entre um grupo social e seus espaço, mas “quem domina ou influencia e como domina ou influencia esse espaço”. Estas questões são essenciais para a compreensão do controle territorial e da autonomia dentro das sociedades tradicionais (com propriedade geralmente familiar e/ou comunal e organização social igualitária) e do conflito destas com a sociedade envolvente, no nosso caso o conflito com as Unidades de Conservação. Neste ponto, emerge a importância do saber como poder e do uso da força pelos estados nacionais. O conhecimento tradicional pode ser definido como o saber e o saber fazer, a respeito do mundo natural e as cosmologias gerados no âmbito das sociedades tradicionais e são transmitidos oralmente de geração em geração. Para muitas destas sociedades existe uma interligação entre o conhecimento da natureza, o manejo dos ecossistemas e os elementos sobrenaturais (DI EGUES, 2000). Argumenta-se que as sociedades indígenas e populações tradicionais possuem um complexo conhecimento Folk, apresentando um vasto repertório de
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conhecimentos etnobiológicos, etnopedológicos, etnotaxionômicos, etnoecológicos, etnocosmológicos, agroecologia, etc (POSEY, 1987a; T OLEDO, 1992; DI EGUES & ARRUDA, 2001). A natureza apresenta-se ao conhecimento destes grupos como um locus de permanente observação, pesquisa, ação e reprodução de saberes. A capacidade de classificação segundo categorias taxonômicas, a biologia local importa numa construção de significados para o processo de comunicação e reprodução do próprio conhecimento (CAST RO, 1997) As populações tradicionais vivem em estreita relação com a natureza, esta relação gera um saber local sobre a ecologia e a biologia, que reverte-se em ação prática (Práxis) modificando e intervindo nos ciclos naturais. O conhecimento etnoecológico permite às populações intervirem nos ecossistemas de forma a não modificarem os ciclos e relações ecológicas de forma que afete a sustentabilidade local e por conseguinte seu próprio meio de vida (T OLEDO, 1992). É importante analisarmos o sistema de representações, símbolos e mitos que estas populações constroem, geralmente associados aos ciclos da natureza, pois é com ele que agem sobre o meio (DI EGUES & ARRUDA, 2001) A interação necessária e inseparável entre as bases cognitivas, a prática tradicional de manejo dos ecossistemas e os elementos cosmológicos e sobrenaturais dão forma a uma potencial resiliência11 à cultura tradicional e aos ecossistemas manejados (BERKES & FOLKE, 1998; BEGGOSSI , s/d; T OLEDO, 2001). A validação dos conhecimentos e inovações das populações tradicionais demonstra que eles têm um valor não redutível ao econômico. A existência dos elementos biológicos está estreitamente vinculada a um sistema ancestral de coexistência, muitas vezes sustentável, entre o homem e o ambiente (CAST RO, 1997). A propriedade nas comunidades tradicionais geralmente é comunal ou comunitária, e muitas vezes mistura-se com a propriedade familiar (DI EGUES, 2001). Nesta forma de propriedade comunal todos os proprietários possuem os mesmos direitos de uso dos recursos naturais, que se estabelece através de regras internas (ALI ER, 1995) e os não proprietários podem ficar excluídos do uso. Os recursos são manejados por uma comunidade identificável de usuários em interdependência. Esses usuários excluem a ação de indivíduos externos, ao mesmo 11
HOLLI NG (1992) apud LEFF (2000) definiu a resiliência dos ecossistemas como a capacidade para manter-se em estado similar as condições de equilibro, as quais dependem das interações dentro do sistema. O equilíbrio é fruto de um constante ciclo de exploração, conservação, liberação ecológica e organização. Neste caso a resiliência é determinada por uma seqüência de liberação e re-organização, sendo considerada como a magnitude de perturbações que podem ser absorvidas antes que mudanças ocorram (BEGOSSI , s/d).
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tempo em que regulam o uso por membros da comunidade local. I nternamente, os direitos aos recursos freqüentemente são igualitários em relação ao acesso e ao uso e existem evidências da habilidade de grupos sociais em elaborar, utilizar e adotar mecanismos muitas vezes nativos de alocação dos direitos de uso entre seus membros (FEENY et al., 1990). Contrariando as teses de Hardin (T ragédia dos Comuns), muitos estudos apontam que as populações não são incapazes de controlar o uso dos recursos, pelo contrário, podem organizar e monitorar o uso de recursos pelos seus membros, alocar direitos de uso e ajustar níveis de utilização para manter a sustentabilidade dos recursos num contexto comunal (FEENY et al., op.cit). Quase sempre sendo mais sustentáveis que as propriedades privadas, estatais e o livre acesso (I BI D, 1990;ALI ER, 1998). Muitos estudos apontam também que as formas comunitárias de acesso aos espaços e aos recursos naturais tem assegurado um uso adequado e sustentável da natureza, conservando os ecossistemas e gerando modos de vida socialmente mais equitativos (DI EGUES, 2001b) Apesar destes sistemas comunais de acesso aos recursos e de propriedade terem persistido até o presente através do conhecimento dos elementos naturais e por normas
culturais
desenvolvidas
historicamente,
observa-se uma tragédia dos
comunitários, juntamente com a tragédia ambiental. As comunidades ao mesmo tempo que são inseridas numa lógica comercial a custa de uma lógica dos valores de uso ou são inseridas numa pressão exportadora, vêem a superexploração da natureza em sua antiga propriedade comunal. Os comuns também estão em ameaça com a criação das Unidades de Conservação de uso restrito. E com relação à Biodiversidade conclui-se que esta pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é a cultura, como conhecimento, que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies e colocar outras, enriquecendo-a com freqüência. Podendo-se falar numa etnobiodiversidade (DI EGUES & ARRUDA, 2001). O que resta da biodiversidade global vem sendo conservada devido à presença das populações tradicionais nestas áreas. Este princípio, da simbiose entre a diversidade cultural e biológica, denominado por T OLEDO (2001) de “axioma biocultural”, é suportado por inúmeras evidencias. Uma delas pode ser evidenciada com a sobreposição de mapas de riqueza biológica com a da diversidade lingüística e entre territórios tradicionais com regiões de alto valor biológico (Atuais Áreas Protegidas) (T OLEDO, op.cit).
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É inegável, atualmente, a importância da diversidade cultural e do conhecimento tradicional e indígena para a conservação da natureza. Como também podemos afirmar que, saindo da noção de nobre selvagem (ALCORN, 1994), as culturas tradicionais estão sendo expulsas de seu território ancestral pela pressão exercida pelo desenvolvimento econômico da sociedade capitalista e pela criação de Áreas Protegidas que não permitem moradores, sendo postos à marginalidade e muitas vezes, contigênciados ou explorados, passam a realizar atividades predatórias sob as lei do mercado (Figura 5). As populações ao conceberem a terra como bem comum, obedeceriam a regras definidas nos cânones do direito consuetudinário, historicamente fundador de sua territorialidade. Os valores dos territórios comunais e a responsabilidade perante o horizonte geracional são mais amplos, nestas sociedades, em detrimento dos valores da propriedade privada e da lógica a curto prazo (CAST RO, op.cit). Este direito referido ao território e ao modo de vida tradicional está incluso na Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992). Após uma abordagem geral sobre algumas definições e contextos, as populações tradicionais são classificadas, segundo DI EGUES (2001) pelas seguintes características: a) Dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir do qual se constrói o modo de vida; b) Conhecimento aprofundado na natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais; c) Noção de território ou espaço social e econômico; d) Moradia e Ocupação territorial por várias gerações; e) Atividades de Subsistência (pouca relação com o mercado); f) Reduzida acumulação de capital; g)I mportância das relações familiares, domésticas ou comunais e as relações de parentesco e compadrio para as atividades econômicas, sociais e culturais; h) I mportância das simbologias, mitos e rituais associados à produção; i) T ecnologia simples e ecológica, com reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal; j) Fraco poder político; l) Auto-identificação/ I dentidade cultural.
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A necessidade de classificação científica dos fatos naturais e das culturas humanas esbarra-se muitas vezes com uma realidade complexa e dinâmica que muitas vezes ultrapassa as classificações vigentes ou deixam estas sem fundamento nos fatos reais. I sto é mais real quando existem inter-relações entre culturas, onde não se observa a linha divisória entre uma ou outra, ou quando existe um processo de transculturação. Neste sentido a questão da identidade passa a ser um critério fundamental para reconhecimento e definição de uma cultura. O reconhecer-se e a auto-identificação permite um fortalecimento social e político das comunidades (DI EGUES, op.cit.).
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5. O VAL E DO PAT I 5.1. A HI S T ÓR I A Antes da chegada dos colonizadores portugueses e da implantação da economia mercantil, a Chapada Diamantina era ocupada por tribos indígenas, principalmente os Maracás, pertencentes a grande nação T apuia. Os Maracás ou Paiaiás ocupavam o Vale do Paraguassú, principalmente a Serra do Ororobó, a Chapada Diamantina Setentrional, Morro do Chapéu e Jacobina (BANDEI RA, 1998). Dentro da mesma nação, pelo sertão baiano, haviam as tribos dos Cariris, Paiaiazes, Sapoias ou Sapuias, Cacherinhéns, T upis, Cariacão, Aracapas e os T abajaras, todas estas dizimadas ou extremamente fragmentadas e reduzidas durante o processo de colonização e exploração do sertão. O ínicio das entradas dos bandeirantes pelos Sertões datam do final do século XVI , consolidando o processo com o advento da mineração nos finais do século XVI I . Os nativos foram exterminados “num ato explicito de selvageria” (BANDEI RA, 1998). Com os bandeirantes vinham os jesuítas e os colonizadores com o cultivo da cana-de-açúcar, do milho, enfim a lavoura, surgem posteriormente as plantações de café e algodão, no Sul da Chapada e o Gado em Rio de Contas e Arredores. O gado e o algodão foram fatores fundamentais no processo colonizador- mercantilista, ao dar base para o estabelecimento de aldeias e fonte de abastecimento local. Durante a época do ouro e o início das descobertas de diamante, levas de aventureiros chegavam e iam se instalando nas encostas da Chapada Velha em busca da sorte. De início, o centro diamantífero foi na Serra da Aroeira, na Chapada Velha, durando até 1844. A partir desta data, passou-se a explorar diamante próximo a Mucugê. Houve então uma grande corrida para a região, preservada por séculos pelos Maracás devido ao difícil acesso. Esta Zona passou a ser conhecida com o nome de Lavras Diamantina, abrangendo os municípios de Mucugê, Andaraí, Lençóis e Palmeiras (BANDEI RA. 1998). Colaboraram com o movimento colonizador, os senhores de engenho, que com as levas de escravos, edificaram vilas e cidades, implantando um poder político feroz, com terras doadas pela corte. Esta elite local, os conhecidos coronéis, enriqueceram nas Lavras mediante trabalho escravo e detinham o poder e controle de grandes levas de terra na região. A Chapada Diamantina hoje é politicamente centrada nas mão dos grandes fazendeiros.
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A Chapada Diamantina também é uma das regiões mais pobres da Bahia, com altos índices de miserabilidade (SEABRA, 1998). Populações inteiras de camponeses são expulsas de suas terras ou saem em busca de melhores condições no Sudeste do País, muitos se organizam em movimentos sociais como o Movimento dos T rabalhadores Sem T erra, que possui muitos assentamentos na região. O turismo foi incentivado com a criação do Parque e hoje constitui uma grande “mina de ouro” para os empresários, que buscam mão de obra barata e todas as condições para prosperar neste novo ciclo econômico que se cria. A História do Vale do Pati é permeada por inúmeros mistérios e dúvidas quanto a origem dos primeiro habitantes e da constituição histórica do local. A hipótese mais provável sobre a ocupação e apropriação do Vale do Pati é que suas terras tenham sido indígenas, provavelmente ocupadas pelos índios Maracás expulsos pelo processo colonizador, que foi sendo ocupado gradativamente juntamente com a expansão do Garimpo nas serras adjacentes. Segundo afirmação de alguns moradores, o primeiro a chegar e se instalar nas terras férteis do Vale foi o Sr. Manuel Pati que veio do Mucugê, antigo arraial de Santa I sabel, para fazer roça, dele se originou o nome do Vale e todas as terras que posteriormente foram sendo adquiridas pelos antepassados e atuais patizeiros. T udo isto ocorreu em meados do século XI X, e pode ser parcialmente ilustrado pela dissertação sobre a história da família Oliveira (Sr.Eduardo e Dona Lica) escrita por sua neta (16 anos), uma estudante da escola comunitária do Cachoeirão: “ Os meus tataravós vieram de Capão , na época da seca. Vinheram para cá fazer roça e tentar formar uma vida melhor. Moravam no Pati de Cima onde nessa época foi chegando muita gente que até formou uma ruinha12. Logo que chegaram aqui, compraram burro para transportar o alimento da cidade. Meus bizavós que é João Oliveira e Beta Oliveira que compraram terra no Cochoeirão, a atividade econômica era o café e plantava cana para rapadura. O café era para vender na cidade e a rapadura era para vender aqui (...) Nessa época meu Avo já tinhas se casado (...) e tiveram dez filhos.” O entendimento do processo de povoamento do Vale do Pati requer uma ligação com o processo de formação sócio-econômica do território da Chapada Diamantina e da distribuição do poder na região, marcado pelo latifúndio, pelo coronelismo e pela consequente centralização do poder e do território (BANDEI RA, 1998). Este processo pode
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Na época do café formou-se uma pequena rua no Pati de Cima, com algumas casas, vendas e uma igreja. Atualmente, o local têm apenas uma igrejinha que foi derrubada para reformas através dos mutirões comunitários. A local também é parada de dormida dos turistas.
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ter favorecido o isolamento relativo dos patizeiros entre as serras em busca de terra fértil e livre para o roçado. E mesmo sob influencia constante da economia capitalista e de seus declínios a cultura patizeira permaneceu nos vales. O cultivo do café, implantado principalmente nos vales íngremes, foi um dos ciclos econômicos que se somou às atividades tradicionais na Chapada Diamantina, principalmente a partir do declínio nas lavras de diamante em 1870 (SEABRA, 1998). A introdução do café no Vale do Pati se deu tipicamente como em toda atividade monocultora em comunidades tradicionais, com a sedução do lavrador para iniciar uma prática econômica, com a promessa de maiores ganhos e facilidade de produção, inserindo-se desta forma mais fortemente ao mercado capitalista. Nas décadas de 60 e 70 a população do Pati diminuiu devido a crise da produção cafeeira. Os solos dão sinais de cansaço e o governo federal, através do Programa Nacional de Erradicação do Café, inicia um processo de financiamento para o produtor deixar as plantações de café substituindo-as por outras variedades (FUNCH, 1997). A inserção do Pati na economia de mercado gerou degradação ecológica e empobrecimento de boa parte dos pequenos produtores. Nos anos 80 e 90, até os dias de hoje, o Pati passa a ser rota do chamado “ecoturismo”, que, no ínicio, era realizado por aventureiros que começaram a descobrir as belezas cênicas e naturais do Vale. Por estes motivos, o Vale do Pati passa a fazer parte da proposta de criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, em 1985. Posteriormente a criação do Parque Nacional, a população do Pati passa a entrar na lógica do turismo, controlando parte do território acessado pelos “ecoturistas” e fazendo de suas casas um meio de hospedagem. O “ecoturismo”, apesar de contribuir, muitas vezes negativamente, para uma modificação da cultura local, não substituiu as práticas tradicionais já existentes. Pelo contrário, a nova atividade econômica reforçou estas práticas, chegando em alguns casos a aumentar o esforço produtivo dentro do Vale, devido a demanda pelo consumo de alimentos.
5.2. A CUL T U R A As ciências humanas, principalmente a antropologia, constantemente reduz determinadas realidades socio-culturais através de classificações, muitas vezes redutoras, pela própria generalização. Estas classificações guardam em seu arcabouço epistemológico o
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discurso do rigor e da objetividade e podem ter como parâmetros interativos ou em separação, os fatores ambientais /geográficos ou a própria linguagem. Os recortes realizados, necessários para facilitar os programas de pesquisas, muitas vezes impedem uma análise mais complexa dos fenômenos de uma cultura. A necessidade científica de classificação e categorizarão das populações tradicionais gera um complicador quando nos referimos a Comunidade moradora do Pati de Baixo. Se seguirmos a definição de Darci Ribeiro (1995), Manuel Diegues Jr (1980) e mais recentemente de Diegues & Arruda (2001), consideraríamos a população do Pati como sertanejos típicos. Porém, esta classificação talvez não seja procedente para o caso. A formação cultural e os diversos elementos que compõe a cultura patizeira abrem perspectivas interessantes, repletas de junções. Vemos elementos sertanejos nos trajes de couro, no uso do burro, nas construções de adobe13, na música (Forró) e no falar camponês. Por outro lado, a agricultura e o manejo dos ecossistemas (Agricultura de coivara, na produção de farinha, na comida e pomares agroflorestais) é típica dos povos das florestas tropicais das Américas, originada dos povos indígenas que habitavam o litoral e interior do Brasil (POSEY, 1986; MART I NS, 2001; ADAMS, 2000; AMOROZO, 2000). Outro elemento importante da cultura patizeira está representado pelas influências dos povos negros, não só visto nas feições, mas nos Jarês 14 do Centro de Umbanda e nos festejos locais. Na época do Garimpo, o trabalho “livre” se mesclava ao trabalho escravo dos negros na garimpagem, que em inúmeras ocasiões fugiam dando origem a quilombos na Chapada Diamantina (BANDEI RA, 1998). A influência negra abre um interessante caminho para algumas indagações referentes ás origens da cultura patizeira e possibilidades de novos estudos. Existem dúvidas quanto à formação e existência de um quilombo na área o que pode dar maior relevância à cultura local. T anto o modo de vida, quanto os sistemas culturais, simbólicos e as formas de sociabilidade das pessoas que vivem no Vale do Pati são singulares. Moradores dos vales íngremes, úmidos e florestados no interior do Parque Nacional da Chapada Diamantina, cercados pelos cerradões e caatingas do semi-árido baiano, a oeste, se adaptaram e recriaram sua cultura, criando um modo de vida ímpar na região com fortes influências entrecruzadas de diversas culturas. Observa-se uma miscigenação de elementos da cultura
13 Construção típica do nordestino para morada ou casas de produção (farinha, rapadura, etc). Utilizase basicamente uma mistura de terra com água para levantar as edificações. 14 Religião presente no Vale do Pati. Constitui uma variação do Candomblé, que na Chapada Diamantina denomina-se Jarê. No Vale do Pati o Jarê possui uma singularidade em relação ao restante da Chapada e é realizada no Centro de Umbanda do Pai Baiano.
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africana dos grupos populacionais que adentraram o sertão da Chapada Diamantina, com grupos de europeus de cultura portuguesa já mesclados à forte presença indígena. Os habitantes do Pati de Baixo (Fotos 10, 11, 12 e 13) possuem relações interpessoais cooperativas com raízes na vida dura do Garimpo e da Policultura familiar, já fizeram e viram a monocultura do café brotar em suas terras e hoje acrescentam o chamado Ecoturismo em seu sonho de viver o e no Pati. Estas pessoas, juntamente com os moradores do Pati de Cima vivem hoje a inquietude da perda, motivada pelo constante risco de expulsão de seu território pela força e poder do mito e das leis, dos Parques Nacionais.
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F ot o 10 – Dona Lica, moradora do Cachoeirão
F ot o 11 – Sr. Eduardo, morador do Cachoeirão
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F ot o 12 – Dona Elenice. Moradora do Cachoeirão
F ot o 13 – Sr Massur, morador do Pati de Baixo
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5.3. S ENT I DOS E CONF I GUR AÇÕES DA PAI S AGEM A paisagem15 é fruto da interação entre o homem e seu ambiente. Neste sentido, termos como co-evolução e Ecologia de Paisagem entram em voga e tornam-se fundamentais para se entender, de forma complexa, a história ecológica e cultural, na interação do homem com a natureza, até os dias atuais. A paisagem patizeira é dinâmica, estando sempre em reconstrução e a atual configuração da biodiversidade no Pati deve-se a co-existência com a cultura local. A paisagem é simbolizada e utilizada de forma diferenciada entre o patizeiro e os turistas, políticos e ambientalistas. Muitos destes últimos, passam pelo Vale do Pati com o objetivo de visitar as belas Cachoeiras do Funil, Calixto e Cachoeirão, de ver as paisagens exuberantes das serras e vales e se livrarem do estresse da vida na cidades vivendo momentaneamente o mundo natural. Outros também vislumbram o ganho financeiro com a exploração turística das belezas cênicas. Esta reverencia, muitas vezes espiritualista, do mundo natural, enquanto beleza cênica, não é muito compartilhada pelos patizeiros do cachoeirão. Muitos destes, dos mais velhos aos mais novos, nem sequer viram tais cachoeiras e a percepção das belezas paisagísticas é sobreposta pela dureza do trabalho cotidiano e dos elementos da natureza que os permeiam. Hoje alguns habitantes, principalmente os mais jovens, são incentivados a perceberem tais paisagens como fonte econômica e até de beleza estética, ao guiarem turistas em direção as cachoeiras. O “olhar” das elites urbanas sobre a natureza tende a privilegiar o estético, o paradisíaco, e também o selvagem, enquanto que as comunidades locais privilegiam o lugar, o espaço onde vivem, onde trabalham e se reproduzem socialmente, isto é, o seu território (DI EGUES, 2000) A sensibilidade à terra, o afeto, se faz de outra maneira, através de outro olhar significativo na cultura patizeira. A terra é viva e é apropriada para consecução de seus objetivos produtivos utilitários e simbólicos. A visão que prevalece é a do roçado, dos pomares, dos animais de caça, domésticos e os que interagem em seus domínios. Da água para matar a sede e lavar as roupas. Da terra que vai brotar o alimento, as arvores e onde vivem os ancestrais.
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Lassere (1997) apud Diegues (2000), considera paisagem como “... no sentido ecológico do termo é uma estrutura espacial que resulta da interação entre os processos naturais e atividades humanas. Sobre o fundo estável de uma arquitetura do conjunto (montanhas, pântanos, etc) a transformação dos modos de ocupação do solo e dos sistemas de produção modifica a disposição dos habitats, a repartição dos agroecosisstemas, a fisionomia da floresta. As sociedades humanas modelam seu território...mas a vegetação também tem uma dinâmica própria...”
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A concepção de natureza como interação direta pode ser bem vista nestes trechos de depoimentos dos estudantes: “A natureza têm muito material que o homem precisa, como as árvores que podemos utilizar para construção. Com a água podemos fazer nossa alimentação, como um chá, como a água para beber e cuidar de nossa higiene e de nossa saúde. Podemos utilizar a terra para fazer hortas e plantações, criar nosso animal, construir a nossa casa e ter um espaço para brincar. Com as sementes fazemos artesanato como a lágrima de nossa senhora, e usamos bambu para fazer quiosque e colar... T odos os remédios que o homem precisa usar da natureza. Na natureza tem animais que o homem precisa usar na alimentação, como a paca que o homem mata pra comer.” (Estudante da Escola do Cachoeirão: 15 anos) “A natureza têm muitas coisas que são muito importantes para os seres humanos. Só que os seres humanos tem que saber trabalhar com a natureza...” (Estudante da Escola do Cachoeirão: 18 anos) A paisagem no Vale do Pati é descontínua, marcada por áreas florestais, capoeiras e roçados que se sobrepõe em constante dinamismo. A paisagem construída pelo próprio dinamismo natural e pela interação mutualistica entre a cultura e a natureza pode ser descrito como um verdadeiro mosaico16 (Figura 6)
16 Defini-se uma paisagem em mosaico como ecossistemas que sofreram perturbações intermediárias por fatores antrópicos ou naturais, ocasionando a distribuição sucessional diferenciada, no tempo e no espaço, numa superfície relativamente pequena. A variação de estágios de desenvolvimento em cada mancha florestal contribui para manter a considerável diversidade de ecossistemas (GLI ESSMAN, 2001). Entende-se por sucessão natural, o processo de desenvolvimento de uma comunidade (ecossistemas) em função das modificações das composições no ambiente considerado (ALMEI DA, 2000). Os estudos ecológicos distinguem dois tipos básicos de sucessão dos ecossistemas naturais: A sucessão primária é o desenvolvimento de ecossistemas em locais que não foram ocupados anteriormente por organismos vivos ou não sofreram modificações geradas pelos fatores bióticos com vistas ao aproveitamento dos componentes abióticos. A sucessão secundária é o desenvolvimento de ecossistemas em locais previamente ocupados por organismos vivos, mas que foram perturbados por fatores como enchente, incêndio, vento severo e antropização. A sucessão secundária pode ser dividida em estágios iniciais de regeneração (capoeiras), intermediários (avançado) e de maturidade (Ver GLI ESSMAN, 2001; ALMEI DA, 2000). O estágio de maturidade de um ecossistema constitui fonte de muitas controvérsias. Alguns ecólogos como ALMEI DA (2000) consideram a maturidade como clímax, ou seja um estágio final, onde o ecossistema chega a seu equilíbrio. Já muito ecólogos, principalmente ecólogos da paisagem, trabalham com o conceito de ecologia do não equilíbrio ou de equilíbrio dinâmico, onde todos ambientes estão em constante modificação e evoluindo para novas variedades devido a ocorrência de perturbações em grande e pequena escalas (GLI ESSMAN, 2001).
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Figur a 6 – Desenho da Paisagem no Pati de Baixo. Adaptado do site www.infochapada.com
Logo na descida da Ladeira do I mpério, na trilha Andaraí - Pati, podemos perceber como a paisagem toma forma. A agricultura na área é a agricultura de coivara. O terreno é inclinado e as roças são feitas e adaptadas para estas condições, onde a perda de nutrientes é constante, e encontram-se na base do vale, interagindo entre a mata ciliar, capoeiras e a floresta em estágio avançado de regeneração, que fica mais no meio e no topo inclinado perto dos rochedos. Para o patizeiro “a melhor ter ra é a que fica nos solos não pedregosos, sempre nas encostas” . Entre as roças encontra-se geralmente capoeiras e/ou floresta em estágio intermediário de regeneração. Atualmente no Cachoeirão existem cerca de seis roças itinerantes 17 recém formadas, com tamanhos variando entre cerca de 200 a 700 m2, que interagem com roças já abandonadas, capoeiras e floresta (Foto 14). As florestas encobrem quase a totalidade do Vale do Pati, tendo áreas que provavelmente não foram realizadas atividades agrícolas como nos grotões, nas fendas e nos 17
Ver mapa da paisagem local
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fundo dos vales. No Vale que vai até a cachoeira do Rio Cachoeirão a floresta apresenta um estágio avançado na sucessão das espécies. Segundo os moradores encontra-se muitas árvores no Vale (T abela 1), muitas de grande porte (Foto 15). A condição diferencial dos estágios sucessionais na paisagem local, favorecido pela interação Cultura-Natureza, cria um ambiente de grande complexidade, podendo favorecer a biodiversidade local e a conservação (DI EGUES, 2000; ALT I ERI & NI CHOLLS, 2000). Um estudo da história eco/social no Pati poderia oferecer evidências interessantes sobre a manutenção e criação da biodiversidade, principalmente após o término do ciclo do café. Pelas informações repassadas por todos os moradores de que “existiam roças de café por toda parte” e pelo estágio sucessional observado, com vastas áreas florestadas margeando roças e capoeiras, pode-se afirmar que mesmo com os moradores vivendo no Pati vemos uma recuperação do meio natural. Porém deve-se ressaltar a necessidade da realização de estudos mais aprofundados e extensos sobre a ecologia da paisagem e florestal, fitogeografia, a etnobotânica, história agroecológica que subsidiem conclusões e permitam o fortalecimento de ações etnoconservacionista com bases locais. T AB E L A 1: ÁR VOR E S I DE NT I F I CADAS P E L OS I NF OR MANT ES NO P AT I DE B AI XO ÉS P ÉCI ES Araçazinho (Psidium sp.) Aricuzinho (Cocos sp.) Candeia (Pipthocarpha sp.) Candeia (Vanillosmopsis erythropappa) Canjerana (Cabralea sp.) Canjoão (?) Cedro (Cedrela sp) Córea (?) Embaúba (Cecropia sp) Goiabeira (Psidium sp) I mbira (Daphnopsis sp.) I ngazeiro (I ngá sp) Jacarandá (Família Papilionácea) Jambo (Eugenia sp) Jaqueira (Artocarpus integrifolia) Jaboticabeira (Plinia trunciflora)
E S P ÉCI ES Mangueira (Mangifera indica) Mucugê (Couma rígida) Murici (Byrsonima sp) Negramina (T rigonia crotonoides) Palmito (Euterpe sp.) Paraíba (Simaruha versicolor) Pau d´ arco (T abebuia sp) Pau de Ameixa (?) Pau Pombo (T apira tapirira) Pau de Azeitona (?) Pau de Loro (?) Pau de Rego (?) Quina (Família Rubiácea) T aipoca (T ecoma papyrophloes) T ambori (Enterolobium timbauva)
* Plantas identificadas êmica e eticamente (Pistas taxonômicas)
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F ot o 14 – Área de roçado
F ot o 15 – Área florestada.
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5.4. CONEXÕES B I OCU L T UR AI S : MANEJO DOS ECOS S I S T E MAS NAT UR AI S NO VAL E DO PAT I No Vale do Pati, onde o modo de vida tradicional ainda se mantém presente, a população combina atividades de policultura, extrativismo vegetal e caça. Estas atividades visam o uso familiar, a troca, a venda e também suprir os festejos locais. Hoje, o ecoturismo também aparece como uma atividade econômica importante para os moradores. Esta combinação de práticas e usos dos recursos naturais é uma forma de utilização do ecossistema segundo suas características e de acordo com os “ciclos naturais” (DI EGUES & NOGARA, 1999) e está embasada num conjunto de conhecimento e práticas. Existe no local uma extensa taxonomia Folk, segundo a qual os animais e vegetais são classificados em categorias organizadas. Este conhecimento foi abordado na pesquisa de forma muito limitada, devido ao curto tempo dos trabalhos e a inexistência de bibliografias e estudos na área. Abre-se assim um campo para estudos mais aprofundados em etnociências. Como discutido em capitulo anterior, muitas sociedades tradicionais estão em constante interação com as outras sociedades, havendo uma troca constante de informações e muitas vezes com a imposição de modelo produtivos numa lógica capitalista de mercado. Esta articulação pode mudar o ritmo produtivo na região bem como determinar a exploração dos recursos naturais numa intensidade nunca vista no lugar.
5.4.1.I nt er ação com a F lor est a A intervenção dos patizeiros na floresta é fruto dos conhecimentos transmitidos oralmente por gerações e pela criação de novas modalidades de adaptação e recriação do meio ambiente (Práxis). Os moradores do Pati de Baixo fazem a chamada agricultura de pousio florestal, coivara ou derrubada e queima (MART I NS, 2001; ADAMS, 2000; AMOROZO, 2000), o extrativismo florestal e pomares agroflorestais. E é da terra, através do policultivo, que obtém sua principal fonte de alimentos e recursos. A ocorrência deste tipo de roça e dos policultivos se repete em todas as áreas florestais do Brasil, e com grande uniformidade de estrutura, de tamanho e de composição, indicando uma raiz comum, com certas variações (MART I NS, 1997). Alguns autores apontam a realização da agricultura de pousio em sociedade indígenas como os T ukâno (CHERNELA, 1997), os Kayapó (POSEY, 1987) e também em populações tradicionais de Caboclos
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Amazônicos (MART I NS, 1997), Caiçaras da Mata Atlântica (ADAMS, 2000) e algumas comunidades de agricultores tradicionais do Mato Grosso (AMOROZO, 2000). Muitos destes agroecossistemas constituem repositórios in situ de germnoplasma tanto de plantas silvestres como de cultivos nativos (ALT I ERI & NI CHOLLS, 2000). Uma das características da agricultura tradicional, na América Latina, é a dependência de uma alta biodiversidade. Estes sistemas agrícolas emergiram de séculos de evolução cultural e biológica e representam experiências acumuladas pelos camponeses e indígenas em sua interação com o entorno e sem o uso de insumos, capitais ou conhecimento científicos externos (ALT I ERI & NI CHOLLS, 2000)
a)O E xt r at ivismo F lor est al Por coleta entende-se a obtenção de plantas silvestres, animais e produtos animais, bem como diversos elementos inertes adequados à alimentação, ao uso como matérias primas manufatureiras ou remédios (POSEY, 1987a) O extrativismo de espécies vegetais no Pati é realizado visando principalmente: alimentação, construção de casas, ferramentas de trabalho (enxadas, machados, pilão, etc), para amarras (cipó) e artesanato. Os moradores retiram frutas, lenha, madeira, como a quina e a imbira, cipós, palmito, sementes e bambus. A cultura tradicional revela-se tanto no conhecimento das espécies como no respeito as fases da lua, pois a extração de madeira só ocorre na lua minguante, afim de evitar que os insetos estraguem a madeira, pois, “A madeira cortada fora desta lua, para construção ou cercado apodrece mais rápido” (Moradora do Cachoeirão). A madeira também não é retirada de forma aleatória, escolhendo-se os exemplares de acordo com o tipo de uso, quase sempre doméstico, e de acordo com a idade (Fotos 16,17 e 18). Para a retirada de lenha para os fornos sempre derruba-se árvores secas (T abela 2).
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T AB E L A 2: E XT R AT I VI S MO: ES P ÉCI ES F L OR ES T AI S U T I L I Z ADAS P AR A CONS T R U ÇÃO, AL I ME NT AÇÃO E E NER GI A E S P ÉCI ES Candeia (Vanillosmopsis erythropappa) Candeia (Pipthocarpha sp.) Quina (Família Rubiácea) Pau-Pombo (T apira tapirira) Córea (?) I mbira (Daphnopsis sp.) Cipós T ambori (Enterolobium timbauva) Negramina (T rigonia crotonoides) Araçazinho (Psidium sp.) Aricuzinho (Cocos sp.) Jambo (Eugenia sp) Murici (Byrsonima sp) Mucugê (Couma rígida) T aipoca (T ecoma papyrophloes) Canjoao (?) Palmito (Euterpe sp.) Gameleira (Família das Moráceas)
U T I L I Z AÇÃO Lenha Lenha Lenha, Construção, Berimbau Lenha, fruto Lenha Vassoura, Cabo de Enchada, Artesanato Artesanato, cordas Fogueira, Lenha Lenha Varas Lenha Frutas Frutas Frutas Pilão, Machado e Construção Chá Medicinal (Diarréias) Alimentação Goma para verrugas
* Plantas identificadas êmica e eticamente (Pistas taxonômicas)
Algumas descrições dos usos podem ser observadas nestes trechos das dissertações dos estudantes da escola do Cachoeirão: “A natureza tem muitas riquezas que tiramos quando precisamos ... algumas são medicinais, artesanato e construção ... boldo serve para dar o chá, do sabugueiro serve para o sarampo, erva-cidreira o chá serve para dor de barriga ... Para fazer artesanato usa-se sementes, cipó ... Construção - usamos vara, tronco, óleo, resina ...” (Estudante da Escola Cachoeirão - 16 anos) “Precisamos de árvore para fazermos nossas casas, para fazer cercado, para fazer horta, para fazer cerca. O cipó fazemos o artesanato, a quina podemos fazer o berimbau, as varas podemos fazer brinquedos, com o barro fazemos casas, telhas, artesanato ... precisamos muito da natureza, se nós não tivéssemos ela, nos não estaríamos aqui.” (Estudante da Escola Cachoeirão - 13 anos) O extrativismo visa apenas o uso local e o impacto desta atividade deve ser objeto de estudos. E em casos de se ter necessidade de modificação desta prática, o que não corresponde a realidade atual, deve-se, ao invés da repreensão, apontar meios educativos e formas participativas de gestão da natureza que gere novas alternativas compatíveis com a cultura local.
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F ot os 16,17 e 18 (S eqüência)– Victor e Coquinho num processo de Extração de I mbira
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b)O Pomar e a Hor t a É de costume no Pati de Baixo o plantio de árvores (T abela 3) nas proximidades das moradias, cujos frutos e partes são utilizados para consumo doméstico, produção de doces, decoração, e em alguns casos, como a banana, para ser vendidas principalmente para os turistas e também utilizadas para servir aos festejos locais, fazendo a famosa iguaria local: o Godó (Prato feito com a banana ainda madura). Além das frutíferas, algumas casas possuíam o café em seus pomares (Fotos 19 e 20). Com a jaca e a banana são produzidos alguns doces como a banana passa e a jaca passa que geralmente é para consumo próprio ou é vendida para os turistas que passam pelo Vale do Pati: “A jaqueira ela produz flores, e depois dá os frutos, ela cresce bastante. O fruto não sei até quando ela dura na vida, mas ela dura bastante. A jaqueira tem dois tipos, uma é a jaca mole outra é a jaca dura que faz até doce. Com a jaca se faz jaca passas para uma bela merenda. Que delicia”. (Estudante da Escola do Cachoeirão - 15 anos) Não raro, é possível observar nas trilhas que levam às moradias locais algumas espécies frutíferas e de extração que foram plantadas pelos moradores e deixadas nos locais para uso comum, formando verdadeiros espaços agroflorestais. Alguns destes espaços são antigas roças de bananeiras. T ambém próximo às moradias, nos quintais, custuma-se plantar, nos canteiros, flores, ervas medicinais e algumas hortaliças e condimentos para a cozinha (T abela 3) (Fotos 21 e 22). As plantas medicinais são recursos importantes que ligam as pessoas com o ambiente. O conhecimento nativo em plantas medicinais é, geralmente, pouco difundido entre as populações ocidentais e a maior parte das populações do mundo se utilizam dos conhecimentos da medicina tradicional (BEGOSSI , 2001). No vale do Pati encontra-se um Centro de Umbanda (Jarê), que atua como centro difusor da religião e de forma interligada, da cura através de ervas e rituais. As ervas coletadas e utilizadas pelos moradores são as seguintes:
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T AB E L A 3 : E R VAS E ÁR VOR ES U T I L I Z ADAS , R E T I R ADAS DOS P OMAR ES E HOR T AS NO P AT I DE B AI XO E S P ÉCI ES F r ut íf er as Abacaxi (Anana sativus) Laranjeira (Citrus sp.) Limoeiro (Citrus sp.) Mangueira (Mangifera indica) Bananeira (Musa paradisíaca) Abacateiro (Persea sp.) Jaqueira (Artocarpus integrifolia) Jabuticabeira (Plinia trunciflora) Goiabeira (Psidium sp) Mamoeiro (Carica papaya) Cajuzeiro (Anacardium occidentale) Pinha (Anonna sp.) Jambo (Eugenia sp) Sabugueiro (Sambucus sp) E r vas Pimenta (Pimenta sp) Boldo (Pneumus boldus) Hortelã (Mentha sp) Arruda da serra (Família das Rutáceas) Cidreira (Cymbopogon sp.) Capim – santo (Andropogon nardus) Quitoco (Pluchea sp.) Gengibre (Zingiber sp.) Manjericão (Ocimum sp.) Arnica (Arnica montana) Erva doce (Foeniculum vulgare) Mil folhas (Achillea millefolium) Couve (Brassica sp) Açafrão (Escobedia curialis) Salsa (Petroselinum sp) Quebra-pedra (Phyllanthus sp) Romã (Punica sp) Mentras (Família das Labiadas) Out r os Cebola (Allium sp) Alho (Allium sativus)
U T I L I Z AÇÃO Alimentação Gripe/ Alimentação Gripe Alimentação Alimentação/ banana passa Alimentação Alimentação/ jaca passa Alimentação Alimentação/ T rata diarréia Alimentação Alimentação Alimentação Alimentação/ doces Sarampo / Estômago Condimento Dor de barriga/ Fígado Verme Vias respiratórias Calmante Gripe Fígado Gripe/ I nflamação na garganta Gripe/ T empero Cicatrização e Pancada/Dores Musculares Gripe/ Pressão alta/ Diarréia Dor no corpo Gastrite Corante (Junto com sabugueiro - sarampo) T empero Rins/ I nfecção I nflamação da garganta I nflamação Gripe/ T empero Gripe/ tempero
* Plantas identificadas êmica e eticamente (Pistas taxonômicas)
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F ot o 19 – Pomar existente na moradia do Sr. Bezo
F ot o 20 – Pomar existente na casa do Sr. Massur
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F ot os 21 e 22 (S eqüência) – Dona Lica retirando amostras de ervas que utiliza na medicina caseira e para condimentos
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c) A r oça A agricultura de pousio é realizada através da derrubada, queima e plantio, até quando o solo começa a esgotar-se (geralmente em três anos). Após este tempo, o agricultor abandona a área, deixando-a em recuperação e inicia-se uma nova roça em uma antiga plantação. Esta técnica caracteriza-se por: ter um número e tamanho de parcelas trabalhadas variando com a fertilidade do solo, a densidade populacional, a extensão do pousio e grau de comercialização; pode haver troca de espécimes; geralmente a posse de terra é comum; muitas vezes ocorre mutirão para limpeza da área; método de cultivo é baseado na força animal ou humana, com utilização de ferramentas manuais; existe pouco cultivo e pouco manejo após o semeio das culturas; a fertilidade do solo é mantida com o uso de estercos, ou, na maioria das vezes com a própria cinza da queima e decomposição da vegetação (ADAMS, 2000). Neste tipo de prática agrícola, herdada dos indígenas, não há necessidade de utilização de nenhum arsenal de técnicas ou instrumentos agrícolas de alta tecnologia. No Pati utiliza-se principalmente o facão, a enxada e o machado. O fogo também possui papel fundamental no cultivo itinerante do Pati, e contrariando os preservacionistas, utilizando-o de forma controlada no roçado, pode ter um papel importante na manutenção da biodiversidade e no controle dos incêndios naturais (GLI ESSMAN, 2001) e criminosos que devastam os ecossistemas do Parque Nacional da Chapada Diamantina. O trabalho na roça é realizado por toda família, pelos casais, filhos e netos. Cada família possui seu roçado que se distribuem pelas encostas íngremes do Vale, ficando próximas das moradias e circundados por antigos roçados, ainda manejados, por Floresta Secundária em diversos estágios de sucessão e por mata ciliar. Algumas roças são combinadas com diversas culturas perenes. A principal cultura utilizada nos roçados é a mandioca (Manihot esculenta), servindo para fazer a farinha e outras iguarias. Planta-se, em conjunto, o milho (Zea mays), o feijão (Canavalia sp) e a cana-de-açucar (Saccharum officinale). O plantio da mandioca, do milho e do feijão ocorre geralmente nos períodos de março/ abril e setembro/outubro e novembro, épocas com os menores índices pluviométricos na região da Chapada Diamantina. Além dos meses correlatos o plantio deve ser realizado de acordo com os ciclos lunares, sendo a mandioca, o feijão e o milho plantados com a lua nova ou crescente, pois, segundo um morador do Cachoeirão, “A lua têm ciência e ajuda a crescer”. Em contrapartida, o plantio da cana-de-açúcar ocorre com a lua minguante senão, “Se plantar com lua crescente da broca, uma lagartinha” (Morador do Cachoeirão)
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A conhecimento da interação entre os ciclos lunares, as fases das plantas silvestres e cultivares, e a fauna corresponde a um valioso artifício que a comunidade têm para manter um sistema agrícola resiliente. O plantio é realizado em antigos roçados em descanso e nas seguintes etapas (Foto 23 e 24): 1 - Escolha de uma área não pedregosa e com solo fértil; 2 - Roçar a vegetação arbustiva e herbácea; 3 - Corte e derrubada de árvores de maior porte em antigas capoeiras; 4 - Amontoa-se os troncos e galhos (Coivara); 5 - Coloca-se fogo de forma controlada por aceros 18. As cinzas proporcionam condições para um melhor desenvolvimento dos cultivares. Para o patizeiro, “Se não limpar o mato não nasce nada, parece que têm micróbio, que não deixa crescer, têm que queimar ... se não queima a mandioca nasce mirrada” (Morador do Cachoeirão) 6 - Fazer a cova para inserção da maniva da mandioca, algumas vezes é introduzida sementes de feijão em consórcio com a mandioca. A mandioca começa a ser colhida entre seis meses a um ano, a depender da demanda, e pode ficar na roça por cerca de 03 anos. Ocorrem cerca de três plantios em cada roça, esgotando o solo em seguida. A roça, então, é abandonada e deixada em descanso, onde será colonizada por outras espécies, avançando no processo de sucessão. O descanso dura de dois a dez anos e é uma das fases mais importantes da agricultura de pousio, a que garante a sustentabilidade deste modelo agroecológico (ADAMS,2000). O agricultor do Pati sabe da importância deste período; “Quanto mais o mato cria mais a terra é forte e mais descansada... a folha vai caindo e dando sustança a terra ... a terra afofa toda. Faz uma roça aqui, deixa, e em alguns anos ele recupera e vira aquele mato ali“ (Morador do Cachoeirão - Apontando uma floresta em Estágio inicial de sucessão) Os moradores não se utilizam de insumos externos como agrotóxicos e pesticidas para controle de pragas, que é feito pela própria técnica da agricultura itinerante de derrubada e queima e pela realização de um policultivo rico em diversidade intra-específica e
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São faixas limpas de vegetação utilizada para realização de queimadas controladas. São feitos canais, com profundidade e larguras adequadas, no entorno da área onde será realizado a queima. Evitando-se desta forma a passagem do fogo para outras áreas e o descontrole (RAMOS & SANT OS, 2001).
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de espécies (POSEY, 1987; GLI ESSMAN, 2001). Como afirmam, “Não se usa nenhum remédio! Sabendo plantar os insetos não pegam” (Morador do cachoeirão) Boa parte da produção de mandioca é processada e torrada artesanalmente nas casas de farinha, onde posteriormente será usada para consumo próprio ou será vendida sob encomenda. Existem cerca de quatro casas de farinha no Pati de Baixo, construídas com adobe e madeira. A produção obedece as seguintes etapas (Fotos 25,26,27,28 e 29): 1. Após colheita, descasca-se a mandioca; 2. Passa a mandioca já descascada no moedor; 3. Leva a massa ensacada para a prensa, deixando virar o dia; 4. Após estes processos leva-se ao forno para torragem com uso constante de um rodo. Geralmente utilizam o equivalente a 20 “pés” de mandio ca “grossa” para produção de um saco com cerca de 60 Kg. Sabe-se hoje que a agricultura itinerante praticada tradicionalmente é uma forma sustentável de produção, que resulta em mínima erosão genética e máxima conservação, podendo continuar indefinidamente nos solos pouco férteis encontrados sob a maioria das florestas tropicais úmidas, contanto que o suporte da terra não seja excedida (ADAMS, 2000), o que pode ocorrer por diminuição do tempo de descanso, aumento gradativo das áreas roçadas, incremento tecnológico e uso de insumos externos, caso haja inserção direta das comunidades na economia capitalista, aumento populacional e restrição do território tradicional.
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F ot os 23 – Processo de limpeza do terreno
F ot os 24 – Roça de mandioca
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F ot os 25, 26, 27, 28 e 29 (seqüência) – Processo de fabricação da farinha, realizado por T onho e Loma
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5.4.2.I nt er ação com a F auna Muitos animais do Vale do Pati (Figura 7 e T abela 4) têm ao mesmo tempo uma conotação misteriosa, amedrontadora e uma função ecológica, alimentar e econômica. Conversando com o Sr. Eduardo, na trilha Andarai-Pati, sobre a fauna local observei que alguns animais representam uma ameaça gerando medo e mitos. A onça pintada talvez seja o maior deles, é “Bicho -fera que sangra os bois”. Questionado se ainda existe onça na região, “foi visto uma onça preta onti a noite perto da bica” (A bica é uma área onde os burros param para beber água). E onde elas ficam, “ficam mais nas serras, mas já pegou uns burros de Sr. Mansur “. Os animais de Sr. Mansur foram atacados e mortos, acredita-se que por uma onça, em sua morada na parte baixa do Vale, o Sr Mansur foi indenizado pelo I BAMA para que não matasse o animal. Segundo alguns moradores, a onça vive pelas serras da Garapa, Andarai, Mucugê, Gavião e nos Gerais do Rio Preto e do Vieira até chegar ao Morro do Castelo. E podem ser descritas da seguinte forma: “A onça é um animal de cores preta e amarela, outras pretas que são as panteras. Ela fica mais na mata, não é fácil encontrar ela porque ela aparece quando está com fome, ela come carne, como outros animais como burros, mocó, todos esses bichos que fica na mata, os dentes dela é bem afiados, é capaz de comer até gente, ela é da família do gato, tem unhas afiadas, ela salta, sobe arvores” (Estudante da Escola Cachoeirão: 13 anos) As serpentes também alimentam o imaginário de medo em muitos moradores, muitas delas vivem em volta das casas e se encontradas podem ser mortas senão “podem voltar e fazer algum mal”. Segundo Sr. Eduardo, as cobras possuem pés, “dois pé na frente e mais dois perto do cabo” que utilizam para subir em árvores, segundo ele os pés são bem visíveis e “somem quando pegamos ela”. Alguma cobras como a cascavel voam “elas voam para nos atacar”. Muitas “pegam as galinhas toda”. O medo da cobra e sua conseguinte morte, segundo os moradores lhes trarão segurança, pois estes animais podem representar a perda de animais importantes para a vida patizeira como o Burro e as galinhas, bem como representa perigo para os moradores, que para chegar a um posto médico em caso de picada teriam que ser carregados por 22 Km por cerca de 6 horas (Foto 30). Alguns primatas interagem com os moradores de forma harmônica, e segundo os patizeiros dentre eles está o “soin”, “macaquinho pequeno com rabo grande” que vive de preferência na “mata mais grossa” nos grotões e vales mais fechados. T ambém passam em bandos pelos pomares e perto das casas na época das frutíferas. Os Barbados, ameaçados
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de extinção, habitam as florestas mais frondosas das fendas e partes mais altas dos vales mais fechados, são ouvidos e já foram vistos em frente da casa da Família Oliveira, na fenda que origina o córrego Manuel Nunes, e também no Vale da Lapinha, que origina o rio do mesmo nome e onde encontra-se a cachoeira do Calixto. Os Barbados “vivem na serra, quando turram da um ecos que restrondo tudo... quando firma pra chover eles turram” . As vocalizações, segundo os patizeiros ocorrem quando aproximam-se as nuvens de precipitação. A percepção dos ciclos naturais, por parte dos moradores, é muito acurada e está ligada ao comportamento da fauna, floração, ciclos da lua e clima. Os Barbados foram vistos recentemente, pelos moradores, atravessando, em solo, os gerais do Vieira, podendo indicar fluxos migratórios de novos bandos para outras áreas. Estes primatas eram caçados no Vale do Pati para alimentação da população local. A caça dos Bugios está encerrada, provavelmente devido à diminuição do número de espécimes e/ou devido a pressão do I BAMA. A avefauna também é abundante no vale. Vivem na Chapada Diamantina cerca de 354 espécies de aves (PARRI NI et alii, 1999).
Algumas são representativas para os
moradores por sua beleza estética e canto a ave “Aracuã companheira do Jacú ...quando faz festa é que tá pra chover”. As principais aves identificadas pelos moradores estão descritas na T abela 5. Aves como a Araponga, Maritaca, Saira-sete-cores, Sanhaço, etc, listada pelos informantes segundo sua presença, proximidade e abundância, também podem ser importantes indicadores do estágio de desenvolvimento da floresta local (ALMEI DA, 2000). No Vale do Pati a caça é uma atividade que visa apenas a obtenção de proteína para consumo próprio, sendo realizada em pequena escala sempre que necessário. “Aqui nós só caça quando acha caça fácil, só caça pra comer. Se ver no mato e não for comer deixa” (Morador do Cachoeirão) É uma atividade que vem sofrendo modificações devidas, segundo alguns moradores, por falta de caçador e por “desconfiança” do I BAMA. “Já trabalhei muito com a caça, hoje não faço mais por causa da idade” “Não tem mais caçador por aqui... O I BAMBA não deixa caçar, não colocar fogo, não fazer roça , mas não dão dinheiro para as despesas” (Morador do Cachoeirão) Os principais animais caçados são a paca, o tatu e o mocó. São animais que vivem no vale, próximo aos pomares ou roçados, e nas serras.
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“O mocó é um poquinho menor que a preá (...) eu caçava o mocó em ci ma da serra e também no vale (...) carne boa parece galinha ou tatu” (Morador do Cachoeirão) T AB E L A 4 – P R I NCI P AI S R E P R E S E NT ANT E S DOS MAMÍ FE R OS E R ÉP T E I S I DE NT I F I CADOS P E L OS MOR ADOR E S DO P AT I DE B AI XO Filo
Espécies
Ár ea de Maior Ocor r ência/ U sos
Mamíf er os T atu Peba (Euphractus sexcicntus) T atu Galinha (Dasypus novencintus) T atu Rabo de Couro (Cabassois unicinctus) Michila, tamanduá mirim (T amandua tetradactyla) Barbado (Allouatta sp.) Soin (Saguí) (Callithrix penicilata) Saruê (Sariguê) (Didephis albiventris) Cachorro-do-mato (Ducicycon ventulus) Coati (Nasua nasua) Meleiro (Eira bárbara) Gato-do-Mato (Felis wiedii) Jaguatirica (Felis pardalis) Raposa (Dusicyon sp.)
Por todo vale, nas roças / Caça Por todo vale, nas roças / Caça Por todo vale, nas roças / Caça Principalmente nos gerais do Vieira e do Rio Preto / T er cuidado com as unhas afiadas Floresta Secundária, fundo dos vales, fendas / Vocalizam antes das chuvas Floresta Secundária, próximo a frutíferas Floresta Secundária, Quintal e Pomares Floresta Secundária, Capoeiras
Mocó (Kerondon rupestris)
Floresta Secundária, Roças e Pomares Floresta Secundária Floresta Secundária Floresta Secundária Floresta Secundária, Capoeiras, Quintal e Pomares Principalmente nas serras Principalmente na serra de Andaraí Floresta Secundária e Capoeiras Floresta Secundaria, Capoeiras, Quintal e Pomares Floresta Secundária, Rochedos, Próximo aos Rios / Caça Roças, Serra, em Rochedos / Caça
T eiú (T upinambis merignal) Jibóia (Boa constrictor constrictor) Jararaca (Bothrops sp.) Coral (Micrurus sp.) Cabeça de Capanga (Bothrops sp.) Cascavel (Crotalus durissus cascavella) Cipó (Chironius sp.) Cobra d’água (Helicops sp.) Cobra espada ( ? ) Salamanta (Epicrates cenchria assisi) Rabo de Fogo ( ? ) Cainana (Pseutes sp.) Esparradeira (Eaglerophis merrimii)
Floresta Secundária, capoeiras Encontrada em todo vale Floresta Secundária, Capoeiras, Gerais Floresta Secundária, Capoeiras, Gerais Floresta Secundária, Capoeiras, Gerais Capoeiras, Gerais, campos rupestres, rochas e fendas Floresta Secundária, Capoeiras, Gerais Rios e Pedras -
Onça Pintada (Panthera onça) Sussuarana (Felis concolor) Porco do Mato (T ayassu pecari) Luiz caixeiro (Coendou prehensilis) Paca (Aguti paca)
R épt eis
* Fauna identificada êmica e eticamente (Pistas taxonômicas)
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Há muito se discute se a caça de subsistência praticada por camponeses, índios ou outras populações tradicionais, afeta a resiliência das espécies animais nas florestas tropicais, na medida em que alguns consideram que esta atividades são reguladas culturalmente pelas populações e não afetariam a fauna local a longo prazo (ADAMS, 2000). Sem alguns animais domésticos (Foto 31) os moradores do Vale do Pati não conseguiriam reproduzir seu modo de vida entre as escarpas rochosas da Chapada. O Burro, a Galinha e o Cachorro fazem parte da vida no Pati. A interação entre o “animal” ou burro, como chamam, se faz numa relação de mútua dependência. Para o patizeiro o burro é um complemento vital para o transporte e trabalhos de força. O animal torna-se meio material de manutenção da vida econômica (transporte) e de informações, bem como um companheiro nas constantes e longas viagens para Andaraí e Guiné. O Burro permite ao patizeiro transportar as cargas com produtos para venda em Andaraí e o transporte de suprimentos para dentro do Vale, o que seria humanamente impossível sem a força animal. Além disto, o burro serve como “ambulância”, para, quando necessário, levar pessoas com ferimentos ou doentes para os hospitais mais próximos. T AB E L A 5 : AVEF AU NA I DE NT I F I CADA P EL O MOR ADOR E S DO P AT I DE B AI XO E S P ÉCI ES
E S P ÉCI ES
Cauã (Herpetatheres cachinnans) T iziu (Volatinia jacarina) Garrincha (T hryothorus sp.) Caga Sebo (Lophotriccus galeatus) Xiriba (Pyrrhura sp.) Aracuã (Ortalis sp.) Bigode (Sporophila lineola) Garça Branca (Família Ardeidae) Juriti (Leptotila verreauxi) Sanhaço (T raupis sp.) Sofrê (I cterus icterus) Azulão (Passerina sp.) Sabiá Preto (Família T urdidae) Martim pescador (Chlerocery sp.) Seriema (Cariama cristata) Patativa (Sporophila sp.) Vivi Amarelo e Preto (?) Saira-sete-cores (T angara seledon) Araponga (Procnias nudicollis) Coletor (?) Coqui (Gnorimopsar chopi) Alma de Gato (Piaya cayana)
Curió (Oryzoborus angolensis) Jacu (Penélope sp.) T ico-T ico (Zonotrichia capensis) Bem-te-vi (Sub-Familia T yranninae) Carcará (Polyborus plancus) Gavião (Família Accipitridae) Galinha d’água (Gallinula Chloropus) Nambu (T inamus sp.) Verdadeira (?) Fogo Pago (Scardaffela squammata) Cardeal Canário (Paroaria sp.) pica-pau-cabeça vermelha (Dryocopus lineatus) Sabiá-bico-de-osso (Família T urdidae) Curiango (Família Caprimugidae) Mãe de lua (Nyctibius aetereus) Coruja (Família Strigidae) Anum (Crotophaga sp.) Maria Preta (Knipolegus sp.) Cata Capim (Sporophila sp.) Figa (Conirostrum speciocolor) Estevão (?) Sabiá (Família T urdidae)
* Aves identificada êmica e eticamente (Pistas taxonômicas)
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O uso da fauna silvestre e doméstica para fins medicinais está descrita em diversos trabalhos de pesquisa junto às populações tradicionais dos trópicos (BEGOSSI , 2001). Um estudo de SOUT O et al. (1996) realizados em Andaraí, apresenta uma lista da fauna utilizada por alguns moradores locais na medicina, o que abre possibilidades de maiores estudos etnozoológicos na região. O conhecimento etnozoológico do patizeiro, principalmente a respeito da fauna ameaçada de extinção, pode fornecer valiosos dados, que darão subsídios à estratégias de conservação da fauna do Vale do Pati (Figura 7).
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VALE DO PATI
Onça
Tamanduá-mirim
Paca
Jaguatirica
Cobras/Serpente s Mocó
Tatu
Macaco Guariba
Figur a 7 – Mapa da localização de alguns componentes da fauna local (Mamíferos e Répteis), identificados pelos moradores do Pati de Baixo. Adaptado do site www.infochapada.com
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F ot o 30– Cobra Rabo de Fogo
F ot o 31 – Sr. Eduardo alimentando as galinhas
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5.5. S I S T EMA DE ACE S S O A T ER R A E AOS R ECUR S OS NAT U R AI S A maioria dos patizeiros são chamados de posseiros (FUNCH, 1996), possuem a posse da terra, compradas e ocupadas durante os diversos ciclos econômicos, porém poucos possuem o título de proprietário. As terras dos patizeiros foram repassadas de geração em geração por seus ancestrais. Existe um respeito pela terra que não refere-se apenas ao uso e a sobrevivência, mas fundamentalmente com a ancestralidade, com o respeito pelos mortos. 1.Uso e sobrevivência “O I BAMA que tirar nós daqui, mas daqui não saio, ja morei fora e sei das miséria do mundo (...) não entendo, com tanta terra, eles querem que nós morre de fome.” (Morador do Cachoeirão) 2. Ancestralidade “Faço as roça no terreno de meu pai, pois tenho que cuida do que foi dele” (Morador do Cachoeirão) “Meu pai morreu em cima desta terra! T o aqui tomando conta.” (Morador do Cachoeirão) O sistema de acesso a terra e aos recursos naturais no Cachoeirão condiz com as características descritas por DI EGUES & ARRUDA (2001) em relação as populações tradicionais. A propriedade familiar entrelaça-se com o a propriedade comum. Cada família possui seu próprio roçado e área de plantio. Já quando nos referimos às áreas florestadas, as serras e gerais a propriedade torna-se comum, manejada sobre o contrato do “respeito mutuo”, onde realiza-se a caça, a coleta do palmito, de lenha e madeira para construção, bem como é a área de pastagem dos burros. Chegando na casa da Família Oliveira, Dona Elenice, mostra-me apontando a capoeira já avançada, dentro da propriedade de sua família, o local onde o conhecido T onho e sua família, reproduziam seus modos de vida, moravam e roçavam. Apontando um modelo mais condizente as propriedades comunais. É bem provável, que a forma de propriedade prevalecente antes do conflito com o I BAMA fosse a comunal. Conforme depoimento da professora local, T atiane Coelho, tal conflito favoreceu o atomismo local, com cada morador buscando definir claramente a propriedade privativa, como forma de garantir a indenização no caso de desapropriação do interior do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Os recursos naturais são, em parte, comunais. Das matas se retiram árvores, arbustos, cipós, pedras e a caça. Não há restrição particular de uso, mas sim um controle
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coletivo. Nas serras também se realiza a caça, porém não conseguimos devido ao tempo de estudo e falta de referencial teórico sobre a fauna local, saber se existe algum controle etnoconservacionista sobre esta atividade. Nos territórios das famílias, o roçado e algumas plantações de maior importância econômica (banana, mandioca, aipim e milho) são de uso familiar, porém pode-se negociar o uso destes caso alguma outra família ou pessoas necessitem, ou como ocorre em muitos casos pode ocorrer uma redistribuição alimentar 19 quando na ocorrência dos festejos locais e/ou na prática religiosa. O mesmo verifica-se, e de forma muito mais livre, com a utilização de madeira e de frutos (Jaca, Manga, Laranja, etc) por parte de algumas pessoas em território de outra família. “Aqui qualquer um (da comunidade) pode pegar madeira e frutas no terreno de outro ... mas não pode tirar muito né” (Moradora do Cachoeirão) Segundo a professora local, quando o recurso é extraído em demasia ou de forma errônea (como o corte de lenha ainda verde) e quando, por exemplo, frutas são retiradas antes do tempo de maturação, podem ocorrer formas de repreensão de acordo com a política local marcada fortemente pela resolução face-a-face, sem intermediações de um poder central. Outro fator de controle do uso dos recursos está na possibilidade de exclusão (FEENY et. al., 2001), onde o patizeiro só permite o uso dos recursos por visitantes “de fora” caso haja possibilidade (existência em boa quantidade do recurso e perspectiva de ciclagem) e compadrio, ou seja ligação afetiva entre os moradores e deste com os “de fora”. T al configuração do espaço e uso da natureza favorecido por um controle coletivo, com mecanismos de exclusão e repreensão, pode favorecer a conservação dos recursos naturais (FEENY, et.al, op.cit.) mediante um processo etnoconservacionista. De forma contrária, a propriedade privada e estatal, bem como o livre acesso, podem contribuir fortemente para a degradação ecológica (ALI ER, 1998; ibid, 2001). A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina criou um conflito entre espaço público/estatal e espaço comunitário segundo perspectivas e visões opostas de uso da terra. De um lado o Estado, representando uma elite urbana, reivindicando o espaço para preservação dos recursos naturais e das belezas cênicas e, de outro, a população do Pati, que teria que sacrificar seu modo de vida, abandonando compulsoriamente seu território. 19
Refere-se a uma hipótese da existência de mecanismos cooperativos de distribuição alimentar nas comunidades tradicionais. Gravado do relato oral do Prof. Dr. José Geraldo Marques no Curso de Etnoconservação da Biodiversidade, realizado nos dias 28/04/2003 a 03/05/2003 em I guape/São Paulo.
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6. CONF L I T OS NA CONS ER VAÇÃO: UM PONT O DE VI S T A Os moradores que vivem no Parque são considerados pelos preservacionistas como os “piores predadores dos recursos naturais da serra”, justamente porque se utilizam do fogo, da caça , da roça e do extrativismo como meio de vida (FUNCH, 1997), que em todos os casos seriam atividades predatórias. Além desse argumento, constantemente invocam que o crescimento populacional é inevitável e um potencial causador de danos ecológicos futuros no vale (ibid, 1997). Não se considera, neste ponto de vista, a intensidade e a extensão espaço/tempo do uso dos recursos. Neste sentido, coloca-se em proposta, mesmo reconhecendo-se os problemas sociais decorrentes da desapropriação, a retirada dos moradores do Parque Nacional através das seguintes estratégias: oferecimento de indenização e/ou troca de terras; ceder o direito de morada “em vida” para quem não quiser sair imediatamente, onde posteriormente a terra será de posse do Governo; e oferecimento de emprego aos moradores para serem fiscais da reserva (FUNCH, 1997). Segundo os moradores, os fiscais do I BAMA não passam muito pela área, mantendo a história da não participação e da falta de democracia desde a criação do Parque, feito, sem no mínimo, uma consulta. Como afirma um morador, “O I BAMBA nunca veio aqui falar nada com ninguém ... só os puxa-saco { preservacionistas} vieram proibir...nunca veio conversar ... não querem que desmate mesmo, de jeito nenhum ... porque é parque não pode” (Morador do Cachoeirão) De fato este enfoque preservacionista parte do pressuposto de que toda atividade humana é prejudicial à natureza, então se deve criar ilhas que são os “barcos de salva-vidas para nós humanos” (FUNCH, 1997). Esta versão da Ecologia Profunda pode ser importante como critica a arrogância de muitos humanos civilizados, mas choca-se com as diversas culturas e racionalidades ambientais existentes e com as divisões dentro da própria sociedade civilizada (BOOKCHI N, 1993). Segundo os preservacionistas o maior inimigo do Parque Nacional é o fogo. Os incêndios no Parque Nacional, mesmos os naturais, estariam prejudicando intensamente a biodiversidade e os solos. Esta é uma questão relevante ainda mais quando a Chapada Diamantina corresponde a uma “ilha” de biodiversidade cercad a pela degradação, e que constantemente “arde” com as chamas colocadas de forma criminosa ou natural. Mas o fogo nem sempre é prejudicial, possuindo um papel relevante para a natureza e para os
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agroecosisstemas. O fogo pode ser um importante mecanismo natural de renovação da vida e criação da Biodiversidade (GLI ESSMAN, 2001). Segundo GOMEZ-POMPA & KAUS (1992), as novas descobertas científicas indicam que todas as partes do globo, desde as florestas boreais até os trópicos, foram habitadas e modificadas ao longo da história humana e o fogo, tanto natural quanto antropogênico, contribuiu para a atual composição e a estrutura das chamadas florestas virgens e dos ecossistemas naturais. Muitas sociedades milenares usaram o fogo como técnicas de manejo dos agroecosisstemas. As queimadas antropogências, fruto da agricultura de derrubada e queima realizada no Pati é parte integral dos ecossistemas das florestas tropicais há milênios e não deve ser confundida com a queimada destrutiva, realizada por interesses do lucro e do controle da terra. Além disto, existem fortes evidências que o mosaico florestal forma uma paisagem ideal para o controle das queimadas nas florestas (GOMEZ-POMPA & KAUS, op.cit.), o que pode parcialmente explicar o baixo índice de incêndios no Vale do Pati. As queimadas no Pati são realizadas de forma controlada com a construção de aceros que impedem que o fogo se alastre. Os agricultores tradicionais geralmente conhecem o vento, as mudanças climáticas anuais e as histórias das queimadas anteriores e todo este conhecimento é utilizado no momento critico de se fazer a queimada. O fogo, neste caso, permite uma renovação do solo e realocação dos nutrientes, gerando um aumento de biomassa considerável nas primeiras fases de sucessão. A biodiversidade diminui também nesta fase, na área de plantio, mas com o descanso a área tende a ser recolonizada (ADAMS, 2000; GLI ESSMAN, 2001). Além disto às perturbações de baixa intensidade contribui decisivamente para o incremento da biodiversidade (GOMEZPOMPA & KAUS, 1992; DI EGUES, 2000; GLI ESSMAN, 2001) A importância do manejo tradicional reside numa racionalidade ambiental, permeada por uma cultura, que, em muitos casos conservou e até criou componentes da biodiversidade (GLEI SSMAN, op.cit.). É de extrema importância o estudo e acompanhamento desta prática produtiva no Vale do Pati. Os moradores devem receber assessoria para a realização de um manejo integrado das diversas atividades produtivas existentes e das possíveis inserções de novas práticas, permeadas pela agroecologia (LEFF, 2000) A caça é outro problema apontado pelos preservacionistas e com razão, haja visto que boa parte da fauna da Chapada Diamantina foi dizimada pela perda de hábitats decorrente da agricultura mercantil/capitalista e da pecuária e encontram-se extinta na região ou sob ameaça de extinção. Porém necessita-se de estudos mais conclusivos para determinar o impacto da caça tradicional no interior do Parque Nacional e na Chapada
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Diamantina. I sto não impede que ações conservacionistas possam ser postas em prática na área, o que não ocorre atualmente, com a participação real e consciente da população do Pati. A idéia de que qualquer população humana tende inevitavelmente ao crescimento demográfico e a posterior destruição dos recursos naturais é um mito propalado pelos neomaltusianos e biocêntricos. Esta abordagem causal não admite as reais divisões hierárquicas conflitivas existentes no seio da humanidade, entre classes, etnias, questões de gênero, familiares, etc, onde prevalece o domínio do homem sobre o homem e fundamenta-se a lógica do domínio sobre a natureza (BOOKCHI N, 1988;1989). A possibilidade das comunidades humanas recrutarem toda sua inteligência, informação e liberdade para tecer um arranjo social que permita o pleno esclarecimento, a auto-educação, a constituição de tecnologias limpas e de uma racionalidade ambiental, até controle populacional, é simplesmente descartada por uma abordagem ambiental conservadora. O crescimento populacional não é a raiz dos problemas ecológicos vigentes até então, mas sim um amplificador que pode contribuir para o aprofundamento da crise, e é fruto de uma forma de organização social hierárquica, geradora de desinformação, e de uma economia fundadora das desigualdades (BOOKCHI N, op.cit.). A agricultura de derrubada e queima pode passar a ser degradante caso haja uma crescimento populacional (ADAMS, 2000), porém a noção de crescimento deterministica foge a realidade. Sem dúvida, mantendo-se a condição social vigente, o crescimento populacional amplificará os impactos no Vale. Neste caso deve-se juntar todos os esforços para, primeiramente, estancar as causas sociais do crescimento e trabalhar a educação e formas de manejo ecológico dos ecossistemas do Vale do Pati. Não tratamos de recriar o mito do nobre selvagem (ALCORN, 1994), mas sim apontar o potencial do caráter conservacionista, consciente ou não, da população tradicional do Pati e a importância dos seus conhecimentos. E apontar que as mesmas populações, por estarem inseridas num contexto onde prevalece o mecanismo hierárquico/ autoritário de organização social, devem fortalecer-se para não sofrerem mudanças que levem à práticas de degradação ecológica. A prevalência de práticas degradadoras no Vale do Pati, não justifica a expulsão da população, já contigenciada socialmente e economicamente, de seu território. Estas devem ser aliadas num processo conservacionista. A utilização dos recursos naturais de forma predatória pelas populações tradicionais pode ocorrer, quando expulsos de seus territórios, por contingência econômica ou por pressão do poder estatal (DI EGUES, 2000; COLCHEST ER, 1997).
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T rata-se, portanto, de colocar a ecologia num quadro social e de resolver as questões emergentes da conservação dos ecossistemas no Vale do Pati, não apenas na relação direta entre o homem e natureza, mas fundamentalmente na relação entre as pessoas, e no potencial etnoconservacionista de suas práticas, mitos e conhecimentos, gerados por esta relação. A integração da perspectiva da conservação juntamente com o sonho de continuar no Pati é emocionalmente expressado nas escritas de uma estudante da Escola do Cachoeirão (16 anos), “O meu sonho é que existissem Parque Nacional, que todo mundo tivessem a consciência sobre a preservação e morassem onde quisessem ... eu quero ser muito feliz.”
7. ECOL OGI A S OCI AL E ET NOCONS ER VAÇÃO NO VAL E DO P AT I A conservação da biodiversidade e dos recursos naturais constitui dois importantes objetivos de boa parte do movimento ecológico e de muitas populações tradicionais. A perda ininterrupta destes bens naturais afeta não só o funcionamento dos ecossistemas, mas, em grande parte, o conhecimento e modo de vida de boa parte da população mundial que vive diretamente dos recursos extraídos da natureza. Muitas estratégias foram e estão sendo desenvolvidas para estancar a perda de biodiversidade. Podemos citar inicialmente, de forma geral, o modelo conservador de conservação, realizado por uma elite intelectual e científica, que muitas vezes se alia aos estados e corporações visando mitigar os efeitos deletérios das atividades “sujas”. Propõem uma conservação tecnológicizada, baseada em informações científicas e em ações coercitivas, tendo como base filosófica uma certa ecologia biocêntrica. A separação evidente entre fins e meios e a incapacidade de contextualizar as realidades ecosociais demonstram a ineficácia desta estratégia até o presente momento. Uma outra vertente mais radical “à direita” crê que exista uma “mão invisível” que alocará os recursos de forma ótima, de acordo com o movimento de um mercado livre e competitivo. Acreditam, desta forma, que a competição geraria uma necessidade de diminuição de custos e, por conseguinte, de utilização dos bens naturais. Crêem também que avanço tecnocientífico, intrínseco a lógica competitiva, engendraria mecanismos tecnológicos de proteção da natureza.
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As duas vertentes supra citadas compõem uma parte do movimento ambientalista, que podemos chamar de Ecocapitalistas ou Ecotecnocratas (WALDMAN, 1992). Uma outra parte do movimento e de grande importância é composta por militantes e organizações biocêntricas, muitas vezes apoiadas na filosofia da Ecologia Profunda. Diferentemente dos mais conservadores, estes criticam radicalmente a civilização humana, apontando o homem como instintivamente destruidor. Propondo um retorno ao mundo natural (BOOKCHI N, 1993). T odas estas concepções e práticas tiveram alguns resultados parciais positivos, mas por não tocarem a fundo na problemática ecológica, foram sucumbidos pela própria cegueira, e hoje, como nunca antes, a destruição da natureza pode estar levando ao colapso as sociedades humanas. Além disto, estas concepções, com algumas variações, propõem modelos de áreas de preservação de uso restrito, implantados sob autoridade central e com base num mínimo necessário de área para a conservação ou num mito de natureza intocada x homem destruidor. Outra vertente da conservação e não menos importante é a Biologia da Conservação. Este modelo, com grande aceitação mundial, possui formas distintas de atuação, mas o eixo fundamental é ter uma base conceitual e metodológica fruto de informações científicas (Ecologia de populações, Biogeografia, História natural, Ecologia da restauração, etc). A Biologia da Conservação inicialmente tinha caráter científico, de proteção de espécies ameaçadas e de elaboração de estratégias de conservação baseadas nas ciências naturais. Desta forma gerariam dados que subsidiariam as ações coercitivas do Poder Público (Criação de Unidades de Conservação e fiscalização) e a execução de programas de Educação Ambiental (PRI MACK & RODRI GUES, 2001). A Biologia da Conservação sofreu inúmeras criticas pelo seu cientificismo generalista que não adequava-se às realidade dos países tropicais, portadores de culturas distintas e estreitamente ligadas a natureza. Porém muitos grupos e biólogos da conservação tentam, muitas vezes com sucesso, realizar um diálogo entre os saberes científicos e tradicionais. E intentam aprofundar as discussões e ações em busca da conservação da biodiversidade levando-se em conta a ecologia social. A Ecologia Social é, em geral, uma concepção que insere o homem na natureza, sem naturalizá-lo. T rabalha com a noção de complexidade das relações e propõem a ação direta e a busca por justiça social no avanço dos movimentos para sanar a crise ecológica. Pode-se separar/integrar a ecologia social em duas linhas mais influentes, a I ndiana e a Norte-Americana.
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O termo ecologia social foi cunhado em 1942 por Radhakamal Mukerjee, na índia. O principio central da Ecologia Social indiana é que as sociedades tradicionais têm uma longa tradição de interação com os ecossistemas. Estas sociedades desenvolveram práticas culturais de utilização dos recursos naturais que levaram a um uso sustentável dos bens naturais (SARKAR, 1998). Apontam que o modo de vida tradicional está cada vez mais desorganizado pela expropriação pelo desenvolvimento econômico, pelo uso de tecnologias novas e destrutivas e perda do controle dos ecossistemas. Os responsáveis seriam os colonizadores desenvolvimentistas e, mais recentemente, os conservacionistas com suas concepções de áreas protegidas. Sendo assim, a luta política pelos direitos e reconhecimento dos povos tradicionais é condição necessária para a conservação da diversidade biológica. No Brasil, este ecologismo popular (ALI ER, 1998) se expressou através de movimentos sociais como o dos Seringueiros, com Chico Mendes, o Movimento Nacional dos Pescadores Artesanais e os Movimentos camponeses para manutenção e reapropriação do território. A teoria e a prática da conservação da biodiversidade que utiliza o conhecimento e o manejo tradicional é chamada de Etnoconservação (DI EGUES, 1999). A etnoconservação seria as ações ou práticas projetadas por povos indígenas ou por integrantes de sociedades de pequena escala para prevenir ou mitigar a depleção de recursos, a extirpação de populações e/ou a degradação de habitats (SMI T H & WI SHNI E, 2000). A etnoconservação não é de domínio do estado e de determinados cientistas, mas de um movimento que reúne cientistas naturais e sociais, as comunidades e as organizações sócio-ecológicas que objetivam implantar uma conservação real das paisagens, da biodiversidade e da sociodiversidade (DI EGUES, op.cit.). Os modelos científicos são geralmente descrições qualitativas das relações homem/ ambiente, baseada nas observações sistemática das interações. A Ecologia Social Norte-Americana têm como precursor o filósofo Murray Bookchin. Esta filosofia militante traz em seu interior uma critica profunda a atual organização social capitalista e a todas as organizações sociais hierarquizadas. Propõe a ação direta num processo de autogestão comunalista para gerar uma ruptura social que engendrará uma sociedade ecológica orgânica de cunho libertária (BOOKCHI N, 1993). A Ecologia Social não é um ramo da Ecologia Clássica, nem apenas uma disciplina científica, mas sim uma filosofia e uma ética, que embasa alguns estudos das interações sociedade/ecologia e ações em busca da transformação radical da atual sociedade à uma sociedade orgânica libertária. Propondo formas de organização social horizontalizadas, tecnologias leves e limpas, a autogestão social, etc.
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Busquei realizar uma breve introdução sobre alguns importantes movimentos ecológicos contemporâneos para a produção de algumas proposições para subsidiar práticas da Ecologia Social e da Etnoconservação no Vale do Pati. a) R econheciment o do T er r it ór io: Quest ões legais Os passos iniciais para iniciar-se um manejo etnoconservacionista dependerá do acesso ao território, fonte de saber e da cultura no Pati. Este pode ser realizado pela automobilização local em conjunto com a tomada de ações legais e científicas. Hoje, ameaçado pela apropriação estatal, o processo de reconhecimento territorial pode ser feito mediante a automobilização dos moradores para fortalecimento sociocultural e político: ou seja ação política. E a estratégia de atuação legal pode ser realizada através da modificação do estatuto do Parque Nacional, reduzindo os limites de sua área, na região denominada Vale do Pati, transformando esta em Reserva Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável. I sto só pode ser feito mediante reconhecimento da tradicionalidade dos moradores do Pati, o que conclama os cientistas militantes aos estudos, e posterior elaboração de lei específica para supressão da área do Parque e criação de outra categoria de uso sustentável, mais compatível com a realidade local. b) O papel das ciências: O diálogo dos saber es Os cientistas têm que ter consciência de suas práticas, o que pressupõe o reconhecimento
dos
limites
que
as
abordagens
simplificadas
impõe
às
ações
conservacionistas atuais (PI MBERT & PRET T Y, 1997). O paradigma da Etnoconservação implica um reconhecimento das complexidades dos contextos interativos entre a sociedade e a natureza, bem como o reconhecimento de outros saberes. Neste sentido os cientistas para atuarem no Vale do Pati poderão se utilizar de estratégias advindas da Biologia da Conservação, que oferece um arcabouço importante para mensuração e estudo da biota local, ainda muito pouco estudada, principalmente a fauna. A Ecologia de Paisagem, a Agroecologia e a economia também possuem papel importante neste processo de conservação in situ. Através
das
etnociências
(etnoecologia,
etnobotânica,
etnopedologia,
etnocosmologia, etc) pode-se conhecer a biodiversidade local e as relações ecológicas subjacentes. O que dará base para um “dialogo de saberes” (LEFF, 2001) na gestão da
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natureza no Vale do Pati. O reconhecimento de que a população do Vale do Pati possui um conhecimento definido como “saber” e “saber fazer”, a respeito do mundo natural, bem como uma interação fundamental com o meio, oferecerá as bases para um manejo integrado dos ecossistemas locais. O que incluiria o estabelecimento, em conjunto, de novas tecnologias e informações para o manejo agroflorestal, a agricultura de pousio, as hortas medicinais, os pomares e a caça. Neste sentido a imposição autoritária de modelos vai de encontro com a conservação das diversidades culturais e biológicas, justamente por não se levar em conta o contexto sociocultural no Vale do Pati . Deve haver um “diálogo dos saberes” que ofereça dados e empodere a comunidade em seu processo autogestionário20. c) A Educação O processo educativo deve ter bases locais e enfatizar os contextos ecológicos, sociocultural e político da região. Buscando formar o cidadão livre e consciente do ser no mundo. A Escola Comunitária do Cachoeirão (Com cerca de 13 estudantes) iniciou um processo de resgate da história do Vale do Pati, que está mobilizando as crianças a buscarem informações sobre o seu passado e tomarem um posicionamento critico a respeito do atual conflito com o Parque Nacional (Foto 33). Além disto, realiza-se uma educação ambiental fundada nos aspectos da ecologia local e da atual fase da economia patizeira, sendo assim existe na escola as disciplinas de Ecoturismo e Agricultura Orgânica. T odo o processo de organização da escola e de andamento pedagógico é realizado participativamente em reuniões semanais entre os estudantes e os professores. E periodicamente com os pais, estudantes e professores. gerando assim um sentimento de coresponsabilidade pelo processo educativo por parte da comunidade. A Escola Comunitária deixou de ser financiada pela Prefeitura Municipal de Andaraí, o que prejudicou a comunidade, gerando um processo de automobilização, que resultou na
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Autogestão seria a livre associação entre os homens, em caráter de igualdade, para gerirem sua vida social e política de forma autônoma. Pressupõe uma interdependência com outros atores sociais independentes, configurando uma Rede ou uma Federação (GUI LLERM & BOURDET , 1976). A autogestão não pressupõe um “atomismo”, um “fechar em si mesmo”, mas sim uma intensa pa rticipação e decisão dos interessados na gestão dos interesses coletivos, de forma livre. Pressupõe, fundamentalmente, a consolidação de redes juntamente com outras organizações autogeridas, ou instituições afins, em estreita interdependência. Elimina, desta forma, as desigualdades de poder (poder igualitário) ao eliminar a figura das hierarquias, e horizontaliza as decisões.
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criação da Associação dos Pais e Amigos da Escola do Cachoeirão21. A Associação visa autogerir a escola na busca por recursos e na elaboração do planejamento pedagógico. Para que um processo etnoconservacionista tenha condições de avançar é importante o fortalecimento das condições educativas da população, que só ocorrerá com a manutenção da escola local. Sugere-se neste sentido o apoio irrestrito a escola formal do Vale, seja apoiando diretamente à associação ou pressionando a prefeitura local. Nesta deve-se fortalecer o ensino sobre o meio ambiente local e sobre a o contexto social vigente. d) Aut ogest ão e R edes As populações tradicionais detêm um certo controle sobre o seu espaço e os processo sociais que nele ocorrem. No vale do Pati existem atualmente duas associações, a Associação dos Pais e Amigos da Escola do Cachoeirão e a Associação Comunitária do Vale do Pati (ASCOPA) (Foto 32), esta última com o objetivo de ser um pólo de intercâmbio entre os moradores, na busca de resoluções para os problemas comunitários. Estas associações devem ser fortalecidas para que a comunidade se fortaleça e sofra um empoderamento. Neste sentido deve-se oferecer/trocar todas as informações, através de debates e cursos, que concernem à Educação Associativista, a Gestão de Associações, a T ecnologias Alternativas, a Políticas Públicas e as Pesquisas Ecológicas em andamento. A fortalecimento endógeno pela automobilização pode ser favorecido pela formação de Redes de Solidariedade e Apoio Mútuo. Esta rede seria composta, além das associações do vale, por associações rurais, cooperativas populares, Ong´ s, grupos ecológicos autônomos, universidades e pessoas interessadas, das localidades vizinhas e da região. O município também possui um papel importante, pois este é o espaço real da vida pública. A rede poderia conduzir um fórum, para avançar no processo de mobilização e manutenção do território pelas populações tradicionais. O processo de autogestão e formação de redes objetiva a manutenção do território, o manejo integrado e sustentável dos bens naturais e as condições igualitárias de acesso aos recursos naturais no Vale do Pati, o que entra em conflito com o Estado e os interesses econômico da sociedade envolvente. A autogestão do Ecoturismo, apesar das contradições desta prática econômica, é condição necessária para a sustentabilidade local, haja vista o aumento do número de 21 Até a revisão deste trabalho a Associação de Pais e a Escola Comunitária estavam em processo de fechamento devido a falta de recursos e apoio para manter as estruturas.
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turistas na área, aumentando a degradação sem que haja retorno econômico relevante aos moradores. Alguns moradores questionam se o esforço realizado, juntamente com as problemáticas socioculturais do turismo, valeria o ganho econômico obtido. Os moradores devem, mediante informações e recursos, ter o controle do fluxo turístico no Vale do Pati. Estas propostas só se realizam mediante debate intenso com a comunidade e os profissionais da conservação. Estes últimos deverão ter ciência de seus papéis como assessores/multiplicadores neste processo e cabe aos moradores, dentro do processo de autogestão e com as informações disponíveis, decidirem os caminhos que seguirão. Cada envolvido têm que assumir suas responsabilidades na conservação dos ecossistemas do Vale do Pati.
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F ot o 32– Reunião da ASCOPA
F ot o 33– Escola Comunitária do Cachoeirão
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CONCL US ÃO NÃO CONCL US I VA O presente trabalho propôs uma inicial discussão a respeito da Chapada Diamantina, um lugar ao mesmo tempo tão belo e tão sofrido, tão misterioso e cheio de saberes, extremamente abandonado e muito procurado, tão falado e pouco conhecido. Ì numeras questões estão em aberto para futuras pesquisas e as conclusões aqui apresentadas são parciais, frutos de uma pesquisa que se propôs, em parte, não conclusiva. O Vale do Pati é revestido pela Floresta Estacional Sempre Verde, possui uma rica fauna e abundancia em recursos hídricos. Estes elementos da natureza estão em processo de degradação desde as entradas pelos sertões empreendidas pelos colonizadores. As principais causas da destruição dos recursos naturais na região são: a agricultura moderna, a pecuária, extração de madeira para o mercado, poluição dos rios, mineração empresarial, e, em menor grau, o garimpo de pequena escala. A caça pode ter sido um fator preponderante na perda da biodiversidade local. Portanto as causas da degradação estão intimamente ligadas ao modo de produção e organização capitalista. T anto o modo de vida, quanto os sistemas culturais, simbólicos e as formas de sociabilidade dos moradores do Pati são singulares. Estas pessoas se adaptaram e recriaram sua cultura, criando um modo de vida com uma miscigenação da cultura africana, dos grupos populacionais que adentraram sertão da Chapada Diamantina e com grupos de europeus de cultura portuguesa já mesclados da forte presença indígena. T al flexibilidade cultural influenciou nas práticas de manejo integrado dos ecossistemas locais. E o isolamento relativo a sociedade envolvente permitiu a configuração de um modo de vida integrado a natureza e aos seus ciclos, ao mesmo tempo em que se desenvolvem o conhecimento e práticas de manejo adequadas ao local. A paisagem no Pati é descontínua, marcada por áreas florestais, capoeiras e roçados, onde o espaço e o acesso aos recursos naturais são em parte familiar e comunal. A paisagem construída pelo dinamismo natural e pela interação mutualistica entre a cultura e a natureza pode ser descrita como uma verdadeira paisagem em mosaico. A população combina atividades de policultura (Agricultura itinerante e pomares), extrativismo vegetal e caça. Estas atividades visam o uso familiar, a troca, a venda e também suprir os festejos locais. Hoje
o
ecoturismo
também
aparece
como
uma
atividade
econômica
financeiramente importante para os moradores, porém os benefícios devem ser relativizados pelos impactos culturais e socioambientais gerados. Esta combinação de práticas e usos dos
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recursos naturais é uma forma de utilização do ecossistema segundo suas características e de acordo com os “ciclos naturais”. Existe no local uma extensa taxonomia Folk. Ao profissional da conservação cabe reforçar a cultura local, através da valorização dos conhecimentos e práticas tradicionais e do apoio a automobilização dos moradores, neste sentido a educação libertadora possui um papel relevante, assim como a consolidação de redes de solidariedade. Abre-se a perspectiva de, em paralelo ao reconhecimento legal do território, se consolidar um processo autogestionário na comunidade. A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina criou um conflito entre espaço publico e espaço comunitário segundo perspectivas e visões opostas de uso da terra. De um lado o Estado, representando uma elite urbana, reivindicando o espaço para preservação dos recursos naturais e das belezas cênicas e de outro a população do Pati, que teria que sacrificar seu modo de vida abandonando compulsoriamente seu território. A conclusão principal deste trabalho diz respeito a necessidade de tratar a ecologia de forma sistêmica, tanto no âmbito das relações ecológicas como na relação direta do homem com a natureza e fundamentalmente a relação entre os homens. Hoje marcada pela hierarquia, pela dominação e pela exploração. A Ecologia Social e a etnoecologia possuem um papel importante no processo de entendimento destas relações e de posterior transformação das realidades. Acredito ter contribuído para iniciar estudos que subsidiem ações para conservar as riquezas naturais e culturais do Vale do Pati antes que tão belo local possa ficar desabitado...ou habitado pelos “amantes da natureza” e pelo turismo empresarial.
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