Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Artes
Rommel Cerqueira Silva
O DEVANEIO DA CRIAÇÃO: A IMAGEM COMO LINGUAGEM POÉTICA
Rio de Janeiro 2008
Rommel Cerqueira Silva
O Devaneio da Criação: A Imagem como Linguagem Poética
Monografia de graduação em Artes Plásticas apresentada ao Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Artes Plásticas
Orientadora: Prof.ª Dr(a) Maria Luiza Fatorelli
Rio de Janeiro 2008
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ROMMEL CERQUEIRA SILVA
O Devaneio da Criação: A Imagem como Linguagem Poética
Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de ................................
Rio de janeiro,
de
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.
_______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Fatorelli _______________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Gueron _______________________________________________ Prof. Tania Queiroz
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“Mas com a janela aberta sempre posso colocar a cabeça pra fora em busca de ar.” Caio Fernando Abreu
“Achamo-nos diante de um caos. Enfrento o meu tema e me perco nele...” Paul Cézanne
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À todas as pessoas que em algum momento abraçaram a minha loucura como se fosse delas.
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RESUMO
SILVA, Rommel Cerqueira. O Devaneio da Criação: A Imagem como Linguagem Poética. Rio de Janeiro, 2008 Monografia (Bacharel em Artes Plásticas) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
A idéia central dessa monografia é refletir sobre as possibilidades de definição daquilo que se chama linguagem e a partir das diferentes correntes lingüísticas e filosóficas repensar as características mais embrionárias do estudo da mesma. Pensar acerca das supostas particularidades, já institucionalizadas na linguagem verbal ou oral, e cogitar os estudos filosóficos, que nos empurra a pensar o ente da linguagem e o ente do homem, a partir, ou prioritariamente, de nomes como Martin. Heidegger - a linguagem pela linguagem - e Gaston Bachelard - com sua Poética do Devaneio. Experimentar a linguagem através da poesia que permeia todo e qualquer meio expressivo, contudo tendo como foco principal, mas não único, a linguagem imagética presente nas Artes Plásticas.
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SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................1 1. A Imagem como Linguagem I................................................................................................................................4 II...............................................................................................................................8 2. A Poesia e o Espaço de Criação I...............................................................................................................................15 II............................................................................................................................. 22 3. O Devaneio ou o Eterno Retorno da Poesia I...............................................................................................................................26 II. Nuno Ramos: Série Vitrines: GAGS e GRAVE, GRAVE................................33 III. Brígida Baltar: Umidades.................................................................................36 IV. Cildo Meireles: Missão/ Missões (Como Construir Catedrais).......................37 V. Rommel Cerqueira: O Contorno do Espaço e Suor..........................................41 Considerações Finais....................................................................................................44 Referências Bibliográficas Anexos
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Introdução
A temática central da minha pesquisa surgiu no 5º período da graduação, na disciplina Oficina de Criação Bidimensional, quando o livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino, foi utilizado como peça chave nas aulas ministradas pela Profª Dra. Maria Luiza Fatorelli, minha orientadora. Este livro consiste numa compilação de seis palestras, que seriam parte de um ciclo – Charles Eliot Norton Poetry Lectures -, a serem ministradas ao longo do ano letivo na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachussets. A idéia desse ciclo de palestras era discutir “qualquer espécie de comunicação poética – literária, musical, figurativa -, sendo a escolha do tema completamente livre”1. O que poderia significar certo alívio, acabou constituindo o primeiro problema a ser enfrentado por Calvino: uma vez que o próprio autor deixa claro que em virtude de sua formação italiana plural, não conseguia conceber a separação e especialização entre as formas de expressão – música, artes plásticas, literatura – e entre os pensamentos críticos-reflexivos com o mesmo grau de separação de outras culturas. Nesse ponto, acredito que o pensamento de Calvino se aproxima bastante do pensamento de Roland Barthes, em sua Introdução à Análise Estrutural da Narrativa: “Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias;” (BARTHES, 2001: p.19)
E é centrado nesse caráter multifacetado, em termos de expressão artística, que tal livro - Seis Propostas para o Próximo Milênio – tem seus capítulos desenvolvidos. Cada uma das propostas abrange um capítulo e trabalha com seu oposto imediato: Leveza é correlacionada ao Peso, Rapidez à Lentidão, Exatidão à Imprecisão, Visibilidade ao que se Oculta e Multiplicidade à Unidade. Entretanto, Ítalo Calvino
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Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, p.5
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faleceu antes de concluir aquele que seria o último e, talvez, o mais instigante capítulo: Consistência. E foi justamente na ausência do apoio literário de Calvino que esse questionamento começou a me surgir e ganhou força: como pode ser medida ou, pelo menos, definida a consistência na contemporaneidade, em termos de produção artística? Uma tarefa, no mínimo, ousada, mas que me levou ao contato direto com certas questões, provocando-me descobertas e redefinições de alguns eixos semânticos que até então se disfarçavam, sob meu prisma, nesse imenso universo retórico da arte; por esse caminho que me levava não a buscar uma resposta exata para tal questão, mas uma possibilidade de reflexão filosófica, passando pela estética, pela lingüística, pela fenomenologia, intrinsecamente ligadas à atividade prática, mas sem ter a menor intenção de integrá-las - ainda que isso fosse possível. No começo, após constatar e refletir sobre a vasta extensão e às várias possibilidades de abordagem desse tema, perguntei-me se questões vinculadas ao antigo par Belo/ Sublime poderiam servir de alicerces para um pensamento acerca da consistência. Essa empreitada, por si só, reduziria e poria em foco um ponto específico ligado à questão primeira, mas ainda assim exigiria um retrocesso histórico e estético que talvez não coubesse no espaço-tempo dessa monografia. Isso sem mencionar como o fluxo da história da arte desconstruiu – ou reconstruiu – a importância ou o alcance de tais valores. E ainda que o desafio se mantivesse, ao considerar a arte contemporânea, a dificuldade seria pensar de que mercado de arte estamos falando: das galerias e museus, da academia ou do mercado impulsionado pelas grandes corporações privadas, para que só depois tornasse possível analisar a construção de um juízo de gosto coletivo, influenciado e influenciável, mas jamais inato – isso seria um túnel sem fim, visto que imediatamente poderíamos questionar como e porque é feito esse direcionamento intelectivo, apontando para mais um questão vastíssima, talvez, insolúvel, mas para esse trabalho final de graduação, dispensável.
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E foi durante a confecção do projeto inicial da minha proposta prática – alinhada à leitura inesperada de Heidegger2 e, principalmente, de Bachelard3 – onde vi despertar um olhar sobre aquele que, talvez, seja o único momento genuinamente desprendido de uma manipulação segura, tanto pelo artista como pelas influências indiretas do espaço sócio-cultural que o cerca; e, quem sabe, o único momento que é comum a todos àqueles que se propõem à árdua tarefa de criar, independente da vertente artística que adotem: o momento que antecede a criação artística. É nesse momento que a poesia se faz una. A poesia que reside nesse espaço imaterial e que vive nesse tempo jamais regido pelo Chronos que controla o mundo, e sim pelo Kairos4. É justamente sobre esse caráter uno que escreve Calvino e Barthes. É esse caráter que impulsiona Heidegger e, posteriormente, Bachelard a buscar nos filósofos pré-socráticos uma concepção de linguagem que o platonismo interrompe, e que se baseia no caráter mais genuíno da arte e da poesia: a experimentação da linguagem pela linguagem e do seu caráter de transfiguração semântica. E é dentro dessa esfera conceitual que esse trabalho monográfico se propõe a discorrer, em direta associação ao exercício prático – que será abordado num capítulo específico – levantando questões e refletindo sobre as possibilidades de recodificação e interpretação da linguagem visual, tendo como destaque a produção contemporânea e, em específica, a minha própria.
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Martin Heidegger, A Caminho da Linguagem, 2003 ; Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006; 4 Os gregos antigos tinham duas palavras para o tempo: chronos e kairos. Enquanto chronos refere-se ao tempo cronológico, ou seqüencial, kairos refere-se a um momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece. Em síntese pode-se dizer que o tempo humano (medido - Chronos) é descrito em horas e suas divisões; em anos e suas divisões. Enquanto que o termo Kairos não pode ser medido e sim vivido. 3
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1. A Imagem como Linguagem A Imagem poética, aparecendo como um novo ser da linguagem, em nada se compara, segundo o modo de uma metáfora comum, a uma válvula que se abriria para liberar instintos recalcados. A imagem poética ilumina com tal luz a consciência, que é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes. (...) Diz-se-ia que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem. Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, p.3
I Se considerarmos a imagem artístico-plástica como uma “nova” possibilidade de linguagem, é totalmente pertinente explicar de antemão a razão que me leva a afirmar esta sentença, antes de sedimentar qualquer outro pensamento a partir deste. Para tal, é necessário observarmos com atenção o que nos diz duas propostas de definição da linguagem: a de Saussure e a de Chomsky. José Luiz Fiorin, em seu livro Introdução à Lingüística I, nos diz: “Saussure considerou a linguagem “heteróclita e multifacetada”, pois abrange vários domínios; é ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica; pertence ao domínio individual e social; “Não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade”(1969:17). A linguagem envolve uma complexidade e uma diversidade de problemas que suscitam a análise de outras ciências, como a psicologia, a antropologia etc. , além da investigação lingüística, não se prestando, portanto, para objeto de estudo dessa ciência. Para esse fim, Saussure separa uma parte do todo linguagem, a língua – um objeto unificado e suscetível de classificação. A língua é uma parte essencial da linguagem; “é um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”(1969:17).” (FIORIN, 2002: p.13)
Ao analisarmos a citação de Fiorin, podemos perceber que Saussure muito mais caracteriza, a partir de estruturas lingüísticas pré-existentes, a linguagem do que 19
necessariamente a define. Ele aponta que, possuindo a linguagem uma diversidade de problemas, faz-se necessário à fragmentação da sua estrutura em partículas menores. Em termos artísticos, é como se fragmentássemos o campo das artes plásticas em cada uma das suas vertentes expressivas (instalação, pintura, escultura, performance, vídeo-arte, etc.) visando uma primeira análise estrutural segmentada do “todo” Artes plásticas – na concepção de Saussure esse seria o primeiro passo; num segundo momento ocorreria a “fragmentação dessa fragmentação”, onde cada uma dessas possibilidades artísticas seria decomposta em elementos mais fundamentais – destacando a instalação Missão/Missões (Como Construir Catedrais)5, de 1987, do artista plástico Cildo Meireles, como exemplo, é como se fizéssemos um corte entre cada um dos elementos que constituem a obra e chegássemos em quatro estruturas que servem de alicerce para a composição do trabalho: o espaço – uma vez que esse é um dos eixos centrais de discussão da vertente instalação -, os ossos – prestando atenção na sua disposição espacial, sua diagramação, seu estado de conservação, sua origem, sua significação -, as moedas – e toda sua simbologia financeira – e, por fim, as hóstias – com toda sua bagagem de significados religiosos. Para Saussure, é através dessas análises seqüenciais, que visam à decomposição até alcançar elementos mais fundamentais, e através da conjugação dessas estruturas básicas, que a linguagem se estrutura como tal. Assim como a dicotomia língua x fala onde Saussure define língua como um objeto socialmente compartilhado e fala como um ato individual, podemos traçar um paralelo com um universo das artes visuais pensando na língua como as artes plásticas enquanto meio social dotado de “um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”6 e na fala, não só a temática do artista, mas também o caminho escolhido – aqui me refiro à possibilidade de expressão adotada, seja ela instalação, performance, vídeo, etc. – associado à sua abordagem particular. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Chomsky afirma:
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Figura I - Anexos
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Saussure, 1969:17
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“Doravante considerarei uma linguagem como um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos.” (CHOMSKY, Syntactic Structures, 1957:13)
Associando esta citação à, já anteriormente explicitada, de Saussure, podemos notar a compatibilidade conceitual que aproxima os dois autores quanto às suas análises sobre a linguagem – Saussure define a língua como uma parte menor do “todo” linguagem, salientando a importância de uma quebra constante da mesma, e de suas partes, em elementos ainda menores e fundamentais; dentro da ótica de Chomsky, a língua seria uma parte (finita ou infinita) do conjunto de sentenças chamado linguagem. Entretanto, Chomsky adota uma postura de definição apontando uma origem da linguagem que se distingue do caráter puramente analítico de Saussure. Sobre o pensamento de Chomsky lemos em Fiorin: “Chomsky acredita que tais propriedades são tão abstratas, complexas e específicas que não poderiam ser apreendidas a partir do nada por uma criança em fase de aquisição da linguagem. Essas propriedades já devem ser “conhecidas” da criança antes de seu contato com qualquer língua natural e devem ser acionadas durante o processo de aquisição da linguagem. Para Chomsky, portanto, a linguagem é uma capacidade inata e específica da espécie, isto é, transmitida geneticamente e própria da espécie humana. Assim sendo, existem propriedades universais da linguagem (...)” (FIORIN, 2002: p. 14)
Percebemos, na citação acima, que Chomsky postula que a linguagem é algo inerente ao ser humano e que, assim sendo, é passível de regras universais que visam análises mais pontuais desse conjunto de sentenças. É inato do ser humano uma língua natural7 que o predispõe à linguagem. Que o predispõe à expressão.
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Fiorin, 2002: p.14
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Enquanto Saussure divide a linguagem em língua (social) e fala (individual), Chomsky, baseado nos conceitos a priori mencionados, trabalha com o par competência e desempenho. Por competência entende-se toda a pré-disposição do indivíduo a aprender (universal). E o desempenho consiste no exercício da competência (individual). “O desempenho pressupõe a competência, ao passo que a competência não pressupõe desempenho.”8 - vale a pena ressaltar que mesmo que os pensamentos, tanto de Saussure quanto de Chomsky, suscitem uma aproximação, um pilar fundamental os separa: apenas Chomsky considera a existência de uma língua natural inata ao homem. Partindo dessa afirmação acerca do pensamento de Noam Chomsky, podemos considerar que todo ser humano que nasce íntegro, em termos de constituição física, com olhos e sem nenhum tipo de deficiência visual9, é capaz de se relacionar com todo e qualquer tipo de imagem, artística ou não. Entretanto, meu foco é a imagem enquanto trabalho artístico ou potência de; e ao desempenhar a competência dentro desse universo, o indivíduo aprimora o seu “olhar”, exercita-o como fala dentro da linguagem Artes Plásticas.
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Fiorin, 2002: p.14 Não se trata de não considerar os outros sentidos que o ser humano possui por uma questão preconceituosa, mas acredito que ao trabalhar a imagem, definindo-a como linguagem, o sentido da visão mereça uma consideração especial.
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II Se em Chomsky encontro uma postulação quanto à origem da linguagem, será a partir de algumas conceituações de Martin Heidegger que refletiremos sobre o caráter essencial da mesma; “veremos como o questionar o ser é da mesma ordem do questionar o “dizer” o ser, isto é, a arte, forma de dizer o ser e o mundo, maneira de criar um ser através de um propor novas aproximações do que poderia ser este mundo.”10 Observemos: “O Universal, o que vale para toda e qualquer coisa, chama-se essência. Prevalece a opinião de que o traço fundamental do pensamento é representar de maneira universal o que possui validade universal. Lidar, de maneira pensante, com a linguagem significaria, nesse sentido, fornecer uma representação da essência da linguagem, distinguindo-a com pertinência de outras representações.” (HEIDEGGER, A Caminho da Linguagem, p.7)
Heidegger, ao falar da linguagem, busca suas referências em dois pilares fundamentais para o seu pensamento: a poesia, enquanto essência da arte11, e os Filósofos pré-socráticos – com mais atenção para Parmênides e, principalmente, Heráclito. De Heráclito, Heidegger absorveu a concepção de que no mundo, tudo é movimento, nada pode permanecer estático. O filósofo pré-socrático tinha como pensamento primeiro panta rhei, que significa “tudo flui”, “tudo se move”, exceto o próprio movimento. Heráclito acredita que o mundo está em um constante devir, está sempre em mudança, e Heidegger assimila e incorpora essa idéia ao conceito de linguagem.
10
Maria Beatriz de Medeiros, Heidegger e a Investigação, Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 1, nº2, 2007, p.129; 11 Idem 10
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“Heidegger não se interessa pela filosofia da linguagem, um modo de teorização que toma a linguagem como um objeto de estudo, entre outros possíveis.¹ Os seus problemas são com a linguagem e, por isso, ele fala da linguagem em vez de filosofar sobre a linguagem. Quais são os problemas de Heidegger com a linguagem? Vários. Um deles, do qual tratarei aqui, é o fato de, na nossa época, a linguagem ser usada de tal maneira que tende a tornar irrelevante ou mesmo sem sentido a pergunta fundamental da metafísica desde Aristóteles: “Que é o ente?” ¹ Cf. a recusa desse conceito em GA 1 {1916}, p.340, GA 65, p.498 e Heidegger 1927, p.166. “ (LOPARIC, A linguagem objetificante de Kant e a linguagem não-objetificante de Heidegger, Natureza Humana 6(1): p.9-10, 2004)
Na citação acima, podemos notar que Heidegger não se propõe a “filosofar sobre a linguagem”, como ele mesmo diz, mas busca um pensar a linguagem – “ele fala da linguagem em vez de filosofar sobre a linguagem.” – através do questionamento aristotélico que ressurge no âmago da sua própria reflexão: Que é o ente? "Desde os gregos o pensamento não teria distinguido adequadamente a diferença entre ente e ser, entre o que existe simplesmente como uma coisa e entre o que é enquanto ser. Em outras palavras, trata-se aqui da confusão entre o ôntico (relativo ao ente) e o ontológico (relativo ao ser), que perfaz a diferença ontológica. Investigar o ser do ente não é a mesma coisa do que investigar a maneira como no ente se manifesta o ser, que neste caso é o ser enquanto tal. É certo que o ser só se dá no ente, mas isso não significa que pode ser reduzido ao ser do ente. O tema do ser, com o qual começou o pensamento ocidental com os pré-socráticos, portanto, tem de ser novamente levantado a partir de uma ontologia fundamental, e isto tomando como fio condutor o único ente que tem a possibilidade de questionar o ser, que é o homem. Pois o homem é dentre todos os entes o único que compreende o ser, o sentido do fato de que ele é, de que existe." (WERLE, A angústia, o nada e a morte em Heidegger, 2003)
Para diferenciar melhor o termo ser do ente: o ser é considerado como aquilo que faz que o ente seja. "O ser é condição para que o ente se mostre."12
12
Helenilda Cavalcanti, O Pesquisador como hermeneuta, 2002
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O ente a que se refere a citação acima é o homem. O Homem é o único entre os entes (seres) que compreende o ser (existência), que tem noção do fato que enquanto homem, ele é, ele existe. Sendo a linguagem, algo que “pertence à vizinhança mais próxima do humano”13, algo inerente a ele, é perfeitamente plausível que seja pensado uma variação do ente, mas agora não como “o homem” e sim como “a linguagem”. “Que é a Linguagem?”. Para Heidegger, a linguagem, assim como o homem, precisa se manter como Dasein14, precisa se manter aberta, evitando que seu movimento fique estático, e deixando que seu caráter fluido seja trabalhado. Ele trabalha a partir dela enquanto coisa e não de qualquer outra forma que possa se assemelhar à intenção de Chomsky. Heidegger não está interessado no ponto de partida, na origem, mas sim na intencionalidade da práxis da linguagem. É possível que neste momento ele se assemelhe mais a Saussure. Entretanto, se isso acontece, é mais em termos de abordagem, como escolha inicial, do que necessariamente uma similaridade quanto ao método de análise. Para Saussure a linguagem encerra em si significações especificamente lingüísticas, enquanto Heidegger propõe que, uma vez estando num mundo que é movimento, ela deve absorver por completo o caráter experimental e mutante que lhe é inerente. Considerando a linguagem um conglomerado de signos, podemos abrir uma explicação pormenorizada para apontar a que instância da linguagem me refiro. De acordo com o texto Teoria dos Signos, de José Luiz Fiorin, os signos apresentam formas de apreender a realidade, ou seja, só somos capazes de perceber as coisas que nossa língua15 nomeia. Desta forma, podemos afirmar que tudo que
Em um paralelo podemos dizer que a linguagem é condição para que a língua e a fala se mostrem e a Arte a condição para que a linguagem se mostre. 13 Martin Heidegger, A Caminho da Linguagem, 2003, p.7; 14 “Dasein (pre-sença)² é entendido por Heidegger como aquilo que sendo coloca em jogo seu próprio ser; aquilo que se compreende em seu ser, isto é, sendo; como ente determinado em seu ser pela existência. O Dasein tem seu sentido na temporalidade. Assim, as ciências, inclusive a arte, como atitude do ser humano, possuiriam aquilo que sendo coloca em jogo o próprio ser. ² Heidegger recusa uma vez por todas a tradução de Dasein por “être-là”. O Dasein, para assim dizer, aberto-parasempre (ouvert-à-tout-jamais). Que o ser aberto do homem, do qual o outro nome é alethéia, não acaba com o fechamento (enfermement), já que ele não precede nem segue nenhum fecho (fermeture). (VEZIN, 1986, p.32)” Maria Beatriz de Medeiros, Heidegger e a Investigação, Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 1, nº2, 2007, p.131, nota de rodapé; 15 Ressalto que considero como língua, neste caso específico, as Artes Plásticas como um todo;
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existe (a que é nomeado) faz parte de um largo sistema de compreensão do mundo – o domínio de uma “língua” é que torna o homem capaz de deslizar entre universos específicos16. Aqui temos sua definição: “Signo: No sentido mais geral, designa um elemento A_ de natureza diversa_ substituto de um elemento B; inicialmente pode ser equivalente a índice (a fumaça é indício de fogo); também pode ser equivalente a sinal: voluntário, convencional e explícito (letras, sons da fala, etc); pode ainda ser um equivalente de símbolo: mais freqüentemente uma forma visual, o símbolo costuma ser motivado (balança => justiça).” (DUBOIS, Dicionário de Lingüística, 1978)
Curiosamente, na definição do próprio dicionário, é perceptível o recorrer à imagem visual para se fazer entender a definição de signo. Isso porque, até mesmo estruturas lingüísticas são grafismos visuais e dessa maneira torna-se insustentável uma visão limitada do que possa ser linguagem. Mantendo a mesma linha de raciocínio, a estrutura de um signo se divide em outras duas partes fundamentais: Significado e Significante. Verifiquemos suas definições, segundo o Dicionário de Lingüística Jean Dubois e Outros : “Significante: É a parte física. Impressão psíquica do som. É forma não real, é o abstrato. O significante tem que ser compartilhado pela sociedade lingüística, ou seja, é o mesmo significante para todos; Significado: São os traços definidores. Conceitos. A individualidade (substância). Não pertence ao grupo; Ao todo e sim ao indivíduo em particular. “ (DUBOIS, Jean e outros, Dicionário de Lingüística, 1978)
Prestando atenção nas definições acima, enxergaremos em que âmbito da linguagem Heidegger desenvolve seu pensamento. 16
Ainda que essa definição de signo seja dissidente do pensamento Heideggeriano que tento explicitar, vou utilizá-la como ponto de partida, pois se trata de uma definição mais disseminada e até mesmo para apontar em qual segmento eles se separam em termos de conceituação.
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Se de um lado temos o significante como a parte física, como o grafismo visual da sonoridade (pensando em linguagem verbal, que em si mesma é composta por uma seqüência de signos menores), por outro lado temos o significado que traz em si conceitos, individualidades, substâncias. E é exatamente aqui que reside o interesse de Heidegger, quando se trata da linguagem: no significado como, o que eu chamo de, a morada das substâncias. Considerando a linguagem como a morada das substâncias, o filósofo alemão propõe uma “mudança da nossa relação com a linguagem”17 e conseqüentemente com as substâncias. Ele propõe que não encerremos a linguagem em uma rasa significação, ou em um simples objeto definidor que inverteria o fluxo de significação – como se o objeto físico antecedesse a linguagem e a fala, o que não considero correto. Acerca disso, diz-nos, então, Zeljko Loparic: “Ora, quando isso acontece, quando a linguagem se torna apenas um modo de registrar informações perceptivas sobre objetos da experiência representacional, há o perigo de o ser, como tal, ficar esquecido.” (LOPARIC, A linguagem objetificante de Kant e a linguagem não-objetificante de Heidegger, Natureza Humana 6(1): p.11, 2004)
Se pensarmos no caráter mais embrionário da linguagem, no seu ente, nos será evidenciada toda a potência do seu ser. Aristóteles conceitua potência como uma coisa que tende a ser outra, como algo que mantém em si a noção de movimento de Heráclito – uma semente é uma árvore em potência. E, por ato, ele compreende a coisa já realizada – uma árvore é uma semente em ato. Entretanto, até mesmo o ato pode estar em potência – uma árvore é uma semente em ato, ao mesmo tempo em que é uma folha de papel ou uma mesa em potência. Que a linguagem se mantenha sempre em potência mesmo que, eventualmente, encontre-se em ato – como se preparando o próximo salto; sempre em movimento e sempre evitando existir unicamente em ato.
17
Zeljko Loparic, A linguagem objetificante de Kant e a linguagem não-objetificante de Heidegger, Natureza Humana 6(1): 9, 2004;
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Não devemos reduzir a capacidade de transfiguração da linguagem a um mero representar objectual. Quando permitimos isso, fazemos com que o ser da linguagem desapareça em favor “daquilo que a condição de possibilidade significa e que pertence à mesma espécie que o fundamento racional e a fundamentação.”18 Em resumo, ao limitar qualquer possibilidade de linguagem à significações definitivas e definidoras, meramente objectuais, eliminamos aquilo que o que chamamos de linguagem tem de mais nobre e primeiro: eliminamos sua essência, suas substâncias, em troca de um automatismo psíquico no que se refere ao campo das diversas semânticas que se abrem (ou se fecham). Acabamos por encerrar qualquer alternativa de experimentação da linguagem por ela mesma - destituída de qualquer representação imagética ou conceitual – tornando simplório e corriqueiro algo que nos é tão nobre e tão natural (uma vez que “a linguagem encontra-se por toda parte” e que “por natureza o homem possui linguagem”19.), atrofiando nossa capacidade intelectiva e desqualificando nosso olhar crítico-reflexivo (competência). Em um artigo para a Revista Natureza Humana, Loparic, aponta, na primeira fase de Heidegger, uma interpelação ao ser humano no sentido de uma ética originária20. Tal ética consistiria num pedido ao homem para que este sustentasse a abertura do ser (Dasein), possibilitando dessa forma os “modos de manifestação essencialmente não-objetificáveis do si-mesmo e de outros seres humanos, modos de ser, portanto, que não farão sentido algum se não for obedecida a exigência em questão.”21 Num diálogo mais direto com o universo da arte22, a capacidade de recodificação e re-significação da linguagem seguem essa mesma linha de raciocínio, principalmente no que diz respeito ao par imagem e conceito.
18
Martin Heidegger, Der Satz vom Grund. Pfullingen, Neske, 1957, p.183. Idem ao 13 20 Loparic, 2003/ 2004; 21 Zeljko Loparic, A linguagem objetificante de Kant e a linguagem não-objetificante de Heidegger, Natureza Humana 6(1): p.24, 2004; 22 Explicitei a aproximação com as Artes Plásticas, mas quero deixar claro que todo este trabalho está sendo pensando com o foco na produção artística imagética. Ainda que transitemos por caminhos aparentemente distantes, estamos falando da imagem como linguagem, e como linguagem ela se aproxima de outras tantas. 19
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À respeito do Dasein de Heidegger, do movimento de Heráclito e do par potência/ ato de Aristóteles, podemos ler sobre a imagem e o conceito em A Poética do Devaneio, de Bachelard: “Quem se entrega com todo seu espírito ao conceito, com toda sua alma à imagem, sabe muito bem que os conceitos e as imagens se desenvolvem sobre duas linhas divergentes da vida espiritual. Talvez seja bom exercitar uma rivalidade entre a atividade conceptual e a atividade de imaginação. Em todo caso, só se encontra desengano quando se pretende fazê-las cooperar. A imagem não pode fornecer matéria ao conceito. O conceito, dando estabilidade à imagem, lhe asfixiaria a vida.” (BACHELARD, A Poética do Devaneio, 2006, p.50)
Nenhuma imagem jamais conseguirá conceder materialidade a um conceito e nenhum conceito conseguirá abranger numa pretensiosa definição, ou numa mera descrição, uma imagem em sua totalidade. Isso porque tanto o conceito quanto a imagem, habitam e são originários de um lugar no homem onde quem rege o tempo é o Kairos e não o Chronos23. A linguagem é regida pelo kairos - ou pelo menos assim deveria ser – da mesma maneira que a gênese criativa também o é. E é, justamente, a imagem resultante de um trabalho artístico que pode funcionar como uma porta de entrada de um mundo de signos que é parte constituinte e constituída de seu criador, mas que nem mesmo em seus devaneios24 ele se molda por completo. Esse mundo se traduz no vazio que existe num momento pré-criação e que não se caracteriza por ser um vazio-ausência e sim um vazio onde as possibilidades de construção são regurgitadas, mas ainda não se fixaram como imagens minimamente definidas. É o vazio-instabilidade. Ou devaneio, como designa Bachelard25.
23
Idem ao 4 Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006 25 Idem ao 24 24
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2. A Poesia e o Espaço de Criação “Aquilo não era nem uma cidade, nem era uma igreja, nem um rio, nem cor, nem luz, nem sombra; era devaneio. Fiquei imóvel por muito tempo, deixando-me penetrar por esse conjunto inexprimível, pela serenidade do céu, pela melancolia da hora. Não sei o que se passava no meu espírito, nem poderia dizê-lo; era um desses momentos inefáveis, em que sentimos em nós alguma coisa que adormece e alguma coisa que desperta.” VICTOR HUGO, Em voyage. France et Belgique. Em L’homme qui rit – t.I, p.148, Citação em A Poética do Devaneio, Gaston Bachelard, 2006 “É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo. Um bicho arisco vive dentro de uma espécie de eternidade. Duma ilusão de eternidade. Onde ele pode ficar parado para sempre, mastigando o eterno. Para não assustá-lo, para tê-lo dentro dos seus dedos quando eles finalmente se fecharem, você também precisa estar dentro dessa ilusão do eterno.” Caio Fernando Abreu, O Triângulo das Águas, p.113
I Como foi dito inicialmente, a poesia entra como um dos pilares centrais do estudo da linguagem, por Heidegger e, também Bachelard. Justamente por tentar abarcar (sem delimitar absolutamente nada) esse caráter universal, essa validade universal da idea26 - A palavra deriva do grego idea ou eidea, cuja raiz etimológica é eidos => imagem. A poesia conserva o Dasein de toda linguagem a qual resolve abraçar, se disponibilizando a representar de maneira universal o que tem validade universal: a linguagem em si mesma.
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Idéia: do Lat. idea < Gr. idéa; s. f., representação mental; representação abstrata e geral de um objeto ou relação; conceito; juízo; noção; imagem; opinião; maneira de ver; visão; visão aproximada; plano; projeto; intenção; invenção; expediente; lembrança. (Dicionário Priberam Online)
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Entretanto, por mais que as imagens estejam em um processo contínuo de modelagem e remodelagem, e que o artista, na condição de um poeta27, trabalhe nesse eixo entre o vazio-instabilidade e a realidade do racionalismo prático e cientificista, é insensato apostar num automatismo criativo e na existência de uma ingenuidade quanto ao ato de abrir-se, por parte do artista, mesmo em face de uma “consciência de maravilhamento desse mundo criado”28. O que há na verdade é uma predisposição ao que soe novo e surpreendente, mas buscando sempre o primeiro toque, o momento primeiro em que uma imagem plástica entra em sincero embate com seu senso crítico. É uma busca pelo retorno do primeiro desvelar29. Uma busca pelo eterno retorno30. Antes de prosseguir, acho de extremo bom gosto explicitar algumas significações de certas expressões que acabei de utilizar, visando uma compreensão mais nítida da minha linha de raciocínio. A respeito do que chamo de primeiro toque, podemos pensar a partir do pensamento nietzschiano: “(...) o próprio artista (...) toda sua vida ele permaneceu um menino ou um adolescente, e parou no ponto em que foi tomado por seu impulso artístico; mas sentimentos dos primeiros estágios da vida estão reconhecidamente mais próximos dos de épocas passadas que daqueles do século presente. Sem que ele queira, torna-se sua tarefa infantilizar a humanidade; eis a sua glória e o seu limite.” (NIETZSCHE, 2005: p.108)
Humano
Demasiado Humano,
O que Nietzsche propõe é que na vida de todo ser humano, e nesse caso do artista, existe um momento específico, que pertence ao Kairos, onde um senso estético é despertado e a partir deste primeiro instante começa a ser sedimentado um juízo de valor acerca da produção artística em geral. O artista (o homem), segundo este pensador, tende a se congelar nesse momento do espaço-tempo; e é exatamente esse 27
No livro Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino deixa claro sua dificuldade em isolar cada uma das formas de expressão artística, pois considera a poesia algo de caráter uno. Nessa linha de pensamento, e por estar de acordo com esse preceito de Calvino, considerarei por poeta todo autor de uma obra artística, independente da vertente expressiva adotada. 28 Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006: p.1 29 Entre outras significações: v. tr., tirar o véu a; descobrir, esclarecer, patentear. de des + Lat. vela, pl. de velum v. tr., tirar a vela (pano) a. 30 Nietzsche, A Gaia Ciência, 2003
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momento que ele chama de infância, já que é nessa fase da vida que começamos a experimentar o mundo, construindo nossos valores. O artista, segundo ele, teria a função de infantilizar o mundo ao propagar e possibilitar às mais diversas pessoas essa experiência de cunho estético e artístico; ao conceder através de suas obras a oportunidade de uma vivência dessa ordem e magnitude, que traz em si uma capacidade natural de tornar as pessoas aptas à re-observar o mundo ao redor. Por se tratar de um momento ímpar no ciclo de vida (e por que não da produção?) do homem, tal episódio acaba aproximando o artista de épocas passadas, uma vez que o insere numa tradição da produção artística que data de séculos e séculos. Essa aproximação dá-se muito mais com esses séculos e artistas que o antecedem, do que com grande parte dos humanos/ artistas da sua própria época – principalmente àqueles que não vislumbraram seu momento particular. Dentro dessa mesma conceituação, podemos mergulhar naquele que seria um dos principais suportes do pensamento nietzschiano, e que se encontra no seu livro A Gaia Ciência (ou A Alegre Sabedoria): o eterno retorno. Para definir essa expressão, Nietzsche parte de dois pressupostos. O primeiro, consiste em pensar no total de força que existe no universo como sendo determinada, não infinita; e somado a isso, tem-se como dedução que o número de situações, combinações dessa força é mensurável, ou seja também determinada e finita. O segundo pressuposto nos diz que o tempo é infinito, e antes deste momento houve uma infinidade de tempo. Nietzsche admite que Deus não existe. E para justificar a matéria, a energia de que é constituído o Universo, ele nos diz que é preciso partir do pressuposto que tudo sempre existiu - ou então recairíamos na teoria de uma criação a partir do nada. Uma vez que existe - a matéria, a energia - e não foi criada, ela tem que ter estado aqui desde sempre. Considerando que ela sempre existiu, e pensando na possibilidade de um estágio a ser atingido, a eternidade seria o tempo suficiente para que isso acontecesse.
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A força existente hoje teria que estar eternamente ativa e igual, pois do contrário já estaria extinta. Todo e qualquer desenvolvimento já deveria ter acontecido e cada um dos instantes seria ato e potência de uma repetição. Devemos prestar atenção que a questão do eterno retorno pode causar uma impressão de tempo cíclico, o que não é verdade. Não se trata de uma percepção de tempo que se reimprime ou de uma repetição indefinida por toda a eternidade. O que ele propõe é um questionamento da seqüência ordenada dos fatos. Aponta para uma existência onde pólos opostos não são inconciliáveis, mas sim complementos de uma mesma realidade multifacetada. O que Nietzsche nos diz é que as dualidades que constituem os sentimentos, as matérias, enfim, se alternam no fluxo temporal. Se existe o Bem, existe o mal. Se existe a alegria, existe a tristeza. Se existe a angústia, existe o prazer – vale rememorar aqui os pares citados por Calvino: Leveza/ Peso, Rapidez/ Lentidão, Exatidão/ Imprecisão, Visibilidade/ O que se oculta. E a alternância entre esses pares é que nunca se finda, isso porque a realidade não tem um objetivo ou, o que seria, uma finalidade. Considerando tudo o que foi dito: o tempo como sendo infinito e a combinação de forças em conflito como finita, em determinado momento futuro, tudo se repetirá em um número infinito de vezes. Então, da noção de algo originário, nunca em repouso, mas em constante devir, da consideração de que o mundo das forças não é passível de pausas, ou equilíbrio, ou repouso, de sua grandeza de força e movimento em cada tempo, e de sua extensão ao todo; começamos a divisar a vontade de poder, que nada mais é que uma tradução nietzschiana do conceito, já citado, da panta rhei de Heráclito, e da noção de ato e potência de Aristóteles. Por vontade de poder entende-se tudo aquilo que não tem uma finalidade ou um sentido, e que vive em um movimento a partir, e em prol, de si mesmo. “Nietzsche mesmo adverte que “a vontade de poder não é nem um ser, nem um devir, é um pathos.””.31
31 Eduardo Portella, Revista Tempo Brasileiro, 143, 2000. Pathos: Do grego πάθος , subst. Masc. pá.thos .: 1. paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, assujeitamento; que comove, que enternece, tocante, próprio para exercitar a comoção; o que comove, sentimento.
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Podemos observar sob qual ângulo está sendo trabalhado este termo na citação abaixo: “Pathos está aqui no seu sentido empregado por Descartes, de que "tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado (pelos filósofos) de pathos. E se o conceito está ligado a padecer, pois o que é passivo de um acontecimento, padece deste mesmo. Portanto, não existe pathos senão na mobilidade, na imperfeição." (PORTELLA, Revista Tempo Brasileiro, 143, 2000)
A essa citação podemos adicionar o que nos diz Maria Beatriz de Medeiros: “A arte, revelando o outro do mundo real, é abertura para que o socius se funde e se confunda, sendo levado novamente a encontrar o movimento mesmo, aquele que a vida necessita, isto é, o tempo, onde o dasein tem seu sentido.” (MEDEIROS, Heidegger e a investigação, 2007: p.132)
Ambas as citações dissertam sobre aquilo que já dissemos ser essencial à linguagem e que pertence à arte diretamente, já que sua atuação é realizada sobre meios expressivos, conduzindo discussões que circundam a si mesma – quando resolve discutir seus pilares e seus vínculos com a tradição que a antecede e sustenta –, quando discute sociedades e culturas ou quando se fundamenta em questões puramente estéticas. De qualquer maneira, acredito que a plasticidade expressiva das idéias e das formas, além da sua predisposição ao auto-questionamento, é o que constitui a arte como tal. É também o que a aproxima com a vida e a essência da existência humana, uma vez que fomenta a discussão mais inicial do homem por meio de suas metáforas psicológicas. Para Piet Mondrian, “A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio”. Ele acreditava justamente nesse caráter que funde arte e vida: acreditava que a realidade deslocaria cada vez mais a obra de arte, “que essencialmente não
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passaria de uma compensação para o equilíbrio deficiente da realidade atual.”32 Entretanto, após considerar o eterno retorno nietzschiano, fica difícil imaginar uma chegada integral a esse estado de equilíbrio, pois para isso seria necessário considerar a possibilidade de resolução de todos os anseios e questionamentos humanos acerca de si e do mundo, o que, particularmente, não acredito ser possível. Como nos diz a sabedoria de Sileno33, a consciência que o homem pode adquirir da sua própria existência – principalmente da finitude dela - constitui a sua tragédia pessoal, e os gregos almejavam encarar a face mais monstruosa dessa descoberta “com a condição da mediação do mundo artístico dos deuses, para com a verdadeira tragédia chegarem ao seu consolo metafísico.”34 O fatalismo desta perspectiva é evidente: A vida como o grande mal, e a morte como o único remédio ao infortúnio de existir. Contudo, a superioridade grega está no trato de uma recusa à autodestruição do indivíduo em prol da natureza bruta e da experimentação da vida por esse caminho, dentro dessa concepção, tortuoso. Esse momento revelado, por si só já configura e concede ao homem certas instabilidades que podem impulsionar fortemente sua necessidade de expressão, tal como afirma a definição de pathos de Descartes, anteriormente citada - por se tratar de algo que padece em si mesmo. Justamente por ser o homem um ser passível de absorção e de expressão de toda uma carga dramática, é que a poesia passa a integrar o corpo criativo; principalmente por estar sempre em movimento, por ter o dasein, e por ter como característica a flexibilidade de realizar o que o homem em si faz com tanta dificuldade: olhar e trabalhar a partir de si mesma, respeitando a sua essência. Por poesia, temos na definição do dicionário Priberam: “Poesia: do Lat. poese < Gr. poíesis, ação de fazer alguma coisa; s. f., arte de fazer versos; os 32
Ernst Fischer, A Necessidade da Arte, 1987: p.11 Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; Até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, 1992, p.36) 34 Vivian Batista Gombi, A estética socrática contra a consideração trágica do mundo na obra O Nascimento da Tragédia, 2007: p.2 33
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diferentes gêneros de composição poética; conjunto de obras em verso, escritas numa determinada língua ou próprias de uma determinada época, de uma corrente literária, etc. ; fig., inspiração; estado comovido de alma para comunicar entusiasmo lírico ou épico.” (PRIBERAM Online)
Assim como já foi dito antes, no capítulo 1, a poesia é a essência da arte, isto porque ela mantém o direito de adquirir qualquer forma - gerada a partir de seus elementos fundamentais: a linguagem em si e suas permutações - uma vez que tem como meta apreender o que o ser humano tem de mais imaterial e ao mesmo tempo próprio de sua constituição: suas substâncias35. A ela é concedido o direito ao sonho consciente, que Bachelard faz questão de chamar de devaneio, e que a impulsiona a metamorfosear-se em si mesma fora de uma obrigatoriedade metódica, mas dentro de uma fluidez macia que a compatibilidade de elementos originários de um mesmo gérmen a concede dentro do Kairos. Já dissertei anteriormente sobre como a poesia mantém o ato/ potência de Aristóteles, o movimento de Heráclito, o dasein de Heidegger, e agora encerro este capítulo mostrando, no segundo bloco, toda a sua ligação com a vontade de poder de Nietzsche, bem como com a definição de pathos de Descartes. Ficará faltando ainda a relação entre a poesia e o eterno retorno nietzschiano. Entretanto, deixarei esse relacionar para o último capítulo desta monografia - onde me aterei, também, a questão do devaneio e à análise de algumas obras, incluindo as minhas.
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Neste momento vale à pena reler a citação de Caio Fernando Abreu no começo desse capítulo.
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II Quando nos propomos a adentrar no universo da criação artística, a princípio, levamos conosco toda a nossa bagagem de vida no que se refere aos nossos sentimentos e à nossa visão de mundo. Uma vez que temos nosso primeiro toque, passamos a fazer parte de uma outra esfera dentro da existência humana e da produção artística: à daqueles que tiveram contato com o Sileno. Partindo
de
nossa
competência
desenvolvemos
nosso
desempenho,
congregando e re-processando nosso próprio conhecimento de vida, sociedade, arte e poesia. Isso porque sempre trabalhamos nossas percepções, ainda que não tivéssemos plena consciência delas. Quando somos despertados o mundo se torna maior do que concebíamos porque passamos a enxergar o melhor, que sempre está nas entrelinhas36, e lentamente isso pode tornar-se um fardo pessoal, na medida em que um número reduzido de pessoas teve, tem ou terá, ao longo de suas vidas momentos que se igualam a esse tomar de consciência - uma certa solidão pode cobrir aqueles que vivem nesse pós-ato revelado ou eles mesmos podem acabar buscando a solidão por absorver a dimensão da sua existência. Prestemos atenção à citação abaixo: “A arte é pensamento, mas pensamentodescoberta a cada obra, a cada novo re-sentir a obra, a cada novo espectador, a cada nova espectativa.” (MEDEIROS, Heidegger e a Investigação, 2007: p.132)
Uma obra de arte comporta em si uma série de elementos. Ao longo do tempo, muitos outros elementos são adicionados de acordo com a magnitude37 do trabalho - ou
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“Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.” , Clarice Lispector, Água Viva, 1978: p.96. 37 “A grandeza de uma obra consiste, na verdade, em que o poema pode negar a pessoa e o nome do poeta” Heidegger, A Caminho da Linguagem, 2003: p.13 “A poesia é alguma coisa mais que os poetas”, George Sand, Questions d’art et de littérature, p.283, nota de rodapé, A Poética do devaneio, p.6
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como diz TS Eliot38, o novo quando chega com potência, acaba reorganizando a história que o antecede. E, é claro, a relação que ela mantém com o público que a observa e, principalmente, com o olhar de seu criador que permanece em constante devir. Quando Maria Beatriz de Medeiros nos diz que “arte é pensamento”, ela levanta justamente o caráter da arte em se problematizar a cada instante, levantando sempre novas questões e se pondo em risco a cada nova reinvenção de si mesma.
É
“pensamento-descoberta” porque não se fecha. Porque novas situações, novos lugares, novos públicos, o contato com outras obras, enfim, até mesmo ela em si, pode empurrar seu criador a uma nova reflexão que afetará direta ou indiretamente sua estrutura de composição, seu conceito e sua poética. É nesse ponto em que identificamos, na poesia o que nos disse Descartes com seu pathos e Nietzsche com sua vontade de poder: ela não tem uma finalidade ou um sentido. Não tem nenhum vínculo fixo que não seja com ela mesma ou com o ato de dar forma39 à percepção humana – isso torna-a uma possibilidade de verdade: tanto a poesia quanto a percepção. Lê-se abaixo: “ “O que é “verdadeiro”, de modo ainda mais originário que o logos [...] é a aisthesis, a simples percepção sensível de alguma coisa” (p.64). E, “a percepção é sempre verdadeira” (p.64). Por logos, Heidegger entende: discurso, razão, juízo, conceito, definição, fundamento, aquilo que revela, deixa e faz ver sendo fala, articulação em palavras, na qual sempre algo já é visualizado. E, ainda, o logos pode ser verdadeiro ou falso. Seria possível o logos dizer o “abismo intransponível” (HEIDEGGER, 200, p.67) Seria possível utilizar o 38
" [...]que é modificada pela introdução das obras de arte novas(das realmente novas). A ordem existente está completa antes da chegada da nova obra; para a ordem persistir após a supervenção da novidade, a ordem existente inteira deve ser alterada, ainda que levissimamente; e assim as relações, proporções, valores de cada obra de arte são reajustadas em relação ao todo; e tal é a conformidade entre o velho e o novo." ELIOT, T.S., Tradition and the Individual Talent, in Selected Essays(Londres:Faber&Faber,1951), p.14 tradução Antônio Cícero. Citação em CÍCERO,Antônio. Poesia e Filosofia. In: Literatura e Filosofia:diálogos/Evando Nascimento e Maria Clara Castellões de Oliveira,organizadores. Juiz de Fora: UFJF,São Paulo:Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,2004. 39 Aqui utilizada em dois sentidos específicos e simultâneos: O primeiro é => “Forma: do Lat. Forma; s. f., modo sob o qual uma coisa existe ou se manifesta; configuração; feitio, feição exterior; manifestação; estado; modo; norma; modelo; feição, estilo em composição literária, musical ou plástica;” E o segundo é => “Forma: do Lat. Forma; Filos., essência, por oposição a matéria;” Dicionário Priberam.
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logos, que não é originário, que não é o “lugar” da verdade (da coerência) para falar a aisthesis (MEDEIROS, 2005), para dizer aquilo que toca a percepção, qual seja, aquilo que diz respeito ao que é sempre verdadeiro?” (MEDEIROS, Heidegger e a Investigação, 2007: p.132)
O logos (em grego λόγος, palavra) significava a palavra falada ou escrita – o Verbo. A partir de alguns filósofos gregos como Heráclito, logos passa a ter um significado mais amplo. Passa a ser compreendido como um conceito filosófico que traduz a Razão, e que dentro de si mesma pode oscilar entre o verdadeiro e o falso. Do outro lado temos aisthesis, que nada mais é do que a palavra grega referente a Estética (do grego αισθητική ou aisthésis: percepção, sensação). Por estética entende-se o ramo da filosofia que se ocupa em estudar a natureza do belo (bem como do seu oposto, o feio) e dos fundamentos da arte. Prende-se ao julgamento e a percepção daquilo que é enunciado como belo, à produção de fenômenos estéticos bem como às diferentes formas de arte e de fazer artístico. Uma vez explicitado os dois conceitos, ainda que de maneira breve, e considerando a percepção sensível de mundo, pelo humano, como algo verdadeiro40 justamente por ser originária e inerente à espécie, a pergunta mais capciosa que reside nessa citação é: “Seria possível utilizar o logos, que não é originário, que não é o “lugar” da verdade (da coerência) para falar a aisthesis (MEDEIROS, 2005), para dizer aquilo que toca a percepção, qual seja, aquilo que diz respeito ao que é sempre verdadeiro?”. Será que é possível fazermos uso de uma ou mais estruturas nãooriginárias, para falar de algo originário? Será que as estruturas, as formas, sedimentadas por uma razão, ainda que maleável, conseguem alcançar a absorção de todo o fluido de esthesias que o artista como homem, como humano, carrega em seu ente? Justamente por se tratar de um questionamento que não é passível de uma resposta imediata, nem de uma resposta que traga em si uma solução integral a essa questão, é que discordo da afirmação, já citada, de Mondrian sobre a relação arte x 40
Verdade significa o que é real ou possivelmente real dentro de um sistema de valores. Esta qualificação implica o imaginário, a realidade e a ficção - questões centrais tanto em antropologia cultural, artes, filosofia - e a própria razão. O que é a verdade afinal?
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vida. É o mesmo caráter que me faz concordar com Clarice Lispector quando ela diz que “O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.”. É o caráter escorreito e inapreensível que a poesia traz em si enquanto manifestação estética, independente do meio no qual resolvemos expressá-la – como o kairos que não é medido, em contraponto ao Chronos; como o logos que tenta abarcar por completo a aesthesis, mesmo sem conseguir. É essa marca registrada, cuja existência é totalmente fundamental a uma obra de arte, para que ela exista como tal. Para que ela revele sua força enquanto trabalho, ao se reimprimir de tempos em tempos, suscitando novas questões a cada releitura e reorganizando o fluxo conceitual da história da arte ao se inserir no mesmo. Quando dissemos que a poesia é a essência da arte, era exatamente por ser através, e a partir, dela que a arte se revela como tal: como sendo capaz de pensar e repensar tanto a si mesma como ao mundo e ao homem. Capaz de explorar infindáveis possibilidades de se revelar. Passível de entrar em uníssono com o mais antigo questionamento humano (Que é o ente?), sem pretender respondê-lo diretamente, mas sempre abrindo possibilidades de reflexão, de desdobramentos seqüenciais - em busca do que é originário de cada substância (Que é a linguagem? Que é a Arte?) - e de vislumbramento de alguns recônditos adormecidos da essência humana.
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3. O devaneio ou o eterno retorno da poesia “As idéias se aprimoram e se multiplicam no comércio dos espíritos.” Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006, p.15 “Como penetrar na esfera poética do nosso tempo? Uma era de imaginação livre acaba de abrir-se. Em toda parte as imagens invadem os ares, vão de um mundo a outro, chamam ouvidos e olhos para sonhos engrandecidos.” Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006: p.25 “A imagem só pode ser estudada pela imagem (...) É um contra-senso pretender estudar objetivamente a imagem quando a admiramos. Comparando-se uma imagem com a outra, arriscamo-nos a perder a participação em sua individualidade.” Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 2006: p.52
I No final do capítulo anterior, questionei a capacidade e a eficácia de algo nãooriginário
(logos) abarcar algo
originário
(aesthesis),
em sua
totalidade. O
questionamento que levantei dizia respeito ao nível de força e competência de algo criado sobre as colunas do método quando o “adversário” a ser capturado não se prende a método algum, no que tange sua construção originária. O momento que antecede a criação artística abriga toda a imaterialidade pulsante do pensamento humano, contendo em si a bagagem de vida e percepção do ser criador, sem necessariamente se apoiar em memórias. A tomada de consciência dessas efemeridades se faz como num sonho, mas ao contrário do lugar para onde somos transportados quando dormimos (sonho noturno), esse é um sonho diurno, em que estamos acordados e processando milhares de possibilidades distintas concomitantemente.
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Em seu texto Dos Lugares aos Não-Lugares, Marc Augé nos fala da “presença do passado no presente que o ultrapassa e o reivindica”, apontando nesse passado não um conceito simplista de algo que perdeu validade para um conceito mais “atual” e sim algo que antecede novas concepções coexistindo e concedendo suporte ao estabelecimento das mesmas como verdades momentâneas. Ele propõe que o passado e o presente trabalham em conjunto na configuração do momento que antecederá o devir. Ainda nesse texto, temos os seguintes pensamentos: “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um nãolugar.” (AUGÉ, Dos Lugares aos Não-Lugares, 1994, p.73) “O lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação. Os não-lugares são a medida da época;” (AUGÉ, Dos Lugares aos Não-Lugares, 1994, p.74)
O lugar psíquico, onde tais formulações se dão, agrupa informações, pensamentos, imagens que provém de nossas próprias experiências, bem como algumas captadas a partir da experiência alheia, onde fomos observadores ou tivemos contato através de relatos. Contudo, não podemos considerá-las como algo que nos é relacional, pois para isso seria necessário cogitar que essas imagens, de alguma maneira, se solidifiquem ao invés de se propagarem no imaterial; ao mesmo tempo, é impossível negar o diálogo, mesmo indireto e efêmero, entre elas. Não teríamos condições de considerá-las históricas, pois seus conceitos e formas se mantêm vivos e não se permitem definições conclusivas; entretanto são históricas no sentido a priori citado: quando antecedem e fornecem condições de surgimento ao que é novo. Por fim temos a questão do identitário, que assim como os outros adjetivos nos leva a uma dualidade em nossas reflexões: é identitário, pois através de nossa consciência e 42
percepção de mundo acabamos por insuflar na produção partes nossas, fragmentos de conceitos, de memórias, de esthesias. Em contrapartida, como dar paridade absoluta a algo que não provém de nós, a algo que recebemos do mundo e de outros seres criadores? Em suma, essas “polaridades fugidias”, intituladas Lugar e Não-Lugar, se interpelam constantemente no processo de criação e pensamento, criando um espaço reflexivo que ora pode ser chamado de não-lugar e noutro instante, próximo a feitura do trabalho, de lugar. Isto porque se mantém numa forma que muito se assemelha, ao que o próprio Augé enuncia, palimpsestos41. Assim como a relação que foi estabelecida entre Saussure e Chomsky, percebemos algo semelhante entre Marc Augé e Gaston Bachelard. Em seus livros, A Poética do Espaço (1957) e A Poética do Devaneio (1960), Bachelard abandona o método científico, elegendo a fenomenologia como um método mais apropriado a se estudar a poesia, os poetas, os poemas e, principalmente, as imagens. Ele busca estudar o fenômeno na sua gênese. Sugere um estudo “da imagem no momento da imagem”42, no instante em que ela se molda no processo cognitivo do leitor (observador). No caso do autor, esse instante se dá em dois momentos: na sua realização e na sua observação da obra finalizada. No primeiro livro, A Poética do Espaço, o autor faz referência a dois conceitos: repercussão e ressonância. Por repercussão, Bachelard nomeia o momento durante uma leitura de imagem em que o observador/ leitor é atingido em sua alma de uma maneira que ultrapassa os processos racionais de compreensão. Nesse instante há uma síntese entre o eu/ criador com o eu/ observador que muitas vezes deságua no questionamento: como esse artista consegue falar sobre o que há em mim de mais interno? Como ele consegue abordar as formas que me são tão íntimas? Em virtude desse momento de repercussão, temos o que ele designa por ressonância, com toda a sua multiplicidade. O próprio autor considera a respeito desse
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Palimpsesto: do Lat. palimpsestu < Gr. palímpsestos < pálin, de novo + psáo, raspar; s. m., pergaminho manuscrito medieval em que, por raspagem, se fez desaparecer a primeira escrita para nele escrever de novo, mas do qual, por vezes, se tem conseguido fazer reaparecer, por processos químicos, os caracteres do texto primitivo. Dicionário Priberam Online. 42 Norberto Perkoski, Os sons do silêncio: um devaneio poético, Letras de Hoje, v.41, nº4, 2006: p.85
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par: “é depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias”43. Uma vez lida a imagem, ela é armazenada e processada no nosso não-lugar reflexivo, ela provoca “um verdadeiro despertar da criação poética na alma do leitor”44. Ela perdura ali até nos suscitar a exteriorizá-la aos nossos iguais, na busca por compartilhar a intensidade da experiência por nós desfrutada. Já no segundo livro - A Poética do Devaneio -, Bachelard nos fala sobre a “alegria de falar”, que corresponde exatamente a essa necessidade de socializar a vivência. Entretanto, por se tratar de um sonho acordado, ele anuncia o perigo dessas imagens se perderem: “um devaneio, diferentemente do sonho, não se conta. Para comunicá-lo é preciso escrevê-lo com emoção, escrevê-lo com gosto, revivendo-o melhor ao transcrevê-lo. Tocamos aqui no domínio do amor escrito” (BACHELARD, A Poética do Devaneio, 2006: p.7)
O devaneio consiste na capacidade humana em armazenar sensações diversas provindas dos mais diferentes estímulos dos sentidos. É a conjugação de todas as esthesias, absorvidas ou originárias do próprio ente do humano. Trata-se da combinatória infinita entre a poesia e suas múltiplas possibilidades de expressão, no interior da consciência humana. Considerando a filosofia de Nietzsche, é o eterno retorno das experiências vividas, transmutadas em novas formas, essências, cheiros e gostos. Trata-se do ecoar de uma época passada conjugada e metamorfoseada no presente, em sintonia com o devir futuro e com toda uma possibilidade de mundo com a qual não tivemos contato, mas que nos chega de uma maneira tão intensa – através de uma produção artística que parte de nós habita àquele lugar. Tudo isso fazemos acordados e eis a diferença entre o Devaneio e o Sonho: “Assim, é precisamente através da fenomenologia que procedemos à distinção entre 43 44
Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, 1989 Idem ao 46
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sonhos e devaneios. Nos sonhos não há interferência da consciência, os sonhos são autônomos; enquanto que nos devaneios há uma interferência possível da consciência que torna esta distinção decisiva.” (LYRA, Fenomenologia do Devaneio, 2005: p.2)
Pontuando acerca de uma gênese desse movimento psicológico, Bachelard sinaliza que o devaneio se origina da fusão de duas poéticas, de dois devaneios; do contato de duas forças embrionárias da psique, nomeadas por Jung como: o animus (masculino) e a anima (feminino). No que diz respeito ao devaneio, quem governa é a anima, independente dela se desenvolver em um homem ou em uma mulher. Anima é a metáfora, é a sensualidade45 da composição artística, é o som do silêncio, é a imagem que nos apetece, é o verso que nos proporciona imagens, são “os tons coloridos e fluidos dos textos que nos deixam maravilhados”46.
Milhares de imagens, desertos sonoros, um oceano de
palavras nos embriagam com seus odores, suas nuances coloridas, com suas variações musicais. Tudo isso ocorre sob o signo da anima, que através do devaneio sacraliza o objeto. É ela que proporciona uma blusa amarela com três metros de poente; que faz da principal avenida da sua cidade a principal avenida do mundo; que conduz o Talento Rebelde de Maiakovski nos versos que se seguem:
Talento Rebelde
Blusa Fátua Costurarei calças pretas com o veludo da minha garganta e uma blusa amarela com três metros de poente. pela Niévski do mundo, como criança grande, andarei, donjuan, com ar de dândi.
Que a terra gema em sua mole indolência: 45
Sensual: do Lat. Sensuale; adj. 2 gén., relativo aos sentidos; voluptuoso; lúbrico; lascivo. Dicionário Priberam Online. 46 Sonia Regina Lyra, Fenomenologia do Devaneio, 2005: p.3
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"Não viole o verde das minhas primaveras!" Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência: "No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"
Não sei se é porque o céu é azul celeste e a terra, amante, me estende as mãos ardentes que eu faço versos alegres como marionetes e afiados e precisos como palitar dentes!
Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta garota que me olha com amor de gêmea, cubram-me de sorrisos, que eu, poeta, com flores os bordarei na blusa cor de gema! (Tradução: Augusto de Campos)
Sobre a anima, prestemos atenção no que nos diz Bachelard: “a poética do devaneio é uma poética da anima (...) O devaneio puro, repleto de imagens, é uma manifestação da anima, talvez a mais característica de suas manifestações.” (BACHELARD, A Poética do Devaneio, 2006: p.59 e p.61)
O animus é a face racional da psique, que não se fecha em conceituações estáticas. É o signo que fornece parâmetros a anima e, muitas vezes, prepara a atmosfera para que ela se desenvolva consciente ou inconscientemente. Animus é o masculino que delimita o devaneio, diferenciando-o do sonho e da loucura. É o caminho que traz o artista de volta à realidade, compromissado em transpor às pessoas comuns possibilidades atípicas de experiências sensíveis, revivendo-as melhor ao transcrevêlas. O arquétipo do andrógino habita o ser humano na conjugação de ambos os signos – animus e anima. E o equilíbrio entre eles mantém o devaneio em ação apaziguadora, em harmonia, no sentido grego da palavra que sugere um equilíbrio sob tensão.
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Talvez, agora, seja possível ter uma noção exata da comparação que fiz entre Saussure x Chomsky e Marc Augé x Gaston Bachelard. Se Saussure caracteriza a linguagem, a aplicação do pensamento de Marc Augé caracteriza o espaço de reflexão, além de delimitá-lo. Se Chomsky postula uma origem da linguagem, Bachelard se interessa, não por definir exatamente o lugar da criação, mas por refletir acerca das possibilidades de gênese a partir de suas múltiplas fontes embrionárias. Assim sendo, a poesia tem a sua engrenagem funcional, o seu motor, no devaneio gerado pelo equilíbrio da androginia, que surge entre animus e anima dentro da psique humana. Esse gerenciamento poético é feito com total liberdade uma vez que o poeta (artista) se mantenha aberto à essência da linguagem, da poesia e do ente. É em virtude da capacidade metamórfica da poesia, que veremos adiante algumas propostas de trabalhos artísticos almejando abarcar esse imaterial que regurgita na mente criadora, sem, pretensiosamente, acreditar que o objetivo foi alcançado por inteiro, mas conscientes de que se trata de uma pesquisa contínua.
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II Nuno Ramos: Série Vitrines: GAGS e GRAVE, GRAVE “Ao introduzir a palavra como elemento plástico e sonoro de sua intervenção, Nuno Ramos provoca um deslocamento do campo visual para o campo verbal que reforça a intenção de sua proposta, que é a de criar uma situação visual, semelhante ao universo das palavras, em que a realidade é percebida em um circuito de representação fechado sobre si mesmo. Mas ao lançar a sentença “Pergunte ao” estabelece no campo da palavra um raciocínio de origem visual que é o de fazer com que a “coisa” possa falar. A resposta é também um circuito fechado sobre si mesmo. Palavras falam sobre palavras e coisas apontam para coisas.” Marcio Doctors, Projeto Respiração – “Pergunte ao”: Nuno Ramos, Fundação Eva Klabin, 2008
O primeiro artista a que me proponho discutir a obra, a fim de dialogar com os aspectos teóricos já apresentados, é Nuno Ramos. Abarcarei, especificamente, uma série apresentada como parte da exposição “Pergunte ao: Nuno Ramos”, na Fundação Eva Klabin, entre abril e junho de 2008, dentro do Projeto Respirações. A concepção deste projeto era a de promover intervenções contemporâneas que dialogassem com as obras clássicas pertencentes ao espaço da casa-museu; promover um diálogo entre a cena contemporânea que atua em museus e galerias e este espaço que é engessado pelo simples objetivo de assegurar um acervo de arte clássica à memória coletiva. A intenção do projeto era promover, através desses trabalhos contemporâneos, uma nova gama de releituras do próprio espaço e suscitar questões que dizem respeito à arte como um todo. Nuno fez parte da 8ª edição do projeto com duas séries de trabalhos: Permito e Vitrines. Sendo que minha análise se aterá à série Vitrines, e, em específico, aos trabalhos GAGS e GRAVE, GRAVE. Antes de me aprofundar nas questões pertinentes aos trabalhos, prefiro apresentá-los, ainda que ambos estejam disponíveis para visualização nos Anexos (Figura II e Figura III) desta monografia.
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De uma forma geral, a série Vitrines se apresenta como uma seqüência de intervenções onde o artista lacra partes de cada cômodo da casa com placas vidro e alto-falantes. Optei por trabalhar com essas duas obras, pois, ao contrário das demais – que envolvem estatuárias -, tratam-se unicamente de objetos de utilidade doméstica; trata-se, como nos diz Bachelard, de “unir a poética do devaneio ao prosaísmo da vida”. Observando primeiramente o trabalho GAGS (Figura II) - que consiste numa mesa de jantar, em estilo clássico, onde metade da mesma se encontra isolada em virtude das tais placas de vidro, com o alto-falante proferindo vozes a contar piadas seguidas de muitos risos, como se diversas pessoas ali estivessem – percebemos que Nuno optou por materializar a possibilidade real daquele não-lugar. Ele potencializa e sugere uma vida que prossegue além da nossa capacidade visual, aguçada diretamente pela nossa audição. Na realidade o que ele provoca é uma reavaliação dos sentidos, uma vez que, apesar da visualidade da mesa, das cadeiras, dos talheres e copos, dos vidros e do alto-falante, não existe nenhuma imagem humana que seja condizente com as vozes proferidas. É como se ele resolvesse moldar o imaterial para suscitar uma reflexão acerca da pluralidade sensorial que nos circunda, além, é claro, de levantar a discussão a respeito da confiabilidade dos sentidos. Nessa obra, GAGS, os diálogos que são travados acontecem ignorando completamente a presença do observador. Nesse momento, ele redefine o lugar do observador caminhando na contramão da contemporaneidade: primeiro há a separação entre o espaço originário das vozes (sensorial) e o espaço do observador/ leitor (físico). Depois ele cria uma seqüência de falas que desloca o público presente, e faz com que essas pessoas ocupem o lugar de uma obra qualquer estática, impassível de comunicação dentro daquela esfera. Ali o inusitado é o humano. Digo que ele segue na contramão da contemporaneidade porque escapa a esse excesso de fetichismo que tenta a qualquer custo colocar a obra em constante interação física com o público. E o curioso, é que a grande virada, tanto nesse trabalho quanto no GRAVE, GRAVE, é o fato dele propor uma interação intelectual que põe a noção tradicional de sentidos em total risco. Ele discute a linguagem, a língua, a fala e o imagético.
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Tratando-se do outro trabalho, GRAVE, GRAVE (Figura III), a postura adotada é absolutamente dispare em termos de abordagem. Trata-se de dois sofás, também lacrados entre placas de vidro e um alto falante, direcionados um de frente para o outro. Diferentemente da primeira obra citada, esta intervenção é toda sedimentada em um diálogo que cogita a presença do observador. Inclusive o próprio observador passa a ser assunto entre essas vozes que conversam entre si – o que certamente concede um ar sombrio, um lirismo exercendo um peso quando se é somado a esse excesso de imaterialidade aquele não-lugar/lugar que é a casa em si -, liberando o expectador àqueles que seriam seus próprios devaneios, a partir dos devaneios do artista. É um trabalho onde o imaterial cogita no seu interior – através do diálogo sugerido entre esses sofás – a nossa existência humana, assim como nós em pleno devaneio dissertamos sobre esse espaço fluido de criação e sobre o ente das coisas do mundo. O que ele faz é sugerir uma voz a esses devaneios da imaterialidade. Nuno discute a linguagem, como tal, na sua essência ao expandir a capacidade de recodificação de uma área dos sentidos à outra. Ele capta a intenção primeira da linguagem, ou pelo menos aquela à que Heidegger, Barthes, Bachelard, dentre tantos, sugeriram como o ente da linguagem; e após terem aplicado o conceito de movimento (panta rhei) de Heráclito, direcionaram a mesma a se flexibilizar tantas quantas forem às possibilidades de devaneio. Esse é o caráter principal da poesia: conseguir transmutar meios e formas, transfigurar sentidos em outros sentidos, ao aplicar a linguagem de maneira livre, concedendo cor à música, textura à brisa, e, no caso de Nuno, forma ao som.
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III
Brígida Baltar: Umidades
“(...) a artista explora a memória e a afetividade geradas no evento, como as lembranças de odores, da temperatura, dos sons e mesmo de sentimentos, como prazer, medo ou melancolia. Entretanto, para o espectador que conhece apenas as imagens fotográficas geradas por esses procedimentos, essas ações parecem realizar-se fora do espaço e do tempo, inseridas em uma atmosfera de sonho.” Moacir dos Santos, Enciclopédia Itaú Cultural, 2007
A segunda artista a qual farei referência é Brígida Baltar, centralizando o pensamento no projeto Umidades (Figura IV, Figura V e Figura VI), que foi realizado entre 1994 e 2001. O projeto Umidades consistia na coleta de maresia (Figura IV), orvalho (Figura V) e neblina (Figura VI), que por si só já apresentam todo um caráter fugidio enquanto matéria que se pretende apreender, onde a artista, numa ação performática e vestida distintamente para cada situação, propunha não só uma consciência de olhar, de relação entre os sentidos, como também uma discussão acerca da temporalidade do momento. Todo o projeto foi registrado por meio de fotografias e vídeos silenciosos, que, se por um lado excluem o processo, por outro concedem uma nova leitura, não menos intensa, do ato em si. Num contato mais demorado com tais registros, podemos notar como se desdobra essa questão temporal. Nas imagens relativas à apreensão da maresia, além da vestimenta nos remeter a tempos idos, em virtude de sua aparência, somos acionados, nos confins da memória sensível, a rememorar instantes, cores e cheiros – sendo o último o mais característico e impessoal dos três aspectos ligados a essa proposta - com uma certa nostalgia que, surpreendentemente, a imagem nos suscita. 51
Já nas imagens relativas ao orvalho (bem como naquelas que tratam da neblina) ela utiliza uma roupa de plástico bolha, com espaços para seus diversos vidros coletores. Fica presente a sensação do que é novo, do que é imaculado e originário do porvir, fornecendo ares leves a uma nova possibilidade de um mundo em potência de descoberta. A imagem traz em si um frescor similar ao olhar do viajante quando se depara com localidades que fogem ao seu cotidiano. Conduz a descoberta que se mistura com a memória pessoal de outros momentos ressurgidos neste instante. A sensibilidade quanto à luminosidade, ao ar ainda não usado da manhã, parece extrapolar o limite imagético, proporcionando uma nova experimentação, quase táctil, em nossos próprios devaneios poéticos. No que diz respeito às imagens da coleta de neblina, parece criar-se uma fenda na relação espaço-tempo. Ela consegue construir, na imagem, uma atemporalidade do eterno, onde a poesia coloca em potência toda a fluidez e efemeridade que lhe é embrionária. Ela – tanto Brígida quanto a poesia - se põe em comunhão com esse eterno a fim de tentar apreender o que é arisco: uma fração matérica do momento vivido. No que concerne à proposta, o lirismo poético é o ponto chave dessa experiência de apreensão do inapreensível. A vontade de captação dessa parcela ínfima do que é transitório reflete uma consciência nítida, tanto do entrelaçamento entre as esferas sensíveis como da magnitude dessa poesia do invisível. Hugo Friedrich, que em A Estrutura da Moderna Poesia Lírica faz uma fina análise da poesia de Mallarmé, nos traz as seguintes palavras: “Aos olhos dos outros, minha obra é o que são as nuvens no crepúsculo e as estrelas no céu: inútil... Cumpre-vos abolir a realidade do vosso sonho, pois ela é banal... A única coisa que o poeta tem a fazer é trabalhar misteriosamente com os olhos voltados para o Nada.” (MALLARMÉ, em citação no livro A Necessidade da Arte, Ernst Fischer, 9ª ed, 2007: p.83)
O trabalho de Brígida trabalha com essa inutilidade funcional (não é assim com a maior parte da produção artística?), trabalha com esse Nada que não é vazio, bem como o momento psicológico que antecede a criação artística preparando o seu
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processo de composição – é passível de observação que Mallarmé utilizou letra maiúscula concedendo uma quase personificação, nomeando um não-lugar. Ela desenvolve sua proposta a partir daquele que seria o devaneio para Bachelard, dialogando, com muita propriedade, sobre a capacidade sensorial humana como um conceito temporal particular. Enquanto Nuno Ramos busca dar forma ao imaterial - que não está presente através dos devaneios do animus e, principalmente, da anima nos sentidos, Brígida tenta trazer à tona o imaterial existente nos vãos do mundo. Ela tenta trazer à experimentação dos sentidos algo que já existe, mas que é etéreo à nossa temporalidade chronos e a percepções fechadas. Em virtude disso ela interrompe essa cronologia cartesiana instaurando, com seu trabalho, um momento kairos, aonde as pluralidades vão se revelando lentamente junto com todas essas umidades fugidias e sutis. Ao tentar capturar o eterno, Brígida Baltar entra em sintonia com ele e acaba potencializando a poesia e o lirismo do mundo em seus trabalhos.
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IV
Cildo Meireles: Missão/ Missões (Como Construir Catedrais) O terceiro artista usado como referência nesta monografia, ao contrário de Nuno Ramos e Brígida Baltar, não trabalha diretamente com o imaterial, ainda mais no que tange ao trabalho escolhido. Trata-se de Cildo Meireles e sua instalação Missão/ Missões (Como Construir Catedrais), de 1987 (Figura I). Esse trabalho consiste numa espécie de “tapete” formado por seiscentas mil moedas de um centavo, que se encontram no chão, e estão conectadas a dois mil ossos de vaca, suspensos no teto, por oitocentas hóstias que vão do plano onde estão as moedas até o plano onde estão os ossos. Esse trabalho foi construído como proposta final de um projeto, onde alguns artistas tiveram a oportunidade de viajar para o sul do país, visitando algumas regiões outrora habitadas por Jesuítas e Índios. Essa obra de Cildo Meireles, alinhada à leitura do livro de Calvino, causou-me repercussões que, num instante posterior, promoveram ressonâncias diretas ou conjugadas com outras ordens de vivência. Devido ao seu rigor durante todo o processo de gênese da obra – desde a construção dos objetos até a relação entre imagem e título – dois pontos que caracterizam muito bem a produção de Cildo, passaram a conter um ao outro. No que diz respeito ao diálogo entre as imagens e os títulos dos trabalhos por ele produzido, há sempre um jogo semântico proporcionando novas reinterpretações de conceitos, novas ironias, e, muitas das vezes, uma subtração do significado mais corriqueiro que o signo pode conter. Há neste caso, uma dupla contaminação: as imagens fornecendo forma47 às palavras, enquanto estas concedem novos conceitos às imagens. Essa capacidade de codificar e recodificar signos repletos de significados socialmente impressos, numa relação direta com a obra, fornece uma capacitação a
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Idem ao 42
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quem se habitua e se propõe a entrar em contato com a produção desse artista: o dasein. Em entrevista ao Jornal de Brasília, de 5 de dezembro de 1984, Cildo Meireles disse: "Eu acredito que a arte deveria lembrar sempre a idéia da liberdade do homem e nesse sentido eu sou muito anarquista. Não se pode negar o lugar em que se vive, a miséria que nos circundam, mas não faço arte engajada nesse sentido político circunstancial. Acho que a arte hoje deve fazer o papel de democratizadora da informação, de criar mídias as mais amplas e abrangentes possíveis, para o maior número de pessoas". (MEIRELES, Jornal de Brasília, 1984)
Se a arte se entende como linguagem e como linguagem entende e propaga sua existência baseada no conceito de ente, é certo que tocará no âmago da consciência do ser vivente e humano. Quando esse homem começar a ganhar consciência real da essência da linguagem e de si, estarão se abrindo a ele as portas do devaneio, do sonho acordado, da independência psíquica: da autonomia intelectual. O mundo passará a ser uma grande possibilidade em aberto. E as alternativas de escolha serão infinitas. Pensando na construção de imagens propriamente ditas, o que mais impressiona é a simplicidade que rege a composição dos trabalhos de Cildo Meireles. É a maneira como ele faz o simples se tornar requintado através de uma precisão de pensamento e de execução. Ele consegue despertar o óbvio sem ser previsível ou fraco, muito pelo contrário. Ele consegue atingir em seus trabalhos um dos tópicos mais elegantes, e importantes, mencionado por Ítalo Calvino: a exatidão48; que é exatamente um momento do espaço-tempo da criação em que o trabalho se encerra, sem arestas a aparar e sem mais nada a acrescentar. É quando a obra de arte não possui nada em si que sobre ou falte: atingiu sua maturidade.
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Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio
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V Rommel Cerqueira: O Contorno do Espaço e Suor Neste último bloco vou me ater à minha própria produção, destacando dois trabalhos que foram concebidos por mim em épocas próximas ao surgimento de todo esse questionamento que se iniciou com a consistência, passou pela linguagem, pela imagem e chegou na poesia e devaneio. A intenção é relacioná-los tanto com as questões teóricas desta monografia como com os artistas citados, seus trabalhos e suas poéticas. Para começarmos, abordarei o primeiro trabalho, que consiste num vídeo de 4’ 43’’ chamado O Contorno do Espaço (Figura VII, Figura VIII, Figura IX ) Esse vídeo surgiu durante a montagem de uma instalação, em novembro de 2007, no ateliê do Instituto de Artes, como um projeto final da disciplina Oficina de Criação Tridimensional, e consiste, unicamente, no movimento que o plástico realiza contra a grade – se aproximando e se afastando - como resposta ao estímulo da brisa da manhã. O sol que incidia sobre o plástico preto, proporcionava nuances de cores distintas, que, alinhadas ao movimento do vento, provocavam um outro fenômeno, onde todos os elementos participavam, como em uma dança. Lentamente as grades, na horizontal, pareciam começar suas coreografias guiadas pela música de Debussy; refrescados pela brisa da manhã e energizados pelo sol que nascia em uma coincidência feliz. Nesse primeiro trabalho, dialoguei na confluência dos sentidos, isso porque ao conseguir captar a imagem do vento e da luz incidindo sobre o plástico preto, acabei registrando um bailado entre as ortogonais da grade que mais pareciam corpos inexistentes potencializados pela Clair de Lune, de Claude Debussy. Observar as grades paradas no seu dia a dia e perceber a movimentação delas no vídeo, bem como o seu turvar, nos dá uma outra concepção de olhar que em muito se assemelha àquela aplicada por Nuno Ramos em sua Série Vitrines, e em específico à obra GAGS. Da 56
mesma maneira que em GAGS, a conversa parece se desenrolar deixando o observador à margem, em O Contorno do Espaço, o movimento desse balé parece cultuar a leveza e ignorar a realidade por completo. É lírico, porém leve, assim como os trabalhos de Brígida. Se há um paralelo a ser traçado é justamente esse: em termos de proposta, O Contorno do Espaço dialoga bastante com a série Vitrines, de Nuno Ramos, ao se propor a sugerir formas (Nuno) ou movimentos ritmados (Eu) a partir de sons – para Nuno são as conversas, pro meu vídeo é a música -, mas em termos de lirismo poético se aproxima muito mais das Umidades de Brígida, pela sua poesia ausente de peso e criadora de um tempo outro que foge à realidade comum. Uma vez analisada essa possibilidade de diálogo entre o meu vídeo O Contorno do Espaço e os trabalhos tanto de Nuno como de Brígida, podemos passar ao meu segundo trabalho: Suor (Figura X, Figura XI, Figura XII e Figura XIII ). Trata-se de uma performance pensada e realizada por mim no curso Processos Poéticos do Corpo como Suporte, realizado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no 1º semestre de 2007. Entretanto, a primeira exibição deste trabalho só foi ocorrer no Evento Filé de Peixe, em abril/ 2008, sendo repetido na Mostra Objeto Performance, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em maio e na Mostra Performance do Barracão Maravilha, em junho do mesmo ano. A performance surgiu a partir de um tema discutido nesse curso, e visava levantar questões que pudessem ser desdobradas em trabalhos práticos. O tema era: o corpo como história, e a partir daí comecei a pensar sobre qual viés eu poderia explorar a problemática da história do corpo e toda efemeridade que o próprio tema sugere. O resultado de uma série de pensamentos e discussões, foi a performance SUOR, que se realiza da seguinte forma: eu cubro meu corpo com roupas grossas como flanela e lã - e me exercito esperando o momento que precede o início do suadouro. Antes de começar a suar efetivamente, eu dispo a parte superior do meu corpo e através de colheres, tanto eu quanto o público presente iniciamos a coleta desse suor até preencher por completo um pequeno pote de vidro. Passeia por uma região limítrofe que tangencia o trabalho de todos os artistas plásticos aqui citados.
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Em termos de formato de apresentação, o diálogo é intenso com os frascos de umidade de Brígida, com o processo de captura - que é uma proposta de apreender o intervalo das coisas no mundo, a poesia das entrelinhas – e com o armazenamento (temporário ou permanente) dessas memórias fugidias. Em contrapartida, em termos poéticos, líricos, enxergo uma proximidade maior com a tensão que há no trabalho do Nuno, com todo o peso que existe entre os sofás e que se dá pela ausência. No caso do suor, esse peso lírico vem pela presença – do corpo que corre, do corpo que força, do corpo que ofega, do corpo que sua, com seus vapores, e do corpo que tem pressa na sua tarefa, afinal de contas se a coleta for muito lenta, fisiologicamente o corpo pára de suar. Não é um corpo que se coloca no eterno como no trabalho com a Neblina. Ele é posto justamente na experiência da sua própria efemeridade, e só ali ele existe. Ao pensar sobre Nuno e sobre Brígida, é bem possível que eu encontre mais linhas de interesse em comum e divagações, devaneios em potência a serem exercitados. Mas considero difícil pensar a medida da criação sem considerar o trabalho de Cildo Meireles – Missão/ Missões (Como Construir Catedrais)49 como um exemplo fundamental de concisão na conjugação entre forma e conteúdo. Entre animus e anima. Em geral, todos nomes citados aqui nesta monografia, exercitam muitíssimo bem tanto o devaneio da anima como o devaneio do animus – seja na literatura ou nas artes plásticas; mas a exatidão que mora na habilidade de conjugar o duplo e os seus duplos, esse é o ponto mais alto de qualquer devaneio poético.
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Seria muito difícil escolher um único trabalho de Cildo Meireles, mas Missões será minha referência pelo tipo de experiência estética a que me submeteu.
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Considerações Finais
Quando comecei a refletir acerca da questão da consistência, inicialmente, eu não tinha uma idéia muito clara de onde procurar as peças-chave que pudessem estruturar, sedimentar, ao menos para mim, um caminho mais consciente que me levasse até lá, Me perdi e me encontrei diversas vezes e acabei entendendo que assim como as obras de arte conversam com os artistas, um texto também conversa com seus autores ao longo da feitura. Em vários momentos me peguei buscando, assim como no conto O Imortal, de Jorge Luis Borges, a cidade dos imortais e seu rio secreto que purificava da morte os homens. Enquanto eu caminhava num deserto particular em meio a pensamentos, trogloditas e à procura de um rio caudaloso, demorei a cogitar a possibilidade de que esse tal rio secreto, de águas que nos livram da morte, fosse um filete de água escura e espessa que eu vi passar. Na busca pela consistência encontrei o devaneio, mergulhando no devaneio encontrei a poesia, dentro dessa poesia estava a linguagem e no coração da linguagem estava o ente do homem. E lá eu me vi. Difícil olhar pras coisas depois de olhar pra si mesmo intensamente. Como pela primeira vez. Enquanto não nos conectarmos ao ente das coisas, colocando todo nosso conhecimento e nós mesmos em risco, não atingiremos o desempenho máximo que todo ser humano detentor de uma competência pode alcançar. Talvez jamais alcancemos ou sequer nos lancemos verdadeiramente em busca de uma poesia do devaneio inato para compor um trabalho artístico. No interior do devaneio não existe borda, nem corrimão. Assim como no interior da Poesia. Assim como no interior da Arte. Assim como no interior de nós mesmos. Poesia e Devaneio são manifestações reais da nossa capacidade humana de abstrair o mundo, de viver o mundo ou de criar mais mundos. E se o pensamento humano é quase sempre gerenciado por duplos, faço desse par o duplo artístico a me guiar como orixá de frente. Soltaram os cachorros loucos... Abrace tua loucura antes que seja tarde demais. 59
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