Milagre-deborah-smith.pdf

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  • Words: 148,241
  • Pages: 343
Deborah Smith é uma das autoras americanas mais lidas em todo o mundo: a sua obra já vendeu mais de três milhões de exemplares. Nomeada para diversos prémios importantes, como o RITA Award da Romance Writers of America e o Best Contemporary Fiction da Romance Reviews Today, foi distinguida com o Prémio de Carreira atribuído pela Romantic Times Magazine. No catálogo da Porto Editora figuram os seus romances A Doçura da Chuva, Segredos do Passado e O Café do Amor, que obtiveram assinalável êxito junto dos leitores portugueses.

Milagre Deborah Smith Publicado em Portugal por Porto Editora Divisão Editorial Literária – Lisboa E-mail: [email protected] Título original: Miracle © Deborah Smith, 1991 Tradução: Elsa T. S. Vieira Design da capa: © Manuel Pessoa Imagens da capa: Oana Szekely/Corbis e Shutterstock 1.ª edição em papel: fevereiro de 2016 Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

ISBN 978-972-0-68660-2

Agradecimentos

O meu muito obrigada às seguintes pessoas, pela sua ajuda e apoio: Susan Hall Sheehan, produtora de segmentos da NBC; Claude Wegscheider da Alliance Française d’Atlanta, Inc.; Charles Andrews, coordenador de Pós-Graduações na Universidade de Emory; Ellen Taber, enfermeira, formada em Ciências de Enfermagem, enfermeira cirúrgica; Barbara Croft, médica; a minha prestável e generosa família da Califórnia, Myra e Don Araiza; Laura Taylor, Pat Potter e Carol Buckland; Andrea Cirillo e Gretchen van Nuys da Jane Rotrosen Literary Agency; Carolyn Nichols e Nita Taublib da Bantam Books; e Hank Smith, o meu marido extraordinário. Dedico este livro, com amor, aos meus pais, Jack e Dora Brown.

Prólogo

– Vocês matam-me de medo. A sério, aterrorizam-me – disse Amy Miracle, com o sotaque arrastado da Georgia a prolongar cada palavra. – São todos tão… normais. O público era composto por pessoas bem vestidas dos subúrbios. A maioria delas riu-se, como era suposto. Dentro das calças elegantes de seda cinzenta, compradas em segunda mão numa loja extravagante de Hollywood, os joelhos de Amy tremeram um pouco menos. As luzes fortes do palco pareciam-lhe demasiado quentes e tinha a nuca transpirada por baixo do cabelo. Vestira um casaco encarnado largo por cima da blusa branca porque não queria que ninguém visse o tecido colado debaixo dos braços, onde gotas de suor lhe escorriam pelos lados do corpo. Não estava a brincar quando falara em medo. Sentia-se como um morcego a voar numa gruta escura, a emitir vibrações nervosas pelo clube apinhado, de modo a tentar recolher informação suficiente para não voar contra uma parede. No entanto, já tinha aprendido a usar o medo a seu favor. – Ter medo de tudo é uma atitude inteligente – continuou. – Só as pessoas estúpidas é que pensam que não faz mal relaxar. – Para lá da beira do pequeno palco, algures entre as mesas cobertas de garrafas de vinho e aperitivos, um bêbado soltou uma risada sonora. Amy continuou sem qualquer pausa. – Aí está uma delas. Experiente nestas situações, esperou que os aplausos e risos começassem a dissipar-se. Céus, como ela sabia esperar! Demorara anos a chegar ali. Fingiu observar o pequeno coração tatuado no pulso e franziu a testa com ar pensativo. – Têm de compreender que tive uma infância diferente. Difícil. Para o meu pai, um centro de entretenimento doméstico era uma parede coberta de armas e um frigorífico cheio de cerveja. Mas não era má pessoa. Quando eu me esquecia de arrumar o quarto, dizia: «Não faz mal. Desta vez levas só um abanão.» Agora lançada no ritmo do seu número, olhou para o público com uma expressão ensaiada de desorientação. – Ser mulher também causa medo. Coisas como ir ao ginecologista. Eu transformo-me sempre na Olívia Palito assim que entro no consultório. – Fez a sua imitação de Olívia Palito, com as mãos no peito e um ar chocado, e lamentou-se em voz esganiçada: – Oh, meu Deus, ai, ai, ai! Se o Popeye não tivesse comido os espinafres, não estaria metida neste sarilho! Uma vez que a sua voz natural já era invulgar, adaptava-se na perfeição à personagem. Agora havia muitas pessoas a rir. Amy inclinou-se para o microfone como se ela e o público fossem companheiros numa conspiração. Uma conspiração contra todas as coisas feias, estúpidas e absurdas do mundo.

– As mulheres têm bons motivos para serem desconfiadas e para terem medo. Vejam como toda a gente nos mente. Por exemplo, nos anúncios de produtos de higiene íntima. Uma adolescente muito querida pergunta à mãe: «Mamã, não tens dias em que não te sentes… tão fresca como tu gostarias?» Quero a verdade! Quero ouvir essa miúda perguntar: «Mamã, nunca te sentes… como um peixe que está fora de água há demasiado tempo?» As mulheres no público soltaram gargalhadas estridentes. Os homens riram-se, rostos escondidos atrás das mãos, enquanto acenavam com cabeça. A parte da higiene íntima era sempre decisiva. Fazia com que o público passasse a fronteira entre a expectativa cautelosa e um nível de camaradagem afetuoso. A batalha estava meio ganha. O pior já passara. Amy ouviu os risos e suspirou de alívio. Todas as noites melhorava. Aquilo era uma tortura, mas ela adorava. Valia a pena, valia o esforço árduo de cada passo. – Bom – acrescentou, com uma pausa pensativa –, como eu costumo dizer, se não conseguirmos rir de nós próprios, o melhor é rirmos dos outros. Deu-lhes mais cinco minutos, sempre em crescendo, sem lhes dar descanso, a controlá-los, a liquidálos e a gozar aquela sensação de poder que só sentia em cima do palco. Quando a luz vermelha começou a piscar na parede do fundo do clube, indicando que o tempo dela terminara, deu-lhes mais um minuto e soube que aquela fora a sua melhor atuação de sempre. Saiu do palco minúsculo embalada pelos aplausos entusiásticos e pelos gritos do público, que pedia mais. Quase sem tocar no chão, entrou num estreito corredor com as paredes cobertas de fotografias de comediantes, alguns famosos, muitos que ela conhecia pessoalmente, alguns que considerava seus amigos. O próximo a subir ao palco, um jovem com cicatrizes de acne e um sorriso afetado, estava à espera no corredor. – Nada mau. Obrigado por os teres aquecido para mim. – Virou o fantoche que tinha na mão para o peito dela, com malícia. – Tu e o Wally, a Mão Maravilha, precisam de toda a ajuda possível. Não amarrotes a blusa, é um modelo original do Kmart da esquina. – Ah, deve ser tão bom ter muito dinheiro. – Sim, claro. Só espero que na próxima encarnação os multibancos não entrem em modo de autodestruição sempre que me virem. – Como se eu acreditasse nisso. Tu escreves para o Elliot Thornton. Amy fez uma careta mas não contestou. Havia vários outros comediantes encostados no corredor, à espera da sua vez de ganhar vinte e cinco dólares a entreter o público de terça-feira à noite. Olharam-na com um misto de desdém e admiração porque pensavam que Elliot a apoiava, mas principalmente porque, nos últimos tempos, ela dominava a sala. Amy desejou-lhes boa sorte com o polegar para cima e afastou-se. Nenhum deles sabia o que ela passara para chegar onde estava – àquele pequeno e vulgar clube de comédia suburbano, a cinquenta

quilómetros de Los Angeles. Não sabiam que ela estava a pôr em risco a sua frágil autoestima de cada vez que subia ao palco. Dirigiu-se ao bar e pediu um copo de Château de Savin Fumé Blanc. O gerente começara a servir esse vinho depois de ter provado uma garrafa que ela lhe oferecera: a marca era cara, mas valia a pena. Meio a brincar, perguntara a Amy se era enófila. Por acaso, sim, embora aquele vinho fosse também uma escolha sentimental. Encostou o copo frio à testa e lembrou-se. Mesmo passados tantos anos, era sempre tão fácil. Sebastien de Savin fora o único que sempre acreditara que ela era especial. Gostava de saber onde estaria agora, dez anos depois, e também que Sebastien soubesse – e quisesse saber – onde ela chegara.

Primeira Parte

Capítulo 1

Georgia, 1980 Encolheu-se debaixo do lençol só mais um minuto, agarrada à tranquilidade da manhã de julho, e pensou como seria bom que o pai não a tivesse arrancado da cama às duas da manhã para limpar o frigorífico. Já era difícil lidar com as loucuras dele durante o dia. Se pelo menos ela conseguisse fazer as coisas bem. Se não fizesse tantas asneiras. Se conseguisse agradar-lhe. Quando abriu os olhos sentiu um aperto no estômago. O cansaço e a sensação de medo eram companheiros familiares de longa data, apurados e refinados ao longo dos anos. Agora faziam simplesmente parte dela, como a necessidade de sonhar acordada e o medo de ser ridicularizada. O rádio ganhou vida na mesa de cabeceira de pinho barata. Com a pele húmida e peganhenta do calor matinal, afastou o lençol e abanou a barriga com a t-shirt que tinha vestido. – Toca a acordar, Georgia – ronronou o locutor da rádio. – Estão vinte e cinco graus aqui em Athens e vinte e seis em Atlanta. Preveem-se trinta e cinco. É tarde de mais para se baldarem. Está na hora de ir trabalhar. Podiam ter ido ao Lago Lanier hoje. Podiam ter dito ao patrão que estavam doentes, enchido a velha geleira e fugido para a beira de água. Mas nãããooo. Ainda ensonada, Amy sorriu. Gostava quando o locutor fazia a sua imitação de John Belushi. Ela própria conseguia imitá-lo bastante bem – e sabia de cor a maior parte dos números clássicos do Saturday Night Live. O pai dizia que o programa era uma porcaria, mas ela via-o desde a primeira vez que fora para o ar, cinco anos antes. O pai achava que todos os programas de televisão de que ela gostava eram lixo. Segundo ele, não havia qualquer tradição. O que o pai queria realmente dizer, pensou, era que já não havia lugar para ele: já não existiam programas de variedades onde velhos palhaços de circo tivessem cinco minutos para os seus números, ainda inspirados no vaudeville. Às vezes ela desejava que o programa de Ed Sullivan ainda estivesse no ar, pelo pai. Desejava qualquer coisa que o impedisse de fazer os seus discursos embriagados a meio da noite. Enquanto o locutor continuava a falar sobre assuntos da atualidade, levantou-se e abriu a janela. A relva aparada do quintal estava coberta de orvalho e banhada por uma luz turva. Ouviu um galo a cantar e o som distante dos camiões na autoestrada, a alguns quilómetros dali. Um raio de sol incidiu no galinheiro comprido e estreito no cimo da colina suave, atrás do quintal. Maisie, a sua madrasta, corpulenta e estoica, de cabelo grisalho, estava a subir o caminho para ir dar comida às galinhas. –… então quem é que matou o J. R.? – terminou o locutor, com uma risada. – O Ronald Reagan

assegura que foram os democratas. Se for eleito em novembro, o Ronnie promete transformar o rancho de South Fork num lar para velhas estrelas de cinema. O macaquinho Bonzo precisa de um quarto. Amy anotou mentalmente a piada. Resultaria melhor se ele tivesse trocado a ordem das frases, pensou, embora sem saber bem porquê. Era instinto, o mesmo instinto que a fazia arquivar todas as histórias engraçadas que ouvia. Prestava atenção a coisas em que mais ninguém reparava. Era uma cabeça no ar, dizia o pai. Amy olhou para o relógio e vestiu-se depressa. Uma das vantagens de ser magra e de estatura média era que as roupas lhe ficavam exatamente como deviam ficar. Não tinha de olhar para o espelho para saber que estava bem arranjada e normal, com os calções de ganga largos e uma t-shirt desportiva branca imaculada, com um bolso no peito no qual Maisie aplicara flores. Calçou peúgas pelo tornozelo e ténis tão limpos que reluziam. Deixava para o pai a excentricidade da família. O que ela queria, mais do que tudo, era ser normal. O mais normal possível. Tapou a tatuagem no pulso esquerdo com um punho elástico branco. Depois de pôr os óculos escuros pretos enfiou um par de luvas de trabalho no bolso de trás, prendeu o cabelo acobreado e curto dentro de um grande chapéu de palha, pegou na bolsa de pano e dirigiu-se à porta do quarto. Por um momento ficou ali parada, a olhar distraidamente para os galhardetes desbotados da equipa de futebol do liceu na parede de madeira falsa. Como de costume, tinha o coração acelerado. Depois respirou fundo e saiu do quarto. Farejou o ar e suspirou de alívio. Sentia-se o odor doce e pungente da marijuana. Assim sendo, estava tudo bem com o pai, ou, pelo menos, tudo calmo. Quando chegou à cozinha encontrou-o sentado à mesa, o corpo alto dobrado sobre uma tigela de cereais. Lavara-se e fizera a barba e estava apresentável, com umas bermudas velhas e uma t-shirt. O cabelo ruivo, já a ficar grisalho, ainda estava húmido do duche. Prendera-o num comprido rabo de cavalo. – Doem-te as costas? – perguntou ela, aproximando-se do frigorífico o mais naturalmente que conseguia. Ele grunhiu em assentimento. Amy abriu a porta do frigorífico branco. Lá dentro, o metal e o plástico reluziam, depois da limpeza que ela fizera a meio da noite. Ainda lhe doíam os dedos da força com que agarrara a esponja. O frigorífico não estava muito diferente antes da limpeza. Não precisava de uma limpeza. Por isso é que ela adiara essa tarefa alguns dias. Bem-vindos a mais um episódio no mundo louco do papá. O Saqueador da Meia-Noite era a alcunha que ela lhe dera, anos antes. As suas manias surgiam depois de escurecer, como as baratas. O primeiro assalto tivera lugar pouco depois de o pai se reformar do circo. Amy lembrava-se de ele lhe ter ordenado: «Toca a saltar da cama!» A luz do quarto estava acesa e ela semicerrara os olhos, a princípio confusa e depois assustada ao ver que ele tinha o revólver na mão caída ao lado do corpo. «O que se passa, papá?» O pai agitara a mão da arma em círculos embriagados.

«Levanta-te! Sua inútil de merda, levanta-te!» E assim, numa noite gelada de fevereiro, Amy tivera de andar para trás e para a frente entre a casa e o monte do lixo, vestida apenas com o pijama de ursinhos e um casaco, carregada com sacos cheios de cinzas e fuligem. O erro que provocara o pai nem sequer fora dela. Maisie esquecera-se de limpar a lareira nesse dia; o pai descobrira o deslize algumas horas depois de ela já estar a dormir. Maisie, com um pedido de desculpas estampado no rosto, e Amy, assustada e trémula, tinham tratado disso às três da manhã. No dia seguinte, Amy fizera um teste de Matemática no qual tivera negativa. Andava no terceiro ano, na turma da professora Whitehead, e já estava atrasada em relação aos colegas. A professora Whitehead nunca lhe perguntara se se passava alguma coisa em casa, mas, se tivesse perguntado, Amy não lhe teria contado a verdade, por vergonha. Embora não percebesse bem o que se passava, desconfiava que mais ninguém no terceiro ano tinha um pai como o dela. Num mundo de agricultores, vendedores de tratores e operários fabris, Zack Miracle era embaraçosamente único. A partir dessa noite de fevereiro, Amy passara a ter negativa em muitos testes. O fumo do charro do pai estava a deixá-la um pouco tonta. Tentou não respirar enquanto tirava a lancheira do frigorífico e o fechava. – Até logo, papá. Desculpa se te aborreci ontem à noite. Tenta descansar. Ele mastigou os cereais e olhou para ela com ar ensonado, mas sem maldade. Dormia o dia inteiro e passava a noite a pintar quadros a óleo sobre a vida no circo, que às vezes vendia em feiras de artesanato. Também cuidava da sua coleção de revólveres e espingardas. E bebia. Amy tinha dezoito anos e nunca o vira fazer outra coisa, além dos poucos trabalhos que o problema crónico nas costas lhe permitia. Fazia o seu número de palhaço em festas de aniversário para crianças, convenções de negócios, qualquer outro evento para onde conseguisse ser contratado. Muitas vezes, obrigava-a a ir também, como sua assistente. Era como ser obrigada a arrancar espinhos da pata de um urso. Nunca sabia se o urso ficaria grato ou se lhe arrancaria a cabeça à dentada. O pai olhou para ela, com o charro entre os dedos manchados de tinta, e pestanejou. – Da próxima vez que tiver de te lembrar da limpeza do frigorífico, despejo tudo o que estiver lá dentro em cima da tua cama. Entendido? – Entendido. – Recuou em direção à porta. – Tem um bom dia, papá querido. Prometo que nunca mais me vou portar mal. Ele ignorou a provocação bem-humorada com um olhar azedo. – Vais sair com o Charley logo à noite, espertalhona? – Sim, senhor. – Ah! É melhor casares com ele. Os teus dias de viver à minha conta estão a chegar ao fim. Amy sentiu o estômago às voltas. Ele estava a falar a sério. Mesmo. Sempre a avisara de que, assim que fizesse dezoito anos, lhe daria um ano para se fazer à vida. Ela completara os dezoito anos em abril e a escola acabara em junho. Se tivesse sorte, arranjaria em breve um trabalho em Athens, talvez como empregada de mesa ou vendedora numa loja. Não havia muito por onde escolher, com o estado da

economia, e os estudantes universitários ficavam com a maioria dos empregos de jeito. Mas, além de casar com Charley, não lhe ocorriam outras opções. – Sabes qual é o teu problema, papá? – Sorriu com atrevimento, mas sentia as mãos a tremer por trás da bolsa e da lancheira. Provocá-lo não era inteligente, e não era essa a sua intenção. – Não tens fé em mim. – Ganha o teu sustento. Depois logo falamos em fé. – O Charley crê que… – Esse tipo é um fanático religioso. Teria fé em merda de cavalo desde que fosse abençoada por Jesus. – O pai levou a mão à testa e franziu o sobrolho. – Vai-te embora. Não aguento essa tua vozinha irritante logo de manhã. – Também gosto muito de ti, papá. – Bateu com a porta e desceu os degraus de cimento. Enfiou o chapéu de palha na pequena mala da sua velha motorizada e, segundos depois, voava pelo caminho de gravilha, entre carvalhos e loureiros. Quando chegou à estrada de duas faixas, com o asfalto descorado pelo sol, virou o rosto para o vento e deixou-o secar-lhe as lágrimas. À sua volta, sob o sol matinal, passaram pastos verdes e pequenas quintas. Pinheiros altos e esguios ladeavam a estrada. Presos aos pinheiros, aqui e ali, havia placas com versículos da Bíblia, cartazes de «Vende-se Galinheiro» e avisos que diziam «Jesus Salva». Por aqueles lados, a esperança baseava-se em Jesus e nas galinhas. Ela e o pai não se enquadravam muito bem. Só viviam ali porque Maisie herdara dois hectares de terra e um galinheiro. Virou para uma estrada secundária que conduzia a uma grandiosa entrada de tijolo, a partir da qual começava um caminho alcatroado. O tapete de relva cor de esmeralda, magnífico, fazia com que parecesse a entrada de uma casa elegante em Atlanta. Num dos lados do muro de tijolo havia um letreiro escrito com caligrafia trabalhada. Herdade Maison de Savin. Bem-vindo. Hectares e hectares de vinhas estendiam-se sob o sol, as latadas cobertas de folhas verdejantes. Ao fundo de cada carreiro havia roseiras, e a relva entre as videiras estava salpicada por pequenas flores silvestres amarelas. Ali, no solo da Georgia, cultivavam-se uma dúzia de variedades de uvas, tal e qual como em França, de acordo com o administrador da casa vinícola. A Casa de Savin adquirira os terrenos alguns anos antes. Na altura, toda a gente ficara muito curiosa por uma empresa francesa estar a comprar propriedades no meio das colinas da Georgia, até que um seu representante explicara que o solo e o clima eram perfeitos para cultivar uvas. Os pregadores locais tinham ficado algo incomodados com a ideia de ter um estabelecimento vinícola na área, mas, depois de concluídos os trabalhos, toda a gente ficara mais deslumbrada do que qualquer outra coisa. Numa colina, no centro dos campos, erguia-se um magnífico château de pedra rosa e cinzenta, com torreões, um telhado de duas águas e janelas ornamentadas. Por trás, havia um edifício baixo, de cimento, onde era feito o vinho. O château era só para as aparências. De momento era também onde vivia o administrador, o senhor Beaucaire. Um dia, talvez fosse transformado num restaurante e loja de vinhos. Amy admirou o cenário de contos de fadas com a reverência de uma camponesa.

Depois de estacionar a motorizada nas traseiras do lagar, colocou o chapéu na cabeça e entrou para o escritório por uma porta estreita. Os outros trabalhadores da apanha da uva já lá estavam, cerca de duas dúzias de pessoas, negros e brancos, jovens e velhos, todo o tipo de gente, desde estudantes universitários e liceais de rosto fresco a habitantes locais enrugados e curtidos, com as mãos retorcidas de tantos anos a trabalhar nos campos. Amy estava empolgada por participar na primeira colheita da empresa; gostava de poder dizer às pessoas que estava a trabalhar num château francês. Além disso, o trabalho da apanha da uva, embora fosse de curta duração, era bem pago. Começara na semana anterior e acabaria no princípio de setembro. À sua volta, as pessoas calçavam luvas e punham os chapéus, em preparação para oito horas de trabalho ao calor. Tal como a maioria dos trabalhadores mais novos, Amy tirou um frasco da bolsa e espalhou protetor solar nos braços e pernas, onde a pele clara exibia algumas sardas e um bronzeado cada vez mais intenso. O turno começava às seis e meia e acabava às duas e meia, altura em que o sol se tornava quase insuportável. Tímida no meio de tanta gente, Amy apressou-se a guardar o almoço. No frigorífico havia caixas de presunto cozido com nabiças ao lado de iogurtes. A sua lancheira continha chocolates, maçãs e bolachas de água e sal, alimentos que não exigiam que passasse muito tempo na cozinha, onde, à noite, o pai costumava instalar-se, a beber e a queixar-se da vida. Continha também um exemplar muito manuseado de O Hobbit. Ela gostava de aventura e fantasia. Amy prendeu uma garrafa de água de plástico ao cinto. Enquanto arrumava as suas coisas num armário encostado à parede, sorriu a todas as pessoas que olhavam para ela mas evitou conversas. Passara a vida inteira a tentar ser invisível; era mais seguro. – Allons-y! Vamos! – O senhor Beaucaire lançou-lhes um olhar enfadado e condescendente, agitando o braço na direção da porta. Era um homem de meia-idade, de cabelo branco como a neve, com uma presença autoritária apesar das calças de trabalho castanhas e da camisa safari. Não perdia tempo com conversas e era raro falar diretamente com um dos trabalhadores temporários. Quando ele estava por perto, Amy era tão silenciosa e obediente como uma ferramenta de jardinagem que pode ser substituída sem hesitação. Acompanhou o grupo e tentou apreciar a manhã agradável e límpida o melhor que conseguia, tendo em conta a forma como o dia começara. Estava habituada a sentir-se cansada e um bocadinho deprimida; passara a maior parte da vida isolada das outras pessoas por barreiras de vergonha invisíveis. Há alguns anos, o pai fora apanhado a conduzir alcoolizado. O charro no cinzeiro do Buick não ajudara nada, e passara alguns meses na cadeia local. Os mexericos na escola tinham-na feito sentir-se ainda mais sozinha. Às vezes tinha pesadelos em que alguém descobria as plantas de cânhamo que o pai escondia dentro de casa. Ter amigos era impossível, porque os amigos faziam demasiadas perguntas e estranhariam que ela nunca os convidasse a ir lá a casa. Só Charley Culpepper não tinha problemas em aceitar as suas desculpas; às vezes, Amy pensava que talvez fosse por isso que ele lhe parecia tão atraente.

Entrou nas vinhas com os restantes trabalhadores. Um dos ajudantes do administrador conduziu um trator até ao fundo dos carreiros. Num atrelado comprido, atrás do trator, havia várias caixas de madeira enormes, mais altas do que Amy. Da ponta do atrelado, outro ajudante distribuiu grandes baldes brancos e tesouras afiadas entre os trabalhadores. Amy pegou no seu balde e na sua tesoura e caminhou ao longo do carreiro, à procura de um bom sítio para começar, como se não fossem todos iguais. Estava distraída, pois os seus pensamentos estavam ocupados com a recriação das suas fantasias, e não com a decisão de qual a videira a atacar primeiro. Decidiu começar onde tinha parado na véspera. Pousou o balde e deitou mãos ao trabalho, vagamente atenta às conversas dos outros enquanto as mãos se moviam com cuidado entre as videiras carregadas de cachos de uvas roxas-esverdeadas. E começou a fantasiar. A bela escrava de cabelos acobreados está a trabalhar nas vinhas de um nobre romano. Ele aparece, repara nela e apaixona-se ao primeiro olhar. Obviamente, a jovem é tão corajosa como bela. Tenta falar com ela. A escrava não responde. O nobre fica fascinado. Por fim, leva-a dali e concede-lhe a liberdade. Depois fazem amor. Amy sorriu. Podia passar o resto do dia a criar os diálogos para aquele cenário sem qualquer dificuldade. Um corte aqui, um corte ali. Tinham passado duas horas. A escrava era excelente no seu trabalho. Cortava as folhas e raminhos agarrados a cada cacho de uvas suculentas e depositava os cachos maduros no balde com movimentos graciosos. Quando o balde ficou cheio, levou-o até ao atrelado, sem dar qualquer indicação de que estava terrivelmente pesado, e despejou o conteúdo numa das grandes caixas de madeira. Depois voltou para o carreiro e recomeçou, ajoelhada ao lado das videiras, com porte altivo. Qualquer pessoa de bom senso perceberia que ela era extraordinária e que não merecia ser uma escrava. Estava tão absorta que só passados vários minutos se apercebeu de que alguns trabalhadores se tinham aproximado e estavam a falar em sussurros audíveis. – Onde é que o Beaucaire encontrou aquele tipo? – Parece que passou os três últimos dias bêbado. – Aposto que é um daqueles cubanos de Gainesville. Só falta o senhor Beaucaire trazer um bando daqueles pobres miseráveis que trabalham por um dólar à hora. Ainda ficamos sem trabalho. – Não, este não é cubano. Os cubanos são baixos e morenos. Este é moreno, mas não tem menos de um metro e noventa. – Olha para ele! Quase nem se consegue ter de pé! Aposto que não tarda nada cai para cima das uvas! Aí é que o Beaucaire lhe mostra com quantos paus se faz uma canoa. Fascinada com as descrições, Amy ergueu a cabeça. Os outros estavam a olhar para alguém mais ao fundo do carreiro. Esticou o pescoço para o ver. Nos anos que se seguiram, Amy nunca esqueceria aquele momento. Voltaria a vivê-lo, como um filme na sua mente, com as cores e sons extraordinariamente nítidos, um impacto dramático avassalador. Ele

estava talvez a trinta metros, delineado por uma solidão quase palpável, imóvel, a estudar um cacho de uvas esmagado no punho grande. Era alto, com uma força elegante. Amy não conseguia parar de olhar. O mistério à volta dele despertava-lhe a imaginação. O sumo das uvas escorria-lhe pelo braço. Havia fúria e cansaço na tensão dos ombros e fragmentos de violência na forma como apertava os bagos esmagados. O sumo escorreu-lhe para cima dos pés descalços e sujos. A t-shirt branca estava manchada de suor à frente e debaixo dos braços; as calças largas e amarrotadas eram de um verde feio, sujas de terra nos joelhos. Estavam descaídas sobre as ancas, como se estivessem prestes a cair. A única coisa que as impedia de deslizar era um cordão atado num nó descuidado. Não tinha chapéu e o cabelo negro e espesso era revolto. A barba por fazer ensombrava-lhe as faces. Tinha os olhos escondidos atrás de óculos de sol pretos normais, mas o rosto, com um perfil forte e ostensivamente masculino, era tudo menos vulgar. O homem atirou as uvas para o chão e cambaleou um pouco. Depois, manejando uma tesoura afiada tão depressa que Amy susteve a respiração, assustada, cortou um cacho de uvas mais pequeno e enfiou-o na boca. Arrancou as uvas com os dentes e atirou o caule vazio por cima do ombro. – Um bêbado atrevido, não é? – murmurou alguém. Amy continuou a fitá-lo, de boca aberta. Os outros riram-se. A qualquer momento, Beaucaire apareceria no carreiro entre as latadas, furioso, e faria uma cena. Seria um divertimento espetacular. O que faria o recém-chegado a seguir? Para um homem tão sujo e, aparentemente, tão embriagado, ostentava uma aura de arrogância graciosa. Mas depois ele aproximou-se do poste que segurava uma das latadas e apoiou-se pesadamente nele, com a cabeça encostada ao braço. Já não parecia imponente. A fadiga parecia pesar em todos os músculos do seu corpo. Amy cerrou os punhos, com a simpatia de um inadaptado por outro, mas ao mesmo tempo com vontade de lhe ralhar por estar a fazer aquelas figuras tristes. Não se atreveu. Ele parecia perigoso – as mãos sujas eram grandes e fortes; os antebraços, secos e musculados. Usava a solidão como um escudo. Cambaleou e olhou fixamente para o chão, como se estivesse à procura de um sítio onde cair. – Lá vai ele – disse um homem perto de Amy, em tom divertido. – Vai cair de cara. Porém, passado um momento, o homem largou a tesoura dentro de um balde e afastou-se do poste. Com passo inseguro, dirigiu-se a uma caixa de madeira no fim do carreiro e desapareceu atrás dela. Amy susteve a respiração, à espera que ele reaparecesse, mas tal não aconteceu. – Alguém que vá chamar o senhor Beaucaire – propôs um dos trabalhadores. – O tipo está atrás da caixa a dormir, a vomitar ou a mijar numa roseira. Amy virou-se para os outros. – Não! Eu vou ver o que ele está a fazer. Não digam nada ao senhor Beaucaire. Estou a falar a sério! Todos olharam para ela. Era a primeira vez que a ouviam proferir frases completas. A própria Amy estava chocada com a sua reação.

– Eu… hã… acho que ele… deve estar maldisposto. – Ora, ora, louvado seja o Senhor. Até que enfim ouvimos a Olívia Palito soltar mais do que um guinchinho. Todos se riram. Amy não sabia onde se enfiar. A sua voz envergonhava-a sempre, quando se esquecia de a controlar. As pessoas riam-se nas suas costas; ao longo dos anos de escola fora alvo da troça dos colegas. Cerrou os lábios com força e rangeu os dentes como se conseguisse esmagar o que a fazia ter aquela voz. Morria de medo de arranjar um emprego onde tivesse de falar. Passava horas em claro a pensar nisso. Agora, contudo, afastou o embaraço e dirigiu-se à caixa com passo rápido e o coração aos saltos. Atrás dela, uma mulher gritou: – Deixa esse desgraçado em paz! Vamos chamar o senhor Beaucaire! Amy continuou a andar. Talvez por solidariedade com todos os inúteis deste mundo, ou talvez por ser especialista em bêbados desagradáveis, sentia que havia um bom motivo por trás dos problemas daquele homem. A incerteza apertou-lhe o estômago. Abrandou ao chegar junto da caixa e parou à escuta. Ouviu apenas o som das folhas das videiras agitadas pelo vento quente. Em bicos de pés sobre a relva seca, contornou a caixa enorme e espreitou. Ele estava deitado de costas. Despira a t-shirt e colocara-a debaixo da cabeça, à laia de almofada. O peito peludo subia e descia, lenta e ritmadamente. Tinha as mãos ao lado da cabeça, com as palmas viradas para cima, sujas de sumo de uva mas ainda assim graciosas. Amy avançou em silêncio, fascinada. Ele estava a dormir, mas não havia nada de vulnerável ou relaxado no seu rosto. A boca continuava fechada e tensa. Por cima dos óculos de sol, a testa estava franzida. De perto, parecia mais jovem, talvez não mais de trinta anos. Deslocou o peso de um pé para o outro e olhou consternada para a figura adormecida. Talvez fosse melhor deixá-lo enfrentar o seu destino. Inclinou-se e inspirou fundo. O cheiro do suor dele misturou-se com o aroma doce das uvas, o cheiro da terra vermelha e um leve odor antissético que a surpreendeu. Conhecia bem os cheiros a álcool e a marijuana, e nenhum deles estava presente. Mais tranquila, ajoelhou-se ao lado dele. Tirou os óculos de sol e guardou-os no bolso da camisola. Com a mão a tremer, tocou-lhe no ombro. – Ei… Ei, acorde. O homem despertou com um sobressalto, levantou a cabeça e ficou parado a olhar para ela. Amy afastou a mão. Os seus olhos estavam escondidos pelas lentes escuras, mas sentiu-se como se ele a estivesse a estudar furiosamente. Atrapalhada, tentou soltar a garrafa de água do cinto. Não podia fazer mais nada senão seguir em frente e rezar para que ele não gritasse com ela. – Tem de se levantar – avisou, em tom urgente, oferecendo-lhe a garrafa. – Vai ser despedido se ficar aqui. Já foram chamar o senhor Beaucaire. Vá, beba um gole de água. Vai sentir-se melhor. Levante-se. Ao ver que ele não respondia nem se mexia, o nervosismo deu lugar à irritação.

– Não seja idiota! Tem ar de quem precisa deste trabalho! Beba um bocadinho de água! Hã… Habla usted ingles? Si? No? Vá lá, não sei dizer mais nada em espanhol. Fale! – Preferia ouvir-te dizer qualquer coisa. Parece que consegues falar o suficiente por nós os dois, e gosto da tua voz. Como que hipnotizada, Amy olhou para ele. O seu inglês era excelente, mas falava com sotaque. Contudo, não era espanhol, mas sim uma outra pronúncia que ela não conseguia identificar. Aquela voz invadiu-lhe os sentidos – profunda, quente, bela. Estava um pouco rouco por causa do cansaço mas o efeito era inesquecível. – Tome – guinchou, aproximando a garrafa da boca dele. – Vai sentir-se melhor depois de beber. Ele pousou de novo a cabeça na t-shirt dobrada, com a exaustão estampada nas linhas do rosto. – Não, obrigado. – Levantou a mão e afastou a garrafa. – Só preciso de descansar. Amy não sabia porquê, mas estava desesperada para o ajudar a não se meter em sarilhos. Ele devia estar demasiado cansado e doente para conseguir pensar. – Vai ser despedido! – Não, garanto-te… – Beba um gole. – Amy enfiou-lhe a ponta do tubo de plástico da garrafa entre os lábios e apertou com força. O homem tentou engolir o jato de água e quase sufocou. Empurrou a garrafa e sentou-se, engasgado. Uma torrente melódica de palavras numa língua estrangeira brotou-lhe dos lábios e Amy não precisava de compreender para saber que ele ficara aborrecido. Apertou a garrafa de água contra o peito. Quando acabou de falar, ele tirou os óculos de sol e fitou-a com ar severo. Amy estava assustada mas demasiado deslumbrada para conseguir fazer outra coisa a não ser olhar para ele. Ninguém diria que era um homem bonito; na verdade, tinha o nariz torto, as maçãs do rosto proeminentes e a boca quase demasiado masculina. Era uma expressão dura, à la Bogart, e o efeito era intensificado por uma fina cicatriz branca que começava dois centímetros abaixo do lábio inferior e desaparecia debaixo do queixo. No entanto, tudo isso o tornava atraente, de uma forma como Amy nunca vira. E os olhos, grandes e escuros no rosto duro, pareciam ter sido herdados de uma ascendência diferente, mais elegante. – Você não… não é um dos trabalhadores habituais – balbuciou, confusa. – Não. – Está doente, ou coisa do género? – Coisa do género – respondeu ele, com ar pensativo. – Estou cansado… apenas cansado. Já passa. – Oh… está bem. Desculpe tê-lo incomodado. – Começou a levantar-se mas ele segurou-lhe no braço. – Não vás. Não queria correr contigo. Vá, dá-me lá a água. Talvez tenhas razão e ajude. Enquanto ela o fitava, espantada, ele bebeu lentamente. Amy teve um momento embaraçoso em que não conseguia desviar os olhos do movimento fluido dos músculos do pescoço e do peito dele. Por fim, o desconhecido baixou a garrafa e inspecionou-a melhor. Tinha a pele em torno dos lábios tensa e pálida. Pestanejou, com ar ensonado, e devolveu a garrafa.

– Fizeste-me sentir bastante melhor. Merci. – Os lábios curvaram-se num sorriso de esguelha que eliminou toda a severidade da sua expressão. Amy susteve a respiração e a timidez regressou como um manto sufocante. Merci. Ele era francês. Maurice Chevalier. A Torre Eiffel. Paris. Beijos de língua. – Não desmaie, está bem? Adeus. – E levantou-se de um salto. – Um momento, bela salvadora. Comportas-te sempre assim? – Assim c-como? – Partir sem aceitar a gratidão do teu… – Mon dieu! – O senhor Beaucaire contornou a caixa de madeira e parou com as mãos nas ancas. Lançou um olhar fulminante a Amy, que se sentiu mirrar. – Não a contratei para namorar, contratei-a para apanhar uvas. – L-lamento. Estava só a… – É uma inútil! Aproveita-se de um bom salário e faz-me perder o meu tempo. – Olhou dela para o homem e de novo para ela. – A minha vinha não é lugar para vida social. Não admito que não esteja a trabalhar. Quer perder o emprego? Amy soltou uma exclamação aflita. – Ele estava a sentir-se mal, mas já está melhor. E só vim dar-lhe um pouco de água! – Eu também já fui novo, sabe? Sei muito bem como as raparigas arranjam desculpas… – Pio, non – afirmou o homem sentado no chão em tom autoritário. – Chega. Amy estava desesperada. – Por favor não nos despeça. – Não vos despeço? – perguntou o senhor Beaucaire. – Quem é que acha que se portou mal? – Apontou para o desconhecido. – Ele? – Não! – Amy apontou para o homem que estava agora a tentar pôr-se de pé, impaciente. – Olhe para ele. Ele… ele mete dó! E é francês, como o senhor. Dê-lhe um desconto. Eu estava só a tentar ajudar. – A tentar arranjar problemas, mais precisamente. A tentar cair nas boas graças de… – Pio, arrêt. – A voz do homem mais novo impôs-se. Depois de se endireitar, era muito mais alto do que ela e do que o senhor Beaucaire, que o fitou com alguma surpresa. Seguiu-se uma longa conversa em francês. O tom de voz do senhor Beaucaire tornou-se submisso e corou. Olhou para ela de lado, atrapalhado. Amy começou a compreender a verdade chocante e as suas pernas perderam a força. – As minhas desculpas, mademoiselle – disse finalmente o senhor Beaucaire, em tom frio e seco. – Não compreendi bem a situação. O doutor de Savin já me explicou tudo. Naturalmente que não terá qualquer problema. O doutor de Savin? Amy perdeu toda a coragem gerada pela adrenalina e fitou o chão. – Obrigada. – E afastou-se apressadamente, sem olhar para trás. Voltou para o seu lugar entre as videiras e trabalhou arduamente, vermelha como um tomate. Doutor

de Savin. Da casa vinícola de Savin. Era tão novo! Mas era também o dono de tudo aquilo: ela importunara-o, quase o afogara com a água e depois dissera que ele metia dó. Recusou-se a levantar os olhos e a responder às perguntas dos outros trabalhadores. Só os últimos fragmentos de orgulho a impediam de se ir embora e não voltar mais. O senhor Beaucaire passeou pelas videiras e Amy mirou-o pelo canto do olho. O administrador caminhava de costas muito direitas, com passo digno e furioso. Alarmada, percebeu que o tinha metido a ele em sarilhos. O doutor de Savin defendera-a – e nunca ninguém o fizera antes. Minutos depois, o doutor de Savin apareceu do lado do carreiro onde ela estava. Sem dizer uma palavra, baixou-se, pegou no balde de uvas dela e dirigiu-se ao atrelado onde estavam os caixotes. Amy seguiu-o com o olhar, boquiaberta. Quando ele voltou, pousou o balde vazio e continuou a andar, dirigindo-lhe apenas um aceno. Atónita, Amy viu-o dirigir-se ao fim da vinha e pegar na camisola que colocara num poste da latada. Quando se virou, viu que ela o olhava. Com ar perfeitamente sincero, fez uma vénia. Ia-se embora. Uma adoração profunda cresceu no peito de Amy. Perguntou a si própria se o voltaria a ver e combateu a vontade de chorar. Acontecera-lhe finalmente algo maravilhoso. Levantou a mão, numa saudação silenciosa ao nobre que acabara de causar uma impressão inesquecível na escrava que trabalhava nas suas vinhas.

Capítulo 2

Quando Sebastien Duvauchelle Yves de Savin fez uma vénia à rapariga, estava a troçar da sua própria galantaria. Ela, porém, respondeu com toda a sinceridade, erguendo a mão numa saudação lenta e dramática, com a palma virada para ele. Ficou surpreendido ao sentir-se arrepiado. O gesto dela não era falso; era como se estivesse a jurar-lhe lealdade eterna. O rosto que espreitava por baixo das abas largas do chapéu e por detrás dos óculos escuros tinha um queixo pequeno e faces arredondadas, a emoldurar uma boca larga e solene que parecia capaz de chegar de uma orelha à outra, se ela alguma vez sorrisse. No momento, não mostrava qualquer intenção de o fazer. As pernas dela, que saíam de forma cómica de grandes calções de ganga, eram bem torneadas, embora um pouco magras. Apesar disso, era fácil ver que, com mais alguns anos e algumas refeições substanciais, essas pernas se transformariam num maravilhoso trunfo. O mesmo podia dizer-se do corpo esguio. Era evidente que não era nenhuma criança, mas também ainda não era uma mulher feita. Sebastien não encorajou a sua atenção, mas, ao virar-se para deixar a vinha, não conseguia parar de pensar nela. Hesitou, pegou outra vez na tesoura e trabalhou mais um minuto. Estava desorientado pela falta de sono, que lhe toldava o habitual distanciamento. Entreteve-se a recordar como a rapariga viera em seu socorro e lhe dera ordens naquela vozinha cómica e aguda. Quando quase cortou os dedos com a tesoura afiada, percebeu que estava na altura de parar com aqueles disparates. Tal como a maioria dos cirurgiões, protegia as mãos a qualquer custo e tinha uma certa vaidade nelas. As suas eram mãos de trabalhador, grandes e largas, como as da família do lado da mãe, mãos boas para puxar a rede do peixe ou conduzir um arado, não para efetuar manobras delicadas dentro de um coração humano. Só graças a uma forte determinação conseguira ensinar aquelas mãos a moverem-se de forma graciosa, a serem fluidas como as de uma bailarina. Deixou a vinha com uma distinta sensação de pesar e sentiu os olhos da rapariga seguirem-no enquanto se afastava. Não esperara um ralhete por parte de uma jovem vestida de forma tão recatada e com uma voz tão divertida. E de certeza que não esperara ouvir Pio Beaucaire a repreendê-la de modo tão violento. Sebastien sabia que o pai dera instruções a Pio para manter as mulheres locais o mais longe possível dele. E, embora o administrador soubesse que não tinha qualquer controlo sobre a vida de Sebastien, isso não o impedia de tentar seguir as suas ordens à risca. Sebastien abanou a cabeça. Como é que o pai podia ter ainda alguma esperança de que o filho teimoso e arrogante deitasse pela janela onze anos de formação

médica para voltar para casa e cumprir as obrigações familiares? Se tivesse feito a vontade ao pai, Sebastien não teria estado na vinha para interceder por uma rapariga tímida, que o sensibilizara com a sua bondade num dia em que o mundo, aos seus olhos, parecia especialmente feio. Não estaria a trabalhar numa vinha americana que não passava de uma experiência insignificante no meio dos muitos empreendimentos da família. Mais do que isso, talvez, a vinha era a desculpa do pai para que Pio, que trabalhava para os de Savin desde sempre, estivesse na América a vigiar Sebastien. O trabalho de Pio estava, contudo, prestes a chegar ao fim; faltavam-lhe apenas duas semanas para terminar a formação em Cirurgia Cardíaca na Universidade Gregory, em Atlanta. Afinal de contas, o legado da sua família era uma herança de nobreza e prestígio tão antiga quanto a própria França; de serviços prestados a reis e imperadores; de fortunas reconstruídas nos anos após a Revolução; de pedigrees sociais, poder político e de um elitismo sólido. Se tivesse feito aquilo para que fora educado, Sebastien estaria agora, aos vinte e nove anos de idade, a trabalhar em Paris para Philippe de Savin, o pai, preparando-se para assumir o controlo de um conglomerado que possuía ou controlava interesses em transportes, vinhas, têxteis e uma dúzia de outros negócios. A sua irmã mais nova, Annette, que adorava as intrigas empresariais e tinha jeito para lidar com pessoas, era a sucessora natural do trono empresarial do pai. Não fosse o azar de ter nascido mulher, o pai talvez a tivesse recebido de braços abertos no negócio, em vez de minimizar a sua óbvia dedicação. Annette era seis anos mais nova do que Sebastien, acabara de se formar numa prestigiada grand école, e estava ansiosa por conquistar o respeito do pai. Nunca compreendera por que motivo Sebastien tinha tão pouco interesse em tudo aquilo. Ao longo dos anos, a situação familiar tornara-se ainda mais tensa devido ao facto de o irmão mais novo de Sebastien, Jacques, de vinte anos, um rapaz adorável mas totalmente irresponsável, ter poucas intenções de fazer qualquer coisa que exigisse trabalho. Como estudante de Artes na Sorbonne era um fracasso e não tinha grande sucesso como playboy nos círculos elegantes da Rive Gauche, onde se movimentavam os filhos dos ricos. Sebastien nunca fora – nem mesmo em adolescente – tão despreocupado como o irmão era agora. Com a extraordinária idade de quinze anos fizera o exame final do Ensino Secundário e entrara na grand école, certo de que queria ser médico, curar pessoas, vingar-se da morte. E, uma vez que o pai fora o culpado do que acontecera, Sebastien estava a vingar-se também dele. Aos vinte e nove anos de idade, era um homem sério e sofisticado e, embora fosse vários anos mais novo do que outros médicos com o mesmo nível de formação, conquistava já uma reputação de maturidade, brilhantismo e exigência. Tais qualidades despertavam nos seus colegas americanos respeito e antipatia em igual medida. Sebastien achava divertido que alguns lhe chamassem «Jovem Doutor Frankenstein» nas suas costas, e que outros, por causa da cicatriz que tinha no queixo, dos fatos formais e da decoração art déco da sua casa na cidade, dissessem que ele era, no coração, um gangster. Não precisava da amizade de ninguém, desde que tivesse o seu respeito, e uma vez que dedicava praticamente todas as horas em que não estava a dormir ao trabalho no hospital, não tinha tempo para

mais do que alguns conhecimentos a nível social. De vez em quando aceitava convites mais íntimos feitos pelas enfermeiras e médicas do hospital, e cumpria esses compromissos com charme e grande perícia, mas sem o mínimo indício de querer uma ligação permanente. As mulheres que aceitavam a sua dedicação absoluta ao trabalho contentavam-se com a sua generosidade na cama e em outros aspetos, incluindo a utilização dos seus vários carros, do veleiro e das casas em St. Simon Island e em Buckhead, a zona residencial mais exclusiva de Atlanta. As mulheres que queriam mais do que isso eram afastadas com delicada presteza. Na manhã em que conduziu o Cord branco de 1936 até à plantação de Savin, no norte de Atlanta, vinha de três dias seguidos no hospital, sem dormir. Um merceeiro de meia-idade, chamado Alphonso Jones, sofrera um embolismo durante uma angioplastia e tivera de ser levado de urgência para a sala de operações, para fazer um bypass. O bypass correra na perfeição mas, duas horas depois, com a ausência de explicações que acompanhava muitas vezes este género de situação, outro coágulo libertara-se e dirigira-se ao cérebro de Jones, causando um AVC fulminante. Jones, um robusto pai de cinco filhos e avô de sete netos, permanecia agarrado à vida com o auxílio de máquinas. Nas longas horas da segunda noite, Sebastien conhecera a mulher de Jones, uma mulher franzina e séria, com cabelo crispado a ficar grisalho e uma atitude muito prática. – Nenhum dos outros malditos médicos me diz nada – protestara. – E quero saber a verdade: se o meu marido sobreviver, vai ficar inválido? Sebastien estudou-a por um instante, enquanto pesava as consequências de responder a uma pergunta que devia ser dirigida ao cardiologista do paciente. Contudo, se a senhora Jones queria a verdade sem embelezamentos, estava a falar com o homem certo. – Talvez. Teremos de esperar uns dias para ver como corre a recuperação. E pode demorar até seis semanas para determinar quaisquer problemas a longo prazo. Ela começou a chorar. – Ele terá de pedir a reforma antecipada, passar o dia sentado em frente da televisão, nunca mais jogar basebol com os netos? Esse tipo de coisa? – Nesta altura, não posso fazer qualquer previsão. Pode recuperar muito melhor do que julgamos. Uma coisa de cada vez. Neste momento, temos de conseguir tirá-lo do ventilador. – Do quê? – Da máquina que o está a ajudar a respirar. Ela pegou no braço de Sebastien e fitou-o com ar desesperado. – Quero que ele morra. Quero que diga aos outros para desligarem as malditas máquinas. – Sabe que não podemos fazer isso. – O que é melhor? Passar o resto da vida como um inválido ou morrer como um homem? – Não vou discutir isso consigo. A questão não é essa. – Cobarde! Claro que a questão é essa! Mas você é um mentiroso e não consegue admiti-lo.

Sebastien fitou-a com gravidade. A forma como o marido dela viveria não era problema seu. A sua única preocupação era que Jones vivesse. – Uma coisa de cada vez – repetiu. – Até ele conseguir respirar sem ajuda, continuará no ventilador. A senhora Jones ainda chorava, mas soltou uma exclamação desdenhosa. – Para si o meu marido nem sequer é uma pessoa. Não passa de uma coisa para arranjar, como um carro velho. Mesmo que já só consiga fazer meia dúzia de quilómetros, querem que ele trabalhe até ao fim. Virou costas e dirigiu-se à sala de espera. Sebastien fez uma careta. Não gostava de lidar com as famílias dos pacientes. Os sentimentos complicavam a lógica da medicina, o estudo racional e impessoal das doenças e lesões. Ele tinha preocupações mais importantes do que o desgosto das pessoas. A mágoa era uma emoção inútil. Porém, a morte do merceeiro afetara-o. Magoara-o como se fosse um insulto pessoal. Os pulmões do homem simplesmente recusavam-se a trabalhar sozinhos. Sem drama, sem luta, ele foi desaparecendo, até ao ponto em que o ventilador tinha mais vida do que ele. Sebastien deixou o hospital sem se dar ao trabalho sequer de mudar de roupa. Descalçou os ténis de sola grossa que usava enquanto trabalhava, à procura de liberdade onde a conseguisse encontrar, e conduziu até à garagem onde guardava o seu Cord antigo. Depois dirigiu-se à autoestrada que seguia para norte. Conduziu a uma velocidade que teria enfurecido os amantes de carros antigos e lhe teria custado pelo menos uma multa, ou, mais provavelmente, a suspensão da carta de condução, caso tivesse sido avistado por algum carro-patrulha. Só havia uma parte das suas emoções sobre a qual detinha pouco controlo, uma fraqueza que mantivera escondida ao longo de toda a sua formação médica. A morte de um paciente enfurecia-o; a impotência que sentia ia para lá de uma reação racional e apoderava-se dele como uma fobia. Queria mantê-los vivos, mais por ele do que pelos pacientes propriamente ditos. Lutava em segredo contra esse egoísmo, pois sabia que era a única fraqueza que podia arruiná-lo como cirurgião e, portanto, como pessoa. Era esse o estado de espírito sombrio em que se encontrava quando a rapariga se aproximara dele. Espantado, reparou que a sua tentativa atrapalhada de o ajudar apaziguara a raiva que se apoderara dele. Só compreendeu o fenómeno quando se apercebeu, com uma clareza perturbadora, que ela era a primeira pessoa que alguma vez tentara salvá-lo de si próprio.

Alguns dias depois, Sebastien regressou à vinha para assinar os papéis que autorizavam a compra de mais terrenos a sul da propriedade existente. Não gostava de se meter nos negócios do pai e tentava minimizar o seu envolvimento. Desta vez trouxe o Ferrari preto, e ficou aborrecido consigo próprio ao perceber que o escolhera na esperança de impressionar a sua salvadora. Os trabalhadores da vinha não estavam nos campos quando chegou; olhou para o pesado Rolex de ouro no pulso e reparou que estavam

na hora de almoço. Sorriu tristemente da sua própria desilusão. Nunca se vira como um pavão vaidoso em relação às mulheres. Estacionou atrás do edifício do lagar, ao lado do château, e fez uma careta ao passar pelos torreões falsos e pela fachada ornamentada. Não passava de um monumento aos turistas que esperavam ali ter, um dia, e as semelhanças com um verdadeiro château eram risíveis. No escritório, a secretária de Beaucaire, uma mulher de meia-idade com um sorriso aberto, ergueu os olhos do trabalho. – Olá! O senhor Beaucaire pediu-me para lhe dizer que vai chegar um bocadinho atrasado. Está a falar com os trabalhadores temporários. Aqui tem os documentos. Enquanto assinava, Sebastien perguntou: – Conhece alguns dos trabalhadores temporários? – Claro. Vivi aqui a vida toda. – Há uma rapariga muito tímida, com uma voz invulgar… É magra, de pele clara, com uma expressão confusa no rosto, como se estivesse sempre a tentar compreender uma questão complicada. – Oh! Está a falar da Amy Miracle. – Miracle? – É um apelido estranho, eu sei. A madrasta dela pertence à minha igreja. Creio que são uma família de quarta ou quinta geração de gente do circo e das feiras. O nome original era Merkle; pelo caminho, alguém o mudou para Miracle. – O que mais sabe sobre ela? – Hum… Bom, como já mencionei, são gente do circo. Ou eram, pelo menos. Assentaram aqui há cerca de dez anos. O pai tem um problema nas costas e teve de deixar o mundo do espetáculo. Era palhaço. Um tipo estranho. Mesmo estranho. – Como assim? – Oh, é simpático… Esteve a fazer animais de balões na festa do quinto aniversário da minha neta, mas… mas… – Baixou a voz para um murmúrio conspirador. – É um hippie. – Sim? – Tem cabelo comprido. Um homem da idade dele! E fuma droga. Por estes lados, é considerado numa personagem esquisita, se é que me entende. A mulher dele cria galinhas. Acho que é a única coisa que os impede de dependerem de ajudas do Estado. – O que sabe sobre a rapariga? Ela encolheu os ombros. – Não podia ser mais tímida. Acabou o liceu na primavera. Namora com um rapaz que vai para a escola profissional no outono. – Escola profissional? – Sebastien tinha excelentes conhecimentos de inglês, mas a expressão não lhe era familiar. – Quer trabalhar em camiões. Sabe, aqueles grandes. Quer ser mecânico.

– Ah! – Sebastien olhou para o relógio, impaciente. Porquê tanta curiosidade em relação à rapariga? Tinha de voltar para Atlanta. Estava de serviço no hospital nessa noite e, até lá, ainda precisava de ler várias publicações médicas. Pio chegou um minuto depois. Sebastien sorriu ao ver os seus modos pomposos. Era um espião muito digno, que se fingia insultado sempre que Sebastien questionava os seus motivos ardilosos para ter vindo atrás dele para a América. – Bonjour. Ça va? – cumprimentou Pio, com uma palmada nas costas de Sebastien. – Comme ci, comme ça. Já despachei as assinaturas. – Podia ter-lhe enviado os documentos por correio. Sebastien encolheu os ombros, um gesto expansivo e claramente latino. – Apeteceu-me conduzir um bocado. – Hum. Venha provar o Merlot que o seu pai me mandou. Foram para o escritório de Pio, uma divisão sombria, com painéis de madeira escura nas paredes, sofás de cabedal e antigas fotografias do château dos de Savin no Vale do Loire. O escritório era funcional mas acolhedor. Pio tirou uma garrafa de vinho da garrafeira que cobria uma das paredes. Abriu-a com décadas de experiência, serviu uma pequena quantidade em dois copos de prova e apresentou um deles a Sebastien. Depois de um exame desinteressado de cor e limpidez, Sebastien provou lentamente o Merlot. – É demasiado doce. – Não! A melhor colheita desde setenta e dois! Nunca me esquecerei dessa. Sebastien sorriu ao ouvir o tom saudosista do homem mais velho. – Devias voltar para casa, Pio. Vejo que tens saudades. Com um suspiro, Pio levou a garrafa de Merlot para um aparador e encheu dois copos de cristal. Ele e Sebastien ergueram os copos num brinde. Pio afundou-se num sofá, limpou o suor da testa bronzeada com um lenço branco e olhou para Sebastien com ar desconfiado. – Voltou para admirar outra vez as uvas jovens e bonitas? – Não tenhas medo, Pio, eu só escolho o que já está maduro. – Não seria capaz de causar problemas com os pais da região a um velho como eu, pois não? Sebastien sorriu com frieza. – Não és nenhum velho, Pio. Não envelheceste nem um ano desde que eu era criança. – Oh, mas você mudou e de que maneira, meu rapaz. – Cresci, nada mais. Já não sou o menino ingénuo que tu punhas a trabalhar sempre que chegava da escola. – O seu pai orgulhava-se desse menino, por mais amargurado que ele se tenha tornado em adulto. – Devia orgulhar-se de mim agora, também. Se tal não acontece, é problema dele. O que lhe tens contado sobre mim, ultimamente? – Como assim? Digo-lhe que ainda é médico. «O seu filho está sempre a trabalhar no hospital. Vive

numa bela casa. Faz amor com americanas. Tornou-se americano. Esquece-se das responsabilidades familiares.» Sebastien soltou uma risada desprovida de humor. – Gosto desse teu lado dramático. Beaucaire suspirou. – Então explique-me lá de onde veio todo esse interesse pela rapariga. É tão estranha… quase nunca fala, mas quando abre a boca, c’est comique, que voz! Espero que não esteja a pensar em arranjar problemas com ela. – Se calhar tenho um lado galante. Achas que sou um falcão que ataca os passarinhos que mal aprenderam a voar? Tal pai, tal filho? Não, eu não sou como esse filho da mãe. Beaucaire franziu a testa e deu uma palmada no braço do sofá. – Mais respeito! Sebastien esvaziou o copo e pousou-o na secretária de Beaucaire. – Mais honestidade, Pio. Au revoir. Saiu do edifício com as mãos cerradas. A única coisa que nunca faria era causar a uma mulher o sofrimento que o pai causara à mãe. Quando viu Amy Miracle a atravessar o campo em direção ao bosque do outro lado, com a lancheira na mão, parou e ficou a olhar para ela. Havia uma maneira de acabar com aquela paixoneta irritante: falar com ela quebraria o feitiço. Seguiu-a pelo trilho até ao bosque e pensou que a rapariga podia ficar assustada quando desse por ele. Fez uma careta ao aperceber-se do aspeto que a sua forma de agir conferia à situação – um homem feito a seguir uma jovem mulher numa densa floresta. Levantou a cabeça e chamou-a pelo nome. A reação de Amy foi de sobressalto. Girou sobre si própria e olhou para ele, o choque evidente na sua postura, como se prestes a correr a qualquer instante. Trazia de novo o chapéu e os óculos escuros, calções largos e uma blusa branca simples. Por baixo do chapéu e dos óculos a sua boca abriu-se num círculo receoso. – Posso falar contigo um minuto? – perguntou Sebastien, enquanto se aproximava. – Passa-se alguma coisa? Fiz alguma coisa? – Não, nada. – Oh. – Ela agitava-se. Não parecia muito tranquilizada. Os seus olhos saltavam das calças caqui para a camisola de algodão branca de Sebastien, como se fossem coisas estranhas. – Hoje está diferente. – Limpo, espero eu. E calçado. – Sebastien parou a alguma distância. – Ias sentar-te na pedra ao pé do riacho? – Oh! Também a conhece? – Sim. É um sítio muito bonito. Ela assentiu com a cabeça, atrapalhada. – Mas se é o seu sítio, eu posso voltar para a vinha. – Não, claro que não. Importas-te que te faça companhia enquanto almoças? – Claro que não. – Começou a andar de lado, cruzando os pés, sem nunca tirar os olhos dele. Estava

tão nervosa que a sua atrapalhação e falta de sofisticação fizeram com que Sebastien tivesse pena dela. – É melhor caminharmos lado a lado, antes que caias – sugeriu-lhe, tentando não sorrir. – Oh, está bem. – Ela parou, desviou-se para a beira do caminho e apertou a lancheira à frente do corpo, como um escudo. Sebastien colocou-se ao seu lado e fez-lhe sinal para avançar. Amy manteve os olhos virados para a frente enquanto percorriam a curta distância até ao pequeno riacho. O cheiro adocicado das flores silvestres perfumava o ar fresco junto à água, e os raios de sol passavam por entre as folhas das árvores. O riacho emitia um som sussurrante agradável. Era um sítio embriagante e Sebastien começou a arrepender-se da sua decisão de vir atrás dela. Amy trepou para um afloramento rochoso de granito e sentou-se de pernas cruzadas, tensa. Sebastien desceu para uma pedra cinzenta sarapintada, a uma distância confortável, e dobrou uma perna por baixo do corpo, apoiando o braço no joelho. – O senhor Beaucaire agora não gosta de mim – disse ela, de olhos postos na lancheira. – Peço desculpa por o ter incomodado. – Porque dizes isso? Estavas apenas a tentar ajudar. – Sinto-me responsável por ter irritado o senhor Beaucaire. – Hum… Costumas sentir-te responsável por esse tipo de coisas? Ela apertou os lábios. – Sim. – É pena. És uma pessoa muito bondosa e atenciosa. Atrapalhada, Amy tirou os óculos de sol e guardou-os com cuidado no bolso da blusa. O seu rosto era encantador: os olhos quase escondidos por trás das pestanas densas, o nariz arrebitado, a boca grande e expressiva, com covinhas de ambos os lados. Era um rosto com personalidade e inteligência, e muito mais maturidade do que ele esperava. – Tive pena – declarou. – Parecia estar atrapalhado. – Agradeço muito a tua preocupação. Mas talvez não seja sensato condoeres-te de mim. Talvez eu seja uma pessoa terrível. – Oh, claro – afirmou Amy, sem grande convicção. – Quero que compreendas o que estava a passar-se comigo naquela manhã. Não dormia há três dias. Tinha estado no hospital… Houve uma emergência. Por um momento, na vinha, senti-me mal… mas só porque precisava de dormir e de comer. – Porque é que não dorme nem come? Ele soltou uma risada seca. – Tenho tendência a esquecer-me de tudo quando estou a trabalhar. Ela abriu a lancheira. – Tome. Tenho muita comida. Em cima da pedra lisa espalhou chocolates, pacotes de bolachas de água e sal e algumas maçãs.

– Mesmo muita! Estavas à espera de convidados? Ela corou. – Enfiei na lancheira o que me veio à mão, ontem à noite. Estava com pressa. Ele aceitou um pacote de bolachas. – Obrigado. – Depois olhou para o livro que ela pusera de lado. – Ah! Gostas de Tolkien? – Muito. Sim. – O que é que te agrada mais? – É fácil ver quem são os bons e quem são os maus. Gosto disso. Sebastien assentiu com um aceno. – Concordo. No mundo real, há demasiadas tonalidades de cinzento. – Sim! Tiraram as medidas um ao outro, como dois viajantes que se avaliam antes de empreenderem uma longa viagem pela mesma estrada. Depois a ousadia dela dissipou-se e baixou novamente os olhos para a comida. Sebastien nunca tinha encontrado antes uma mistura de timidez e maturidade como a dela. Enquanto abria o pacote de bolachas, ela rasgou o invólucro de um chocolate. – É médico? – Sim, cirurgião cardíaco. – Pensava que os médicos eram mais velhos. – Estou a acabar os estudos. E é verdade que sou mais novo do que a maioria. Entrei na universidade, em Paris, com quinze anos. – Que idade tem agora? – Vinte e nove. – Oh! – Ela mastigou rapidamente o chocolate e olhou para as árvores de sobrolho franzido. – Achas-me muito novo ou muito velho? – perguntou, divertido. – Muito mais velho do que eu, mas menos velho do que julgava que os cirurgiões cardíacos seriam. – Garanto, mademoiselle, que sou um dos melhores. – Onde trabalha? – No Hospital Universitário Gregory. – Sei onde é. Uma rapariga que conheço teve de ser operada a um tumor e o médico mandou-a para lá. Os amigos juntaram-se para a ir visitar a Atlanta. É o hospital mais bonito que já vi. – Ainda bem que ficaste impressionada. Ela sorriu do tom trocista. Sentindo-se um pouco mais corajosa, perguntou: – Porque é que trabalha aqui e não em França? Ele pousou a mão no coração, num gesto dramático. – Queria fugir! Amy olhou-o de soslaio. – Do quê?

– Das convenções! Das tradições! Do desespero existencialista! Das teorias de Descartes! Os olhos de Amy cintilaram, intrigados. Sebastien comeu as bolachas e pensou que os olhos dela eram da mesma tonalidade de verde que se encontraria num pedaço de jade de boa qualidade. – É o dono de tudo isto? – indagou, indicando as vinhas com um gesto. – A minha família é. Eu só detenho algumas ações. – É lindo. Adoro trabalhar aqui. – Acabaste agora o liceu, não foi? – Sim. – E vais para a universidade no outono? Ela baixou os olhos e começou a limpar uma maçã na perna dos calções de ganga. – Não. – Tens tanta inteligência… nos olhos, na voz. Não podes desperdiçá-la. – Não sou muito boa aluna. – Mas em que trabalharás, se não fores para a universidade? – Ah… não sei. – Vives em casa dos teus pais? – Ela acenou afirmativamente. – Então vais ficar a viver lá até decidires? Ela suspirou. – Oh, não sei o que farei. Sou capaz de casar, ou coisa do género. – És demasiado nova para isso. Apesar da timidez, Amy lançou-lhe um olhar furioso. – Tenho dezoito anos. – Ah, claro, és uma idosa. Estou a perceber. – Você é… muito obstinado. Ele abanou a cabeça. – Não, sou uma personalidade tipo A: agressivo, compulsivo e arrogante. Já mo disseram muitas vezes. Aí tens. Ela desatou a rir, o riso mais atraente que ele já ouvira, o tipo de gargalhada que faz com que as outras pessoas queiram rir também. Ouviu-a rir com um sentimento agridoce, e tentou lembrar-se da última vez em que gostara tanto de falar com alguém. – Suponho que não posso discutir, se já sabe que é obstinado – disse ela por fim, fitando-o por baixo da aba do chapéu. – Não me importo de discutir contigo. Isso significa que te sentes à vontade comigo. Parecendo algo chocada, Amy ponderou por um instante antes de responder: – Essa é nova. Sebastien reparou nos fios de cabelo acobreado caídos na testa dela e desejou que Amy tirasse o chapéu para poder ver o resto. Olhar para ela excitava-o e acalmava-o, ao mesmo tempo.

– Nunca deixes que ninguém te chame nomes – disse-lhe, abruptamente, agora em tom sério. – Não és uma inútil. O Pio… o senhor Beaucaire… não queria dizer aquilo. E não tinha qualquer direito de pôr em causa a tua honra. Ela corou e pareceu atónita. Depois de gaguejar um pouco, conseguiu por fim falar: – As suas palavras fazem-me sentir importante. – Acredita em ti própria. Tens sempre de te considerar a pessoa mais especial do mundo. – Depois, com um sorriso frio, acrescentou: – Claro que há ocasiões em que essa arrogância nos pode fazer ir longe de mais. Mas duvido que seja o teu caso. – Não sei sequer como ser arrogante – confessou Amy, com a voz a tremer. – Mas obrigada. Muito obrigada. Aposto que é um excelente médico. Sabe como fazer com que as pessoas se sintam melhor só por falar com elas. Sai daqui. Vai-te embora imediatamente, pensou Sebastien. – Tu é que és uma boa paciente. – Praguejando em silêncio, levantou-se. Dentro de poucas semanas estaria a caminho da África Ocidental, onde passaria dezoito meses num hospital universitário em Abidjan, na Costa do Marfim. Adiara o serviço militar até agora e optara por o cumprir a trabalhar e a ensinar na ex-colónia francesa, em vez de prestar serviço no exército. Não tinha tempo para aquele género de fascínio perturbador. Amy Miracle agitou-se, embaraçada, e depois ergueu os olhos para ele. Sebastien quase cambaleou perante a adoração que viu no rosto dela. – Nunca me esquecerei do que fez no outro dia – murmurou a rapariga. – Quando me defendeu. Uma vaga de prazer percorreu-o, acompanhada por uma autocensura amarga. Ele não era como o pai; não era um filho da mãe egocêntrico que punha as ideias impulsivas à frente da responsabilidade. Sebastien sabia o que podia fazer com aquela tímida rapariga, a estranha e pequena Miracle, se quisesse; mas não o faria. – Deixo-te com o teu almoço – concluiu. – Foi um prazer conhecer-te. A desilusão ensombrou as feições da jovem; depois baixou os olhos e mostrou-se novamente reservada e educada. – Muito prazer em conhecê-lo também. Talvez nos voltemos a ver, se regressar para apanhar uvas. Vou certificar-me de que isso não acontece, pensou Sebastien, zangado consigo próprio. – Talvez. Adieu. – Adieu – repetiu ela baixinho, arrastando a palavra, tornando-a simultaneamente engraçada e triste. Sebastien fitou-a por um instante, hipnotizado; depois controlou a reação perturbadora e deixou-a.

Como era costume, o pai estava a dormir quando ela chegou do trabalho, encostado às almofadas ortopédicas no quarto que partilhava com Maisie, com a porta aberta e o ar condicionado por baixo da janela a trabalhar na potência máxima. Numa das paredes estava o seu santuário ao circo – fotografias

suas quando trabalhava para os Ringling Brothers, programas amarelecidos de espetáculos há muito passados, e um cartaz de 1952 que anunciava o filme O Maior Espetáculo do Mundo, no qual ele fora figurante. Havia uma fotografia dele ao lado de Jimmy Stewart, com um autógrafo que dizia: «Para o Zack, o melhor palhaço do mundo.» E, mais abaixo, uma pequena fotografia encarquilhada de Zack com a mãe de Amy. Ellen Connery Miracle, alta, ruiva e deslumbrante, fora corista com as Rockettes no Radio City Music Hall antes de se juntar ao circo, como assistente do irmão num número de cães treinados. Dois anos depois de ter casado com Zack Miracle, morrera ao dar à luz Amy. De vez em quando, o pai gostava de lhe recordar esse facto. Maisie estava sentada na sala a ver televisão, na sua cadeira preferida, uma poltrona reclinável forrada com tecido xadrez que comprara numa feira por cem dólares. Vestia jardineiras por cima de uma t-shirt branca do pai de Amy. O cabelo estava afastado do rosto plácido por uma bandolete barata. No colo generoso tinha um saco de plástico cheio de feijões-verdes. Presa à ação da telenovela, ia tirando os fios dos feijões, que depois partia em pedaços iguais. Maisie era querida e calada e não muito inteligente ou bonita, o que contava como vantagens aos olhos de Zack. Eram esses os motivos pelos quais estavam juntos e felizes há dez anos. Maisie deixava o pai de Amy governar o mundo, inclusive arranjando desculpas para as plantas de marijuana que ele tinha na sala dos fundos. Era o problema das costas. A droga tinha fins medicinais. Tal como o álcool. Amy compreendia e tinha pena do pai, mas isso não lhe tornava a vida mais fácil. Acenou a Maisie e dirigiu-se à cozinha para beber água. Enquanto atravessava a sala com passo cansado, Maisie resmungou entre dentes e esfregou a testa como se estivesse a tentar lembrar-se de alguma coisa. – Ah, já sei. O Charley ligou. Tem de trabalhar esta noite. Ele e o pai vão levar um carregamento de frangos para a fábrica em Jasper. Disse que estaria aqui amanhã às seis para te levar à igreja. – Obrigada, Mams. – Foi para o quarto, trancou a porta e encostou-se a ela, de olhos fechados. Pousou o chapéu de palha na cómoda e deixou cair as roupas sujas e suadas no chão. Sentia-se quente e confusa por dentro; estava triste, inquieta, extasiada e receosa. Em cima da cama, viu a lista de tarefas diárias deixada pelo pai, escrita na sua caligrafia descuidada. O tamanho implacável da lista irritou-a. Atirou-a para o chão e depois ficou parada, nua, olhando em volta como se estivesse a ver o quarto pela primeira vez. As mobílias ainda eram os restos das lojas de desconto, a cama ainda rangia quando ela lhe dava um pontapé, e as paredes ainda estavam cobertas com posters de estrelas de cinema e da televisão. Num canto, tinha uma aparelhagem portátil em cima de um velho baú que pertencera à mãe. Numa caixa de cartão, ao lado, estavam os seus discos, álbuns de comédia e as bandas sonoras de musicais da Broadway. Em cima da cómoda, a pequena televisão que o pai lhe dera no Natal, três anos antes. Fora o melhor Natal da sua vida. Com movimentos rígidos, entrou na casa de banho minúscula e tomou um duche. Quando se secou,

esfregou o corpo com a toalha durante muito tempo, com gestos quase frenéticos. Atirou-se para cima da cama e deitou-se de costas. Fechou os olhos, dobrou um braço sobre o rosto e pôs a outra mão entre as pernas. Nunca sentira aquela necessidade tão intensa durante o dia, e sentia-se embaraçada. Depois as imagens do doutor de Savin destruíram-lhe o controlo e acariciou-se até a dor explodir num prazer tão desesperado que arqueou as costas e mordeu o braço para não gritar. A tremer, apertou os braços à volta do corpo e olhou para o teto. Havia muito mais a desejar do mundo do que alguma vez se apercebera.

Capítulo 3

Sebastien não se orgulhava da sua falta de empatia para com os pacientes. Por outro lado, pensou, desculpando-se a si próprio, havia um forte elemento de frieza masculina em todos os cirurgiões cardíacos. Muitas operações eram uma questão de vida ou morte para os pacientes e o sucesso media-se, literalmente, pelo murmúrio do bater de um coração. Olhou sem qualquer piedade para a mulherzinha gorda e corada que chorava, com o lençol apertado nos dedos vermelhos de unhas cor-de-rosa. O seu rosto ostentava uma expressão infantil de desalento. – Vou morrer – lamentou-se. – Sei que não vou sobreviver ao bypass. Sebastien apertou as mãos atrás das costas. De pé, ao lado da cama, fixou os olhos numa flor roxa bordada no roupão dela. – Esse risco existe em qualquer cirurgia. Posso citar-lhe as estatísticas de sucesso, mas não lhe posso dar quaisquer garantias. Pelo canto do olho, viu a enfermeira de apoio à equipa de Cardiologia lançar-lhe um olhar furioso antes de pegar nas mãos da paciente. – Senhora Spencer, o seu prognóstico é excelente. Não devia preocupar-se. – M-mas o doutor de Savin disse… – As probabilidades de a sua operação ser bem-sucedida são muito elevadas – assegurou-lhe Sebastien. – Morrerá é se não fizer a operação. Veja as coisas dessa maneira. A senhora Spencer arregalou os olhos e fitou-o, horrorizada. – Não quero ver as coisas dessa maneira! A enfermeira deu-lhe uma palmadinha na mão. – O que o doutor de Savin quer dizer… – É que não tem alternativa senão fazer o bypass – interrompeu Sebastien. – É a verdade pura e simples, madame, e será muito melhor para si se se acalmar. Estou aqui para explicar o procedimento clínico, que na verdade é bastante tranquilizador. Vamos fazer uma incisão… – Quero um calmante! – A senhora Spencer afastou as mãos da enfermeira e puxou os lençóis com violência. – Não quero ouvir falar de incisões! Sebastien virou-se para a enfermeira, impaciente. – Dê duzentos miligramas de diazepam à senhora Spencer. Volto daqui a meia hora para falar com ela. Saiu do quarto, seguido pela enfermeira, que enfiara as mãos nos bolsos do casaco azul. As enfermeiras de apoio ao serviço de Cardiologia não usavam uniformes, por forma a estabelecerem uma ligação mais casual e reconfortante com os pacientes. Sebastien considerava tais esforços frívolos.

– Doutor de Savin – chamou ela baixinho, com voz tensa. – Posso falar consigo um minuto, por favor? Sebastien parou. – Sim? A enfermeira parecia furiosa. – O doutor precisa de ter alguma formação em sensibilidade. – Deixo as palmadinhas nas costas para si. Não tenho interesse em fazer jogos de palavras com pacientes histéricos. – Não consegue imaginar como aquela mulher está assustada? – Não. Para falar com franqueza, evito usar a imaginação de forma mórbida. É por isso que sou tão bom cirurgião. Sei como direcionar a minha energia. Agora vá dar o comprimido à senhora Spencer e chame-me quando ela estiver pronta para me ouvir. – Muito bem, doutor. Virou-se, mas ainda viu pelo canto do olho o gesto obsceno que ela lhe fez. Sabia que a enfermeira não tivera intenção de ser apanhada e que, se apresentasse queixa, ela seria despedida. Todavia, sentiuse mais divertido do que ofendido. – Não é a primeira, madame. Antes de se afastar, olhou para trás e viu o ar assustado no rosto dela. Com um leve sorriso, subiu até à Unidade Cardíaca de Cuidados Intensivos e entrou numa fila de cubículos vidrados. Um rapaz de oito anos dera entrada na véspera, com complicações na sequência de uma operação de coração aberto para corrigir um defeito congénito. Tinha elétrodos presos à pele pálida e tubos ligados às veias nos braços magros, para lhe fornecerem a medicação necessária. O tubo transparente do cateter estava caído ao lado da cama. À sua volta, várias máquinas apitavam, gorgolejavam e soltavam estalidos. Sebastien pegou na ficha do rapaz e entrou no cubículo. Olhou para o paciente sem dizer olá e começou a ler. Trabalhar com crianças era muito difícil. Havia da parte dele uma fraqueza especial por quem era jovem e indefeso, pois fazia-o lembrar-se da sua própria maturidade forçada. Annette e Jacques, muitos anos mais novos do que ele, tinham-lhe posto a alcunha le général. Desobedecia ao pai a todas as oportunidades e causara muito tumulto no seio da família ao passar os verões com os familiares rudes do lado da mãe, a trabalhar nos barcos de apanha da sardinha ao largo da costa da Bretanha. Quando acabou de ler a ficha, inclinou-se sobre o corpo magro do menino e, com cuidado, encostou o estetoscópio ao peito frágil, onde uma tira de gaze cobria a longa incisão da cirurgia. O defeito, um buraco entre as câmaras superiores do coração, deveria ter sido reparado quando ele era bebé. O rapaz nunca fora saudável. – Chamo-me Tom – murmurou o menino. O tubo de oxigénio que tinha nas narinas fazia-lhe a voz nasalada. – Fui transferido da Florida. A minha avó tinha medo que eu morresse. Com a atenção concentrada nos sons fracos do coração em recuperação, Sebastien limitou-se a acenar com a cabeça. Apercebeu-se vagamente de que o rapaz tinha cabelo castanho e grandes olhos azuis, e que

havia uma fotografia dele, a sorrir ao lado de uma velha casa de quinta, colada a uma das paredes de vidro. Não queria reparar em mais nada. Pelos vistos, contudo, Tom não tencionava ser ignorado. – Como se chama? – Doutor de Savin. – Vai estar muito por aqui? – Por enquanto. Sou um dos cirurgiões que trabalha no hospital. – A sua maneira de falar é engraçada. – Sou francês. – Quase que fui desta para melhor, sabe. Ainda posso ir. – A afirmação era tão inesperada e tão pouco própria de uma criança que Sebastien foi apanhado de surpresa. Ergueu o rosto e encontrou malícia nos olhos de Tom. – Esta chamou-lhe a atenção – disse o menino, em tom solene. – Já vi que tenho de ter cuidado contigo. Pensas muito depressa. – Tenho um coração avariado. Tenho de fazer tudo depressa. Posso morrer. – Tens um coração perfeitamente bom, que acabou de ser arranjado. Trabalha muito bem. – Não. Ouvi um dos médicos dizer que tinham feito um arranjo de merda no hospital da Florida. Sebastien pensou que tinha de descobrir quem fora assim tão estúpido e descuidado. – Bom, seja como for, parece estar a sarar muito bem. Acredita em mim. Sou um médico excelente. Não ouviste dizer? Os olhos de Tom brilharam. – A sério? – A sério. – Ainda bem. Estou farto de estar doente. – A voz do menino era agora muito fraca e suave. Sebastien deu por si a alisar os lençóis e a ajustar os tubos que lhe entravam no braço. – Todos os dias vais ficar um bocadinho mais forte. Um dia, dentro em breve, irás para casa, melhor do que nunca. – Promete? – Prometo. – Como é que se chama, mesmo? – Doutor… Sebastien. Que tal? Podes tratar-me por Sebastien. – É um nome engraçado. – É muito antigo e especial. Foi a minha mãe que mo deu; ela era de uma parte de França chamada Bretanha e Sebastien é um nome muito popular por lá. – O que é que essa parte da França tem de especial? Sebastien suspirou. Como podia explicar facilmente a uma criança de oito anos o peso de celtas e druidas, de megálitos misteriosos, costas escarpadas, florestas místicas e das lendas arturianas? Mas Tom parecia tão interessado! Sebastien gemeu silenciosamente. Andava a ficar muito sentimental.

Primeiro a rapariga na vinha, agora aquele menino. – Combinamos assim, Tom: quando eu acabar o trabalho, passo por aqui e vejo se ainda estás acordado. Se estiveres, falo-te sobre a terra da minha mãe. Tom sorriu. – Combinado! Sebastien dirigiu-se à porta. – Não estava a enganar-me com essa conversa de ser um «médico excelente», pois não? – perguntou o rapaz, baixinho. – Já vi que tem muita lábia. Sebastien parou à porta e olhou para ele. – Nem por sombras – assegurou, com ar solene, e, com uma piscadela de olho que lhe custou muito mais da sua frieza do que pretendia, saiu do quarto.

O coração do homem estava aberto, à espera, na mão de Sebastien, temporariamente suspenso das suas funções para que ele conseguisse reparar um grande buraco de bala. A concentração de Sebastien era imune ao escrutínio de um cirurgião chefe, dois residentes do primeiro ano e uma equipa cirúrgica composta por técnicos, enfermeiras e um anestesista. Já efetuara aquele procedimento inúmeras vezes; a diferença é que agora era o professor e não o aluno. – É sempre difícil suturar este tipo de ferimento – explicou, enquanto os residentes se inclinavam para ver melhor. – Ross, veja o que eu faço e prepare-se para tentar. O jovem residente deu um salto, com a testa a suar por baixo da touca azul. Com cuidado, tocou no coração com a ponta do dedo. – Doutor, está a tentar assassinar o meu paciente? – rosnou Sebastien. – Não, doutor. – Então por que raio está a espetar o dedo no coração dele? Delicadeza, por favor. Veja. Com gestos confiantes, Sebastien começou a fechar o ferimento. – Incrível – murmurou o outro residente. – Nunca vi ninguém suturar tão depressa. – Nada de conversas desnecessárias, doutor Lewis. Terei todo o gosto em aceitar os seus elogios, mas depois. Retire o dedo, doutor Ross, antes que se torne parte permanente do peito deste paciente. Lewis! Ajude-me aqui! Mais depressa! Está a fechar uma artéria com a pressão da sua mão, Lewis. Se cometer algum erro, espeto-lhe o bisturi. Assim. Com cuidado, com cuidado… Mon Dieu! Este homem irá para casa com as suas impressões digitais cravadas no coração! O residente, atrapalhado e transpirado, soprou rapidamente por trás da máscara. – Escusa de hiperventilar, Lewis. É só a vida de um homem. Já está. Obrigado. Lewis recuou, fez continência e desfaleceu, inerte, no chão da sala de operações. Uma vez que estavam todos ocupados, deixaram-no ficar onde estava. O cirurgião supervisor olhou para Sebastien com ar de censura.

– É o terceiro este mês, doutor. Está a tentar bater o seu recorde antes de nos deixar? – Talvez. Não tenho tempo para misericórdia – respondeu Sebastien, sem nunca desviar os olhos do trabalho. Porque havia de ter compaixão dos outros, quando não dava tréguas a si próprio?

Jeff Atwater parecia estar sempre perdido em pensamentos, ou talvez estivesse a conversar em silêncio com o seu ego. Sebastien considerava Jeff um bom psiquiatra. Era também um hipocondríaco confesso, um ex-hippie e vítima de um divórcio que o levara a limitar os seus futuros encontros românticos a mulheres que davam tanto valor a uma boa gargalhada como a uma boa noite de sexo, e que não queriam muito mais além disso. Dava consultas em casos de transplante, que muitas vezes eram complicados psicologicamente para os pacientes envolvidos. Era também excêntrico e divertido e Sebastien admirava a sua joie de vivre. – Doutor, oh, dou-tor – chamou Jeff em tom suplicante; de repente, começou a cambalear, levando as mãos à cabeça. O cabelo loiro assemelhava-se agora um halo maníaco à volta da sua cabeça. – Estou a canalizar o espírito de um antigo psiquiatra egípcio chamado Jungthra. O Jungthra diz que sofres de um desejo reprimido de vestir fatos de treino de poliéster e ir jogar bowling. – Creio que o Jungthra me confundiu com outra pessoa. – Impossível. O Jungthra sabe tudo. Ouve, vou levar a Susan Roy… é aquela loira matulona das inscrições… às montanhas, no sábado, e tu vens connosco. – Estacou o passo. – Descobri que só estás de serviço outra vez depois das seis da tarde de sábado, por isso não tens desculpa. Vamos beber champanhe e deixamos a Susan levar o carro. Ou então deixamos a Susan beber champanhe e esperamos que ela nos ataque. Um ménage à trois. Estás a ver, também sei falar francês. Ouve, agora a sério, vai fazer-te bem vir às montanhas connosco. Alguém tem de espicaçar as tuas tendências hedonistas. – Doutor, já alguém lhe disse que tem uma necessidade obsessiva de controlar e manipular as pessoas? Jeff soltou uma gargalhada malévola. – Sim, mas quem o fez estava amarrado à minha marquesa no laboratório. Não mudes de assunto. Vens connosco no sábado. – Tenho de preparar tudo para a viagem. – Porquê? A única coisa que tens de levar para África é uma muda de roupa. Não tens vida nenhuma fora do trabalho. Ai! – Jeff levou a mão ao lado do pescoço. – Tenho sentido umas dores aqui, ultimamente. Tenho de ir ver o que é isto. – Provavelmente um tumor – retorquiu Sebastien. – Maligno. – Oh, obrigado, muito obrigado, seu filho da mãe sem coração. – Jeff sorriu. – Vamos buscar-te àquele mausoléu de gangsters a que chamas casa lá pelas oito da manhã. – Tencionas raptar-me para algum sítio em particular? – Vamos procurar um lugar onde haja bons churrascos e le ar puro. Vais gostar!

– Acho que antes queria ficar deitado no meu jardim e apanhar um escaldão. – Ah! Tu és um daqueles tipos enérgicos que só ficaria deitado numa espreguiçadeira se fosse amarrado à força. Oito da manhã. Ouve o conselho de um psiquiatra que cresceu na Califórnia, meu. Tens de relaxar. – Quelle barbe – respondeu Sebastien; para enfatizar as palavras, fingiu bocejar e fez um clássico gesto de enfado francês, esfregando os dedos de um dos lados do rosto. – Acho que fui insultado. Vemo-nos no sábado. – Jeff riu-se e afastou-se.

Estava uma noite de verão perfeita. Os grilos cantavam, a lua estava cheia e a relva emanava uma fragrância doce que se misturava com o aroma da terra quente. Sentada numa manta, no meio de um campo, Amy aninhou-se no círculo dos braços de Charley e tentou concentrar-se no que o namorado estava a dizer. – Os meus pais deixam-nos viver com eles um ou dois anos, e nessa altura já devemos ter dinheiro suficiente para comprar uma caravana razoável – argumentava ele. – Podemos pô-la ao lado da mamã e do papá. Sabes, para eles nos ajudarem com as crianças. Nessa altura já devemos precisar de ajuda. – Charley puxou-a para si e murmurou: – Vou rezar para que o nosso primeiro bebé seja um menino, mas não ficarei zangado se for uma menina. Continuaremos a tentar. – Oh, Charley, tudo isso me parece… simpático. A sério. Queria fazê-lo feliz, mas naquele momento estava tão confusa que tinha medo de dizer muito mais. Casar com Charley era uma boa opção; a sua melhor opção. Até há pouco tempo, tal perspetiva não a assustava. Mas agora sentia no ventre uma estranha sensação de frustração e raiva, e não sabia porquê. Charley Culpepper era o único rapaz que conhecera a sério, por isso sempre partira do princípio de que ele era normal. O facto de a relação não ser carregada de romantismo não incomodava muito nenhum dos dois. Raramente o via mais do que duas vezes por semana, e sempre ao domingo ou à quarta-feira, dias de ir à igreja. Mas Charley estava a trabalhar arduamente para poupar dinheiro para a escola profissional, por isso era normal não se verem muito. Ele era querido e modesto e sabia exatamente o que queria da vida, o que lhe dava uma estabilidade que Amy desejava poder sentir. Charley rezava muito, e ela acompanhava-o, embora nunca conseguisse entrar no mesmo espírito. Falara-lhe um pouco sobre os ataques de fúria do pai; apenas o suficiente para ele não estranhar que Amy não o convidasse mais vezes para ir lá a casa. Charley rezava pela redenção do pai dela e assegurava a Amy que era uma boa filha por querer salvar a alma do pai. Com Charley, sentia-se segura. Virou-se para ele. Charley era agradavelmente normal em todos os aspetos – estatura normal, constituição normal, aparência normal. Tinha cabelo loiro e espesso e um rosto liso e redondo que seria sempre arrapazado. Amy pôs os braços à volta do pescoço dele e beijou-o. Ele devolveu o beijo e as suas mãos desceram para a cintura do vestido branco que ela vestira para ir à igreja.

Amy esticou a cabeça e mordiscou-lhe o pescoço por cima do colarinho da camisa de xadrez engomada. Ele cheirava a água de Colónia e a óleo de motor. – Vá lá, Charley, vá lá – murmurou, acariciando-lhe o peito da camisa com movimentos inseguros. Ele gemeu baixinho quando ela o beijou de novo e abriu finalmente a boca. Amy estava ofegante, mas não por estar excitada; estava, sim, ansiosa por provar a si própria que Charley conseguia fazê-la sentir o mesmo que o doutor de Savin. Conseguia facilmente imaginar-se a ser acariciada pelas mãos grandes e confiantes do cirurgião. Contudo, não conseguia ver-se a fazer parte da vida de alguém assim, embora conseguisse imaginar-se na vida de Charley com facilidade. – Por favor, por favor – murmurou, com a boca na dele. Amy puxou as mãos de Charley para os seus seios. Ele já lhes tocara muitas vezes por cima da roupa, e agora acariciou-os e segurou-os, massajandoos com a mesma rotina fervorosa que utilizava sempre. Amy conseguia prever o seu próximo movimento. Quanto mais ele lhe tocava, menos ela sentia. Antes, era excitante sentir as mãos dele no seu corpo; agora, estava à procura de outra sensação, algo diferente, que não estava lá. A tremer, levou a mão à braguilha das calças castanhas e esfregou a elevação dura por baixo do tecido. Charley susteve a respiração, surpreendido. – Charley, se estamos a falar em casamento, não faria mal… – Não, querida. Não. Amy levantou a saia larga do vestido e sentou-se em cima dele antes que Charley conseguisse protestar. Posicionando-se deliberadamente sobre a braguilha, encostou as cuecas de algodão e movimentou as ancas. – Podíamos arranjar… preservativos. Seria seguro. Ele agarrou-lhe nos braços, com brusquidão. – Amy, para com isso! Não percebo o que se passa contigo esta noite. – Charley, por favor. Tenho de saber como é… Ele empurrou-a para o lado. – Quero que sejas virgem quando nos casarmos! – Eu sei que não querias ir longe de mais antes, mas se vamos casar… – Eu disse que não, e é não! Acabou-se a conversa. Amy ficou muito calada. Nunca insistira no assunto antes, mas a sua raiva estivera a fermentar todo aquele tempo. – E tu, Charley, és virgem? – No meu c-coração – gaguejou o rapaz. Amy olhou para ele. – Só sentes desejo no coração? Conta-me tudo o que se passa um metro abaixo do coração, Charley. Mesmo à luz fraca do luar, viu a consternação no rosto dele. – Cuidado com a língua! Não posso evitar aquilo que fiz antes de encontrar o Senhor! – Se calhar eu devia ir à procura do Senhor amanhã, para poder fazer aquilo que quero esta noite! Por

que raio é que só os rapazes é que podem ter segundas oportunidades? – Com as raparigas é diferente. Porque achas que te amo tanto, querida? És uma das poucas raparigas por aqui que se manteve pura! A frase atingiu-a como um murro. – O que tu queres é plantar a tua semente em terra virgem, e eu sou o único terreno por lavrar que ainda resta! Charley soltou uma exclamação revoltada. – Que estupidez! Quero ser um bom marido para ti. Que mal é que isso tem? De súbito, Amy lembrou-se de uma cena de um dos seus filmes preferidos. Era tão fácil para ela perder-se em vidas fictícias, por serem tão diferentes da sua. Exceto naquele momento porque se sentia exatamente como Katharine Hepburn em O Homem Que Fazia Chover – frustrada, sozinha e cheia de medo daquilo que o destino tinha planeado para ela. Tentou respirar fundo e apertou a mão contra o peito. – Leva-me a casa, Charley. Estou a sufocar. Não sei para onde me hei de virar. – Precisas é de uma boa noite de sono. Estás histérica. – Charley ajudou-a a levantar-se mas, assim que a largou para apanhar a manta, Amy desatou a correr, com as mãos na garganta. Quando chegou ao Volkswagen de Charley, com as capas de pele de ovelha nos bancos, atirou-se para o lugar do passageiro e escondeu o rosto nas mãos. – Estiveste demasiado tempo ao sol – afirmou Charley, muito sério, enquanto conduzia através do campo até à estrada. – Isso passa. – C-claro. Claro. Em casa, apertou-lhe a mão numa despedida muda e entrou rapidamente. Antes que conseguisse chegar ao santuário que era o seu quarto, o pai saiu da sala, onde colocara as suas telas e tintas e a garrafa de gin, preparado para mais uma noite em branco. – Preciso de ti este fim de semana – atirou-lhe. – Vou trabalhar num festival nas montanhas. A Maisie está a fazer-te um fato. Ofegante, Amy perguntou: – Porquê? – É uma daquelas feiras medievais. Pagam-me para fazer um número, mas preciso que conduzas e quero que treines comigo. Vai despir essas roupas de ir ver Jesus e volta aqui. Quero praticar o que vamos fazer. – Oh, papá, por favor! Não me importo de conduzir, mas não me obrigues a atuar… – O mínimo que podes fazer é ajudar-me quando eu te peço. – Mas não tenho jeito nenhum. Ficas sempre zangado quando eu trabalho contigo. Nunca sou suficientemente boa! – A única coisa que te posso ensinar é a trabalhar arduamente e a não procurar compreensão. Agora vai mudar de roupa. Espero por ti na sala. Amy fitou-o com hostilidade crescente, uma reação nova e ousada. A sensação de estar encurralada

consolidou-se num nó duro que lhe fez doer a barriga enquanto mudava de roupa.

A feira estava montada num parque comunitário no meio do bosque. No perímetro, tinham recriado uma aldeia medieval que, para Amy, parecia ter sido construída de contraplacado barato, com uma vaga atenção aos pormenores históricos. Na aldeia havia artistas e artesãos, bem como uma série de bancas de comida controladas pela organização. Os «residentes» da aldeia eram uma trupe de atores, cantores, marionetistas e outros artistas, todos de aspeto algo duvidoso. O pai estava a fazer um enorme sucesso no papel de malabarista de ratos e ela era a ajudante. Como de costume, estava nervosa. – Oh, sim, oh, sim – berrou o pai, num sotaque londrino maravilhosamente absurdo. – Eu domino estas pestinhas, ah, pois é! Venham ver, venham ver. Vestia uma túnica feita de trapos sujos, presa por um largo cinto de cabedal; as pernas escanzeladas estavam cobertas por meias pretas grossas e tinha o cabelo escondido num gorro de cabedal disforme. Enrolara os velhos ténis em trapos, e arrastava-se de um lado para o outro como um velho. Com aprumo, lançou-se num número cómico fortemente baseado em acrobacias com seis sacos de pano pretos, decorados com bigodes e caudas. Os ratos tinham tendência para voar inesperadamente para cima do público que se reunira à volta deles; queriam fugir, pois era, queixava-se o pai. O trabalho de Amy era correr atrás dos ratos fugitivos, chamando «Seus diabinhos, venham cá!». Depois de lutar com eles e de os dominar, atirava outra vez os ratos para o pai, que fazia mais acrobacias com os pequenos roedores. No fim da atuação, Amy tirava do cinto uma bolsa de cabedal e suplicava aos membros do público «uma moedinha para ajudar a alimentar estes belos animais treinados». Vestira o fato que Maisie improvisara com retalhos bafientos – uma blusa descaída no ombro, feita de um lençol velho, uma saia esfarrapada que arrastava no chão atrás, e um dos velhos cintos do pai com a bolsa do dinheiro presa a ele. Decidira ficar descalça e, ao meio-dia, os seus pés estavam imundos. Sentia-se muito dentro da personagem. – Hoje estás a fazer um bom trabalho – elogiou-a o pai depois da atuação. Deu-lhe um soco ao de leve no queixo e acenou com a cabeça, satisfeito. Extasiada, Amy deu-lhe um beijo na cara e relaxou um pouco enquanto percorriam juntos os terrenos da feira, à procura de um bom lugar para repetir a atuação. O pai ia arrancando risos e dinheiro às pessoas por quem passavam, com piadas pirosas ditas no seu sotaque inglês piroso e com truques de ilusionismo para os mais pequenos, que o olhavam, fascinados. De cada vez que a apresentava como a filha do malabarista de ratos, pousava-lhe a mão no ombro e apertava afetuosamente. Era assim que ele era antes da lesão nas costas, da reforma, da bebida, da droga. Amy lembrava-se com adoração de como o pai era quando ela era pequena. Hoje estava a adorar o público e, quando adorava o público, também a adorava. Correu ao lado dele, sorridente. No espetáculo seguinte, Amy lançou-se para o meio do público com entusiasmo, a gritar com o rato,

saltando-lhe em cima como um macaco louco. Era empolgante fazer aquelas parvoíces; o bom humor do pai deixava-a mais atrevida. As pessoas estavam a rir do malabarista de ratos, não dela. Atirou o saco preto para o pai, que o apanhou com um floreado e terminou o número de malabarismo com todos os seis ratos no ar ao mesmo tempo, apanhando-os um a um com o boné. – Obrigada, meus amores, obrigada – agradeceu Amy ao grupo de cerca de duas dúzias de pessoas que os aplaudiam. Passou entre a multidão, com o saco na mão, para receber as gorjetas. – Se puderem dar uma moedinha para ajudar a alimentar estes belos animais treinados… Ergueu os olhos para o rosto divertido do doutor de Savin e deixou cair o saco. – Olá, mademoiselle apanhadora de ratos – cumprimentou. Amy caiu de joelhos e começou a apanhar as moedas que tinham saltado do saco. A humilhação ardia-lhe nas faces enquanto via a cena com um olhar novo e horrível – viu-se a si própria, suja, a fazer disparates e a mendigar. E não era dinheiro falso, mas verdadeiro. Quando Sebastien se ajoelhou ao lado dela, nem conseguiu olhar para ele. – Parece que estamos condenados a encontrar-nos em circunstâncias invulgares – gracejou o médico com educação. – Pois. Levantou-se rapidamente e concentrou-se em sacudir a terra da saia. Ele também se levantou. Amy viu, através de rápidos olhares de lado, que calçava mocassins e vestia calças castanho-claras e uma camisola branca com a gola levantada, com a parte de trás de fora das calças. Tinha um emblema elegante no bolso… Oh, céus, provavelmente era o brasão de família. Ele estendeu a mão. Amy reparou no pesado relógio de ouro que lhe reluzia no pulso. Era tão elegante como um modelo nas páginas de uma revista, mas ela não conseguia imaginar aquele corpo grande e anguloso a posar pacientemente para uma fotografia. Ele parecia estar sempre pronto para se mover. – Foste muito divertida – elogiou Sebastien. – Sim. – Estou com uns amigos, mas eles foram ver um dos outros espetáculos. Vou dizer-lhes que deviam ter visto o vosso. – Obrigada. – Que mais podia dizer? O que é que uma pessoa dizia a uma fantasia? Virou-se para o pai e viu a expressão severa na boca deste. Com a conversa, deixara escapar parte dos espetadores sem lhes pedir dinheiro. Amy sentiu um aperto no coração. – Pai, este é o doutor de Savin… – Que pai é esse de que falas? – respondeu ele rapidamente. – O meu nome é Willie. Willie, o Malabarista de Ratos. – Avançou e estendeu a mão suada. – Muito prazer em conhecer-vos, meu senhor. O doutor de Savin apertou-lhe a mão e acenou com a cabeça, tão educado e galante que Amy suspirou. Quando estava perto dele a sua pulsação era mais rápida e ficava mais consciente de como era nova, ignorante e vulgar. – A família do doutor de Savin é dona da casa vinícola – informou o pai. – Sabes, onde eu trabalho…

– Ora, minha rapariga, minha pequena apanhadora de ratos, estás a falar do quê? Amy calou-se e olhou para o chão. – O que tens a dizer, apanhadora de ratos? – insistiu o pai. Amy virou-se para o doutor de Savin, abatida, e na expressão dele encontrou compaixão. Ele percebeu. Oh, meu Deus, ele percebeu. Ergueu o queixo. Naquele momento, teria morrido por ele. Com o seu melhor sotaque inglês, disse: – Foi um prazer voltar a ver-vos, meu senhor. Ele segurou-lhe na mão e fez uma vénia. Depois beijou-lhe os dedos. Os seus lábios eram quentes e firmes. Com os joelhos fracos, Amy sorriu. Sebastien disse, em tom solene: – És uma boa apanhadora de ratos, mas tens de parar de usar essa estranha coisa verde atrás da orelha. – Estendeu a mão para a orelha dela, roçando com as pontas dos dedos no lóbulo e, quando a afastou, tinha uma nota de vinte dólares entre os dedos. Lentamente, depositou-a no saco do dinheiro. – Belo truque, meu senhor – elogiou o Zack Miracle. – Poderíeis ser um dos melhores carteiristas da aldeia. – É apenas um passatempo ao qual me dediquei para manter a agilidade e destreza nas mãos. Estupefacta, Amy não sabia se se sentia mais embaraçada por aceitar o dinheiro dele ou deslumbrada com a atenção. Um bocadinho das duas coisas, decidiu por fim. Quando ele acenou mais uma vez com a cabeça e se afastou, deu o saco do dinheiro ao pai sem afastar os olhos do doutor de Savin. O médico juntou-se à multidão na zona das bancas de comida, mas era tão alto que Amy ainda conseguia avistá-lo de vez em quando. – Ei! Ei! Raios te partam, miúda, acorda. A voz seca do pai chamou-a de volta à realidade. – Sim, pai? – O que se passa contigo e aquele tipo? – Nada, pai. Mal o conheço. – Pois trata de o conhecer melhor. Ele está cheio de dinheiro. Amy olhou para o chão de testa franzida, furiosa com o pai por ter conseguido tirar o brilho a um momento maravilhoso. – Vais almoçar, pai? – Sim. Anda. – Acho que prefiro ficar sentada aqui, a ver as pessoas. – Como queiras. O pai dirigiu-se a uma cerca alta que fora montada para impedir as pessoas de tentarem visitar a feira sem pagar. Amy viu-o abrir um portão e desaparecer na área onde os atores estacionavam os carros. O velho Buick do pai estava lá, com uma geleira e um cesto de piquenique no porta-bagagens. O pai com certeza beberia umas cervejas e fumaria o seu charro. Caminhou até uma árvore isolada e sentou-se à sombra, cansada. O dia de julho estava abrasador e

levantou a saia até aos joelhos. Esticou as pernas nuas, encostou-se ao trono esguio e cinzento do cornizo e perscrutou a multidão em busca do doutor de Savin. Em vão. Fechou os olhos e sentiu as lágrimas a arderem. Estúpidas fantasias. Ia casar com Charley. Ia criar bebés Culpepper e galinhas Culpepper. De cada vez que ela e Charley fizessem amor, ficaria a cheirar a óleo de motor. – O quê? Ela repousa? Onde estão os ratos? Abriu os olhos, sobressaltada, e viu o doutor de Savin, de pé, de olhar fixo nela. Ele ajoelhou-se abruptamente e estendeu-lhe um copo de refrigerante fresco. Das coisas que mantinha em equilíbrio nas mãos grandes, passou-lhe um guardanapo, uma perna de peru assada e uma tacinha de salada com um garfo de plástico cuidadosamente seguro em cima. Depois sentou-se e colocou nas pernas cruzadas uma refeição semelhante, embora o seu copo tivesse uma das cervejas pretas importadas que se vendiam nas bancas. – Partilhaste o teu almoço comigo no outro dia – afirmou, à laia de explicação. Amy inclinou-se para a frente, tentando conter o nervosismo, e alisou o guardanapo de papel como se fosse linho. – Você é, provavelmente, a pessoa mais simpática que já conheci. Ele hesitou com o copo perto dos lábios, observando-a atentamente e com um prazer silencioso. Depois pousou o copo e confessou: – Nunca me considerei particularmente simpático. Muito obrigado pelo elogio. Amy riu-se baixinho. – Não imagino que seja possível não gostar de si. – Oh, suponho que não estou mal – admitiu, em tom trocista. – Mas há muitas apanhadoras de ratos que me viram as costas. – Esta não. – Amy estava tão atrapalhada que sabia que diria qualquer coisa mesmo parva se não tivesse cuidado. Bebeu um gole da bebida e fez um esforço para mordiscar a perna de peru. – Obrigada por… pela gorjeta. – Espero não te ter embaraçado. Considero que foi um preço justo por um entretenimento maravilhoso. – O meu pai e eu estávamos apenas a fazer um velho número de circo adaptado. – No meu país, o circo é muito respeitado. É uma forma de arte. Tu és uma artista. – Oh, é isso que pareço? – Com um gesto indicou a indumentária. O cabelo, curto, escadeado e com franja, estava preso na nuca. Desatou a tira de couro que o prendia e passou os dedos pelas madeixas acobreadas. – Sim. Pareces uma artista a representar um papel. Aquilo que fazes requer muito talento. Não ouviste as pessoas a rir? – Oh, riem-se porque é uma parvoíce. – Deves ter padrões muito elevados, mademoiselle, para não conseguires aceitar um elogio desinteressado.

Amy rodou o copo nas mãos e fingiu observá-lo. – Desculpe. – Não estejas sempre a pedir desculpa por tudo! – ralhou ele com gentileza. Amy abriu a boca para falar, mas acabou por levar os dedos aos lábios. – Quase o fiz, outra vez. Suponho que é um hábito. Des… – Riu-se e Sebastien ergueu uma sobrancelha em expressão expectante. – Oh, é você que está a fazer-me pedir desculpa constantemente! – Faz uma promessa a ti própria: que não pedirás desculpa mais do que uma vez por dia. Talvez, com o tempo, consigas perder o hábito e utilizar tal pedido apenas quando for mesmo necessário. – É-o muitas vezes. Ando sempre metida em sarilhos. – Sim? O que fazes assim de tão terrível? Amy ponderou por um momento. – Não tenho bem a certeza. Sebastien estudou-a com os olhos semicerrados e franziu a testa. Amy engoliu um pedaço de peru sem sequer lhe sentir o sabor. À procura de qualquer coisa para fazer, enfiou a mão no bolso da saia e tirou uma ficha de videojogos que alguém lhe dera em vez de uma moeda. Estendeu a mão para ele ver e fê-la rodar habilmente sobre os dedos, até a fazer desaparecer. Levou a mão à gola dele e, quando a afastou, tinha duas fichas. – Quer ir jogar Space Invaders? A expressão séria de Sebastien suavizou-se logo. Deslumbrada, viu-o rir – um som masculino, maravilhoso, que a fez estremecer por dentro. – Que mais sabes fazer? – Sei truques de cartas, malabarismos e fazer animais com balões. O meu pai ensinou-me, para o ajudar nas festas infantis. – Inspirada pela atenção dele, atirou a ficha ao ar e apanhou-a na ponta do dedo. – São coisas fáceis. – Não creio que tais capacidades sejam fáceis. Ensina-me. – Inclinou-se para a frente e estendeu a mão. Amy pousou a ficha nos dedos dele e, segurando-lhe na mão, mostrou-lhe como a movimentar. Ele inclinou a cabeça para a dela e Amy pensou que o coração lhe ia parar. Aturdida, percebeu que a proximidade a deixava obcecada com a ideia de lhe tocar em todo o lado. Ficaram ali sentados quase uma hora, a falar em tom baixo e íntimo, a conversa entrecortada com risos, as fichas a tornarem-se graciosas nas mãos dele enquanto Amy o ensinava a fazer com que lhe obedecessem. O pai voltou do almoço e ficou a observá-los com ar aprovador; depois, assumiu a voz de malabarista e disse a Amy: – Anda daí, rapariga, deixa o jovem lorde ir à sua vida. O doutor de Savin tornou-se novamente brusco e reservado. – Ainda não comeste – comentou, olhando para a comida em que Amy mal tocara. – Nem você. Pode ficar com a minha parte. Não tenho fome.

– Não. Tenho de regressar a Atlanta. Estou de serviço esta noite. Disse aos meus amigos que nos encontrávamos ao portão depois de almoço. – Levantou-se e estendeu a mão. Amy aceitou-a e ele ajudoua a pôr-se em pé. – Sempre que quiser treinar os truques de magia, sabe que pode encontrar-me na vinha – disse ela, tentando não parecer demasiado desesperada. – Aqui tem, leve esta ficha para treinar. – Com um gesto floreado, levou-a aos lábios e beijou-a. – Tem a minha bênção mágica. Não o deixará ficar mal. Sebastien aceitou-a com expressão solene. – Obrigado. Amy fitou-o nos olhos e esqueceu a timidez. Pela primeira vez, estudou-os o tempo suficiente para ver que eram castanhos-dourados, orlados de preto. O olhar era reservado, mas surpreendente na profundidade de emoção que conseguia exprimir. Naquele momento estava sério, quase triste. Sebastien aproximou-se dela e murmurou: – Sabes como fazer uma pessoa feliz. É um talento muito grande, e devias dar-lhe o devido valor. Adieu. Amy viu-o afastar-se. Amo-te, pensou, com a convicção profunda e perfeita de uma alma perdida que encontrou finalmente o caminho de casa.

Capítulo 4

Nos dias seguintes, Sebastien pensou muitas vezes em Amy Miracle, recordando o seu charme na atuação com o pai e desconfiando, de forma cada vez mais convicta, de que era esse mesmo pai o responsável por lhe ter sugado toda a autoconfiança. O talento natural que a rapariga tinha era evidente; a voz original e cómica e o rosto de maria-rapaz fariam rir uma parede. Um dia, depois das suas rondas no hospital, Sebastien pegou na ficha que Amy lhe dera – guardara-a num compartimento da carteira, como se fosse uma moeda da sorte – e regressou ao cubículo de Tom. O menino, encostado às almofadas e rodeado de equipamento médico, parecia desanimado, mas os olhos arregalaram-se-lhe com curiosidade quando Sebastien puxou uma cadeira e se sentou ao lado da cama. – Mais histórias? – murmurou Tom, ansioso. – Olha. – Sebastien ergueu a ficha, passou a outra mão sobre ela e depois mostrou-lhe ambas as mãos abertas para provar que desaparecera. – Magia. – Fixe! – Aprendi este truque com uma rapariga que brinca com ratos – contou-lhe Sebastien com expressão solene. – Oh, tretas! – Que linguagem tão feia! Se calhar devia dar-te uma língua nova em vez de um coração. Tom riu-se baixinho, de forma quase inaudível. – Conta-me o que ela fez com os ratos. Sebastien descreveu os eventos de sábado com todo o detalhe e, ao fazê-lo, sentiu de novo a paz que o invadira enquanto estivera sentado com Amy. Conseguia recordar facilmente a gentileza das mãos dela nas suas enquanto lhe guiava a ficha entre os dedos, as cabeças de ambos tão próximas que sentira o cabelo dela a roçar-lhe na face. Conseguia recordar até o som da voz dela quando se descontraía, enrouquecendo e ganhando um tom agradável e quase ardente. Disse a si próprio que o seu fascínio com a rapariga era apenas vaidade; quando ela o fitava, via desejo nos seus olhos. Disse a si próprio que gostaria de satisfazer o desejo dela por uma questão de pura luxúria masculina. Conversou com Tom até o menino adormecer, olhou através da parede de vidro do cubículo para o balcão das enfermeiras e, quando viu que ninguém estava a olhar, pegou na mão magra e aberta do rapaz por um momento. Deixou nela a ficha, a mesma que Amy Miracle lhe dera. Sebastien era filho de uma mulher que rezava aos santos católicos, mas que sempre tivera um lado em sintonia com a sua linhagem celta, mais antiga. Havia forças misteriosas a trabalhar no mundo dela, a

redemoinhar em torno das pessoas e a mudar-lhes a vida. Prestando homenagem à memória da mãe, Sebastien decidiu acreditar que dera a Tom um bocadinho da magia de Amy Miracle.

Amy percebeu que estava metida em sarilhos quando chegou a casa do trabalho, uma tarde, e o pai estava bem acordado, à espera dela na cozinha. Amy estava cansada e coberta da poeira fina e vermelha das vinhas. Pousou o chapéu de palha manchado do suor na mesa da cozinha e esperou, nervosa. Maisie estava de pé a um canto, de costas para as galinhas artesanais de barro que enfeitavam a parede. O pai estava sentado à mesa, com uma mão em punho e a outra fechada sobre uma lata de cerveja. – O Charley esteve cá – afirmou, lentamente. Amy ficou tensa. – Suponho que ele te contou. – Diz que não queres voltar a vê-lo. – Sim, é verdade. – Pensas que vais viver às minhas custas para o resto da vida? – Não. Vou arranjar um emprego em Athens. E hei de encontrar um sítio para viver por lá. O pai tirou a mão da cerveja, fechou-a e esmagou a lata com violência. A espuma espirrou em todas as direções. – Que raio de trabalho achas que consegues fazer? Só abres a boca quando és obrigada. És tão preguiçosa que… – Distribuí jornais desde os oito anos até ao ano passado. Desde que tenho idade para isso que foram mais as noites e fins de semana em que trabalhei como baby-sitter do que as que fiquei em casa. Desde que fiz quinze anos que arranjo sempre um trabalho para as férias de verão. Faço tudo o que me mandas fazer cá em casa. Chamas a isso ser preguiçosa? – Pensas que alguma dessas coisas interessa? É com essas tarefas que queres pagar as contas em Athens? – Hei de encontrar qualquer coisa. Trabalharei vinte horas por dia, se for preciso. – Vais acabar sem um tostão e a implorar a minha ajuda! Não vou ser responsável por ti! Podes ir para o diabo! Quero que vás já a casa do Charley e resolvas o assunto! Amy começou a tremer. – Não. O pai levantou-se de um salto. Tinha as veias do pescoço salientes. Maisie levou a mão ao peito. – Faz o que ele diz, Amy, por favor. Amy agarrou-se à beira do balcão para se apoiar e abanou a cabeça. – Não. O rosto do pai estava distorcido por uma fúria como ela nunca vira igual, porque nunca tivera coragem de o contrariar.

– Fora desta casa! Fora daqui hoje mesmo! – Por favor, Zack, não faças isso – murmurou Maisie. – Prometeste que eu tinha um ano depois de fazer os dezoito – recordou-lhe Amy, horrorizada. – Não pensei que fosses comportar-te como uma maluca! O que é que te aconteceu? Faz-te à vida sozinha, para ver se gostas. Tens algum dinheiro no banco. Vive disso! – Tu prometeste! O pai saiu da cozinha, curvado numa postura que indicava que estava com dores nas costas. Fazia-o parecer um primata perigoso. – Fora! Fora! Eu digo-te como é! Amy e Maisie correram atrás dele. Maisie gemeu de medo quando Zack entrou na sala e pegou no revólver que estava em cima da mesinha. Depois entrou no quarto de Amy. Ela agarrou-se à ombreira da porta, atrás dele, e ignorou as súplicas balbuciadas de Maisie para o deixar. – Larga as minhas coisas! Eu arrumo tudo sozinha! Não toques nas minhas coisas! O pai agitou o revólver. – Não tens nada! Estás na minha casa, é tudo meu! Eu mostro-te como é o mundo real! Apontou a pistola de aço azulado a uma parede coberta de posters de filmes e disparou. As explosões secas ensurdeceram Amy e as ondas sonoras encheram-na de terror. Maisie gritou. Depois de esvaziar o revólver, Zack atirou-o para o canto e começou a arrancar tudo das paredes com as mãos. Amy gritou de desespero. – Não, papá! – Tentou pôr-se à frente dele, como uma mãe-galinha a proteger os pintos. Ele empurrou-a para o lado. – Leva este lixo todo contigo! – exclamou, enquanto rasgava os posters antigos que ela comprara a um dólar cada, em feiras e mercados: recriações de anúncios clássicos dos Três Estarolas, Mae West, as velhas comédias, Katharine Hepburn e Cary Grant. A visão de Amy turvou-se com a fúria. O pai estava a violar o seu santuário quando ela lhe pedira apenas uma oportunidade, um pouco de respeito. Gritou até lhe doer a garganta, enquanto Zack abria o armário e atirava todas as suas roupas para o meio do chão. Sem pensar, Amy pegou num mata-moscas que estava no parapeito da janela e bateu com ele no ombro do pai. Zack soltou um grito de incredulidade. Maisie guinchou, à porta do quarto, quando ele se virou e desferiu um soco. O golpe acertou de raspão no rosto de Amy e atirou-a para cima da cama, desamparada. O choque sobrepôs-se à dor. Aquele fora o derradeiro insulto: apesar de tudo, até àquele momento o pai nunca lhe tinha batido. – Odeio-te! Sempre te odiei! – E eu também te odeio! Põe-te na rua, fora da minha casa! – Ofegante, empurrou o gira-discos barato da mesinha improvisada. Depois puxou a colcha da cama de baixo dela e estendeu-a no chão. Com o braço, varreu tudo o que estava na cómoda para cima da colcha. A pequena televisão bateu no soalho com um baque surdo que não prenunciava nada de bom.

A chorar, Amy saltou da cama e bateu-lhe outra vez com o mata-moscas. A próxima coisa que viu foi a mão do pai abater-se sobre ela, a segurar o pequeno espelho da cómoda como se fosse uma raquete de pingue-pongue. Depois o espelho acertou-lhe no queixo e sentiu a aresta cortante do vidro. O espelho estilhaçou-se e os dentes de Amy cerraram-se com uma força que a fez ver estrelas. Cambaleou e ouviu vagamente Maisie a gritar com o pai, a implorar-lhe para parar antes que a matasse. – Está bem, está bem – gritou Zack, agora com um tom de medo na voz. – Não queria magoá-la! – Maisie puxou-o para fora do quarto e o próximo som que Amy ouviu foi a porta a bater. Perdeu a força nas pernas e caiu de joelhos no chão. Olhou para o vazio durante alguns segundos mas, assim que recomeçou a pensar com clareza, levantou-se e, meio entorpecida, encheu uma mochila com tudo o que conseguiu enfiar lá dentro. Foi buscar uma toalha à casa de banho, porque o sangue estava a escorrer-lhe pelo pescoço. Sentia a cara toda a latejar. Sentou-se no parapeito da janela e fez um esforço para respirar lentamente até a sensação de náusea passar. Depois colocou a mochila às costas e saiu pela janela aberta.

Sebastien estava a aproveitar as duas últimas semanas no hospital para fazer o máximo que conseguisse. Às quatro da manhã acordara, sem precisar de despertador, para ler algumas publicações médicas ainda na cama, com a máquina de café em cima da mesa de cabeceira preta e um prato com pequenas tartes de maçã quentes no colo. Às cinco já estava na rua, vestido apenas com calções azuis e ténis de corrida, a correr com passadas largas pelas ruas de magnólias gigantes, entre os relvados perfeitos das casas da zona mais exclusiva de Atlanta. Às seis menos um quarto parou em frente de um edifício coberto de trepadeiras, onde ficava o spa e ginásio do complexo residencial. Aí cedeu a um impulso insensato. Protegeu as mãos com fita adesiva, enfiou as luvas e passou os trinta minutos seguintes a bater num saco de boxe. Era um risco perigoso para as mãos, mas foi cuidadoso. Se a medicina era a sua mulher, o boxe era sem dúvida a sua amante, e Sebastien amava ambas. Na adolescência chegara a vencer alguns campeonatos amadores e até falara em subir ao ringue como profissional, para desgosto do pai. Porém, o boxe nunca o desviara realmente do sonho de ser médico. Dava-se por satisfeito por saber que possuía todas as qualidades certas para ser um grande pugilista – a autodisciplina, a resistência à dor, a raiva agressiva. Às seis e meia já tinha tomado banho, feito a barba e vestido as calças cinzentas feitas à medida, uma camisa azul e mocassins de pele feitos à mão. Quando chegasse ao hospital, trocaria esta indumentária pelas calças e túnica largas de cirurgião e sapatos confortáveis. Às seis e trinta e cinco passou pelo guarda na entrada do complexo residencial, com uma pasta em cima do banco do Ferrari, ao seu lado. Às sete já estacionara o Ferrari no parque dos funcionários, atrás do elegante tributo à arquitetura dos

anos 50 que era o Hospital Universitário Gregory. Menos de uma hora depois estava numa sala de operações no quinto piso a preparar-se para dar assistência a um respeitado cirurgião mais velho numa operação de enxerto bypass na artéria coronária. Era a primeira das cinco cirurgias em que participaria nas próximas nove horas. Conseguiu visitar Tom durante alguns minutos e contou-lhe histórias da antiga floresta bretã, Broceliande, onde Merlim, o feiticeiro do rei Artur, fora aprisionado por um encantamento e onde se encontrava ainda preso. Tom ficou sem palavras. Sebastien deu por si ansioso por lhe contar mais. Depois de um jantar rápido na cantina do hospital, saiu e, no crepúsculo de mais um dia de verão, dirigiu-se ao pequeno auditório no complexo da escola de medicina do hospital, onde passou as três horas seguintes num seminário sobre corações artificiais. Os investigadores da universidade tinham implantado as primeiras unidades experimentais em vários bezerros, e o sucesso obtido estava a causar grande entusiasmo entre cirurgiões e cardiologistas. Regressou ao hospital à meia-noite e foi ver novamente vários dos seus pacientes, incluindo Tom. O rapaz dormia, o peito subindo e descendo, os braços presos à estrutura da cama, a vida presa às máquinas que o rodeavam por cordões umbilicais de plástico ligados às suas veias. A ficha de Amy Miracle estava na mesa de cabeceira ao lado da cama. Depois Sebastien sentou-se numa pequena salinha reservada para os médicos e, com um copo de café forte na mão, dedicou-se à última tarefa do dia, rever as fichas dos pacientes. Cinco minutos mais tarde, foi chamado por um segurança. Uma pessoa conhecida perguntava por ele lá em baixo, no átrio. Amy Miracle. Encontrou-a encolhida nas sombras, num dos cantos do opulento átrio do hospital. Sebastien sentia-se simultaneamente preocupado e aborrecido. Tentara afastar-se da tentação, mas a tentação seguira-o. Decidiu repreender Amy por ter perdido o controlo dos seus sentimentos. Porém, ao olhar melhor para ela, ficou demasiado confuso para fazer outra coisa a não ser estudar a estranha aparência da rapariga enquanto atravessava o átrio. Amy estava escondida ao lado de uma planta e não avançou ao seu encontro dele quando o avistou. Era meio da noite, mas trazia postos os óculos escuros engraçados. Tinha um cachecol vermelho enrolado à volta da cabeça e do pescoço, deixando de fora apenas os olhos, o nariz e a boca. – Posso ajudar-te? – perguntou Sebastien, de testa franzida, quando parou em frente dela. – Não queria que o fossem chamar à sala de operações! Sebastien apercebeu-se de que ainda não mudara de roupa. – Não foram. O que se passa? Amy olhou em volta, como se estivesse com medo de que alguém ouvisse a conversa no átrio deserto. Depois explicou, em voz baixa e cansada: – Preciso de um médico. Pensei que talvez me pudesse ajudar. – Fez uma pausa e mordeu o lábio. – Tenho dinheiro. Posso pagar. – O que se passa?

– Eu… ah… cortei o queixo. Só preciso de uns pontos. Pensei que pararia de sangrar, mas não. – Anda cá, senta-te. – Pegou-lhe na mão, que estava fria e a tremer, e conduziu-a rapidamente a um sofá, sentando-se ao seu lado. – Deixa-me ver. Amy encolheu-se um pouco quando ele puxou o ridículo cachecol para baixo. Um pedaço de gaze preso com fita-cola transparente, do tamanho de uma mão, cobria-lhe a parte inferior do queixo. A gaze estava tão ensopada em sangue que já começava a passar entre as tiras de fita-cola. Com cuidado, Sebastien retirou o penso improvisado: por baixo havia um corte fundo, curvo, com quase quatro centímetros de comprimento. – Mon Dieu! Porque não foste às Urgências? – Não quero responder a perguntas. – Que tipo de perguntas? – Não importa. Pode coser-me? Por favor? Sem dizer a ninguém? Sebastien voltou a colocar o penso e viu-a esforçar-se por não mostrar dor. Com um gesto rápido, tirou-lhe os óculos escuros e olhou para a feia nódoa negra ao lado do olho direito. O canto exterior do olho estava tão inchado que Amy já mal o conseguia abrir. A rapariga baixou a cabeça e protegeu o rosto magoado com a mão. – Não faça perguntas. Pode coser-me o queixo ou não? – Estás com medo de quê? Meteste-te em sarilhos com a polícia? – Não! – Obviamente assustada, Amy levantou-se de um salto. – Esqueça. Desculpe ter vindo incomodá-lo. – Para. Acalma-te. – Pegou-lhe nas mãos e puxou-a para baixo novamente. – Senta-te e conta-me o que se passou. Tentarei ajudar-te. Ela vacilou, com ar trágico e confuso. Com gentileza, Sebastien puxou-a até estar outra vez sentada no sofá. – O meu pai… bateu-me – murmurou, com as palavras carregadas de vergonha. – Mas eu bati-lhe primeiro. E se alguém o denunciar à polícia? Não quero que ele vá para a prisão. – A voz falhou-lhe. – Mas também não quero ser presa. – Oh, Miracle, isso nunca aconteceria. – Sebastien ficou calado um instante, a lutar contra a fúria e uma sensação de proteção em relação àquela rapariga, sentimentos que o surpreenderam pela sua intensidade. – Espero que o tenhas magoado. – Acho que não. Bati-lhe com um mata-moscas. – Soltou uma risada histérica. – Um mata-moscas? Foi assim que lhe bateste primeiro? E ele fez-te isto? Amy acenou. – Estava muito zangado comigo. Nunca me tinha batido. – O que é que o provocou, desta vez? – Eu… Oh, bolas. Isto parece uma das telenovelas que a minha madrasta vê. Que raiva. – Olhou para o chão e fechou os olhos, respirando fundo. – Acabei com o meu namorado. O meu pai achou que era uma

estupidez. – Porquê? – Julga que vou ser um fardo lá em casa se não me casar já. Tentei explicar-lhe que consigo sustentarme sozinha, mas ele não acreditou. – Então saíste de casa? – Sim. Oh, sim. – Conseguiu rir, mas era uma risada trémula e carregada de medo. – De vez. Tenho algum dinheiro nas minhas poupanças. Amanhã vou a Athens e arranjo um quarto num motel. Depois vou à procura de trabalho. Um trabalho à noite. Vou continuar a trabalhar nas vinhas até ao fim da colheita. – Onde vais ficar esta noite? Tens amigos? – Sim. Claro. – Quando ele olhou para a mochila aos pés dela e depois a fitou de sobrolho franzido, Amy cedeu e admitiu: – Quero poupar dinheiro. Vou passar a noite num café que esteja aberto. Se for comprando café e tarte, deixam-me lá ficar. Sebastien pôs-se de pé e ajudou-a a levantar-se com gestos bruscos. – Tenho um quarto de hóspedes em minha casa. E se ficares lá esta noite? – Está a brincar?! – Porquê? Temes pela tua reputação? Ou devo temer pela minha? – Não! Céus… É só porque… não estava à espera. – Os seus olhos encheram-se de lágrimas. – Não precisa de uma campónia adolescente a atrapalhá-lo. A ternura que sentia pela rapariga era perigosa, e já estava a ficar arrependido da oferta impulsiva que lhe fizera. – Mademoiselle, tive um longo dia. Não estou com disposição para joguinhos de boa educação. Queres vir para casa comigo ou não? – Desculpe. Obrigada. Sim. Sim, fico em sua casa, é o que quero dizer. Céus, desculpe… – Se pedires desculpa mais uma vez, coso-te a boca. – Pegou-lhe na mochila e colocou-a ao ombro. – Vou lá acima buscar algumas coisas de que preciso para tratar do teu queixo. – Deu uma palmadinha na mochila. – Isto vai comigo, para ter a certeza de que ainda aqui estarás quando eu voltar. De ombros caídos, Amy acenou com a cabeça. – Obrigada por tudo. – Diz-me… Porque decidiste não casar com o teu namorado? A rapariga levantou o queixo ensanguentado e a sua expressão endureceu. – Isso é um assunto privado. – Ah! Finalmente encontrei alguma coluna vertebral. Bon. Com um aceno de aprovação, afastou-se.

Apesar de atordoada e magoada, Amy não conseguiu ocultar a curiosidade em relação à casa do médico. O interesse era bom sinal, e Sebastien, para a distrair, até o encorajou. Depois de lhe limpar e

coser o queixo, Amy tomou um duche e colocou um vestido amarrotado. A seguir, seguiu Sebastien pela casa, com o olho bom muito aberto e atento. O quarto e o escritório dele ficavam no piso superior. Em baixo havia a cozinha, dois quartos de hóspedes e uma sala espaçosa que dava para um pequeno pátio com espreguiçadeiras cinzentas e uma selva de plantas bem cuidadas. Amy olhou para as divisórias da sala, feitas de blocos de vidro translúcido iluminados por dentro. A um canto, uma escada flutuante levava ao piso de cima, e os corrimões metálicos cintilavam sob a luz dos globos brancos aplicados nas paredes também brancas. As mesas eram oblongas, de madeira clara, e as cadeiras de linhas simples. Havia algumas peças de vidro esculpido da década de 30 e diversos posters a preto e branco emoldurados, que anunciavam combates para o título travados muito antes de Sebastien ter nascido. Amy tocou num aparador preto, lacado e cromado, e a seguir no armário laminado alto onde ele guardava um rádio-fonógrafo antigo. Levantou o auscultador de um telefone de 1935 e escutou com atenção, como se tivesse medo de que fosse apenas uma peça decorativa. – Sim, estou a ouvir o sinal – disse. Sebastien pensou que a casa devia parecer-lhe muito fria e estranha. Deu por si a justificar-se, algo que nunca sentira necessidade de fazer antes. – É ao estilo anos trinta – explicou. – Há quem lhe chame art déco. – Depois, com um sorriso irónico, acrescentou: – Mas nós, os puristas, chamamos-lhe Depressão Moderna. Eleva a simplicidade ao nível da arte. Muitas pessoas acham pouco acolhedor. Amy franziu a testa, perdida nos seus pensamentos. De súbito, o seu rosto iluminou-se e declarou: – Já sei onde vi um sítio parecido! Num filme dos irmãos Marx! – Nunca fui comparado com os irmãos Marx. – Não queria… – Não peças desculpa. É um fascínio que eu próprio tenho dificuldade em explicar. Suponho que gosto do estilo por ser simples e pouco emotivo… Faz-me lembrar um hospital. – Encolheu os ombros. – O tipo de ambiente onde passo a vida. Ela abanou a cabeça. – Não! O que eu queria dizer é que já vi salas semelhantes em filmes antigos. Faz-me lembrar o Fred Astaire e a Ginger Rogers. É romântico. – Grandes bandas de música. O swing. – W. C. Fields em The Big Broadcast of 1938. – Jazz e blues. – Eleanor Powell e Bubby Berkeley. A banda desenhada Dagwood and Blondie. Sebastien aplaudiu. – Clark Gable. Mae West. – Naquele tempo era tudo tão… tão sofisticado, mas inocente. – Os olhos cansados de Amy iluminaram-se com humor. – Exceto… Sabe que mais? – Agitou a mão para abranger o espaço à sua

volta. – Em muitos filmes eram os vilões que viviam em casas como esta. Moderníssimas, elegantíssimas. – A sua voz tornou-se absurdamente solene. – Em particular, as mulheres malvadas. – Mulheres malvadas? – Sabe… As mulheres de moral duvidosa. As miúdas dos gangsters! Já as boas mulheres – levou a mão ao peito e franziu os lábios numa expressão pudica – viviam sempre em casas com cortinas de renda e sofás com estofos coloridos. Sebastien soltou uma risada. Ela tinha razão. – Nesse caso, suponho que és a miúda de um gangster… pelo menos temporariamente. – Não! Você é o Fred e eu sou a Ginger. Tem os sapatos de dança? Sebastien apercebeu-se de que lhe sorria. Nunca ninguém olhara para além da fachada da sua casa. – Vem daí, Ginger. Eu mostro-te a cozinha. Quando entraram na divisão, Amy examinou silenciosamente os armários e os balcões brancos, e passou os dedos pelos estores da janela em cima do lava-loiça. – Não tem pó. Eu sabia. – Tenho uma empregada muito compulsiva. Amy cheirou delicadamente as ervas aromáticas que cresciam em vasos de cerâmica no parapeito da janela, estudando inclusive os tachos e panelas de cobre reluzentes pendurados sobre o fogão enorme e complexo. – Provavelmente cozinha mais do que hambúrgueres aqui. – Sim. Como todos os franceses, sou bastante dotado para as artes culinárias. Tens fome? Amy abanou a cabeça. Sob a luz forte da cozinha, Sebastien reparou na exaustão que perpassava no rosto pálido e magoado e que se estendia também ao corpo da rapariga. – Acho que me vou deitar. Quando a viu cambalear um pouco, pegou-lhe no cotovelo e conduziu-a por um corredor onde as paredes de cor creme, nuas, elevavam a simplicidade a um novo patamar. Amy parou a observar as fotografias emolduradas de carros antigos e invenções bizarras. – A maioria das pessoas tem fotografias de família. Você tem fotografias de coisas e eu de estrelas de cinema e de televisão. Desconhecidos. Suponho que é igualmente mau. Sebastien ficou sem saber o que responder, já que ela não o dissera em tom sarcástico ou insultuoso. Pensaria que ele se sentia sozinho? Que não era amado? Que não era digno de amor? Antes que pudesse responder, os seus olhos viram algo azul por baixo do relógio simples que ela tinha no pulso. – O que é isso na tua pele? – O quê? Oh, nada. Um sinal de nascença. – Amy recuou em direção à porta do quarto de hóspedes, uma divisão elegante e despojada, com mobílias brancas lacadas e uma colcha de cetim branco na cama. – O meu pagamento, mademoiselle, por ter cosido esse teu queixo teimoso, é ver o que tens tatuado no pulso. Ela estacou, de testa franzida; depois puxou o relógio um pouco para cima e esticou o braço.

– É um coração com as letras do meu apelido à volta, em círculo. Foi uma amiga do meu pai, que era cartomante numa feira, que a fez quando eu tinha uns cinco anos. Disse-me que era um amuleto contra o mal. Não fui eu que pedi, está bem? Não pertenço a nenhum gangue. É a minha única tatuagem, está bem? Tento mantê-la escondida. – Não precisas de ficar na defensiva. – Pegou-lhe na mão e estudou o coração grosseiramente traçado, que parecia esbatido. Incomodava-o pensar numa criança permanentemente marcada pela superstição. Depois pensou que as orações da mãe aos santos e a sua obsessão pela astrologia o tinham marcado de forma menos visível, embora igualmente poderosa. – Precisas de um transplante. Ela estremeceu com o toque mas não retirou a mão. Encostou as pontas dos dedos à palma da mão dele com uma naturalidade inesperada. – Fazemos uma troca – sugeriu baixinho. – Coração por coração. Cicatriz por cicatriz. Abalado com a intensidade inesperada da voz dela, Sebastien ficou a vê-la desaparecer no interior do quarto de hóspedes.

Às cinco horas da manhã seguinte estava sentado na ilha da cozinha, a beber um café forte, ainda ensonado, quando Amy entrou, em bicos de pés. Vestia calções de ganga, uma t-shirt e ténis. Trazia na mão o chapéu de palha e os óculos de sol. Ele usava um roupão de seda azul, curto. Amy estacou abruptamente ao vê-lo instalado num banco alto, com as pernas compridas e nuas cruzadas e o roupão aberto a mostrar a maior parte do peito. – Desculpe… isto é, com licença – conseguiu balbuciar, enquanto corava. – Entra. Pensei que dormisses até mais tarde. Sebastien mudou para uma postura mais formal e fechou o roupão. Por baixo da seda fresca, estava tão duro que quase doía. Não era invulgar que tal lhe acontecesse na presença de uma mulher desejável, mas naquele caso, quando combinado com as suas emoções, era perigoso. Sentiu a satisfação encher-lhe o peito, apenas por ver o fascínio tímido com que ela o fitava. O seu rosto, apesar das nódoas negras e da tristeza, tinha um certo charme atrevido; não era bonita, na verdade, mas Sebastien não conseguia tirar os olhos dela. Amy sentou-se do outro lado do balcão, à frente dele, e pousou as coisas em cima do fogão fechado. – Não posso dormir até tarde. Tenho de sair daqui a meia hora se quero chegar a horas ao trabalho. – Deu uma palmada na testa e fez uma careta. – Esqueci-me! Deixei a motorizada no hospital! Quando é que sai? – Já passava das duas da manhã quando te deitaste, e tens a cara muito inchada. Como pensas fazer uma hora de motorizada nesse estado? – Eh! – exclamou Amy, em tom cortante. – O mundo não ajuda os preguiçosos. Agora estou por minha conta e não vou estragar tudo. – Admiro a tua coragem, mas vou dar-te um dia de baixa. São as ordens do médico. Também sou o teu

patrão, lembras-te? Um dia de baixa paga. Agora volta para a cama. – Apontou para o molde de waffles ao lado do fogão. – Ou toma primeiro o pequeno-almoço, e depois volta para a cama. Ela uniu as mãos e fitou-as com ar obstinado, enquanto pestanejava para conter as lágrimas. Com o inchaço no olho direito, era penoso de ver. Tinha o queixo avermelhado e Sebastien conseguia ver o princípio da costura. Não soltara um «ai» enquanto ele a cosia. – Isto é uma daquelas situações de nadar ou ir ao fundo – murmurou, com voz trémula. – Isto de estar sozinha, quero eu dizer. Não posso aceitar a sua ajuda. – Riu-se. – O velho Beaucaire havia de pensar lindas coisas de mim se lhe ligasse e dissesse que estava consigo. – Beaucaire pensará aquilo que eu lhe ordenar. É um dos meus privilégios como patrão dele. – Não posso… – Hoje não vais trabalhar, Amy. Agora dá-me a resposta correta: «Está bem, Sebastien.» – Sebastien? – murmurou ela, e os seus olhos iluminaram-se um pouco. – Não se importa que o trate pelo primeiro nome? – E por tu. Seria terrivelmente formal se me tratasses de outra forma depois de me teres visto sem outra coisa vestida que não o roupão. – Sem outra coisa… – Tapou os olhos com as mãos, atrapalhada, e riu-se. – Um de nós está embaraçado, e não é você… tu… de certeza. – Quanto ao pequeno-almoço… – Está bem, Sebastien, eu fico, por enquanto. É melhor ir dormir. Posso chamar um táxi mais logo, para ir buscar a motorizada ao hospital, e depois vou procurar um bom motel em Athens. Sebastien esticou os braços e pegou-lhe nas mãos, com um nó na garganta. Coragem. Esta manhã ela estava a funcionar à base unicamente de brio, mais do que ele alguma vez esperara. – És uma pessoa muito forte e determinada – disse-lhe a contragosto. – Muito madura para a tua idade. Bravo! Mas também tens de ser sensata. Escuta! – Sacudiu-lhe as mãos a fim de lhe chamar a atenção, pois os olhos dela estavam a fechar-se. – Sê sensata. Aceita ajuda quando precisas. – Sebastien suspirou com a ironia de estar a dar um conselho que ele próprio nunca seguira. – Fica aqui mais uma noite. Endireitou-se e pensou no que iria fazer com aquela jovem incrível, e se conseguiria não a magoar. – Só volto depois da meia-noite. Ninguém te incomodará. Fica aqui – repetiu, selando o destino de Amy. – Sinto-me tão assustada. Cansada. Confusa. Que infantil! – Não. Qualquer pessoa estaria assustada. Falamos sobre o teu futuro mais tarde. Agora vai descansar. Contornou o balcão, ajudou-a a descer do banco e encaminhou-a para o quarto de hóspedes. Pelo estado dos lençóis, duvidou que tivesse dormido muito, o que não o surpreendia. O pai lançara-a aos lobos e ela estava aterrorizada. Sebastien apertou-a contra si e beijou-lhe o cabelo. – Vai correr tudo bem, Miracle – murmurou.

Ela acenou, com a cabeça encostada ao peito dele. – Confio… em ti. Mas não demasiado, avisou-a ele, silenciosamente. Pousou-a na cama, tapou-a e saiu do quarto o mais depressa que conseguiu.

Capítulo 5

Sebastien fora longe de mais. Aquela atenção flagrante para com uma rapariga que não passava de uma trabalhadora braçal era imperdoável. Pio Beaucaire girou a cadeira pesada e olhou para a parede de fotografias. As imagens da elite cultural do Velho Mundo eram o seu santuário. As vinhas dos de Savin. O château do século XV. O comte de Savin de pé à frente do edifício, orgulhoso, como deve estar quem sabe o valor do dever e da tradição. O comte governava a família com mão de ferro porque compreendia que a honra, a disciplina e a obediência eram as marcas da nobreza. Pio apertou os braços da cadeira. A sua própria família servia os de Savin há gerações. Era um serviço orgulhoso, leal. Ele e o comte de Savin respeitavam as respetivas posições no mundo, partilhando um amor muito francês pela ordem e pela continuidade. Há muito que Sebastien deixara passar a altura de reconhecer o seu lugar na ordem da sociedade. Afinal, fora sempre o filho mais velho da família a gerir os negócios: o facto de Sebastien ter negado o seu dever durante tanto tempo era um tributo à sua força de vontade. Era obstinado, mas isso era uma boa característica. Pio gostava muito dele e, de certa forma, sentia-se orgulhoso. Quando o seu espírito amadurecesse – quando fosse domado – Sebastien daria crédito ao nome do pai. Pio nunca conseguira compreender por que motivo o comte não esmagara a rebelião quando Sebastien era mais novo: no fim de contas, nunca permitira qualquer indício de insubordinação nos dois mais novos, Annette e Jacques (infelizmente, era um inútil desde que nascera). Pio supunha que o comte fizera algumas concessões ao seu primogénito por causa da tragédia. Um homem que perdera um filho tinha mais tendência para o sentimento e uma maior necessidade de tolerar os defeitos do único varão importante que lhe restava. Todavia, aquela situação não podia continuar assim muito mais tempo. Embora nada pudesse alterar a decisão de Sebastien de passar os próximos dois anos em África, depois disso o médico não podia continuar a ignorar as suas responsabilidades em casa. Ninguém – muito menos uma rapariga inconveniente – podia encorajá-lo a regressar à América. Sebastien era imprevisível. Esta poule jovem e tímida podia não significar nada para ele. Por outro lado, não era o tipo de mulher que ele procurava habitualmente, o que podia ser mau sinal. O comte tinha de ser informado imediatamente da situação. Pio estava certo de que ele saberia o que fazer. Aliás, como sempre.

Dois dias mais tarde, Amy ainda continuava em casa de Sebastien, que saía do hospital todos os dias às nove da noite para ainda conseguir ter algumas horas na companhia dela antes de dormir. Pouco a pouco, a jovem foi-se abrindo e ele ficou a saber tudo sobre o pai dela: a bebida, as alterações de humor, o passado no circo, a tirania. Amy era muito mais do que a soma das suas partes tímidas. Adorava ler, tinha uma excelente intuição em relação às pessoas, era uma solitária – um pouco como ele próprio – e, acima de tudo, uma observadora atenta do mundo à sua volta. Era também uma sonhadora ansiosa, com uma forma excêntrica de recriar as suas fantasias. Uma manhã, ao pequeno-almoço, encostou um croissant ao ouvido, como se fosse uma concha, e declarou em tom solene: – Estou a ouvir Paris. Sebastien rira-se até às lágrimas. Uma noite, enquanto vagueava pela sala a acariciar as mobílias modernas e de linhas aerodinâmicas, Amy observou: – Nesta casa, parece que está tudo a caminho de algum lugar, e que quer lá chegar depressa. Mais desconcertante ainda era a maneira como Amy o via. Quando Sebastien e ela falavam, a rapariga ouvia-o com atenção; porém, inclinava a cabeça para o lado, como se estivesse a tentar encaixálo no resto do seu mundo, um lugar que estava ligeiramente torto. Três noites depois de ter saído de casa, Amy ligou ao pai. Recebeu um vago pedido de desculpas mas nenhum convite para voltar. A seguir ao telefonema saiu para o pequeno pátio e sentou-se, silenciosa, numa espreguiçadeira, rodeada pela escuridão quente do verão, até que Sebastien a convenceu a falar. Não era que quisesse voltar para casa, explicou, mas teria sido bom ouvir o pai pedir-lhe que o fizesse. Sebastien sentou-se à beira da cadeira e abraçou-a. Amy soltou um som triste e satisfeito e apoiou com cuidado o lado não magoado do rosto no ombro dele. Quando ele começou a acariciar-lhe o cabelo, ela soltou uma exclamação e, com a adoração rápida e mortífera dos inexperientes, beijou-o no canto da boca. Sebastien estremeceu como se nunca tivesse sido beijado, e percebeu que tinha de se afastar imediatamente dela antes que esquecesse todo o bom senso. – Não queria que ficasses zangado – proferiu a rapariga baixinho, depois de ele estar do outro lado do pátio, a olhar para as estrelas por cima dos muros caiados. Sebastien virou-se e endireitou as costas. Estava na altura de pôr fim àquela charada doméstica. – Esta sexta-feira é o meu último dia no hospital. Já podia ter partido há um mês; o meu contrato acabou oficialmente em junho. Fiquei porque não tinha qualquer interesse em tirar um mês de férias antes de deixar os Estados Unidos. – Fez uma pausa e viu-a arregalar os olhos à medida que compreendia. – De sexta a uma semana parto para África, onde vou trabalhar num hospital. E não voltarei. Depois de um momento de choque, Amy baixou a cabeça e fechou as mãos sobre o material cinzento e fresco da almofada da espreguiçadeira. – Achas que eu estava à espera de que continuasses a tomar conta de mim? É por isso que me estás a dizer isso? – Sim.

Ela ergueu a cabeça e olhou para ele. As lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto mas os olhos estavam zangados. – Não sou estúpida. Sei como amar alguém sem estar à espera de ser correspondida. Sebastien olhou para ela. Amy poderia ter sido uma boa cirurgiã; sabia como ir direta ao fulcro da questão. A sua lógica brilhante abandonou-o; o bisturi de Amy extraíra todo o pensamento racional. – Nesse caso, és muito sábia – afirmou, por fim. – Essa é a melhor forma de amar. – Não, não é, mas é tudo o que consegui, até agora. – À medida que te fores tornando mais madura, talvez percebas que é melhor que as relações sejam unilaterais… para o teu lado, claro. É muito mais simples assim. – Não, não. – Amy limpou as lágrimas das faces magoadas e fez uma careta de dor. – É triste viver assim. – Levantou-se de um salto, agora sem conseguir controlar-se, e declarou: – Boa noite. – Boa noite – respondeu Sebastien, sério. Confusão e autocensura não eram emoções que ele gostasse de sentir. Amy fitou-o com ar grave. – Nunca te magoas? – perguntou. Ele acenou lentamente. Ela ergueu a mão e passou a ponta do dedo pela cicatriz que ele tinha no queixo. – Antes de partires, talvez possas contar-me como fizeste isto – murmurou. – Tu e eu somos agora parecidos. Tenho pena de nós os dois. Depois de Amy se ir deitar, Sebastien ficou muito tempo na varanda, com as emoções num caos. Uma voz insensata murmurou: Leva-a contigo. Ensina-lhe tudo o que sabes. Deixa-a ensinar-te tudo aquilo que já esqueceste. Levou os dedos à cicatriz no queixo e praguejou entre dentes. Não, pensou, amargamente decidido. Fora um idiota por se envolver com Amy, uma jovem vulnerável que nunca encaixaria no seu mundo. Sebastien recusava-se a ser como o pai, implacável e egoísta, disposto a arruinar a vida de outrem para satisfazer um capricho momentâneo. Não se condenaria a ver morrer novamente a magia.

Tinha dez anos e a sua vida era maravilhosa. – Maman! – chamou, em tom autoritário. Era importante e amado, e sabia-o. – Quero que vás esquiar esta tarde! O Antoine, a Bridgette e eu vamos ensinar-te! A mãe ergueu os olhos do mapa astral que tinha aberto em cima da bonita secretária trabalhada. Atrás dela, uma grande janela envolvia-a num halo de sol quase renascentista. Os Alpes cobertos de neve erguiam-se à distância, escarpados e majestosos. O parapeito exterior da janela estava coberto de neve e, um pouco mais além, começava a floresta branca. Sebastien nunca tinha visto nada mais belo do que a mãe, com os seus cabelos escuros, em frente daquela janela. Ela alisou a camisola branca e simples e a sua mão parou por um segundo no crucifixo de ouro que tinha ao pescoço, numa corrente grossa. Tocou também nos símbolos dos seus santos mais importantes – mais de uma dúzia – presos nos elos de um segundo colar de ouro. Depois puxou a saia azul-escura para

baixo e pousou as mãos no colo, indicando que estava preparada para o ouvir pacientemente. A maman era uma excelente ouvinte, embora parecesse muitas vezes confusa quando ele lhe falava sobre os estudos. Deixara a escola ainda muito pequena, e era tão antiquada que nunca vestia calças, nem mesmo em casa, com a família. Às vezes, o papá mandava-lhe roupas de grandes estilistas de Paris e obrigava-a a usá-las, mas nunca calças. Havia ocasiões em que os comentários do papá sobre a roupa dela a faziam chorar. Hoje, porém, parecia contente. Sorriu perante a tentativa do filho de a tirar do chalé. – Não, Sebastien, eu não gosto de shush-shush. O seu sotaque bretão acentuava a primeira sílaba do nome do filho. Ele não conhecia ninguém que falasse francês como a sua maman, ou que inventasse palavras novas como shush-shush. Não conhecia ninguém que trabalhasse em astrologia ou rezasse a tantos santos. O papá chamava-lhe uma bruxa católica, mas a maman não era bruxa nenhuma. A maman era especial. – Eu ensino-te a ser moderna, maman – prometeu-lhe. Com uma risada estranha, a mãe aproximou-se dele e começou a tirar os borbotos da sua camisola de lã colorida. Sebastien era quase tão alto como ela, por isso não precisou de se inclinar muito para lhe beijar a testa. – Não quero ser moderna – respondeu. – Não sou suficientemente inteligente. – Claro que és! – Sou suficientemente inteligente para ser uma boa mãe, sim? – Sim. – É o que basta, para mim. – Apertou-o contra si e Sebastien, com o rosto apoiado no ombro macio, sorriu. Antoine e Bridgette entraram na sala nesse momento e os três aliaram-se contra ela. A maman tinha de vir com eles às encostas nessa tarde, nem que fosse apenas para ver. O papá ficaria contente de a ver lá, tinham a certeza. Talvez assim ele começasse a passar menos tempo das férias com os seus velhos amigos na aldeia. – Eu vou ver-vos – concordou ela, por fim –, se os pequeninos não precisarem de mim. – Oh, maman, os bebés têm amas para cuidar deles – declarou Bridgette, com alguma impaciência. Sebastien deu um beliscão na irmã, que soltou um gritinho. Tinha dezasseis anos e alguém tinha de impedir que se tornasse demasiado arrogante. – És mau! – gritou-lhe Bridgette, sorrindo-lhe um segundo depois. – Vou pedir aos santos da maman para que torças o tornozelo quando fores esquiar. – Chiu! Os meus santos são bons – afirmou a maman em tom firme. Antoine, com dezoito anos de idade e quase tão alto como o pai, agarrou-a pela cintura e fê-la rodopiar até ela se desatar a rir, para alegria de Sebastien e Bridgette. – Então pede-lhes que façam com que as raparigas vejam como eu sou atraente! – Sim, seria mesmo preciso a ajuda dos santos para realizar esse milagre – comentou Bridgette. Sebastien riu-se quando Antoine correu atrás dela e ambos saíram da sala. Eram maravilhosos, os seus

irmãos mais velhos. Toda a gente sabia que Antoine era o preferido do papá porque era o primogénito e estaria à frente dos negócios um dia; mas Antoine nunca se portava como o favorito, e Sebastien amava-o por isso. Também adorava Bridgette, e a irmã mais nova, Annette, que tinha quatro anos, e o irmão mais novo, Jacques, apesar de Jacques ser um bebé muito barulhento. Sebastien sentia-se sortudo por ter uma família tão boa e uma vida tão maravilhosa, cheia de viagens, passatempos e escola, embora o pai passasse muito tempo em Paris e a mãe às vezes falasse sozinha, quando estava demasiados meses no seu château no Loire sem ver o papá. Horas depois, enfiaram-se todos na pequena carrinha que o pai tinha no chalé para as excursões de esqui. Era Antoine que conduzia, com a maman sentada ao seu lado, enrolada num bonito casaco de peles, com as pernas e os pés delicados protegidos por botas de cano alto. Sebastien ia no banco de trás, ao lado de Bridgette. Olhou divertido para a camisola justa da irmã até que esta ameaçou torcer-lhe o pescoço. Enquanto Antoine conduzia pela estrada sinuosa que levava à estância na base da montanha, a maman olhava em silêncio para a janela, aparentemente perdida em fantasias. Meia hora mais tarde chegaram ao parque de estacionamento empedrado da grande estância, no centro de uma pequena zona comercial muito distinta. Philippe de Savin, alto e atraente, saiu da estância quando eles estavam a atravessar o terraço. Com ele vinham várias pessoas que Sebastien recordava vagamente das festas na sua casa de Paris. De súbito, Antoine ficou sério e sussurrou a Sebastien para dar a mão à maman. Quando o fez, Sebastien sentiu a mão dela a tremer. Assustado, ergueu os olhos para o rosto pálido e tenso da mãe. Ela fitava uma das mulheres no grupo de amigos do papá com intensidade. – Madame la comtesse – disse, baixinho. – Não sabia que estava cá. A mulher cumprimentou-a com um aceno de cabeça, sem sorrir, e depois virou costas e afastou-se. O papá parecia zangado. Os outros amigos, de forma algo abrupta, retomaram uma discussão acerca do presidente dos Estados Unidos – alguns admiravam-no, outros não –, sugerindo levar tal conversa para o interior da estância e resolvê-la em redor de rum quente. Depois de todos se afastarem, o papá lançou à maman um olhar gelado. Ele parecia sempre tão forte e seguro; Sebastien queria ser assim, mas gostaria que o pai não fosse sempre tão severo. A mão da maman apertou a sua até o magoar. – Convidaste-a para aqui? – perguntou a mãe em tom amargurado. – Onde a tua família ia estar? O pai franziu o sobrolho. – Volta para o chalé, Gwenael. Girou sobre si próprio, de forma muito formal e militar – o pai fora um herói da Resistência durante a Segunda Guerra – e atravessou o terraço. Depois de ele desaparecer dentro da estância, a maman pareceu encolher. O olhar de Sebastien vagueou entre o rosto trágico da mãe, os olhos chorosos de Bridgette e a expressão furiosa de Antoine.

– O que foi? – perguntou. – Vocês todos sabem qualquer coisa. Digam-me. O que se passa com o papá? Antoine segurou-lhe no ombro. – Anda. Vamos buscar um chocolate quente para a maman. Bridgette, sentem-se as duas numa mesa. Sebastien protestou e arrastou os pés enquanto o irmão o conduzia na direção da estância. Quando olhou para trás viu Bridgette, abraçada à mãe, a dirigir-se a uma cadeira. – O que se passa? – perguntou Sebastien de novo, libertando-se da mão de Antoine. – Já não sou nenhum bebé. Não me trates como se fosse. Viu Antoine contrair os músculos do maxilar. – Está bem. Eu soube a verdade quando era apenas um ano mais velho do que tu. Entraram na estância pelas grandes portas trabalhadas com relevos de paisagens alpinas. A sala estava cheia de poltronas confortáveis e mesas de jogo. Os empregados moviam-se com elegância entre os hóspedes, que vestiam bonitas roupas de esqui. Alguns estavam reunidos à volta da grande lareira de pedra no centro da sala. Cheirava a fumo de lenha, álcool de qualidade e dinheiro. O papá e os seus amigos não estavam à vista. – Vem cá. – Antoine afastou Sebastien para um lado, onde ficaram a observar a multidão. – Ouve bem e tenta compreender. A maman ama o nosso pai, mais do que qualquer outra coisa neste mundo, ainda mais do que a nós. Compreenderás quando fores mais velho e a vires com os olhos de um homem. – Claro que ela ama o papá! E ele ama-a também! – Não. O papá tem vergonha dela, porque a sua família é de gente comum. Pensou que ela conseguiria adaptar-se aos amigos dele, mas a maman nunca aprendeu a fazê-lo. Não tem jeito para ser anfitriã de festas, pelo que não o pode ajudar a receber e a criar uma rede de contactos importantes para os negócios. A única coisa que ela consegue é criar filhos. Mas o papá não a pode deixar, porque sabe que a maman nunca lhe daria o divórcio. Ela é muito antiquada. Na verdade, às vezes acho que a maman nem sequer vive no mesmo século que nós. – Estás a mentir! Mentiroso! Porque teria ele vergonha dela? Antoine abanou-o, bruscamente. – Ela era apenas a filha de um pescador, que ele conheceu numas férias durante a guerra, uma boa rapariga católica que não se deitaria com ele a menos que fossem casados! O papá pensava que ia morrer na Normandia, por isso o casamento não duraria muito. Mas não morreu… e portanto ficou preso àquela rapariga bretã ignorante, sem classe para ser mais do que uma criada. A nossa maman. E a mim, um filho que ele não esperava. Assim, teve de viver com a sua decisão. Sebastien empurrou-o. – Como sabes tudo isso? – Foi o avô que me contou, antes de morrer. Velho cruel! Queria separar-nos da maman, fazer com que também tivéssemos vergonha dela. Explicou-me que ela enganou o papá para o obrigar a casar. Nunca contei isto a mais ninguém. Nós somos erros, compreendes? O papá gosta de nós, à sua maneira,

mas não ama a maman, e noutras circunstâncias nunca teria casado com ela. Só estão juntos por dever e foi-lhe dando filhos para a distrair da solidão! Por isso, todos nós somos apenas o resultado do erro do papá! Sebastien nem conseguia compreender tal ideia. A maman não era amada? Ele não era amado? Um erro? – Não gosto da forma como o papá gere as suas aventuras – declarou Antoine. – Desta vez, foi longe de mais. A comtesse apareceu, vinda de outra divisão, e os homens viraram-se para a admirar enquanto ela se dirigia a uma mesa e falava com os hóspedes lá sentados. Antoine soltou uma exclamação revoltada e começou a andar, fazendo um gesto a Sebastien para que o seguisse. A comtesse viu-os aproximarem-se e ficou tensa. Passou a mão, bonita e bem arranjada, pelo cabelo cor de trigo e brincou com as pontas onduladas caídas sobre os ombros. – Olá – cumprimentou em tom cauteloso, quando Antoine e Sebastien pararam à sua frente. Antoine fez uma vénia trocista. – Madame la comtesse, gostaria de lhe apresentar o meu irmão, Sebastien. Ele já não é um menino pequeno. – Que disparate vem a ser este? – perguntou a comtesse, impaciente. Antoine virou-se para Sebastien. – Meu irmão, apresento-te madame la comtesse. Eu fui para a cama com ela quando tinha catorze anos, mas agora ela dorme com o papá. É a mais conhecida das putas do nosso pai. A comtesse esbofeteou Antoine de forma rápida e eficiente, como se tivesse muita experiência a esbofetear quem a insultava. Sebastien olhou para ela, chocado. O papá colocara o seu zob dentro de outra mulher que não a maman? E aquela traição era mais um motivo para a infelicidade dela? – Se alguma vez voltar a dirigir a palavra à minha maman, mato-a – declarou Sebastien à comtesse. Ela soltou uma risada estridente e desviou o olhar dele para Antoine. – Não tenho qualquer necessidade de falar com a vossa maman. Um dia hão de compreender por que motivo o vosso pai precisa de mim. Ele honrou os seus erros. Que mais querem? – Ela não é um erro, sua puta! E eu também não sou! – gritou Sebastien. A sala silenciou-se. Todas as cabeças se viraram. Philippe de Savin saiu da divisão dos fundos e caminhou rapidamente entre a multidão. O rosto ostentava uma expressão tão feroz que as pessoas se apressavam a sair do seu caminho. A comtesse afastou-se quando ele chegou junto de Antoine e Sebastien. – Vocês são a minha vergonha – atirou-lhes ele, em voz baixa e mortífera. – Levem a vossa mãe e voltem para o chalé. Falarei com ambos quando chegar. – Castiga-me conforme a tua consciência ditar – pediu Antoine. – Mas deixa o Sebastien em paz. – Não – retorquiu Sebastien. Estava quase a chorar de raiva. – Já não me interessa nada do que ele possa dizer-me ou fazer-me. – Olhou diretamente para o pai. – Odeio-te! – Deu meia-volta e saiu com passo calculado e digno. Assim que passou a porta, contudo, correu para a mãe e para Bridgette. – Vamos

para casa beber chocolate quente – pediu-lhes, com voz trémula. A mãe fitou-o, horrorizada. – Oh, não. Não. Sebastien abraçou-a. – Não faz mal, maman. Adoro-te. Adoro-te. Antoine chegou pouco depois. Tenso e calado, conduziu-os a todos para a carrinha. A maman encolheu-se no banco da frente, com o rosto escondido nas mãos. Permaneceu imóvel até estarem a meio da estrada da montanha. Depois ergueu abruptamente a cabeça e olhou para a janela. – Para, Antoine. Para naquela curva. Quero ver o céu. Sebastien trocou um olhar confuso com Bridgette. Antoine parou a carrinha à beira da estrada e todos saíram, olhando para a mãe com nervosismo. – O céu, maman? – perguntou Antoine. – Oh, sim, sim! Venham ver! Antoine pegou-lhe na mão e subiram a estrada até à curva. Na parte exterior havia um parapeito estreito, protegido por uma barreira baixa de madeira. Do outro lado, a escarpa descia centenas de metros até um bosque. Como que hipnotizada, a mãe caminhou sobre a neve e parou junto da barreira. Ergueu a voz, na antiga língua bretã que só ela compreendia, mais parecida com a língua galesa do que com o francês. Por um momento, pareceu estar à escuta; depois endireitou os ombros. Com ar cansado, levantou a mão para o céu azul, para as montanhas, e finalmente para os filhos, quando se virou para eles. – Pedi a Santo-Ivo-da-Verdade1 para pôr o que é certo onde deve estar, e o que é errado também, e ele respondeu-me. Ficarei satisfeita. Venham cá, meus amores. Sebastien e Bridgette caminharam sobre a neve até junto dela e a mãe envolveu-os aos três nos braços esguios. Estavam todos a chorar, até Antoine. No meio das lágrimas, a maman riu-se, um riso demasiado alegre. – Deixem a vossa maman fazer qualquer coisa útil, para variar. Deixem-me conduzir o resto do caminho até ao chalé. – Maman – começou Antoine a protestar, em tom gentil. – Chiu! Deixa-a! – exclamou Bridgette com firmeza. Sebastien acenou. – Sim! Antoine cedeu com um encolher de ombros tenso e a maman dirigiu-se com passo confiante à porta do condutor. Antoine sentou-se ao lado dela. Bridgette voltou para o banco de trás mas Sebastien saltou por cima do banco e instalou-se no chão do porta-bagagens, onde costumavam levar os esquis. Precisava de pensar sobre tudo o que ouvira na estância e queria privacidade para o fazer. Sentia-se como se estivesse a sangrar por dentro. A mãe ligou o carro mas virou-se e estendeu as mãos para Antoine.

– O meu primeiro filho – disse, com ternura. – O teu papá e eu fizemos-te durante a guerra, três dias depois de nos termos conhecido. Aconteceu na noite em que nos casámos, na igreja da minha paróquia. – Sim, maman – respondeu Antoine, embaraçado. Depois ela virou-se para trás e pegou nas mãos de Bridgette. – A minha primeira filha. Eu queria tanto uma menina, e os santos deram-me esta beldade! Bridgette deu uma palmadinha na mão da mãe. – Também gosto muito de ti. A seguir a maman estendeu as mãos para Sebastien, que se pôs em pé e esticou os braços por cima das costas do banco, assustado por razões que não compreendia. Os olhos castanhos-escuros da mãe brilharam quando olhou para ele. – E tu… tu és a minha magia. Dei-te o nome do meu avô. Foste o único a quem o papá me deixou dar um nome bretão. Sebastien. Era o nome de um santo, sabes? – Maman, vamos para casa – pediu Sebastien. Ela acenou afirmativamente. – Sim. Sim! Sebastien sentou-se outra vez no chão e encolheu-se num canto atrás do banco. Já não se sentia tão crescido como na estância. Naquele momento, queria esconder-se como um menino pequeno. A mãe engatou a mudança da carrinha e pisou o acelerador. O solavanco inesperado atirou Sebastien para cima dos esquis. Tentou agarrar-se a alguma coisa enquanto as arestas o magoavam. Os pneus guincharam na estrada. Bridgette soltou um som horrorizado quando a carrinha derrapou. Sebastien foi atirado contra a porta de trás com uma força que o deixou sem fôlego. Aturdido, ouviu Antoine gritar: – Não, não, não, por favor! Sebastien bateu contra a parte de trás do banco quando a carrinha atingiu a barreira. Os gritos agudos de Bridgette encheram-lhe os ouvidos mas, por um segundo, tudo pareceu abrandar. Depois a madeira estilhaçou-se quando a barreira se partiu. As pontas das tábuas a roçar nos lados da carrinha eram como unhas num quadro negro. Sebastien dava voltas estranhas. O mundo estava de pernas para o ar. Algo lhe cortou o queixo. Ergueu as mãos, desorientado, e bateu na pega das portas de trás da carrinha. De súbito, estava a olhar para o céu azul. Estava a voar, mas quando uma nuvem o rodeou, parou. Meio inconsciente, ficou deitado alguns instantes. Tremia violentamente e apercebeu-se por fim de que estava deitado de costas num banco de neve. Com esforço, sentou-se, enquanto recuperava os sentidos. Tinha a parte da frente do casaco branco coberta de sangue e, quando levou a mão ao queixo, sentiu um golpe profundo. Muito abaixo dele, no fundo da encosta, a carrinha estava esmagada entre duas árvores, de lado, como uma casca retorcida. Sebastien começou a descer em direção ao veículo, a rebolar, a cair, a rastejar, dominado pelo terror.

– Maman! Antoine! Bridgette! Onde estão? Contornou a carrinha e viu as rodas ainda a girar lentamente. E depois gritou. Onde antes estivera o para-brisas estava agora Antoine, pendurado, meio dentro, meio fora da carrinha, de barriga para cima, com o corpo torcido. Parecia que mãos gigantes lhe tinham partido as costas como se não passasse de um galho. Tinha os braços caídos ao lado da cabeça e estava coberto de sangue e vidros partidos. – Levanta-te! Levanta-te! – suplicou Sebastien. Os olhos de Antoine permaneceram vazios e parados. Sebastien cambaleou até à parte lateral da carrinha, onde o chassis inferior estava exposto, a pingar óleo e combustível sobre a neve. Trepou para cima do veículo e olhou pelo buraco onde estivera a porta lateral. Os bancos estavam esmagados uns contra os outros e o teto da carrinha encostado a eles. Bridgette estava toda torcida no meio dos destroços, mas tinha um dos braços livre. Sebastien viu a mão agitar-se, como se um marionetista invisível puxasse os fios. Bridgette estava viva! Sebastien trepou para dentro da carrinha, o melhor que conseguiu. Puxou os bancos e procurou, freneticamente, o rosto da irmã. Porém, quando afastou um pedaço de estofo rasgado, viu o que acontecera à cabeça dela e percebeu que não podia estar viva. A esperança morreu-lhe no peito, juntamente com todas as outras emoções. Entorpecido, saiu da carrinha e olhou à volta. A uma dúzia de metros, a maman estava caída na neve. Com o casaco de peles à sua volta, parecia um pequeno animal ferido. Quando chegou junto dela, caiu de joelhos e tocou-lhe no rosto pálido. Ela tinha os olhos fechados. Um fio de sangue corria-lhe pelo rosto, proveniente do cabelo acima da têmpora, e formava uma poça na orelha. Outro escorria-lhe do canto da boca. Limpou-os com a manga do casaco. – Maman – murmurou Sebastien. – Eu tomo conta de ti. Ela abriu os olhos de repente, como que sobressaltada. Os seus lábios moveram-se mas não emitiu qualquer som. Sebastien inclinou-se e encostou o ouvido à boca da mãe. – Perdão, perdão, perdão – murmurou ela. – Um acidente, maman! Foi um acidente. – Não. Eu tinha de o fazer. Perdoa-me, Philippe, perdoa-me. – Maman, é o Sebastien. O papá não está aqui. – Não, o Sebastien também está morto. Matei-os a todos, Philippe. Tinha de os levar comigo. Vi o Ankou com a sua foice e a sua carruagem. Veio buscar-me a mim e a eles também. Ele exigiu-os. E eu ofereci-lhos. Aterrorizado, Sebastien abanou-a. – Eu sou o Sebastien! O Ankou não me levou! Estou vivo! – Chiu, chiu. Ele voltará se protestares muito. – Uma espuma sanguinolenta borbulhava entre os seus lábios a cada palavra. – Santo-Ivo-da-Verdade colocou a culpa de tudo em mim. Aceito o meu castigo. Perdão. – Maman, não morras. Não morras. Eu perdoo-te. – Sebastien abraçou-a e amparou-lhe a cabeça. – Sou o Sebastien. Estou vivo. Eu tomo conta de ti. Não deixarei que morras. – Debruçou-se sobre ela, de

joelhos na neve, acariciando-lhe o rosto, a chorar e a repetir a sua promessa. A mãe olhou para ele. Ainda tinha os olhos postos no filho quando as primeiras pessoas chegaram, uma hora depois. – A tua maman adormeceu. Deixa-a descansar – disse alguém, enquanto um outro desconhecido fechava os olhos da mulher. Sebastien há muito que parara de chorar. A sua mente estava repleta de uma confusão tão terrível que paralisara a dor. Sentou-se e olhou para as pessoas com uma fúria amarga e negra. Idiotas. A maman não adormecera: estava morta. Matara Antoine e Bridgette e depois deixara-se morrer também. Sebastien odiava-a por isso, mas também a continuava a amar. A única coisa que permanecia clara na sua mente era que a culpa daquilo tudo era do pai, e que o pai pagaria pelos seus erros. Nas semanas e meses que se seguiram, toda a gente falou da coragem dele. Admiravam o seu controlo, como continuava a ser forte, sem nunca chorar, sem nunca pedir a piedade de ninguém. Sebastien tornou-se cada vez mais protetor em relação aos pequenos irmãos, Annette e Jacques, mas enquanto antes era muito carinhoso para com os empregados, e em particular com Pio Beaucaire, agora tornara-se reservado. As tentativas do pai de formar uma amizade com ele no meio do sofrimento partilhado enchiam-no de desprezo, e por fim contou-lhe, com um prazer cruel, que a maman atirara a carrinha para o precipício de propósito. O papá disse não acreditar, mas a verdade estava clara nos seus olhos. O desespero e a raiva consumiram Sebastien. Não era seguro amar as pessoas; podiam matar-nos por causa do amor; até uma maman podia matar os seus filhos. A culpa torturou-o durante anos. Porque não morrera também? A maman insistira que ele não podia escapar; e, contudo, escapara, pelo menos por enquanto. Teria de se tornar imensamente digno do sacrifício deles, para se redimir. Castigaria o pai sempre que tivesse oportunidade mas, mais do que isso, castigar-se-ia a si próprio. Por fim, no meio do tormento e das emoções que quase acabaram com ele, surgiu um objetivo claro e obsessivo – ia tratar as pessoas. Salvaria muitas vidas, para compensar não ter podido salvar aquelas que eram mais importantes para ele.

1 Um dos nomes pelos quais Yves Hélory de Kermartin (São Ivo), santo padroeiro dos advogados, era conhecido na sua Bretanha natal:

acreditava-se então que pedir um favor ao santo permitia ao requerente obter justiça divina através da morte do seu ofensor (N. da T.).

Capítulo 6

Sebastien de Savin ia para tão longe que quase seria como se nunca tivesse existido. Os pensamentos de Amy eram sombrios e desesperados enquanto estava ali sentada, na colcha de cetim branco, a traçar com a ponta do dedo os pontos que formavam uma flor, fluida e abstrata: a fantasia de um artista. Estava vestida para o trabalho e olhou para os calções de ganga de sobrolho franzido. Levantou a mão e puxou, irritada, a blusa branca e barata que vestia. Imaginou-se mais velha, bonita, a usar roupas maravilhosas. Saía de uma comprida limusina preta para um corredor de pessoas que gritavam e acenavam. Sebastien, atraente e vivido, no seu smoking preto, pegava-lhe na mão e caminhava ao seu lado. São muito amáveis por terem vindo à estreia do meu filme, agradeceria, acenando com a mão de forma régia, com os dedos juntos como a rainha Isabel. O meu par? Ora, é um médico. Um cirurgião francês. E deixem-me que vos diga, meus amigos: ele venera o chão que eu piso. A fantasia cessou abruptamente quando Sebastien deu uma pancada seca e formal na porta do quarto. Amy levantou-se de um salto e correu a abri-la, com o coração aos saltos. Estão a ver? Não consegue estar longe de mim. Sebastien ajeitava o botão de punho na manga da camisa engomada. As calças cinzentas tinham um vinco bem marcado. O cabedal dos sapatos brilhava. Amy susteve a respiração perante aquela perfeição tão natural. Ele não precisava de alguém como ela. Era humilhante lembrar como tentara beijá-lo na noite anterior. – Olá. Como vai isso? Bom dia – murmurou, esmagada pela presença alta e elegante. Não conseguiu conter-se e prosseguiu: – Estás com ar de quem devia estar em cima de uma pequena plataforma na secção de moda masculina. Belo fato. Morreu alguém? Sebastien franziu a testa, aparentemente surpreendido e sem palavras. Era espantoso para Amy perceber que o conseguia surpreender, por vezes. Calculou que ele a considerava esquisita. – Bom dia – respondeu ele, por fim. – Tenho encontro marcado com o cirurgião que supervisionou a minha formação. Suponho que podemos dizer que é uma reunião de despedida. Finis. Um nó de desespero apertou-lhe o estômago. Ele vai-se embora. Para sempre. – Ah! E querias falar comigo sobre alguma coisa? Há algum problema? – Sim, temos de conversar. E não, não há problema nenhum. Partes sempre do princípio de que há sempre uma dificuldade. – A vida é mais segura se anteciparmos os obstáculos. – Ah! Talvez concorde contigo. Mas não partas sempre do princípio de que a culpa é tua. – Passou a

mão por uma madeixa teimosa no alto da cabeça. Era um hábito: todas as manhãs, ao pequeno-almoço, Amy via-o tentar domar a madeixa rebelde. Ela adorava aquele redemoinho; quase que fazia de Sebastien uma pessoa normal. – Podemos falar um bocadinho? – perguntou ele. Amy estremeceu. – Falar? Onde? Queres entrar? – Gesticulou com o braço na direção do quarto e depois apercebeu-se de que estava a apontar para a cama. Fez uma careta de confusão e arrependimento; apesar de tudo, havia um desejo fluido e profundo a percorrer-lhe o corpo, por causa dele. Sebastien inclinou a cabeça para o corredor. – Vamos para a sala. Com a respiração a arder-lhe nos pulmões, Amy seguiu-o e sentou-se numa cadeira simples e preta que brilhava como carvão molhado. Sebastien dirigiu-se a um sofá branco e encaixou o corpo alto nos ângulos retos do sofá com graciosidade. Amy estava com vergonha de olhar para ele e com medo de desatar a chorar; por isso, optou por fixar o olhar numa peça de cristal que havia na mesinha entre os dois. – Estás ansioso por ir para África? – Nem por isso. A Costa do Marfim é um país abastado e Abidjan, uma cidade moderna e progressiva, mas o hospital não se compara com os hospitais europeus ou americanos. No entanto, tenho de cumprir o meu tempo no serviço militar, e trabalhar na África Ocidental pareceu-me uma forma adequada de o fazer. – Oh! Acho que te imaginava numa selva, algures, a lutar contra leões. – Não. Abidjan é um lugar muito confortável. Mas também vou tratar pacientes nas clínicas rurais. Garanto-te que a vida aí é muito mais primitiva. – Mata um ou dois leões por mim – brincou, com um nó na garganta. – E diz olá ao Tarzan. Ah… olha, não te preocupes comigo. Não queria fazer aquela parvoíce, ontem à noite. – Começou a levantarse. – Bom, vou à apanha das uvas. – Não. Isso acabou-se. Foste despedida. Amy deixou-se cair novamente na cadeira e olhou para ele. – O quê? – Eu despedi-te. – Sebastien não era homem de desperdiçar palavras, algo que Amy já aprendera. Era uma pessoa importante e gente assim não perdia tempo. Inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e fitou-a nos olhos. – Tens outras coisas para fazer. – Estudou com ar cansado a expressão estupefacta de Amy. – Estás a prestar atenção? – Sou toda ouvidos. – Quero que te prepares para frequentar a universidade estatal no outono. Vou pagar-te os estudos. Amy sentia a boca a mexer-se, mas não emitiu qualquer som. Sentiu uma risadinha miserável fazer-lhe cócegas na garganta. Por fim, exclamou: – É uma forma muito cara de te veres livre de mim!

– É um elogio, Amy, não um insulto. – Costumas dar muitas bolsas de estudo a desconhecidas? – Tens noção da pouca importância que o dinheiro tem para mim? O preço dos teus estudos é uma quantia tão insignificante que não constitui qualquer sacrifício. Portanto, não me lisonjeies com a tua indignação moral. Desconhecidos? É isso que somos? Presumi que éramos pelo menos conhecidos; talvez até uma espécie de amigos. – Se queres que eu saia daqui e te deixe em paz, não precisas de me pagar! Basta mandares: «Sai, miúda, estás a chatear-me.» – Não estás a «chatear-me», embora tenha de admitir que esta conversa começa a parecer o enredo de uma telenovela. Estamos mesmo a discutir por causa de um simples presente? Ela soltou uma exclamação abafada e baixou o tom de voz numa tentativa de se controlar. – Porque queres fazer uma coisa dessas por mim? Não me deves nada. Sebastien esticou os braços por cima da mesinha de café e pegou-lhe nas mãos. – Não quero que continues a debater-te, a lutar sem ir a lado nenhum, quando tudo o que precisas é de uma pequena ajuda para construíres uma vida boa. Já vi o que esse tipo de injustiças pode fazer às pessoas. – Eu vou ser alguém importante. Não preciso de caridade. Ele murmurou algo em francês que não soou muito simpático. As mãos grandes e ágeis apertaram mais as dela. – É assim que pagas a minha amizade? Com acusações? Queres atormentar-me? – Começava a soar estranhamente melodramático. – Queres que vá para a África negra e que ande distraído por estar preocupado com o teu destino? Posso ser capturado por caçadores de cabeças devido a um descuido… tudo porque estava a pensar na tua pobreza! Ela fitou-o com os olhos semicerrados, desconfiada. – Caçadores de cabeças? Na cidade? – Caçadores de cabeças progressistas. Amy soltou uma fungadela, desdenhosa mas também divertida, e relaxou. – Universidade. Serias capaz de gastar esse dinheiro todo em alguém que mal conheces? – Mon dieu! Para de te armares em mártir! Dormiste três noites debaixo do meu teto! Procuraste-me quando precisavas de ajuda, quando estavas ferida e sem sítio onde ficar. Ontem à noite beijaste-me e disseste-me algumas coisas muito pessoais. – Não sou uma mártir! Sou… – Gaguejou, atrapalhada, com uma torrente de palavras francas a lutar contra dezoito anos de silêncio cauteloso. – Estou… confusa. – Libertou as mãos das dele e tapou a cara. – Não quero quer tenhas pena de mim. Não quero que te sintas culpado ou responsável. Isso é o que as pessoas sentem quando têm de tomar conta de alguém por obrigação. Quero… Oh, meu Deus, isto é horrível. Estou a dizer disparates. – Chega – ordenou. – És apenas mais nova do que eu. Muito mais. Ainda não tiveste oportunidade de

descobrir quem és. – E tu sabes quem és? – Levantou a cabeça e fitou-o com olhar ardente. – Quem és tu, exatamente? Sebastien ficou tenso e lançou-lhe um olhar desconfiado. – Um cirurgião. Um cirurgião talentoso. – E que mais? A expressão dele ensombrou-se. – Isto é inútil! – Estás contente com a tua vida? Sentes-te só? Como te divertes? Não queres alguém que te ame? Não queres amar alguém? Nunca te apetece uivar à lua? – O que é que isto tem a ver com a minha decisão de querer pagar-te os estudos? Amy inclinou-se para ele. – Que tipo de homem não quer que alguém goste dele, mesmo quando a pessoa que gosta dele só quer… só quer gostar dele, mais nada! Que tipo de pessoa usa o dinheiro para não se envolver? Ele levantou-se abruptamente e cortou o ar com um gesto brusco. – Basta desta atitude ridícula! Não tenho qualquer necessidade de me «envolver», como tu dizes. Não tenho tempo. Ofereci-me para te pagar os estudos. Tem juízo e aceita a oferta, sem estares à espera de que seja acompanhada por sentimentos! Amy susteve a respiração. Como é que não pensara naquilo antes? Assim podia manter-se em contacto com ele. Claro! Teria de informar de como corria a escola. Sebastien propunha-lhe algo de impossivelmente maravilhoso porque não a queria esquecer. A tremer, levantou-se também. – Aceito. Céus, claro que sim. Nunca me aconteceu nada assim, é só. – Enfiou as mãos trémulas nos bolsos dos calções e esforçou-se por falar sem tropeçar na própria língua. – Vou ter as melhores notas a tudo! Verás! Sei que sou capaz. E vou escrever-te com frequência para te contar o que estou a estudar… – Não. – Sebastien endireitou-se e lançou-lhe um olhar frio. – Não sou teu guardião. Ou o teu perceptor. Depois de eu deixar o país, estás por tua conta. Cabe-te a ti gerir com sensatez aquilo que te vou dar. – Pensei que estarias interessado… – Não, não mesmo. – As linhas duras da sua expressão faziam com que parecesse mais velho e distante. Dirigiu-se a uma cadeira e pegou no casaco do fato. Enquanto o vestia, acenou secamente com a cabeça a Amy. – Acho que devias passar o dia de hoje a fazer alguns telefonemas. Tens de pedir o teu registo académico à escola onde andaste. Liga para o gabinete de matrículas da universidade e pergunta o que tens de fazer para te candidatares. Podes pedir que mandem as coisas para esta morada. Depois de eu partir para África, podes cá ficar até ires para a universidade. Vou arranjar alguém para te ajudar com o que for preciso. – Está bem – disse ela, baixinho. – Nem sei como te agradecer. Suponho… que não queres que o faça. Acho que a gratidão dos outros é indiferente para ti. – Ergueu os olhos deslumbrados para os olhos,

duros e impacientes, de Sebastien. Ele apertou os lábios e desviou o rosto. – Quando fores mais velha, compreenderás que a gratidão pode ser uma emoção muito exigente. Guarda-a para quem lhe dá valor. – Fez uma pausa. – Só há uma coisa que podes fazer por mim. – Claro. O quê? O que quiseres. – Quero que passes pelo hospital logo à tarde e visites um dos meus pacientes. Um menino. Ele já ouviu falar em ti. Gostava que fizesses alguns dos teus truques de magia. Podes fazê-lo, por mim? Representar? Amy sentiu a boca seca, mas acenou com a cabeça. – Claro. – Bon. Venho buscar-te por volta da hora de jantar. – Claro. – Amy sentia-se esmagada por tantas emoções que conseguiu apenas olhar para Sebastien, o rosto inexpressivo. Ele ia pagar-lhe os estudos universitários. Preocupava-se com ela de alguma forma estranha e protetora que a confundia. Gostara tanto do número barato de feira que o pai lhe ensinara que queria que ela entretivesse um dos seus pacientes. Mas, depois de partir para África na semana seguinte, nunca mais queria vê-la nem ouvir falar dela. Deixou-se cair na cadeira. Sebastien observa-a com atenção. Tirou um bonito relógio de prata do bolso das calças e viu as horas. Parecia relutante em sair. – Estás bem? – perguntou. Amy levantou o queixo. – Ótima. Vou ser a primeira pessoa da minha família a frequentar a universidade. É um dia fantástico. Quando chegar a presidente, mando-te um convite para me vires visitar à Casa Branca. Espero bem que venhas. – Serias terrível na política. – Porquê? – És honesta de mais. – Olhou-a com ar pensativo, de uma forma que quase fez Amy parar de respirar. – E sentes demasiado pelas pessoas. Até logo. Está pronta às seis, mais ou menos. Com estas palavras, saiu. Quando ouviu a porta da rua fechar-se atrás dele com um estalido definitivo, Amy dirigiu-se à cozinha elegante e preparou um enorme pequeno-almoço. Sentou-se a olhar para a comida, sem lhe tocar. Estava a aprender com ele. Ia ser dura, determinada e bem-sucedida… em qualquer coisa, embora não na política nem, acrescentou com firmeza, em qualquer tipo de espetáculo artístico. Ia ser uma pessoa séria e digna e muito, muito importante. Depois iria à procura dele e fá-lo-ia arrepender-se de não ter gostado dela.

Sebastien nunca se esqueceria da imagem de Amy naquele momento. Apesar de estar decidido a manter a distância, inclinou-se para ela quando a rapariga fechou a mão sobre a de Tom e levantou suavemente os dedos frágeis e pálidos, fazendo a moeda passar entre eles, por cima e por baixo, numa

lenta imitação do seu truque. – Quando saíres daqui vais impressionar as tuas namoradas todas – garantiu ela a Tom. – Ou então vão chamar-te Dedos Rápidos. Vais conseguir acenar e tirar macacos do nariz ao mesmo tempo. Os olhos de Tom brilharam. – És nojenta – disse, num fio de voz. – Mas engraçada. Amy riu-se. Tinha as mãos a tremer ligeiramente; admitira, no caminho para o hospital, que sempre que tinha de atuar se sentia agoniada de medo. Sebastien respondera com uma frase feita sobre coragem enquanto pensava que ela só estava a sujeitar-se àquela tortura para lhe agradar. Amy limpou a palma da mão suada à saia do velho vestido de verão e continuou a brincar com Tom. O seu rosto encantador e malicioso estava carregado com linhas de tensão, apesar de sorrir constantemente ao menino. Quando era obrigada a interagir com outras pessoas tinha uma atitude descontraída e carinhosa que cativava. Os olhos cansados e intrigados de Tom quase nunca se afastavam do rosto dela. – Fala mais – pediu ele, num murmúrio. – Gosto da tua voz esganiçada. Amy corou, mas fez uma careta cómica. – Doei a minha voz verdadeira à Minnie. – Pôs as mãos ao lado da cabeça, como se fossem orelhas de rato e, numa imitação perfeita da voz da Minnie, disse: – Oooh, Mickey, não pude fazer nada. A Sininho voou contra a ventoinha de teto, e agora temos brilhantes pela casa toda. Tom sorriu, o que, para ele, representava um esforço tremendo. Sebastien estava contente por ter trazido Amy para entreter a criança. Quisera mostrar-lhe o que podia conseguir com o seu talento, livre da mão tirana do pai, e proporcionar a Tom um momento de prazer. Achava que alcançara ambos os objetivos. – Acho que é melhor deixarmos-te descansar agora – interrompeu, em tom severo. O sorriso de Tom desapareceu e fitou Sebastien com olhar solene. – Vais-te embora. Ouvi uma das enfermeiras a tagarelar ao telefone. Estava a falar baixinho, mas eu oiço muito bem. – Hum. Está bem. Sim, vou trabalhar em África. – Não quero que vás. – O peito de Tom agitou-se e ele fez uma careta de dor. – Estás a melhorar. Nem darás pela minha falta. – Tretas. – A tua língua é muito saudável. – Sebastien aproximou-se quando a respiração de Tom se tornou irregular. – Devia obrigar-te a pedir desculpa por falares assim em frente de uma senhora. – Oh, tretas – interrompeu Amy. Sorriu e depois olhou de Sebastien para Tom com curiosidade. – Olha, sei que não temos muito mais tempo, mas podia mostrar ao Tom um truque de cartas… – Não – afirmou Sebastien em voz calma e baixa, apesar de a cor do rosto de Tom estar a mudar rapidamente de pálido para branco como a cal. Estudou os olhos meio fechados do menino e pousou a mão no braço de Tom. Medo. Uma pontada de medo trespassou-o, mas continuou a falar em tom casual. –

O que se passa, mon petit? Estás outra vez a pôr as máquinas à prova? Sebastien olhou para os monitores ao lado da cama e pegou no estetoscópio com naturalidade. Tom soltou um gemido fraco. – Há alguma coisa errada. – Não. Estás cansado da nossa visita, mais nada. – Enquanto ouvia o coração de Tom, olhou para Amy, que se afastou da cama como se tivesse pressentido a existência de um problema, com as mãos cruzadas à frente do corpo. – Vou andando lá para fora – indicou a rapariga, em tom demasiado animado. – Sebastien – implorou Tom em tom urgente, tentando respirar. Os seus olhos assustados ergueram-se para os de Sebastien. – Não vás. Sinto-me mal. – Fui eu que o cansei – murmurou Amy, em tom horrorizado. – Fi-lo falar demasiado. – Não. – Sebastien inclinou-se sobre o menino e segurou-lhe no rosto. – Acalma-te. Está tudo bem. – Dói. Um arrepio percorreu a espinha de Sebastien e acenou com a cabeça na direção de Amy. – Vai para a sala de espera, a seguir ao balcão das enfermeiras. Já lá vou ter contigo. – Ela não se mexeu e, quando Sebastien olhou novamente para ela, viu-a a estudar Tom com os olhos cheios de lágrimas. – Já te disse para esperares lá fora. – Os sentimentos dela enervavam-no, fazendo-o ter consciência de que também estava aflito. Amy assentiu com a cabeça. – Até à próxima, Tom. Os olhos do menino não se desviaram de Sebastien. – Não vás para África. Gosto muito de ti. Sebastien lutou contra o impulso de tirar as mãos do rosto do rapaz. Conseguia lidar com tudo, menos com aquilo. – Gostas da tua avó. Gostas dos teus amigos. Mas de mim? Mal me conheces. Não precisas de mim. Verás. – Não compreendes. – A voz de Tom era ofegante e angustiada. Esforçou-se por respirar. – Chiu – disse Sebastien, tentando tranquilizá-lo. Sem parecer apressado, pressionou o botão para chamar a enfermeira. – Do que é que tens medo? – perguntou Tom. – Não posso… gostar de ti… mesmo se for desta para melhor? Sebastien estremeceu. Desarmado, olhou para o menino. Amy ainda não saíra do quarto e soltou um gemido angustiado. Sebastien fechou os olhos. Por que raio é que duas pessoas problemáticas tinham entrado na sua vida ao mesmo tempo? Estava rodeado de um amor que não pedira. E ambos queriam que os amasse também, um luxo a que pura e simplesmente não se podia permitir. – Sebastien. – Era evidente que Amy se esforçava por encontrar alguma coisa para dizer. Gaguejou, apertou os braços à volta do corpo e depois aproximou-se da cama e inclinou-se para Tom. Os olhos do

menino viraram-se para ela. – Tom – chamou, baixinho. – O doutor de Savin está triste por te deixar. Só que não sabe como o dizer. Ele é como uma tartaruga que se recusa a sair da casca porque houve alguém que lhe deu uma marretada na tola, uma vez. – Eu… uma tartaruga… Mon dieu – protestou Sebastien. – Que disparate. – Uma tartaruga – murmurou Tom. Depois olhou para Sebastien, visivelmente menos ansioso. – Está bem. Eu… gosto muito de ti. Eu compreendo. És uma tartaruga. Uma enfermeira entrou no cubículo e Sebastien fez-lhe sinal para aguardar, enquanto continuava a falar com Tom. – Sabes que és um paciente muito problemático? E a tua amiga Minnie tem sido uma má influência… Os olhos de Tom reviraram-se nas órbitas. As máquinas ligadas a ele começaram a apitar. Sebastien arrancou o lençol que cobria o menino. – Amy, sai. Ela soltou uma exclamação horrorizada e saiu do quarto, às arrecuas, enquanto a enfermeira corria para a cama. Sebastien estudou o monitor cardíaco ao lado da cama. Havia atividade elétrica, mas não um batimento regular. A enfermeira chamou a equipa de emergência. Sebastien pousou a palma da mão no peito imóvel de Tom. Começou a fazer reanimação cardíaca e continuou enquanto o quarto se enchia de pessoas e alguém trazia um carrinho com um desfibrilador. As rotinas foram seguidas com precisão. Vários procedimentos foram tentados, sem sucesso. Não te deixo partir. Não podes morrer, disse Sebastien a Tom numa fúria silenciosa, com o desespero a crescer dentro de si. A potência do sentimento assustou-o; deixara-se aproximar, e agora estava a pagar o preço. Pela terceira vez, deu um choque no coração de Tom com o desfibrilador. As linhas no monitor cardíaco saltaram, encontraram um ritmo errático e agarraram-se a ele. Enfermeiras e médicos continuaram a trabalhar e a observar, num silêncio suspenso, com uma atmosfera de esperança quase palpável a invadir o cubículo. Sebastien rangeu os dentes e olhou para o rosto pálido e inerte de Tom. Raios, tem coragem e luta. Não sejas cobarde. Passou a mão pela testa e reparou que suava. A vergonha espicaçou-o. Estava a praguejar mentalmente com uma criança doente por não conseguir reagir. Mas a fúria, a sua própria raiva impotente, não abrandou. – Estamos a perdê-lo outra vez – anunciou uma enfermeira. – Não tem pulso. Sebastien recuou. – Vamos levá-lo para o bloco. Tenho de o abrir outra vez. Na sala de operações, abriu o peito de Tom e descobriu aquilo que temera. Várias suturas da operação anterior não se tinham aguentado. O sangue fluía do coração de Tom, enchendo a cavidade torácica e ensopando as mãos de Sebastien. – Ele está a esvair-se. Não há nada a fazer – justificou outro médico. – Não. – Sebastien deu ordens em voz baixa e intensa. Mãos moveram-se à sua volta, a ajudar, a

obedecer, a tentar estar à altura das capacidades dele, sem sucesso. Em silêncio amaldiçoou aquele coração, mordeu o interior da bochecha até sangrar, lutou para remediar o mau trabalho de outro cirurgião, enquanto o sangue jorrava por todo o lado. Mas estava a vencer. Conseguia senti-lo. Não houve um momento dramático em que a vida mudou para morte: apenas uma derrota lenta que sugou toda a energia do corpo de Sebastien. Por fim, chegou a altura de deixar de fingir que a morte ainda não chegara. Sebastien parou, num silêncio aturdido, com as mãos ainda dentro do peito de Tom. Entorpecido, olhou para a massa sanguinolenta que fora em tempos um menino maravilhoso. Recuou, com o sangue a pingar da ponta dos dedos enluvados. – Suponho que podemos fechá-lo – declarou alguém, em tom desanimado. Alguns minutos depois, Sebastien entrou novamente no cubículo de Tom, onde a fotografia do menino – a sorrir num dia de sol – prometia todo o futuro que uma criança de oito anos poderia desejar. Vários dos médicos seguiram-no, curiosos em relação ao que ele ia fazer. Sebastien arrancou a fotografia da parede e rasgou-a ao meio. – Bela atitude – murmurou um dos médicos. – Muito profissional. Sebastien agarrou-o pelo colarinho da camisa e tinha o punho fechado no ar quando os outros o seguraram. O médico parecia aterrorizado. Sebastien largou-o e libertou-se das mãos que o seguravam. Aproximou-se da mesa ao lado da cama de Tom, abriu a gaveta e tirou a ficha que Amy lhe dera. Ninguém teve coragem de lhe perguntar o que estava a fazer. Nem de tecer qualquer comentário quando ele regressou à sala de operações e beijou a testa de Tom.

Amy forçou-se a ficar sentada na sala de espera. Havia outras pessoas com ela, que fingiam ver televisão, para disfarçar o nervosismo. Amy estremeceu. Aqui parecia era o campeonato principal das salas de espera. Olhou para o relógio. Estava ali há já uma hora. Devia ter acontecido algo horrível. Os seus receios confirmaram-se minutos depois, quando Sebastien apareceu à porta. O bonito fato fora substituído por uma bata cirúrgica verde, amarrotada e larga. Tinha o cabelo húmido, como se tivesse acabado de tomar duche e, no rosto, uma expressão tensa e impaciente. Chamou-a secamente, mas ela já estava a correr para ele. – Vamos. – O que aconteceu? – Sebastien cheirava a sabonete desinfetante e tinha a cara muito vermelha, como se a tivesse esfregado com muita força. Amy levou as mãos ao peito e abanou a cabeça. – Oh, não, oh, Sebastien… – Não chores. Anda. – Pegou-lhe na mão e quase a arrastou corredor afora. – Para onde vamos? – Para o mais longe possível. Puxou-a para dentro do elevador e encostaram-se à parede. Amy sentiu a mão dele, quente e húmida,

no seu pulso. Estava com medo, não tanto dele mas por ele. Nunca vira tanta raiva nos olhos de uma pessoa. – O menino morreu – adivinhou, infeliz. – Perdi-o. Ele desistiu. – Porque falas dessa maneira? Como se a culpa tivesse sido tua? Estás sempre a dizer que não devo sentir-me constantemente culpada, mas… – Não me analises – interrompeu ele em tom de aviso. O elevador parou no parque de estacionamento da cave. Sebastien puxou-a para a porta e virou-a para si. – Não estou com disposição para ser simpático contigo. Não quero os teus sentimentozinhos. – E que tal isto, nesse caso? – Sabia que estava a perder o juízo, porque uma pessoa sã não faria o que fez a seguir: lançou os braços à volta dos ombros dele e apertou-o com força contra si, e, quando ele tentou afastá-la, agarrou-o ainda com mais força. E depois pisou-lhe o pé. Ele soltou um grunhido assustador, levantou-a do chão pelos cotovelos e prendeu-a contra a parede de betão ao lado das portas do elevador. Parecia furioso, incrédulo e desesperado. – Estás maluca? Ela tinha os dentes a bater. E os pés a abanar contra as pernas dele. – Bingo! Para! Para com isso, doutor! Sinto-me como uma lutadora de sumo muito pequenina. – O que queres de mim? – Quero fazer-te feliz. Quero ir onde me quiseres levar. Sempre. Para sempre. A fúria de Sebastien abalou-os a ambos. Entre os dentes cerrados, disse: – Não vou levar-te comigo quando for para África. És demasiado nova. Não quero ter trabalho contigo. Compreendes? Nunca te levarei comigo. – Eu disse para onde me quiseres levar. Sempre. Ok, esquece a parte do «para sempre». Para de discutir. Só temos uma semana. Sebastien, lamento muito o que aconteceu ao Tom. Tenho tanta pena… – Cala-te! Parece-te que preciso da tua piedade? Achas que quero saber disso para alguma coisa? Ela estava agora a chorar, lágrimas grossas que lhe deslizavam pelas faces mas que parecia nem sentir. – Sim. – Raios! Não chores! – Sebastien engoliu em seco e pousou-a no chão, apertando-lhe os braços. – Não, não… – Não faz mal, a sério. Podes chorar também. – Não serve de nada! Não resolve nada! – Então qual é o problema? Sebastien fechou os olhos e engoliu mais uma vez, lutando para não perder o controlo. – A tua lógica… escapa-me, não tem nada a ver com a questão… – É simples. As pessoas morrem. Não podemos morrer por elas. Sofremos. Choramos. Depois de fazermos o luto, sentimo-nos melhor. – Libertou-se dele e abraçou-o de novo, encostando a cabeça na

curva do seu pescoço. – És um homem tão querido e nem sequer sabes disso. Ele estremeceu e apertou-a num abraço rude e desesperado, cravando-lhe os dedos nas costas e nos ombros. Amy apertou-o contra si, ali naquele recanto escuro de um sítio desolador, e ouviu-o chorar. Sabia que já era uma adulta. Não tinha quaisquer fantasias de que ele mudasse de ideias e a levasse consigo quando partisse para África. Não se iludia com a possibilidade de conseguir ultrapassar o abismo que havia entre os dois: um abismo de idade, de culturas, de estatuto na sociedade. Por agora, no entanto, ele pertencia-lhe. Sebastien encostou a face ao cabelo dela. Amy libertou um braço e ergueu a mão para as lágrimas no rosto dele. Ele ficou muito quieto e aceitou a carícia com as pontas dos dedos, chegando mesmo a inclinar o rosto para que ela conseguisse alcançar os dois lados. Porém, quando falou, foi com amargura. – Esta é que é a tua ideia de me fazer feliz? É algo inédito e fascinante, para mim. – Doutor, és tão palerma, às vezes. – Deu-lhe uma palmadinha carinhosa no rosto. – Chega. Odiaria que mais alguém me visse assim, além de ti. – Vou considerar isso um elogio. Dirigiram-se com passo rápido ao Ferrari preto, de mãos dadas, os dedos entrelaçados com tanta força que os de Amy lhe doíam. Quando ela se sentou no banco do passageiro, Sebastien inclinou-se, puxou o cinto de segurança e enfiou-o no encaixe. – Põe o teu também – disse ela. Sebastien acariciou-lhe a face, passou os dedos sobre o pequeno penso que ela tinha no queixo e ignorou completamente o seu pedido. Amy sentiu uma excitação triste e pungente quando ele arrancou com o carro do parque de estacionamento e acelerou, à luz do crepúsculo de verão. Permaneceram em silêncio enquanto percorriam as ruas ladeadas de cornizos. Amy agarrou-se ao apoio do braço e observou a expressão concentrada de Sebastien enquanto virava o carro para uma autoestrada entre prédios de escritórios que cintilavam aos raios do sol poente. Sebastien não seguia na direção da casa na cidade. Amy encostou-se e, com alguma hesitação, pousou a mão no ombro dele. Quando olhou para o conta-quilómetros, viu que iam a 150 km/h. Com o coração aos saltos, observou a confiança total das mãos dele. Nem a fúria que o consumia por dentro conseguia destruir aquela característica. Sentiu-se invadir por uma sensação de segurança, instintiva e inquestionável. Leva-me até lá depressa, leva-me até lá tão depressa que eu nem consiga olhar para trás. Numa hora chegaram ao sopé das montanhas a norte de Atlanta. A noite caíra, negra, à volta deles, e a estrada estava vazia. – Onde vamos? Ele soltou uma risada áspera e surpreendida, como se estivesse zangado consigo próprio. – Não sei. Nem sequer sei onde estamos agora. Que me dizes deste comportamento irresponsável? – Boa tentativa. Mas acho que ainda consegues fazer melhor. Se queres mesmo perder-te, vamos sair

desta autoestrada e procurar um bom caminho de terra batida. Sebastien anuiu, e minutos depois o Ferrari fazia saltar gravilha num trilho. As copas das árvores eram como borrões de tinta contra o céu estrelado. O trilho saiu da floresta para pastos antigos, com cercas caídas, subindo um monte em direção à silhueta de uma chaminé em ruínas. Sebastien parou o carro no cimo, com as rodas da frente na relva da beira do caminho. – Mais alguma sugestão? – Este é o meu tipo de território – disse-lhe Amy. – Tem de ser percorrido a pé. Anda. Saíram do carro e ela pegou-lhe na mão. Como que em resposta a um sinal mútuo e silencioso, desataram ambos a correr sobre a relva irregular, murcha pelo calor do verão. Algum tempo depois, esbaforidos, deixaram-se cair no chão na encosta de um vale que se estendia por quilómetros. Havia luzes a piscar à distância, carros que aceleravam por estradas de província invisíveis. A lua nova erguera-se no céu. Amy olhou para Sebastien, sentado ao seu lado na escuridão, mas não conseguiu identificar nenhuma das suas emoções. – Melhor? – perguntou, com voz esganiçada. – Sim. Um bocadinho… – Pôs o braço à volta dela e Amy aninhou-se contra ele, agradecida. Sebastien encostou a cabeça à dela e contemplaram o céu estrelado. – Onde quer que o Tom esteja, está bem – murmurou Amy. – Espero que acredites nisso. – Esta noite decidi acreditar em todos os bons pensamentos que me sugerires. – Às vezes temos de levantar a cabeça e… – Uivar à lua? – Sebastien hesitou por um momento e soltou um grito, prolongado e arrepiante, repleto de raiva e sofrimento. O som ecoou pela noite e silenciou os insetos, fazendo Amy estremecer. Sebastien abriu a boca e repetiu. Quando não aguentou mais, Amy virou-se para o abraçar. Segurou-lhe no rosto com as duas mãos e beijou-o. Ele emitiu um som rouco mas aceitou tudo o que ela lhe oferecia. Depois fechou os braços à volta dela e devolveu-lhe o beijo com uma energia feroz e crua, tão erótica que a rapariga estremeceu, gemendo. Nesse momento, Sebastien recuou. – Eu avisei-te que não estava com disposição de ser simpático. Há demasiada coisa a agitar-se dentro de mim, esta noite, o que me torna imprudente. Vais acabar por sair magoada. É melhor parar… – Não tens de te preocupar em magoar-me, nem em fazer promessas para o futuro, nem com lamechices. Só tens de ser tu próprio. – A maioria das mulheres não ficaria muito entusiasmada com tal perspetiva. – Eu nunca vejo as coisas da mesma maneira que os outros. Suponho que estás com sorte. Sebastien fechou os olhos por um momento, como se estivesse a tomar uma decisão. – Muita sorte. Beijou-a de novo, desta vez com ternura e uma contenção óbvias. Amy relaxou nos braços dele. Depois de a deitar na relva fresca, despiu-a, com gestos apressados mas cuidadosos. Amy abriu e fechou as mãos, tímida, deslumbrada e com um desejo tão intenso por ele que já estava nua quando a cautela a

levou a dizer: – Não tenho nenhum… ah… Não estou a tomar a pílula, nem nada. – Era o que te ia perguntar. – Sebastien tirou a carteira do bolso de trás do uniforme largo, abriu-a e retirou um pequeno pacote achatado antes de atirar a carteira para o chão. Amy sentiu-se corar. – Oh, está bem. Vejo que andas preparado para emergências. Sebastien puxou-a para cima e abraçou-a. – Não penses que passo a vida metido em «emergências». Mas não sou um rapazinho. Não posso fazer-me de inocente. Ela encostou o rosto ao ombro dele, maravilhada ao aperceber-se de que estava nua nos seus braços. – Está bem. Eu posso. Pelos dois. Sebastien deitou-a de novo e sentou-se ao lado dela na escuridão prateada, acariciando-a dos seios às coxas, passando as costas da mão sobre os mamilos pequenos e duros, correndo os polegares pela sua barriga, deslizando as mãos abertas nas suas coxas, roçando ao de leve o interior com as pontas dos dedos. – Então… nunca fizeste isto – murmurou. Não parecia surpreendido nem desiludido. Ela tapou a cara e gemeu baixinho. – És tão francês. Sebastien inclinou-se e começou a beijar-lhe os seios. – Como assim? – Estas coisas… não te fazem confusão. – É assim que deve ser, não achas? Queres que eu te rejeite por seres inexperiente? Ou preferes que te trate como a mulher linda que és? Enfiou um braço sob as costas dela e ergueu-lhe o corpo, ao encontro da sua boca hábil. Nas fantasias de Amy nunca acontecera nada tão maravilhoso. A aura de tristeza pela morte do menino suavizava tudo; embora inexperiente, apercebeu-se de que aquela nunca seria uma noite para grandes exibições. A franqueza dele dava-lhe a liberdade de estar um bocadinho assustada, embora o corpo palpitasse de desejo e prazer. Parecia haver uma ligação direta de sensações entre os seus seios e a dor deliciosa que lhe latejava entre as coxas. Quando ele lhe enfiou a mão entre as pernas e lhe tocou, esqueceu-se de tudo a não ser dos sentimentos provenientes do seu ventre. No meio da excitação, agitou as mãos, batendo-lhe nos ombros, esmurrando a relva macia, e depois, finalmente, erguendo as mãos para o céu, cada músculo do seu corpo arqueado como se quisesse levitar. Sebastien endireitou-a, como se ela fosse uma boneca paralisada numa posição estranha, de pernas abertas, os braços esticados por cima dos ombros dele, enquanto gemidos suaves lhe brotavam dos lábios. As mãos de Sebastien massajaram-na intimamente, cobertas da humidade quente que ela sentia

espalhar-se entre as coxas. – És maravilhosa – elogiou-a Sebastien. – E tão incrivelmente sensual que fazes amor da maneira que mais te dá prazer, sem qualquer embaraço. Ela segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o de forma desesperada, aturdida e tão apaixonada que só o conseguia exprimir com um gemido saído do fundo da garganta, uma espécie de miado, como um animal a morrer de fome. Foi quanto bastou para acabar com as reservas de Sebastien. Despiu-se rapidamente e deitou-se ao lado dela, puxando-lhe as mãos ávidas para o corpo. – Nunca pensei que quereria ser feliz esta noite – admitiu. – Muito menos assim. Ambos ficaram calados. Amy estudou-lhe o rosto. O luar e as suas sombras incidiam de forma pouco clemente na expressão cansada e pensativa. Acariciou-lhe o queixo. – Eu não conto o teu segredo a ninguém – murmurou. – Acho que mereces ser feliz, mesmo esta noite. A tremer, ele pegou-lhe nas mãos e beijou-as. Depois colocou o preservativo nelas. – Nunca admitas que ninguém te diga que é seguro ser descuidado. Insiste sempre em responsabilidade. Nunca deixes nenhum homem aproveitar-se de ti. Ela mordeu o lábio e desviou o olhar. – Para de ser tão francês! Não quero estar a falar sobre outros homens. Ainda não sou assim tão sofisticada. O silêncio que se instalou fê-la suster a respiração. Quando Sebastien falou, parecia aborrecido consigo próprio. – Às vezes, sou demasiado professoral e esqueço-me de como a minha lógica pode parecer aos outros. – Fez uma pausa e acrescentou, em tom consternado. – Perdoa-me. – Deixa… Volta a ser um tipo excitado – pediu-lhe Amy, decidida. Sebastien soltou um som estrangulado. – Oh, Miracle. Vem cá. Toca-me. Tens um jeito maravilhoso de ir direta ao assunto. Ela atrapalhou-se com o preservativo até que, por fim, galante e gracioso, ele a ajudou. Posicionou-se sobre ela e abriu-lhe as pernas com os joelhos. Amy pôs-lhe os braços à volta do pescoço quando ele desceu sobre o seu corpo. Beijou-o, abrindo a boca às incursões da língua dele. Com os lábios a roçarem nos dela, Sebastien murmurou palavras suaves de conforto enquanto a penetrava lentamente. – Oh, doutor, não estás a magoar-me – assegurou Amy. – Eu sabia que nunca o farias. – Vou tentar. Agora agarra-me: abraça-me com força e veremos que tipo de felicidade conseguimos criar em apenas uma semana. Amy apertou os braços à volta dele e escondeu a expressão abalada no seu pescoço, mas rapidamente a sensação do corpo dele e, momentos depois, o desespero doce dos seus beijos, afastaram a tristeza. A escuridão dentro de Sebastien era assustadora mas irresistível, e Amy abandonou-se-lhe.

Capítulo 7

Faltava tão pouco tempo. Apenas alguns dias. Sebastien ouviu a música baixa e sedutora de um prelúdio de Debussy no quarto. A luz do candeeiro da mesa de cabeceira causava-lhe uma agradável sensação de calor no rosto. Do outro lado do quarto, o tempo avançou no relógio Tiffany que tinha em cima da cómoda: quatro horas e dois minutos. Dentro de uma hora, mais ou menos, a escuridão nos cantos do quarto assumiria a tonalidade acinzentada da alvorada. Por enquanto, contudo, a noite era eterna e Amy estava deitada debaixo do braço dele, com as costas encostadas ao seu peito. Segurava-lhe na mão e afagava-a com gestos lentos e suaves das pontas dos dedos, sem pressas; saciada, tal como ele, mas ainda assim incapaz de parar de lhe tocar. Escondeu o rosto no cabelo dela. Todas as sensações eram muito vívidas: o perfume do cabelo, o sabor da sua pele, a macieza de veludo do seio que roçava no seu bíceps. O lençol era também como uma carícia na parte inferior do corpo e lembrou-se da boca dela em si, hesitante e divertida. Não queria morder-te, doutor. Estava a pensar em ostras. Ostras. Era a primeira vez que Sebastien se ria à conta dos seus próprios testículos. Aninhou-a mais contra as suas pernas e ancas e Amy suspirou. – Alguma vez te sentes como se fosses chorar por te sentires tão bem? – perguntou ela, em voz rouca, num murmúrio íntimo a escorrer emoção. Sebastien debateu-se por um instante e depois desistiu. Que necessidade tinha de fingir com Amy? Na adoração dela havia aceitação. Não possuía qualquer cinismo, quaisquer ideias preconcebidas de como um homem e uma mulher deviam esconder informações poderosas na cama. – Sim – admitiu. – Às vezes é mesmo assim… maravilhoso. – Quando o fazes comigo, era o que eu queria dizer. – Sim. Claro que era a isso que me referia. – Doutor? – Levou a mão dele à boca e beijou-lhe os dedos. A tensão no toque de Amy fez eco no corpo de Sebastien; a rapariga tremia. – Achas que depois de te ires embora vais encontrar alguém com quem queiras fazer isto? Isto é, logo… a seguir? Sebastien apertou-a mais e fechou os olhos. – Não. Amy suspirou. – Ainda bem. Não queria acreditar que pudesses fazê-lo. – Não falemos do futuro.

– Só mais uma coisa. Como… como é que nos vamos despedir? Onde? – Onde é que gostarias? Amy virou-se e olhou para ele. O seu olhar era tão trágico que Sebastien sentiu um nó na garganta. Por mais que deixá-la fosse a decisão correta, lamentá-la-ia para sempre. Dava por si a reagir à vida de forma mais aberta e emocional desde que a conhecia, e sabia que perderia essa capacidade quando deixasse Amy. Recordou a si próprio que não gostava de estar dependente de outra pessoa, e de como tamanha vulnerabilidade era insensata. Apesar disso, quando Amy lhe sorriu com malícia, teve de a beijar. – Minha Miracle engraçada. Onde é que gostarias de te despedir? – Na cama. Depois de fazermos amor uma última vez. – Abanou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas. – Mas concordo contigo, não falemos nisso agora. – Encostou a cabeça ao peito dele. – Esta música faz-me pensar em crianças a brincarem num campo de flores. E a ti? – No outono, com um vento frio e forte a empurrar as folhas mortas numa floresta. – Oh. Beijou-lhe o cabelo. – Demasiado deprimente, não? – Não. Tem a ver contigo. Olhas sempre para o lado mais negro da vida. – E tu, para uma pessoa que teve tão pouco encorajamento, és muito otimista. Nunca percas isso. Nunca deixes que ninguém te impeça de seguires os teus sonhos. Podes ser tudo aquilo que desejares. Podes ter tudo o que quiseres, se nunca parares de trabalhar nesse sentido. – Nem imaginas aquilo que eu quero. – Enrolou os braços ao pescoço dele, abraçou-o e não disse mais nada. – Aprende a ver a diferença entre aquilo que desejas e o que é melhor para ti – murmurou-lhe ao ouvido. – É a lição mais difícil de todas. – Já a aprendeste? – Desesperada, Amy soergueu a cabeça e perscrutou-lhe o rosto. – Sim. – Pela expressão do rosto dela, percebeu que não ia pedir-lhe que explicasse, pois sabia que não gostaria da justificação. – Para com isso, Amy. – Repetiu as palavras com os lábios encostados aos dela. – Chega de pensar no futuro. – Obriga-me a parar – ordenou a rapariga baixinho, com os dedos a deslizar-lhe entre os cabelos enquanto erguia a boca para a dele. – Estás a aprender – declarou, quando ela o deixou respirar novamente. – Estás a aprender muito, muito depressa.

Jeff Atwater pôs-se em pé em cima da secretária do chefe da Cardiologia e fez um brinde a Sebastien, que sempre considerara ser um homem completamente diferente de si. – Adeusinho, franciú. Que os nativos sejam amistosos; o trabalho, interessante e o karma bom.

Sebastien inclinou-se numa leve vénia. – Trabalhar contigo foi uma experiência muito instrutiva. Graças a ti, pouco depois de chegar já sabia o calão para todas as drogas ilegais e muitas obscenidades úteis. Jeff retribuiu a vénia. – Não tens que agradecer. Desceu da secretária e bebeu um gole do seu chá enquanto um dos médicos fazia um brinde de despedida bastante tímido. Jeff olhou em volta e não ficou surpreendido por ver apenas algumas pessoas no gabinete. Embora todos considerassem Sebastien brilhante, ninguém gostava dele. Era demasiado jovem, demasiado confiante, demasiado francês. Os cirurgiões franceses tendiam a confiar mais na lógica do que nas estatísticas, o que deixava os seus colegas americanos fora de si. Jeff gostava de Sebastien porque ele era brutalmente honesto, e essa honestidade fazia parte de um rígido código pessoal. O homem tinha integridade. Não havia na sua arrogância o menor indício de preconceitos mesquinhos. As mulheres ficavam intimidadas e fascinadas com ele, mas Sebastien nunca as tratava como se fossem presas fáceis. Nunca prometia mais do que aquilo que dava. Jeff respeitava-o por isso, apesar de, pessoalmente, acreditar que as mulheres mereciam todas as coisas insensíveis que um homem lhes pudesse fazer. À medida que as pessoas começavam a dispersar, Sebastien chamou-o à parte, mais sério do que o habitual, mas ao mesmo tempo com ar distraído. Jeff não sabia até que ponto a morte sangrenta daquele menino o afetara. Todos os membros da equipa na Unidade de Transplantes falavam do triste sucedido e da reação violenta de Sebastien. Jeff achara aquela reação interessantíssima. Os cirurgiões eram grandes perfeccionistas. – Preciso de te pedir um favor bastante grande – começou Sebastien. – Detesto incomodar-te, mas és a única pessoa a quem posso recorrer. Enquanto ele explicava, Jeff ouviu-o num silêncio solene. Depois, acenou com a cabeça. – Fascinante. Como posso recusar uma oportunidade dessas? Vemo-nos amanhã ao jantar, em tua casa. Viu Sebastien sair do gabinete, com passo largo e confiante como era costume, a retribuir as despedidas das pessoas com acenos majestosos. Toda a sua postura dava a entender que achava tanto sentimentalismo embaraçoso e desnecessário. Ali estava um homem que provavelmente passaria a maior parte da vida sozinho, porque tinha tanto calor humano como uma parede de aço. Jeff sempre admirara a sua autossuficiência. Foi por isso que, ao recordar a conversa que tinham acabado de ter, se sentiu estupefacto e desiludido. Que poder teria aquela rapariga sobre Sebastien? Mais tarde, quando Pio Beaucaire ligou a Jeff, para se apresentar e pedir a sua ajuda, o psiquiatra achou que a coincidência era prometedora. Queria meter-se na vida de Sebastien e ali estava alguém a pedir-lhe para fazer isso mesmo.

Jeff esperava no átrio do restaurante de um hotel elegante. Detestava sítios que lhe recordavam a sua própria ganância. Apesar de aparentar calma, fervilhava de impaciência. O stresse era um mal de que só aqueles que tinham cedido às engrenagens do sistema sofriam. Disse a si próprio que não tinha perdido a individualidade. Por baixo da camisa, da gravata azul com o nó lasso e das calças castanho-claras, calçava meias encarnadas e sandálias de cabedal. Jeff era o produto de uma era em extinção. Passara a maior parte dos turbulentos anos 60 como um rato de biblioteca desengonçado, de orelhas grandes e cabelo loiro, na atmosfera de classe média dos laranjais dos pais, a sul de Los Angeles. Porém, um desejo de aventura latente acabou por vir ao de cima, e viveu os anos 70 na Universidade de Berkeley, na maior parte do tempo a viver numa comuna, flutuando numa nuvem de drogas e agitando o símbolo da paz na cara de toda a gente. Algumas más experiências com alucinogénios e a descoberta de que gostava de ganhar dinheiro tinham-no convencido a deixar essa vida e conseguira concluir a licenciatura, após o que se dedicara à especialização em psiquiatria. O que era perfeito para ele. Era mestre a usar as pessoas, a encantá-las, a decifrar aquilo de que precisavam, aquilo de que tinham medo. Gostava do poder, especialmente no que dizia respeito às mulheres, e a única vez em que as coisas não lhe tinham corrido bem fora quando casara com uma modelo de olhos escuros que dizia chamar-se Aleze quando, na verdade, o seu nome era Alice. Mais tarde, pensou que esse pretensiosismo devia ter sido suficiente para o avisar. Na altura, contudo, estava obcecado e, nos primeiros seis meses de casamento, Aleze retribuíra essa adoração com uma intensidade que não poderia ser mais real. Instalaram-se alegremente num duplex barato nos subúrbios de Los Angeles. Quando a carreira dela começou a ganhar força e ela surgiu na capa de uma das principais revistas femininas, Jeff não cabia em si de orgulho. A mulher gastava com abandono o modesto rendimento do seu trabalho como médico residente, um problema que Jeff conseguia ignorar porque a amava muito. A vida do casal girava à volta de gloriosas sessões de sexo. Quando ela lhe transmitiu gonorreia, Jeff ficou estupefacto. A sua magnífica Aleze era uma parte modelo e nove partes prostituta, profissão que praticava num apartamento bem mobilado com vista para o Sunset Boulevard. Depois do divórcio, Jeff abandonara tudo e mudara-se para o outro lado do país. Olhou para um espelho no átrio do hotel e tentou ver se a linha do cabelo estava a recuar tão depressa como suspeitava. Bem, paciência – desde que tivesse tudo o resto que desejava na vida, podia passar sem o cabelo. O que queria era simples: dinheiro, prestígio profissional e a oportunidade de se vingar de todas as mulheres que fossem idiotas o suficiente para lhe dar tal oportunidade. Piscou o olho ao seu reflexo. Misógino. Até soava bem. – Monsieur Atwater? Jeff virou-se e viu o dono do sotaque francês: um homem corpulento, que o fitava com olhos límpidos e solenes. O rosto robusto e o cabelo branco faziam lembrar um avô ou um Pai Natal, se o Pai Natal fosse um empresário bem barbeado e a usar um fato de bom corte.

– Senhor Beaucaire? – Sim. – Apertaram as mãos. – Muito obrigado por ter acedido a encontrar-se comigo. – Claro. Vamos entrar. – Jeff conteve a curiosidade até estarem sentados a uma mesa no restaurante. – No seu telefonema mencionou que tinha ouvido o Sebastien falar em mim ao longo destes últimos dois anos, e que foi por isso que me contactou, certo? – Sim. Pareceu-me que são bons amigos. – Trabalha para ele? – Para o pai dele, na verdade. Trabalhei para a família de Savin a vida inteira. O Sebastien é tão importante para mim como se fosse meu neto. É por isso que preciso da sua ajuda. O pai, que o ama ainda mais do que eu, mandou-me para a América para tomar conta do Sebastien. Jeff não conseguia imaginar que Sebastien de Savin precisasse de alguém a tomar conta dele, mas o sentimentalismo de Beaucaire era comovedor. O homem estava mesmo perturbado. – Porque resolveu procurar-me? – O Sebastien não faz amizade com muitas pessoas. O senhor deve ser um bom homem. Jeff sorriu, satisfeito com o elogio. Era verdade – só um especialista em manipular as relações humanas conseguiria ultrapassar as defesas de Sebastien. – E o que posso fazer por si, senhor Beaucaire? Um empregado aproximou-se da mesa. Pediram bebidas e, sem motivo aparente, o elegante Beaucaire começou a debitar a história dos de Savin. Era como ouvir uma palestra sobre a civilização europeia, remontando a Carlos Magno. Quando Beaucaire terminou, Jeff compreendeu a sua intenção. Os de Savin não eram uma família qualquer; eram uma das linhagens mais antigas da Europa, e Sebastien andava metido com uma rapariga cuja ilustre história de família provavelmente não poderia ser seguida mais longe do que a noite em que o avô conhecera a avó num bailarico. – Não será nenhuma surpresa para si se lhe disser que o Sebastien esteve envolvido com várias mulheres desde que o conheço, e todas elas ficaram com queimaduras de gelo quando tentaram aproximar-se demasiado – revelou a Beaucaire. – Mas esta… é astuta. É única. – Beaucaire apoiou as mãos grandes e abertas na toalha de linho, num gesto quase de súplica. – O senhor pode falar com o Sebastien, fazê-lo ver a razão. Peço-lhe que converse com ele, como amigo. – Mas ele vai partir para África dentro de poucos dias. A rapariga ficará para trás. – Quem sabe ao certo? Essa rapariga pode tocar-lhe nalgum ponto fraco. É pobre e ignorante e tenta parecer indefesa. O seu encanto provinciano pode fazer-lhe lembrar a mãe, compreende. Tenho a certeza absoluta de que são esses pensamentos que estão a influenciar a sua capacidade de julgamento. – Duvido de que o Sebastien ande à procura de uma figura maternal. – Não, claro que não é nesse sentido! Mas a maman dele, sabe, era uma mulherzinha que inspirava piedade, e morreu num acidente de automóvel quando ele era pequeno. A morte da mãe afetou-o muito. Desde então, nunca mais ninguém conseguiu compreendê-lo. O pai esforçou-se, mas sem sucesso. O

comte de Savin está destroçado com toda a situação, e não caminha para novo. Está doente. Quer ter de volta o amor do filho mais velho. Teme que o Sebastien nunca mais regresse a casa. – E quer que eu interfira na relação do Sebastien com essa rapariga? Admito que é uma paixoneta invulgar da parte dele, mas receio que esteja a sobrestimar a minha influência. Na verdade, ninguém tem muita influência sobre o Sebastien. – À exceção, ao que parece, desta rapariga. – Hum… Gostava de poder ajudar, mas… – O pai do Sebastien deseja contratar os seus serviços profissionais. A conversa estacou. Jeff estudou Beaucaire, espantado. – Por outras palavras, pagar-me para avaliar a situação e fazer um relatório, sem conhecimento do Sebastien? Sem nunca desviar os olhos dos de Jeff, Pio Beaucaire inclinou-se sobre a mesa e sugeriu, em tom cauteloso: – Pode ser muito mais do que isso. Com certeza que o comte gostaria de ter a sua avaliação da situação, mas creio que também está interessado numa supervisão continuada. Jeff passou o dedo pela humidade no copo de martini enquanto pesava ética e amizade contra o seu saldo bancário. – Tem de ser mais específico. – Cinquenta mil dólares agora. Cinquenta mil por ano daqui em diante, e cem mil quando o Sebastien voltar para França, dentro de dois anos… se ele voltar sozinho e se a jovem já não for um problema. A balança mental de Jeff inclinou-se rapidamente para o lado do saldo bancário. Ainda não terminara o curso há tempo suficiente para poder comprar champanhe, mas gostava muito de o beber. Viu o dedo a tremer na beira do copo. – Duzentos mil dólares para intervir num problema que provavelmente se resolverá por si próprio, assim que o Sebastien partir para África? – O comte é um homem previdente. – E extravagante. – Apenas no que diz respeito ao amor pelo filho e à herança da família. Jeff bebeu o martini de um trago. – Não estou certo de poder fazer aquilo que o seu patrão quer. Isto ultrapassa um bocadinho os limites da ética profissional. – O comte estaria a contratá-lo como consultor particular. Ninguém teria de saber, além do senhor, ele e eu. É-lhe indiferente a forma como atinge o objetivo desejado. Terá toda a liberdade. Nunca lhe seria pedido que violasse a sua honra profissional. – Não posso dar garantias de sucesso. – Com certeza. Ele tem consciência disso. Faça o que puder e, se falhar, será sempre cinquenta mil dólares mais rico.

– Tenho de pensar melhor nessa proposta. – Jeff já pensara, já aceitara e já começara a gastar o dinheiro mentalmente, mas não queria parecer demasiado ávido. – Prometo – disse a Beaucaire, enquanto apertava a mão do homem mais velho – – que tentarei ajudar, mesmo que não aceite a oferta do comte. – Bem-haja. Jeff sorriu de forma tranquilizadora. – Acredite, sou um especialista em lidar com mulheres manipuladoras.

Jeff sentia-se irritado quando chegou a casa de Sebastien nessa noite. À entrada, sentiu o cheiro de frango frito. Frango frito! Aprendera a reconhecer o aroma pesado e gordurento que pairava em todos os restaurantes baratos em que entrara em Atlanta. Era um odor penetrante, tipicamente sulista, uma mistura de banha a ferver e pedaços de aves ensanguentados. Dava vontade de entupir o nariz com tofu. – Estás a deixá-la cozinhar para ti? – perguntou a Sebastien. Sebastien estudou-lhe o rosto com olhos perspicazes. – Não te agrada. – Não… É só que nunca te tomei por um tipo doméstico. – És muito astuto. – Terei percebido bem? Ela só tem dezoito anos? – Sim. Como penso que sabes, isso também não é habitual em mim. – Pensava que sabia. Sinceramente, estás a abrir a porta a uma data de problemas, rapaz. – Hum. Já me arrependi de ter pedido a tua ajuda. Não admito que a insultes. Vamos esquecer o assunto… – Não, amigo, não vamos nada esquecer. Se queres alguém que saiba como lidar com mulheres histéricas, vieste ter com a pessoa certa. Vou dar-lhe o tratamento do irmão mais velho e acolhê-la debaixo das minhas asas sem arrancar uma única pena das suas asinhas de pintainho. Mas tenho de admitir que estou um pouco surpreendido. – Não mais do que eu. Vem conhecê-la. – Sebastien lançou-lhe um olhar sombrio, de aviso. – E, já agora, meu amigo, ela é a mulher menos histérica que alguma vez conhecerás. Não sejas condescendente. Jeff seguiu-o pelo corredor curvo, através da sala art déco, até à cozinha. Rapidamente, fez uma avaliação profissional da rapariga que, atarefada à frente do fogão, ergueu o rosto para eles. Os olhos dela desapareceram atrás das pestanas quando abriu um sorriso radiante para Sebastien. O sorriso tornou-se inseguro ao olhar para Jeff. Tinha um grande penso rápido no queixo. Uma agressão do pai, segundo Sebastien lhe contara. Os arquivos de Jeff estavam cheios de casos de pacientes que tinham sido vítimas de maus-tratos. Eram pessoas emocionalmente vulneráveis e desesperadas por encontrar segurança. Aquela jovem era o tipo de mulher que se aproveitava dos instintos protetores de um homem. Não admirava que Beaucaire estivesse preocupado. Compreendia por que razão Sebastien se sentira atraído: uma mistura intrigante de diversão e cautela

no rosto, o sorriso pateta e cativante, eram características intrigantes. O cabelo acobreado fazia uma curva graciosa em torno do rosto, encimado por uma franja irregular. As calças de ganga e a t-shirt branca simples exibiam as pernas compridas e um traseiro razoável. Os seios eram aceitáveis. No entanto, não passava de uma miúda de dezoito anos, estranha e tímida. Mesmo assim, conseguira mudar-se para casa de Sebastien e convencê-lo a pagar-lhe os estudos. Disfarçando o espanto, Jeff viu Sebastien dirigir-se-lhe e pegar-lhe na mão. Puxou-a para a frente, não com afeto óbvio mas com uma consideração solene que indicava ainda mais. Estava a tratá-la de igual para igual, ou assim parecia. – Amy, quero apresentar-te o doutor Atwater. Jeff Atwater. Jeff, esta é a minha hóspede, Amy Miracle. Jeff estendeu a mão. – Ora viva! – Olá. – Amy deu-lhe um aperto de mão firme mas breve. O rubor invadiu-lhe as faces. Enfiou os dedos nos bolsos das calças e olhou para um ponto no meio da camisa desportiva de Jeff. Este tentou puxar por ela. – Vejo que estás a fazer o jantar. Gostas de cozinhar? – Claro. – É frango frito, não é? – Sim. – Cheira muito bem – mentiu. A rapariga tinha um vocabulário de cinco palavras. Que mais teria, para ter cativado um homem como Sebastien? – Cheira-me a mais qualquer coisa. O que é? – perguntou, educadamente. – Esparregado. – Ótimo! Adoro. Então… O Sebastien mencionou que estás a pensar ir para a universidade no outono. – Sim. – Cruzou os braços à frente do corpo e fitou-o um segundo. Parecia que ia começar a saltitar de um pé para o outro a qualquer instante. Sebastien afastou-se e pegou num copo de vinho que estava na ilha. Ao passar por ela, acariciou-lhe os ombros. Talvez o gesto pretendesse tranquilizá-la. Se assim era, resultou: a rapariga relaxou visivelmente. Jeff ficou incomodado com aquela comunicação silenciosa entre os dois: para duas pessoas tão completamente inadequadas uma para a outra, parecia-lhe demasiado intensa. – O que queres estudar? – perguntou-lhe. – Ainda não sei bem. – Nos primeiros dois anos vai fazer um programa de disciplinas fundamentais – interveio Sebastien, enquanto despejava um líquido cor de âmbar no copo de pé alto. – Tem muito tempo para decidir a especialização. – Oh, vou optar por qualquer coisa respeitável – acrescentou ela rapidamente. Parecia determinada, quase intransigente. – Talvez venha a ser advogada. Agora que conseguira ouvi-la proferir uma frase completa, Jeff reparou melhor na sua voz. Além do

sotaque pronunciado da região, parecia que inalara hélio. As personagens de desenhos animados é que costumavam ter vozes assim, não as pessoas. Retomando o curso dos seus pensamentos, prosseguiu: – Escolhe uma profissão mais respeitável: roubar carros ou assaltar velhinhas, por exemplo. Por que raio havias de querer ser advogada? Ela enrubesceu como um tomate. – Bem, eu, hã… – Ignora-o. Tem motivos pessoais para não gostar de advogados – explicou Sebastien. Mais uma vez, pousou a mão nas costas da rapariga para a tranquilizar. Ela lançou-lhe um olhar de tamanha devoção como Jeff só tinha visto em animais de estimação leais, uma adoração totalmente pura e sincera. Praguejou em silêncio: uma miúda com uma paixoneta daquelas tinha mais potencial para causar problemas do que julgara. Sebastien passou-lhe um copo de vinho. – Um dos melhores vinhos que alguma vez provarás. Jeff soltou uma fungadela desdenhosa meio fingida. – Nacional ou importado? – Importado. E com o rótulo de Savin. Que mais queres? – Meu caro, um destes dias tenho de te levar às casas vinícolas da Califórnia. Depois de provares o produto nacional, perderás essa atitude francesa arrogante. – Pretensões californianas não fazem vinhos clássicos. – Sebastien piscou o olho à rapariga para a incluir na troca de palavras. Ela sorriu, de súbito mais à vontade. – Mais vale parecermos aquilo que somos do que fingirmos parecer aquilo que não somos. – Enunciou as palavras como se as recitasse. Sebastien soltou uma gargalhada, um som invulgar e dirigido em exclusivo a ela. – Lembraste-te. La Rochefoucauld. – Estava a ouvir com muita atenção quando me leste. – Riu-se e partilharam um olhar que sugeria conversas íntimas. Jeff suspirou. Céus, aquilo era ridículo! Resolveu retomar as rédeas da conversa. – Bem, Amy, se nós os dois vamos ser companheiros de casa durante alguns dias, acho que é melhor avisar-te já. Vou trazer a minha coleção de álbuns do Ray Charles. Espero que aguentes ouvir Hit the Road, Jack três ou quatro vezes por dia. Ela pareceu surpreendida. – Companheiros… de casa? A expressão de Sebastien ensombrou-se e olhou para Jeff com má cara. – Vamos conversar lá fora. A alegria da jovem dissipou-se. Pareceu contrair-se e, quando chegaram ao pátio e se sentaram nas

cadeiras de ferro forjado, parecia pronta para desaparecer no meio das almofadas cinzentas. Sebastien fitou-a com olhos firmes, mas não zangados. – Depois de eu partir, na segunda-feira, o Jeff ficará aqui contigo. Ele ajudará com os preparativos para a escola e tratará de te arranjar um sítio para viver na universidade. Amy estudou Sebastien em silêncio, com a boca apertada numa linha angustiada. – Achas que vou esbanjar o teu dinheiro, doutor? Ou que preciso de um cão de fila? – Não. Acho que precisas de um amigo. Há muitas coisas que desconheces. O Jeff estará aqui para garantir que não há qualquer problema. Jeff conteve um sorriso sardónico. Claro que aquela miúda podia esbanjar o dinheiro se não tivesse ninguém a controlá-la. As mulheres tinham sempre essa inclinação, independentemente da idade. A sua ex-mulher, por exemplo, deixara-o com uma dívida de mais de vinte mil dólares nos cartões de crédito. Jeff apanhou uma joaninha que se debatia no azulejo liso do chão e colocou-a num sítio seguro, na folha de um filodendro. Era o limite da sua compaixão pelas fêmeas de qualquer espécie. – Está bem – aceitou a rapariga. Olhou para Jeff. Tinha recuperado a dignidade suficiente para lhe lançar um olhar carregado. – Mas quero que saiba… Não, quero que compreenda, doutor Atwater, que não preciso de muita ajuda. Não sou um caso de caridade, alguém de quem tenha de sentir pena. – Voltou o olhar para Sebastien. – Quero que te orgulhes de mim, um dia. Ele estava visivelmente comovido. – Já estou muito orgulhoso de ti. Sei que te sairás bem. – E talvez voltemos a encontrar-nos. – Quem sabe? Jeff sorriu a ambos com expressão compreensiva, a mesma que usava com os pacientes iludidos. Eles não conseguiam ver como aquela situação se tornara patética e perigosa. Não admirava que o pai de Sebastien estivesse preocupado ao ponto de mandar Pio Beaucaire à procura de ajuda profissional. O facto de Sebastien lhe ter pedido para tomar conta da jovem aliviava a sua culpa. Tal tarefa prometia a fusão perfeita entre satisfação pessoal e profissional. Os duzentos mil dólares, claro, eram apenas um benefício acrescido.

Sebastien encostou o lenço de seda verde ao rosto dela. – Vês? É a melhor cor para ti. Da mesmíssima cor dos teus olhos. Amy olhou para o espelho oblongo em cima da vitrina. Estava demasiado distraída para se concentrar no seu rosto, com a testa franzida e o queixo cosido. Em vez disso, olhou para o reflexo do mundo de fantasia atrás de si. Os armazéns Neiman-Marcus. Já ouvira falar daquele sítio. Era como estar na igreja, e tinha vontade de sussurrar. Sebastien, mesmo vestido de forma simples, com calças cinzento-escuras e um polo branco com o pequeno brasão dos de Savin no peito, irradiava estilo de uma forma que indicava que a sua fortuna era

muito, muito antiga. As vendedoras tinham-no fitado de forma penetrante quando entraram, e depois lançado um olhar entendido a Amy. – Estás a ouvir? – perguntou ele. – Claro. – Olhou para si própria, com alguma relutância. – Verde. Está bem. Não me esqueço. – Soltou uma risada. – O que foi? – Nunca conheci um homem com tanto jeito para escolher roupa. – Os melhores estilistas do mundo são homens. – Mas são gays. – Nem todos. – Olhou para ela com malícia. – Talvez eu seja gay. Amy desatou a rir e tapou a boca. Abanou a cabeça com veemência. – Nem por sombras! Sebastien suspirou e pousou o lenço de seda sobre o ombro da t-shirt dela. Ficava estranho, contra um pano de fundo tão vulgar, pensou ela. Por outro lado, também era estranho andar às compras na Neiman-Marcus. – Não me sinto bem aqui – disse-lhe, com o humor a desaparecer. – Podemos ir embora? Ele apontou para os sacos empilhados ao lado dos pés dela. – Ainda não acabámos. – Doutor, eu posso fazer compras sozinha… depois. – Apontou para o lenço verde. – Não te preocupes. Vou comprar tudo verde. Até a roupa interior. – Pensei que gostarias de sair um pouco de casa. – E posso fazê-lo depois de tu te ires embora. Acho que nessa altura vou querer sair. Abatidos, trocaram um olhar silencioso e melancólico. Ele atirou o lenço para cima do balcão e pegou-lhe na mão. – Tenho andado a tentar adiar o inevitável. Quando voltarmos para casa, tenho de começar a fazer as malas. Amy soltou um suspiro desolado. – Oh… – Não posso protelar mais. É bastante simples… só vou levar roupas e artigos pessoais. O Pio… o senhor Beaucaire… tratará de fechar a casa e de vender tudo. – Assim, sem mais nem menos? Não vais ficar com nada? – Há pouca coisa aqui que seja importante para mim. Incluindo eu, pensou ela, com tristeza. – E os teus carros? – O Cord será enviado para França. – Encolheu os ombros, pouco preocupado. Amy sabia que nunca compreenderia como era ser assim tão rico. Sebastien enfiou a mão no bolso das calças e tirou umas chaves, que colocou na mão dela. – Pensei que talvez quisesses ficar com o Ferrari.

Saíram da loja, seguidos por duas funcionárias carregadas com as roupas novas. Amy não disse nada mas, quando chegaram junto do carro, devolveu-lhe as chaves. – Não posso conduzir. Pelo menos, por enquanto. Conduz tu. Sebastien assentiu com um aceno. Depois de se sentarem no interior luxuoso do Ferrari, com o sol forte e quente do dia de agosto a incidir sobre eles através da capota aberta, segurou-lhe no rosto e fitoua atentamente. – Não queres o carro? Por fim, Amy encolheu os ombros. – Pode ser. – Não me mates com o teu entusiasmo. Tenta controlar-te. Amy respirou fundo. – Preferia um bilhete só de ida para África. Viu as suas palavras impulsivas alterarem a expressão de Sebastien, os olhos dele a ficarem frios. – Isso é impossível. – Porquê? – Tinha de perguntar. Tinha de saber, mesmo que a pergunta o enfurecesse. – Não te daria trabalho nenhum. Faria tudo o que quisesses… – O que eu quero é que fiques aqui e que continues a estudar. – Mas se gostas assim tanto de mim, porque… – O assunto está encerrado, Amy. – Não, não! – exclamou, com os punhos no ar, frustrada. – Como podes ser tão maravilhoso comigo… como podes dar-me todas estas coisas, levar-me para a cama e tocar-me como me tocas e nunca mais querer voltar a ver-me? – Avisei-te desde o princípio que seria assim. Nada mudou. Não estragues os nossos últimos dois dias com perguntas infantis. – Não sou nenhuma criança! Não podes… não podes ter sexo comigo como se eu fosse uma mulher adulta e depois falar comigo assim. Não me interessa que tenhas mais onze anos do que eu. Ainda nem fizeste trinta! – Sou uma eternidade mais velho do que tu. E não vou levar-te comigo para África. Agora, queres odiar-me e ficar zangada nas próximas quarenta e oito horas, ou vais aceitar a realidade? – Porquê? – Estava agora a implorar. – Serei assim tão horrível? Tens vergonha de mim? Sebastien pegou-lhe nas mãos e puxou-as ao de leve, com uma expressão tensa no rosto. – Não. Garanto-te que não é isso. Se eu te levasse para África, entediar-te-ias e ficarias ressentida, porque vou ter de trabalhar muitas horas. Sentir-te-ias deslocada num país estranho: não falas francês, que é a única língua que se ouve naquela parte de África, além das línguas nativas, e não terias amigos. – A voz de Sebastien enrolou-se à volta dela como um chicote. – Acabarias por odiar-me. – Diz-me a verdade. Sou demasiado nova. Não sou culta o suficiente. Nunca encaixaria no mundo de onde tu vens.

– És mesmo nova de mais. E precisas… não, mereces uma educação melhor. E sim: nunca encaixarias nesse mundo, mas eu não quero que encaixes. Quero que sejas aquilo que és, porque és maravilhosa. Já vi o que acontece quando uma pessoa com um espírito único é obrigada a mudar. – Estás a tentar com que pareça que me vais deixar para o meu próprio bem. – E, de certa forma, é verdade. Ouve-me bem, Amy: és adulta e eu estou a tratar-te como tal. Agora, tu tens de te comportar como se o fosses. Faz o que é melhor para o teu futuro; fica aqui e estuda. A atitude desafiadora de Amy esfumou-se. Era inútil discutir com Sebastien. Faria figura de parva e estragaria o pouco tempo que lhes restava juntos. Porém, em tom abatido, não consegui evitar uma última pergunta: – Os adultos dormem juntos e a seguir esquecem-se deliberadamente de que se conheceram? É isso que significa ser uma pessoa crescida? Sebastien encostou-se no banco, também sem vontade de discutir mais, e esfregou a testa. – Às vezes. – A tua mãe sabe disso? – A minha mãe morreu. Contei-te na outra noite, lembras-te? – Era uma piada. Não percebeste. – Estás a ver? Metade das vezes nem sequer compreendo o teu humor. Ias fartar-te de andar sempre a explicar-me as tuas piadas. – Pegou nas chaves do Ferrari, deixou-as cair e praguejou furiosamente entre dentes. Amy olhou para ele, entorpecida mas surpreendida. Afinal, Sebastien não estava zangado com ela, mas sim consigo próprio. Quando se apercebeu disso, estendeu o braço e pegou-lhe na mão. – Vou comportar-me como uma adulta – garantiu-lhe. – Mas nunca te esquecerei. O cirurgião fitou-a com fogo nos olhos. – Esquecerás, sim. Garanto-te. – Nunca. – Pegou na chave e enfiou-a na ignição. – Vamos. E cuidadinho com o meu carro.

Ajudou-o a fazer as malas, alisando com os dedos cada camisa, acariciando cada livro, estudando as fotografias de família nas suas simples molduras de prata, porque cada uma dessas imagens era uma ligação ao mundo dele. A irmã e o irmão de Sebastien eram muito parecidos com ele, embora fossem ambos mais novos e o irmão tivesse um sorriso arrogante, quase insultuoso. A mãe dele, de pé em frente de um jardim florido numa fotografia antiga e desbotada, olhava para o mundo com um sorriso tímido, os olhos escuros a espreitarem por baixo das sobrancelhas arqueadas. Era uma pessoa tão delicada, de aparência tão excêntrica, que quase poderia ser um elfo que tivesse saído do meio dos malmequeres por um segundo apenas para posar para a fotografia. Amy sentiu uma empatia imediata: também ela parecia deslocada. Virou a moldura, relutante em largá-la. Na parte de trás estava escrito «La comtesse de Savin, 1957». – O que achas tão fascinante? – perguntou Sebastien com maus modos, aproximando-se.

Amy apontou para o nome. – O que significa La comtesse? – É um dos títulos antigos. Já ninguém lhes liga, hoje em dia. A minha mãe nunca o usava. – Mas… queres dizer que isto é como um título nobre? – Algo desse género, sim. Mas não significa nada. – Tu… tu és da nobreza? – Apenas nos círculos mais pretensiosos – respondeu Sebastien com um sorriso sardónico, enquanto guardava caixas de sapatos num baú. – E tu, tens algum título? Ele bateu com os calcanhares e fez uma vénia. – Visconde de Savin, ao seu serviço. – Devo fazer uma vénia, ou saltar para a minha abóbora e partir? – Perante a expressão confusa de Sebastien, explicou: – Como a Cinderela. Sabes, quando a festa acaba e a carruagem se transforma de novo numa abóbora? – Enrolou a fotografia da mãe dele em plástico com bolhas e colocou-a numa caixa, com as mãos a tremer. Sebastien abraçou-a. – Vem comigo. A festa ainda não acabou. Conduziu-a até ao pátio e sentaram-se juntos numa espreguiçadeira, abraçados, a ver o sol a pôr-se no céu raiado de roxo. Algum tempo depois, despiram-se e fizeram amor ali, Amy sentada em cima dele, com os joelhos enterrados nas almofadas grossas da espreguiçadeira. Sebastien apertou-lhe as coxas com força enquanto ela se baloiçava em cima dele, com os olhos semicerrados. Amy sentiu-o mover-se dentro dela como uma onda de tristeza. Naquela noite não estava interessada em prazer; a proximidade seria suficiente. Inclinou-se e enfiou os braços debaixo do corpo dele, apertando-o contra si enquanto as mãos de Sebastien deslizavam para as suas ancas e a detinham. – Fica quieta – pediu-lhe, com gentileza. – Encosta a cabeça ao meu ombro. Isso, assim. A outra necessidade é pouco importante. Mais tarde, Amy deitou-se ao lado dele e Sebastien levantou-lhe a mão direita e beijou o coração torto tatuado no pulso. – Um destes dias vou mandar remover esta tatuagem – garantiu Amy. – Não. Não é vergonha nenhuma. – Beijou a linha de pontos sob o queixo dela. – Não é vergonha nenhuma. A jovem tocou com a ponta do indicador na cicatriz que ele tinha no queixo. – Podes explicar-me como é que fizeste isto? Sebastien assentiu. Contou uma história muito resumida do acidente que matara a sua família e o deixara ferido – como a carrinha derrapara no gelo numa estrada na montanha quando tinha dez anos – e Amy ouviu-o, fascinada e triste. Ele falava das mortes sem emoção e pareceu-lhe que mal se lembrava delas, já que acontecera há tanto tempo.

Ajudou-o a acabar de fazer as malas, que ele colocou no vestíbulo, juntamente com as caixas e os baús. Ainda assim, a casa parecia inalterada: Sebastien tirara apenas um relógio aqui, alguns livros especiais ali. Cozinhou para ela nessa noite, mas nenhum dos dois comeu muito. Amy arrumou a cozinha, vestida apenas com a camisola interior branca de Sebastien. Ele ficou sentado ao balcão, a verificar os apontamentos que fizera sobre os planos de viagem, mas às vezes, quando olhava para ele, Amy apanhava-o a observá-la. Acabou de arrumar a loiça e ficou a olhar para a fila de vasos com ervas aromáticas no parapeito da janela. – Estas plantas vão morrer – constatou, infeliz. Percebeu que estava a apertar as mãos uma na outra, com tanta força que lhe doíam as articulações. Sebastien aproximou-se e acariciou-lhe o cabelo. Vestia apenas calças de fato de treino azuis e, quando encostou a cabeça a ele, sentiu o cheiro do seu perfume barato na pele nua do peito dele. – Porque não as levas? – sugeriu ele. – Obrigada. – Fechou os braços à volta da cintura dele e apertou-o com força. – Veste qualquer coisa. Vamos dar um passeio. Vai ajudar. Caminharam em silêncio na noite de verão. Os sentidos de Amy estavam embotados pela tristeza; mal suportava a doçura pungente no ar, repleto do perfume de flores e do cheiro de relva recém-cortada proveniente dos jardins bem tratados. As luzes das casas brilhavam por trás de reposteiros caros, alegres e vivas, num contraste tão forte com a miséria que a invadia que nem conseguia olhar para elas. – O Jeff Atwater chega amanhã de manhã, às nove – avisou-a Sebastien. Apertou-lhe mais a mão, mas continuou a olhar em frente. – Antes de eu sair para o aeroporto. – Está bem. – O meu voo parte às onze. Vou levar só duas das malas. O Pio Beaucaire mandará alguém vir buscar as outras, amanhã à tarde. Ela puxou-lhe a mão para o fazer parar de andar e ergueu os olhos cansados para ele. – Por favor, não fales mais disso… – Tens de te manter ocupada. O Jeff e uma das suas muitas amigas vão levar-te a sítios… jantares, concertos. E dentro de menos de um mês tens de te preparar para começar as aulas. – Está bem, está bem. E o que é que tu vais fazer? – Trabalhar. Vou apresentar-me no hospital assim que chegar a Abidjan. Os olhos dela fitaram-no com gravidade. – E daqui a dois anos voltas para França? – Sim. Amy assentiu com um gesto de cabeça, mas não disse nada. Estava a aprender quando devia falar e quando era melhor ficar calada. Um pequeno plano começou a arder dentro dela, fazendo com que o dia seguinte não parecesse tão terrível: dali a dois anos, quando fosse mais velha, mais culta e mais respeitável, iria à procura dele.

A manhã chegou cedo de mais, desoladora e implacável. Sebastien tomou um duche lento, triste por ter de perder o cheiro do corpo dela. O que traria Amy à sua vida, se lhe desse essa oportunidade? Estaria a ser louco, ao virar costas à única pessoa que o fazia sentir-se capaz de amar? Mas como podes condená-la ao teu estilo de vida? Amy devia ir para a universidade; devia desenvolver a sua própria independência e amor-próprio, agora que estava longe daquele bruto do pai, que tanto a intimidava. Enquanto se vestia, olhou para o espelho por cima do lavatório da casa de banho e viu claramente os seus olhos assombrados. Daqui a dois anos, quando deixar África, talvez possa voltar e procurá-la. Até lá, deixá-la-ia em paz. Deixá-la-ia decidir se se sentia mais atraída por rapazes brincalhões e divertidos, mais da sua idade. Deixá-la-ia experimentar um pouco do que o mundo, que se alargara tão recentemente, lhe podia oferecer, da quantidade de escolhas disponíveis. E depois, se Amy ainda achasse que o amava, e fosse madura o bastante para compreender os perigos, talvez… Entrou no quarto. Amy estava sentada na beira da cama, com uma almofada apertada contra o peito, de cabeça baixa. Vestia calças de ganga e uma das blusas novas, cor-de-rosa, e ténis também novos, de um branco ainda imaculado. Parecia uma estudante universitária e isso ajudou-o a manter a sua decisão. Atravessou o quarto e sentou-se ao lado dela. De súbito, sentiu um nó na garganta. Ficou contente quando a jovem largou a almofada e o abraçou, encostando o rosto molhado das lágrimas ao seu pescoço, pois assim não teve de falar. – Já estou com olhos papudos. – Mas são olhos papudos lindos. Amy soltou uma risada trémula. – O doutor Atwater já cá está – murmurou. – Na cozinha. Disse que me ia levar a tomar o pequenoalmoço depois… tu sabes, depois. – Eu falo com ele antes de sair. Um estremecimento percorreu-a ao ouvir essas palavras. – Não quero comer, mas vou com ele tomar o pequeno-almoço. Vou ficar bem. Sou tão forte como tu, sabes? E vou fazer com que te orgulhes de mim. Sebastien encostou a face à cabeça dela e fechou os olhos. Nunca rezava; nem tinha a certeza de estar a orar agora a alguém ou a alguma coisa em particular, mas deu por si a implorar, em silêncio: Por favor, que esta seja a decisão certa. – Podes fazer o que quiseres com a tua vida – pediu-lhe. – Faz isso por mim. És muito especial. Nunca mais deixes ninguém dizer-te o contrário. – Vou tentar. E tu… Sebastien… por favor, não olhes tanto para o lado negro das coisas. Tenho medo por ti. – Limpou os olhos com gestos bruscos. – Pareço uma miúda que viu A Guerra das Estrelas demasiadas vezes. Mas tens de lutar contra o lado negro da força, está bem? – Sim. Vou tentar. – Beijou-a, tentando saborear aquele último contacto tanto quanto podia. Depois ela levantou a cara e beijou-lhe os olhos, a testa, as faces, a ponta do nariz e, por fim, a cicatriz do queixo.

– Somos parecidos – declarou, passando o dedo na cicatriz dele e na sua. – Isso deixa-me feliz. Sebastien debateu-se por um momento. – A mim também. – Respirou fundo e tentou expulsar as dúvidas do seu peito juntamente com o ar. – Está na hora, Amy. Ela soltou um soluço estrangulado e beijou-o outra vez. Sebastien deitou-a na cama e acariciou-lhe o rosto, com as mãos a tremer um pouco. Quando retirou com gentileza os braços dela do seu pescoço, Amy virou-se muito depressa e escondeu o rosto numa almofada, com as mãos a amarrotarem a fronha de seda. – Não consigo olhar. Adeus. Adeus. Amo-te tanto. Vou amar-te para… – Amy, não – interrompeu-a com frieza, inclinando-se e beijando-a no alto da cabeça. – Dás tanta felicidade aos outros. Agora vai e encontra a tua. Saiu do quarto, fechou a porta e ficou um instante ali parado, de olhos fechados. Afastar-se de Amy era a coisa mais difícil que alguma vez tivera de fazer. Em comparação com isso, admitir que a amava parecia fácil.

Segunda Parte

Capítulo 8

Sentada no chão do pequeno quarto, na residência universitária, Amy debruçou-se sobre o livro e roeu a ponta do lápis, tentando concentrar-se. Por Sebastien, até suportaria a Matemática. Nos últimos dezassete meses aprendera muito sobre sobrevivência, embora aquele fosse um género de resiliência diferente do seu comportamento no passado, quando tudo o que queria era que não reparassem nela e se encolhia perante o mundo. Tornara-se mais confiante. A sua própria capacidade de ter boas notas, de falar com desconhecidos, de gerir a sua vida sem supervisão de ninguém espantava-a. Aprendera que uma pessoa se podia levantar todas as manhãs e viver cada dia, apesar da tristeza. Ligava a Jeff Atwater sempre que precisava dos conselhos de alguém mais experiente e ele estava sempre pronto para a ajudar. Telefonava-lhe regularmente só para conversarem, e Amy adorava a camaradagem descontraída que havia entre os dois. Vinha visitá-la com alguma frequência e conversavam longamente acerca do passado e do pai de Amy. Jeff ajudara-a a perceber como deixara que o problema do pai arruinasse a sua autoestima. Com a sua orientação, Amy recuperara segurança suficiente para conseguir até suportar os jantares com o pai e Maisie em ocasiões festivas. No entanto, essas eram as únicas alturas em que tolerava a presença deles. Querido Jeff! Com o tempo, ganhara-lhe um afeto genuíno. Olhou para o relógio, ansiosa. Minutos depois ouviu, com surpresa, passos no corredor e pancadas violentas na porta. – Não podem mantê-la prisioneira aí dentro! Sei que têm aí a princesa! Baixem já a ponte levadiça! A rir, correu para a porta e abriu-a. Jeff estava do outro lado, com uma flor na mão, uma poinsétia encarnada. – Chegaste uma hora antes! – É Natal, minha querida. Não devias estar a estudar. – Por cima das calças de ganga justas e de uma camisola de malha colorida, vestia um casaco que parecia ter sido feito de uma manta Navajo. – Vai buscar o casaco e vamos comer. Estou a morrer de fome. Oh! Uma flor para ti. – Estendeu-lhe a poinsétia com falsa timidez. Amy pousou-a na pequena cómoda, acariciou as folhas brilhantes e sorriu. – Obrigada. Já ganhei o dia. Jeff espreitou para dentro do quarto, para a metade que fora esvaziada das coisas da sua companheira de quarto. – Perdeste outra? – Sim. Ela ia chumbar, por isso foi-se embora mais cedo para passar o Natal com a família. – Enfiou uma gabardina pesada por cima das calças de ganga e camisola e guardou a chave do quarto e a carteira

nos bolsos. – Será de mim? Darei azar? Porque é que estou sempre sozinha? Jeff puxou-a para o corredor e fechou a porta. – Porque não podes ser de mais ninguém a não ser minha – respondeu com um esgar maravilhosamente devasso, fazendo-a rodopiar até a jovem estar ofegante. Continuando a rir, Amy abraçou-o. – Isso mesmo. Sou toda tua. – De braço dado, percorreram o corredor. Depois de jantarem num restaurante na cidade, regressaram a pé ao campus. Num parque, perto do edifício da reitoria, sentaram-se por baixo dos carvalhos imponentes, de ramos nus, a observar os candeeiros da rua acenderem-se com o cair do crepúsculo. – Os responsáveis por aquilo são os elfos, sabes – anunciou Jeff. – Sim, e o Pai Natal está a fazer queixas ao sindicato por causa das horas extra. – Apertou as mãos sobre as pernas e tentou soar casual. – Suponho que o Sebastien não te mandou um postal de Natal, ou coisa do género, pois não? A disposição de Jeff mudou imediatamente. Era sempre assim quando falava em Sebastien. – Ele alguma vez me mandou um postal ou uma carta, Amy? – Não, mas… – Em quase um ano e meio, alguma vez escreveu ou ligou para saber como tu estás? – Não, mas estou sempre a pensar que… – Amy, minha querida Amy. – O tom de voz era agora adulador. Pousou-lhe a mão na nuca e acariciou-a com as pontas dos dedos. Fazia-lhe sempre isso quando falava em Sebastien. – Ele não está interessado em ti, Amy – murmurou. – Por enquanto. – Para sempre. Os olhos de Jeff prenderam os dela e aproximou-se tanto que sentiu a respiração dele na face quando falou: – Vais esquecer o Sebastien. Ele não vai voltar. Aceita esse facto. Diz, Amy. Diz em voz alta: «Não há futuro para nós os dois juntos. Tenho uma vida para viver sem ele. O Sebastien esqueceu-me. Não vou agarrar-me a ideias pouco realistas sobre ele.» O tom de voz de Jeff era hipnotizante. Ele parecia tão triste! Mas Amy abanou a cabeça. – O Sebastien pertence-me de uma forma especial. Nunca o esquecerei. – Amy, não te magoes a ti própria com fantasias. Sempre que Jeff começava a falar-lhe naquele tom suave, Amy sentia-se a arder com confusão e medo. E se o psiquiatra tivesse razão? Porém, nunca conseguira concordar com ele. Jeff, em vez de ficar zangado, limitava-se a esfregar-lhe as costas e continuava a falar, sempre em tom de voz baixo, às vezes quase num murmúrio. Como agora. – Mereces ser feliz – insinuava. – Compreendo a tua solidão. Compreendo como é ter necessidades, necessidades normais. Sentes falta do Sebastien porque queres ser tocada, abraçada.

– Eu sei que compreendes. Posso falar contigo sobre tudo. Mas «ter necessidades» não é o mesmo do que precisar de uma pessoa em concreto. As pontas dos dedos dele massajaram-lhe a nuca. Era uma sensação maravilhosa que a manteve hipnotizada, de olhos fixos nos dele. – Acredita em alguém que já se sentiu sozinho, querida. Há necessidades demasiado importantes para serem ignoradas. O olhar dele baixou para os lábios de Amy. Ela sentiu uma pontada de surpresa e depois uma profunda desconfiança. – Queres que te beije? – Jeff sorriu-lhe, tranquilizador. – Só para te provar que és capaz de beijar alguém que não seja o Sebastien. Se o amas assim tanto, não sentirás nada com outro homem. – Embora seja inexperiente, sei muito bem que as coisas não funcionam assim. – Tens medo? Os adultos não têm medo de alargar os seus horizontes. O tom provocante espicaçou-a. Afinal de contas, ele não estava a falar a sério. Era apenas o bom e velho Jeff, amigo de Sebastien e seu. Com o coração aos saltos, inclinou-se e deu-lhe um beijo rápido nos lábios. – Pronto, já está. – Gostaste? – Não trocaria um gelado por isto. Por falar nisso, acho que prometi que te comprava um. Anda, vamos embora. – Creio que não me deste uma oportunidade justa. Os dedos de Jeff apertaram-lhe a nuca com gentileza. Puxou-a para si e encostou a boca à dela. As memórias dos beijos de Sebastien vieram à superfície com um detalhe angustiante. Com os olhos fechados com força, Amy devolveu o beijo. Era tão fácil fingir… e tão simples trazer todo o sofrimento de volta. – Para – implorou, com a boca na dele. Afastou-se bruscamente, a tremer. Jeff levantou a mão e acariciou-lhe o rosto. – Vês? – afirmou, em tom ríspido. – Não tens nada de que te envergonhar. É uma necessidade humana normal. Tens de deixar que alguém te mostre como seria fácil satisfazê-la. Só assim poderás abandonar as esperanças impossíveis. Amy afastou-se dele, furiosa consigo própria por ter sentido algo. – Açúcar falso é pior do que açúcar nenhum. A respiração irregular de Jeff formava pequenas nuvens de vapor no ar frio. Parecia também ter ficado um pouco perturbado. – Açúcar falso? – Largou-a e pousou a mão no joelho. – Acabas de esmagar os meus cubos, Amy. – Abanou a cabeça e riu-se. O ambiente pesado dissipou-se. – Muito bem. Lição concluída. Amy levantou-se, atrapalhada, com os olhos a arder. – Se calhar não és o tipo de amigo que eu pensava que eras.

Jeff levantou-se rapidamente. – Sou teu amigo, e nunca te esqueças disso. – Quando Amy deu meia-volta e começou a andar, ele pegou-lhe no braço. Depois, num gesto súbito, passou-lhe o braço pelos ombros e apertou-a contra si. – Peço muito desculpa, minha querida. – O seu tom de voz era absurdamente lamentoso. – Sou apenas um velho de trinta e um anos a tentar divertir-se um bocadinho antes que os dentes lhe caiam. – Ou antes que alguma mulher tos parta. – Amy olhou para ele de testa franzida. Com a mão livre, Jeff apertou o coração. – Perdão, bela dama, perdão! Não dês importância à tentativa galante deste velho… Só queria ver-te feliz. Amy sentiu-se um pouco idiota. Talvez estivesse a ser exagerada. – Está bem, está bem. – Libertou-se do braço dele e encolheu os ombros. – Mas chega de lições. – Prometido – garantiu-lhe Jeff em tom solene.

Amy apertou o jornal e o saco dos livros quando um solavanco do autocarro a atirou contra o passageiro do lado, e resmungou entre dentes. Tinha uma pilha de trabalhos para acabar, passara o dia agoniada por causa da apresentação de um livro que tinha de fazer na aula de Literatura Inglesa, e a sua mais recente companheira de quarto fora expulsa por ter ateado um incêndio numa das residências universitárias para rapazes. Já era a quarta em seis trimestres: duas delinquentes juvenis que haviam sido expulsas e duas que se tinham mudado para a casa de uma fraternidade. A solidão estava a doer-lhe mais do que o habitual. Olhou para a janela. Ela e a rapariga sentada ao seu lado baloiçavam, como todos os outros estudantes molhados e descompostos, enquanto o autocarro subia uma das intermináveis colinas da universidade. Era impossível conduzir o Ferrari no campus. O estacionamento era complicado e estava sempre com medo de que o carro fosse vandalizado ou roubado. Tinha-o guardado numa pequena garagem na cidade. Coitadinha. Não pode levar o carro desportivo caro para as aulas. Amy ralhou consigo própria. Tinha uma boa vida. Tinha bastante dinheiro. Tinha tudo o que podia desejar. Claro. Viu a chuva fria deslizar pela janela do autocarro. Tirou as luvas e enfiou-as no bolso do casaco acolchoado. Depois abriu o jornal estudantil, The Red and Black, na página dos classificados. O anúncio saltou-lhe à vista como a luz salvadora de um farol.

Procura-se companheira de quarto para bonita casa antiga a um quarteirão do campus Levas os estudos a sério? És conservadora? Fácil de lidar? Interessada em comida saudável, exercício físico, a casa da mamã e tarte de maçã? Isso é nojento e

não te quero perto de mim. Mas se estás à procura de uma aventura numa casa barata, liga para a Mary Beth.

Surpreendida, Amy riu-se. Fosse lá quem fosse, aquela mulher tinha jeito com as palavras, sentido de humor – e um problema de atitude. Apontou o número e ligou para a intrigante Mary Beth assim que chegou ao quarto. Uma voz masculina, que lhe trouxe à mente imagens de pescoços encarnados demasiado grossos e abuso de esteroides, disse-lhe que Mary Beth devia estar a chegar do ensaio do coro na sinagoga e, educadamente, explicou-lhe onde ficava a casa, acrescentando que a renda do quarto era de apenas cem dólares por mês. A casa já tinha visto melhores dias. Na verdade, já tinha visto melhores décadas, provavelmente antes da Segunda Guerra Mundial. Amy estacionou o carro junto do passeio rachado, por baixo de uma nogueira tão inclinada para o lado como um bêbado a tentar contar um segredo. Perto estava estacionado um Honda Civic encarnado com muitas mossas. A matrícula dizia «DVRTDA». O autocolante no parachoques dizia «Nascida Para Curtir». Com as palmas das mãos húmidas, Amy atravessou o jardim maltratado e subiu os degraus de cimento até um alpendre que, recentemente, fora sujeito à ideia que alguém tinha de uma boa pintura. Abriu a porta de rede empenada e bateu na madeira riscada da porta. Segundos depois a porta foi aberta por uma loira pequenina, vestida com calças de ganga e um quimono, com um cigarro entre os lábios, os pés calçados apenas com meias, afastados em cima do linóleo amarelo. Tinha o cabelo igualzinho à juba de Farrah Fawcett, e o rosto suficientemente sério para ser belo, apesar do ar de menina da claque fofinha. Quando levantou a mão para se coçar debaixo do outro braço, com toda a elegância de um camionista, exibiu umas unhas magníficas, pintadas com verniz cor de pêssego. A inquietação de Amy aumentou. Não tinha nada em comum com aquela rapariga. – Ah… Liguei por causa do anúncio… para alugar um quarto… – Deves ter falado com o Harlan. Ele estava só de passagem, antes do treino de futebol. – A voz da pequena loira tinha a profundidade da voz de um DJ e vogais dignas de uma debutante de sangue azul. – Bom, entra, querida. Espera… não és caloira, pois não? Mais depressa meto em casa um assassino em série ou um traficante de droga do que me sujeito a perder tempo com mais caloiros imbecis. – Estás com sorte, estou no segundo ano. Estive os últimos seis trimestres em Brumby. A minha última companheira de quarto era caloira. Uma noite, vomitou na minha cama. Eu nunca fiz isso a ninguém quando era caloira. – É evidente que tens estilo. Seis trimestres em Brumby? – Passei lá o verão também. – Céus, e não tens tendência para roer queijo e agitar os bigodes? Aquilo é um ninho de ratos. Muito bem, entra e senta-te, para podermos conversar. Já agora, também estou no segundo ano. – Ouve, eu… ah… não sou judia. Há problema? A pessoa que telefonou mencionou que estavas na

sinagoga, e pensei que talvez quisesses uma companheira de quarto judia… – Tens medo de que eu te obrigue a comer pratos judaicos? – Estou disposta a experimentar. Sem problemas. A loira estudou-a com atenção. – Sou judia pelo lado da minha mãe. A outra metade da família é composta por maluquinhos fundamentalistas cristãos. A combinação deixa-me constantemente confusa. A minha avó Rose chama-me shiksa e a minha avó Melanie «princesa judia americana». Os meus pais não querem saber o que eu sou, desde que seja perfeita. É uma chatice. Amy começou a sorrir. – Eu não sou nada. Portanto, por mim, podes ser o que quiseres. – Sê algo, miúda! Sê uma princesa judia americana shiksa rebelde como eu! Mas, sejas aquilo que fores, orgulha-te de quem és! – A loira agitou a mão. Amy seguiu-a para uma sala de estar mobilada com peças em segunda mão. – Estilo Exército de Salvação! Fantástico, não é? Espera só até eu pôr tudo nos sítios. Só me mudei para cá há uma semana. Sentaram-se num sofá de xadrez. – Muito bem, cá vai a história triste. Fui corrida da minha fraternidade por ser demasiado liberal. É o que acontece quando aderimos à Organização Nacional das Mulheres, à Associação Nacional para o Progresso da Raça Negra e à União Americana das Liberdades Civis, tudo no mesmo trimestre. Os meus pais cortaram-me a mesada por ter sido expulsa. Sabes, querida, é que eu quebrei uma tradição com três gerações. Portanto, agora sou uma debutante rebelde. Mas, como vou ser a próxima Barbara Walters, estou-me nas tintas. Só que tenho de pagar as contas até receber a chamada da estação televisiva. Tenho uma média muito alta e gosto tanto de estudar como de me divertir. Eu arrendei a casa e tu arrendas-ma a mim. Continuas interessada? Também tens de participar nas contas. Amy acenou, hipnotizada. De alguma maneira estranha, fazia tudo sentido. Pouca coisa lhe parecera tão lógica naqueles meses desde a partida de Sebastien. – Está bem. Ótimo – respondeu à rapariga. – Eu estou por minha conta, como tu. E também sou ambiciosa. Estou a tirar o curso de Gestão Internacional. Tenciono trabalhar em França depois de me formar. – Sendo assim, seremos cabras ambiciosas juntas. – A loira esticou a mão. – Mary Beth Vandergard. Bem-vinda à diversão, querida.

Amy mudou-se nesse fim de semana. Mary Beth saiu de casa para admirar o Ferrari. – Merda, porque é que não compras uma casa? – Não sou rica. – Com cuidado, Amy pegou numa caixa que estava no banco do passageiro. Continha as ervas aromáticas que Sebastien lhe dera. Apertou a caixa contra o peito para a proteger do frio de fevereiro e dirigiu-se à casa. Mary Beth seguiu-a.

– Amor, espero bem que não sejam plantas ilegais. – São ervas aromáticas. Eu não… não uso drogas. – Amy olhou com ansiedade para ela. – E tu? – Oh, não posso afirmar que nunca fumei um charro numa festa. Mas não quero essas merdas em minha casa. – Por mim, ótimo. – Então, como é que arranjaste aquele carro? – Foi um presente. – De quem? Dos teus pais? – Não. – Entraram em casa. – Querida, tens de te abrir mais. Fala. Vá lá. Estou a estudar Jornalismo, ok? Não podes escapar às minhas perguntas incisivas e profundas. – Mary Beth riu-se. – Além disso, posso ser pequena mas consigo fazer-te em merda se não cooperares. – Sabes que disseste «merda» três vezes nos últimos cinco minutos? É um recorde? – Nem perto disso. Amy franziu a testa enquanto percorria o corredor comprido, com a caixa das plantas nos braços, até ao quarto que lhe fora destinado, uma divisão grande e com cheiro a bafio mesmo em frente da cozinha. Adorava aquele quarto: era só dela. Não tinha de o partilhar com ninguém, da mesma forma que não queria partilhar as suas memórias. Passara meses a pensar que ia definhar e morrer com a falta de Sebastien, e só agora começava a sentir-se melhor. Tencionava ir a França no verão seguinte. Faltavam apenas alguns meses. – Na verdade… sabes, não gosto muito de falar – insistiu, apesar de se detestar por se sentir tão pouco à vontade com alguém da sua idade. Mary Beth cruzou os braços sobre a camisola de futebol com o número de jogador do namorado, Harlan, e suspirou, impaciente. – Muito bem, Amy. É assim: eu sou uma miúda bisbilhoteira e falo de mais, mas sei ser uma boa amiga. Não quero uma companheira de casa que me trate como uma senhoria. Amy cerrou os dentes. – Então porque não pedes a uma amiga para vir viver contigo? – Porque preciso do dinheiro da renda para ajudar a pagar as contas deste mês e nenhuma delas se conseguia mudar a tempo. Além disso, são todas idiotas. A ideia de diversão delas é beber até cair para o lado e vomitar. Queria conhecer uma pessoa nova. Alguém com objetivos. – Sacudiu o dedo. – Mas não quero uma amêijoa aqui a morar. Nada de introvertidos. Amy largou a caixa em cima da cama que comprara na véspera, numa loja de mobílias em segunda mão. – Nem todas as pessoas do mundo são como tu, sabes? Algumas de nós têm uma certa dificuldade em falar de si próprias! – Credo, quando te irritas deixas de falar e guinchas. Que voz fantástica! O meu professor de

oralidade vomitava de desespero se te ouvisse. Ele nunca conseguiria mudar essa voz. – Ouve; chamaste-me amêijoa, gozaste com a minha voz e basicamente admitiste que só me deste o quarto porque precisas de dinheiro depressa. Queres espezinhar mais a minha autoestima e despachar já esse assunto? – Eu sabia! Eu sabia que se conseguisse irritar-te ficaria tudo bem! – Mary Beth abraçou-a. – Ninguém aguenta muito tempo perto de mim sem aprender a defender-se. Surpreendida, Amy pensou por um instante no que Mary Beth dissera. Desatou a rir. Mary Beth deixou-se cair em cima da cama e arrotou, com ar satisfeito. Amy estudou-a, cada vez mais assombrada, e decidiu que a loira pequenina podia muito bem vir a ser uma bênção inesperada.

– Estás a viver com uma sociopata – declarou Jeff, sem rodeios. Estava a dar a volta à sala e a observar os posters dos Grateful Dead que pertenciam a Mary Beth. Depois pegou numa navalha de mola que a rapariga deixara em cima da mesinha de café. – Suspeito que se trata de um caso clássico de distúrbio de personalidade. – Não é violenta – garantiu Amy. – E gosto dela. Trabalha em part-time numa das estações de rádio locais, como repórter e DJ. Vai seguir jornalismo televisivo. Espero que possas conhecê-la, um destes dias. – Se possível, prefiro continuar a evitar esse prazer. – Anda ver o meu quarto. Demorei semanas a pô-lo como queria. Percorreram o corredor até ao quarto dela. Jeff deu dois passos longos até ficar no centro da divisão e olhou em volta com uma expressão estranha. – Há paredes por baixo destes posters todos de França e de África? Amy sorriu. – Gosto de posters. Além disso, o papel de parede tem buracos. Jeff parecia cada vez menos divertido: primeiro apontou para uma mesa de cabeceira feita de dois caixotes de fruta, depois para as toalhas que Amy enfiara nos caixilhos da janela para não deixar entrar as correntes de ar. – Por que raio é que queres viver assim? O Sebastien deu-te dinheiro suficiente para teres o teu próprio apartamento e uma vida confortável. Em que é que o andas a gastar? Amy ficou tensa e endireitou as costas, orgulhosa. – Estou a poupá-lo. Vou devolver-lhe o máximo que conseguir. A expressão surpreendida no rosto de Jeff era quase insultuosa. – Então e como vai a tua vida social? – perguntou o psiquiatra, mudando abruptamente de assunto. – Qual vida social? Todos os trimestres faço algumas cadeiras extra e tirei notas altas em todas as disciplinas. Passo o tempo a estudar. – Porquê? Devias divertir-te e a tirar notas medianas.

– Quero arranjar um emprego fabuloso depois de acabar o curso. – Enfiou as mãos nos bolsos da saia de bombazine e aproximou-se da janela, escondida atrás de cortinas feitas por ela. Dentro da camisola de lã cinzenta, os seus ombros ficaram tensos. – Tenho de me formar e seguir com a minha vida. – E depois? – Vou arranjar trabalho em França. – Amy, anda cá. – Estendeu o braço. Ela fitou-o com desconfiança mas cedeu ao abraço fraternal, que se fechou à volta dela como um torno. Jeff lançou-lhe o seu olhar de hipnotizador. Amy abanou a cabeça. – Oh, não. Não comeces com essa voz adocicada e esses olhos vidrados. – Tu sabes que queres esquecer o Sebastien. Não faz mal se o esqueceres. Ele já te esqueceu. – Não. – Pensa nisso, querida. Um homem como ele… Não consegues imaginar com quantas mulheres terá… ah… namorado durante todos estes meses? Amy soltou um gemido de desespero. – Sim. – Pronto. Ótimo. Esta é a tua realidade. – Beijou-a, roçando a língua sobre os seus lábios fechados e introduzindo-a na boca dela quando Amy a abriu, espantada. O calor húmido e insistente assustou-a porque era demasiado fácil de aceitar. Desejá-lo não significava que tivesse esquecido Sebastien, percebeu. Na verdade, o beijo só a fazia desejar Sebastien ainda mais. Estupefacta, escapuliu-se dos braços dele e afastou-se para o outro lado do quarto. – O Sebastien pediu-te para cuidares de mim desta maneira? – Sim. – Não acredito. Jeff ficou em silêncio por um instante, os olhos azuis fixos nos olhos verdes de Amy com tanta sinceridade que ela sentiu uma pontada de medo. – Ele disse-me para fazer o que achasse melhor. – Isso não incluía tentares seduzir-me. – Por amor de Deus, Amy, não percebes? O Sebastien não se importava se isso estava ou não incluído! A jovem sentou-se na cama e escondeu o rosto nas mãos. – Importava-se. – Tinha de acreditar na sua própria realidade, não na de Jeff. – É melhor saíres. Tenho de pensar. Jeff aproximou-se e tocou-lhe ao de leve no cabelo. – Tu precisas de mim – sussurrou. – Ligo-te quando chegar a Atlanta. Podemos falar mais um pouco. – Ela abanou a cabeça. – Tu precisas de mim – repetiu Jeff, tentando de novo hipnotizá-la. – Eu ligo-te. Amy ficou ali sentada, num silêncio confuso, enquanto ele saía.

Mary Beth, aborrecida por os estudos de Amy não lhe deixarem tempo livre, convenceu-a a participar nas audições para uma peça de Neil Simon num teatro-restaurante local. – Amor, tudo o que tens de fazer é ler as falas com essa tua voz pateta e magnífica e conseguirás o papel – garantiu-lhe. – E fará maravilhas à tua autoconfiança. – Estou a estudar Gestão, Gestão Internacional, e a tirar notas excelentes. Vou fazer algo respeitável, como trabalhar na Europa. – Pois sim: és uma estudante de Gestão que vê todos os velhos programas cómicos de televisão não sei quantas vezes. Admite, amorzinho, o teu destino não é andar de fato saia-casaco com o The Wall Street Journal debaixo do braço. – Va te faire foutre. – Ah, sim? Estás a armar-te em boa só porque andas a aprender Francês, é? Eu andei num colégio particular, fofinha, e conheço todas as obscenidades. Portanto, vai tu. – Gestão pode não ser empolgante, mas sei que seria uma boa… – Oh, para com isso. O teu problema é seres uma introvertida medricas; o resto são desculpas. – Eu… tu… e tu és uma chata! E às vezes farto-me dessa tua língua afiada. – Medricas. – Estou a travar uma batalha de inteligência com uma pessoa desarmada. – Cobardolas. Torrãozinho de açúcar envergonhado. – Está bem! Eu faço a audição!

Sentada a uma mesa desengonçada, na escuridão de um antigo armazém de algodão reconvertido, com um palco e uma zona de refeições, Amy observou os estudantes à sua volta. A julgar pelas conversas, deviam ser quase todos alunos de teatro. Pareciam calmos e indiferentes; alguns miraram-na de cima a baixo e viraram a cara, obviamente nada preocupados com a concorrência. Sentia-se uma idiota por estar ali a competir com eles. As pernas começaram a tremer-lhe e sentiu o suor a molhar o vestido verde. Apoiou os cotovelos na mesa e, ansiosa, desejou que o vestido secasse ao ar antes de ser chamada. Que belo filme de terror que isto daria. Os sovacos assassinos. Os sovacos que alagaram Tóquio. Amy apertou a cópia do monólogo da audição que o assistente do encenador lhe dera. Reparou que a maioria dos outros candidatos trouxera o seu próprio exemplar da peça. O encenador começou a chamar pessoas. Amy sentiu a boca seca. Tentou concentrar-se no desempenho dos outros estudantes. Pareciam mesmo profissionais. Ouviu chamar o seu nome. Alguém se riu. Miracle. Oh, aquilo era mau, muito mau. Ainda nem sequer pisara o palco e já estavam a troçar dela. Ecoaramlhe na mente todos os comentários cruéis que o pai alguma vez lhe dirigira. Obrigou-se a subir ao palco, sem sentir o chão debaixo dos pés, com os sentidos paralisados pelo medo do ridículo. Aquilo não era o circo. Não era uma feira nem uma festa infantil. Aquilo era o teatro: Shakespeare e Olivier, a Broadway

e plateias que não atiravam moedas depois da atuação nem cuspiam o gelado. Estava vagamente consciente de que toda a gente a fitava, à espera. Sentia-se quente. Apertou a cópia da peça à sua frente, como um escudo, e notou que tremia. – Respira fundo e arrisca – aconselhou-a o encenador. Ouviram-se alguns risinhos maldisfarçados na sala. Porém, a Amy soavam mil vezes ampliados. Conseguiu guinchar o monólogo, sem sequer saber o que lia e sem se importar. O encenador interrompeu-a a meio. Algures, na distância escura entre ela e os restantes candidatos, ele levantou-se e anunciou: – Obrigado. Boa noite. «Boa noite» significava «Desaparece», como ouvira alguém explicar. Ao descer do palco, Amy olhou de lado para os outros. Havia pessoas de pescoço esticado a mirá-la estupefactas, como se não conseguissem classificar bem aquilo a que tinham acabado de assistir. Amy sentia o rosto a arder. Saiu o mais depressa que pôde para o ar fresco, correu até ao carro e vomitou junto ao para-choques traseiro. Encostou-se à viatura e apoiou a cabeça no metal preto e liso. Sebastien, desculpa. Isto é algo que eu não consigo fazer. Nunca mais subirei a um palco.

Ela, Mary Beth e Harlan foram até à Florida nas férias da primavera. Daytona Beach parecia um manicómio cheio de estudantes universitários vindos de todo o sudeste. Na praia, Amy, que usava um fato de banho branco normalíssimo, ficou surpreendida ao ouvir os rapazes assobiarem-lhe. Não obstante agradar-lhe e reforçar a sua autoconfiança, toda aquela atenção deixava-a quase agoniada de solidão. Não queria ser comida com os olhos por tipos como aqueles: não passavam de miúdos. Provara algo que eles nunca lhe poderiam oferecer, e não conseguia esquecê-lo. Na última noite das férias, Mary Beth arrastou Amy e Harlan para um concurso de t-shirts molhadas. Sentados num clube apinhado de rapazes que aguardavam ansiosamente o espetáculo, Mary Beth bebeu seis vodkas e Harlan quatro. Amy bebeu um e parou. O álcool fazia-a sentir-se desorientada e deprimida. Quando o concurso começou, Mary Beth pôs o soutien nas mãos de Amy e subiu ao palco com duas dúzias de outras raparigas. Vestia apenas calções de ganga curtos e justos e uma t-shirt dos Grateful Dead, e os seios baloiçavam-lhe alegremente. Harlan começou a ficar com má cara quando o organizador molhou as concorrentes com uma mangueira e a multidão irrompeu em gritos e assobios. Mary Beth esticou orgulhosamente o peito molhado para os holofotes. Ganhou o primeiro prémio e vinte e cinco dólares. Harlan estava embaraçado e foi o caminho todo até ao motel a resmungar sobre a moral da namorada. Amy começou a arrepender-se de terem reservado só um quarto para os três. Mary Beth despiu-se toda, menos as cuecas, e enfiou-se numa das camas de casal. – Poupa-me ao sermão – lançou a Harlan. – Eu não protestaria se tu entrasses num concurso de calções molhados. A vida é para ser vivida, amor. Agora cala-te e anda dormir. Harlan deitou-se ao lado dela, mas não se despiu.

Amy apagou as luzes e despiu os calções. Deitou-se, de t-shirt, e ficou ali, na escuridão, a ouvir os murmúrios de Harlan e Mary Beth. Ficou estupefacta quando os murmúrios se transformaram em beijos húmidos. Depois ouviu um fecho a abrir e os grunhidos de Harlan. Virou a cabeça e viu a mancha mais clara do traseiro de Harlan quando se colocou em cima de Mary Beth. A sua noção de decência não a deixou ver o resto; pôs uma almofada em cima da cabeça e virou-se para o outro lado. Os sons chegavam-lhe aos ouvidos, mesmo assim – gemidos suaves, a cama a bater na parede, respirações ofegantes e, finalmente, exclamações abafadas simultâneas. Por mais grosseira e pateta que fosse a situação, transformou a sua solidão num desejo ardente de ser tocada e, de súbito, compreendeu como qualquer homem minimamente atraente podia servir os objetivos de uma mulher numa altura destas, ou vice-versa. Abafou os soluços na almofada e murmurou o nome de Sebastien.

A velha ferida era agora apenas uma cicatriz fina e curva, com apenas a pontinha visível a uma inspeção mais atenta. Mary Beth insinuava que tanto a marca como a tatuagem davam a Amy um ar de mistério e uma atração sinistra. Em vez de se sentir embaraçada, Amy optou pela zombaria. Estava a aprender a proteger-se através da ironia. O pai nunca mencionava a cicatriz, e aquela visita não foi exceção. Tratava Amy como uma parente distante, o que a deixava ainda mais deprimida do que o seu mau génio anterior. Pelo menos, quando ele se zangava, fazia-a sentir que reparava nela. Naquela Páscoa o pai optara por uma camisa de flanela amarela e as suas melhores calças castanhas. Estava sentado à mesa da cozinha a beberricar uma cerveja. Amy sentou-se ao seu lado, a olhar para as rosas pintadas nos pratos. Maisie, atarefada, ia pondo a mesa enquanto cantarolava. – Vestes-te como uma dessas meninas de bem – comentou o pai, apontando para o casaco de fazenda, a blusa de pregas e a saia de xadrez comprida. – Pensava que os estudantes universitários eram todos hippies. – Estamos na era Reagan, pai. Toda a gente se está a tornar conservadora. – Olhou para a trança de cabelo grisalho que caía sobre um dos ombros do pai. O pai riu-se, o que a surpreendeu. Não se lembrava da última vez em que o fizera rir com uma piada. Apesar da desconfiança e amargura que estavam sempre subjacentes aos seus sentimentos por ele, ficou satisfeita. – Desde que estás na universidade é mais divertido falar contigo – admitiu o pai. – Diversão passou a ser o meu nome do meio. Então, e como está o mundo da arte a tratar-te, Pai Picasso? – Mal. Não vendo nada há três meses. – A companhia da eletricidade cortou-nos a luz a semana passada – informou Maisie. – Tive de vender cinquenta galinhas para pagar a conta. Discuti com o homem da eletricidade, mas não nos deram

mais tempo. Amy franziu a testa ao ouvir aquela notícia e estava prestes a fazer mais perguntas quando o pai mudou abruptamente de assunto. – Tens tido notícias do francês? Amy pigarreou. – Não – respondeu, em tom indiferente. Ainda a enfurecia o facto de as histórias sobre ela e Sebastien terem chegado aos ouvidos de Maisie através da secretária de Pio Beaucaire. Agitou o gelo no copo de chá e desejou que o jantar não demorasse muito. Se continuassem a insistir no assunto, ia perder o apetite. – Bom, uma coisa tenho de admitir – continuou o pai, com um aceno. – O tipo roubou o leite, mas pagou pela vaca. Não se pode pedir a um homem que faça mais. Bem, já que tiveste de ir viver com um estrangeiro qualquer, ainda bem que era um dos generosos. E não te emprenhou, portanto não foi nada que não se resolva. Só não percebo por que raio te escolheu a ti. Maisie lançou um olhar compreensivo a Amy e pousou outra travessa na mesa. Amy bebeu um gole de chá. Com toda a calma, pousou o copo na mesa. Desdobrou o guardanapo corde-rosa bordado no colo e pousou as mãos cruzadas sobre ele. Ia ser muito educada, comer o seu jantar e elogiar Maisie pela comida. Inundou-a uma profunda serenidade: chegara a uma encruzilhada importante na sua vida e era altura de avançar. – Pai, sabes quanto vale aquele carro com que eu ando? Zack Miracle soltou uma fungadela ofendida. – Mais do que esta casa e o galinheiro juntos, isso é certinho. – Pois. Bom, vou vendê-lo e comprar outro mais… comum. Vou pegar no dinheiro que sobrar e darto, a ti e à Maisie. Não quero que passem dificuldades. Também não quero preocupar-me mais contigo. – Manteve um tom de voz baixo e casual, para variar. Acenou com a cabeça na direção do pai. – Porque nunca mais volto a esta casa. A declaração acabou por estragar o jantar. No meio dos comentários sarcásticos do pai sobre a sua atitude, e das súplicas de Maisie para que lhes desse algum dinheiro, mas não abandonasse a família, Amy permaneceu inflexível. Pagara a sua dívida por aquilo que fizera, se é que fizera alguma coisa para merecer não ser amada e sentir-se como se não fosse digna de amor. Agora podia seguir em frente, em direção a um futuro em que alguém a poderia amar e ela poderia amar-se a si própria, em direção a Sebastien.

Capítulo 9

Sebastien arrendara o piso superior de um espaçoso duplex numa zona exclusiva de Abidjan, um lugar onde carros com motorista percorriam ruas ladeadas de árvores de fruto e jardineiros cuidavam de jardins repletos de flores tropicais. Os vizinhos de baixo eram um professor universitário e a família. O professor deixara a tribo Senoufo ainda muito jovem e frequentara a universidade em França. Embora fosse de meia-idade, da classe média e muito europeu no que respeitava a modos e indumentária, o professor ostentava as cicatrizes da tribo Senoufo, semelhantes a bigodes, com orgulho e ensinara as tradições da sua tribo aos filhos. Para Sebastien, a Costa do Marfim era como o seu vizinho: uma mistura fascinante de culturas. Havia casebres com telhado de colmo à sombra de arranha-céus e estâncias hoteleiras; enormes navios de carga deslizavam pela superfície da grande lagoa interior em frente da cidade, enquanto a pouca distância dali os macacos guinchavam nas florestas tropicais. Era um país de costumes antigos e mistérios sombrios, o que condizia com a natureza de Sebastien; todavia, ansiava por terminar o tempo de serviço e partir. Devido à dieta pobre em gorduras dos nativos, havia poucas doenças cardíacas, exceção feita a algum defeito congénito ou ferimento acidental, pelo que dificilmente podia praticar a sua especialidade. Em contrapartida, a falta de médicos obrigara-o a tornar-se uma espécie de faz-tudo, desde lancetar abcessos a partos mais complicados. Neste momento estava agachado ao lado de uma tarimba, numa casa de aldeia, a inspecionar a grossa cicatriz que cruzava a barriga de um homem. A saliência rosada, limpa com álcool, formava um forte contraste com a pele negra do paciente. Sebastien inclinou a cabeça num aceno de aprovação perante os resultados do seu trabalho. As técnicas cirúrgicas da Costa do Marfim estavam ainda numa fase muito primitiva, o que tornava os bons resultados obtidos ainda mais satisfatórios. – Assegure-lhe de que a ferida está a sarar bem. O intérprete, um homem vestido com uma túnica e agachado ao lado de Sebastien, transmitiu a mensagem. O paciente, um jovem pai de cinco filhos, sentou-se na tarimba, com uma esteira a fazer as vezes de colchão, e deu uma palmada no peito nu antes de fechar as calças. Disse algo e sorriu. O intérprete sorriu também e levou a mão à boca para disfarçar. – Monsieur le docteur fez a mulher do paciente muito feliz – explicou num francês correto. – Ele diz que o seu pénis trabalha muito bem outra vez. – Espero bem que sim, agora que os músculos abdominais já não estão doridos. Pergunte-lhe se teve mais alguma luta com o tipo que lhe fez isto. A vítima escutou o intérprete com ar solene e acenou que sim.

– Ainda estão em guerra – esclareceu o intérprete. – É uma rixa familiar. Pode durar muitos anos. Sebastien franziu a testa. – Ainda vai morrer e desperdiçar o meu trabalho. – Mas, para já, a barriga está curada e o pénis funciona. De que mais precisa um homem para ser feliz? – Invejo a vossa atitude. – Sebastien despediu-se do paciente e levantou-se. A casa fazia parte de um projeto governamental para melhorar o estilo de vida em aldeias mais remotas. Era feita de cimento, com chão de terra coberto de esteiras de palha e janelas com mosquiteiros em vez de vidros, e, pelos padrões locais, era uma mansão. Embora magros, a mulher e os filhos pareciam saudáveis. Estavam sentados a um canto, a observar Sebastien, fascinados. Sebastien olhou para o sorriso do homem por mais um instante. Adorava a ideia de recuperar as pessoas. A prova clara estava ali, sentada e a sorrir, curado. Sebastien não se permitia grandes momentos de vitória, porque naquela zona não abundavam, mas não conseguia evitar aquela postura, muito francesa, de admirar a estética de uma cicatriz e preocupar-se em que não desfigurasse a beleza do corpo. O trabalho era a sua salvação desde que deixara a América. Mantinha-o focado e forçava-o a esquecer tudo exceto a missão diária de manter as pessoas vivas e saudáveis, algo que não era fácil de alcançar num sítio onde os médicos eram poucos e os recursos escassos. Exigia uma dedicação tal que lhe deixava pouco tempo para recordar o passado ou sentir-se só, desesperando voltar à América e aos braços de Amy. No exterior da pequena casa ouviram-se gritos. Uma mulher de certa idade, magra e com pele cor de chocolate, irrompeu quarto adentro. A mulher e os filhos do paciente encolheram-se e taparam a cabeça com os braços. O doente correu para junto deles e olhou para a mulher com preocupação no rosto. A recém-chegada lançou um olhar furioso a Sebastien, que se inclinou numa ligeira vénia, tal como o intérprete. Este estendeu os braços num gesto suplicante e tentou acalmá-la enquanto, ao mesmo tempo, tentava decifrar a torrente furiosa de dialeto baoule que lhe saía da boca. A mulher bateu com os pés no chão. A força da sua fúria fez baloiçar com violência o saco de couro que trazia pendurado sobre o ombro ossudo e nu. O tecido colorido que cobria o outro ombro escorregou e deixou ver um seio descaído. Por baixo do vestido de algodão simples havia um corpo majestoso, a transbordar fúria. Com indiferença, a mulher compôs-se e continuou a falar com Sebastien em tom acusador. – Esta é a curandeira da aldeia – explicou o intérprete quando a mulher fez uma pausa para respirar. – Diz que o senhor entrou na aldeia para tratar o povo dela sem a sua permissão. Da última vez, teve de purificar tudo aquilo em que o senhor tocou. A sua má educação está a deixar os espíritos aborrecidos. Sebastien estava familiarizado com os costumes das principais tribos, mas evitava envolver-se em tais disparates sempre que podia. Desta vez, contudo, não pudera evitar. Inclinou-se perante a curandeira. – Seria uma honra se perdoasse a minha falta de educação. O intérprete traduziu. A curandeira cuspiu e respondeu, num tom obviamente revoltado.

– A madame Toka diz que… Nesse momento um homem alto entrou na casa pela porta baixa e endireitou-se de forma ameaçadora, com o boubou cinzento a ondular à sua volta. Espetou o dedo na direção do paciente de Sebastien e murmurou qualquer coisa. Os dois homens começaram então a discutir num tom de voz cada vez mais elevado. – Este é o homem que o feriu – gritou o intérprete a Sebastien. Madame Toka interpôs-se entre os dois homens e adicionou as suas ordens ao caos verbal. Sebastien estava a achar tudo aquilo divertido, mas o intérprete começou a puxar-lhe o braço e a impeli-lo a saírem, intenção que o médico rejeitou. – Tenciono proteger o meu trabalho. O intruso tirou uma pequena faca de um bolso da túnica e, afastando madame Toka, avançou para o paciente de Sebastien, que se encolheu. Sebastien deu um passo rápido em frente e desferiu um soco na cabeça do atacante. Sentiu a dor do impacto no osso, mas também prazer. Era muito raro encontrar um escape para a sua raiva e frustração com tanta facilidade. O homem cambaleou e tentou atacá-lo com a faca. Sebastien desviou-se, mas a faca acertou-lhe no lado direito do peito, por cima do bolso da camisa de caqui. O golpe foi como a pancada de um martelo. Com uma careta de dor, Sebastien fechou o punho e atingiu o outro homem no maxilar, de baixo para cima. Ele revirou os olhos e caiu por terra, sem sentidos. Sebastien cambaleou e levou a mão ao peito. Se o golpe lhe tivesse perfurado o pulmão, podia não viver tempo suficiente para chegar ao hospital em Abidjan. Morreria no seu Land Rover, numa estrada de terra batida no meio de uma floresta desconhecida. Nunca mais veria Amy. Temia essa consequência acima de todas as outras. Porém, quando olhou para a mão que colocara sobre o lado direito do peito, não viu sangue. Lentamente, afastou a mão e viu apenas um rasgão na camisa. Madame Toka estava a emitir uns sons estranhos, como um ronronar. De olhos muito abertos, aproximou-se e inspecionou-lhe o peito. Sebastien enfiou a mão dentro da camisa e puxou a comprida corrente de prata que usava ao peito, com a ficha de videojogos que Amy lhe dera. A ficha tinha agora uma reentrância funda mesmo no meio. Madame Toka pegou naquele estranho pedaço de metal e acariciou-o com as pontas dos dedos enquanto falava baixinho. As palavras do intérprete, ditas com voz ainda ofegante do susto, penetraram finalmente no espanto de Sebastien. – Ela diz que o doutor foi protegido! E não é que foi mesmo! Espantoso! Sebastien passou a mão pela testa, limpando o suor de alívio. Aquilo não significava nada, claro: fora pura sorte, um pequeno milagre. Milagre. Achou graça, tanta que atirou a cabeça para trás e riu à gargalhada pela primeira vez em vários meses. Amy ficaria lisonjeada com a história. Mal podia esperar por lhe contar. – Gris-gris – indicou a curandeira, acariciando a ficha.

– Ela está muito impressionada. Diz que este é o seu amuleto sagrado – explicou o intérprete. – O seu gris-gris. Deve haver um espírito muito importante a velar por si. O peito de Sebastien doía-lhe. Ficaria com uma grande nódoa negra no sítio onde a faca atingira a ficha de Amy. – Disparates – declarou. Contudo, retirou o pedaço de metal barato e distorcido dos dedos da curandeira com gentileza. Enfiou a ficha dentro da camisa, onde o objeto se aninhou contra a pele com um calor reconfortante. Sebastien era demasiado filho da sua mãe para ignorar um sinal dos espíritos.

– Pio, temos um grande problema. Jeff caminhava de cabeça baixa ao lado de Pio Beaucaire, a olhar para o trajeto com o sobrolho franzido, as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Pio tinha o mesmo ar distraído. Percorriam o perímetro das vinhas da família de Savin, ambos indiferentes à paisagem que os rodeava, conquanto por norma Jeff apreciasse as folhas verdes das plantas que cresciam nas latadas e o ar fresco da primavera. – Tenho de admitir que, nos últimos meses, ganhei um interesse ainda mais egoísta nesta nossa tarefa. Pio cruzou as mãos atrás das costas enquanto caminhava. – Toda a gente tem motivos egoístas para agir, meu caro rapaz. Não fico surpreendido por o ouvir admitir o seu. Qual é? Jeff suspirou. – Receio que o Sebastien tinha razão. – Em relação a quê? – À Amy Miracle. Ela é de facto única. – Mon dieu! O senhor também? – Oh, nunca a deixaria chegar sequer perto da minha conta bancária, garanto-lhe. – Um homem tem áreas muito mais vulneráveis do que essa. – Pois este homem não. – Mas o que a torna assim tão especial? Jeff abriu as mãos. – A Amy… está mesmo decidida a ser levada a sério. E as coisas sempre lhe correram mal. Tenho de admirar a sua coragem. – Não são motivos para a amar. – Não falei em amor. A questão é outra. A Amy não passa de uma miúda. Ainda não afiou as garras, e isso atrai-me. – Hum. Bom, nesse caso, fico satisfeito. Creio que assim lhe será mais fácil ajudar-me a fazer o que é melhor para o Sebastien… e para ela. Jeff resmungou:

– Bom, não sei se é o melhor para ela, mas não é isso que importa. Sei que posso deixá-la mais feliz do que a encontrei… ou, pelo menos, mais sábia. – E ela corresponderá? – Sente-se vulnerável – retorquiu Jeff com um sorriso –, o que vai dar quase ao mesmo. – De novo sério, abanou a cabeça. – Mais uma coisa: não me parece que a rapariga vos vá causar problemas, pelo que não será necessário continuar a espiar para si. Não quero o último pagamento do nosso acordo. – Meu Deus, está a brincar, certo? Esta não é altura de se tornar sentimental. Tudo o que precisa de fazer é manter-me informado do paradeiro e das intenções da rapariga. – Não, lamento. Não posso continuar. Não costumo sofrer muito com sentimentos de culpa, Pio, mas admito que me sinto um pouco culpado. O Sebastien liga-me regularmente, e cada vez que falamos dou a entender que a Amy anda tão ocupada que nunca fala nele. Mas desta vez ele mencionou que está a pensar regressar aos Estados Unidos para a ver, quando terminar o serviço em Abidjan. Pio suspirou. – Não me surpreende. O pai diz que o Sebastien ignorou vários contactos de hospitais franceses. Podia ter uma boa posição na equipa de qualquer um dos melhores hospitais particulares do país, mas recusou-se a tomar uma decisão. – A Amy vendeu o Ferrari. – Não! – Não me contou porque o fez, nem para o que quer o dinheiro. – Essa rapariga tem planos secretos! Vai desistir da escola e ir ter com o Sebastien a África! Espere e verá se não tenho razão. – Desconfio que sim. Não quis falar no assunto antes, mas a Amy planeia encontrar trabalho em França assim que se formar. De qualquer maneira, ainda faltam quase dois anos. Beaucaire passou os dedos pelo cabelo. – Se continuar a estudar. – Precisamente. – Vou telefonar já ao comte. Ele saberá como agir. Por favor, o senhor não nos pode abandonar agora. – Ofereceram-me um cargo na equipa de um centro de reabilitação de drogas e álcool na Califórnia – informou Jeff a Beaucaire. – Parto dentro de seis semanas. Os ombros do outro homem abateram-se mas, passado um momento, estendeu a mão e Jeff apertou-a. Ambos tinham um ar solene. – Perdoe-me se continuarei a fazer aquilo que tem de ser feito, mesmo sem a sua ajuda. – Pio deu meia-volta e deixou Jeff.

– Amy, está aqui um velho para te ver. Amy levantou os olhos do manual de Economia.

– Quem é? – Diz que se chama senhor Beaucaire. Senhor, imagina. Sem primeiro nome. E olhou para mim de lado como se achasse que eu devia estar a lavar casas de banho. Está na sala à tua espera. Estupefacta, Amy saiu apressadamente do quarto. O senhor Beaucaire estava de pé, junto à janela, a olhar para o menorah de Mary Beth no parapeito. O fato preto dava-lhe um ar especialmente imponente. Por que raio viera de tão longe para a visitar no campus? Nunca mostrara qualquer interesse nela antes. Lutou contra a timidez e dirigiu-se-lhe com ar confiante e um sorriso no rosto. – Olá! É um prazer voltar a vê-lo. Beaucaire ergueu os olhos claros, surpreendido, e estudou os calções largos e a t-shirt. Por fim, fitou Amy de novo nos olhos. – Peço desculpa por ter demorado tanto tempo a vir visitá-la. Amy apontou, embaraçada, para o sofá desengonçado. – Não faz mal. Sente-se. Por favor. Ele sentou-se lentamente no sofá. Com os nervos em franja, Amy fez um esforço para se sentar sossegada numa cadeira. Pio pigarreou. – Conte-me como vão os seus estudos. – Estou a tirar o curso de Gestão Internacional. – Hesitante, despejou várias frases em francês. A expressão do homem permaneceu neutra, mas pareceu-lhe ver um brilho desdenhoso nos seus olhos. Parou, encolheu os ombros e sorriu. – Bom, ainda tenho muito a aprender. Sei que o meu sotaque é terrível. – Tenciona ir trabalhar para França depois de se formar, é? Amy não tinha a certeza se devia ou não anunciar esse facto. – Ainda não decidi. – Não conseguiu conter mais a pergunta. – Ah… presumo que está tudo a correr bem com o Sebastien? O senhor Beaucaire sorriu. – Sim. Muito bem. Amy inclinou-se para a frente, com as mãos apertadas no colo. – Costumam falar? – Frequentemente. – Vai contar-lhe que me veio visitar? – Com certeza. Estou certo de que o Sebastien ficará contente por saber que está a usar os presentes dele com sensatez. O Ferrari… está a gostar? Amy mordeu a língua. Não queria que ninguém fosse contar a Sebastien uma versão incompleta da verdade. Queria explicar-lhe pessoalmente porque vendera o carro. – É maravilhoso, sim. O risinho do senhor Beaucaire foi, de alguma forma, sinistro. – E ainda tem muito dinheiro do que o Sebastien lhe deu?

– Oh, sim, mais de metade! Diga-lhe… que não ando a viver à grande e à francesa. – Desculpe? – Que não estou a desperdiçar o dinheiro dele. – Ah, compreendo. Sim. Amy apertou as mãos. – Importa-se de me falar um pouco sobre ele? Sobre o trabalho que está a fazer? Como é a Costa do Marfim? Onde é que ele vive… num apartamento ou numa casa? – Oh, quem sabe o que o Sebastien anda a fazer… Não é pessoa de falar muito sobre coisas frívolas. Estou certo de que tem uma boa casa, e estou certo de que raramente lá dorme. Está sempre a trabalhar. O trabalho, como sabe, foi sempre o centro da vida dele. Amy inclinou-se para a frente, com ar de antecipação. – Sim, tem razão. Aposto que já está farto de África e que nunca tem tempo para se divertir. – Oh, não iria tão longe. – O senhor Beaucaire enfiou a mão no bolso do casaco e retirou uma fotografia. – Esta é uma velha amiga dele. Vive em Paris, mas tem ido visitá-lo amiúde. Amy levantou-se e pegou na fotografia. Depois de a fitar por um segundo, conseguiu concentrar-se na mulher ainda jovem, de ar majestoso. – Como é que ela se chama? – Marie d’Albret. As famílias eram vizinhas. Eles conhecem-se desde sempre. Amy ergueu os olhos para o senhor Beaucaire. Embora estivesse a tentar mostrar um ar compreensivo, conseguiu ver a expressão de vitória no seu rosto. – Foi por isso que veio ver-me? Para me mostrar esta fotografia? – Temia que a Amy tivesse algumas ideias erradas em relação às intenções do doutor para consigo. Quis apenas certificar-me de que compreende a situação. O Sebastien e a Marie são íntimos. Quando ele voltar para França, não ficaria surpreendido se se casassem. Amy pousou a fotografia no sofá e recuou lentamente, sem tirar os olhos do senhor Beaucaire. – Presumo que já fez o que veio fazer. Pode ir. O senhor Beaucaire guardou a fotografia no bolso do casaco e levantou-se, inclinando a cabeça num aceno. – Beneficiou de uma grande generosidade por parte do doutor de Savin, mas seria insensato esperar algo mais. – Porque hei de acreditar em si? – Embora não o admita, por orgulho, creio que acredita em mim. Diga-me, achou sinceramente que o doutor continuaria interessado em si? O Sebastien deu-lhe esta oportunidade de melhorar a sua vida. Não alimente fantasias sobre o futuro. – Saiu para o corredor. – Adeus, mademoiselle. Amy esperou até a porta da rua se fechar atrás dele. Depois virou-se, com os olhos cheios de lágrimas. Mary Beth saltou de trás de uma porta no corredor, com ar furioso. – Filho da mãe caquético. Ouvi tudo! – Aproximou-se de Amy, pôs-se em bicos de pés e passou o

braço pelos ombros dela. – Vá lá, querida. Vamos dar uma volta e comer gelado até explodirmos. Ou podemos procurar um rapaz do liceu, tenrinho e inocente, e abusar dele. Não seria divertido? Amy murmurou: – Eu sou uma pessoa importante. Não mereço ser infeliz. – Isso mesmo, amorzinho. Não precisas destas merdas. – Assim que o Sebastien chegar a França vou procurá-lo. Se não estiver interessado em mim, pode dizer-mo na cara. Mary Beth olhou para a amiga, assombrada, e soltou uma obscenidade. Por fim, suspirou. – Eu gosto de ver a Julieta a envenenar-se por um Romeu que se está nas tintas para ela. É educativo.

Jeff ia partir para a Califórnia. Amy deu-lhe os parabéns pelo novo emprego e tentou parecer contente, mas a meio do jantar parou, com o garfo suspenso sobre o prato, e não se conseguiu conter: – Quem me dera que ficasses cá. Será que eu não passo de uma estação de comboios? Não faço outra coisa senão ver as pessoas entrarem e saírem da minha vida. Vou ter saudades tuas. Muitas saudades. – Esse é o maior elogio que me poderias fazer, Amy. – Não precisavas de vir até Athens e de me levar a jantar para te despedires. Mas fizeste-o, porque és fantástico. Não consigo engolir a comida e fingir-me indiferente. É como se nunca mais te fosse voltar a ver. – Remexeu a comida com o garfo e olhou para Jeff, abatida. O psiquiatra estendeu os braços por cima da mesa e pegou-lhe nas mãos. Com as pontas dos dedos, acariciou-lhe as palmas. – Já te ocorreu que eu também detesto deixar-te? As emoções em turbilhão de Amy encontraram algum alento naquele comentário. Sabia que Jeff gostava dela. Não havia muita coisa certa neste mundo, mas a amizade dele era uma. Naquele momento, precisava mesmo de todo o apoio que ele lhe pudesse dar. – O que se passa? – perguntou Jeff. – O Sebastien anda com uma mulher. – Contou-lhe a visita do senhor Beaucaire. A expressão de Jeff passou de espantada a pensativa. – Antes com uma mulher do que com um homem. – Apertou-lhe as mãos com carinho e fitou-a com olhar compreensivo. – Lamento muito, querida. A sério. – Obrigada por não te vangloriares. – Porque faria tal coisa? Não gosto de te ver triste. Amy sentiu um nó de emoção na garganta. O bom e querido Jeff! – Podemos sair daqui? Não consigo comer. Sinto-me sufocar. – Não exageres, estás só a hiperventilar um bocadinho… – Eu sei, eu sei. Mas prefiro fazê-lo ao ar livre. Jeff pagou a conta e saíram. No passeio de uma das ruas sossegadas de cidadezinha de província de

Athens, pôs o braço sobre os ombros de Amy e ela encostou-se a ele. – Tenho uma excelente ideia – sugeriu Jeff. – Vou arranjar um quarto num dos melhores motéis de Athens. Posso ficar na cidade um ou dois dias, e vamos aproveitar esse tempo ao máximo. – Gostaria muito. – Que dizes se eu tratar já disso? Podias vir comigo, mandávamos vir uma piza e víamos televisão. – Parece-me bem. Pode ser. Dentro do novo Mercedes desportivo de Jeff, Amy encostou a cabeça ao banco e fechou os olhos. Trocara o Ferrari por um pequeno e simpático Ford azul, mas sentia falta do carro desportivo, que a fazia sentir-se próxima de Sebastien. No dia em que o vendera, passara uma hora sentada em silêncio atrás do volante, com todos os sentidos sintonizados nas memórias daquela noite de velocidade, numa estrada escura, com ele. Às vezes, não conseguia parar de pensar em Sebastien e revivia cada momento com uma nitidez lancinante; porém, noutras ocasiões, um vazio reconfortante afastava todos os pensamentos, exceto os do presente. Não se deixava enganar por isso. Sabia que as memórias estavam apenas escondidas por trás de um manto de cansaço, mas sabia-lhe bem a pausa. Era assim que se sentia naquele momento: vazia. Enquanto conduzia, Jeff pegou-lhe na mão. – Estás a aprender uma lição muito valiosa, querida – declarou, baixinho. – Sei que dói, mas a longo prazo tornar-te-á numa mulher mais forte. – Amo-o. Hei de amá-lo sempre. – E podes continuar a amá-lo, mas assim deixarás de sofrer quando pensares nele. A mente tem uma capacidade fantástica de se afastar dos estímulos penosos. Acredita em mim. Amy decidiu não lhe contar que planeava ir a França no final do verão, à procura de Sebastien. No fundo, temia que toda a gente tivesse razão e estivesse a ser uma idiota. A sua determinação parecia agora, mais do que nunca, um caso perdido. – Doutor Freud, eu posso ser ingénua, mas às vezes acho que tu é que não sabes nada… nadinha de nada… sobre como é amar alguém. Jeff soltou uma risada meio maléfica. – Ah, mas conheço a mente. A psique. O intelecto. Os cantinhos escuros onde só os ratinhos mais corajosos se aventuram. – Os meus ratinhos andam a correr às voltas como galinhas sem cabeça. – Que analogia encantadora. Tenho de ver se não me esqueço dela. Dirigiram-se para um dos motéis nos arredores da cidade, o tipo de sítio que recebia homens de negócios e ex-estudantes endinheirados. Amy ficou impressionada com a quantidade de canais por cabo. Jeff deitou-se na cama king size e pegou no telefone. – Uma piza gigante e um pack de cerveja, está bem, querida? – Pode ser. Amy sentou-se aos pés da cama e observou o corpo reclinado de Jeff com alguma consternação.

Daquele ângulo ele parecia-lhe algo ameaçador, embora não soubesse explicar bem porquê. Franziu a testa, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Pousou a mala em cima da cómoda e fingiu estar à procura de alguma coisa lá dentro, enquanto lançava olhares furtivos a Jeff através do espelho. Os ténis, as calças de ganga debotadas e a t-shirt vermelha amarrotada faziam-no parecer menos um médico de trinta e um anos de idade e mais um estudante da idade dela. O cabelo começava a recuar na testa, mas a forma como o usava, revolto, ficava-lhe bem, dando-lhe um ar de cientista louco que condizia com a sua personalidade. Com o auscultador encostado ao ouvido, Jeff puxou uma almofada para baixo da cabeça e cruzou os pés. A posição acentuava o volume impressionante nas calças, abaixo da barriga. Amy baixou os olhos para a mala, desconfortável por estar a examiná-lo daquela maneira. Olhou para as mãos pálidas e frias e tentou perceber por que motivo a incomodava tanto estar ali com Jeff. Comeram a piza e viram televisão num silêncio confortável. Amy sentou-se do lado oposto da cama, com as pernas dobradas debaixo do corpo. Ele manifestou a sua desaprovação por a jovem se recusar a beber mais do que uma cerveja. – Assim sou obrigado a beber as outras cinco – queixou-se, com um gemido. – É melhor não. Ainda tens de me levar a casa. Jeff limpou as mãos a um guardanapo, estudou-a em silêncio e perguntou num murmúrio: – Não queres mesmo ir-te embora, pois não? Amy deixou cair a fatia de piza meio comida na caixa e ficou imóvel, a olhar para Jeff de testa franzida. – Não estou apaixonada por ti. – Nem eu te pedi tal coisa. Mas gostas de mim e eu estou louco por ti. – O seu olhar era intenso. Sorriu. – Louco. Ora aí está uma escolha de palavras apropriada. Um grito de confusão e tormento cresceu dentro de Amy. Abanando a cabeça, murmurou: – O sexo não significa nada para ti, pois não? É tão normal como lavar os dentes. – Sim, mas devias ver como sou bom com o fio dental. – Pôs a caixa da piza e a cerveja na mesa de cabeceira, rebolou para mais perto dela e apoiou a cabeça numa mão. A outra deslizou sobre a colcha até estar pousada no joelho dela. Os dedos acariciaram-na ao de leve por cima das calças de ganga. – Tens de dar permissão a ti própria para seres feliz. Não tens motivo nenhum para te sentires culpada. Foste-lhe fiel durante muito tempo. O Sebastien nunca esperou que vivesses como uma freira. Meu Deus, querida, os adultos não fazem esse tipo de exigências uns aos outros! Enquanto Amy escondia o rosto nas mãos e gemia, frustrada, Jeff continuou a divagar num tom grave e sedutor. – O Sebastien acabou para ti. Liberta-te, Amy. Sê adulta e deixa-te ir. Ela conteve um soluço. A chorar em silêncio, não protestou quando ele se sentou na cama e a puxou para os seus braços. Jeff roçou com os lábios nas mãos dela e depois na sua orelha, enquanto murmurava: – É como andar a cavalo. Quando caímos, temos de voltar a montar logo.

Amy limpou os olhos. – Mas num cavalo novo? – O que for preciso para voltar a subir para a sela. – Os seus dedos ágeis pousaram nos botões da camisa de algodão dela. – O Sebastien compreenderia. E aprovaria. Ele não se importaria. Ele não se importaria. Entorpecida, Amy viu os dedos de Jeff abrirem-lhe a camisa e acariciarem as curvas dos seus seios por cima do soutien. Baixou a cabeça e beijou-a no mesmo sítio, a sua boca firme e segura. – Há muito que te desejo. Não há mentira alguma naquilo que te estou a dizer. Acredito mesmo que sei o que é melhor para ti. Confia em mim, Amy, confia em mim. Eu posso fazer com que te sintas melhor. É tão simples como isto. Enfiou o dedo dentro do soutien dela e esfregou-lhe o mamilo até ficar duro. O desejo agitou-se dentro de Amy. Sentia-se ofegante e triste, excitada mas distante. Era bom ser tocada, ser desejada por um homem. Sebastien ensinara-lhe o poder e a beleza da satisfação e depois deixara-a com fome de mais, e sozinha. Levou as mãos aos ombros de Jeff e explorou o movimento fluido dos músculos no seu corpo magro. Tinha a cabeça a andar à roda com a culpa, a confusão, a tristeza. Fechou os olhos.

A noite não estava a correr como Jeff planeara. Geralmente, depois do sexo dormitava um pouco – relaxado, vitorioso, satisfeito –, a amante enroscada ao seu lado, a suspirar de felicidade. As suas conquistas não o fitavam sem pestanejar enquanto ele se aplicava num desempenho magnífico; não fingiam estar excitadas, com pequenos gemidos que faziam lembrar uma máquina de costura em câmara lenta. E quando ele terminava, sorridente, à espera de um elogio, com certeza não lhe agradeciam com brusquidão, viravam-se para o outro lado ou fingiam adormecer. – Isto não vai resultar – lançou, mal-humorado. – Consigo sentir a tua energia. Odeias-me. – Não te odeio – negou Amy, em voz rouca e infeliz. – Foi muito agradável. – Oh, obrigadinha. – Incomodado com a dimensão da sua preocupação com a jovem, praguejou em silêncio; afastou o lençol e, aproximando-se mais, tapou-os aos dois, encostando-se às costas e nádegas dela. Amy tremia. Jeff passou-lhe o braço à volta da cintura, evitando tocar-lhe com o pénis. – Eu protejo-te desse vilão maldito, bela donzela – brincou, sentindo um nó na garganta. – Agora para de te arrepender do que fizemos. – Foi agradável. Muito agradável. – «Agradável» parece ser a palavra de eleição, esta noite. O que aconteceu? Ao princípio, podia jurar que tu também me querias… – Pensei que serias um bom substituto. – Ai! Estou a ver. – A sensação de rejeição intensificou-se. Não se apercebera do quanto lhe queria agradar. Determinado, acariciou-lhe o rosto com os nós dos dedos. Ela não abriu os olhos, mas algumas

lágrimas escaparam-se das pálpebras fechadas. – É possível que demores algum tempo até conseguires relaxar – sugeriu. – Não faz mal que te sintas ambivalente em relação a mim neste momento. – És simpático e paciente. – Virou-se de costas e olhou para ele, com olheiras escuras de angústia. – Não quero ferir os teus sentimentos. És-me muito querido. Jeff segurou-lhe no queixo. – Ouve. Para a próxima será ótimo, prometo. Os olhos dela ensombraram-se. – Acho que não vai… – Chiu. – Beijou-a. Raios te partam, Sebastien. Sai da cabeça dela. Pronto. Vês como ela se abriu para mim? Só preciso de ter paciência. – Jeff, não – protestou Amy, desviando a cara. – Estou a tentar, mas não está a funcionar. Isto não está certo, para mim. Ferido e agora zangado, Jeff franziu a testa. Começava a perder a paciência; ainda assim, quando falou o seu tom era calmo. – Gostarias de viver na Califórnia? – O quê? – Vem comigo. Podes inscrever-te na universidade lá. Podíamos divertir-nos muito, querida. Ias adorar a Califórnia e em especial São Francisco. Vou comprar uma casa perto da baía. – Tentou interessá-la com descrições das atrações do estado. Falou-lhe sobre Hollywood, Los Angeles, Malibu. Mencionou que alguns dos seus pacientes seriam com certeza gente da televisão e do cinema, pelo que poderia apresentar Amy a alguns dos seus atores preferidos. O discurso não despertou o mínimo interesse nela. – Não posso sair daqui – respondeu, em tom gentil. – Foi aqui que disse ao Sebastien que estaria. Jeff sentiu um músculo a palpitar na cara. – Que diferença é que faz? Ele não quer saber onde é que tu estás a estudar. – Mas eu prometi-lhe que estudaria aqui. – Pensava que já tínhamos resolvido este assunto. – Só lhe apetecia abaná-la. A sua voz subiu de tom. – Estavas a fazer progressos. Não podes voltar atrás. Nunca mais o voltarás a ver. Debaixo da prisão do braço dele, Amy começou a contorcer-se e os olhos brilharam-lhe com um clarão de desafio. – Não sabes isso! Seja como for, não vou sair daqui para um sítio onde ele não me encontrará! – E se o voltares a ver, e caso o Sebastien não se tiver esquecido de ti, vais explicar-lhe por que razão foste para a cama com o melhor amigo dele? Ambos ficaram calados, as palavras suspensas entre os dois como uma faca. Amy tentou respirar, mas faltava-lhe o ar. – O Sebastien não o veria dessa maneira. – Uma ova é que não! Os europeus são muito possessivos. Se ele gostasse mesmo de ti… o que já de

si é duvidoso… ficaria horrorizado por saber que dormiste comigo. Não podes fingir que não aconteceu. O horror invadiu os olhos de Amy. Jeff tocara num ponto sensível. – Havia de conseguir explicar-lhe… de alguma maneira – insistiu, num tom agora pouco convicto. Virou-se e, encolhendo-se, apertou uma almofada contra o peito. Jeff sentou-se na cama e fitou-a, furioso. No entanto, uma pontada de vergonha trespassou-o e sentiu a cabeça latejar com a tensão. Culpa reprimida, admitiu, com um sorriso amargo. Esfregou as têmporas. – Não te preocupes, querida – declarou. – O Sebastien nunca saberá o que aconteceu a menos que tu lhe digas. O teu segredo está a salvo comigo. – Mas os estragos estão feitos – lamentou-se Amy, soando desolada. – E a culpa foi minha. Jeff apagou a luz. A escuridão condizia com o seu estado de espírito. Sentia algo por ela e arrependia-se de a ter magoado. Pousou-lhe a mão no ombro. – Não fizeste nada errado e tenho a certeza de que o Sebastien compreenderia. Mas a rapariga já não confiava nele. Jeff ficou sentado na cama, na escuridão, a oferecer-lhe palavras vãs de conforto e a ouvir os sons tristes da derrota de Amy.

Para os devidos efeitos, era essencial manter um tom de voz adequado a uma conversa casual. Não podia revelar a satisfação causada pelo relatório do investigador particular. Não podia dar a entender que os riscos corridos tinham compensado largamente, nem acreditar que um homem tão inteligente como o doutor Atwater caíra como um patinho no plano de um velho ardiloso. Depois acrescentar algumas meias-verdades e mentiras descaradas, o plano do comte resultaria na perfeição. Enquanto aguardava que Sebastien atendesse, Pio preparou-se para uma demonstração de perfeita indiferença. – Sebastien, olá! Como vai, meu rapaz? – Pio? – A voz grave de Sebastien transmitia desconfiança, mesmo a milhares de quilómetros de distância. – Está tudo bem? Porque estás a ligar? – Meu rapaz, até parece que eu nunca lhe ligo. – Ah, Pio, mas as razões, as razões… – Sebastien parecia mais divertido do que desconfiado. – O que andas a tramar? – Está bem, suspeite à vontade de um pobre velho, se isso o deixa feliz. – Pio riu-se. – Ligo-lhe com boas notícias. A rapariga… a Amy. Já não precisa de se preocupar com ela. – Sim? Porquê? – Ela é amante do doutor Atwater! – Pio falou com uma franqueza gaulesa. Afinal de contas, as relações sexuais não eram nada de que ter vergonha. – Suspeito que já há algum tempo. – Onde é que foste buscar essa informação? – Através do próprio doutor, claro. Não é nenhum segredo. Ele convidou-a para irem viver juntos na Califórnia. Não sei se ela aceitou, mas vendeu o Ferrari que lhe deu; portanto, deve estar a pensar na

mudança. – Quando é que ele parte? – Em breve. Daqui a dois dias, julgo eu. – Estarei aí antes de ele partir. Trata de o localizar. – Sebastien, não. A rapariga fez a sua escolha. O que esperava? Deixou-a sozinha, ela é jovem… não teve paciência. Você não pode rebaixar-se assim. Afinal, é um homem feito, de uma família importante! – Diz ao doutor Atwater que tenciono falar com ele. Pio suspirou. – Está bem, se insiste. – Tenho de tratar da viagem. Adeus. Desligou sem esperar pela resposta de Pio. Com um aceno de cabeça, o homem mais velho pousou o auscultador e recostou-se na cadeira com as mãos cruzadas em cima da barriga. Sebastien não teria permissão dos seus superiores para deixar o serviço, nem mesmo por alguns dias. O comte já se certificara disso. E em breve Sebastien teria outras coisas com que se entreter, para tirar a rapariga da cabeça. O comte também se precavera a esse respeito. Pio suspirou, aliviado. Era bom ver o mundo do comte a girar finalmente na direção certa.

Capítulo 10

A curandeira sabia que algo mudara nele. Puxou o ombro do vestido para cima, cuspiu o sumo vermelho da noz de kola para uma lata e espetou o dedo no peito de Sebastien com ar severo. – Está muito surpreendida e aborrecida por ver que não traz o seu gris-gris desta vez – explicou o intérprete. – Diz que sem o amuleto mágico os seus remédios não farão nada aos aldeões. Sebastien franziu a testa, sem olhar para madame Toka. Ele e a curandeira partilhavam uma relação profissional agradável: Sebastien ouvia-a pacientemente quando ela dava opiniões sobre o tratamento de todo o tipo de problemas, desde picadas de abelha a cancro. Não ia discutir com ela agora por causa de um pedaço de metal ridículo que em tempos usara ao pescoço. Durante o seu tempo na Costa do Marfim vira muito sofrimento e morte desnecessários, e isso tivera o seu preço. Tornara-se mais duro do que nunca, menos gentil, menos tolerante em relação às fragilidades humanas, incluindo as suas. – Sem cedências – murmurou o intérprete. Sebastien apontou para os presentes espalhados em frente da mulher ajoelhada. – Suponho que este mês ela não precisa do seu fornecimento de cigarros e doces. – É uma mulher obstinada – explicou o intérprete. Madame Toka olhou para Sebastien com uma expressão penetrante. Levou a mão ao coração e falou em tom baixo. – A madame pergunta: «Porque estás triste?» – Triste, eu? Está enganada. – Faça-lhe a vontade. Quando decide uma coisa, não adianta discutir. – Está bem. Estou triste porque fui desapontado por uma pessoa que amo. Quando o intérprete traduziu, madame Toka gesticulou de forma dramática, abriu o saco das artes mágicas, cheio de crânios de pequenos animais e conchas, e espalhou-os no chão para os consultar. Depois começou a falar em tom forte e confiante. O intérprete de Sebastien arregaçou um pouco o boubou branco e inclinou-se para a frente, com as mãos pousadas nas pernas cruzadas. – Ela acha que o doutor também está desiludido consigo próprio. Era muito perspicaz. Sebastien assentiu com um aceno. – Exigi demasiado e dei pouquíssimo em troca. Esperei tempo de mais porque não tive fé suficiente. Mas agora o erro está feito e não há como voltar atrás. – Nem sequer conseguia autorização para sair daquele maldito país durante alguns dias e tentar fazer alguma coisa. O destino estava contra ele.

– O gris-gris – recordou-lhe o intérprete. – A madame não o deixará tratar ninguém a menos que o tenha posto. – Assegure-a de que a minha magia está aqui. – Levantou as mãos. – E aqui. – Apontou para a cabeça. – E ali. – Sebastien indicou o estojo médico e a mala de medicamentos ao seu lado no chão do casebre. – Não preciso de ajuda de um gris-gris. A curandeira falou, voltou a cuspir e apontou para o ponto vazio entre os bolsos do peito da camisa de caqui de Sebastien. O intérprete suspirou. – Segunda a madame, a magia tem de estar também no coração. Não vale a pena argumentar mais com ela. Se quer tratar os aldeões, tem de usar o colar. Sebastien mordeu o lábio e lutou contra a impaciência e o azedume que ultimamente ameaçavam o seu autocontrolo. À espera dos seus cuidados tinha uma criança que fora esventrada por um touro, uma grávida com toxemia, pelo menos uma dúzia de pessoas infetadas com doenças venéreas e outros aldeões com pequenas mazelas de vários géneros. – Diga à madame Toka que o meu gris-gris já não contém qualquer magia para mim – instruiu. – Talvez ela me possa dar um novo. Todavia, a manobra diplomática não resultou. A curandeira falou, desta vez durante bastante tempo, e quando acabou empurrou os presentes para o lado, com arrogância. – A madame acredita que o doutor corre perigo sem o seu amuleto de proteção – explicou o intérprete. – Como é um homem forte, atrai a atenção de espíritos maus e invejosos. Não pode deixá-lo trabalhar com o seu povo nessas condições. – Ah, estou a perceber. Posso contaminá-los. Estou infestado com demónios. Que carga de disparates! – Monsieur le docteur, nunca o ouvi menosprezar a religião destas pessoas. Eu sou muçulmano, mas nem mesmo eu troço das crenças dos aldeões. – Peço desculpa. O calor hoje está a afetar-me. – Sebastien não sofrera com o calor mais do que o habitual; estava apenas a tentar desculpar-se enquanto refletia sobre o absurdo da situação. Por fim, acenou com a cabeça na direção da curandeira. – Madame Toka, se considera importante o meu gris-gris, então eu volto a colocá-lo. O intérprete traduziu e a curandeira devolveu o aceno, sorrindo a Sebastien. Ele foi à carrinha, procurou no porta-luvas e regressou ao casebre de madame Toka com a corrente de prata com a ficha. Não conseguira deitá-la fora. Ajoelhou-se em frente de madame Toka e estendeu-lhe o amuleto para ela ver; a mulher passou a mão sobre o objeto e disse qualquer coisa. – Ela sente a magia. Ainda lá está – comentou o intérprete. Não, pensou Sebastien. Olhou com uma careta de dor para a ficha que Amy lhe dera. A pintura barata desaparecera e estava amolgada devido ao ataque com a faca, dois meses antes. A bugiganga brilhante que em tempos emprestara a uma criança moribunda estava irreconhecível, não obstante ser, de facto, um talismã poderoso, que o impedira de ter outra mulher durante os últimos dois anos. Mas isso acabara. Ainda assim, para fazer a vontade a madame Toka, Sebastien pôs de novo a corrente ao pescoço.

Ficou surpreendido com a nítida sensação de conforto que se apoderou dele ao sentir a leve pressão da ficha contra o peito. Madame Toka acenou com ar sábio. Sebastien ignorou-a, mas não protestou. Lentamente, tocou no metal barato e distorcido. Hoje era o seu aniversário. Por um instante sentiu-se menos sozinho, e por isso, pelo menos, sentia-se grato.

Sebastien avançou por entre a multidão que enchia o aeroporto com desembaraço, retirando energia do desafio que implicava progredir naquele género de ambiente. Bateu com os óculos de sol na palma da mão calejada e bronzeada pelo sol equatorial e perscrutou os passageiros que chegavam. Atualmente passava metade dos seus dias de trabalho nas aldeias e a outra metade no hospital. Uma vez por semana dava aulas na universidade. Naquele dia viera diretamente de uma visita a uma das aldeias, pelo que a indumentária era informal: vestia calças brancas largas e uma camisola nativa de um tecido azul forte. Sebastien preparou-se para o reencontro antes de Annette chegar ao pé dele, com o cabelo escuro a esvoaçar e o corpo voluptuoso constrangido por um vestido branco amarrotado. Ela largou o saco de viagem, riu-se e abraçou-o. – Sebastien! O que é que te aconteceu? Pareces um cantor de navio de cruzeiro! Quem me dera que o papá te visse! Deixaria logo de pensar que devias ser um homem de negócios! – Talvez eu estivesse farto da minha imagem conservadora. – Cambaleando perante a força do entusiasmo da irmã, abraçou-a com alegria e retribuiu os beijos. A extrovertida Annette, um poço de inteligência e charme, estava decidida a ficar à frente de todos os negócios da família, e Sebastien concordava. A única coisa que ainda se atravessava no seu caminho era a determinação insistente do pai em colocar o filho mais velho nessa posição. A irmã recuou um pouco e estudou-lhe o rosto. – Podes vestir-te como os nativos, mas não podes mudar a forma como te vejo – comentou, com a testa um pouco franzida. – Para mim, serás sempre o General. Pareces cansado e mais magro. E, como sempre, demasiado austero. Para falar com franqueza, eu também estou cada vez mais séria. – Anda a esforçar-se de mais para agradar ao velhote – interrompeu-a uma voz masculina em tom petulante. – Mas não fazemos todos o mesmo? Céus, este lugar é horrível. Espero bem que tenhas um carro à espera. Mal posso esperar por chegar ao hotel e tomar um banho. Porque não nos avisaste que ia ser assim? Merda! O tom queixoso irritou Sebastien antes mesmo de olhar para trás de Annette e ver o irmão mais novo, que acabara de chegar junto deles. – Pareces um homem, Jacques, mas queixas-te como uma criança. Sebastien fitou o irmão com severidade, enfrentando um olhar mais claro do que o seu, mas igualmente obstinado. Ele e Jacques abraçaram-se, um cumprimento rápido e tenso. – Pareces o pai a falar – retorquiu Jacques. – Sempre soube que ias ficar igualzinho a ele.

Annette interpôs-se entre os irmãos. – Por favor! Acho que vocês não se apercebem de que parece que estão mesmo a discutir a sério! – É o choque de me ver – argumentou Jacques. – É o que dá três anos de ausência. – Ah, mas apenas porque tu me evitaste e dedicaste todo o teu tempo à vida de estudante universitário pateta – respondeu Sebastien. – Tenho estado à espera de que te passasse. – E eu tenho aguardado que o teu sentido de humor aparecesse. Annette bateu palmas e exclamou: – Chega! – Parecia nervosa e perturbada. Sebastien passou o braço pelos ombros dela, arrependido por ter deixado os seus sentimentos de desaprovação em relação a Jacques perturbarem a irmã. Annette estava a passar um mau bocado: com o seu registo impecável numa das escolas mais prestigiadas de França podia ter escolhido qualquer grande empresa para trabalhar, mas optara por trabalhar para o pai que, até agora, pouco mais lhe dera do que as responsabilidades de uma secretária. – Venham, o meu carro está lá fora – indicou Sebastien. – Isto é um péssimo local para uma discussão de família. Jacques riu-se. – Mas nós somos uma família péssima. Magro e musculado, com um rosto muito mais juvenil do que o de Sebastien fora aos vinte anos, Jacques era belíssimo. Vestia calças de ganga justas e uma t-shirt com o brasão da Sorbonne, a universidade de onde fora recentemente expulso. Passou as mãos pelo cabelo, que tinha aclarado do seu tom castanho-escuro natural e lhe caía em ondas suaves sobre a nuca. – Viemos para falar contigo sobre o velho – anunciou. – Merda, vamos despachar já o assunto. – Aqui não! – ordenou Annette. – Estamos no meio da confusão e ainda nem sequer fomos buscar a bagagem. – Apertou o braço de Sebastien. O sorriso, agora mais amarelo, reaparecera. – Além disso, tenho uma surpresa para ti. – Sim? – A tua surpresa deixou o saco de livros no avião e teve de voltar atrás para o ir buscar – informou Jacques. – Sabe Deus que não podia sobreviver sem os livros! Sebastien lançou um olhar interrogativo e desconfiado à irmã. – Que surpresa é essa? – É uma pessoa, Sebastien. Alguém que sei que ficarás contente por rever. – Ali vem ela – anunciou Jacques. – Uma das verdadeiras intelectuais do mundo, com toda a vivacidade de um calhau. Confuso, e depois profundamente contente, Sebastien afastou-se dos irmãos. – Cuidado! A viúva quer um marido novo – gritou Jacques em tom de aviso. Sebastien chegou junto da mulher de cabelo preto e olhos azuis, extremamente bela, e segurou com afeto a mão que ela lhe estendia com aprumo régio, tirando-lhe do ombro a grande mala de cabedal que

continha os seus adorados livros. Embora as famílias de ambos fossem vizinhas em Paris e a conhecesse desde criança, não a abraçou. Marie d’Albret era uma amiga íntima de Annette, mas não apreciava manifestações públicas de afeto. Ficou por isso chocado quando a própria Marie ergueu o rosto com expressão calorosa, passou os braços à volta do seu pescoço e o beijou na boca. Talvez Jacques tivesse um pouco de razão, mas julgava que nem a vontade de encontrar um novo marido justificava uma mudança tão radical de comportamento. – Não faças um ar tão estupefacto – disse Marie com ar divertido, recuando e endireitando os ombros. – Queria sair uns dias de Paris e perguntei à Annette se podia vir. Importas-te? Sebastien deu-lhe o braço. Era-lhe indiferente que Marie tivesse segundas intenções. Toda a gente as tinha. Até Amy, pensou, com uma breve pontada de fúria. Aquilo podia ser um reinício, uma forma de preencher parte do vazio. Não pensava em Marie há anos mas, de súbito, só queria que ela fizesse desaparecer as suas desilusões sentimentais. – Não me importo nada – assegurou-lhe. – Chegaste mesmo na altura certa.

O pai estava doente: cancro na pele. Através da janela do quarto de hotel da irmã, Sebastien observava a praça ladeada de palmeiras enquanto parte da sua mente lidava com uma mistura alucinante de emoções. Annette sentara-se, com ar infeliz mas digno, num sofá de damasco atrás dele, e Jacques estava deitado no chão, com as mãos por baixo da cabeça, os pés descalços cruzados, o rosto uma máscara inexpressiva. – Não é justo – murmurou. – O velho filho da mãe devia morrer a lutar contra algo que conseguisse ver. – Ele não vai morrer! – exclamou Annette. – Os médicos consideram que removeram todo o melanoma. Tiraram-lhe o sinal do pescoço e mandaram-no para casa. As probabilidades de sobrevivência são muito boas! – O velho devia morrer de forma adequada a um grande veterano de guerra – insistiu Jacques. – No escritório, a fazer o que faz melhor: a dar ordens aos assistentes como se fossem soldados e a humilhar banqueiros alemães. – Não os alemães – corrigiu-o Annette. – Estamos a contar com o investimento deles na fábrica que comprámos em Marselha. – Peço perdão. Não tenho a tua capacidade de pôr os negócios à frente dos sentimentos. – Não tens capacidade para nada que envolva usar partes do corpo acima da cintura – ripostou Annette, meio a brincar. – Mas acredita, irmãozinho, darás por isso quando eu transformar aquela fábrica num negócio bem-sucedido. – Posso recordar-te que, se o velho morrer, tudo pertencerá ao Sebastien? Não te esqueças de que és apenas a filha, tal como eu sou o filho extra, aquele que não conta. Sebastien já ouvira aquele tipo de argumentos demasiadas vezes para se sentir mais do que um pouco

aborrecido. – Eu dou-te tudo. Nunca quis nada. – Para o pai, não interessa o que tu queres – respondeu Jacques. – O velho vai morrer e deixar-te tudo, só para se vingar dessa tua atitude de indiferença. – Então como esperam que eu reaja à doença dele? Julgam que vou voltar para casa a correr e assumir o papel de filho devotado? Duvido que o pai esteja em risco de morrer. Usaria qualquer ardil para me apanhar. – O pai não é calculista – insistiu Annette. – Sei que consegue ser distante e severo, mas eu respeito-o e tu também devias… – Não o conheces como eu o conheço. Nenhum de vocês, aliás. São ambos demasiado novos. – Por amor de Deus, Sebastien, o que é que ele te fez? – Não devia ter de vos explicar por que motivo não sinto afeto por um homem que trata os filhos como bens que só merecem ser espiados ou ignorados. Sebastien aproximou-se do bar e serviu-se de uma dose generosa de brandy, batendo com a garrafa no balcão depois de encher o copo. Muitas vezes pensara se devia ou não contar a Jacques e Annette a verdade por trás das mortes da mãe e dos irmãos, mas não era capaz. Eles não se lembravam da mãe, mas veneravam a ideia que tinham dela, julgando até que o pai a amara. Sebastien seria incapaz de os privar dessa fantasia. Nunca saberiam que eram o resultado do erro do pai. – O que é que ele quer de mim agora? – perguntou. – Porque quer ver-me? – Para falar contigo sobre os negócios. Quer que assumas o lugar dele – explicou Annette, em tom resignado. – Ele não desiste. Jacques continuou a olhar para o teto, impassível, mas na sua voz havia tristeza. – Desconfio que a ideia da sua própria mortalidade o assusta. E não está completamente fora de questão que ele goste de ti, sabes? Sempre foste o favorito. – Não. Sempre fui o filho mais velho que lhe restava, o que fez de mim a única opção possível para predileto. Na realidade, o pai preferia Antoine. Esse é o tipo de pormenor que eu recordo e vocês não. – Estás com ciúmes de alguém que morreu há quase vinte anos? – perguntou Annette. – Não. Nunca. Vocês não conseguem compreender, porque não conheceram o Antoine… nem a Bridgette. Não se lembram de como a família era diferente antes de eles morrerem… antes de a mãe morrer. – Estás a dizer que o pai mudou depois da morte deles? Claro que mudou; a dor quase acabou com ele! Eu amo-o por ver o quanto gostava deles! – Annette levantou-se do sofá. – Já sabia que ias ficar amuado, mas agora percebo porquê! Tens ciúmes! E durante todos estes anos nunca foste honesto o suficiente para o admitir! Tens inveja dos nossos falecidos irmãos e odeias o papá pela forma como ele se isolou depois de perder a mulher e os filhos! És uma pessoa amargurada e mesquinha, Sebastien, e nem sequer consegues admitir que foste demasiado duro com o papá. Recusas-te a vê-lo quando ele mais precisa de ti!

Sebastien fitou a irmã com ar severo. – Ainda bem que gostas dele. O pai não o merece, mas se isso te deixa feliz… Só não me peças o mesmo. – És um filho da mãe de coração frio! Nem acredito que serias capaz de continuar com esta disputa num momento como este. Não faças isso, Sebastien! Não faças isso à família! Jacques sentou-se, de sobrolho franzido. – A Annette tem razão. Se tentares fazer as pazes com o pai, talvez as coisas melhorem para todos nós. – Isso não vai acontecer, por muito que o desejem. – Recusas-te a visitá-lo? – Sim. – O teu serviço aqui acaba dentro de alguns meses. E depois? – Volto para casa. Já recebi convites de vários cirurgiões que querem que me junte às suas equipas. – Mas com certeza que nessa altura irás vê-lo? – Não. – Nem mesmo se o cancro voltar? – Nem mesmo assim. – És horrível – acusou-o Annette, com voz baixa e trémula. – Queres que o papá sofra por causa dos seus defeitos, mas recusas-te a admitir que também os tens. Estou farta da tua arrogância. Não é justo! O papá quer que fiques à frente dos negócios e tudo o que tu fazes é atirar-lhe o teu ódio à cara! Enquanto eu gosto dele e ele não quer saber! Sai! Sai da minha frente! – Ligo-te logo à noite – disse Sebastien calmamente, apesar de aborrecido por a visita dos irmãos ter degenerado tão depressa numa discussão. – Talvez amanhã possamos… – Eu vou para casa. No primeiro voo que arranjar. Sebastien aproximou-se dela e segurou-lhe nos ombros. – Annette, não vou fingir que amo o nosso pai, nem mesmo para te deixar feliz. Mas não quero que me acuses de motivos… – Desprezo o teu orgulho! Desprezo-te! – A irmã libertou-se das mãos dele, com o cabelo a esvoaçar à volta do rosto. – Annette, tenta aceitar como eu me sinto… – És estúpido e cruel! – É melhor ires – aconselhou Jacques. Levantou-se e dirigiu-se à irmã. – Não posso dizer que não concordo com ela, mas vou tentar acalmá-la. Annette desatou a chorar e escondeu o rosto nas mãos. – O pai podia estar a morrer de cancro! Mas o Sebastien nem quer saber! Sebastien hesitou por um momento, a recordar o passado, analisando a amargura implacável de um menino que segurara no colo a cabeça ensanguentada da mãe moribunda e a vira morrer enquanto pedia

perdão ao pai por ter matado os filhos dele de propósito. Depois lembrou-se da amante do pai, la comtesse, que viera ao funeral. Na noite seguinte ficara na casa deles em Paris e Sebastien tinha a certeza de que não dormira sozinha. Tocou no ombro de Annette. – Desculpa – murmurou. – Mas tens razão em relação aos meus sentimentos pelo nosso pai. Não me importo que ele morra, e podes ter a certeza de que não lhe vou facilitar a vida e fingir que me importo. Saiu do quarto, deixando para trás o som dos soluços de Annette e das imprecações de Jacques.

Marie era formal e solene – não pudica como as freiras tinham tentado torná-la na escola –, mas possuía uma natureza séria que se ressentia do mundo por ser frívolo. O belo rosto e a figura esguia salvavam-na de parecer demasiado severa e reservada, e era muito bonita, apesar dos vestidos pretos feitos à medida que Sebastien sempre se lembrava de a ver usar. A última vez que a vira fora três anos antes, no seu casamento com um financeiro inglês. A morte do marido num acidente de barco, no outono anterior, adicionara uma atraente aura de sofrimento à sua natural dignidade. Quando a levou a jantar, nessa noite, Marie falou de temas neutros e, perturbado como estava, Sebastien ficou contente por poder limitar-se a escutar. Não havia qualquer passividade no caráter reservado dela, qualquer hesitação. Falava lentamente e sem querer ser sedutora; era quase plácida, exceção feita ao hábito que tinha de acariciar o longo colar de pérolas que usava sempre. Era dona de um jardim de infância exclusivo, onde os preços eram elevados e os filhos dos ricos aprendiam segundo os métodos mais avançados. Estava decidida a tornar o mundo mais seguro para os intelectuais, a começar pelos mais jovens. Sebastien não tinha a certeza de aprovar uma educação tão formal para crianças ainda de fraldas; preferia que aproveitassem a idade da inocência o máximo de tempo possível. Porém, a dedicação de Marie, bem como a sua independência, impressionavam-no. O pai dela era administrador no Sainte Crillion, um hospital de grande renome num dos subúrbios mais ricos de Paris. Ela podia viver luxuosamente do dinheiro da família e da fortuna que o marido lhe deixara, mas não o fazia. – O meu pai perguntou por ti antes de eu vir – comentou Marie. – Está com esperança de que o contactes. Esteve de olho em ti praticamente todo o tempo que trabalhaste na América. – Eu sei. Vários colegas cirurgiões mencionaram que o conheciam. Desconfiei que estariam a fazer relatórios sobre os meus progressos. – Isso não te aborrece? – O teu pai não é nenhum tirano. Respeito-o. Fiquei lisonjeado. – Ele está tão impressionado contigo, Sebastien! Como imagino que saibas, o departamento dele está a ganhar grande importância no hospital. O pai falou com o cirurgião-chefe sobre ti. Adorariam que te

juntasses à equipa. Estarias interessado em conversar com ele quando voltares para Paris? – Claro. Marie sorriu-lhe e fitou-o com um brilho satisfeito nos olhos encimados por pestanas escuras, quase sem qualquer maquilhagem. Tinha o cabelo enrolado num coque alto e simples. Tal como muitas mulheres francesas, possuía um ar natural de distinção e elegância. Sebastien deu por si a querer saber mais sobre ela, com vontade de explorar aquela personalidade que encarava a vida com tanto autocontrolo e frieza. Marie era egocêntrica e não se desculpava por isso. – Sabes, partilhamos muitas memórias, nós os dois – mencionou. – Lembro-me de uma altura em que estavas a dar aulas de violino à Annette e ensaiavam juntas em nossa casa. Eu estava a preparar-me para entrar na universidade e tu recusavas-te a falar comigo por causa disso. – Tinha inveja! Os criados estavam sempre a falar de ti… Oh, o menino é tão avançado para a idade! Queria competir contigo. E tens de compreender que eu tinha uma paixoneta enorme por ti. Eras só dois anos mais velho, mas parecias tão confiante e misterioso. Já nessa altura parecias ter grandes objetivos, e eu queria fazer parte deles, fossem eles quais fossem. – E agora? – perguntou Sebastien, apoiando o queixo na mão. O empregado trouxe os cafés e Marie sorriu ligeiramente enquanto misturava natas no seu. – Agora? – repetiu, de olhos postos nos dele, com uma expressão de desafio. – A Annette diz que vai para casa amanhã. O Jacques contrapõe que vai ficar mais alguns dias, só para te incomodar. O que achas que eu devo fazer? – Sabes por que motivo eles estão zangados comigo? – Sim. A Annette contou-me. – Achas que têm razão? – Acho que tu és um dos poucos homens neste mundo que nunca deixa os sentimentos interferirem com os seus princípios. E esse, meu caro Sebastien, é o motivo do meu fascínio por ti. Então, o que achas que devo fazer? Ir para casa ou ficar? Sebastien estendeu-lhe a mão e Marie pousou a sua na dele, calmamente. – Fica – respondeu ele. – Sem dúvida.

Nessa noite, levou-a para o seu apartamento e para a sua cama, onde ela o surpreendeu com a ferocidade das suas necessidades. Marie, com a sua ternura pragmática e pedidos diretos, era um bom par para ele, oferecendo-lhe o corpo esguio, de seios pequenos, com muito mais facilidade do que alguma vez lhe ofereceria amor. Estava contente por ela olhar o seu corpo com deslumbramento, contente por ela se contorcer debaixo dele, arranhando-lhe as costas com as unhas compridas e bem tratadas, contente por as necessidades dela serem fáceis de satisfazer. Depois de estar sozinho tanto tempo ansiava pelo toque de uma mulher: a abstinência prolongada fez com que fosse mais fácil não pensar em Amy, pelo menos nos momentos mais

ardentes. Quando Marie atingiu o orgasmo e chamou o nome do marido morto, Sebastien ficou apenas ligeiramente incomodado. Ela apressou-se a pedir desculpa e ele garantiu-lhe que compreendia. Ambos tinham noção da verdade – que aquilo não era amor, mas sim algo muito mais simples e seguro. Eram perfeitos um para o outro.

Capítulo 11

Amy entrou na cozinha, com um manual de Economia debaixo do braço, grandes olheiras debaixo dos olhos e rosto macilento. – Tosta de queijo com pickles? À meia-noite? Uf! Por acaso estás grávida? Mary Beth riu-se. – Se estivesse, o puto estava verde de tanto álcool. – És mesmo nojenta. – Boa imitação de menina queque. – Mary Beth sorriu-lhe. – Fiz uma tosta a contar contigo. E aqui tens um copo de leite. Agora senta-te e come. É a tua mãe meio-judia que te ordena. Como te sentes? – Melhor. Acho que esta noite vou conseguir dormir. – Não me digas que tens saudades daquele filho da mãe do Atwater. Nem o cheguei a conhecer, mas o género dele é-me familiar. Não merece que sintas falta dele. – Não sinto. Ainda bem que ele está na Califórnia. Espero que nunca mais volte. – Então para de te sentir culpada pelo que aconteceu. O tipo caçou-te como uma raposa atrás de um coelho, miúda. Não tinhas hipótese. – Este coelho não saltou muito. Deixei-o apanhar-me. – Então, és humana. E depois? Vamos baldar-nos às aulas amanhã. É verão. Devíamos estar a apanhar sol nas mamas, não a trabalhar. Amy sentou-se à velha mesa de cozinha e, com expressão fatigada, apoiou a cabeça na mão. – Não me parece. Quando me deito ao sol, penso de mais. O meu estado de espírito começa a cheirar tão mal como um peixe morto. – Um bom desodorizante resolve esse problema. A resposta fê-la sorrir. Pegou num pickle e atirou-o a Mary Beth. – Gosto muito da delicadeza com que tratas os meus sentimentos. Mary Beth desviou-se do pickle e riu-se. A pobre Amy era demasiado boazinha. Alguém tinha de olhar por ela. Trincou a tosta e arrancou um pedaço, com o prazer de um predador.

Amy estava curvada sobre um refrigerante, no refeitório da cafetaria universitária. Acabara de receber as notas de um trimestre cheio de Contabilidade, Ciência da Gestão e Economia. Só graças a um esforço agonizante conseguira terminar com boas notas: irritava-a ter baixado a média. Terminar o curso com notas perfeitas tornara-se o seu Santo Graal, algo que podia apresentar a Sebastien quando o

voltasse a ver, prova de que era suficientemente inteligente e determinada para ser amada. Estava a meio do curso, mas começava a admitir uma verdade perturbadora: gestão de empresas era tão entusiasmante como ver o mais recente namorado de Mary Beth fazer bolhas com o leite com chocolate, algo que estava a fazer neste momento com grande alarido. Beau era outro atleta, membro da equipa de atletismo, tão magro e seco como Harlan era corpulento e atarracado. Mary Beth não arranjava desculpas para o seu estranho gosto em matéria de homens. «Não preciso de uma queca intelectual», explicara-lhe uma vez. «Quero os meus homens duros, suados e burros.» Beau cumpria todos estes critérios. Mary Beth, vestida com uma camisola de alças cor-de-rosa e umas jardineiras por cima, pôs os pés calçados com sandálias em cima da mesa e reclinou a cadeira, de olhos postos em Amy. – A gestão de empresas não é para ti, querida – anunciou. – Consegues recitar todas as melhores piadas de maneira ainda mais engraçada do que as originais. Cantas e representas as tuas canções parvas da Broadway quando pensas que eu não estou a ouvir. Oh, sim, não fiques tão chocada. Uma vez, espreitei pelo buraco da fechadura do teu quarto e vi-te. – Oh, não! Estou tão envergonhada. – Fazes algumas boas imitações. – Isso é só pela piada. – Devias mudar a tua especialização para Artes Dramáticas. – Não! Nem pensar! – Então no outono vais iniciar mais um trimestre de disciplinas de Gestão e eu vou ter de te ver sexualmente frustrada, introvertida, viciada no trabalho e deprimida por causa das notas. Acho que sou capaz de te estrangular com um dos meus muitos colares de ouro falsos. – Terei todo o gosto em te ajudar. – Vá, diz. Há meses que te ando a treinar. Deixa-me ouvir-te, amorzinho. – Oh, está bem. És uma ordinária sem coração. Beau riu-se e deitou leite pelo nariz sem querer. Ou de propósito. Era difícil ter a certeza. Mary Beth sorriu-lhe. – Muito bem! Estás pronta para avançar para a fase seguinte da tua terapia, que significa arranjar um rapaz decente e dar uma queca. Amy endireitou-se, zangada. – Já te expliquei por que razão não quero namorar. Não quero ouvir falar em «quecas». Às vezes, Mary Beth, és mesmo cruel! Mary Beth fez uma expressão compungida. Na realidade, a debutante banida embaraçava-se a si própria amiúde e era tão agressiva que afastava a maioria das pessoas, duas características que muito lhe desagradavam. Tirou os pés de cima da mesa e inclinou-se para a frente, com olhar sério.

– Queridinha, vais ficar com esse teu coração partido em mil pedacinhos. És a pessoa mais querida que alguma vez conseguiu aprender a aturar-me, e não te quero ver magoada. Por favor, por favor, esquece esse médico francês e segue a tua vida. – Não posso. Não compreendes como era entre nós. Tenho uma sensação, uma intuição, de que ele não se importaria de me voltar a ver. Vou a França para a semana e vou encontrá-lo. Não percebes, Mary Beth? Quando amamos alguém desta maneira, temos de acreditar que a outra pessoa nos ama também, mesmo que nunca o tenha dito. Pelo menos, há algumas coisas que tenho de explicar. Mary Beth arqueou uma sobrancelha loira de forma maliciosa. – Vou encontrar o Sebastien – repetiu Amy, com um aceno decidido.

Amy estacionou atrás do château e entrou no edifício de betão onde ficavam os escritórios da casa vinícola. A mulher rechonchuda atrás da secretária da receção abriu um sorriso radiante ao vê-la. – Valha-me Deus, olha bem para ti! A Maisie disse-me que estavas muito mudada, e não estava a exagerar. O olhar de admiração da mulher perscrutou a saia branca e esvoaçante de Amy e a blusa de gola larga. Amy engoliu em seco e fez um esforço por parecer indiferente. – O senhor Beaucaire está por aí? Precisava de lhe falar, se ele tiver um momento. – Ora bolas, com certeza que poderias falar com ele se estivesse cá. Mas voltou para França a semana passada. Temos um novo administrador. Lembras-te do Gordon Thompson? O senhor Beaucaire promoveu-o. Amy deixou-se cair num sofá, sem forças. Nesse momento a porta abriu-se e entrou um homem baixo e suado, a limpar a testa com as costas da mão. Amy lembrava-se muito bem de Gordon Thompson. Era um dos assistentes das vinhas e um autêntico tirano. – Senhor Thompson – chamou a rececionista em tom animado –, veja só quem nos veio visitar. Enquanto ela explicava o motivo da visita de Amy, esta levantou-se e olhou para o homem com um sorriso forçado. Thompson examinou-a de testa franzida. – Não foste despedida? – perguntou, em tom seco. – Não, eu… tive uns assuntos pessoais inesperados e tive de me despedir. – Espera aí! Eu lembro-me o que se passou, porque o senhor Beaucaire estava furioso com o assunto. – Não causei problema nenhum. Oiça, tudo o que preciso é do contacto do senhor… – Foste viver com o doutor de Savin. Amy sentiu as faces quentes. – O doutor de Savin era meu amigo… – Sim, sim. E agora andas a tentar encontrá-lo, aposto. Ouve, eu sei o que o senhor Beaucaire pensava da situação. Há um nome para raparigas que se aproveitam dos seus empregos como tu fizeste. Podes dar

meia-volta e sair por onde entraste. – Acho que o doutor de Savin não gostaria de saber que está a falar comigo dessa maneira. Tanto me faz o que pensa de mim, mas tenho a certeza de que ele se importará, porque somos bons amigos. Na verdade, vou visitá-lo a França para a semana. O novo administrador sorriu com expressão sardónica. – Sim? Vais visitá-lo a ele e à esposa? A última palavra foi como um forte murro no estômago. Amy olhou para ele, atónita e em estado de choque. – O que é que disse? – Esposa. O doutor de Savin casou-se há pouco tempo com uma senhora que conhece desde pequeno. Uma senhora francesa. Portanto imagino que afinal não são assim tão bons amigos, pois não? A mente de Amy paralisara. – Ele não se casaria. Não o faria. A rececionista pigarreou, atrapalhada. – É verdade. O senhor Beaucaire foi um dos convidados e contou-me que eles tinham casado numa cerimónia católica em África. – Parece que não recebeste o teu convite, hã? – troçou Thompson. Um orgulho feroz ajudou Amy a aguentar-se de pé. – Bolas – rosnou secamente. – Uma mulher dá a um homem as melhores duas semanas da sua vida e dois anos depois ele já se esqueceu dela. Thompson ficou confuso. – Hã? Ele já se esqueceu há muito mais tempo. – A piada é essa, percebe? – Amy sorriu. – Ooops! – Olhou para a cabeça dele. – Se calhar é melhor eu abrandar. Parece que o trânsito aí dentro está um bocadinho lento. – Sentia garras a destruí-la por dentro. – Com que então, o doutor casou-se? Um casamento africano. Hum. Deve ter sido difícil tentar alugar uma tanga a condizer com o smoking. – Tenho uma fotografia do casamento – comentou a rececionista, lançando-lhe um olhar curioso. Abriu a gaveta. – O senhor Beaucaire deu-ma. Amy aproximou-se da secretária e estudou a imagem. Olhou para a mulher que vira pela primeira vez na fotografia que Beaucaire lhe mostrara. – Ela tem um sorriso bonito. Gosto da forma como os dentes acabam em curvas pontiagudas. Só é estranho não se conseguir ver o reflexo dela no espelho. – Que raio é que estás para aí a dizer? – inquiriu Thompson. – Nada. Mas o doutor está com ótimo aspeto, para quem acabou de casar com uma morta-viva. Vai ser complicado levá-la à praia, já para não falar naquele problemazinho embaraçoso com o alho. Thompson soltou uma fungadela desdenhosa. – Da próxima vez que tentares apanhar um peixe grande, é melhor usares isco fresco. Agora

desaparece. Amy dirigiu-se lentamente à porta. Com a mão gelada pousada na maçaneta, virou-se para trás. Passou-lhe pela cabeça uma lista das melhores obscenidades de Mary Beth, mas não era o seu estilo. E, de qualquer maneira, os insultos de Thompson não a afetavam. Nada a afetava exceto o conhecimento de que Sebastien estava agora fora do seu alcance, para sempre. – Obrigada pela informação – agradeceu, baixinho, e saiu.

– Querida? Amy? Pobrezinha, vá lá. Anda lá, vá. – Mary Beth parecia desolada. Puxou o braço de Amy. – Não podes ficar a noite toda sentada no quintal. E tenho medo que acabes por pegar fogo a ti própria. Entre soluços, Amy atirou outro poster para o monte de cinzas, esguichou líquido de uma pequena lata, acendeu um fósforo e atirou-o. As chamas azuis engoliram o poster a poucos centímetros dos pés dela. Amy bebeu um gole de vinho pela garrafa. – Despedimo-nos agora da bela província da Normandia. Em segundos, a Normandia era indistinguível das suas antecessoras carbonizadas. Amy recostou-se, limpou os olhos com o braço e tirou mais um poster da lata de lixo que trouxera consigo. – Despedimo-nos agora de… qual é este?… – Semicerrou os olhos para tentar discernir a imagem à luz fraca do alpendre das traseiras. – Ah, os Alpes. Adeus, Alpes. Mary Beth tirou-lhe o poster das mãos. – Está na hora de irmos para dentro, minha incendiária. Podes acabar isto amanhã. Amy largou a garrafa de vinho e apertou os joelhos contra o peito. Chorou com desespero, com a cabeça inclinada para a frente. Mary Beth sentou-se ao seu lado e passou-lhe o braço pelos ombros. – Vai melhorar, querida. Eu já fui abandonada por alguns dos maiores quebra-corações de Atlanta, por isso sei do que falo. Passado algum tempo voltarás a sentir-te bem, e depois podes destruir um pobre inocente qualquer para te vingares dos homens em geral. – Não quero vingar-me. Ainda o amo. Vou amá-lo sempre. – Nesse caso, suponho que é melhor beberes mais um pouco. – Mary Beth pegou na garrafa e olhou para ela. – Oh, céus. Compraste vinho da marca de Savin. O que é que estás a tentar fazer: arrancar o coração do peito? – Sinto-me como se isso já tivesse acontecido. – Baloiçou-se para trás e para a frente. – O que hei de fazer quando sei que nunca mais haverá ninguém tão maravilhoso como ele? – Prometes a ti própria que nunca mais amarás ninguém dessa maneira. E esperas consegui-lo, porque não vale a pena. – Nunca mais. Mas, por ele, valia. Juro-te. – Nesse caso, devia ser uma pessoa muito especial. Invejo-te. Mary Beth começou também a chorar. Encostou a cabeça à de Amy e deram as mãos. Amy fechou os

olhos. Nunca mais.

Estava um daqueles dias desagradáveis que acontecem por vezes no norte da Georgia no final do outono. A temperatura subira até aos vinte e três graus, o céu estava limpo e azul e o ar cheirava a flores silvestres secas. Não havia desculpas para ficar em casa. Amy enfiou a mão na caixa de cereais que mantinha equilibrada em cima da barriga enquanto olhava, entorpecida, para a televisão. Tinha os calcanhares um pouco doridos por estarem apoiados no braço do sofá: optou por cruzá-los, o pé direito por cima do esquerdo, naquela que era a decisão mais extraordinária que tomara até ao momento. Um floco de cereal caiu-lhe na t-shirt e deixou-o lá ficar. Mary Beth entrou e apagou a televisão. – Chega de lamúrias. A minha compreensão esgotou-se – anunciou. – Estás neste estado há mais de três meses. Vais passar a alguma das tuas disciplinas este trimestre? – Só se algum professor usar uma curva de avaliação muito ampla. Tipo metade da circunferência da Terra. Mary Beth deixou-se cair numa poltrona desengonçada que tinham comprado numa venda de garagem. – Bom, pelo menos já não estás a chorar em cima das malditas ervas aromáticas. Nem a queimar posters de França. – Suspirou. – Agora estás apenas concentrada em provar que és uma inútil. Amy pousou a caixa de cereais no chão, virou-se de lado e apertou uma almofada contra o peito. – Sim, daqui é diretamente para uma carreira de apresentadora de concursos de televisão. – Muito engraçado, engraçadíssimo. Estás cheiinha de piada. Porque é que não lhes dás bom uso? Vem trabalhar um bocadinho na estação de rádio esta tarde. Só tens de dizer «Boa tarde. Os jogadores dos Bulldogs ouvem a WDIG FM. Clássicos do rock, todo o dia, todos os dias.» – Tenho de dizer isso no ar? – Não, ao telefone. Precisam de uma rececionista. – E pagam alguma coisa? – Estás a brincar? Aquilo é uma espelunca. Só meia dúzia de pessoas recebe para trabalhar lá, e mesmo essas andam a vender sangue para conseguir sobreviver. Os estudantes não são pagos. Obtêm experiência de trabalho valiosa. – Como rececionista? – Tens de começar por algum lado, amorzinho. Detestas o teu curso e adoras televisão. Isso significa que pelo menos vais gostar da rádio. O que tens a perder? Ouve, esquece o médico francês, está bem? Já não precisas de o tentar impressionar. Faz aquilo que te deixa feliz. Amy sentou-se, com esforço, e olhou para o chão. – Irei sempre tentar impressioná-lo – murmurou. – Mesmo que nunca mais o volte a ver. – Ótimo. Impressiona quem quiseres. Mas faz qualquer coisa fantástica.

Amy esfregou a testa. – Boa tarde – murmurou. – Os jogadores dos Bulldogs ouvem a WDIG FM, clássicos do rock todo o dia, todos os dias. Mary Beth fez o seu aplauso de debutante delicada, com as pontas dos dedos a baterem suavemente na parte de baixo da palma da outra mão. – Maravilhoso, querida! Seremos a única estação da cidade com a Olívia Palito como rececionista. – Mas nunca terei da falar no ar, pois não? – Não. Há montes de trabalho para fazer nos bastidores. Se calhar até te vais divertir. – Mary Beth? – Sim? Amy tocou-lhe no braço. – Obrigada por me aturares. E por te preocupares. Para uma ordinária sem coração, és uma amiga maravilhosa. Os grandes olhos verdes de Mary Beth encheram-se de lágrimas. – Tens péssimo gosto. Isso agrada-me numa pessoa.

Para seu choque e surpresa, Amy descobriu que adorava trabalhar na WDIG. Era uma estação meio improvisada, instalada numa casinha minúscula a alguns quarteirões da universidade. Parker Poodit, dono, gerente, vendedor e disc-jockey da manhã, vivia no piso de cima. Parker parecia algo que ficara esquecido depois de um longo dia em Woodstock. Estava a ficar careca, a barba loira, meio grisalha, descia-lhe até ao peito, e tinha uma clara preferência por t-shirts tingidas, sandálias de cabedal e joias de turquesa. À sua volta havia sempre um leve cheiro a incenso e a after-shave. Era também um homem descontraído, que ignorava as limitações das regras dos sindicatos e mal cumpria os regulamentos para transmissão, pois considerava o seu império emissor de uma só estação como o centro da rebelião popular. O rock trazia os ouvintes normais; os comentários estranhos de Parker traziam as pessoas nas franjas da sociedade. Mary Beth era a DJ da tarde. Tornava-se uma pessoa diferente quando se sentava ao microfone, a falar no seu tom de voz rouco, arrastado e adocicado. Amy via a rapariga dura desaparecer e, em seu lugar, surgir uma jovem séria que sabia como transmitir solenidade e dramatismo aos noticiários. O trabalho atrás do microfone era, provavelmente, a única coisa que Mary Beth levava a sério na vida. Amy progrediu rapidamente de rececionista para faz-tudo: ia buscar álbuns à biblioteca – um grande armário ao lado da cozinha de Parker –, tratava da correspondência, e, por fim, aprendeu a organizar os horários dos programas. Até se envolveu um pouco no lado mais técnico do trabalho e aprendeu a editar gravações. Por fim, enquanto comiam uma piza num restaurante barato, tomou a decisão de trocar a sua especialização para Comunicação, com ênfase em produção rádio-TV-cinema. Mary Beth espetou uma

vela num pedaço de mozarela e, depois de a acender, proclamou em tom solene: – Brindemos à futura produtora famosa. Que ela seja feliz e encontre um homem novo. Raios, que encontre um homem velho. Um homem qualquer. Ultimamente vejo-a passar tempo a mais a olhar para pepinos. Amy abanou a cabeça e riu-se como se estivesse a divertir-se. Já saíra com alguns rapazes – nada de sério – e todos os encontros tinham acabado com beijos pouco convictos. Apagou a vela de Mary Beth e pensou: Oh, Sebastien, quanto tempo vai ainda doer assim?

Parker Poodit entrou a correr no gabinete da estação – uma sala de estar convertida, com cadeiras e secretárias muito usadas – e gritou: – Temos o Elliot Thornton! Vou entrevistá-lo no programa da manhã para a semana! Toda a gente começou a fazer perguntas. Amy largou o formulário de programação que estava a preencher e olhou para Mary Beth, entusiasmada. Tinha bilhete para um dos espetáculos esgotados de Thornton. – Como é que conseguiste? – perguntou alguém a Parker. Parker levou a mão à barba, satisfeito. – Liguei para o agente dele e informei-o de que fomos a única estação de rádio da cidade a passar uma entrevista não censurada com o Hunter S. Thompson. Toca a arrumar tudo! Alguém arranje uma esfregona! Tirem aquele poster do Elton John da parede! Mary Beth inclinou-se para trás na cadeira de armar e, brincando com o cabelo loiro, anunciou que Elliot Thornton tinha toda a subtileza cómica de um totó com problemas hormonais. Amy atirou-lhe um lápis. – Ele é fantástico no humor visual! Consegue estar em cima do palco a descascar uma banana e toda a gente se ri! Ganhou o Showtime’s Big Laugh-Off de caras. E li na TV Guia que tem apenas vinte e sete anos. – Desculpa, és a líder do clube de fãs do homem? «Totós por Thornton»? – Tu és uma terrorista loira insuportável. O Elliot Thornton é muito americano, o genuíno «rapaz da porta ao lado». É por isso que é tão popular. Toda a gente se sente à vontade com ele. – Sim – interrompeu Parker Poodit. – Tem ar de quem toma banho todos os dias. – E também é sexy – comentou uma das outras empregadas. – Eu acho-o adorável. Em inferioridade numérica, Mary Beth fez um gesto obsceno com a mão. – Vão chupar sacarina. Amy riu-se. – Bom, eu quero vê-lo de perto. – Ele vai comer-te viva. – Nas entrevistas parece simpático.

Mary Beth gemeu. – Amorzinho, o trabalho do publicista dele é garantir isso mesmo. Aposto dez dólares em como és demasiado tímida para guinchar uma única palavra na presença dele e em como, se o fizeres, ele vai ser um idiota. – Apostado. – Mary Beth sabia que a amiga morderia o isco. Por outro lado, Amy apercebeu-se, com algum alívio, de que era bom voltar a sentir este tipo de antecipação. Agarrou-se à nova atitude, acalentou-a e alimentou a sua coragem. Ia ser uma pessoa que não tinha medo de falar, nem mesmo com Elliot Thornton, só para provar que era capaz de o fazer.

Não tinha aulas de manhã no dia da entrevista, por isso chegou à estação de madrugada e sentou-se no cubículo, a passar as notícias recebidas a um estudante, que as leu entre canções para os ouvintes madrugadores. O engenheiro de som, um homem corpulento com rastas, fez-lhe caretas lascivas da sala de controlo e ela fingiu reações de choque absurdas. Era uma brincadeira que já tinham feito noutras ocasiões e Amy gostava de saber que o conseguia fazer rir até às lágrimas. Uma hora depois dirigiu-se à cozinha, uma das poucas partes da casa de Parker que mantinha a forma original, e preparou uma grande cafeteira de café. Ouviu o som de água corrente no piso de cima. Parker devia estar acordado e a lavar a barba para a grande ocasião. Do outro lado da porta da rua, aberta, pássaros cantavam nos carvalhos e carros passavam na rua estreita, com o som dos pneus abafado, como se o orvalho estivesse a amortecer todo o ruído. Algures, ouviu o ronco agressivo de um motor diferente; enquanto se servia de café, categorizou-o distraidamente como proveniente de uma motorizada. O som aumentou de intensidade e, com o café na mão, Amy aproximou-se da porta e encostou-se à ombreira. Quando a motorizada apareceu a rugir na curva, levou a mão ao peito da camisola de malha branca e viu, horrorizada, o condutor travar e a grande Harley derrapar. A motorizada bateu contra o lancil do passeio e deslizou sobre a relva, enquanto o condutor, de capacete, soltava um grito divertido ou aterrorizado; Amy não conseguiu perceber qual. Quando a Harley se enfiou numa sebe alta de plantas de folhas avermelhadas, o condutor desapareceu no meio dos ramos; Amy atirou a chávena de café para o chão e correu para ele. Quando lá chegou, o homem já se virara e ela olhou para baixo, ansiosa. Os braços dele, dentro de uma camisola desbotada da equipa de futebol da Universidade Estatal do Michigan, estavam abertos para o lado, como se estivesse recostado num sofá. O relógio de ouro, com pedras incrustadas que podiam ser diamantes, ficara preso num ramo. Gemia e ria ao mesmo tempo. Amy olhou para o rosto atraente e desenvolto dentro do capacete. Os olhos azuis, injetados de sangue, devolveram o olhar e percorreram-na de cima a baixo, com um movimento exagerado e cómico de cabeça. Não pareciam tão desenvoltos como o rosto; na verdade, pareciam um pouco embaraçados. – Miúda – disse ele em tom solene –, vim mais cedo para te salvar do tédio. Mas receio ter sido…

arbustado. Amy ficara tão intrigada que não teve tempo para se sentir tímida. – Desbravado – corrigiu. O homem riu-se, um som encantador, mas envergonhado. Com estranheza, Amy perguntou-se se seria tímido. O homem pigarreou, fitou-a com ar sério e soltou a correia do capacete. – Chega-te para trás. Tirei a cavilha de segurança e a minha cabeça pode explodir a qualquer instante. Ainda há duas horas estava a divertir-me numa festa bastante descontrolada em Atlanta. – Agitou os braços, como se estivesse a defender-se de pessoas invisíveis. – É melhor parar de bater as asas. A época da caça ao peru começa cedo por estes lados. Os braços dele estacaram em pleno ar. Gaguejou, estupefacto, e olhou para ela mais atenção. – Tu existes mesmo? – Mesmo. Trabalho aqui na estação. – E tens mais de dezoito anos? – Mais três. – E nasceste com essa voz maluca? – Sim. Os seus olhos estão com péssimo aspeto. – Devias vê-los do meu ponto de vista. Acho que estou apaixonado. Amy revirou os olhos, numa falsa demonstração de impaciência, mas não conseguiu evitar um sorriso enquanto ajudava Elliot Thornton a sair do arbusto.

O clube estava a abarrotar, as pequenas mesas cheias de estudantes bem vestidos, pessoas que aguardavam com ansiedade um futuro de condomínios fechados e carros BMW. Amy, nas laterais do pequeno palco, tinha um ponto de observação privilegiado. – Venham a mim, baby boomers – murmurou Elliot Thornton ao lado dela, enquanto ajeitava o casaco azul em frente de um espelho. – Sou o vosso próximo rei, baby boomers, o próximo rei. Venham a mim. Sejam meus. Venham a mim. Recitava as palavras como se fossem um mantra. Amy observou-o, fascinada. Elliot virou-se para ela e passou a mão trémula pelo cabelo castanho-claro, curto como estava na moda, mas confortavelmente revolto. – Baby boomers, miúda – repetiu, com um sorriso tenso e nervoso. – Vão ser meus. Estalou os dedos num ritmo maníaco. Elliot Thornton, natural de Kansas City, asmático desde a infância, formado em Educação pela Universidade Estatal do Michigan e filho único – e ridiculamente mimado – de um dentista e de uma advogada, estava, obviamente, morto de medo de subir ao palco. Amy viu-lhe uma veia azul a pulsar na

têmpora. Elliot Thornton precisava que estivesse com ele para lhe acalmar os nervos, pelo que convidara Amy para ser sua assistente naquela noite. Dissera-o na estação de rádio nessa manhã, depois de uma entrevista louca e brilhante com Parker, repetira-o durante um almoço de cachorros-quentes e aros de cebola em Athens, e voltara a reiterar mais uma vez, desta feita no cartão a acompanhar as rosas que lhe tinham sido entregues em casa quando Amy chegara das aulas, à tarde. Ela era necessária. Era a pessoa calma. Nem conseguia acreditar. Estava extasiada. Deu uma palmadinha no braço de Elliot. – Está pronto, senhor Thornton? – perguntou o apresentador, saindo de um corredor que levava às traseiras do clube. – Sim. – Elliot limpou uma gota de suor da testa. – Ei, e não me trate por senhor. – Obrigado. – É patrão Thornton. O apresentador grunhiu como o Mr. T. – Arranco-te a cabeça e enfio-ta no traseiro, branquela. Trocaram um aperto de mão bem-disposto e o apresentador subiu ao palco. Trabalhou a multidão com um controlo profissional e Amy assistiu, hipnotizada. Adorava assistir às atuações daquele ponto de vista e os olhares curiosos e respeitosos que as empregadas de mesa lhes lançavam, a ela e a Elliot, quando passavam a caminho da cozinha; adorava o frémito de antecipação no público, por causa de Elliot. Adorava ser a assistente de Elliot Thornton, o que quer que isso significasse. Elliot era simpático. Não fizera qualquer avanço, portanto – e embora Mary Beth tivesse manifestado a opinião de que ele andava à procura de uma rapariga fácil e não de uma assistente – Amy sentia-se à vontade na sua companhia. Afinal de contas, só havia um homem com o poder de a fazer ignorar o seu bom senso, e não o via há quase três anos. Estava em França, com a esposa. Ainda há pouco tempo voltara a sonhar com ele: um sonho angustiante, desesperado e erótico. O apresentador terminou a sua parte e recebeu uma boa dose de aplausos. Elliot passarinhava para trás e para a frente num espaço que não devia ter mais de um metro de largo. Amy percebeu que tinha o coração acelerado de entusiasmo, como se fosse ela a próxima a subir ao palco. Fazer parte da antecipação sem sofrer o terror era perfeito. – Por favor, deem as boas-vindas a Elliot Thornton! Enquanto os gritos e aplausos inundavam o palco e se espalhavam para as laterais, Elliot pegou-lhe nos braços e deu-lhe um beijo seco e rápido nos lábios. O corpo dele estava tenso como uma mola. – Vou ser o líder da matilha, miúda. Deseja-me sorte. Amy imitou um cão a ladrar. – Céus, és mesmo perfeita. Deixou o seu verdadeiro eu para trás e enviou uma nova personagem para a luz dos holofotes. Era o Elliot Thornton que Amy vira nos programas de comédia dos canais por cabo, o tipo descontraído e

indiferente, com as mãos enfiadas com naturalidade nos bolsos das calças, um sorriso confiante nos lábios. – Muito boa noite – cumprimentou ao microfone, com um ar de tal forma entediado que as pessoas começaram logo a rir. – O que temos aqui é uma sala cheia de baby boomers do Sul. Vejo muitas pessoas do tipo «Cala a boca e passa a quiche». Sim. Yuppies sulistas. Yuppies discretos. Os risos subiram de intensidade, misturados com aplausos. Amy, na lateral, abriu a boca. A surpresa depressa deu lugar à satisfação: Elliot gostara tanto do seu comentário que o incluíra no número, tornando-o engraçado! Dois espetáculos mais tarde, cansada mas com a cabeça a andar à roda de alegria, foi para o quarto de motel de Elliot com ele e um grupo que incluía o apresentador, o gerente do clube e alguns estudantes que lá trabalhavam em part-time. O gerente trouxera sanduíches e cerveja, que espalhou em cima de uma mesa. Várias pessoas sacaram de saquinhos de erva e começaram a enrolar charros. Elliot foi o primeiro a acabar de comer e a acender um. Com um refrigerante na mão, Amy refugiou-se na varanda e fingiu estar interessada num parque de estacionamento escuro e deserto. Franziu a testa, consternada. O aroma doce da erva e o cheiro a cereais queimados da cerveja far-lhe-iam sempre lembrar os acessos de fúria do pai. Não gostava do que as drogas e o álcool faziam às pessoas. No entanto, parte dela ansiava pela aceitação de Elliot, e essa parte lembrou-se de como tinha sido estar ali com ele, ao lado do palco, e ouvi-lo dizer a piada dela ao público. Essa era a droga de que precisava; isso e a doidice confortável do mundo dele. – Eh, miúda, o que é que o asfalto tem que eu não tenha? Eu sou liso e duro. Vais acabar por gostar. Elliot saiu e aproximou-se dela em passo gingão, a retorcer as pontas de um bigode imaginário. Já não trazia o charro na mão e Amy estudou-o, confusa e pensativa. – Não uso drogas – disse, lentamente. A expressão divertida dissipou-se e Elliot olhou-a com ar sério. – Podias ser boa para mim – murmurou, como se falasse consigo próprio. Depois regressou ao presente e perguntou: – E se desistisses da escola e viesses trabalhar para mim? Amy pousou o copo e segurou-se ao parapeito para se apoiar. – Seria fantástico. Obrigada. Muito obrigada. Mas tenho de terminar os estudos. – Pensou, Não posso desiludir o Sebastien. E depois, triste, corrigiu para: Não posso desiludir-me a mim própria. – Sou a primeira Miracle a frequentar a universidade. Não posso desistir… Que tipo de trabalho seria? – Não sei. Suponho que está na altura de contratar uma secretária. – Quero arranjar um emprego sozinha, sem favores de ninguém. Elliot segurou na cabeça com ambas as mãos e gritou para o céu escuro: – Porque é que ela é tão difícil? As mulheres deviam fazer tudo o que eu quero, agora que sou rico e famoso! – Ainda não és assim tão rico e famoso.

– Ela está a apunhalar-me no coração! O meu ego está a perder o ar! Estou a derreter! A derreter! – A sua voz foi ficando cada vez mais aguda. – A derreter! Eu salvo-te, Dorothy! – Dobrou os joelhos com lentidão até cair no chão da varanda. – A ti e ao teu cãozinho! Amy não conseguiu conter o riso. Elliott era um dos poucos homens que conhecera que conseguiam ser ridículos e, ao mesmo tempo, encantadores. Um palhaço atraente e intrigante, seis anos mais velho do que ela, embora não parecesse. Amy sentia que Elliot precisava que tomassem conta dele; infelizmente, compreendia bem o seu género, porque o pai também era assim. – Se calhar devíamos ver o que acontece – sugeriu. Já não era ingénua; não sonhava acordada com futuros impossíveis. – Afinal, vais ficar por aqui dois dias inteiros e depois partes para Nova Iorque. Mais vale admitires que eu sou um capricho passageiro, querido. – O seu tom de voz cínico magoa-me – respondeu Elliot, dirigindo-se a um público invisível. Apoiado agora num só joelho, pegou-lhe nas mãos e beijou-as. – Honro uma mera estudante universitária com o meu afeto e ela despreza-me. A mim, a próxima estrela da comédia. Oh, miséria! Que arrogância. Amy sentou-se de pernas cruzadas à frente dele e apertou as mãos que seguravam as suas. – Não é arrogância, meu caro. É autodefesa. Tens de ser honesto comigo, está bem? Agora sério, ele sentou-se em silêncio ao lado dela. – Está bem. Talvez nos voltemos a encontrar depois desta noite, talvez não. Gostei de ti, miúda. És, sem dúvida, única. Era bom poder conhecer-te melhor. É tudo o que posso garantir. – E é o suficiente. – Por agora, vamos ficar sentados a conversar. Daqui a bocado corro com os abutres da festa. E depois talvez façamos um pouco disto. – Com uma expressão libidinosa cómica, enfiou o indicador num círculo feito com o indicador e o polegar da outra mão. – Ou talvez um pouco disto. – Contorceu os dedos de formas absurdas e agitou-os. – Ou talvez até um pouco disto… – Roubaste isso ao Steve Martin. Elliot franziu a testa, exasperado. – Decoraste todas as comédias que existem? – Todas não. Ainda me faltam umas quantas. Elliot pôs o braço à volta dela e beijou-a. Não houve nada de eletrizante, nenhuma explosão de arrepios dentro dela nem uma ânsia desesperada de o possuir, como acontecia com Sebastien. Mas foi agradável. Muito agradável. E isso chegava. Na manhã seguinte, acordou deitada de lado, com Elliot atravessado em cima dela, como se tivesse tentado rastejar até ao outro lado da cama e ela fosse o obstáculo que o detivera. Amy virou-se de costas e Elliot começou a ressonar. Tinha a cara escondida nos lençóis e um braço esticado para cima, com o antebraço apoiado entre os seios de Amy e a mão encostada ao seu queixo. – Dormir contigo é como lutar com um polvo – comentou em voz baixa. Amy estudou os corpos nus, com lágrimas a deslizaram-lhe pelos cantos dos olhos. Limpou-as rapidamente. Elliot era querido, engraçado e carinhoso; estava contente por estar ali com ele, e esperava

que aquela não fosse a sua única vez juntos. Fechou os olhos e tentou conter as lágrimas. Sentia que estava a libertar-se, a despedir-se, pondo de lado fantasias inúteis e substituindo-as por memórias que podiam ser estimadas em vez de lamentadas. Oh, Sebastien, pensou com tristeza. Adieu.

Terceira Parte

Capítulo 12

Tal como Sebastien desconfiara, Philippe de Savin não corria qualquer perigo de vida. Nos dois anos que se seguiram ao diagnóstico esteve sempre saudável, segundo os vários exames médicos que fazia com regularidade. Continuou com a sua vida regimentada, a gerir os negócios da família, a coordenar eventos sociais exclusivos e a vigiar Sebastien. Tal controlo não espantava Sebastien e dava-lhe até um prazer perverso ignorá-lo, tal como ao pai. O facto de naquele momento se encontrar na antecâmara dos escritórios paternos devia-se apenas a uma espantosa reviravolta dos acontecimentos. Uma das várias secretárias atendeu um telefone que zumbia baixinho. – Já pode entrar – indicou. Sebastien assentiu e passou pelas pesadas portas de madeira. Entrou numa divisão onde a carpete grossa silenciava os seus passos e parou sob a luz das janelas altas, vendo o pai levantar-se detrás da secretária. Ao olhar para o rosto anguloso e enrugado de Philippe de Savin, encimado por uma cabeleira branca e farta, Sebastien viu-se a si próprio daí a trinta anos. – Então vieste, finalmente – disse o pai, com uma expressão dura, mas divertida. – Esperavas que os relatórios da tua irmã sobre a minha saúde não fossem verdadeiros? – Enfiou um dedo no colarinho da camisa e puxou-o para baixo de modo a mostrar a marca rosada de um dos lados do pescoço. – Agradeço muito a tua preocupação. Apesar de tardia. – Não tenho qualquer necessidade de te ver. Basta-me perguntar por ti a uma das muitas pessoas que me vigiam a teu pedido. Philippe de Savin instalou o corpo alto, de membros compridos, numa cadeira de cabedal. Com os dedos pousados ao de leve nos braços da cadeira, parecia seguro do seu estatuto superior. – Contaram-me que serás nomeado diretor da nova Unidade de Transplantes. Contudo, sei também que fizeste inimigos entre os outros médicos. – Não sou o preferido dos que se agarram a velhas técnicas, admito. Quando a tradição prejudica os pacientes, eu digo-o. – Aprovo a tua agressividade. Ser-te-ia muito útil aqui. – Ergueu a mão e indicou o cenário envolvente com um gesto gracioso. – A Annette está a sair-se muito bem. – Está perdidamente apaixonada pelo Giancarlo Costabile. Vai casar com o seu italiano designer de aviões e ter filhos italianos vulgares. Escolheu o seu caminho. – Não, tu é que escolheste e sem a consultar, como de costume. Quer se case ou não com o Giancarlo, a Annette quer ficar à frente dos negócios da família. Devias deixá-la; as mulheres modernas fazem esse

género de coisas, além de casarem e terem filhos. A Annette seria uma excelente diretora-executiva. – Não cabe a uma filha assumir esse cargo. É uma prerrogativa do filho mais velho. Sebastien soltou uma risada seca. – Ainda o mesmo argumento inútil! Pareces estar mesmo convencido de que um dia vou deitar pela janela a minha carreira e correr para ti, a suplicar que me deixes fazer parte da tua dinastia. – Dificilmente. Mas tenho outras expectativas. – Os seus olhos eram ilegíveis, mas o sorriso secreto sugeria que ele tinha planos. Sebastien aproximou-se de uma parede coberta de fotografias dos negócios dos de Savin e estudou-as distraidamente. – Podes fazer os planos que quiseres. Não me preocupam. – Tornaste-te ainda mais seguro de ti. Tão orgulhoso! Mas como é a tua vida, na verdade? Ouvi dizer que a tua mulher prefere a companhia das amigas e que vocês os dois partilham poucos interesses. – Respeitamo-nos um ao outro; isso é mais do que o suficiente. – Então quando é que vais arranjar uma amante? Ou já arranjaste? É uma forma muito prática de gerir um casamento, na realidade. – Gosto muito dessa tua definição de deslealdade. Não preciso de uma amante. Mal tenho tempo para uma esposa. O meu trabalho é tudo. – Fez uma pausa e depois virou-se para o pai, com um sorriso frio. – Bom, não tudo. Tenho um novo interesse que me surpreendeu com o seu encanto. Não esperava ficar tão entusiasmado. A Marie e eu vamos ter um filho. Philippe de Savin inclinou-se para a frente, com os dedos a apertar os braços da cadeira, um brilho intenso nos olhos azuis. – Vou ser avô? – É típico; pensas apenas na forma como a situação te afeta a ti. Sim, vais ser avô. Philippe levantou-se da cadeira. Sebastien ficou surpreendido ao ver o pai a tremer. O brilho de emoção nos olhos do velho chocou-o. O pai cruzou a sala e parou tão perto de Sebastien que quase lhe conseguia tocar. Estendeu ambas as mãos. – Vieste aqui contar-mo como um gesto de tréguas. Sebastien recuou. A vulnerabilidade inesperada do pai confundiu-o e repugnou-o, deixando-o zangado pela pontada de afeto que o fez sentir pelo progenitor. – Vim aqui informar-te porque a Marie mo pediu. Ela acha que uma criança deve conhecer os avós. Serás convidado para nos visitar depois de o bebé nascer. – Filho, é uma honra… – Se dependesse apenas de mim, nunca porias os olhos no teu neto. Não tenciono participar na tua demonstração de sentimentos duvidosos. Preferia que a próxima geração dos de Savin nunca estivesse exposta a ti. Recuso-me a permitir que destruas mais alguma das pessoas que amo. Philippe deu um murro na mão. O momento de vulnerabilidade desfez-se em fúria. – Durante quantos anos continuarás ainda a fazer sacrifícios no altar da loucura da tua mãe? Durante

quanto tempo mais me odiarás sem razão? Sebastien dirigiu-se à porta, com as mãos fechadas ao lado do corpo. – Foi a tua cegueira que estropiou esta família. Todavia, tal não acontecerá com os meus filhos. Talvez possamos ambos ter uma segunda oportunidade de provar quem somos. – Provar o quê, Sebastien? – O pai bloqueou-lhe o caminho. – Não fiz nada de errado. Tu também não. Acidentes acontecem neste mundo, sem qualquer culpa. – Aquilo que aconteceu não foi acidental; houve uma falha grave que o provocou. – Sabes bem onde quero chegar. A tua mãe é que foi um erro; era uma alma insensata, uma mulher simplória e confusa incapaz de se adaptar… – Se alguma vez deixares o meu filho suspeitar sequer de que pensas isso da avó dele, mato-te. – A voz de Sebastien era grave e seríssima. – Compreendeste? Mato-te! Deixou o pai num silêncio pesado, com ambas as mãos estendidas num gesto de súplica que chegava vinte anos tarde de mais.

O casamento de Annette foi planeado à pressa devido à sua gravidez, uma circunstância que deixou Giancarlo extasiado e Annette deprimida, como confessou a Marie. – Ficará contente quando o bebé nascer – assegurou Marie a Sebastien enquanto se vestiam para a cerimónia. – A tua irmã tem medo que o vosso pai a pressione para deixar o trabalho. – Marie deu uma palmadinha no ventre inchado que, aos cinco meses de gravidez, se exibia generosamente por baixo do vestido preto de pregas. – Mas ficará feliz. Sebastien acabou de fazer o nó na gravata de seda a combinar com o fato. Olhou de testa franzida, magoado, para o seu reflexo no espelho grande, de moldura dourada. – Eu não devia ir à cerimónia. A Annette não me quer lá. Marie sentou-se numa cadeira ao pé da cama e riu-se. – Creio que se sente ameaçada pelo nascimento do nosso filho. É certo que não foste incluído no cortejo nupcial, mas… o teu irmão também não. São pormenores insignificantes. Não me digas que ficaste magoado. Não acredito. O pragmatismo de Marie fazia parte do seu charme, mas havia muitas ocasiões em que Sebastien se sentia como se estivesse a conversar com uma desconhecida. O bebé era a ligação mais íntima que havia entre dois, e estavam ambos entusiasmados com a sua chegada. Levantou-se e saiu para a varanda de pedra que dava para um pequeno pátio e jardim. A casa deles naquele subúrbio exclusivo de Paris era solene e imponente. Fora Marie que a escolhera, e Sebastien aceitara-a com indiferença. – O que é isto? – chamou-o ela um instante depois. – Estás a decorar os arbustos para alguma ocasião especial? Sebastien saiu. Marie estava ao lado de um arbusto em flor, plantado num pesado vaso de pedra. O

sol incidiu no colar de prata que ela retirou de um dos ramos. – Devo tê-lo deixado aí quando estive a ver uma caixa de fotografias, ontem. É algo que costumava usar quando trabalhava em África. Marie levantou a velha ficha e estudou-a. – Era o amuleto mágico de que me falaste? O que os aldeões esperavam que tu usasses sempre? – Sim. – Com a sensação de que algo muito privado fora violado, Sebastien tirou-lhe o colar das mãos com gestos bruscos. – Não precisas de ser bruto. – Marie lançou-lhe um olhar espantado. – Não parece coisa tua, guardar este tipo de recordações. Sebastien sorriu sardonicamente. – Talvez não queira perder a minha magia. Marie afastou a justificação com uma fungadela desdenhosa. – Deita isso fora. – Não. O rosto pálido da mulher corou um pouco. – Estás a ser irracional. – Por uma vez, deixa-me ser. Afinal, não é um hábito… – Que disparate! Doutor, nunca te apetece uivar à lua? – Marie? Alguma vez uivaste à lua? Ela arregalou os olhos, estupefacta. – Não. – Bem me parecia. Marie lançou-lhe um olhar de censura e entrou no quarto. – Estás muito esquisito hoje. Anda, temos de comparecer a um casamento. Faz o que quiseres com o teu amuleto mágico, mas, por favor, não te tornes piegas. – Não me parece que haja esse risco. Ainda ontem um paciente declarou que eu era «impiedoso e azedo». Vês? Podes ficar descansada. – Não gosto desse teu sarcasmo. – Eu também não. – Sebastien dirigiu-se a um grande roupeiro e abriu uma gaveta. Arrumou o colar em cima de uma série de lenços muito bem dobrados, com o brasão dos de Savin bordado, e os seus dedos demoraram-se um instante na medalha. Depois murmurou: – Um dia, Marie, devíamos mesmo uivar à lua.

Sebastien não viu o irmão na igreja. Procurou-o durante o copo de água, uma festa grandiosa no jardim de um restaurante fino perto dos Champs-Elysées. Jacques estava há dois anos em Amesterdão, a

frequentar uma escola artística, e raramente vinha a Paris. Finalmente, viu-o no meio da multidão vestida em tons pastel. Destacava-se como um corvo no meio de canários, graças às calças de cabedal pretas e ao blusão desportivo, também preto. Virou-se, olhou para Sebastien, sorriu e, com os dentes ainda à mostra no rosto macilento, começou a atravessar o jardim. Quando parou junto de Sebastien, este já recuperara a compostura suficiente para falar em tom calmo. – Vem comigo. – E olá para ti também, querido irmão. Estava a pensar ir à tua procura, se não me encontrasses primeiro. Jacques seguiu-o até um canto onde uma latada coberta de folhas os ocultava dos olhos dos outros. Sebastien olhou para o rosto pálido e emaciado do irmão. – O que é que te aconteceu? – Tenho andado atrapalhado com uma úlcera no estômago, apenas isso. – Quem são os teus médicos em Amesterdão? O que é que eles disseram? – Que gostariam que eu pagasse as contas. Podes emprestar-me algum dinheiro? Sebastien ficou em silêncio, incrédulo. Sabia o tamanho do fundo monetário que Jacques recebera aos dezoito anos. Todos os três haviam recebido o mesmo valor, uma quantia enorme. – Não podes já ter… – Ah, mas já gastei. – Jacques atirou o cigarro fino para o tapete de relva perfeita e esmagou-o furiosamente com o calcanhar da bota preta. – E não preciso de sermões sobre a minha irresponsabilidade. O que preciso é de um empréstimo. Para pagar as contas médicas e as propinas. Considera-o um subsídio de apoio às artes. – Despreocupadamente, indicou um montante. – Isso não é um subsídio, é um legado. É ridículo continuares a perder tempo a estudar. – Ouve, dás-me o dinheiro ou não? – perguntou Jacques, com um músculo da face a palpitar. A tensão causada pelo movimento fez com que a pele parecesse frágil e translúcida. Sebastien sentiu um aperto no coração. De súbito, lembrou-se do irmão em pequeno: Jacques fora uma criança excêntrica e fantasiosa, desdenhada pelo pai por ter interesses aparentemente pouco masculinos, mas alegre; seguia Sebastien como uma sombra e idolatrava-o, embora o irmão mais velho nem sempre mostrasse paciência para com ele. – Faço-te o empréstimo assim que os teus médicos me mandarem os teus registos. – Merda. Tens o talento do pai para a coerção. – Jacques levantou as mãos trémulas e passou-as pelo cabelo, que parecia fino e sem vida. – Também pediste dinheiro ao pai? – Claro que não! Merda. Pensei que contigo seria mais fácil. Devia ter calculado que não. Também não posso pedir à Annette. O marido dela não gosta de mim, por isso ela não me daria um cêntimo, não agora. – Só quero acesso aos teus registos médicos. Não é uma condição assim tão terrível. – Oh, tanto amor altruísta e incondicional. Vai para o inferno!

Tentou afastar-se, mas Sebastien pegou-lhe no braço. – Se queres desperdiçar a tua vida, eu não vou pagar para isso. O que é que fizeste? Snifaste uma pequena fortuna? Não te ajudarei a sustentar um vício de drogas. – Não me ajudarás, ponto final. Mas fica descansado, irmão. Não preciso do teu dinheiro. Estava só a ver até onde conseguia levar-te. A testar-te, para ver se ainda tens tomates de ferro. Sebastien empurrou-o. – Não tenho qualquer simpatia por lamúrias e fraqueza. Quando decidires falar comigo como um homem, estou disposto a ouvir-te. – Eu sou um homem. Raios te partam! – Com os olhos rasos de lágrimas, Jacques puxou o braço que Sebastien segurava e afastou-se com passo inseguro. Sebastien ficou a vê-lo afastar-se. Marie aproximou-se, de testa franzida. – O Jacques está com péssimo aspeto. Está outra vez metido em sarilhos? – Sim. – O que vais fazer? – Nada. O descontrolo dele não é problema meu. Por um momento, antes de se aperceber de que Marie o fitava atentamente, encolheu-se perante a frieza das próprias palavras e perguntou-se se estaria a ser forte ou apenas cruel. Não se lembrava com exatidão quando fora, mas notou, com horror, que começava a parecer-se demasiado com o pai.

O quarto do bebé estava a tornar-se o centro da casa. Todas as tardes, quando Sebastien chegava do escritório ou do hospital, encontrava sinais de que os trabalhadores tinham estado mais uma vez a alterar a divisão de acordo com os planos entusiásticos de Marie. O quarto estava agora pintado em tons de marfim e cinzento-claro, não propriamente cores tradicionais para um quarto de bebé, mas cuja escolha, tendo em conta a natureza de Marie, pouco o surpreendiam. As cores conferiam à divisão um ar de dignidade – rodeado por aqueles tons e por mobiliário de verga vitoriano, o filho desenvolveria gostos ecléticos, garantia ela. Sebastien e Marie estavam mais felizes e mais próximos do que nunca. No sexto mês de gravidez, foram juntos à clínica externa do Hospital Sainte Crillion, onde Marie marcara uma ecografia. Sebastien sentou-se ao lado da marquesa almofadada onde a mulher estava deitada, encostada a almofadas, com a blusa larga levantada para revelar o ventre redondo por cima da saia escura. Expectante, deu-lhe uma palmadinha ao leve na barriga e disse, em tom de brincadeira: – Parece-me que a melancia já está madura. Marie pareceu embaraçada. – Desculpa? – Quando trabalhei na América, no Sul, as pessoas nos mercados de verão davam pancadinhas em enormes melancias verdes. Parece que era um costume regional.

– Não estamos no verão e eu não sou uma melancia. – Não estás a sorrir, e devias: até uma melancia deve ter sentido de humor. – Às vezes, Sebastien, acho que tu julgas que és engraçado. Mas não és, meu querido, e não devias tentar ser. Com a testa franzida, ele encostou-se na cadeira enquanto a técnica, uma médica simpática, se preparava para começar. Já tive sentido de humor, pensou. Lembrava-se de alturas, com Amy, em que se rira com uma alegria tão completa e profunda que o deixava limpo por dentro. Mais do que isso: lembrava-se de fazer Amy rir também… Mas porque estava a pensar nela quando a sua esposa esperava um filho? – Oh, olha, Sebastien! A exclamação de Marie arrancou-o aos seus pensamentos. Sebastien inclinou-se para a frente enquanto a médica passava o sensor pelo abdómen de Marie e a imagem a preto e branco tremeluzia no monitor. Apesar de todos os anos de medicina, de todo o conhecimento que tinha de ecografias e daquilo que devia esperar, ver o próprio filho encheu-o de assombro. Podia amar aquele pequenino ser. Podia protegê-lo. – É um rapaz – anunciou a médica, com um sorriso. – Grande. E muito bonito. Pelos vistos apanhámolo a dormir a sesta. Talvez se mexa daqui a pouco. Entretanto, vou tentar mostrar-vos uma imagem do coração. Vê-lo bater é maravilhoso… Hum. Estou a ter dificuldade em localizá-lo por causa da posição. Já vi que este menino vai pôr à prova as minhas capacidades. Enquanto a técnica continuava a mover o aparelho com exclamações exasperadas, Sebastien endireitou-se na cadeira, tenso, sem desviar os olhos do ecrã. – Vou pedir ao doutor Regineau que experimente – indicou a técnica num tom de voz cuidadosamente descontraído. – Ele é muito mais experiente do que eu. – Evitou olhar para Sebastien enquanto saía apressadamente da sala. Marie soergueu-se, apoiada nos cotovelos. – Sebastien? Há alguma coisa errada? Como não queria acreditar, respondeu que não. Olhou para o ecrã, depois para a barriga de Marie. Ela deitou-se novamente, mas pegou na mão dele. – Estás gelado. Tu sabes analisar uma ecografia. O que se passa? Lentamente, Sebastien ergueu os olhos para os dela. Marie estremeceu. Apertou-lhe a mão. As palavras eram como lascas de gelo na sua garganta. – A técnica não consegue encontrar o batimento do coração porque não existe. O bebé está morto.

O trabalho de parto foi induzido e, poucas horas depois, Marie deu à luz o feto. Não quis Sebastien presente no quarto durante o penoso procedimento, e ele não protestou. O doutor Regineau, o obstetra, veio ter com ele a seguir e disse todas as coisas apropriadas: que não havia nenhuma anomalia evidente

ou problema aparente com a gravidez, nem sequer motivos para pensar que o sucedido poderia voltar a acontecer. Aquela fora apenas a forma que a natureza encontrara para corrigir um erro. «O teu pai honrou os seus erros.» «A minha mãe não é um erro, sua puta!» Sebastien ouviu as palavras na sua cabeça com uma clareza extraordinária. Foi nesse momento que bateu no médico de Marie. Enquanto várias enfermeiras, chocadas, ajudavam Regineau a levantar-se, Sebastien gritou-lhe que o filho não fora um erro, nem pelos padrões da natureza nem por quaisquer outros. Haveria repercussões para uma tal violência despropositada. Afinal, batera num colega, um dos mais populares médicos do hospital onde trabalhava, e onde esperava vir a ser diretor da nova Unidade de Transplantes. Sedada, Marie foi transferida para um quarto privado, acompanhada pela mãe e por Annette. Lançou um olhar vidrado a Sebastien e disse-lhe para ir para casa, que não precisava dele. Sebastien ficou aliviado ao ouvi-la. Passou a noite a caminhar pelas avenidas, com a mão dorida a latejar.

Marie chamou os trabalhadores e mandou-os colocar uma fechadura na porta do quarto do bebé. Depois trancou-a e guardou a chave na caixa das joias. Comunicou a Sebastien que o quarto não voltaria a ser aberto até terem um bebé para lá pôr dentro. Ele nunca a vira tão perturbada e deprimida e todos os seus esforços bem-intencionados para a animar esbarravam na sua própria depressão. Era típico da relação que Marie não quisesse partilhar o sofrimento com o marido e vice-versa. Assim, refugiaram-se ambos no trabalho. Marie mudou-se temporariamente para outro quarto, para ter a sua privacidade naquela fase; Sebastien deitava-se na grande cama de dossel todas as noites, exausto após outro dia de trabalho de vinte horas, e acariciava-se a si próprio sem delicadeza. Nessas alturas, raramente pensava na mulher. Em vez dela, via um rosto ardente, com olhos verdes expressivos e uma cicatriz no queixo. Passaram três meses assim. A vida começou a parecer normal outra vez, embora não o fosse antes. E então, numa noite de inverno, pouco depois da uma da manhã, a polícia bateu à porta. Dois agentes entraram e ficaram de pé no vestíbulo. O mais velho, um veterano de ar sério, falou em tom brusco: – Doutor de Savin? – Sim? – Tem um irmão chamado Jacques? – Sim. O agente mais novo pigarreou e agitou-se um pouco. – Lamentamos muito informá-lo de que… foi encontrado… morto. Sebastien recuou um passo e apoiou-se no corrimão das escadas. Ficou muito quieto, com os ombros tensos, a cabeça levantada.

– Deve haver algum engano. O meu irmão nem sequer está em Paris. Vive em Amesterdão. O polícia mais velho, com ar de quem já passara por aquele género de situações vezes de mais, esfregou o pescoço por cima do colarinho manchado de suor e suspirou. – Não, doutor. O indivíduo em questão tinha todos os documentos na sua posse. Um hóspede do hotel onde ele se encontrava ouviu um tiro e um agente foi enviado para o local. Isto não passa de um engano, pensou Sebastien com firmeza. – Essa pessoa que encontraram… foi assassinada? – Não. Parece ter sido suicídio. – O meu irmão não faria uma coisa dessas. O agente mais velho fez uma careta. – Doutor, temos uma carta dirigida a si. Guardámo-la na esquadra. Se quiser vir connosco, pode vê-la e identificar o corpo. Após um momento de silêncio, Sebastien conseguiu falar. – Compreendo. – Virou-se e começou a subir as escadas. – Deixem-me dar uma desculpa qualquer à minha mulher, por enquanto, e eu acompanho-vos. – Muito bem. Sebastien ouviu o polícia mais novo murmurar ao outro: – Não havia aqui grande amor fraternal, ao que parece. Levaram-no para a esquadra e mostraram-lhe um bilhete escrito no papel timbrado do hotel, com a caligrafia fluida de Jacques. Nunca fui nada para ti porque não era o Antoine nem a Bridgette. Nunca fui nada para o pai porque não era como ele. Só a Annette me amou por aquilo que eu era. Tenho honra. Sou um homem. Sou mais forte do que tu, porque tenho coragem de fazer isto. Sebastien leu as palavras uma dúzia de vezes. Que coragem, seu cobarde? perguntou, em silêncio. Que honra? Que código de honra determina que te mates? – Sabe o que ele queria dizer? – perguntou um dos agentes. – Não. – Tinha conhecimento de que o seu irmão estava doente? Sebastien ergueu o rosto, de sobrolho franzido. – Desconfiei que era viciado em drogas. O que quer dizer? – Não havia quaisquer indícios de drogas no quarto. – Então o que encontraram? O polícia mais novo tirou um panfleto do saco que continha as coisas de Jacques. – Talvez não signifique nada, mas… – Estendeu-o a Sebastien. Olhou para o título e as palavras «Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – Factos e Mitos»

fizeram-no esquecer onde estava e recordar a conversa que tivera com Jacques no casamento de Annette. O peso na consciência era quase insuportável. – Sente-se bem, doutor? – perguntou alguém. – Tragam-lhe um copo de água. Doutor? Quer ligar para mais alguém da família? Alguém que possa vir à esquadra? Ou um amigo, talvez? Aqui tem, beba. Sebastien atirou o panfleto para cima de uma mesa e recusou o copo de água com um gesto. – Gostava de ver o corpo do meu irmão. Levaram-no à morgue. O médico-legista foi muito direto. – O corpo tem uma ferida feia na cabeça – avisou, enquanto um assistente empurrava uma maca tapada para dentro de uma sala com paredes de cimento manchado e ralos no chão. Alguém ofereceu a Sebastien um par de luvas de borracha amarelas. Sebastien recusou com um aceno. O médico-legista tossiu, embaraçado, e explicou que, dadas as circunstâncias, não podia permitir que ele tocasse no corpo sem proteção. Sebastien pegou-lhes e calçou-as. Não eram luvas de cirurgião, destinadas às manobras artísticas da vida; eram do tipo que se usa para lidar com sujidade e morte. O lençol foi puxado para trás e Sebastien aproximou-se, decidido e silencioso, como se estivesse num sonho. As luvas eram apropriadas: a coisa na maca, com a cabeça disforme enrolada em plástico ensanguentado, era apenas uma imitação obscena do homem que Jacques fora. Afastou o plástico e olhou para o rosto do irmão. Depois passou os dedos pela artéria carótida, tentando convencer-se da realidade. Junto à gola da t-shirt suja de sangue reparou numa lesão cutânea com mau aspeto. – Um sarcoma, provavelmente relacionado com a síndrome – esclareceu o médico-legista. – Sim. Sim. – A voz de Sebastien era baixa e vazia, destinada apenas a Jacques. – O que fizeste exigiu coragem. E honra. Quem me dera ter sabido antes. – Pousou as pontas dos dedos nos lábios do irmão. – Vejo que eram muito chegados – comentou o médico-legista, em tom compreensivo. – Não. – Não até agora, até haver um segredo para partilhar, como havia com a nossa mãe. Perdoa-me, perdoa-me. – Não quero que o resto da família saiba da doença dele. Será possível? – Não vejo porque não. Somos muito bons a perder informação que causaria embaraço aos familiares sobreviventes. Sebastien virou o rosto de Jacques para si e olhou para os olhos vazios. Não sinto qualquer vergonha de ti, irmãozinho. Passara tantos anos a olhar para o irmão de testa franzida! Queria dar-lhe um sorriso agora, mas temia que isso o fizesse perder o autocontrolo. No fim, não perdera o amor por Jacques. Estava preso dentro do seu peito frio e duro, onde doía mais do que qualquer pessoa poderia imaginar.

Annette ficou arrasada com a morte de Jacques. Estava grávida de seis meses, o mesmo tempo que

Marie tinha quando perdera o bebé, por isso Giancarlo levou-a para umas férias na Toscana a seguir ao funeral. Era um homem carismático – na opinião de Sebastien, até de mais –, pelo que, com frequência, a devoção que a irmã lhe votava redundava em submissão. Porém, naquele caso Sebastien estava grato por Giancarlo ter levado Annette para longe de Paris e das suas recordações. O pai passou pela missa do funeral com uma reserva que contrastava com a subtil impressão de fragilidade que emanava. Sebastien sentiu apenas a indiferença habitual em relação ao progenitor. Poucas noites após o enterro, Marie entrou no quarto do casal. Sebastien estava a olhar pela janela, a tentar escapar dos próprios pensamentos na visão das estrelas distantes que brilhavam no céu noturno. Parou atrás dele e beijou-o na nuca, passando-lhe as mãos pelo tronco nu por cima das calças de pijama. Sebastien sentiu os mamilos dela nas costas, através da renda transparente da camisa de dormir. – Vamos fazer algo que nos ajude a esquecer esta última semana – murmurou. – Há tanto tempo que não fazemos amor, meu querido. Estou pronta para recomeçar. E devo estar no período fértil neste momento. – Será que me tornei apenas num meio para atingir um fim? Não podias fazer-me esse pedido de uma forma um pouco mais romântica? – Oh, Sebastien, não fiques aborrecido. Sei que tenho andado distante, mas é porque estive deprimida este tempo todo, tal como tu. – Ah! E achas que depois de enterrar o meu irmão estou mais bem-disposto? Marie baixou as mãos para a parte da frente das calças do pijama dele e acariciou-o através do tecido. – Vem para a cama. Tu, mais do que qualquer outra pessoa, devias saber que a dor tem os seus limites. Vamos fazer uma coisa positiva… Vamos fazer outro bebé. – Parece que me evitaste até o obstetra te dizer que podias voltar a tentar engravidar. Pensaste que eu estava contente, aqui sozinho, noite após noite? A nossa vida sexual vai passar a ter como único intuito a criação de um bebé? – Para com isso! – Marie passou para a frente dele, com olhar feroz mas sem parar de o massajar entre as pernas. – Temos uma vida sexual maravilhosa. Ambos nos divertimos. Sempre foi um prazer com objetivo; porque há de ser diferente agora? Sebastien fitou-a por um momento, zangado, ao mesmo tempo que sentia o corpo reagir ao estímulo do toque dela. – Se queres alguma coisa de mim nesse departamento, terás de trabalhar para isso. Os olhos de Maria brilharam com o desafio. – Está bem, meu querido. – Desapertou-lhe as calças de pijama e puxou-as para baixo; depois, ajoelhou-se em frente dele e colocou o pénis ereto na boca. Sebastien estremeceu ao sentir o calor húmido e a sucção dos lábios dela. Marie tinha razão. Era fácil; e por que raio havia de se importar se era ainda mais desprovido de emoção do que no passado? Na realidade, também desejava um filho.

Agarrou no cabelo negro e denso de Marie e afastou-a do pénis rígido. – Chega. Não queremos desperdiçar esperma, pois não? Ela sorriu-lhe, com a boca molhada, e ajudou-o a libertar-se das calças de pijama. Sebastien levantou-a do chão e arrastou-a para a cama. Assim que Marie se sentou, empurrou-a para baixo e rasgou a camisa de dormir em duas. – Sim. Muito bem. Como preferires – murmurou Marie, pondo as mãos atrás da cabeça e dobrando as pernas abertas. Sebastien penetrou-a e perguntou-se se as boas-vindas húmidas da mulher seriam o resultado de lubrificante. Depois fechou os olhos e ignorou-a, sentindo apenas a ligação entre os corpos. Explodiu dentro de Marie com um orgasmo que o deixou a tremer; quando abriu os olhos, viu-a acenar de forma aprovadora.

Capítulo 13

– Estamos condenadas a viver em buracos infetos e a trabalhar para os Parker Poodits deste mundo, para sempre – comentou Mary Beth em tom desanimado. Amy desatou a rir. – Mas as pessoas que conhecemos são tão interessantes. Anda espreitar: acho que o Ripple Man está a tentar cravar mais umas moedas ao Frank. Frank, o vizinho delas, era um músico de jazz muito elegante, parecido com Sammy Davis Jr., que fora ao minúsculo jardim do prédio para mudar a sua planta de vaso. – O Frank está a abanar a cabeça. Agora o Ripple Man está a fazer chichi na begónia do Frank. Mary Beth soltou uma exclamação desdenhosa. – Não gosto de viver num bairro cheio de miseráveis e pseudoartistas. Ser boémia não é para mim. Amy recostou-se na cadeira e sorriu da ironia da vida pós-universitária. A boémia Mary Beth trabalhara arduamente neste último ano a fim de mudar a sua imagem: o cabelo loiro, longo e selvagem, estava agora curto e alisado, com as pontas para dentro. Livrara-se do seu guarda-roupa de peças em segunda mão e começara a vestir fatos elegantes. Para os colegas da WAZF, UHF canal 16, a mais pequena estação de televisão independente de Atlanta, Mary Beth era Elizabeth Vandergard, jornalista, produtora e apresentadora a solo da única emissão noticiosa da WAZF, que ia para o ar todos os dias de semana às seis da tarde. Não era difícil subir dentro da WAZF, e não havia nada capaz de assustar alguém acabado de sair da universidade. Por esse motivo, Amy sentia-se satisfeita com o último ano. Estava agora à frente de um impressionante exército de duas pessoas, com um rendimento anual que era quase mil dólares acima do ordenado mínimo. – As coisas vão melhorar – assegurou à amiga. – É uma experiência excelente. Na nossa idade, toda a gente tem de sofrer enquanto aprende. – Tretas! A Deborah Norville já está a trabalhar numa estação maior. Não é justo. Por amor de Deus, ela teve as mesmas aulas que eu e tivemos a mesma nota! E eu tenho melhor dicção do que ela! – A Deborah é três anos mais velha do que nós. – Não é desculpa. Não tenciono ser conhecida como a «outra» loira do curso! Um dia, a Norville há de ver-me desaparecer à distância. Queres saber porquê? Porque ela é a Menina Docinho e eu sou uma cabra, e o público fica mais fascinado com as loiras más do que com as boazinhas. – É uma teoria interessante. – Não, é um facto. Não é que me esteja a gabar nem nada. – Mary Beth enrolou um cachecol de

caxemira ao pescoço e vestiu um casaco branco comprido. – Vou andando. Tenho de ir editar as filmagens do meu programa futuramente aclamado sobre produção de doces. – Suspirou. – Quem me dera poder intitulá-lo Chupa Aqui. As notícias não eram a principal prioridade da WAZF, e toda a cidade o sabia. A estação era mais conhecida pelos seus programas de wrestling. Mary Beth revirou os olhos. – Boa sexta-feira de folga. Vemo-nos na segunda. Não te chateies muito com o Senhor Comédia. – Não vou, acredita. Mas é provável que fique meio esquisita. Depois de Mary Beth sair, Amy vestiu um casaco por cima das calças de ganga e camisola. Saiu do apartamento com um saco de lona e a mala e conduziu até ao aeroporto entre os chuviscos de uma triste manhã de inverno. Levantou o bilhete que Elliot lhe deixara e apanhou o avião para Chicago. Elliot estava à espera dela no portão das chegadas, embora aquela fosse uma mera forma de expressão: Amy encontrou-o sentado numa cadeira, todo torto, com a cabeça para trás e as pernas abertas. A cobrir os olhos, tinha grandes óculos escuros, e por baixo do casaco vermelho de esqui vestia uma camisa de flanela amarrotada, com um copo de café de plástico amachucado no bolso. Ressonava alto e bom som. Amy inclinou-se sobre ele e inspirou fundo. Tal como suspeitava, um odor a elixir de menta saía-lhe da boca a cada respiração. Era tão ridículo como um miúdo a tentar esconder que bebia, e ainda menos bem-sucedido! Com a testa franzida, beijou-o nos lábios e acordou-o. – Hã? Amor, amor! – Elliot prendeu-a nos braços e puxou-a para o colo. – Finalmente, a minha salvação chegou! – Beijou-a várias vezes enquanto ela o abraçava. Amy tirou-lhe os óculos escuros e olhou para os olhos injetados de sangue. – Deixa-me adivinhar. Acabaste o último espetáculo e ficaste no clube até às quatro da manhã; depois, tu e todos os tipos que ainda conseguiam andar foram para casa do dono e continuaram a festa até de manhã. Certo? – Errado. Também foram algumas raparigas. – Sorriu. – Mas eu enxotei-as quando se começaram a esfregar em mim. – Sabes que quando adormeces sentado abres tanto as pernas que mais pareces uma rã morta? – E foi por causa dela que tive de lutar contra as fãs? – Elliot ergueu os olhos para o céu e gemeu, rindo-se e acariciando-lhe as costas em simultâneo. – Tenho um quarto de hotel fabuloso; nada de espeluncas para o comediante mais famoso da TV por cabo. Vais adorar. Meu Deus, nem acredito que já não nos víamos há três semanas. É um recorde. Percebi que me sentia sozinho ontem, quando estava a ver os Flinstones e comecei a fantasiar com a Betty. Amy fingiu dar-lhe um soco no queixo. – Bem, Barney, também tive saudades tuas. Amy adorava as boas-vindas no olhar dele, e sabia que Elliot não estava a mentir quando afirmava que se sentira só. Ele era-lhe fiel. Quando o conhecera, não esperava tal coisa, mas um ano depois

convencera-se de que o namorado era sincero quando lhe garantia que não tinha outras mulheres. Elliot mantivera a maior parte dos sólidos valores com os quais fora educado e era sensível aos sentimentos dos outros. Porém, o lado negro dessa sensibilidade tornava-o inquieto, receoso e temperamental, e era quando esses demónios o assombravam que mais precisava de Amy. Ela cuidava dele, fazia-o parar com as festas o tempo suficiente para descansar e proporcionava-lhe um porto de abrigo onde podia refugiar-se. Agora que tinha um programa mensal de promoção de novos comediantes num canal por cabo, Elliot ganhara fama e estava a ganhar bom dinheiro. Era cabeça de cartaz nos melhores clubes de Nova Iorque e Los Angeles, e os donos dos clubes de comédia mais pequenos, que estavam a surgir um pouco por todo o país, praticamente imploravam a sua presença. Estava na crista de uma onda nacional que exigia cada vez mais comediantes, e merecia as recompensas. Se festejava muito – por vezes de mais –, pelo menos também nunca se negava ao trabalho. A maioria das pessoas sonhava em ter o sucesso suficiente para poder deixar a estrada, mas era aí que comediantes como Elliot se sentiam melhor. Contudo, Amy conhecera profissionais da comédia que eram pessoas calmas e ajuizada, sem nenhum dos traços de personalidade maníacos de Elliot. O namorado nem sequer possuía uma casa ou carro: costumava dizer que tinha o trabalho e Amy, e que era o suficiente. Amy sabia que havia também o álcool e a droga, mas fazia o que podia para lutar contra ambos. Naquele último ano, Amy aprendera muito sobre a sua própria força e confiança. Era uma excelente enfermeira-ama nos bastidores, característica que também aumentava o seu valor na estação de televisão. Orgulhava-se da sua capacidade de proteger Elliot, mais do que qualquer outra pessoa conseguiria, até mesmo os pais, que eram devotados, mas indulgentes. Levou-o a um café no aeroporto e comprou um grande pacote de leite, que Elliot bebeu obedientemente enquanto saíam do terminal. Quando um grupo de pessoas o reconheceu e pediu autógrafos, deu-lhes o pacote vazio; Amy mandou parar um táxi e atirou o saco de viagem para o banco de trás. Olhou para o relógio e começou a contar cinco minutos, pois sabia que Elliot ficava inquieto se ela deixasse os fãs adorarem-no durante demasiado tempo. Quando chegou a hora, abriu caminho entre a multidão e recordou-lhe que estava a ficar atrasado. Elliot lançou um olhar resignado aos fãs. – Esta senhora toma nota dos meus compromissos. Às vezes, até me obriga a cumpri-los. Apertou-a contra si enquanto se dirigiam ao táxi. Amy gostava da atenção, embora já não estivesse deslumbrada pelo seu estatuto de namorada. Elliot adorava ter público até nos momentos mais rotineiros e achava que Amy devia viver permanentemente impressionada – porém, era impossível manter um homem num pedestal depois de estar familiarizada com a maior parte das suas funções corporais. Quando chegaram ao hotel, ele atirou-se para cima da cama e puxou-a para cima de si. – Está na hora do espetáculo, querida – disse, com olhos semicerrados e expressão libidinosa, o rosto cansado, mas corado com a excitação. – Já tenho o microfone montado para ti. Amy sentiu o calor e o desejo invadirem-na, mas puxou-lhe o nariz.

– Não aceito pedidos. – Faz o que quiseres. Estou por tua conta. – Eu é que tenho de tomar conta de ti, queres tu dizer. – Despiu-o apressadamente, tocando no corpo magro e liso com gestos suaves, sabendo que a sua felicidade com Elliot derivava de aceitar todos os momentos sem os questionar. Quando acabou, Elliot rebolou para cima dela. – Acho que um de nós ainda está vestido, o que está a arruinar a minha diversão. – Então despe-me. – Como? Tens um homem em cima de ti. – Usa essas coisas grandes e esquisitas na ponta dos teus braços. – Agradavelmente esmagada debaixo dele, Amy enrolou as pernas às ancas de Elliot. Sentiu o corpo dele duro e convidativo entre as coxas, e havia afeto genuíno no seu sorriso quando começou a desabotoar-lhe o casaco. Estava ansiosa por passar os dois dias seguintes na cama com Elliot. Porém, desejava mais ainda poder passar as duas noites seguintes com ele no clube, a absorver a magia que fazia rir as pessoas.

O programa Atlanta Talks era gravado na sexta-feira à tarde, às quatro. À uma e um quarto, Dan Chapman, o ex-meteorologista famoso que o apresentava, ligou, frenético. Fora atingido na boca por uma bola de basebol enquanto treinava a equipa de infantis do neto. (Amy soube mais tarde que, na realidade, levara um murro na boca de um taxista chamado Zbrowski, que não gostara de uma das suas piadas sobre polacos.) Era preciso um apresentador substituto para o programa e Amy procurou Mary Beth. Explicou-lhe o dilema e colocou a questão com toda a franqueza. – Gostavas de entrevistar dois cirurgiões plásticos sobre lipossucções nas coxas? – Tenho de ser simpática com eles? – Não. – Está bem, eu faço-o. Assim, às quatro horas de uma tarde de primavera ventosa, nasceu um fenómeno. Mary Beth questionou, sondou e arrasou os dois médicos até eles estarem gagos de choque. Quando acabou com os amigos do golfe de Dan Chapman, eles tinham não só admitido os perigos e complicações cosméticas da lipossucção, como também se tinham enterrado na questão de tratar as mulheres como pedaços de carne imperfeitos. Depois de o programa ir para o ar, no domingo à noite, cinquenta e sete espetadores ligaram. Trinta e seis exigiram que Mary Beth fosse a apresentadora do programa daí em diante; dezanove insistiram que a estação a despedisse; uma informou-a que tinham sido irmãs numa vida anterior e o último ameaçou matá-la. A WAZF nunca tivera uma reação tão desmedida e apaixonada a um talento no ecrã. Na semana seguinte, Elizabeth Vandergard tornou-se a mais controversa Liz Vandergard, e o programa Atlanta Talks

with Liz passou para as manhãs de segunda-feira, às dez. Em dois meses, tornou-se o programa mais popular e lucrativo da WAZF. Amy e Mary Beth arranjavam sempre temas que rivalizavam com os talkshows de canais maiores. Amy sugerira que Atlanta teria a sua quota-parte de pessoas bizarras, fascinantes e irritantes, ansiosas por se debaterem com Mary Beth na televisão, e tinha razão. Encontrouas e Mary Beth entrevistou-as. Às vezes, os entrevistados sobreviviam com a dignidade intacta, mas não era frequente. Em seis meses a estação triplicou o orçamento para o programa e deixou Amy trazer pessoas para assistirem ao vivo à gravação. Falava-se em vendê-lo para outros canais. Amy regozijou-se com o sucesso e o aumento que o acompanhou. Mary Beth aceitou o estatuto de celebridade como se lhe fosse devido, e comprou um Jaguar verde que nunca poderia sustentar, mesmo com o aumento de salário. O seu mais recente namorado, um jogador de segunda linha dos Atlanta Falcons, pagou-lhe o carro como presente no vigésimo sexto aniversário de Mary Beth. Após alguma reflexão, Amy investiu o dinheiro extra num curso noturno na Universidade Estatal da Georgia. Estudou Francês Avançado e começou a planear uma viagem a Paris. Não ia à procura de Sebastien; seriam apenas umas férias, disse a si própria. Elliot queixou-se daqueles planos – porquê andar a passear em França quando podia passar tempo com ele, nos clubes? – e amuou durante duas semanas. Quando Amy, já farta, ameaçou estrangulá-lo, decidiu aceitar a realidade: mandou-lhe um conjunto de malas de viagem monografadas e ofereceu-se para lhe custear a viagem, na condição de que Amy só ficasse fora três dias. Amy devolveu as malas e informou-o de que pagaria as suas próprias despesas. Elliot ficou surpreendido e zangado. No fundo da mente dela, havia o pensamento escondido de que talvez pudesse fazer um desvio pelo Vale do Loire e encontrar a propriedade que Sebastien comprara, segundo o artigo que lera num jornal parisiense que comprava com alguma regularidade. Não faria mal nenhum. Foi amealhando o dinheiro e esperou.

Amy acordou como se tivesse sido despertada por um sexto sentido. Soergueu-se num cotovelo, estremeceu e tapou os ombros nus com a manta. Então era a isto que as pessoas em Minneapolis chamavam «tempo de primavera». No Ártico, talvez. Elliot adorava um quarto frio: gostava de se enterrar na segurança das mantas, enrolando os braços e as pernas à volta da namorada. Muitas vezes Amy parecia estar a sufocar, uma sensação desagradável que a fazia acordar em pânico de vez em quando. Naquela noite, porém, acordara porque percebera que Elliot não estava na cama. Encolheu-se debaixo dos cobertores e olhou para a faixa de luz por baixo da porta da casa de banho do quarto de hotel. A porta não devia estar fechada. Desconfiada, enfiou uma camisola interior do namorado e atravessou o quarto em bicos de pés. Encostou o ouvido à porta e ouviu Elliot a fungar. Uma sensação gelada invadiu-lhe o estômago. Deu um murro na porta.

– Estás a fazer audições para um anúncio de spray para o nariz? Um silêncio súbito. Depois, Elliot respondeu-lhe em tom animado: – Sim! E consegui o papel! Pelos sons que se seguiram, percebeu que o rapaz estava a esconder as provas. O medo fez um suor frio brotar-lhe na testa. Elliot abriu a porta a sorrir, nu, com o cabelo despenteado e os olhos suspeitamente brilhantes. Apontou com o indicador para a majestosa ereção por baixo da barriga. – Olha para isto. Tudo para ti. Amy empurrou-o e dirigiu-se ao conjunto de barbear que ele deixara ao lado do lavatório. Uma inspeção rápida revelou a presença de um frasquinho com um pó branco. – Queres dar cabo de ti? Aguento muita coisa, mas isto não. É perigoso, Elliot! – Calma, amor. – Elliot aproximou-se por trás dela e acariciou-lhe os ombros. Os olhos de ambos encontraram-se no espelho por cima do lavatório. – Quase não lhe toco, querida. Juro. – Por amor de Deus, estavas a consumir a meio da noite. Porquê? – Só queria dar-te um bocadinho de diversão. – Abriu um sorriso charmoso. – Depois da forma como adormeci assim que chegámos ao quarto, com as partes divertidas mortas para o mundo, pensei… – Não quero diversão nenhuma deste género. – Pegou no frasco, abriu-o, despejou o conteúdo na sanita e puxou o autoclismo. Quando olhou por cima do ombro viu que Elliot a observava, boquiaberto, claramente consternado. Quando reparou na reação de Amy, fechou a boca e encolheu os ombros. – É por isso que preciso de ti, querida. Tu cuidas sempre dos meus interesses. De mais, às vezes. As lágrimas deslizaram pelas faces de Amy. Atirou o frasco vazio para o caixote do lixo. Elliot insistiu: – Oh, amor, relaxa! Toda a gente que anda na estrada usa um bocadinho. As viagens, a pressão… sabes como eu fico cansado. A coca é apenas uma dança que faço comigo próprio, às vezes, para me sentir melhor. – Baixou os olhos para a excitação que estava a desaparecer e fez uma careta exagerada. – Vê o que fizeste. O King Kong adormeceu outra vez. – Elliot, promete-me que não vais usar mais droga. – Olhou para ele e segurou-lhe nas mãos. – Eu gosto de ti, seu velho delinquente. Preocupo-me contigo. Elliot abraçou-a, apertando-a com desespero. – És a única pessoa que me manda postais para me lembrar de tomar as vitaminas, a única que me avisa quando estou a ser idiota. És a única que compreende os meus medos: de não alcançar o sucesso, de não ser o melhor. De ser um zé-ninguém. Tu compreendes-me. Nunca to disse antes, mas amo-te. Estou a falar a sério. Surpreendida, Amy ficou tensa nos braços dele. Por fim, relaxou. – Eu também te amo. – Era verdade, de uma forma fundamental que não queria analisar muito. Elliot murmurou ao ouvido dela: – Acabou-se a coca. Prometo.

Amy fechou os olhos e acenou, sem acreditar nele e sem saber o que fazer. Por nenhum motivo lógico, pensou na viagem a França. O desejo de ir lá, de escapar, de fazer parte de uma fantasia, tornara-se esmagador. Decidiu tirar férias mais cedo do que planeara. A sua vida estava a virar em sentidos que a assustavam e naquele momento, pelo menos, Amy precisava que se voltasse para o passado.

A estalajadeira fez gestos largos, com uma baguete comprida na mão. Parecia muito gaulesa, na sua aflição. – Vous ne pouvez pas aller piqueniquer aujourd’hui. Il faut un temps de chien! Amy demorou um só instante a decifrar as palavras e ficou orgulhosa ao perceber-lhes o sentido com facilidade. Respondeu, num francês hesitante, mas correto, que não podia deixar que a chuva cancelasse o passeio porque aquele era o último dia de férias que lhe restava. Tinha de apanhar o comboio de regresso a Paris de manhã, e depois partiria para a América. A mulher resmungou em tom maternal, mas enrolou o pão em plástico e colocou-o dentro de uma mochila, juntamente com queijo e uma pequena garrafa de vinho. Amy prendeu o cabelo dentro do capuz de uma gabardina amarela e olhou ansiosamente pela janela da cozinha para o jardim pitoresco, envolto em neblina. Por que raio esperara pelo fim da semana para fazer a excursão? Agora o tempo estava frio e húmido e a perspetiva de percorrer vários quilómetros de bicicleta parecia um disparate. Contudo, sabia que não podia voltar para casa sem ver a propriedade que Sebastien comprara após casar. Claro que também possuía uma casa em Paris, e sem dúvida que seria aí que ele e a mulher passavam a maior parte do tempo. A imprensa cobria a vida de Sebastien de Savin com grande detalhe: era agora um médico bastante famoso. Amy fizera algumas investigações e descobrira que a casa parisiense ficava numa parte antiga e exclusiva da cidade. Não fora lá: o orgulho, a par do embaraço, haviam-na impedido. Mas ia visitar o seu château no campo. Perturbada, olhou para a gabardina demasiado grande que a filha da estalajadeira, mais alta do que ela, lhe emprestara. Sentia-se ridícula. – Está com dúvidas – disse a estalajadeira, fitando-a com olhar perspicaz. – Ainda bem. Não vá. Eu faço-lhe um chá e comemos biscoitos com compota. Amy abanou a cabeça. Por mais que lhe desagradasse aquela compulsão, queria ceder-lhe, satisfazêla uma vez que fosse, para a poder esquecer de vez. – À tout à l’heure. Merci. Pegou na mochila e apressou-se a sair pela porta das traseiras para a manhã desagradável.

Com o coração aos saltos, parou a bicicleta em frente de uma entrada de pedra majestosa, ladeada por sebes altas e espinhosas. Do outro lado de um portão de grades trabalhadas, um caminho empedrado curvava entre campos cobertos de tulipas e jacintos. À distância, no meio de relvados perfeitos e

bosques de bétulas antigas, erguia-se um château pequeno, mas assombroso. Amy lera sobre o local num guia, mas a descrição não a prevenira de que se sentiria tamanho deslumbre. Então aquela era a propriedade no campo que Sebastien comprara para a mulher. Enquanto olhava para as torres brancas e redondas encimadas por pináculos, para o pavão indolentemente empoleirado em cima de uma fonte de pedra, e para as vinhas que se estendiam pelas colinas atrás da casa, as suas últimas fantasias desfizeram-se. Tudo o que via troçava dela por ter pensado que alguma vez poderia ser uma parte importante do mundo de Sebastien. A tremer, enfiou a mão debaixo da gabardina e abriu a bolsa que tinha presa ao cinto das calças de ganga. Tirou um par de grandes óculos escuros e cobriu os olhos. Puxou o cabelo molhado da chuva para a testa e tentou disfarçar-se Não havia praticamente qualquer hipótese de que Sebastien ali estivesse, mas… – Bonjour – cumprimentou uma voz áspera proveniente da vegetação alta perto do portão. Amy deu um salto. Uma mulher corpulenta apareceu, com um cesto de verga cheio de flores. Trazia um impermeável transparente por cima de um vestido preto severo: um uniforme, presumiu Amy. – Bonjour – respondeu. – Pardon, s’il vous plaît. Je reviens tout de suite. – Ah, americana. Reconheço o sotaque. – Sim. Sou uma turista. Importa-se que fique aqui um bocadinho a admirar o château? É tão bonito. – Não fazemos visitas guiadas. – Eu sei. Só quero ficar ao portão. A mulher aproximou-se e olhou-a com atenção. – Claro, pode olhar à vontade. Deve ser muito dedicada, para andar a fazer excursões num dia assim. Mas porque tem esses óculos? – Ah… tenho um problema nos olhos. São muito sensíveis à luz. – Que pena! Tão nova e já com um problema desses. É estudante? – Não. Trabalho para uma estação de televisão: sou produtora. Estou de férias. – Embaraçada, acenou na direção do cesto de flores. – É jardineira aqui? A mulher riu alegremente. – Bem podia ser, tendo em conta o tempo que passo cá fora. Mas não; sou a governanta. Amy respirou fundo. – Os donos das vinhas… moram aqui? – Vivem em Paris, mas vêm cá com muita frequência. Aliás, estão cá agora. Mas estão também a preparar-se para voltar. – A governanta inclinou a cabeça na direção do château. – Estou a ouvir um automóvel. Se calhar são eles, de partida. Amy deixou de conseguir respirar. O coração batia-lhe tão depressa que se sentiu tonta. Medo e entusiasmo invadiram-na: Sebastien estava perto, mas não podia saber que ela estava ali. Seria demasiado humilhante. No entanto, se ao menos conseguisse vê-lo, nem que fosse um breve vislumbre… – Afaste-se do portão, por favor – pediu a governanta.

– Claro. – Entorpecida, Amy pegou na bicicleta e afastou-se para uma zona de relva alta a alguns metros. Quando deu por isso, estava dentro de uma vala, com uma poça de água a ensopar o calçado de pano. A sua atenção, contudo, estava fixa no portão, que deslizou para ambos os lados com uma lentidão majestosa. O carro pareceu demorar uma eternidade. Amy obrigou-se a não desviar o olhar: quando passasse teria apenas um segundo para fundir as suas memórias com o presente. Porém, a viatura preta apareceu e parou no portão. Amy apertou o guiador gelado da bicicleta. Estava a sangrar por dentro, como se o médico tivesse partido apenas na véspera e não há quase cinco anos. A porta do lado do condutor, que estava virado para ela, abriu-se e Sebastien saiu do carro. Vestia uma gabardina comprida que ondulou quando se endireitou, revelando calças escuras e uma camisa clara, com o colarinho desapertado. O cabelo negro estava revolto, a expressão do rosto sombria e zangada. Estava mais magro e envelhecera; a tensão no rosto emprestava uma expressão cruel às suas feições. Amy gravou tudo isto na memória enquanto chamava por ele em silêncio. Sebastien não olhou na direção dela, nem se apercebeu de que estava ali, a observá-lo. Com passadas decididas, contornou o carro e dirigiu-se à governanta, que sorriu apesar da atitude imponente do patrão. Sebastien acenou bruscamente com a cabeça e tirou um punhado de flores do cesto. Amy olhou para o carro. Pela porta aberta, os seus olhos cruzaram-se com os de uma mulher de rosto severo, com uma blusa e saia de grávida. A mulher dele. Tinha um livro aberto no colo. Atrás da cabeça, uma almofada apoiava-lhe a nuca e o cabelo estava espalhado sobre a fronha branca como uma cascata. A julgar pelo pequeno volume da barriga, encontrava-se na fase inicial da gravidez. Que filho seria? O primeiro? O terceiro? Afinal, já estavam casados há quase três anos. Amy virou de novo a sua atenção para Sebastien. Ele aproximou-se da porta do condutor, inclinou-se e deu as flores à mulher. Ajustou o espelho lateral com gestos impacientes. Por um momento lancinante pareceu prestes a virar-se na direção de Amy, que não tinha a mínima ideia do que faria se ele a visse, paralisada como ficara no centro de um turbilhão de emoções contraditórias – tristeza, ciúmes, vontade de o chamar, medo de ele a reconhecer, pavor de ele seguir o seu caminho sem nunca saber. Sebastien não se voltou para onde ela estava. Entrou no carro e fechou a porta com tanta força que o vidro da janela estremeceu. Engatou a mudança. Amy deu um passo em frente mas estacou, espicaçada pelo orgulho. A mulher dele fitou-a de testa franzida, depois encostou as flores ao rosto e recostou-se na almofada, fechando os olhos. A mulher dele. O carro arrancou com a precisão quase silenciosa de uma obra de arte mecânica. Amy seguiu-o com o olhar até desaparecer numa curva da estrada. Sentia-se como se todos os órgãos dentro dela tivessem mudado de sítio. – Mademoiselle? – chamou a governanta. – Quer entrar? Está a começar a chover outra vez. Pode esperar nos meus aposentos até parar. Esperar nos aposentos dos criados. Esconder-me atrás do portão, numa vala. Ser ninguém. Ser nada. Consumida pelo desejo daquilo que não posso ter. Não. Chega.

Amy encontrou a voz. – Não, obrigada. Não posso ficar. Ainda tenho um longo caminho pela frente. Vou para muito longe. E tenho muito a fazer se quero lá chegar.

Quando desceu do avião em Atlanta, Amy encontrou Mary Beth à sua espera. Estranhou. Mary Beth não era do tipo sentimental que vá esperar uma amiga ao aeroporto depois de uma semana de ausência. Amy parou e reparou na expressão grave da amiga. – Deixa-me adivinhar. Fomos expulsas do apartamento por causa daquela festa de lingerie. Eu sabia que a polícia nos apanharia por termos comprado roupa interior com fechos éclair. Mary Beth pôs o braço sobre os ombros dela. – Querida, detesto ter de ser eu a contar-te… – Quem é que morreu? – Um pressentimento terrível paralisou Amy. – A tua madrasta. Amy encostou-se a um corrimão. Maisie.

Fiel à sua natureza, Maisie morrera sem dar trabalho. Caíra de uma escada de nove metros enquanto ajustava uma das ventoinhas de teto do galinheiro e batera com a cabeça num bloco de betão que encostara à escada a fim de a segurar. O médico-legista anunciara que a hemorragia fatal provavelmente fora rápida. Engoliu em seco. O agente funerário fizera um excelente trabalho a remediar os estragos. A madrasta parecia ter apenas uma crise de acne. Porém, não havia olhos por trás das pálpebras. Amy cambaleou e segurou-se ao caixão. A sala estava vazia. Segundo o livro de condolências colocado junto da porta, as amigas da igreja já ali tinham estado. O silêncio na divisão alcatifada e decorada com cortinas de brocado causavam arrepios. Tocou na mão da defunta e retirou a sua abruptamente, chocada com a frieza e rigidez. Aquela era a sua primeira experiência com a morte de um familiar. Era apenas um bebé quando a mãe morrera. Os seus pensamentos viraram-se para Sebastien. Como é que ele aguentara a morte da família no acidente de carro? Como se teria sentido ao ver os seus corpos mutilados? E, depois, teria parado junto dos caixões deles, agoniado com aquela horrível imitação de vida? Como era possível que um rapazinho tão pequeno tivesse de lidar com uma coisa assim? E como pudera depois enveredar por uma carreira na medicina, sabendo que toda a sua vida ia girar à volta de pessoas doentes e moribundas? Amy lutou contra uma vaga de solidão e confusão. Tocou no cabelo da madrasta e murmurou: – Amo-te, mamã. Virou-se e saiu da sala com passo inseguro, os dedos de uma mão fechados sobre o tecido do vestido, a mala distraidamente segura na outra. O pai estava sentado, de ombros caídos, num sofá no vestíbulo.

Mesmo vestido com o seu melhor fato cinzento parecia um vagabundo que entrara por acaso na sala de alguém. Imóvel, contemplava o padrão da carpete entre os pés de forma obsessiva. – Vamos, pai. – Amy inclinou-se e tocou-lhe no ombro. Sentiu a ternura que crescia dentro de si limitada pelo medo e falou sem emoção. – Eu faço-te o jantar. – Não é preciso. – Deixa-me levar-te a casa. Fico lá esta noite e voltamos para buscar o teu carro de manhã. – Não quero que faças isso. Não preciso de ti. Preciso é da Maisie. – Pai, eu sei… – Fui eu que a encontrei. Na capoeira. Ali caída, com a cara toda… Vou vender as galinhas. – Boa ideia. Agora vamos para casa. – Enfiou a mão no braço dele e puxou. O pai libertou-se com brusquidão e ergueu o rosto furioso para ela. – Não preciso de ti. Disseste que nunca mais voltavas. Agora é tarde. – Estou a tentar ajudar, pai. Zack começou a chorar. – A Maisie ficou tão magoada por nunca mais a teres vindo visitar! Não pensaste em ninguém, a não ser em ti. És uma miúda estúpida e cruel. Não preciso de ti. Tu não gostas de mim. Amy recuou, estupefacta por vê-lo a chorar e sentindo-se simultaneamente culpada e furiosa. – Quero gostar de ti, mas tu não me deixas. – Vá, continua a distorcer a verdade! O que queres? Dar-me mais dinheiro? Esquece! Não venhas ter comigo à espera de perdão. Amy só queria abaná-lo. Queria gritar e esconder o rosto nas mãos. Tens de parar de procurar aceitação, lembrou a si própria. – Desisto, pai. Não estou a fazer bem a nenhum de nós se ficar. Não venho ao funeral amanhã. Vou visitar um amigo em Nova Iorque. – Também não te quero aqui. Se apareceres, expulso-te! Vai! Sai daqui! Lentamente, Amy afastou-se, endireitando as costas, erguendo a cabeça, gelando por dentro. A tristeza misturou-se com determinação. A vida dela estava outra vez a mover-se, mas agora detinha o controlo. Dignidade, orgulho, honra – não prescindiria dessas coisas por ninguém, nunca mais. Já não era uma vítima, e não era como a pobre e querida Maisie, uma mártir passiva. Ia a Nova Iorque, onde Elliot estava a filmar um especial; ficariam juntos e cuidaria dele, porque sabia o quanto era importante para o namorado e isso significava muito para Amy. Mas Elliot ia também cuidar dela, de maneiras que Amy estava agora a começar a planear.

Capítulo 14

Sebastien foi nomeado diretor da Unidade de Transplantes do Sainte Crillion num dia de janeiro, quando havia pingentes de gelo a decorar as fontes de pedra de Paris e a dar uma barba de cristal ao leão, também de pedra, que guardava a entrada principal do hospital. A sua nomeação não foi surpresa para ninguém, apesar do ataque violento a um colega. Todo o pessoal e todos os outros cirurgiões esperavam até que acontecesse mais cedo, e o próprio Sebastien não fora exceção. Mesmo assim, aos trinta e seis anos de idade, quando a maioria dos cirurgiões cardíacos estavam ainda a estabelecer a sua reputação, ele já detinha uma das posições mais respeitadas na comunidade médica europeia. – Sabes o que dizem alguns dos cirurgiões mais velhos, não sabes? – perguntou-lhe o pai de Marie no dia em que a nomeação foi anunciada. – Que em parte foste escolhido por seres meu genro. Sebastien continuou a olhar pela janela para a avenida lá em baixo, com as mãos atrás das costas. Sentia-se calmo e pensativo; estava momentaneamente em paz consigo mesmo e saboreou o momento. A solidão da sua vida nunca lhe parecera mais justificada nem a barreira que continha as suas emoções mais necessária. Distraído, passou o dedo pelas costas de uma das mãos, acariciando a pele seca devido ao excesso de lavagens que era a imagem de marca de um cirurgião. – Irónico, não é? Tendo em conta que ser seu genro tem sido uma desvantagem para mim. – Desculpa? – Christian mudou de posição e a cadeira rangeu. Sebastien estava a gostar da tensão no ar. – Também tenho os meus informadores: sei, por exemplo, que o meu pai o massacrou sem cessar a fim de impedir esta promoção. Dou-lhe os parabéns por ter tido a coragem de o ignorar. Ou foi simplesmente por não poder continuar a ignorar as minhas qualificações sem parecer um idiota? – Seu filho da mãe! Seu ingrato! – O homem mais velho deu um murro na secretária. – Tem cuidado, Sebastien. Um homem que não tem amigos devia, pelo menos, manter boas relações com a família. – Os meus familiares revelam sempre ter segundas intenções. – Ofendes a minha honra e o amor do teu pai. Ele pode não agir da forma mais correta, mas será crime que um pai queira ver o seu legado perpetuado pelas mãos do filho mais merecedor? Ele só quer o melhor para ti: poder, prestígio, família… – Nesse caso, já cumpri todos os requisitos. Não lhe devo nada. O meu pai quer o que é melhor para ele, não para mim. – Sim? Com todo o teu talento e arrogância, porque não consegues pelo menos dar-lhe um neto? Porque não consegues dar um bebé à minha filha?

Lentamente, Sebastien virou a cabeça. Os seus olhos encontraram os de Christian d’Albret e fixaramnos até transmitir com eficácia um aviso claro. Um mês antes, Marie perdera outro bebé, o quinto. Felizmente, aquela gravidez fora interrompida cedo, não como ocorrera na primeira ou na quarta, que tinham chegado aos seis meses. Sebastien cerrou as mãos. Embora tendo feito todos os exames possíveis ao longo dos últimos anos, os especialistas continuavam sem encontrar nada de errado. A natureza elimina os seus erros. Fez uma careta. Ele e todos os irmãos tinham sido enganos, produtos de um casamento que nunca devia ter tido lugar. Se a irmã não tivesse dado à luz dois bebés saudáveis nos últimos três anos, Sebastien teria talvez cedido à ideia mórbida de que a natureza, para o impedir de se tornar como o pai, estava apenas a corrigir o seu erro na segunda geração. Talvez o ónus dos pecados paternos só recaísse nos filhos do sexo masculino, os portadores do nome da família. Irritado, afastou todos aqueles disparates da cabeça e tentou concentrar-se em Christian d’Albret, que estava agora a explicar um pormenor administrativo que não tinha qualquer relevância para a prática da cirurgia, especialmente da cirurgia de transplante, onde os protocolos eram formados pelas capacidades e personalidades dos membros de uma pequena equipa de elite. Sebastien já sabia como ia gerir a nova unidade: trataria os médicos e enfermeiros com respeito mas exigiria dedicação total. Casa, família, amigos – tudo isso tinha de ocupar um segundo lugar distante em relação ao trabalho complicadíssimo que tinham pela frente. Não esperava mais deles do que de si próprio. Nunca saía do hospital antes da meia-noite e muitas vezes nem sequer ia a casa, dormindo algumas horas no divã que tinha no gabinete. Só via Marie duas ou três noites por semana. – Penso que o problema mais difícil que terás será o esgotamento – estava Christian a dizer. – Os pacientes de transplante inspiram um forte envolvimento pessoal… e muitos morrem. A tua equipa precisará de períodos regulares de afastamento do serviço, e tu terás de arranjar forma de o tornar possível. – Selecionei pessoas que compreendem os riscos e as exigências, que vivem para o trabalho. – Mas todos precisam de um refúgio, Sebastien. Até tu, acredites ou não, necessitas de algo mais além da tua carreira. – Não. Christian soltou uma exclamação de incredulidade e continuou com o sermão. Sebastien deixou de o ouvir. O pai de Marie era o tipo de homem perfeito para liderar o lado burocrático de um hospital; fora dele que Marie herdara a paixão por regras e a visão a preto e branco da vida. Por fim, Christian calou-se. Quando Sebastien não fez qualquer comentário, recostou-se na cadeira estofada com tanta força que o objeto rangeu. – Perdoa-me por ter tocado no assunto «bebés», há pouco, mas não consigo deixar de pensar que passas todo este tempo no hospital para evitar a Marie. Sei que a culpas pelos vossos problemas, e isso irrita-me. – Não a culpo. – Sebastien olhou de novo para a janela enquanto a paz o abandonava e a frustração lhe dava a volta ao estômago. Era verdade que cada aborto de Marie abria uma ferida maior do que o

anterior e conduzia a relação, já tensa, mais perto do limite. Mas não a culpava; na verdade, sentia-se constrangido por algum destino vingativo ou pelo seu próprio fracasso, por alguma falha enorme que tinha de descobrir e corrigir. – A Marie está a sofrer. Sei o quanto deseja um filho. – E o que farás se nunca conseguir tê-los? O que faz com que o vosso casamento exista para lá dessa hipótese? – Tê-los-emos, Christian. É preciso paciência. – Não vais divorciar-te da minha filha, estás a ouvir? Pelo menos se quiseres manter a tua posição aqui. – Não me insulte com ameaças vãs. Seria bem-vindo em qualquer hospital da Europa. – Mas só há um Sainte Crillion, o melhor dos melhores, com uma nova Unidade de Transplantes que pode trazer-te reconhecimento mundial. Não, Sebastien, acho que não queres pôr em risco tudo que construíste aqui… e o que podes vir a alcançar no futuro. – Viverei a minha vida como eu quiser, Christian; não necessito da sua aprovação. Mas pode ficar descansado: não tenho a mínima intenção de me divorciar da Marie. – Não oiço amor a falar. Oiço complacência. Tu e a Marie… – Temos um entendimento que resulta muito bem. A sua filha compreende o que implica estar casada com um cirurgião cardíaco. Sempre entendeu que o meu trabalho exige a maior parte do meu tempo e da minha energia e gosta do prestígio que o título lhe traz. Além do mais, tem a sua própria vida. – A Marie é muito infeliz. – A infelicidade é o estado natural da maioria das vidas, não é? Basta. – Sebastien encolheu os ombros e tentou conter a fúria que estava a deixá-lo tenso. Fechou os olhos e concentrou-se no toque sedoso e calmante da camisa e no peso do casaco. Passava mais tempo do que nunca a praticar boxe e os treinos, com a maturidade, tinham-no deixado mais musculado. Sabia que parecia forte e intimidante; vaidoso, segundo muitos dos seus colegas. – Em que estás a pensar? – perguntou Christian, soando revoltado. – O que estás a sentir? Nunca consigo perceber. Esse é um dos teus grandes talentos, Sebastien. Malditos cirurgiões arrogantes! Duros como rochas. Um poço de segredos. E tu és o melhor. Sebastien abanou a cabeça. – Estou apenas a gozar a minha nova posição de poder – respondeu, em tom sardónico. No entanto, o seu estado emocional era tão intenso e vívido como o lençol de chuva gelada que batia na janela. Estava a pensar numa noite, sete anos antes, numa colina ao luar, quando uma ingénua rapariga americana fizera a vida parecer fácil e simples.

Annette relaxara um pouco depois de ser mãe, porque isso a colocava numa posição de poder. Sebastien estava muito contente por ter de novo a amizade da irmã, apesar de ser à custa dos seus próprios problemas. Annette contribuíra para a família com algo que Sebastien não conseguia fornecer –

descendentes –, e a sua ambição saía beneficiada porque Philippe de Savin adorava os netos. – Devias ouvi-lo a falar com eles! – contou Annette a Sebastien enquanto almoçavam no clube. Agarrou na lapela do casaco azul, como um orador prestes a fazer um discurso, inclinou-se sobre as costeletas de veado e piscou o olho. – Chama-lhes Cachorrinho e Gatinha! Imagina! O nosso pai a usar alcunhas fofinhas! – Ainda bem que a atenção dele te deixa feliz. – E digo-te outra coisa. – Tocou com o copo de vinho no de Sebastien. – Ele tem a mente mais aberta. Vai passar a fábrica de camisas em Lille para mim. Vou ficar à frente de tudo. – Parabéns. Mereces muito mais do que isso. – Oh, a seu tempo, Sebastien! Tudo a seu tempo. Quando acabaram de almoçar e se levantaram para sair, Annette pegou-lhe na mão. – Não vás já para o hospital. Anda ver os miúdos. Vem comigo à creche buscá-los. Sebastien acedeu, com relutância. Evitava crianças, mesmo as de Annette. – Só tenho mais uns minutos. – É suficiente. Meu Deus, como queres ser pai se não suportas crianças? – perguntou ela, de testa franzida. Sebastien decidiu não corrigir a presunção errada da irmã. – Até agora, não foi preciso responder a essa pergunta. – Oh, desisto! Nunca hei de conseguir decifrar-te. – O mistério faz parte do meu charme. – Dificilmente. Não há mistério nenhum, apenas teimosia. Anda lá, cara de pedra. A creche do clube era demasiado alegre; tanta animação abateu-se pesadamente sobre Sebastien enquanto seguia Annette por uma série de salas repletas de brinquedos, crianças e sol. Ela parou e bateu palmas ao menino loiro, de dois anos, sentado no meio de blocos coloridos. – Jacques! É a mamã! E o tio Sebastien! Não, não te esqueceste dele, apesar de não o veres há meses. Sebastien disfarçou uma careta de desconforto. Não ficara surpreendido quando Annette dera ao primeiro filho o nome do irmão mais novo. Aprovava essa decisão, na verdade, mas nunca era fácil quando o ouvia. O pequeno Jacques riu-se e esticou os braços. Annette pegou-lhe, beijou-o e colocou-o nos braços de Sebastien. – Pega nele enquanto vou buscar a Louise. Está num berço na sala dos bebés. Tenta não fazer um ar tão severo para não o assustares. – Espera, Annette… – Venho já. Deixou Sebastien com o sobrinho, que se contorceu e olhou para ele com olhos escuros que se abriam mais e mais a cada segundo que passava. O silêncio vibrava com incerteza; Sebastien apercebeu-se de que estava a apertar o menino contra o peito de forma quase obsessiva. – Tens a tez do teu pai, mas esses olhos, mon petit, esses olhos…

O menino tinha os olhos grandes e assombrados da avó. Sebastien fitou-os e viu a mãe, Antoine, Bridgette, Jacques – e a si próprio, condenado a sobreviver sozinho porque crescera com medo de deixar alguém aproximar-se de novo. Condenado. Autocensurou-se, recordando que era uma ideia ridícula e mórbida. Contudo, de súbito, a sala pareceu-lhe demasiado quente. Sebastien pensou, perturbado, que o cheiro a bebé e o riso alegre e agudo das crianças mais velhas o estava a sufocar. Doía-lhe a garganta. Horrorizado, apercebeu-se de que tinha os olhos cheios de lágrimas. Chocado, afastou Jacques. O menino, assustado, ficou suspenso nos braços esticados do tio e começou a chorar. – Para com isso – ordenou Sebastien, em voz rouca. Jacques soluçou ainda mais alto. Sebastien chamou uma das auxiliares e colocou a criança nos braços dela. – Diga à mãe dele que tive de sair. Detesto crianças rabugentas. – O senhor não pode tratar uma criança com tanta frieza e esperar… – Não tenho tempo para estes disparates. Cuide dele. É o seu trabalho. Ela fitou-o com desdém. – Sim, senhor. Enquanto saía, moderou a passada para que ninguém se apercebesse de que estava prestes a desatar a correr.

Devido aos horários brutais que impunha a si próprio, como chefe da Unidade de Transplantes, passaram-se vários meses até Sebastien se aperceber de que estava a acontecer algo estranho com Marie. Aos poucos, a mulher enchera todos os espaços vazios na biblioteca do piso térreo com livros sobre astrologia, fenómenos psíquicos, canais espirituais e outros temas relacionados com o oculto. O cirurgião começou a encontrar cristais entre as almofadas do imponente divã do século XVIII que tinham no quarto. Quando passava pelas divisões sombrias no rés-do-chão sentia um aroma persistente a incenso, tão pesado que abafava o cheiro delicado das flores frescas. Ao princípio, teve dificuldade em acreditar que Marie, o retrato do pragmatismo, sucumbira a estas modas espirituais. Mais: desdenhava o anseio comercializado e público pela satisfação espiritual, lembrando-se da adesão silenciosa da mãe ao catolicismo e ao oculto, a sua fé eterna e simples, potente, repleta de magia. Na verdade, também não partilhava os seus devaneios com Marie, uma vez que nem sabia bem como se sentia em relação a eles: os anseios inexplicados; os sonhos em que estava sempre à procura ou nos quais tentava alcançar algo; os momentos em que parava, durante as rotinas diárias, e se punha à escuta, sem saber do quê. Não conseguia afastar a ideia de que alguém que se preocupava muito com ele lhe murmurava qualquer coisa, tão baixinho que não conseguia ouvir com clareza. Assim, e dado o seu próprio estado de espírito, sentia-se obrigado a tolerar algumas quimeras

inofensivas de Marie, só se rebelando quando tal comportamento ameaçou invadir um dos rituais que mais prezava – o pequeno-almoço. Uma manhã, ainda de madrugada, sentou-se à mesa para apreciar o seu desjejum habitual de café e bolos, mas o cozinheiro, a pigarrear com ar embaraçado, apresentou-lhe algo diferente. – O que é isto? – inquiriu Sebastien, baixando o jornal com a testa franzida. – Cereais de gérmen de trigo, senhor, com leite de soja, chá de ervas e uma fatia de melão. A madame diz que será este o seu pequeno-almoço daqui em diante. – Só se mo derem à força através de uma sonda. Leve isto daqui e traga-me o costume. – Não posso, senhor. A madame proibiu-me. Tive de reabastecer a cozinha e deitar fora tudo o resto. – O cozinheiro, um homem de meia-idade, com formação clássica, parecia estar à beira das lágrimas. – Não consigo cozinhar com esta comida saudável, senhor. Vou demitir-me. – Nem pensar nisso. Para mim, pelo menos, continuará a cozinhar como antes. – Deus o abençoe, senhor. Pode então falar com a madame? – Sim. Esta noite, sem falta. Nessa noite, quando chegou a casa do hospital, Marie estava à espera dele no quarto. Sebastien parou a meio da divisão e olhou para ela com o mesmo ar com que estudara o pequeno-almoço. De um dia para o outro, Marie transformara-se. O roupão de seda elegante fora substituído por uma túnica disforme de algodão cor de mostarda. O comprido cabelo preto fora cortado à garçonne e mal lhe cobria as orelhas. As pérolas tinham desaparecido. Num fio de cabedal, ao pescoço, exibia um enorme cristal brilhante. – Decidi que uma mudança abrupta seria menos chocante para ti – comentou, à laia de explicação, com as mãos cruzadas sobre a barriga placidamente, quase como uma freira. – No entanto, tenho andado a planear isto há já algum tempo. – O quê? Transformares-te num rapaz eunuco? – Para começar, vou fechar o meu negócio, o mais depressa possível. – Fechar a escola? Porquê? – O meu tempo vai ser dedicado ao estudo. Meditação. Ioga. Acredita em mim, Sebastien. Nos últimos cinco anos, tu e eu deixámo-nos distorcer por forças negativas. É por isso que não conseguimos ter um bebé. Temos de nos purificar. Sebastien sentiu uma veia a latejar no pescoço. – Não conseguimos ter filhos porque um de nós tem um problema médico qualquer que ainda não foi descoberto. Não estás mesmo à espera de que eu concorde com o teu plano, pois não? E não voltes a interferir com o meu pequeno-almoço. Marie manteve uma expressão benigna, quase beatífica. – Sabia que ias resistir. Seja. Mas eu tenciono aperfeiçoar a minha contribuição para a conceção de um filho; portanto, se alguma coisa correr mal para a próxima vez, saberei que o meu corpo e o meu espírito não têm qualquer culpa. – O que te permitirá chegar à conclusão conveniente de que o culpado sou eu.

– Não atribuo culpas. É um sentimento negativo… – Para. Não quero ouvir as tuas frases feitas. Faz o que quiseres. Não me interessa. – Nesse caso, compreenderás que te peça que nos mantenhamos em celibato durante um ano. Sebastien olhou-a, furioso, de queixo levantado, as mãos fechadas ao lado do corpo. Passaram-lhe pela cabeça uma dezena de respostas – palavras brutais, sarcásticas, ameaçadoras, que nunca se julgaria capaz de proferir a uma mulher. Um brilho de fragilidade invadiu os olhos de Marie e o seu rosto empalideceu. Recuou, encolhida, com os braços à volta do corpo. – Sebastien – murmurou. – Se fizeres alguma coisa, eu grito. As palavras foram como um soco. Um arrepio percorreu-o. Em que se tornara, para conseguir deixála aterrorizada com um mero olhar? Marie, que fora tão forte e dura como ele, que nunca se deixara intimidar, transformara-se de repente numa cobarde. Sebastien sentiu-se agoniado e assustado. Já não se reconhecia. – Faz o que quiseres – repetiu, em tom quase inaudível. Marie relaxou e soltou um profundo suspiro de alívio. – Sei que isto te deve parecer muito estranho e cruel, mas vários dos meus conselheiros espirituais… – Como queiras. – Sebastien agitou a mão, indiferente. – A nossa vida sexual há muito que está reduzida a breves acasalamentos desprovidos de qualquer imaginação ou ternura. – Não me queixarei se arranjares uma amante. – Que amável da tua parte. Mas o prazer não compensaria os problemas. Dá-te por feliz por eu não ter paciência nem tempo para seduzir uma mulher suficientemente exigente para me agradar. Marie abriu o roupão. Estava nua por baixo. – Hoje, uma última vez, se quiseres… – Não. – Mudei-me para o quarto de hóspedes na ala esquerda. – Muito bem. Boa noite. Virou-lhe costas e saiu para a varanda. Sentiu o ar frio da noite no suor que lhe humedecia a testa. Depois de ouvir Marie sair do quarto, sentou-se na larga balaustrada de pedra e escondeu o rosto nas mãos. Riu-se baixinho, sem qualquer humor, e passado algum tempo desceu e atravessou o pequeno pátio até à garagem, onde entrou num Ferrari preto. Conduziu através da cidade até à autoestrada, a céu aberto. Só naqueles passeios noturnos se sentia completamente livre e, ao mesmo tempo, controlado. Com o Ferrari a voar na sua velocidade máxima, a morte certa à espera do outro lado da mais pequena falha, sentiu-se melhor. Disse a si próprio que não cometia erros: nem na condução, nem no casamento, nem no trabalho; em nenhuma das suas escolhas. Pelo menos por enquanto, reconquistara-se a si próprio.

Havia apenas um aspeto do seu trabalho de que Sebastien não gostava, mas era impossível ignorar a sua crescente importância. Ao contrário de muitos cirurgiões, não estava interessado nas luzes da ribalta; discursos e palestras entravam em conflito com a sua natureza reservada. A linguagem parecia inadequada, fazia-o sentir-se preso dentro de si próprio, com os pensamentos num turbilhão de entusiasmos e preocupações que não sabia como expressar. Delegava as tarefas de relações públicas num dos cirurgiões da sua equipa e discursava o mínimo que a importância do cargo lhe permitia. As exigências do seu ego, que, com forte autoconsciência, reconhecia serem grandes, eram satisfeitas com a atenção que os seus protocolos de transplante começavam já a receber. Assim, encarou o discurso no Seminário Mundial de Transplantes com um desinteresse estoico. O que o fascinou, para sua surpresa, foi o local do seminário. Nunca tinha estado na Califórnia e, enquanto a limusina o levava do aeroporto ao hotel, não tirou os olhos da janela, admirando as paisagens de postal ilustrado de São Francisco com um prazer que há muito não sentia por nada além do trabalho. No dia seguinte, roubou algumas horas às reuniões, alugou um carro e dirigiu-se a norte, para o território vinícola. Era encantador. Parou o carro à beira da estrada e caminhou até uma pequena vinha. À distância havia uma casa antiga e celeiros; hesitou junto de um portão aberto na cerca de arame e planeou antecipadamente o pedido de desculpas caso o dono desse pela sua intrusão: conhecia o elo sagrado que existe entre um homem e a sua terra e nunca o quebraria de forma leviana. Inalou o cheiro do solo, da brisa e da vegetação, recordando como em criança costumava andar atrás de Pio pelas vinhas. Entrou no terreno e dirigiu-se às latadas. Entre dentes, soltou uma exclamação ao ver a qualidade das vinhas. Ajoelhou-se no chão, indiferente ao facto de estar a sujar as calças claras, apanhou um punhado de terra e admirou a sua riqueza. Não admirava que Jeff Atwater se vangloriasse tanto do seu estado natal. Sebastien franziu a testa. Lembrara-se de Jeff, que regressara à Califórnia com um novo emprego, durante o planeamento da viagem. Anos antes, apesar de em segredo se culpar a si próprio por ter deixado Amy aos seus cuidados, odiara-o com fervor; o tempo suavizara o rancor, mas não a sensação de traição. Não culpava Amy, de quem nunca exigira qualquer promessa. Afinal, pedira-lhe para o esquecer, e ela assim fizera; mas com Jeff a história era complemente diferente. O mundo à sua volta estava silencioso. Pássaros esvoaçavam e os insetos produziam um zunido agradável. Levantou a cabeça e escutou, com aquela sensação fugaz e familiar de que alguém o chamava. Um bom prenúncio, disse a si próprio. Quando voltou ao carro já tomara uma decisão. Antes de regressar a França contrataria um agente imobiliário para encontrar uma casa – um refúgio? – naquela zona.

Sebastien não sabia se o público presente no seminário, na sua maioria composto por americanos, ficara impressionado com o seu discurso sobre aparelhos cardíacos ou com o facto de um cirurgião

estrangeiro ter contribuído com uma pesquisa tão importante. Os médicos americanos, em geral, sentiamse superiores. Fosse como fosse, todos os presentes no salão se levantaram para o aplaudir. Por um segundo, regozijou-se no calor do respeito deles; depois, desceu do palco e apertou a mão de um homem corpulento e calvo, com um sorriso amável e trajando o casaco de xadrez mais feio do mundo. O resto da indumentária incluía uma gravata de fio e botas de cowboy: o doutor Adrian Johnson parecia um feirante, mas era um pioneiro da cirurgia cardíaca e todos os cirurgiões dos últimos vinte anos, incluindo Sebastien, o idolatravam. Geria o programa de investigação cardiotorácica no Instituto do Coração e Pulmões do Pacífico, uma fundação privada ligada à Universidade de Stanford, e coordenara o seminário. – Eu sabia que ia dar cabo deles – afirmou a Sebastien enquanto lhe apertava a mão vigorosamente. – Parabéns. Magnífico. Devo-lhe uma garrafa de conhaque. Sebastien e ele dirigiram-se para as portas de um dos lados da sala. – Não lhe vou exigir que pague uma aposta feita durante o jantar. No entanto, agradecia as suas sugestões em relação a agências imobiliárias. – Raios, franciú, não sabe que eu farei tudo para o trazer para a Califórnia? Pense no que lhe sugeri ontem à noite. Seria bem-vindo no instituto. Acho que poderíamos oferecer-lhe oportunidades de investigação que não encontrará em mais lado nenhum. Naturalmente que teríamos de o fazer relaxar um bocadinho primeiro, descontraí-lo, mas tirando isso… – É uma honra ser convidado, mas tenho demasiado em jogo no meu próprio programa. – Oiça, você não tem jeito nenhum para palmadinhas nas costas dos outros médicos nem para consolar pacientes. O seu lugar é no laboratório. Bom: se alguma vez lhe der vontade de se mudar de armas e bagagens para os Estados Unidos, lembre-se da minha oferta. – Assim farei. Obrigado. Sebastien virou-se para a porta, ansioso por escapar aos cirurgiões que se lhe dirigiam. Não ia ficar para o último dia do seminário. Precisava de apanhar o avião nessa noite. Alguém lhe agarrou no ombro, por trás, de forma demasiado insistente e pessoal. Virou-se, impaciente, e deu de caras com Jeff Atwater. – Doutor Livingstone, presumo – cumprimentou Jeff com ar sério. – É um prazer voltar a ver-te! Tive de dormir com várias pessoas importantes… na sua maioria, mulheres… para conseguir um convite para este evento de talhantes. Mas ouvi dizer que vinhas fazer um discurso e não podia perder a oportunidade de te vir cumprimentar. Jeff tinha agora menos cabelo, mas mais dinheiro, pelo menos a julgar pela qualidade do tecido e do corte do fato. O rosto anguloso mudara muito pouco. Ganhara alguns quilos, que lhe ficavam bem. Sorriu alegremente a Sebastien, mas os seus olhos indicavam que sabia bem de mais o risco que corria. Sebastien fitou-o por um momento num silêncio pesado. Tinham passado cinco anos desde que ficara a saber o que acontecera entre Jeff e Amy. Afinal, o tempo não suavizara a fúria, descobriu rapidamente. – Achas que temos alguma coisa a falar?

– Ouve, arranquei muitos cabelos antes de tomar esta decisão. – Com licença. Tenho um avião para apanhar. – Vejo pela tua expressão que não é a altura ideal para piadas. – Penso que estou a reagir bastante bem, para alguém que em tempos ponderou a hipótese de te castrar com um bisturi ferrugento. Não que alguém desse pela ausência dos teus testículos. És um homem sem honra. – Podemos ir beber um copo e conversar? Pelo menos deixa-me levar-te ao aeroporto. – A menos que tenhas alguma explicação para me dar, algo que nunca te deste ao trabalho de fazer há cinco anos, sai da minha frente. – Não tive culpa do que aconteceu. Ouve, não há mulher nenhuma que justifique a perda de uma amizade. Isto é ridículo. – Jeff bloqueou-lhe o caminho. – Não eras capaz de bater a um homem sincero. Segundos depois estava no chão, com a boca a sangrar. No caos que se seguiu, enquanto várias pessoas o rodeavam e alguém pedia lenços de papel, Sebastien inclinou-se sobre Jeff e puxou-o pela gravata de seda. O psiquiatra fitou-o com olhos vidrados e murmurou: – Sentes-te melhor? – Só tenho uma pergunta para te fazer. Sabes onde está a Amy? – Não. Não a vejo desde que saí da Georgia. Juro. Que diferença faz isso agora? Sebastien fez a mesma pergunta a si próprio. A tremer, largou Jeff com um pequeno empurrão. – Tu e eu já tivemos a nossa conversa, doutor – murmurou em tom ácido. – Adieu. Alisou as lapelas do fato preto, saiu do salão e atravessou o átrio cintilante. Percebeu que os outros cirurgiões o observavam e abriu um sorriso frio. O doutor de Savin estava a criar duas reputações, diriam – uma relativa ao trabalho, outra ao seu temperamento violento. Sebastien desceu pela escada rolante até à entrada principal do hotel. Tinha a mente vazia, carregada apenas com adrenalina e fúria. Reparou vagamente no monitor de vídeo montado num pedestal de mármore ao fundo das escadas rolantes, a passar anúncios sem parar.

O restaurante Pavilhão Dourado estará fechado esta noite para as gravações do programa de televisão Thornton After Hours, com Elliot Thornton. Pedimos desculpa pelo inconveniente.

Passou pelo monitor sem olhar duas vezes.

Capítulo 15

A suite de hotel parecia um manicómio. Enquanto escrevinhava notas num bloco, Amy recordou-se de cenas do filme Voando Sobre um Ninho de Cucos. Mudou de posição no chão, onde estava sentada com as pernas cruzadas, e ergueu os olhos para os dois homens que gritavam um com o outro enquanto Elliot, ao lado, agitava os braços. – Tresanda! O conceito tresanda! – berrou um deles. – Não há nada engraçado em taxistas iranianos! – Para ti. Só achas graça a piadas sobre pilas! Elliot atirou uma garrafa de refrigerante para um caixote do lixo cheio até cima e subiu para uma cadeira. – Calem-se! – gritou para os escritores que discutiam, o produtor de rosto vermelho, o realizador que resmungava e mais uma dezena de pessoas da equipa. – Temos três horas até à gravação! Um convidado cancelou; e depois? Este talk-show não vai girar exclusivamente à volta de convidados famosos! Isto é comédia de massas! Interatividade! Se toda a gente se vai abaixo por causa de dez minutos para preencher, não têm lugar na minha equipa! Agora calem-se! Pouco barulho! Vamos pensar. Elliot podia dar-se ao luxo de falar assim. Tinha agora a sua própria empresa de produção. Era produtor-executivo do programa Thorton After Hours e aquele era o piloto, uma estreia que estava a ser mais antecipada pela imprensa do que qualquer outro programa de uma estação independente nos últimos anos. O conceito fora adquirido por um número recorde de canais de todo o país. Seria gravado às sete da tarde, cinco dias por semana, e transmitido à meia-noite, hora central. Ao contrário de todos os outros talk-shows, seria frequentemente gravado fora do estúdio, com audiências ao vivo: quanto mais esquisito fosse o público, melhor. Os programas em estúdio seriam gravados numa grande estação independente em Los Angeles, onde a produtora de Elliot arrendara um escritório. Naquela noite, para o melhor ou para o pior, Thornton After Hours seria gravado no restaurante Pavilhão Dourado no Alistair, um dos mais grandiosos hotéis de São Francisco. Durante a gravação o restaurante estaria a servir jantares, como de costume, mas os comensais seriam hóspedes cuidadosamente selecionados: uma dúzia de pessoas que participara do concurso O Preço Certo sem ganhar nada, a equipa dos bastidores de General Hospital, um grupo de travestis e vários amigos de Elliot. O plano dele era incorporar este público excêntrico no programa. Porém, a anarquia já começara. Elliot tinha as veias do pescoço salientes por cima do colarinho da camisa branca, as calças de caqui sujas da cinza dos cigarros que não parava de fumar; estava descalço e abria e fechava constantemente os dedos dos pés, como um grande pássaro a tentar empoleirar-se numa cadeira.

– Preciso de espaço – disse, de repente. – Amy, cinco minutos. Ela levantou-se e seguiu-o até ao quarto, onde a cama estava quase completamente coberta com papéis, cartões de ponto e malas. Amy sentou-se na beira da cama e esperou. Elliot bateu com a porta e encostou-se a ela, de olhos fechados. – Preciso de uma bebida. Uma cerveja. Uma cerveja só. – Uma. – Ela dirigiu-se a uma enorme geleira ao canto e voltou com uma lata. – Estás a sair-te muito bem. – Logo, depois do programa, vou apanhar uma bebedeira de caixão à cova. – Ainda bem que me avisas. Vou pedir ao hotel que instale rodinhas numa sanita. – Sabia que Elliot se estava a portar muito bem, ultimamente; se protestasse demasiado, ele podia revoltar-se e descarrilar. Caminhavam sobre a fina divisória entre os excessos dele e o controlo dela. Amy demorara meses a descobrir quais eram os limites da sua influência, e houvera alguns confrontos feios durante o processo, mas Elliot confiava no bom senso dela e acabava sempre por admiti-lo. Elliot abriu a lata de cerveja e despejou-a em três goles. Com um suspiro, devolveu-lhe a lata vazia. – Obrigada, senhora enfermeira. – De nada. A tua lobotomia está marcada para amanhã. – Amy olhou para ele e começou a massajarlhe os ombros. – Sabes, o pessoal desconfia que estamos a dar uma rapidinha sempre que nos enfiamos aqui. Já é mau o suficiente que alguns pensem que eu só consegui o meu trabalho porque sou tua namorada. – Não é verdade, e toda a gente sabe disso. Trabalhas mais do que qualquer pessoa, exceto eu. Ouve, amor, disseste que querias um trabalho e eu arranjei-te um. No entanto, se não estivesses a fazê-lo bem, já te teria despedido. Tenho demasiado em jogo para andar a sustentar inúteis. – Fingiu dar-lhe um soco no queixo. – Sou um patrão duro, não sou? Mas não te sentes melhor por causa disso? – Sim. Não quero tratamento especial, pelo menos no que está relacionado com o trabalho de viceprodutora. – E assistente do senhor Thornton – entoou Elliot como se estivesse a ler os créditos do programa. Depois, o seu bom humor dissipou-se e passou as mãos pelo cabelo revolto. – Temos de arranjar material novo para esta noite. Dá-me um dos teus rasgos de brilhantismo, amor. Acerta-me mesmo no meio da imaginação. Amy aproximou-se da janela, a morder o lábio e a brincar com as pontas do lenço atado à cintura do macacão verde, entusiasmada. Esta era a parte divertida. Era aquilo de que mais gostava – quando Elliot lhe pedia sugestões, a ela, e depois as usava no número. Agora que apareceria na televisão nacional cinco noites por semana, precisaria ainda mais da sua contribuição. Quando Elliot ficava desesperado, nem a equipa de escritores do programa conseguia ajudá-lo tanto como ela. Durante alguns segundos, observou as ruas movimentadas de São Francisco lá em baixo, com as ideias a fervilhar. Era sempre tão fácil. – O Café da Caça Atropelada – murmurou.

– Hum? O quê? – Elliot aproximou-se mais, atento. – O Café da Caça Atropelada. Tem um letreiro ao pé da grelha que diz: «Tudo morto há menos de uma hora». Hum, vejamos. Muito bem. O lema do cozinheiro: «Se é lento, é comestível.» Serve pratos especiais baixos em colesterol: «Usamos apenas óleo de motor.» E especialidades locais: «Prove a nossa tosta de armadilho prensado!» Refeições misteriosas: «O bicho estava tão espalmado que nem nós o conseguimos identificar.» Comida com um toque de elegância: «Prove os nossos purés e patés…» – Sim! Sim! Gostei! – exclamou Elliot, e puxou-a para um beijo exuberante. Depois recuou e esfregou as mãos, ansioso, perdido em pensamentos. – Leva uma ou duas pessoas e vai-me arranjar alguns animais espalmados. Quanto mais nojentos, melhor. Entretanto vou começar a trabalhar no número com os rapazes. Temos de o esticar. Céus, vai ser tão engraçado, ainda por cima por estarmos num restaurante! – Queres que eu vá para uma autoestrada da Califórnia, em hora de ponta, tentar apanhar carcaças espalmadas? Mais vale pôr um alvo nas costas e desatar a correr pelo meio dos carros. – Amorzinho – implorou Elliot, com ar angustiado e cansado. – Por favooor… – Vou delegar essa tarefa em dois outros tipos da equipa. Não tenho tempo para ir pessoalmente. Ainda tenho de rever as notas para a tua entrevista e voltar a verificar os cartões de ponto. – Querida, quero que isto cause impacto. Sei que posso confiar em ti para me encontrares animais mortos engraçados. É importante. – Levou as mãos à cabeça e gemeu. – Oh, céus, estou a ficar com uma enxaqueca monstruosa. Amy olhou para Elliot, alarmada. Com a expressão contraída e a postura curvada, parecia mesmo estar em agonia. – Está bem, eu vou. Claro que sim. Agora relaxa… – Amo-te. Amo-te tanto. Agora vamos ao trabalho. – Limpou a testa, deu-lhe uma palmada no rabo, dirigiu-se à porta e abriu-a de rompante. – O Café da Caça Atropelada! Escritores, para a cozinha comigo! Já. Preciso de comida à minha volta enquanto trabalho nisto. Começou a explicar-lhes o número enquanto caminhavam. Amy saiu do quarto e olhou para o resto da equipa, que a estudou com um misto de curiosidade e respeito. Encolheu os ombros. – Foi uma sessão de sexo selvagem. Ajuda sempre à criatividade dele. Entre sorrisos, virou-se, de sobrolho carregado. Não havia qualquer motivo para o ressentimento que sentia em relação a Elliot, por vezes, e ralhou consigo própria. Graças a ele tinha uma vida empolgante, um emprego fantástico, o respeito dos colegas numa indústria complicada e, o melhor de tudo, um lugar privilegiado num mundo que adorava. Pôs a grande mala de cabedal ao ombro e fez sinal a dois jovens assistentes de produção. – Rapazes, temos uma missão. Venham comigo. – É importante? – perguntou um deles. – Sim. Tão importante que o Elliot só confia em mim para a levar a cabo. Vai haver perigo, suspense e, possivelmente, uma reprimenda da polícia de trânsito da Califórnia. – Abanou a cabeça perante os olhares interrogativos. Aquela era a vida que escolhera. Não ia perder tempo a examinar uma pequena

humilhação aqui e ali. – Alguém tem uma pá a mais?

Depois dos primeiros programas, os críticos ultrapassaram o espanto e começaram a escrever. Amy cortava os cabeçalhos das notícias e afixava-as no quadro de avisos do seu gabinete. Thornton é um sucesso – Formas de vida alienígenas apoderaram-se do programa. Será este programa real? As audiências dizem que sim. Preparem-se para o Café da Caça Atropelada, bowling por pizas e câmara kamikaze. Televisão esquisita! Será Thornton o novo rei da comédia? Por Deus! Desenhou um círculo à volta das palavras «Café da Caça Atropelada». Minha, pensava de cada vez que olhava para a notícia, e quase era engolida pelo orgulho. Em dois meses, Elliot tornou-se um nome conhecido. Todas as pessoas associadas ao programa andavam loucas de entusiasmo. O nível de energia era tão elevado que Amy trabalhava dezoito horas por dia e mal podia esperar por se levantar todas as manhãs. Elliot tinha os seus excessos bem controlados e estava a funcionar à base de pura adrenalina. – Sabes do que precisamos, querida? – perguntou-lhe, uma noite. Estavam deitados numa cama de hotel, completamente vestidos, com caixas de comida chinesa equilibradas em cima da barriga. Amy olhou para ele com pálpebras pesadas pelo cansaço. Nem sabia bem o que estava a comer. – Esqueci-me de mandar vir crepes? – Precisamos de uma casa. Está na altura de deixarmos de viver em quartos de hotel. Agora que já não ando na estrada, faz sentido. – Claro. Posso ligar a algumas agências imobiliárias, visitar várias casas e reduzir as opções para só teres de perder uma ou duas horas com as melhores. Depois podemos escolher uma de que ambos gostemos. – Hum… Quando é que podes tratar disso? – Talvez esta tarde, quando estiveres no jogo das celebridades. Elliot continuou a falar sobre casas, mas Amy adormeceu sem ouvir muito mais, com uma mão pousada na caixa de comida. No dia seguinte Elliot entrou no gabinete dela e bateu com um papel em cima da mesa. – Fiz uns telefonemas e arrendei uma casa em Toluca Lake. Burbank! Forest Lawn! O Hollywood Bowl! Os grandes estúdios! Não podia ser mais conveniente, amor. E contratei um decorador para a encher com mobílias alugadas. – Assim, sem ver? E se odiarmos o papel de parede, ou os vizinhos do lado estiverem a criar cabras no quintal? – Arranjamos outra!

E saiu despreocupadamente, enquanto Amy rangia os dentes de frustração. Era a casa de Elliot, o dinheiro de Elliot, a decisão de Elliot. Mary Beth ligou-lhe, de Atlanta, para conversar. O seu programa de entrevistas estava a correr melhor do que nunca e queria Elliot como convidado. Quando Amy lhe contou a história da casa, Mary Beth ficou calada por um instante. Depois, em tom sinistro, avisou: – Isto vai ser um ponto de viragem. Estás prestes a tornar-te uma cônjuge em tudo menos no papel. É agora, amorzinho, que as merdas ficam profundas. A amiga tinha razão. Depois de a casa estar mobilada, bastava levarem as malas para lá e estavam instalados. Amy estacionou o velho Escort numa garagem para três carros. Havia uma piscina aquecida com uma cascata de rocha artificial e uma sauna; a casa era ampla, em estilo espanhol, com três quartos e decorada com sofás brancos, candeeiros de cerâmica e arte Navajo. Tinha ginásio, vários bares, um centro de entretenimento de última geração e uma banheira de mármore na casa de banho principal. Elliot saiu, na tarde depois de se mudarem, e comprou duas grandes motorizadas Harley pretas e um blusão de cabedal preto com rebites prateados. A Amy parecia-lhe tudo muitíssimo estranho. Na manhã seguinte levou uma pasta cheia de horários de produção para o exterior e sentou-se numa espreguiçadeira cor-de-rosa ao lado da piscina de azulejos também cor-de-rosa. Mas não conseguia trabalhar. Só conseguia olhar para o que a rodeava. – Cheguei – disse em voz alta. – Mas não sei bem onde estou. Pôs os fones nos ouvidos e ouviu Edith Piaf a cantar baladas francesas melancólicas, o que lhe deu vontade de chorar. Nesse momento, Elliot saiu de casa, aos gritos de alegria. Nu, a cheirar a bourbon, correu para ela, tirou-lhe os fones e os papéis, puxou-a da espreguiçadeira e despiu-lhe o fato de banho preto com um puxão. – Isto não é fantástico? Amy debateu-se sem grande convicção, aliviada pela distração. – Ainda bem que arrendaste uma casa com uma cerca bem alta. – Californianos decadentes, é o que nós somos! – Tu já eras decadente antes. – Mas agora vou ficar bronzeado! – Atirou-a para dentro da piscina e saltou em seguida. Quando Amy veio à tona de água, a afastar o cabelo dos olhos e a tossir, Elliot já tinha as mãos entre as pernas dela e puxava-a para si. – Atrela a tua carroça a uma estrela. Hum, bela carroça. – Bela estrela. Elliot virou-a e penetrou-a por trás. Desequilibrada em água que era demasiado profunda para aquele tipo de atividade, Amy agitou os braços, sentindo-se ridícula, enquanto tentava manter a cabeça fora de água. – Elliot! Elliot, não quero morrer afogada desta maneira! Seria muitíssimo embaraçoso! Os movimentos rítmicos das ancas dele tornaram-se mais rápidos e, um segundo depois, gemeu e ficou tenso, puxando-a ainda mais contra si. Depois relaxou encostado a ela e, ofegante, beijou-lhe a

nuca. – Fantástico. O golfinho Flipper ficaria orgulhoso de nós. Amy libertou-se e virou-se para ele. Elliot tinha o cabelo molhado colado à cabeça e o rosto vermelho e sorridente. Era atraente e malicioso mas, para ser sincera consigo própria, não se lembrava da última vez em que desejara realmente que ele lhe tocasse. – Elliot, quando fazemos amor tenho a sensação de que devia haver uma gravação de risos por trás. No entanto, na maior parte das vezes eu não percebo a piada. Elliot fez um ar magoado. – Oh, amor, não sejas mázinha: nós divertimo-nos muito! – Às vezes gostava que esta fosse uma relação mais sentimental, sabes: música suave, velas, algumas palavras doces… Elliot abraçou-a. – Está bem. Tu és tudo para mim, a sério. Fartas-te de trabalhar para eu não me meter em sarilhos, tratas dos meus negócios para eu não ter de fazer nada senão ser uma estrela e não pedes muito em troca. Amo-te por isso. Amy estremeceu. Elliot amava-a por ser uma boa ajudante. Quem é que não amaria alguém que dava tudo e não esperava nada em troca? No entanto, ela também precisava de cuidar dele, de o fazer feliz, porque isso fazia com que se sentisse útil. Confusa, fechou os olhos. Não, estava só a ser rabugenta. Tinha tudo o que poderia desejar. O que se passava consigo? – Casa comigo – murmurou Elliot. Amy endireitou a cabeça e olhou para ele. – O que é que bebeste antes de vires cá para fora? – Pensei muito bem nisto. Agora que as coisas são todas perfeitas, devíamos torná-las ainda mais perfeitas. Diz que aceitas. Ouve, já conheces todos os meus defeitos. O que é que tens a perder? – É uma maneira de ver as coisas. Oh, Elliot, vá lá! Estás a brincar, não estás? O comediante franziu a testa. – Não. Pensei que fosses ficar contente. – E estou, mas é um choque! Nunca falámos em casamento. – Não queres ser a senhora Elliot Thornton? Não sabes a quantidade de dinheiro que eu vou ganhar nos próximos anos? Vou ser um magnata da comédia. Não queres fazer parte disso? – Já faço. – Sim, mas ficas sempre esquisita quando eu tento comprar-te coisas. Vives comigo, mas não me deixas dar-te presentes. – Sou uma fã à moda antiga. – Ouve, os meus pais adoram-te. Acham que és uma boa influência para mim. – Eles gostam de mim! – exclamou Amy em tom dramático. – Gostam mesmo de mim! – Porque estás a ser assim?

Amy baixou a cabeça perante o olhar de censura de Elliot. – Desculpa. – Porquê todas essas dúvidas, amor? – Eu… Não são dúvidas. Não sei bem onde estou a querer chegar. – Responde «sim». Amy soltou um suspiro trémulo. Tinha as têmporas a latejar com a dor de cabeça. Excesso de trabalho e stresse, é só isso, pensou. Claro que queria casar com Elliot. – Sim. Elliot levantou a mão esquerda para que Amy a conseguisse ver. Tinha um grande solitário a brilhar no dedo mindinho. – Para ti. – Já tenho dois dedos mindinhos. – Deixa-te disso! Quero falar a sério, para variar. O anel era lindo e Amy ralhou consigo própria por ter feito uma piada. Quem diria que alguém havia de lhe oferecer uma vida assim? Não fora por aquilo que trabalhara tanto? Por respeito, segurança, amor? – Oh, Elliot – murmurou, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces. – É lindo. Elliot colocou-lhe o anel no dedo da mão esquerda e Amy começou a soluçar e escondeu o rosto no pescoço dele. – Amy? Querida? – Elliot acariciou-lhe o cabelo, ansioso. – Bom, suponho que também posso ser eu o forte de vez em quando. – Após um momento desconfortável, acrescentou: – Ah… é um choro feliz, certo? Quando Amy não respondeu, tentou confortá-la com palavras murmuradas, confuso. A jovem continuou a chorar agarrada aos ombros dele, o seu autocontrolo destruído pela consciência de que queria algo indefinível, algo que a assombrava.

O progresso assombroso de Thornton After Hours estacou abruptamente. Nessa primavera, o sindicato de argumentistas ameaçou com uma greve a nível nacional e todos os escritores da equipa de Elliot prepararam-se para aderir. Executivos de televisão em todo o país empalideceram ao pensar na interrupção forçada dos seus programas lucrativos, nos calendários de outono a irem por água abaixo. Elliot estava inconsolável. Uma noite, Amy acordou sozinha na cama e foi à procura dele. Encontrouo sentado de pernas cruzadas ao lado da piscina, com um cinzeiro cheio de pontas de cigarros e de charros. Parecia macilento sob a luz dos candeeiros do pátio. Lançou-lhe um olhar abatido quando ela se sentou. – Acabou-se. Todo este impulso que construí, foi-se. Se houver greve, há quem possa aguentar com meses e meses de repetições. Eu não: sou apenas um zé-ninguém acabado de chegar. – Elliot, não exageres. – Pousou-lhe a mão no braço e ele começou a chorar. Amy abraçou-o e fechou

os olhos, reunindo a sua coragem. Andava a pensar abordá-lo com uma ideia, mas só se a greve se concretizasse. No entanto, não podia continuar a deixá-lo torturar-se daquela maneira. – Elliot, achas que… ah… sei que pode parecer uma loucura, mas achas que o programa podia continuar como até aqui se eu te ajudasse a escrever? – O quê? – Elliot parou de fungar e endireitou-se, olhando para ela surpreendido. – Tu? – Ninguém precisava de saber. Não sou escritora, por isso não estaria a violar nenhuma regra do sindicato. Acho que podíamos fazer isso, a sério. Não seria fácil, mas vale a pena tentar. Não é assim tão complicado escrever um monólogo e um ou dois números curtos por dia, e podíamos tentar criar segmentos de improvisação: mandar-te para sítios estranhos com uma equipa de filmagem e filmar apenas as tuas reações naturais. – Tu? A escreveres para o programa todos os dias? – Mesmo pedrado, Elliot parecia estupefacto. Amy franziu o sobrolho. – Há anos que te dou material para os teus números. Oh, eu sei que não sou tão boa como um profissional, mas tu consegues pegar nas minhas ideias básicas e fazê-las funcionar. Como acontece sempre. Viu uma luz acender-se na mente dele. Elliot pestanejou e deu uma palmada no joelho. – Tens razão! Tu consegues ter sempre ideias na hora! Mesmo que só se aproveite metade, é possível que seja suficiente! – Claro que sim. E pensa em como as pessoas ficarão impressionadas se tu apresentares material novo todas as noites, mesmo sem uma equipa de escritores para te apoiar. Elliot riu-se e puxou-a para si. – Meu milagre secreto. Vais tornar-me uma lenda viva. Vamos fazer planos para casar assim que a greve acabe, o que me dizes? Se te portares bem, dou-te uma recompensa. Se mereceres o meu amor, serás feliz. Amy afastou rapidamente aqueles pensamentos inquietantes. Estava a ter a oportunidade de fazer um trabalho que adorava. Estremeceu com antecipação. – Combinado – respondeu.

O repórter da revista People inclinou-se sobre a mesa do pátio, de olhos postos em Elliot. – A greve dos escritores dura já há meses, mas o Elliot continua a produzir programas novos. Quanto muito, o seu trabalho é ainda melhor desde que a greve começou. Há quem use palavras como «génio» para o descrever. Onde é que vai buscar esse fornecimento inesgotável de ideias? – Trabalho. Nunca paro de trabalhar. Sou motivado e adoro o que faço – respondeu Elliot, com ar cansado, mas satisfeito. Olhou por cima do ombro para Amy, que pousava um jarro de chá na mesa. – Tenho muito apoio moral por parte da minha miúda. Obrigada, querida. Amy mostrou os dentes num sorriso forçado e voltou a entrar em casa. Dirigiu-se ao quarto principal

e atirou-se para cima da cama, que estava coberta de blocos de notas. Pegou na caneca de café que deixara na mesa de cabeceira e bebeu um grande gole. Depois esfregou os olhos cansados e tentou concentrar-se. Uma hora depois, Elliot entrou e atirou-se para a cama, ao lado dela. – Fui brilhante. – O que achas desta ideia? Podias… – Espera. Dá-me licença, vou à cozinha. – Há café feito. Traz-me mais uma caneca, por favor. – Está bem. Elliot demorou-se bastante tempo e, quando voltou, começou a passarinhar no quarto, discorrendo de forma entusiástica sobre a entrevista. Amy levantou a cabeça, desconfiada. – O que é que foste fazer? Bebeste o café todo e esqueceste-te de mim? Ele soltou uma risada aguda e falsa que fez soar um alarme na mente de Amy. Endireitou-se e estudou-o. Sentia o coração a bater na garganta. – Elliot, snifaste o café pelo nariz? Elliot estacou e encarou-a, com as narinas abertas, todo o corpo tenso numa postura defensiva. A mudança súbita de riso para fúria chocou-a. Elliot espetou o dedo na direção dela. – Estou farto dessa tua maldita atitude ditatorial. – A voz subiu de tom até se tornar um grito. – Não estou a fazer mal a ninguém! Preciso de toda a energia que conseguir arranjar! – Quanta cocaína estás a usar, Elliot? Com que frequência? – Está tudo controlado! Para com o interrogatório! Para! Para! – Pegou numa jarra de cerâmica que estava em cima da cómoda e atirou-a contra a parede ao lado da cama. Amy tapou a cara para se proteger dos fragmentos. Sentiu uma dor aguda na mão e, a tremer, olhou e viu que tinha um corte ensanguentado num dos nós dos dedos. Horrorizada, olhou para Elliot. Ele parara aos pés da cama, boquiaberto. Tentou falar e, não conseguindo, limitou-se a abanar a cabeça. Amy estava agoniada. Com os dentes a bater, murmurou: – Se voltares a fazer alguma coisa deste género, deixo-te. – Se me deixares, mato-me. Enquanto o fitava, aturdida, Elliot gatinhou por cima da cama até ela, com os olhos rasos de lágrimas. Pegou na mão ferida e lambeu o sangue. Amy ficou a olhar para ele, entorpecida. – Precisas de ajuda. Elliot, tens de falar com um médico. – Não! – Tentou respirar fundo. – Preciso é de ti. Também preciso da coca, mas só até as coisas voltarem ao normal. Juro. – Escondeu o rosto no colo de Amy e abraçou-a pela cintura. Começou a chorar convulsivamente, os ombros sacudidos pelos soluços. – Não me deixes. Estou tão cansado. Tenho tanto medo de estragar tudo. Por favor, amor, por favor. Tenta compreender. A cuidadora que havia dentro de Amy era uma patroa compulsiva. A pena e a preocupação

sobrepuseram-se à raiva. Tinha de o ajudar, porque mais ninguém podia fazê-lo. Amy acariciou-lhe a cabeça e tentou acalmá-lo, chorando enquanto o fazia.

O Laffeteria não passava de um clube de comédia de segunda categoria em West Hollywood, mas era um dos preferidos de Amy. Passara horas em todos os grandes clubes de comédia do país, a ver Elliot trabalhar, e depois sentada com ele a analisar outros comediantes, mas havia algo de reconfortante naquele pequeno clube. Sentou-se sozinha a uma mesa de canto, confortável na escuridão que a envolvia, com um bloco e uma caneta à frente e um copo de água mineral a perder o gás enquanto se concentrava no seu trabalho, que era estudar o grupo de comediantes do sexo feminino de terça-feira à noite. Felizmente, a greve dos escritores terminara. Estava contente com aquela nova tarefa, por poder afastar-se de Elliot e dos seus hábitos dissimulados que não disfarçavam o problema dele e que os deixavam a ambos deprimidos. Apoiou o queixo na mão e viu o apresentador chamar uma jovem corpulenta que mastigava pastilha elástica e debitava piadas roubadas a outros. O público, alegre e sem dar por nada, gostou dela e aplaudiu calorosamente no final do número de cinco minutos. Amy escreveu o nome da jovem e traçou uma linha preta por cima. A seguinte era uma bonequinha negra e delicada que fez comentários obscenos sobre tudo e mais alguma coisa, desde os seios grandes à largura da própria vagina. Incluiu algumas piadas azedas sobre raça que deixaram o público desconfortável, apesar de as pessoas se rirem pelo efeito de choque. Amy riscou também o nome dela da lista. Toda a gente precisava de uma personagem, uma característica particular, algo que os tornasse memoráveis. Todas as mulheres que subiam ao palco do Laffeteria tentavam ser únicas. Poucas o conseguiam. Amy deu por si a traçar linhas grossas e furiosas sobre os nomes da sua lista. A ironia da explosão do interesse pela comédia era que havia agora centenas de clubes, em todo o país, e todos eles precisavam desesperadamente de comediantes. Mesmo os mais medíocres entre eles estavam porventura a ganhar cinquenta mil dólares por ano, a contar piadas fracas ou roubadas a audiências atrás do sol-posto. Eu conseguia fazer melhor. De testa franzida, fez rabiscos no papel. Então porque não tentas? Sentiu uma mistura de medo e entusiasmo, como se estivesse à beira da prancha mais alta da piscina e quisesse saltar mas tivesse ficado paralisada. Imaginou-se a subir ao palco e a olhar para o público, inexpressiva, com os joelhos a tremer e as palavras estranguladas na garganta. Nem pensar. Naquela noite apenas uma das comediantes parecia valer a pena. Chamava-se Angela Poulos e contava histórias sobre a sua família grega. Nada de hilariante, mas engraçado. Conseguira gargalhadas consistentes e o material tinha qualidade suficiente para poder ser transferido para televisão sem grande trabalho.

Pegou no bloco e em dois cartões de visita que a anunciavam como vice-produtora de Thornton After Hours e dirigiu-se aos bastidores, a um grande camarim comum iluminado por lâmpadas nuas e com um cheiro a cosméticos e medo. Uma dúzia de mulheres fitaram-na, desconfiadas, quando ela entrou. Dirigiu-se a Angela e apresentou-se. Tens talento, miúda. Liga-me amanhã. Quero que venhas aos estúdios fazer uma audição com o meu patrão. Sorriu com tristeza. Sentia-se como se devesse ter um chapéu inclinado para a frente e um charuto no canto da boca. Angela Poulos começou a hiperventilar com o entusiasmo. – Claro que sim. Oh, obrigada, obrigada, tenho de ligar para os meus pais, isto é incrível, acho que vou desmaiar. A sorrir, embora se sentisse deprimida e invejosa, Amy abriu caminho entre as restantes comediantes e dirigiu-se à porta. Uma delas, uma rapariga de cabelo espetado cujo número era tocar saxofone entre piadas sobre sexo oral, pegou-lhe no braço. A ambição estava-lhe estampada no rosto em linhas duras. Parecia desesperada. – O que achou do meu número? – Tem potencial, mas não é o mais adequado ao nosso programa. Talvez resultasse num dos canais pagos de cabo. – Eh, eu podia alterá-lo como quisessem. Mas achou-o engraçado? Amy hesitou, tentando pensar numa resposta diplomática. – Só posso dizer-lhe o que resulta no programa Thornton After Hours. Procuramos números que resultem com o público em geral. Alguns comediantes não são suficientemente comerciais. – Quem é você para dizer que eu não tenho piada, hã? – Eu não disse que… – É comediante? – Não, mas… – Que raio sabe sobre o que é engraçado ou não? Entra aqui, com essa vozinha desafinada, e acha que sabe o que tem piada. Tretas! Com quem é que dormiu para arranjar o emprego? – Ninguém muito importante; caso contrário, estaria num sítio muito mais elegante esta noite, a ouvir insultos de uma categoria mais elevada. – Já fez algum trabalho de stand-up? – Não, mas… – Já escreveu comédia para alguém? Amy rangeu os dentes. O segredo de Elliot. – Não. – Então pode ir para o diabo! – A comediante apontou para si própria. – Eu faço stand-up há cinco anos! Já atuei em convenções de negócios onde os homens me atiraram cubos de gelo! Já tive donos de clubes a cancelarem os meus espetáculos porque me recusei a ir para a cama com eles! Já apresentei espetáculos de striptease masculino! Já entreguei telegramas cantados, quando estava tão tesa que era

obrigada a dormir no carro! Sofri muito para chegar onde cheguei e estou farta de serem meninas como você a decidir se eu tenho piada ou não! Você não sofreu! Você… Amy empurrou-a contra um armário. – Eu sei o que tem piada e o que não presta. E você não presta. Já vi dezenas iguais a si, homens e mulheres, a contarem piadas roubadas uns aos outros entre espetáculos em clubes nas traseiras de centros comerciais na Parvónia. Pensa que está no mundo do espetáculo só porque tem quinze minutos de material e consegue ganhar a vida assim, mas não sabe absolutamente nada sobre tradição e não quer trabalhar o suficiente para se tornar original. E não me diga que não sei fazer o meu trabalho. Passei a vida inteira a aprender o meu trabalho. A comediante olhou para ela de boca aberta, muito corada, ofegante. Amy afastou-se enquanto ela ainda estava sem fala. No parque de estacionamento, encostou-se ao carro e inspirou várias vezes o ar bafiento da noite de Los Angeles. Apesar das suas convicções, sentia-se uma cobarde. Por muito que soubesse sobre aquele negócio, continuava a não ter coragem de subir a um palco.

– Onde vamos? – perguntou a Elliot enquanto ele a puxava pelos degraus do pequeno jato privado que alugara. – Já te disse uma dúzia de vezes, amor: férias surpresa. Merecemo-las. Agora relaxa e para de fazer perguntas. Havia um ramo de rosas brancas num dos confortáveis assentos do jato, champanhe e caviar no frigorífico, copos de cristal, guardanapos de damasco e loiças finas. Quando o jato atingiu a altitude de cruzeiro, Elliot serviu o champanhe. – À nossa – brindou, tocando com o copo no dela. Amy observou-o por cima da borda do copo alto. Elliot raptara-a no meio do seu mergulho de sábado de manhã e apresentara-lhe uma mala já feita e um vestido de organza cor de pérola que a deixara sem fôlego. Ele vestia um bonito fato de seda cinzento-claro, com uma gravata branca. Cantarolara alegremente enquanto ela vestia o vestido novo e tratava do cabelo e da maquilhagem. E agora ali estava, confusa, desconfiada, a beberricar Don Pérignon. – Escolhi uma boa colheita? – perguntou Elliot, esvaziando o terceiro copo. – Acho que sim, mas não percebo tanto de champanhe como de vinho. – Minha camponiazinha elegante. – Elliot riu-se. – Achas engraçado que eu tenha aprendido sozinha a escolher um bom vinho? – Não, amor, acho encantador. Só gostava de saber quantas pessoas das colinas da Georgia falam francês, sabem escolher um bom vinho e gostam de ler Sartre. – Todas a que quiserem, imagino. Cuidado, meu menino, o teu preconceito ianque está a vir ao de cima.

– Estou apenas orgulhoso de ti. Orgulhoso de estar contigo. A exuberância dele começava a preocupá-la. Olhou pela janela para o céu de verão, repleto de nuvens brancas, e tentou não ficar rabugenta. Menos de uma hora depois, o avião começou a descer. – Viva Las Vegas! – exclamou Elliot, observando a reação dela. Amy olhou-o de soslaio. – Disseste-me uma vez que Las Vegas só prestava para convenções de lunáticos. Elliot riu-se. – Mudei de ideias. Uma limusina branca esperava-os à saída do avião e, pouco depois, estavam a percorrer a autoestrada. O deserto do Nevada passava velozmente do outro lado das janelas. Amy apertou as rosas no colo e estudou o sorriso misterioso de Elliot. – Olha – indicou ele, por fim, apontando para o oásis de néon que se erguia ao encontro da estrada. – A Cidade Brilhante. Amy não sabia o que dizer, intrigada, enquanto a limusina percorria a avenida principal. Virou-se para Elliot. – Para onde vamos? O Sands? O MGM Grand? O Caesar’s Palace? – Não. Já vais ver. A limusina virou para as ruas secundárias e Amy puxou Elliot pela gravata. – Onde? – repetiu. – Isto é uma ameaça. Ele riu-se. – Ali. Ali mesmo. Olha. Amy virou-se e espreitou ansiosamente pela janela. O seu coração parou. A Capela Nupcial de Elvis. O néon branco brilhava. As janelas tinham portadas cor-de-rosa com pequenas guitarras douradas. O caminho até à estrada estava ladeado de pessoas elegantes – as mulheres com vestidos de folhos e chapéus, os homens com fatos em tons pastel. Eram pessoas que ela conhecia: o gerente e o agente de Elliot, a equipa do Thornton After Hours, amigos dela e de Elliot, na sua maioria gente do mundo do espetáculo. E, perto do passeio, estava Mary Beth, impecável num fato de seda cor de pêssego, com os olhos escondidos por óculos escuros, a boca fechada numa linha dura. A limusina parou junto do caminho. Amy esperava que os vidros fumados impedissem as pessoas de ver a sua cara. Sentia-se como um peixe que acabara de ser apanhado no anzol. Presa. Frenética. Nos degraus para a capela estava um imitador de Elvis, vestido com um macacão branco coberto de lantejoulas. O sacerdote, presumia. – Prometi-te um casamento depois da greve dos escritores – recordou-lhe Elliot. – O que achas, querida? – Não posso. Não posso. – Atirou as rosas para o chão do carro e pegou-lhe nas mãos. A abanar a cabeça, desesperada, lutou por manter a calma. – Não posso casar contigo. – Hã? Porque não? Tenho a papelada toda preparada. Tratei de tudo para que fosse uma surpresa. O

que se passa? – Oh, Elliot, como pudeste fazer-me uma coisa destas, quando não falamos em casamento há meses? – Não deixaste de usar o anel que eu te dei… – Elliot estava a ficar corado. Ultimamente, as suas alterações de humor eram traiçoeiras. Amy apertou-lhe as mãos e tentou sorrir. – Elliot, não vou deixar-te, mas também não vou casar contigo. – Porquê? – Temos problemas. Tu és viciado em drogas. Precisas de ajuda e não és capaz de o admitir. – Já não me amas. – Ficaria contigo se não te amasse? O motorista abriu a porta. As pessoas lá fora aplaudiram e assobiaram. Um músculo começou a palpitar ao lado da boca de Elliot, que falou entre dentes. – Sai já do carro. Vamos fazer o que viemos aqui fazer. – Não. Elliot, por favor, não fiques aborrecido. Eu continuarei a estar contigo. Continuarei a tomar conta de ti. – Minha senhora? – chamou o motorista, estendendo-lhe a mão. – Não me faças uma coisa destas – avisou Elliot. – Mudaste. Não percebo. Estás a ser fria comigo. – Estou apenas a ser realista. Não posso casar contigo. – Amorzinho? – A voz doce de Mary Beth interrompeu a tensão. Enfiou a cabeça no carro e olhou de Elliot para Amy. – Espero que se estejam a divertir, mas o Elvis está a ficar um bocadinho impaciente. – Pelo seu tom de voz, Amy compreendeu que Mary Beth percebera que havia problemas. – Não gostaste da surpresa do Elliot? – Entra no carro – ordenou Amy a Mary Beth. – E fecha a porta. – Hum, bem me parecia. – Se ela entrar no carro, eu saio – avisou Elliot. Amy estendeu-lhe a mão. – Não. – Acabou-se! – Elliot libertou-se. – Não preciso de ti! Nunca precisei! – Abriu a outra porta, saiu do carro e gritou para o grupo de pessoas que os esperavam: – Querem ouvir uma coisa engraçada? Ela não quer casar comigo! Mas como paguei a merda da limusina, vou aproveitar a lua de mel! Amy soltou uma exclamação horrorizada quando Elliot enfiou a cabeça no carro e a puxou pelos braços, arrastando-a para fora da limusina e fazendo-a cair com força no meio da estrada. – Diverte-te – atirou-lhe. Passou por cima dela e voltou a entrar no carro. Amy teve de puxar os pés rapidamente quando ele bateu com a porta. Percebeu alguma agitação e depois ouviu a imprecação indignada de Mary Beth e a outra porta a bater. O motorista correu para a porta do condutor. – Lamento muito, minha senhora, mas o senhor Thornton é que dá as ordens. Entrou rapidamente e a limusina acelerou, desaparecendo em segundos. De súbito, Amy deu por si a

olhar para Mary Beth que, do outro lado da estrada vazia, se levantava do passeio. Por um instante, os restantes congelaram, em óbvio estado de choque; quando tal momento passou, todos correram para Amy, de mãos estendidas. A rapariga levantou-se rapidamente e sacudiu o vestido, a tremer, agoniada, mas amargamente decidida. Já passara tempo de mais escondida atrás das dúvidas. Doravante estava por sua conta e não queria que ninguém a ajudasse a levantar.

Capítulo 16

Marie voltou para o quarto principal um ano depois da sua transformação num ser espiritual em busca de pureza. Sebastien estava agora tão habituado às noites solitárias que quando ela entrou, com um roupão de musselina largo vestido, sempre com aquele ar de noviça num convento, quase se ressentiu da intrusão. Quase. Era verdade que algumas necessidades eram básicas, simples e egoístas, e o frio dentro dele crescera tanto no último ano que já lhe era indiferente se havia ou não alguma intimidade emocional entre os dois. Marie ajoelhou-se na cama ao lado dele, com o cabelo a emoldurar um rosto agora mais magro por causa da dieta vegetariana. – Está na altura de voltarmos a tentar – murmurou. Cruzou as mãos no colo e fitou-o com olhos plácidos. Parecia apenas uma desconhecida à espera de ser atendida. E teria o seu desejo, por enquanto. Sebastien atirou uma pasta de documentos de trabalho para cima da mesa de cabeceira. Achava que uma próxima gravidez seria tão infrutífera como as outras e que após seis anos de abortos espontâneos, estava na altura de parar de tentar. Estava esgotado, não lhe restavam recursos para enfrentar o sofrimento de cada desilusão e não conseguia livrar-se da sensação mórbida de estar amaldiçoado. Se a mulher perdesse mais um bebé, teria de lhe dizer que já não queria ter filhos. – Podemos começar a tentar outra vez esta noite? – repetiu Marie, observando-o atentamente. Sem responder, Sebastien levantou-se e despiu o roupão e as calças do pijama. Marie despiu também o roupão, que colocou aos pés da cama, e continuou sentada como uma suplicante à espera de ser abençoada. A ansiedade dela despertou algo sombrio dentro de Sebastien. No entanto, compreendeu que os sentimentos – não de ódio, mas de pena, por ambos – não fariam o esforço necessário. Teria de recorrer à luxúria. Ver o corpo moreno e firme de Marie, depois de tantos meses de celibato, foi tudo o que bastou para despertar a cegueira do desejo. Ajoelhou-se na cama à frente dela e viu-a baixar os olhos com ar aprovador para o seu pénis ereto. Segurou-lhe no queixo por um instante e estudou a antecipação no rosto dela. Tinha a respiração acelerada e os lábios entreabertos. Inclinou a cabeça e olhou para a boca dele. Sebastien agarrou-lhe nos braços e virou-a de costas para ele. Marie hesitou um instante, olhando por cima do ombro como se estivesse prestes a protestar, com a testa franzida. Depois encolheu os ombros e baixou a cabeça para os braços apoiados na cama. Com o rosto assim escondido, podia ser qualquer uma; era melhor assim, e Sebastien decidiu que, daqui em diante e até Marie engravidar, quando perdesse de novo o interesse pelo sexo, só a tomaria por trás, para que nenhum dos dois tivesse necessidade de fingir afeto.

Levantou-lhe as ancas e passou as mãos pelas nádegas firmes. Os seus dedos deslizaram pelas costas dela e acariciaram-lhe os ombros por um momento. Depois contornaram-lhe o corpo e começaram a brincar com os seios. Marie gemeu baixinho e implorou: – Ne me tourmente pas. Sebastien concordou com ela que não havia necessidade de perder mais tempo – afinal, ainda tinha muitos artigos médicos para ler depois de despachar aquele assunto. Segurou-lhe nas ancas e penetrou-a. Sentiu o corpo dela inchado e apertado à volta dele; ergueu a cabeça e soltou uma exclamação de prazer com a sensação de aperto de cada vez que a penetrava. Segundos depois, os gemidos guturais de Marie tornaram-se frenéticos. Arqueou as costas como um gato e contorceu-se. Ao fim de um ano de abstinência, a sensação causada pelos movimentos dela era alucinante. No transe da aproximação do orgasmo, fechou os olhos e deixou que o prazer abrisse canais na sua mente. A emoção inundou-o antes que conseguisse preparar-se. Fez uma careta e soltou um grito rouco quando teve o orgasmo. Ofegante, olhou para Marie, que estava absolutamente imóvel. Depois ela afastou-se dele com movimentos bruscos e deu meia-volta, agachada na cama, lívida. – Não me interessa que tenhas amantes! Mas não digas os nomes delas quando estás comigo! Sebastien sentiu um arrepio. – Não me apercebi de ter falado. E não tenho amantes. – Sebastien esticou-se do seu lado da cama e tentou não parecer abalado. – Diga-me, madame, quem é essa amante que eu não recordo? Marie saltou para a frente e esbofeteou-o. Sebastien agarrou-lhe no pulso com um movimento súbito e apertou-o com força. A mão dela estremeceu e Sebastien abrandou a força com que a segurava. – Quem? – Amy. – Marie cuspiu o nome com desdém. Sebastien sentiu o ar abandonar-lhe os pulmões e, ao mesmo tempo, uma sensação de inevitabilidade invadi-lo. Embora arrependido por ter magoado Marie, não se surpreendeu com o que dissera. – Não significa nada. Nunca te fui infiel. Peço desculpa por ter sido tão deselegante. A raiva dela vacilou. Perscrutou-lhe os olhos por um instante e depois estremeceu e baixou a cabeça. – Tens um péssimo sentido de oportunidade, Sebastien, nada mais. Não devia ter-te batido. Mas nós os dois somos tão parecidos, tão pragmáticos… Sempre me orgulhei disso. Não gosto de manifestações emocionais. E não pode haver nenhuma energia negativa entre nós neste momento. Quem é essa Amy? – Alguém que conheci antes de nos termos juntado. Na América. Não tens razões para ter ciúmes. Marie arqueou uma sobrancelha, surpreendida. – Há tantos anos? Devia ser uma mulher extraordinária! – Esquece o que aconteceu. Nem sequer estava a pensar nela. – Não estou com ciúmes. Só não quero ninguém a toldar-te o pensamento. Vais ser pai. O nosso próximo bebé sobreviverá. É a altura certa. Os planetas, os estados de espírito, a conjunção astral… – Espero que o teu misticismo esteja à altura do seu nobre objetivo. – Cansado e perturbado,

Sebastien largou-lhe a mão e, após um segundo de hesitação, acariciou-lhe o cabelo. Tentou não revelar que gostaria que ela o deixasse sozinho. Marie beijou o pequeno tufo de pelos grisalhos no centro do peito dele. A sua expressão era agora mais indignada do que zangada. – Boa noite. Tenho de voltar para o meu quarto e meditar. – Afastou-se, despedindo-se dele com um aceno educado, e tirou o roupão dos pés da cama. Sebastien retribuiu o aceno. – Até à próxima sessão de acasalamento. Depois de a mulher sair levantou-se, meio aturdido, e dirigiu-se ao roupeiro do outro lado do quarto. Abriu a gaveta de baixo e atirou para o chão montes de lenços de linho. Por baixo tinha uma grande caixa lacada. Não a abria há anos. Lá dentro guardava várias cruzes celtas que tinham pertencido à mãe, uma Bíblia que Pio Beaucaire lhe dera, uma pistola que pertencera ao avô materno e uma caixa com as balas especiais para a arma. Entalada na fenda entre o fundo e o lado da caixa, estava a velha ficha prateada, com o colar baço. Sebastien puxou-a, dirigiu-se às portas da varanda, abriu-as, saiu nu para o ar gelado e atirou o colar para as sebes do outro lado do pátio. As memórias eram mais perigosas do que pensara. Se as cultivasse, isso só o faria examinar as suas escolhas, a sua vida, a si próprio.

Pio estava a ficar velho. Sebastien ficava triste por ter de encurtar os passos para acompanhar o passo lento e rígido do homem mais velho, que, por seu lado, estava demasiado contente para reparar nisso. A primavera chegara e as vinhas eram riscas verdes escuras sob um céu magnífico; Pio cantarolou entre dentes enquanto caminhavam entre as latadas. Todas as primaveras, desde que Sebastien se lembrava, os dois percorriam as vinhas juntos. Primeiro na propriedade do pai, agora ali, na dele. Era uma das poucas tradições que eram importantes para Sebastien. Com olhares discretos e divertidos para o sorriso satisfeito de Pio, Sebastien percebeu que ia ser um ano de boa colheita. O que eram as maleitas do homem em comparação com isso? – Maduro. Gosto quando está tudo maduro – anunciou Pio, com os braços no ar. Deu uma palmada no ombro de Sebastien. – Esta primavera é especial. Espere e verá. É este ano que será pai. – A Marie só está grávida de quatro meses. Já perdeu bebés mais tarde. – Tanto pessimismo. E a Marie está tão positiva, desta vez! – Pararam e Pio olhou para ele de testa franzida. – O que será de si se não tiver um bocadinho de fé em alguma coisa além do trabalho no hospital? – Hum… Mudemos de assunto. Tenho uma surpresa para ti. Comprei uma pequena vinha nos Estados Unidos. Pio soltou uma fungadela desdenhosa.

– Para quê? Não é suficiente ter uma vinha americana terrível na Georgia? – Esta é o meu lugar pessoal. É para eu o apreciar. Só para isso. Quero que a visites. Fica na Califórnia. – Califórnia! Merde! Nem sequer conseguirá bom vinho de mesa daí! – Pio cuspiu, com tamanho desdém que Sebastien se riu. – Estive lá há duas semanas e finalizei a compra. É um sítio maravilhoso, Pio, com uma velha casa de pedra que precisa apenas de alguns arranjos para ficar confortável. Tenciono contratar um caseiro para cuidar das vinhas. Têm sido muito negligenciadas, mas com alguns anos… – Isso não é uma casa vinícola. É um projeto de caridade. O que fará com uma vinha sem importância nenhuma do outro lado do mundo? – É uma segunda casa. Pio franziu ainda mais a testa. – Não precisa de uma casa na América. Os seus dias americanos há muito ficaram para trás. Estou velho de mais para andar atrás de si, tarefa de que, com certeza, o seu pai me incumbiria. – E eu tenho a certeza de que a espionagem dele teria tão pouco efeito como antes. – Deu uma palmadinha no ombro de Pio. – Não te preocupes. Já não corro tão depressa como nesse tempo. Pio relaxou e soltou uma risada triste. – Não há dúvida de que o manteve bem ocupado. Principalmente com aquela última aventura. – Qual das minhas aventuras terá sido assim tão inesquecível? – Aquela com a rapariguinha engraçada que viveu consigo, mesmo antes de partir para África. Essa foi a que mais preocupou o seu pai. Era tão inadequada que o seu pai tinha a certeza de que o Sebastien ia ficar com ela só para o irritar. Sebastien fitou Pio. Por que motivo o passado estava a vir tanto ao de cima, ultimamente? – O meu pai soube da existência da Amy? Foste tu que lhe contaste? O ar divertido de Pio dissipou-se. – Claro. Informei-o sobre cada uma das mulheres que teve. O comte nunca se sentiu aborrecido pela minha bisbilhotice. Não se lembra que costumava chamar-me Inspetor Clouseau? – Mas porquê ela? Estivemos juntos tão pouco tempo… – Ah, mas foi a única de quem cuidou como se fosse um passarinho ferido. A única que o encantou ao ponto de o fazer sustentá-la, pagar-lhe os estudos, dar-lhe um carro caríssimo. – Apesar do brilho de preocupação nos seus olhos, o tom era novamente leve. – Devia ter visto o seu belo carro estacionado em frente da casa velha e degradada onde ela vivia quando andava a estudar! Teria mesmo questionado a sensatez de tal decisão. – Fostes visitá-la? Nunca me contaste! Nunca te pedi para olhares por ela… O que raio lá foste? A expressão no rosto de Pio indicou a Sebastien que o velho colaborador se apercebera, tarde de mais, de que se devia ter calado. Pio soltou alguns sons inarticulados e depois tossiu. – Estava curioso. Queria ver como é que ela andava a gastar o seu dinheiro.

– Pressinto mais no teu olhar. Muito mais; como o receio de estares a ficar velho e imprudente, e de teres dito algo que eu nunca devia ter sabido. – Sebastien agarrou nos ombros de Pio e berrou: – Por que razão a foste visitar? O que é que o meu pai te mandou fazer? – Nada! O que lhe interessa isso agora? Já passaram quase nove anos desde que saiu da América! Tem uma esposa maravilhosa que lhe vai dar um filho neste outono… Sim, porque eu tenho fé! Evitou quase todos os planos que o seu pai tinha para si, e seguiu o seu próprio caminho. Devia estar feliz! Porquê este interrogatório? – Maldito sejas, Pio! – Sebastien abanou-o. – Maldito sejas! O que é que tu e o meu pai tramaram? O homem mais velho empalidecera. – Nunca me tinha falado assim. – Farei bem pior se não me contares a verdade! Despeço-te. Podes voltar para a propriedade do meu pai e vangloriar-te das tuas vitórias por lá. – Despedir-me? Despedir-me? – Fitou-o, furioso, mas com os olhos húmidos. – Como pode ameaçarme assim? – E tu, como podes continuar a enganar-me e a manipular-me? – Honra! Lealdade! É o herdeiro de uma das melhores e mais antigas famílias de França! Não podíamos permitir que ignorasse as suas responsabilidades! – A verdade, Pio! Agora. Ou sais desta propriedade! Pio empurrou-o e cambaleou ao longo da fila de videiras, agarrado às plantas para se apoiar. – Vou-me embora! Vou fazer as malas! Oh, Sebastien, Sebastien! Como pode ter chegado a este ponto… Agarrou-se ao peito e caiu para a frente na relva irregular. Sebastien correu para ele, com as palavras estranguladas na garganta. Virou o corpo inerte de Pio e gemeu ao ver a tonalidade azul que já lhe invadia o rosto e os olhos revirados, sem vida. Abriu-lhe a camisa com um puxão e encostou o ouvido ao peito imóvel. O médico que havia nele tornou-se brusco e efetuou as manobras de emergência com mãos confiantes. O menino que dentro de si sentiu-se impotente e lutou para conter as lágrimas enquanto murmurava: – Não, Pio, não, Pio! Não te deixo ir. Pio, é primavera!

Várias centenas de pessoas compareceram à missa do funeral de Pio. O enterro propriamente dito foi formal e solene, de acordo com os desejos do próprio. Pio foi sepultado onde nascera, numa aldeia a sul de Orleães. Sebastien ficou ao fundo do cemitério, sozinho, tendo deixado Marie em Paris com os seus cristais e as suas meditações. Um funeral irradiava demasiada energia negativa, assegurara-lhe a mulher. Sebastien não podia estar mais de acordo. Com olhos de lince, observou o pai, de pé ao lado da campa, com a cabeça inclinada majestosamente, o fato preto e austero a acentuar a tristeza na sua postura. Sebastien não tinha dúvidas de que tal tristeza era sincera; Pio fora, durante toda a sua vida, o criado,

amigo e leal companheiro de conspiração do pai. Quando o padre terminou a cerimónia, Philippe de Savin virou-se e os seus olhos encontraram os de Sebastien. O pai lançou-lhe um olhar esperançoso que endureceu quando Sebastien não o retribuiu. Sebastien sentiu um músculo contrair-se no maxilar quando o pai se dirigiu a ele por entre a multidão. Viu as pessoas afastarem-se para o deixar passar, com atitude respeitosa, mas rosto fechado. O pai não inspirava simpatia nem afeto. De súbito, Sebastien chegou a uma conclusão desagradável: era assim que o pessoal no hospital o encarava a ele. – Pensei ver-te antes – disse o pai, estacando abruptamente à sua frente. – Procurei-te antes da missa, e durante a cerimónia, mas não apareceste. – O que importa é que estava com o Pio quando ele morreu. Detesto a atmosfera sentimental dos funerais. Já tive de ir a demasiados enterros ao longo da vida. – Talvez te agradasse mais se tivéssemos uma leitura de qualquer coisa de Camus. Uma passagem inspiradora sobre como a vida é absurda e injusta, e como sofremos a tentar mudá-la. – Ah, mas nós não precisamos de sofrer. Podemos interferir na vida dos outros e deixar que eles sofram em nosso lugar. Curiosamente, o Pio e eu estávamos a discutir esse assunto pouco antes de ele morrer. O teu nome veio à baila. O pai fitou-o em silêncio, com expressão tensa. – Não em termos felizes, pelo que percebo. – Quero que procures bem na tua memória. Recua nove anos, até à época em que eu estava a preparar-me para deixar os Estados Unidos e ir para a Costa do Marfim. Estive envolvido com uma jovem que trabalhava nas vinhas da Georgia. Tu sabias sobre ela. O Pio contou-te. – Sebastien! Lisonjeias-me, mas não consigo lembrar-me de todas as tuas transgressões. Muito menos de coisas tão antigas. – Creio que te deves lembrar da Amy Miracle. Ela foi um problema único… demasiado atraente e diferente para ser ignorada. Vá lá: o Pio lembrou-se de a ter visitado na escola depois de eu ter deixado o país, e sem qualquer dificuldade. Estou certo de que se recordava com exatidão do motivo dessa visita e das instruções que lhe deste em relação a ela, mas não me contou. – Não havia nada para contar. Meu Deus, não me digas que massacraste o Pio com acusações vãs! – Sim. Se pudesse voltar atrás preferia cortar a língua a fazê-lo. A culpa não era dele… mas sim tua. Quero que me dês as respostas que ele foi demasiado leal para me dar. O pai levantou a mão envelhecida e esbofeteou Sebastien. O golpe teve uma força emocional muito superior à física. Sebastien não se mexeu, mas todos os seus nervos ficaram tensos. Os olhos do pai brilharam, furiosos. – Ninguém te obrigou a deixar a tua mulher americana para trás quando partiste para África, mas fizeste-o. Ninguém te obrigou a casar com a Marie ou a voltar para França, mas fizeste-o. Tomaste as tuas próprias decisões. Portanto, nada tenho a dizer-te. Deus te perdoe por teres afligido o Pio: ele amava-te como um filho e só queria o melhor para ti. Tal como eu. Só que eu desisti de ti, e ele nunca o fez.

Mataste-o por se preocupar contigo. Annette estava agora ao lado deles, com as mãos a tapar a boca, horrorizada. – Parem! Parem de nos envergonhar, vocês os dois! Está toda a gente a olhar! Uma discussão no funeral do Pio… é imperdoável! – O perdão continua a ser algo impossível nesta família – observou Sebastien baixinho, cada palavra carregada de ódio. Fitou os olhos do pai com uma intensidade feroz. – Tomei as minhas decisões, sim, e não posso voltar atrás, mas agora sei que as manipulaste… de alguma forma. Estás morto para mim, percebeste bem? Já não existes. Se a Marie e eu tivermos um filho, nunca o verás. Não haverá qualquer contacto… e o teu nome nunca será mencionado em minha casa. O pai lançou-lhe um sorriso gelado e impassível, que sugeria a existência de planos ainda por revelar, e depois virou-lhe costas, afastando-se.

Capítulo 17

Era fácil ser engraçada quando a alternativa era não ter onde dormir. Amy escreveu os seus apontamentos num bloco de notas e ignorou as distrações – o barulho dos cinco filhos da senhoria a brincar, o ribombar dos carros na autoestrada, os estalidos da ventoinha na janela que trazia para a cozinha o ar quente da noite. Roeu a tampa da caneta e estudou o seu trabalho. Ela é o tipo de rapariga que vai às reuniões de família para engatar homens. Para ela, uma grande obra de arte é um anúncio de desodorizante masculino. Amy passou os olhos pelas outras linhas que escrevera sobre o mesmo assunto. Com a confiança derivada da experiência crescente, decidiu quais dos clientes seriam adequados para aquele material. Tentar escrever piadas para uma dúzia de comediantes diferentes fazia-a sentir-se um pouco esquizofrénica, mas estava a mostrar-se à altura do desafio: pelo menos conseguia ter um rendimento estável – cobrava vinte e cinco dólares por piada aos menos conhecidos e cinquenta aos cabeças de cartaz – e pagar as contas. Só o apartamento – a parte superior de um pequeno duplex – custava-lhe quinhentos dólares por mês. Amy bebeu um gole de chá gelado, abanou o vestido largo para refrescar as pernas e continuou a trabalhar. Ergueu os olhos e escutou atentamente. Havia passos a subir as escadas de madeira que levavam à sua porta. Tinha uma arma em cima de uma estante do outro lado da sala do pequeno apartamento. Claro que, se alguém quisesse fazer-lhe mal, bastava gritar e um exército de Alvarezes subiria a correr com o seu próprio arsenal de armas. Aproximou-se da porta e esperou. Quando a pessoa do outro lado bateu suavemente, pigarreou e perguntou em voz áspera: – Quem é? – Para com a imitação da Lauren Bacall e abre a porta. Era Elliot. Parecia alegre, bem-disposto. Mas já a tinha visitado naquele estado de espírito antes e rapidamente mudara para raiva ou lágrimas depois de o deixar entrar. – Só um instante. – Amy escondeu a arma na gaveta da cómoda ao lado da cama e só então abriu a porta. Elliot vestia calções de ganga desbotados pelo joelho, um pulôver branco amarrotado e ténis com os atacadores desamarrados. Tinha uma caixa de piza nas mãos. – Pizagrama – anunciou, com ar malicioso. – São dez e meia.

– Saí agora do estúdio. Estava a sentir-me agitado. Sozinho. – Não me digas. Não tinhas ninguém com quem sair? Como estava a Miss Julho? Acabaram-se os foguetes, foi? – Ora, vejo que assististe ao programa de ontem. – Não podia perder a tua entrevista a uma modelo de nus que também é especialista em explosivos. Uma pena que tivesse o QI de um estalinho. – Ciúmes? – Não, mas detesto ver-te usar o programa para arranjar mulheres. Nos oito meses desde que terminámos, a proporção entre convidadas bonitas e piadas engraçadas inverteu-se. Para de tentar antagonizar-me. Não é bom para o programa. Elliot entrou e dirigiu-se à cozinha ao canto da sala. Deixou cair a caixa de piza em cima da mesa e depois girou sobre si próprio, de mãos na cintura. – Oh, gosto do que fizeste com a casa. Mobílias de plástico e pufes em vez de cadeiras. O máximo. Já te disse que comprei uma casinha em Malibu? Mesmo na praia. Tem uma vista incrível. Tens mesmo de a ir conhecer um destes dias. Amy cruzou os braços e fitou-o. – A ponta do teu nariz parece um tomate. Elliot soltou uma risada e esfregou o nariz inchado. – Chucha ou cereja? – O que vieste cá fazer, Elliot? – Venho fazer-te uma oferta que não podes recusar. – Veremos. – Portanto, ainda me odeias. Talvez eu o mereça. Mas sabes que te amo; não toquei noutra mulher desde que me deixaste… – Desde que tu me deixaste no meio da rua a olhar para o reverendo Elvis. – Andas a escrever piadas para outros comediantes. Não faças isso. Vem trabalhar para mim. – Já fiz isso uma vez. Sem pagamento nem qualquer crédito. Esquece. – Desta vez será diferente. Estou a oferecer-te um emprego na equipa de escritores. Serás a primeira rapariga. A sério, Amy: deixamos-te entrar no clube, dizemos-te a senha e tudo. Um arrepio traiçoeiro percorreu-a. Um lugar de escritora num programa nacional de sucesso! Podia inscrever-se no sindicato de argumentistas. Receberia pelo menos cinquenta mil dólares por ano – sabia disso porque, como assistente de produção, tivera acesso aos salários dos escritores. Com as palmas das mãos húmidas, estudou o rosto de Elliot. – Qual é a contrapartida? – Nenhuma. Só quero que estejas ao meu lado, como antes. As esperanças de Amy extinguiram-se. – Isso significa ser paga como escritora, mas, na realidade, trabalhar como teu anjo-da-guarda? Dar-

te palmadas nas mãos sempre que houver álcool ou drogas nas proximidades? – É mais ou menos isso. – E dormir contigo? – Se eu tiver essa sorte. Mas sem pressões. Juro. – Oh, Elliot. – Os ombros de Amy abateram-se. Levou os dedos trémulos aos lábios e deixou-se cair numa cadeira. – Não posso continuar a assistir à tua autodestruição. Gosto de ti, a sério, mas tu não me dás ouvidos. Fazes-me ser a tua mãezinha e nunca assumes qualquer responsabilidade por ti próprio. – Gosto de me divertir, sempre gostei. E depois? Ainda tenho tudo controlado. Amy gemeu. – Não tenhas ilusões. Eu sei o que se passa na tua vida. Falo com as pessoas que se consideravam tuas amigas. Sei tudo sobre as oscilações de humor, as discussões estúpidas com qualquer pessoa que discorde de ti, o dinheiro desperdiçado, os tipos duvidosos que andam pelo estúdio para te vender droga. Sei sobre a luta que tiveste com um ajudante de palco cujo único pecado foi esquecer-se da tua água com gás. Também sei que destruíste uma das motas em Mulholland uma destas noites. – Tens informadores melhores do que o FBI. – Elliot começou a andar de um lado para o outro, sem conseguir continuar a esconder a agitação. – Estás a dar comigo em doido! Conseguiria lidar com tudo se voltasses e fizesses o que devias estar a fazer, que é cuidar de mim! – Mereço ser mais do que uma ama-seca. Tenho talento! Um destes dias vou tentar fazer stand-up. Elliot parou, apontou para ela e desatou às gargalhadas. Era um som amargo. – Passar seis anos junto de comediantes não faz de ti uma! Nunca pisaste sequer um palco! Nem penses que consegues alguma coisa sozinha. Não sejas idiota, amorzinho. É patético. – Obrigada pelo sermão… e pela piza. – Levantou-se, saturada da tensão que estes confrontos lhe causavam sempre, e apontou para a porta. – Adeusinho. Elliot agitou-se, corado, a sua fúria a emanar como vapor de uma máquina de café. – Estás a tentar arruinar-me! Alguém te está a pagar para me dares cabo da cabeça! Quem? Quem é que quer dar cabo de mim? Oh, eu sei que andam aí, a tentar apanhar-me! Sabem como sou importante e não o suportam! Tal e qual como quando era um puto com asma! Vamos gozar com o totó! Vamos envergonhá-lo! Pois bem, não me deixei vencer na altura e não me deixarei vencer agora! Amy recuou, tensa e horrorizada. Quando é que Elliot se tornara paranoico? Tentou falar em tom tranquilizador. – Vamos sentar-nos e conversar. Vou buscar-te uma cerveja, que me dizes? – Não queiras dar-me graxa agora! Esquece! Estou farto disto! Não podes tratar-me desta maneira! – Cuspia saliva enquanto gritava e estava lívido. – Vou-me embora! Hás de arrepender-te! E levo a merda da piza! Pegou na caixa e atirou-a pela janela para o pátio das traseiras. – Ponham molho e jalapeños e comam-na ao jantar, seus filhos da mãe! – gritou para quem quer que andasse pelo bairro, à espera de ser insultado por um anglo-saxónico fala-barato.

Paralisada, Amy ouviu-o descer as escadas a correr, sem parar de gritar obscenidades. Ouviu uma porta bater e o patriarca da família Alvarez ameaçar, em tom bem-disposto, que o virava do avesso. Os gritos de Elliot transformaram-se em resmungos indistintos. Correu para a janela da frente e afastou a cortina. Elliot, seguido pelo senhor Alvarez e pelo filho mais velho, dirigiu-se ao seu Porsche em passo furioso. Mostrou-lhes o dedo do meio e eles recompensaram-no amassando o Porsche com os bastões de basebol. Elliot acelerou e arrancou com uma derrapagem. Amy dirigiu-se à cama e sentou-se, sem forças. Nunca tivera medo de Elliot, até àquele momento. Onde é que poderia arranjar-lhe ajuda? Quem saberia como lidar com ele – e, mais importante ainda, em quem é que podia confiar para que o nome dele não acabasse nos jornais? Os tabloides já tinham publicado alguns artigos desagradáveis sobre o incidente em Las Vegas e sobre o comportamento errático de Elliot no estúdio. Apoiou a cabeça nas mãos e tentou lembrar-se dos nomes de centros de desintoxicação que os amigos lhe tinham sussurrado ao longo dos anos. Foi então que se lembrou de alguém que talvez a pudesse ajudar, em nome dos bons velhos tempos. Jeff.

Jeff estava nervoso. Ainda estava chocado por saber que Amy vivia na Califórnia e trabalhava para Elliot Thornton. A perspetiva de a voltar a ver fê-lo ajeitar o cabelo mais do que seria necessário. Esperava que ela desse valor à tortura por que passara na batalha com os implantes capilares. Pelo menos agora o cabelo começava na parte da frente da cabeça, embora não tivesse propriamente um escalpe digno de ser guardado como troféu. Recostou-se na cadeira, no átrio luxuoso de um restaurante de Los Angeles famoso pela sua cozinha gourmet. Tentou não puxar as lapelas do fato Armani. Não ficaria bem o diretor do mais exclusivo centro de reabilitação da Costa Oeste exibir-se. Quando Amy chegou, Jeff ficou sem fala. Como mudara! Movimentava-se com grande dignidade num fato elegante, a bolsa delicada nas mãos. O tom de verde do fato realçava-lhe a cor dos olhos. Trazia brincos de ouro. Amy sorriu-lhe, olhando-o sem qualquer sinal da antiga timidez, e dirigiu-se-lhe de mão estendida. Jeff apertou-lha e procurou algum sinal de que o cumprimento poderia significar algo mais, mas sem sucesso. Triste com tal mostra de desapego, chamou o empregado e pediu uma mesa. Foram conduzidos a uma das sumptuosas salas de refeições decoradas com tapeçarias francesas, cadeiras Luís XIII e tapetes persas sobre soalhos de nogueira. As mesas estavam postas com candelabros, orquídeas brancas, loiças finas e pratas Christofle. Amy sentou-se em frente de Jeff e apoiou o queixo na mão, projetando a aura confiante de alguém que vira suficientes restaurantes elegantes para se deixar impressionar por aquele. – Meu Deus, como mudaste! – comentou Jeff.

Amy corou e riu-se. – Tu também. Pareces um homem rico e importante que analisa a mente de gente importante. – E tenho cabelo! Amy riu-se e acenou. – Pensava que a tua cabeça tinha encolhido. Depois de quebrarem a tensão, conversaram sobre o trabalho dele no hospital de reabilitação enquanto um empregado trazia o vinho que Amy escolhera. Jeff gostara que Amy o tivesse convidado para discutir o problema de Elliot Thornton. O envolvimento dela com aquele espertalhão hiperativo desagradava-lhe, mas resignou-se. A sua relação mais recente – com a estrela de uma série ligeira de televisão, que conhecera quando a filha dela procurara tratamento no centro –, embora satisfatória, era superficial. Sabia muito bem que não podia esperar nada do género de Amy: afinal, ela amara Sebastien contra tudo e todos, e dedicara os anos subsequentes a cuidar de Thornton, que era toxicodependente. Não, Amy Miracle era tudo menos uma pessoa superficial. À medida que a refeição progredia, Amy foi ficando cada vez mais calada e distraída. Jeff sabia que a conversa de circunstância não passava de fachada. A fadiga tornou-se visível nos olhos dela, e remexeu no peixe que tinha no prato sem o comer. – Vamos lá falar sobre o Elliot Thornton – sugeriu Jeff. Amy soltou um grande suspiro de alívio e despejou uma lista de sintomas e atividades dos últimos meses, terminando com o episódio bizarro da noite da piza. Nada do que ela contou surpreendeu Jeff: o humor instável, a paranoia e os problemas crescentes na carreira de Elliot eram típicos de um viciado. – Tens de reunir um grupo de amigos dele e organizar uma intervenção… – Tentei fazer isso o ano passado. Não serviu de nada. O Elliot escapou e desapareceu durante uma semana. A estação teve de passar episódios antigos do programa e foram precisas inúmeras mentiras para ocultar o verdadeiro motivo da ausência dele. Quando finalmente voltou a aparecer, trazia umas orelhas de Rato Mickey e estava branco como se alguém lhe tivesse sugado o sangue todo. Explicou que tinha passado a semana toda na Disneylândia. – Provavelmente chegou a altura de o deixares. Tens de permitir que ele se afunde ou se salve sozinho. Não viveram juntos já é um princípio; no entanto, por vezes é melhor afastarmo-nos por completo. – Eu sei. – Os olhos dela encheram-se de lágrimas. – Como o meu pai. – Como está ele? – Não o vejo há quatro anos. Falamos ao telefone no Natal e no quatro de Julho. – Soltou uma risada amargurada. – É a minha dose semestral de sentimento de culpa. – Foste bem treinada. – Quando Amy olhou para ele, confusa, Jeff explicou: – És uma escrava obediente; sempre ansiosa por ajudar os casos desesperados, mesmo quando é impossível ou quando te magoam. Não conseguiste ajudar o teu pai, mas estás decidida a ajudar o Elliot. A tua autoestima baseiase naquilo que o Elliot te diz sobre ti própria, tal como acontece com o teu pai. Em linguagem técnica, és

uma «codependente». Amy fitou o vazio com expressão intensa e pensativa. – Parece uma marca de medicamento para a constipação, mas acredito em ti. – Pagam-me muito dinheiro para indicar o óbvio. – Nesse caso, qual seria o próximo passo óbvio? Jeff pegou-lhe numa das mãos e apertou-a. Agora que Amy precisava de ganhar confiança, talvez pudesse ajudá-la ao invés de a magoar. – Vive a tua vida. Faz o que é melhor para a Amy Miracle, não para os outros. Lembra a ti própria que és a única pessoa que tens de fazer feliz. Já tinha reparado que o sotaque dela se tornava mais pronunciado quando estava perturbada. Amy inclinou-se para ele e disse, com um milhão de sílabas extra: – Valha-me Deus, Jeff, isso parece-me muito frio. Acho que até as amebas são mais amistosas. – Mas a pergunta essencial aqui é: será que as amebas se magoam umas às outras de propósito? De novo distraída, Amy encostou-se e abanou a cabeça. Depois apertou os lábios com ar decidido. – Estou a sentir o meu protoplasma a entrar em mutação. – Força! Olhou para Jeff, parecendo simultaneamente triste, zangada, determinada. – Já me pareço com uma ameba? Jeff acenou em sinal de aprovação. – Talvez seja da luz, mas acho que consigo ver a mudança.

O telefone estava a tocar quando entrou no apartamento, após o jantar com Jeff. Doía-lhe terrivelmente a cabeça, em parte devido ao esforço que fizera para não lhe perguntar se tinha alguma notícia de Sebastien. Olhou para o aparelho de testa franzida e deixou o gravador de mensagens atender. Quando se deixou cair na cama, ouviu uma voz feminina e formal dizer: – Fala do Hospital Lakeside em Gainesville, Georgia. Queremos informar a senhora Miracle de que o seu pai foi internado hoje. Por favor contacte-nos… Amy correu para o aparelho e atendeu. – Sou eu! – interrompeu. – Fala Amy Miracle. O que aconteceu ao meu pai? – Lamento informar que sofreu um AVC bastante grave. A mulher continuou a falar mas os pensamentos de Amy já estavam virados para tarefas como reservas de avião e fazer malas. Imaginou o seu falador e independente pai como um inválido – o destino mais cruel e a punição mais adequada por tudo quanto ele lhe fizera. No entanto, o que sentiu foi apenas amor e uma tristeza profunda e agridoce por a vida infeliz do pai ter chegado àquele ponto. Não precisava de se deixar absorver na infelicidade dele para o amar. Tinha de ir para junto dele.

Como ameba, Amy era um fracasso.

– Um vizinho viu o seu pai cair no chão ao lado da caixa de correio – explicou-lhe o médico. – E ainda bem que assim foi, porque chamou logo a ambulância. Caso contrário, o seu pai podia já não estar vivo. Amy olhou para o pai, um estranho de rosto parado que não fazia mais do que estremecer os olhos de vez em quando, no meio de uma selva de tubos e máquinas, e questionou-se como raio estar vivo naquele estado podia ser uma coisa boa. – Ele voltará alguma vez à normalidade? – É difícil dizer. – Acha que ele conseguirá cuidar de si próprio, sem ajuda? O médico, um homem rechonchudo, de ar sério, suspirou. – Tendo em conta o seu mau estado de saúde em geral? Francamente, acho que não. Penso que tem de começar a considerar a hipótese de o colocar num lar. – Quais são os preços atuais de um bom lar? – Conte com uns dois mil dólares por mês. Boquiaberta, Amy encarou o médico. – Tenho de analisar como estão as poupanças do meu pai – conseguiu enfim dizer. Por favor, meu Deus, faz com que ele tenha guardado todo o dinheiro do Ferrari.

Não guardara. Amy não sabia o que ele e Maisie tinham feito com o dinheiro, mas a conta do pai no banco em Gainesville tinha apenas cinco mil dólares. Depois de falar com o gestor para ter acesso à conta, Amy dirigiu-se à velha casa. Vagueou pelas divisões, entorpecida. A ansiedade dera lugar a um vazio de sentimentos. Deixou-se apanhar pelo estranho déjà-vu das memórias. O sol poente de verão banhava a casa numa luz fantasmagórica e iluminava partículas de poeira que pareciam suspensas no ar e no tempo. O pai não alterara muito a decoração. As galinhas de loiça de Maisie ainda enfeitavam a parede da cozinha e os seus bibelôs baratos enchiam a sala. A única grande alteração dera-se no antigo quarto de Amy: o pai transformara-o num estúdio, e estava atafulhado de cavaletes, telas e material de pintura. Parou nas sombras, cheia de ódio. As pinturas de palhaços e cenas circenses que ali se encontravam eram fortes, coloridas, alegres; uma vez que não as via há muitos anos, o contraste atingiu-a como nunca. O pai desprezara a sua vida após a lesão das costas, depois do circo. E ela fora apenas mais uma responsabilidade que ele não queria. Começou a tremer. – Eu merecia melhor – disse em voz alta. A raiva sobrepôs-se ao entorpecimento. Pegou num tubo de

tinta de óleo vermelha e correu para um canto, onde havia dezenas de telas encostadas à parede. Caiu de joelhos em frente delas, no velho soalho de pinho, esguichou tinta para as mãos e esfregou-as sobre o retrato de um palhaço sorridente. A gemer baixinho, atirou a tela para o lado e atacou outra, e mais outra. Destruiria tudo o que o talento do pai conseguira criar, tal como ele tentara destruí-la. Sem nunca o dizer diretamente, Zack Miracle culpara-a por tudo o que lhe correra mal na vida: o seu nascimento matara a bela Ellen; criar uma filha sem uma esposa exigira demasiado dele, tanto a nível emocional como financeiro, sobretudo depois da lesão nas costas. Teria sido mais feliz com um filho rapaz, que poderia treinar para vir a ser um palhaço profissional. Enfurecia-a pensar que passara a vida a esforçar-se por se redimir de crimes dos quais era inocente, enquanto a voz do pai ecoava na sua consciência, dizendo-lhe que não prestava, que nunca poderia amála, que Amy nunca conseguiria ser bem-sucedida. No entanto, ali estavam as provas das suas mentiras egoístas: o mundo dele podia ser alegre e confiante, mas Zack nunca o partilhara com a filha. Guardara para as imagens alegres para as telas e deixara a Amy apenas espaços vazios para preencher com dificuldades e dúvidas. Rasgou a tela seguinte, atacando-a com os punhos, cuspindo, odiando o palhaço sorridente. Atirou-a para o lado e estacou, chocada com o que viu. O seu próprio rosto fitava-a da tela. O pai devia tê-la pintado de memória, depois de uma das primeiras visitas que fizera a casa, quando estava na universidade. Era um retrato lisonjeiro, desprovido de qualquer hostilidade. Atónita, Amy afastou o retrato e olhou para o quadro seguinte, mais um retrato, desta feita elaborado com base numa fotografia antiga que adorava. Mostrava um homem e uma menina pequena, com fatos de palhaço a combinar. A fotografia fora tirada em frente de um cenário de circo em construção, mas no quadro o pai tinha-os pintado sobre um fundo branco. Observou todas as outras telas e encontrou retratos da mãe que ela só conhecera em fotografias, de Maisie e de si própria – em criança e adolescente, já jovem adulta –, todos pintados com um toque de sensibilidade, até de amor. Porquê, pai, porquê? pensou, desesperada, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces. Isto significa que não me odiavas? Reuniu os retratos da família e levou-os para a sala. Quando a escuridão se intensificou, acendeu um candeeiro e dispôs os quadros em cima do sofá, onde podia observá-los em grupo. Estava confusa e perdida; redefinir o pai significava redefinir-se a si própria. Marcou o número de Mary Beth, em Atlanta, com esperança de obter alguns conselhos cínicos que colocassem o seu dilema em perspetiva, mas ninguém atendeu. Por fim, lembrou-se que a amiga estava em Nova Iorque. Aquele era o ano em que Mary Beth tinha esperança de dar o salto para um canal nacional. A Mary Beth não te pode ajudar, de qualquer maneira. Ouve-te a ti própria. Pela primeira vez, ouve com atenção.

Amy percorreu a casa, impaciente, tentando organizar a sua turbulência emocional. O pai não a destruíra, isso era o mais importante. Podia ser aquilo que quisesse. A forma como ele a vira na sua vida e nos seus quadros era apenas a realidade dele, não a dela. O pai nunca a conhecera: tratara-a de uma forma e retratara-a de outra; portanto, que importância tinha a opinião dele? Que importância tinha a opinião fosse de quem fosse, exceto a sua? Trancou a casa, entrou no carro alugado e apoiou a cabeça no volante enquanto respirava fundo várias vezes. Sentia-se sufocada. O calor de verão pesava, carregado de medo mas também de entusiasmo. Faz o que tens a fazer, incentivou a nova voz dentro dela. Sabes aquilo de que és capaz. Não importa como ele te julgava, não podes continuar a viver segundo essa imagem. Descobre quem realmente és. O que tens a perder?

O público no Live Wire, às segundas-feiras à noite, era paciente. Afinal, tendo pagado a entrada com desconto, estavam conscientes de que seriam sujeitos a uma série de amadores ou profissionais de terceira categoria sem nada melhor para fazer entre os trabalhos que realmente davam dinheiro. Amy lembrava-se daquele pequeno clube dos primeiros dias, quando Elliot andava na estrada e passava em Atlanta para a ver depois de uma das suas atuações de fim de semana. Os dois costumavam ir ao Live Wire para assistirem aos principiantes a fazer figura de parvos. Elliot adorava o papel de Famoso Magnânimo, distribuindo conselhos e esperança, subindo ao palco para uma curta atuação surpresa perante uma multidão adoradora. Ainda bem que naquela noite Elliot estava a cinco mil quilómetros dali. Enquanto abria caminho entre as pessoas no bar sentiu as pernas a tremer com violência e estava tão nervosa que até tinha comichão. Num pequeno escritório ao fundo de um corredor decorado com posters autografados de comediantes que por ali tinham passado encontrou um homenzinho nervoso, com roupa desportiva, que saltou por cima da secretária e a apertou num abraço. – Como estás? Há muito tempo que não te via! Céus, há séculos que tu e o Elliot não apareciam. Enquanto ele a abanava de um lado para o outro, sentiu o estômago começar a rebelar-se. – Está tudo bem. Irving… Irving, podes pôr-me no alinhamento desta noite? Em qualquer posição. Posso ficar com o último turno, se for preciso. Só quero cinco minutos para testar algum material que escrevi. – Tu? A escreveres piadas para ti? O que aconteceu ao Elliot? Quando é que começaste com isto? – É uma longa história. Podes colocar-me no alinhamento ou não? – Claro! É noite de microfone aberto. Podes ficar com o tempo todo que… Sentes-te bem? – Sim. Desculpa. Obrigada pela oportunidade. Volto já. Tenho só de ir vomitar. Passou as duas horas seguintes encolhida numa cadeira na casa de banho das senhoras, agarrada ao estômago e a rever as piadas que apontara numa toalha de papel. Disse a si própria que sobreviveria, mesmo que fosse péssima. Fazia tudo parte do negócio. Ninguém, nem mesmo os melhores comediantes,

se saía bem de todas as vezes. O mais importante era provar que conseguia subir a um palco e não passar vergonha. Ou, pelo menos, uma vergonha impossível de ultrapassar. Às dez e meia, Irving mandou uma das empregadas buscá-la. – Entra assim que o próximo tipo terminar – indicou a rapariga a Amy, enquanto fumava um cigarro à pressa. – O fumo está a incomodá-la? – Não, eu tenho sempre este ar de Drácula – respondeu Amy. Molhou o rosto e olhou para o espelho. Tu és boa. Tu és capaz. Saiu da casa de banho com passos instáveis. O pânico que crescia dentro dela era tal que quase correu para a saída. Um comediante estava a fazer animais de balões no corredor e uma girafa rebentou a centímetros dos ouvidos dela. Correu para o pequeno e estreito corredor que levava ao palco e, a tremer, tentou respirar devagar. No palco estava um corretor da Bolsa a contar piadas financeiras. O público não se ria. Dentro em breve, seria ela a passar aquela humilhação. O corretor acabou rapidamente. Amy encostou-se à parede e fechou os olhos. Irving apertou-lhe o ombro quando passou em direção ao palco. – Tudo bem? – Claro! – A sua voz estava uma oitava mais acima do que o habitual, como um clarinete desafinado. Não se lembrava das primeiras duas piadas. Começou a recuar com pequenos passos. Se tivesse sorte, conseguiria sair antes de Irving começar a apresentá-la. Mas ele foi demasiado rápido. Correu para o microfone. – A seguir temos uma velha amiga minha que passou por cá esta noite para tentar dizer umas piadas. Por favor, deem as boas vindas a Amy Miracle. Só o pior dos cobardes fugiria naquela altura. Amy ainda ponderou a hipótese, mas os seus pés começaram a mover-se para a frente. Subiu uma pequena rampa. Pisou o chão de madeira envernizada do palco. As luzes rodearam-na. Os aplausos eram educados. Sem saber como, deu por si no centro do palco. Tinha um nó de medo na garganta. Fechou ambas as mãos sobre o metal do suporte do microfone e limitou-se a olhar para o público, incapaz de abrir a boca. Os espetadores olharam para ela. Após uns vinte ou trinta segundos, as empregadas pararam o que estavam a fazer e também ficaram especadas a olhar. Oh, céus, isto é terrível. O Comediante Catatónico. Alguém no escuro da pequena sala soltou um risinho. Não era um som agradável, mas pelo menos quebrou a monotonia. Procura conquistar a simpatia deles, pensou Amy, desesperada. Limita-te à verdade. Inclinou-se para o microfone e disse, com voz rouca: – Vocês assustam-me terrivelmente. Para sua surpresa, riram-se. Procurou um rosto entediado e estudou-o. O homem observou-a com a cabeça inclinada para o lado, como que a incitá-la: Vá lá, miúda. Faz-me rir. – As pessoas dos subúrbios são muito assustadoras – continuou, com a voz a falhar. O homem riu-se. Porquê? Ela não tinha dissera nada de engraçado. Aproximou-se mais do microfone e olhou para o

público, desconfiada. – As pessoas dos subúrbios têm os seus próprios gangues. Oh, eu sei… Pensam que estou apenas a ser paranoica. Mas já os vi. Aquelas mulheres de fato de treino, sempre em grupos, com os fones nos ouvidos… Começou a libertar-se dos nervos e a deixar fluir a conversa, e finalmente percebeu que os risos não haviam sido um acaso. O homem entediado estava sentado na beira da cadeira, a sorrir. Não podia pensar muito ou ficaria novamente paralisada. Tinha de continuar, de falar sobre o que lhe viesse à cabeça. – Também tenho medo de vendedores de mobiliário. Mais uns que têm gangues. Toda a gente sabe como podem ser assustadores. Entramos na loja e lá estão eles, com ar descontraído, encostados às mobílias, com as fitas métricas no bolso. Tentamos ignorá-los… estamos nervosos, claro, mas tentamos manter a calma. Só que eles não nos deixam. «Ei, miúda, queres ver uns sofás?» ou «Olha bem para esta cómoda, amor.» As pessoas aplaudiram. O homem de cara entediada estava a acenar para a mulher ao seu lado. Ambos riam. Amy respirou fundo, incrédula. Sabia que da próxima vez que subisse ao palco estaria assustada, e na vez seguinte, e provavelmente na milésima vez. Mas, pelos vistos, o medo podia ser engraçado. – Sabem de que mais tenho medo? De palavras grandes que têm um som embaraçoso. Como «mastigação». O que é isso? Fazer sexo oral a si próprio? O homem da cara entediada riu-se tanto que quase caiu da cadeira. Amy fitou-o com adoração. Escolhe a pessoa mais difícil da sala e concentra-te nela, aconselhava Elliot muitas vezes aos novos comediantes. Se a conquistares, conquistaste toda a sala. Ela conquistara a sala e o seu futuro. Podia lidar com o resto.

– Queres o quê? – gritou-lhe Elliot a plenos pulmões. Depois dirigiu-se à máquina de refrigerantes ao canto do escritório e deu-lhe um pontapé. Amy estava à espera daquela reação, pelo que a sua recém-descoberta confiança não se abalou. – Quero o emprego de escritora que me ofereceste há uns meses. – Porquê? – Tive de pôr o meu pai num lar e preciso de dinheiro. – Então achas que podes aparecer aqui, a rastejar… – Não estou a rastejar. Ou me dás o emprego ou não. Sou uma excelente escritora, e sabe-lo bem. – Queres um favor? Vai pedir ao génio da lâmpada. – Quero um emprego. E, na verdade, também quero voltar a ser tua amiga. Lembro-me de quando gostávamos muito um do outro. Não te restam muitos amigos e estou disposta a tentar ajudar-te… mas nas minhas condições. – Sua arrogante… – As minhas exigências são estas: não vou dormir contigo, não vou ser a tua faz-tudo e não vou

transformar-me em ama-seca sempre que decidires apanhar uma pedrada, porque de qualquer maneira isso nunca resultou. Mas serei a tua melhor escritora e a tua melhor amiga, e estarei ao teu lado enquanto recebes ajuda profissional. – Para o diabo com a ajuda! Quando estiveres disposta a viver outra vez comigo, falaremos sobre o resto. – É pena. Adeus. – Deu meia-volta e dirigiu-se à porta. – Espera! – Elliot mandou outro pontapé na máquina de refrigerantes e a sua raiva esfumou-se. – Está bem. Estás contratada. – Ótimo. Mais uma coisa. Não me importo de trabalhar horas extra, mas não trabalho à noite. – Porquê? – Tenho coisas planeadas. – Decidira manter a sua rotina de stand-up em segredo: Elliot ainda não estava preparado para lidar com toda a nova Amy. Tencionava trabalhar nos clubes mais pequenos na zona de Los Angeles, onde havia menos probabilidades de ser reconhecida. Elliot passou as mãos pelo cabelo. – Tens um namorado! – Não, só quero ter as noites livres. – Está bem, está bem! Mais alguma coisa? Com certeza que sabes o quanto anseias pelo meu corpo e que é apenas uma questão de tempo até cederes aos meus encantos. O sorriso de Amy tinha um toque de sarcasmo. – É melhor esperares sentado.

Capítulo 18

Marie entrou no sétimo mês – mais longe do que alguma vez chegara com uma gravidez – e a espera tornou-se uma tortura. Sebastien ia ao quarto dela todas as noites e ficava lá sentado, com a mão na barriga distendida, sem querer acreditar no movimento que sentia dentro da mulher. Discutiam a mudança de sorte de forma cautelosa, sempre mais educada do que íntima, mas Sebastien começou a permitir-se uma réstia de esperança. Ao longo de toda a gravidez, Marie proibira os médicos de efetuarem mais do que os exames básicos de rotina, garantindo que todos os exames nas gravidezes anteriores tinham contribuído para os abortos. «Não voltarei a violar a pureza do meu ventre», explicou a Sebastien. Este cedeu às suas crenças, preocupado apenas com o facto de o feto se estar a desenvolver. Depois de o bebé nascer teriam finalmente um interesse mútuo, algo pelo qual valeria a pena partilharem a vida. O trabalho começava a parecer-lhe uma rotina que desempenhava com eficiência automática, esquecendo as emoções ao ponto de, por vezes, ter de ir a um café para ver pessoas a rir ou a conversar, porque raramente havia normalidade no hospital ou em casa. O oitavo mês chegou sem complicações. Uma noite, Sebastien chegou a casa já tarde e descobriu Marie sentada no chão do quarto do bebé em posição de lótus, de olhos fechados, os lábios a moveremse num cântico silencioso, irradiando as suas vibrações no espaço vazio e bafiento onde ninguém entrava há anos. Sebastien não conseguiu resistir a imaginar o quarto cheio de brinquedos e mobília de bebé, com as janelas altas e austeras abertas para deixar entrar o sol num mundo agradável e repleto do som do riso do filho. Tudo parecia espantosamente possível. O nono mês foi tão maravilhoso como os restantes. O único pedido de Sebastien foi para que Marie não tivesse o bebé em casa, que era a vontade dela. Porém, tranquila e confiante como estava, Marie acabou por aceder sem mais protestos. Nada podia correr mal agora. E nada correu. Sebastien estava a fazer as suas rondas, um dia, quando chegou o telefonema da maternidade. As águas de Marie tinham rebentado na aula de ioga de quinta-feira à noite e ela seguira de imediato para o hospital. Sebastien ignorou os elevadores lentos e desceu a correr vários lanços de escadas para a ir ver. Marie estava sentada na cama, no seu quarto particular, a acariciar placidamente um cristal. Sebastien pegou-lhe nas mãos, com o cristal e tudo, e beijou-as. – Vou mudar algumas coisas no meu horário para poder estar contigo durante o parto. – Não, por favor. És um querido por te ofereceres, mas só vais distrair-me. Tenho de concentrar todos

os meus pensamentos. – Lançou-lhe um olhar suplicante. – Tenta compreender. Só acedi a vir para o hospital para te deixar contente. Agora, por favor, deixa-me gerir o parto como eu quero, tanto quanto for possível. – Como quiseres. – O entusiasmo com o nascimento próximo afastou qualquer sinal de frustração. Depois de o bebé nascer, deixaria de tolerar aquelas atitudes distantes e possessivas da mulher. Antes de sair do quarto, pousou a mão na barriga dela. A bata do hospital era macia sobre os músculos esticados. – Bem-vindo ao mundo – disse, em voz rouca.

Era quase dia quando a obstetra de Marie entrou na sala de espera. Sebastien, que estava a olhar para a janela, virou-se e ficou tenso assim que viu a expressão fechada da médica. Mil estilhaços de medo cravaram-se nele, e a sua única salvação era fingir fúria. – Se há algum problema, doutora, quero saber por que motivo esperou até agora para me informar. Se houvera alguma simpatia e compreensão por trás das sobrancelhas delineadas da obstetra, desapareceu logo. – Era impossível informá-lo de algo que só soubemos há dez minutos. A sua mulher deu à luz sem grandes problemas e está bem, fisicamente. Encontra-se fortemente sedada. – Vá direta ao assunto, doutora. A mulher ergueu o queixo. – Tiveram uma menina – respondeu. – Mas está a ter dificuldades respiratórias. Já a colocámos num ventilador. O seu estado é grave… baixa pulsação, reflexos fracos, má coloração. Marquei um eletroencefalograma. Odeio ter de lhe dar esta notícia, mas suspeito que a sua filha tem anencefalia. Sebastien morreu por dentro. O horror era quase palpável. Depois de tantos anos de espera… Ela está a sofrer. Valha-me Deus, trouxe a minha filha para um mundo de total e terrível sofrimento. Treinado desde a infância a esconder o sofrimento, perguntou bruscamente: – Se a criança tiver anencefalia, quanto tempo de vida tem? – A criança? A sua filha? – perguntou a médica em tom ácido. – Não mais de uma semana, no máximo. Talvez um dia ou dois. Estes bebés… é trágico… – Sim, bom… É quase certo que não se apercebe do que está a acontecer. – Saiu da sala, estalando os dedos para que a obstetra o seguisse. – Quero saber todos os pormenores. Análises completas… – Um momento! – A médica agarrou-o pela manga da bata. – Estamos a falar da sua filha! Sangue do seu sangue! O que pensa que vai fazer? Sebastien parou e, calmamente, soltou os dedos dela do braço. Salvar a filha daquele arremedo de vida era a única coisa que lhe importava. Encarou a médica sem pestanejar. – Vou falar com os outros hospitais – esclareceu – para ver se há algum bebé à espera de um transplante de coração.

A enfermaria dos cuidados intensivos de neonatologia tinha apenas uma paciente, uma bebé de cabelo escuro, com uma cabeça mais pequena do que o normal e uma máscara no rosto. A sua filha. Sebastien olhou para a menina, na sua prisão de tubos, e observou-a a respirar com a ajuda da máquina. Aquela anomalia constituía uma das deformações mais cruéis da natureza: a criança nascera sem encéfalo e possuía apenas o centro neurológico mais primitivo, que por sinal também já começara a falhar. Enfiou a mão no emaranhado de tecnologia e tocou-lhe com gentileza, espantado ao ver como ela era bonita. As mãos delicadas fecharam-se e a bebé pestanejou, mas Sebastien sabia que aquelas reações era involuntárias. A filha não possuía qualquer tipo de consciência, nem de si nem do mundo. Sentiu as pernas perderem as forças e sentou-se rapidamente num banco que puxou para junto da incubadora. A tremer, inclinou-se e murmurou: – Je t’aime, ma petite, je t’aime. Não era uma mentira sentimental. Amava-a tão intensamente que uma parte de si queria morrer com ela, mas não podia ceder ao próprio sofrimento quando a bebé enfrentava um tal tormento. Segurou-lhe a cabeça quando ela teve uma leve convulsão, emitindo sons suaves enquanto lhe acariciava a testa sedosa com o polegar. Não será muito mais tempo, pequenina. Prometo. O pai promete. – Doutor de Savin? Vim assim que recebi a sua mensagem. – O coordenador de transplantes esperava a pouca distância, com as roupas amarrotadas, os olhos ensonados reveladores da hora matutina e da tensão da situação invulgar. – Já terminei as verificações. Há compatibilidade com um bebé em Jenane Saint Alz. – E o bebé? Diga-me… – Duas semanas de idade. Um defeito cardíaco congénito. Neste momento está em estado muito crítico. Pode já não ir a tempo. – Porquê? – Pode não aguentar até… ah… – O coordenador agitou-se, atrapalhado. – Até podermos disponibilizar o dador. Sebastien endireitou-se. A filha estava de novo sossegada, com a cabeça ainda apoiada na mão dele. Haveria mais convulsões, muito piores do que aquela. Não a deixaria sofrer mais. Não havia alternativa, nem sentimento de culpa; nada, a não ser o sacrifício que fariam um pelo outro. – Não vamos esperar – informou. – Ela não está mais viva do que uma vítima de acidente em morte cerebral. Vou retirá-la do ventilador. Não creio que consiga respirar sozinha. – Mas se houver impulsos do tronco cerebral… – Uma TAC de um crânio vazio é uma coisa fascinante, na sua perversidade. Sugiro-lhe que refresque a memória. – Eu sei que é terrível, doutor, mas… – Os impulsos do tronco cerebral nada significam. – Mas… e se ela continuar a respirar depois de a retirar do suporte de vida? Isso seria considerado… – A voz falhou-lhe e transferiu o peso de um pé para o outro.

Vida, terminou Sebastien por ele, em silêncio. Mas apenas uma forma deplorável de existência. Fixou o outro homem com um olhar duro, desafiando-o a terminar a frase. – Estou disposto a correr o risco. O coordenador pigarreou e desviou o olhar. – Não devíamos contactar o doutor d’Albret? – sugeriu. – Está previsto que ele regresse amanhã da conferência de administradores em Nice, mas estou certo de que… tendo em conta o nascimento da neta… – Eu próprio lhe ligarei. – Antes de prosseguir? Sebastien levantou-se e encarou-o, furioso, preparado para lutar contra qualquer pessoa que tentasse demovê-lo. – Eu tomarei todas as decisões relativas à minha filha. Como diretor da Unidade de Transplantes, opto por este caminho. Se tem algum problema em relação a isso, deixa de estar na minha equipa. – Mas o protocolo… – Não se aplica à minha filha. Assumo toda a responsabilidade. Eu próprio efetuarei a recolha e o transplante. – Valha-me Deus! A sua própria filha… como é que vai conseguir? Poderia ser de outra forma?, pensou Sebastien. – Temos trabalho a fazer – ripostou, em tom seco – e não há tempo a perder com debates éticos. Reuniu todas as suas forças e lançou ao coordenador um olhar tão carregado de ameaça que o homem acenou com a cabeça e se afastou o mais depressa que conseguiu. Poder. Privilégio. Aproveitá-los-ia ao máximo, consciente de que aquela seria provavelmente a última vez.

Quando os preparativos para a operação ficaram concluídos, a bebé já não estava entubada há trinta minutos. Deitada na mesa de operações, a respirar em arquejos fracos e irregulares que se tornavam mais débeis perante os olhos de Sebastien, era como se já tivesse partido. De pé ao lado da pequena forma frágil, Sebastien fez um esforço consciente para não pensar naquilo que ia fazer; mais tarde, a memória seria agonizante, mas de momento tentou olhar para a filha sem se emocionar. Deu instruções às enfermeiras e aos médicos no mesmo tom baixo e firme que usava sempre. Eles reagiram em silêncio, todos com ar abatido, muitos deles zangados. Viu as testas franzidas por cima das máscaras, reparou no silêncio pouco habitual, na forma como evitavam tocar-lhe à volta da mesa. Sabia o que pensavam: que devia ser outro cirurgião a fazer aquilo, que um pai com sentimentos não conseguiria distanciar-se, que ele via a filha como uma monstruosidade para usar e deitar fora rapidamente. Cinco minutos depois, a criança parou de respirar.

– Vamos começar – indicou. O primeiro corte, o peito frágil a abrir-se a cada movimento da tesoura e o trabalho, mais delicado, de cortar a membrana que rodeava o coração não o afetaram. Só quando viu o que restava da vida da filha: dar o último batimento, tão leve e, ao mesmo tempo, tão determinado, é que quase chorou. Mas isto, pelo menos, viverá. Minutos depois, com o coração dela libertado e silencioso na sua mão, à espera de ser ressuscitado, sentiu-se em paz.

Marie atirou-se para os pés da cama de hospital e cuspiu em cima dele. – Filho da mãe! Monstro! – A soluçar histericamente, bateu com ambas as mãos no metal dos pés da cama. – Não a voltei a ver viva depois de a levarem da sala de partos! Sebastien permaneceu calado, preso numa exaustão tão completa que parecia estar pregado ao chão. Tivera apenas tempo para trocar a bata ensanguentada por outra limpa antes de vir ver se a mulher já estava acordada. Contou-lhe o que fizera, à espera da pior reação possível, consciente de que o casamento deles terminara de vez, lamentando apenas que tal não tivesse acontecido antes. – Como foste capaz? – gritou Marie. – Mataste-a! Nem sequer esperaste que ela morresse antes de a mutilares, como se não passasse de uma experiência de laboratório! – Ela nunca esteve viva, em nenhum dos sentidos que consideramos humanos. – Não era humana no teu mundo cruel! Não era humana porque a querias usar! – Há outro bebé que continuará vivo graças a ela. Era a única contribuição que a nossa filha podia fazer. Não compreendes? A sua vida teve dignidade e valor. Houve um motivo para ter nascido, graças àquilo que eu fiz. Ela não foi um erro. – Para de racionalizar! Não a amavas, e mal podias esperar para te ver livre dela! Pois bem, agora já te podes ver livre de mim também! Odeio-te! Vou deixar-te! – Nem sei porque nos tolerámos um ao outro durante tantos anos. Conveniência e sentido prático, suponho. Não precisas de me deixar. Fica com a casa. Eu saio. – Vai! Vai para o inferno! Foram as trevas dentro de ti que não nos permitiram ter um filho! Devias ter morrido com a tua mãe. Estavas destinado a morrer! Pensei que conseguia conquistar o mal que te rodeia, mas ninguém consegue. A tua mãe condenou-te e tudo o que verás, para sempre, serão sombras da vida! Havia alguma verdade no que Marie dizia, mas não a suficiente. Sebastien deu meia-volta para sair. – A minha mãe foi apenas uma vítima do egoísmo do meu pai. – Oh, sim, vamos falar sobre o teu pai. Sim, sim, belo sentido de oportunidade, Sebastien. – Marie soltou uma risada histérica. – Pensei que eras tão perfeito para mim. Não queria amar mais ninguém depois da morte do meu primeiro marido. E tu não te importavas de não ser o primeiro no meu coração. Perfeito. – Inclinou-se para a frente, com o queixo levantado, os olhos a brilhar. – O teu pai concordou. Sebastien virou-se para Marie, vacilante, e segurou-se ao varão da cama.

– O que queres dizer? – O teu pai pediu-me para ir ter contigo a África. Conversámos muitas vezes sobre o assunto antes de eu ir: o comte queria que casássemos e que eu te trouxesse para casa, onde era o teu lugar. E eu, como uma idiota, dei-lhe ouvidos. – O meu pai não se limita a falar. Ele suborna. O que é que te ofereceu? – Odeia-lo tanto que pensas sempre o pior dos seus motivos… Ele queria dar-te tudo; o controlo dos negócios da família, um mundo de oportunidades que nenhum simples médico alguma vez poderia ter, mas sabia que tu recusarias. Assim, fez planos para deixar tudo ao teu primogénito. Uma fortuna, um pequeno império… tudo para o nosso primeiro filho. Suborno? Não existiu: apenas um acordo tácito acerca da herança e a promessa implícita de que eu nunca o afastaria dos netos. O impacto da manipulação do pai atingiu Sebastien como um soco. Ao longo de todos aqueles anos, encontrara satisfação na convicção de que estava a punir o pai pelos pecados do passado. Agora percebia que o pai nunca fora punido, nem sequer enganado. Exceto agora. Não haveria nem filhos nem mais casamento. Os caminhos para a manipulação estavam fechados. Uma vitória para Sebastien, mas por um preço terrível. Assoberbado pela raiva e pela frustração, olhou para Marie. – E achaste que essas promessas compensavam a luta hercúlea que travámos durante tantos anos? A tua ambição era assim tão grande? – Sim! A nossa relação seria tolerável se tivéssemos filhos, tens de o admitir. Mas agora, até eu vou desistir de ti. Sorri, Sebastien: desta vez desapontaste o teu pai de forma magnífica! Sebastien esticou o braço e agarrou-a pela garganta. Sabia exatamente que pressão usar para a assustar, mas sem a magoar. Marie soltou um som estrangulado e agarrou-se ao braço dele. Trocaram um olhar de medo e fúria, e Sebastien inclinou-se para a mulher. – Amavas a nossa filha? Com as lágrimas a deslizar pelo rosto, Marie respondeu: – Sim. – Então guarda a memória dela. É o único legado que a tua ambição louca te deixou. Largou-a e Marie deixou-se cair na cama, escondeu o rosto nos braços e chorou sentidamente. Sebastien lançou-lhe um olhar de desprezo, a pensar nos sete anos de casamento que nunca deviam ter acontecido, e que nunca teriam acontecido se a sua própria ambição e orgulho não o tivessem deixado cego para as emoções.

Nessa tarde, passou pelo escritório do pai e contou-lhe o que acontecera com a bebé. A notícia derrotou Philippe de Savin como nada conseguira antes. Sebastien viu a postura firme e elegante abaterse e os olhos azuis turvarem-se com fadiga. A idade pareceu apanhá-lo em meros instantes. – Ainda podes manipular os filhos da Annette – recordou-lhe Sebastien. – Embora não tenham o teu

sobrenome, estou certo de que acabarás por te habituar à ideia. – Sai – ordenou o pai, virando-se de costas para ele. – Não consigo continuar a lutar contigo. Sebastien soltou uma risada amargurada. Nunca acreditaria naquilo.

Christian d’Albret fez-lhe um ultimato – demitir-se do hospital ou sofrer as consequências por ter quebrado o protocolo. Se Christian não se tivesse envolvido pessoalmente, o assunto teria sido esquecido: havia um acordo tácito entre os médicos, quando havia dilemas morais que envolvessem os próprios ou as suas famílias. Todavia, há anos que Christian antipatizava com o genro, e Sebastien sabia que lhe dera a oportunidade perfeita para se vingar. O sogro, dominado pela raiva, estava decidido a destruir o orgulho, o casamento e a carreira de Sebastien de um só golpe. – Achas que serás bem-vindo em algum outro hospital do país? – perguntou a Sebastien. – Não. Vou certificar-me disso. Pega na tua carreira… ou no que resta dela… e vê se alguém te deixará sequer entrar. Oh, e vou usar também a influência do teu pai. Ele está tão furioso como eu. – Furioso, não – respondeu Sebastien com frieza. – No fim de contas, era apenas um descendente do sexo feminino. No entanto, como o meu pai nunca perderia uma oportunidade de me humilhar… – mencionou, enquanto saía do gabinete. Após anos de dedicação, tudo o que lhe restava era uma fria sensação de fracasso ao contemplar o futuro. Sabia que era um líder, que sempre o seria, mas o vazio que há tanto tempo se escondia nas franjas da sua vida ameaçava agora engoli-lo. Marie entrou com o pedido de divórcio e depois partiu para passar uma temporada em Lyon, com familiares. Sebastien isolou-se na casa que fora de ambos e dispensou os empregados. Dormia a horas estranhas do dia e da noite, comia apenas quando se lembrava, lia maçudos livros filosóficos que já não faziam sentido. Uma noite, pegou na caixa lacada que guardava no roupeiro e retirou o velho revólver. Desmontou a arma e limpou-a com todo o cuidado, voltou a montá-la e deixou-a em cima de uma mesa. Nas horas que se seguiram, olhava para ela sempre que entrava no quarto, sem nunca articular o pensamento, mas consciente dele, apesar disso. Por fim, cedeu ao fascínio mórbido: estaria ou não condenado? Perto do nascer do dia, tirou novamente a caixa lacada da gaveta de baixo do roupeiro e, desta vez, retirou a caixa de balas. Pegou na arma e nas balas e saiu para a varanda. Havia uma lua brilhante suspensa no céu de outono. Tocou na ponta do cano da arma. Seria uma atitude cobarde, ou apenas o realizar de um destino que o perseguia desde a infância? O Ankou estava à espera há quase trinta anos para retificar um erro, e Sebastien cansara-se de fugir. Ninguém se vai importar. Fá-lo. Ofegante, com movimentos seguros e pensados, abriu a caixa das balas e enfiou os dedos lá dentro. E tocou na ficha amolgada e redonda. Sebastien tirou o colar da caixa e ergueu-o sob o luar, atónito e incrédulo. A lógica disse-lhe que uma

das criadas, ou talvez mesmo Marie, encontrara o objeto depois de o atirar para as sebes e, por algum motivo desconhecido, o guardara na caixa das balas. Não! Sentiu as mãos a tremer. As pernas fraquejaram-lhe e sentou-se no chão de pedra frio da varanda. Não conseguia tirar os olhos da ficha. Sabia reconhecer um sinal quando o via. O objeto reluzia sob a luz, recordando-lhe que em tempos tivera uma oportunidade de ser mais do que a soma de amargura e orgulho. De súbito, apercebeu-se do horror do que lhe passara pela cabeça fazer, meros segundos antes, e soube que tinha de mudar completamente a sua vida se queria sobreviver. Tinha de começar uma vida nova onde pudesse alimentar as emoções que estavam mirradas por anos de abandono. E, quando se sentisse outra vez forte, tinha de encontrar Amy.

Quarta Parte

Capítulo 19

Uma vez que Amy continuava a recusar fazer parte da vida de Elliot, ele desfilava pelos estúdios com uma variedade de mulheres deslumbrantes só para a aborrecer. Amy não tinha coragem para lhe dizer que os ciúmes que pudesse sentir eram insignificantes em comparação com o seu desejo de que o exnamorado deixasse de a importunar e assentasse de vez. – Quem é aquela? – murmurou a maquilhadora do programa enquanto viam uma loira de pernas compridas, com um fato preto justo, entrar no camarim de Elliot e fechar a porta. – Outra modelo-atriz. – Amy deu meia-volta e dirigiu-se com passo decidido aos escritórios. – Oh, uma dessas criaturas indefinidas. – A maquilhadora seguiu-a, ansiosa por mais informações, tal como todos os outros membros da equipa. Gostavam de estar sempre em cima das atividades e mudanças de humor de Elliot. – Já entrou nalguma coisa? Amy riu-se. – Claro. Protagonizou vários anúncios de desodorizante: desconfio até que a maior parte do talento dela está nas axilas. Só espero que não pegue ao Elliot uma doença venérea. Se bem que, com a idade dela, pode muito bem ser assadura das fraldas. A maquilhadora desatou a rir-se. De súbito, a porta do camarim de Elliot abriu-se de rompante. Amy virou-se, desconfiada, e viu-o sair para o corredor, em tronco nu, com as calças meio desabotoadas, um telemóvel na mão. Parecia atónito. Quando viu Amy, gritou: – Quero falar contigo já! Amy preparou-se e dirigiu-se-lhe lentamente, com um sorriso calmo. – Berraste, ó Magnífico? – Andas a trabalhar nos clubes à noite! Traidora! Amy sentiu o estômago apertado. Sabia que aquele dia chegaria, mas temia o que podia acontecer a seguir. – Não te traí. O material que uso nos clubes não resultaria no programa. – Não me interessa! Andas a agir nas minhas costas, a tentar competir comigo e a fazer-me de parvo! – Não precisas da minha ajuda para isso. – Pousou-lhe a mão no braço, mas Elliot sacudiu-a. Dentro do camarim, a modelo-atriz loira estava recostada num sofá branco, indolente como um gato, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas. Amy fechou a porta e virou-se de novo para Elliot. – O que eu faço depois de sair daqui é comigo. – Devia despedir-te. – Força. Preciso deste emprego, mas não vou deixar os clubes.

Elliot começou a andar de um lado para o outro no corredor. Atirou o telemóvel para o chão e sacudiu os punhos fechados. – Um destes dias vais obrigar-me a ir longe de mais e a correr contigo! Espera até teres de implorar mais um empréstimo ao banco para pagar as contas do médico do teu pai. Não serás tão presumida se isso voltar a acontecer. E eu saberei quando estiveres desesperada. Saberei e obrigar-te-ei a rastejar. Amy sentiu-se como se tivesse sido esmurrada. – Como é que soubeste disso? – Contratei um detetive particular! É assim que descubro tudo o que quero saber sobre ti nos dias que correm. E acredita em mim, querida, ainda te vou controlar mais daqui para a diante. Vou saber em que clubes trabalhas, quanto é que te pagam e com quem andas quando não estás a trabalhar. A sensação de violação quase se sobrepôs à racionalidade. Queria esbofetear Elliot; queria descer ao nível dele e das suas feias acusações. Era assim que costumava sentir-se em relação ao pai: nessa altura odiava-se a si própria por ter medo de ripostar; agora, percebeu que interpretara mal parte desse medo. Na verdade, nunca quisera lutar ao nível do pai. Fora a dignidade, e não o medo, que a mantivera de boca fechada. Com toda a calma, estendeu a mão e tocou na mancha de batom rosa-vivo na barriga de Elliot. – Esta é das esfomeadas. Não deixes que ela te coma vivo. O humor dele mudou ao sentir o seu toque, e o queixo tremeu. – Não a quero. Quero-te a ti. Preciso que me ames outra vez. Amy sentiu a raiva incandescente dentro de si. Entre dentes, rosnou: – Espiar-me não é o que eu considero uma prova de amor. – Está bem. Acabaram-se os detetives. Prometo. Inclinou-se para a frente e Amy receou que tentasse beijá-la. Nesse momento, entraram no corredor alguns membros da equipa e Elliot recuou. – Tenho de me ir preparar para o programa – anunciou, maldisposto. Hesitou. – Não vais chegar a lado nenhum através do stand-up, querida. A competição é terrível… sabes disso. Não te quero ver de coração partido. Obrigada pelo encorajamento, pensou Amy, com azedume. – Vou correr o risco. Elliot apertou os lábios e entrou no camarim. Antes de a porta se fechar, Amy viu a loira enfiar alguma coisa à pressa numa pequena mala preta em cima do sofá. Depois esfregou o nariz e sorriu a Elliot. Amy olhou para a porta fechada com uma triste sensação de déjà-vu. Depois correu para o escritório e começou a telefonar a todos os seus amigos e conhecidos. Não tinha dúvidas de que Elliot continuaria a espiá-la, pelo que avisou dezenas de pessoas, incluindo Jeff Atwater, de que Elliot estava descontrolado. Todos prometeram não dizer nada a qualquer pessoa que pedisse informações sobre ela. Embora Mary Beth estivesse no meio das negociações para a venda do seu programa a um

distribuidor nacional, tirou algum tempo para apreciar a paranoia de Elliot. Amy quase conseguia ver a sua expressão pensativa, de olhos semicerrados, quase como um predador. – Fofinha – disse por fim, no seu sotaque arrastado –, qualquer detetive particular que tente arrancarme informação sobre ti vai ficar em mau estado. – Basta responderes «sem comentários». Depois de desligar, apercebeu-se de que se sentia conspurcada: aquilo devia ser como um divórcio litigioso, quando uma pessoa passava o tempo a perguntar-se como é que pudera alguma vez amar aquele estranho mal-intencionado que tanto a queria magoar. O que é que tal escolha dizia sobre a sua capacidade de avaliação? Apoiou a cabeça nas mãos. A verdade era que nunca amara realmente Elliot: sempre se sentira mais atraída pelo trabalho do que por ele, e não teria aturado os problemas durante tanto tempo se Elliot não fosse a porta para a carreira que ambicionava. Os sacrifícios que fizera não eliminavam o facto de que também o usara.

Sebastien encostou-se a uma das colunas de pedra que sustentavam o teto da varanda. Encheu os pulmões com o ar da noite e absorveu os cheiros do solo remexido, da floresta, das videiras e do ar ameno de inverno. O pequeno vale californiano estava repleto de tudo o que era bom na Terra, e viver ali nos últimos dois meses tinha-o ajudado a encontrar o que existia de bom em si próprio. Ainda havia momentos sombrios em que se sentia distanciado das suas emoções, mas tentava ter para consigo a mesma paciência que derramava nas vinhas outrora tão negligenciadas. Naquela noite sentia-se inquieto e bastante preocupado. Enfiou as mãos ásperas do trabalho nos bolsos das calças de caqui manchadas. Passara o dia a abrir buracos para os postes das novas latadas e sentia o corpo a vibrar com uma fadiga confortável, que esperava que pudesse aquietar-lhe os pensamentos. Ouviu o toque do telefone e atendeu. – Sim? – Fala Harry Brown, de Atlanta. – Descobriu mais alguma coisa? – Bom, encontrei a colega de quarto dela na faculdade. Chama-se Liz Vandergard e tem um programa de televisão em Atlanta. É a senhora mais simpática com quem já falei. Estivemos uma meia hora à conversa. – O que é que ela lhe contou? – Segundo ela, a senhora Miracle mudou-se para o Alasca há cinco anos, para fazer trabalho social com os esquimós. Raios, eu nem sequer sabia que ainda havia esquimós no Alasca. Seja como for, é onde ela está, algures no Norte. Também me contou que a senhora Miracle se casou duas vezes: a primeira com um cowboy chamado Bill Hickok e a segunda com um agricultor grego, de seu nome Hercule Poirot.

No entanto, tanto quanto a senhora Vandergard sabe, neste momento está solteira, embora namore há alguns meses com um trabalhador de uma plataforma petrolífera em Nome, Alasca. Um desertor russo qualquer… Michel Strogoff. Sebastien encostou-se à parede da cozinha e fechou os olhos. Bill Hickok2? Hercule Poirot? Michel Strogoff3? As credenciais de Harry Brown não mencionavam a sua incrível estupidez. – Essa é a história mais ridícula que já ouvi. – Hã? – Dê-me o número dessa Liz Vandergard. – Quando Harry assim fez, memorizou-o distraidamente. – Obrigado, senhor Brown. Já não precisarei mais dos seus serviços. Pode mandar-me a conta. – Não quer que eu siga esta pista de Nome? Sebastien revirou os olhos. – Não. Assim que Brown desligou, Sebastien marcou o número do escritório de Liz Vandergard em Atlanta. Olhou para o relógio digital em cima do frigorífico. Era tarde, mas sem dúvida que uma mulher ambiciosa como ela ainda estaria a trabalhar. Tentando controlar a impaciência, passou por uma rececionista e uma secretária antes de chegar à fala com a própria Liz. – Não desiste mesmo, pois não, Harry? – disse ela, à laia de cumprimento. O seu tom era suave e ligeiramente divertido. – Peço desculpa. Fala o doutor de Savin, como expliquei à… – Claro, claro. Belo sotaque. – Não sou o Harry Brown… – Brown? Da última vez o seu nome era Harry Garfield. A única coisa que não mudou foi a roupa interior, desconfio. Com que então, o doutor de Savin? E quer fazer-me perguntas sobre a Amy Miracle. Sebastien rangeu os dentes. – Ela nunca mencionou o meu nome? – Oh, claro que sim, doutor. Imagino até que terá falado de si ao seu patrão, o tipo que o contratou para este trabalhinho. E ele está tão paranoico que seria capaz de recorrer a tudo para obter informações sobre a minha amiga. Espere, já estou a perceber! Pediram-lhe para descobrir se ela alguma vez enganou o Senhor Fantástico – é por isso que quer saber tudo o que ela fez nos últimos anos. Bom, digo-lhe uma coisa: a única coisa errada que a Amy fez foi aturar as tretas dele. E se o seu patrão pensa que vai continuar a importuná-la ou que lhe vai fazer mal, só porque ela o largou de vez, ora, pode dizer-lhe que eu vou aí e o ponho a cantar fininho. Será que os fãs dele iam gostar disso? – A Amy está em perigo? Tem de me dizer. Garanto-lhe que sou Sebastien de Savin… – O mesmo que deixou a Amy há dez anos, sem olhar para trás. Claro que sim. Se queria cair nas minhas boas graças, Harry, escolheu a referência errada. – Vou a Atlanta encontrar-me pessoalmente consigo. Posso provar que sou quem digo ser. – Não se dê ao trabalho: não receberei ninguém que queira informações sobre a Amy.

– Pelo menos transmita-lhe uma mensagem da minha parte. – Do doutor de Savin? Nem pensar! Harry, tem de deixar de tirar ideias daqueles programas de detetives da televisão. São uma porcaria. – Farei o que for preciso para conquistar a sua confiança. Se a Amy precisa de ajuda, quero saber. Tenho de saber. – Certo. Nesse caso, diga ao Senhor Fantástico que a melhor forma de a ajudar é deixá-la em paz. A ela e a mim! E desligou. Sebastien olhou para o aparelho e praguejou, furioso. Amy estava com problemas e aquela doida da amiga não ajudava nada com todo aquele secretismo injustificado. Um arrepio percorreu-o. Pegou na lista telefónica – ia contratar uma dúzia de investigadores e seguir as pistas pessoalmente.

– És do pior! – gritou uma mulher ao fundo da sala, a voz a cortar o som dos risos. As pessoas soltaram exclamações. Amy sentiu uma pontada de pânico e corou, embaraçada. Depois recuperou e disse: – É uma chatice quando o pessoal do centro de dia vem aqui em excursão. A audiência riu, aliviada. Amy forçou um sorriso descontraído. Uma das primeiras regras do standup era manter o controlo da situação. O público ficava nervoso quando o comediante deixava um elemento desestabilizador levar a melhor. – És do piorio! – repetiu a mulher. Não havia nada mais chato do que gente pouco imaginativa: o público ficava aborrecido e era difícil arranjar respostas espirituosas para insultos básicos. Amy olhou para baixo para se certificar de que ninguém notaria a força com que apertava o microfone. Mantém o respeito do público. Não os deixes sentir pena de ti. Suspirou e abanou a cabeça, parecendo cansada. – O que é que se responde a alguém que provavelmente comprou o cérebro no Toys ‘R’ Us? Enquanto toda a gente aplaudia e soltava gritos de aprovação, a mulher que a estava a insultar, uma morena jovem de aspeto atlético, levantou-se e atirou-lhe uma garrafa de cerveja. O instinto de autopreservação sobrepôs-se ao choque e Amy baixou-se. Mesmo assim, a garrafa roçou-lhe na têmpora. No caos que se seguiu, com o segurança do clube a debater-se com a morena e o seu namorado corpulento, Amy ignorou a dor latejante junto da sobrancelha e começou a relatar a luta como se fosse um combate de wrestling. – Parece-me que ela o prendeu numa chave de braço tripla, amigos! Que técnica! Era capaz de espremer um homem até à morte com aquela atitude! E agora o namorado está a usar o famoso golpe «Gastei vinte dólares neste encontro e não saio daqui sem apalpar alguém». Mesmo depois de o par ser obrigado a sair, o público, deliciado, permaneceu agitado. Amy percebeu que não conseguiria levá-los a sentarem-se e a prestarem atenção outra vez, pelo que se despediu, saindo

do palco ao som de alguns aplausos dispersos. Nos bastidores, o gerente do clube encostou um pano com gelo à cabeça dela e perguntou, receoso: – Estás mesmo ferida? Isto vai afetar o meu seguro? – Estou bem. Não é nada. Hei de escrever sobre o assunto nas minhas memórias. A aspirina é boa para danos cerebrais? – Estava a tremer, de nervos e humilhação. Segurou o pano com gelo numa mão e abriu caminho entre a multidão de comediantes, que manifestaram a sua simpatia, apesar de Amy saber que estavam a agradecer em silêncio por aquela maluca ter estragado o número dela, ao invés dos seus. No camarim das senhoras, deixou-se cair num banco em frente de um grande espelho e estudou o galo na têmpora direita. Uma mulher com uma camisa de padrão africano e calças de ganga entrou pela porta das traseiras, com um saco ao ombro. – Estou atrasada. Como estão as coisas? – perguntou, sentando-se também. – Más. Há noites em que penso que isto não é forma de um adulto ganhar a vida. – Desde quando é que conseguimos ganhar a vida a fazer stand-up? – Bem visto. – Ouve, tenho de te contar uma coisa. Um destes dias ligou-me um detetive particular a perguntar por ti. A dor de cabeça de Amy aumentou de intensidade. – Oh, não! – Soube que tínhamos trabalhado juntas na WDIG. Disse que estava a tentar localizar-te para um cliente. Que monte de tretas! O Elliot é mesmo torcido. Amy sentiu-se agoniada. Raneeta riu-se. – Respondi-lhe que não sabia nada de ti desde a universidade. – Deu-lhe um murro ao de leve no braço e continuou. – Contei-lhe uma grande história sobre tu teres ido trabalhar para uma estação de televisão no Oklahoma, a apresentar o tempo. Disse-lhe que provavelmente ainda lá estavas, mas que tinhas mudado de nome. Dei-lhe o nome de uma rapariga que conheço lá. Ela não se importa. Amy olhou para Raneeta, espantada. Se todos os seus amigos estivessem a inventar histórias daquelas – e ela sabia que Mary Beth, pelo menos, estava –, então os detetives particulares de Elliot deviam andar com os cabelos em pé (já para não falar no próprio Elliot). Tal ideia encheu-a de uma satisfação perversa. Apoiou a cabeça dorida nas mãos e sentiu-se vitoriosa.

Outro beco sem saída. Após dois meses de trabalho incessante, a seguir dezenas de histórias falsas por todo o país, Sebastien chegara à sua última hipótese. Lutou contra o desapontamento enquanto a mulher abanava a cabeça grisalha. – Não sei quem o informou que tínhamos uma bibliotecária com esse nome e descrição a trabalhar aqui, mas não é verdade. – Agitou a mão na direção da pequena sala de paredes brancas, com as estantes modestas. Numa parede, um poster promovia as festividades pascais em Dothan, Texas, que teriam lugar

dentro de um mês. – Nem sequer precisamos de mais bibliotecárias – continuou, fitando-o com simpatia. – Podia ter-lhe dito por telefone que não há aqui nenhuma Amy Miracle; escusava de ter vindo de tão longe. Sebastien enfiou os punhos nos bolsos da gabardina por cima das calças castanhas e da camisa branca amarrotada que vestira antes de sair de São Francisco, doze horas antes. A fadiga e a frustração ameaçavam fazê-lo soçobrar. – Tenho vários investigadores à procura dela, mas tive esperança de a conseguir encontrar pessoalmente. Ao fim de dez anos, e com tanto para esclarecer, queria que o primeiro encontro fosse especial. Porém, começava a achar pouco provável que houvesse um encontro, especial ou não. Como é que uma única pessoa podia inspirar tantas histórias bizarras? Todas as pessoas com quem os investigadores tinham falado faziam relatos totalmente diferentes da vida e do paradeiro de Amy. – Parece estar a precisar de descansar – sugeriu a bibliotecária, dando-lhe uma palmadinha no braço. – Vai acabar por a encontrar. Não desista. A ironia das palavras ecoou-lhe na mente enquanto lhe agradecia e se dirigia à limusina que o esperava lá fora. Desistir? Como posso desistir de uma obsessão?

– Arrasaste esta noite, miúda. Amy virou-se na direção da voz masculina nasalada e viu um homem de cerca de quarenta anos, com cabelo ruivo espetado, a sorrir-lhe. Vestia o tipo de fato descontraído de tom pastel que alguns homens californianos consideravam obrigatório. Era vice-presidente da programação de comédia de um grande canal por cabo. – Olá, Freddie. Não sabia que frequentavas clubes nos subúrbios. – Normalmente, não, mas queria assistir outra vez ao teu número. Ver como estava a correr. Que género de acordo tens aqui? Amy sentiu a garganta seca. Bebeu um grande trago de vinho e respondeu, em voz aguda: – Nenhum. Apareço todas as noites às dez, faço o meu número, recebo vinte e cinco dólares. Se não aparecesse, ninguém daria por isso. – Estou a preparar um especial: Mulheres com Piada. Chamativo, não achas? Será uma montra para as melhores das novas comediantes do sexo feminino e tu fazes parte desse grupo. Interessada? Vamos gravar no Alexus Theater daqui a seis semanas. Amy começou a tremer, apesar de estar a sorrir. – Se me queres, aqui me tens – respondeu, tão calmamente quanto conseguiu. Freddie sorriu, satisfeito. – Ótimo. Pede ao teu agente que me ligue. – Não fiques surpreendido se a minha agente tiver uma voz muito parecida com a minha.

– Essa tua voz é bem difícil de imitar. Liga-me. – Hesitou. – Tens a certeza de que não será um problema com o Elliot? – Tenho. – Não será um problema, será um desastre. O comportamento errático e, por vezes, violento de Elliot era agora do conhecimento geral. – Não há crise – reforçou. – Neste momento só trabalho para ele, nada mais. – O programa tem estado, ah… diferente nos últimos meses. Não tem a ver com a escrita… que está melhor do que nunca… Não sei dizer exatamente o que é. – Deixa-te de delicadezas, Freddie: o Elliot está a perder o controlo e toda a gente sabe. – Bom, falamos depois. Estás no bom caminho, miúda. Amy ficou pregada ao lugar enquanto Freddie desaparecia entre a multidão. Só então se apercebeu de que havia pessoas a darem-lhe os parabéns. Distraída, agradeceu e correu para a porta das traseiras do clube. Lá fora, ao pé dos contentores do lixo, no ar agradável da noite de primavera, sentou-se num caixote e chorou. Vou chegar ao topo, Sebastien, vou mesmo. Como gostava que soubesses!

– Paciência! – implorou Sebastien ao céu noturno por cima das vinhas, com o punho fechado no ar. Naquela área isolada o mundo parecia vazio: nada, exceto ele e a década de erros que não podia desfazer. A chuva começou a tamborilar suavemente no telhado do alpendre. Não tens paciência, parecia dizer, em tom provocatório. Deu meia-volta e entrou em casa, com os ombros largos curvados debaixo da camisa de trabalho enlameada, as calças húmidas coladas às pernas doridas de carregar sacas de adubo o dia inteiro; ansioso por empurrar a escuridão fria e húmida para a rua, foi acendendo as luzes das divisões ainda por mobilar. Adorava a casa, com o corredor com vigas de madeira e os tetos altos, a lembrar as casas das aldeias francesas; a sensação sólida do chão de pedra; e a amplitude das salas, a forma como as janelas enormes tornavam o exterior parte da alma da habitação. Gostava de ouvir os próprios passos a ecoar nos corredores e de estudar as sombras lançadas pelas lâmpadas nuas nos apliques de ferro antigos espalhados pelas paredes. Naquela noite, contudo, a casa vazia troçava dele, espelhando o vazio que havia dentro de si. Furioso com tais pensamentos, dirigiu-se à cozinha. Embora ampla e bem iluminada, era uma relíquia cheia de tachos e panelas, molhos de ervas pendurados no teto, a garrafeira a preencher uma das paredes. Um dia, em breve, começaria a remodelar e a mobilar, mas por agora deixava a casa viver confortavelmente com as suas imperfeições, tal como ele tentava viver com as suas. Começou a fazer o jantar, mas decidiu que não tinha apetite. Foi para o quarto, onde algumas peças de mobília simples faziam companhia a um colchão numa armação metálica básica. Deitou-se de barriga para baixo e tentou concentrar-se no romance que estava a ler. Às vezes, ainda se espantava ao pensar quanto tempo passara sem ler um livro por prazer.

Por volta da meia-noite fechou o livro, esfregou os olhos e regressou à cozinha para beber água. Sem sono e mal-humorado, acendeu a pequena televisão e sentou-se numa cadeira junto da mesa. Apoiou o queixo na mão e olhou para o ecrã, sem grande atenção, enquanto ouvia o murmúrio da chuva no parapeito da janela. O público americano gostava de coisas estranhíssimas. Franziu a testa perante o apresentador hiperativo e sorridente, que estava a entrevistar – ou a intimidar? – um homem de idade cujo passatempo era mergulhar insetos mortos em poliuretano e colá-los em telas, às centenas, até formar a silhueta de pessoas famosas. As perguntas do apresentador eram mais cruéis do que engraçadas. Por fim, o longo dia de trabalho físico começou a fazer-se sentir e, quando deu por si, dormitava com o queixo ainda apoiado na mão. O som da música alta no final do programa acordou-o. Levantou-se, ensonado e um pouco irritado por se sentir assim. Embora nunca tivesse estado tão em forma, por vezes o seu corpo recordava-o de que só lhe faltava um ano para os quarenta. Aproximou-se do barulhento aparelho onde passavam os créditos do programa que terminara. Esticou a mão para o desligar; surpreendido, semicerrou os olhos e garantiu a si próprio que não estava a ver mal, enquanto lia e relia o nome na lista que ia passando no ecrã. Embora não conseguisse acreditar, ali estava Amy Miracle, mesmo ao alcance dos seus olhos.

Amy não dormiu muito nessa noite. Empolgada com a oferta de Freddie e preocupada com a reação de Elliot à notícia, saiu cedo de casa e fez a viagem até Burbank em tempo recorde. O programa Thornton After Hours era gravado num edifício de cinco pisos rodeado de palmeiras. Os escritores partilhavam um escritório comum no piso superior. – O Elliot já chegou? – perguntou à rececionista. Esta pareceu surpreendida. – Oh, não. Pensávamos que estava contigo. Desapareceu assim que acabámos de gravar. Pensámos que tinham isso sair e, ah… que talvez se tivessem reconciliado. Amy agitou-se, pouco à vontade. – Não. Já viram no gabinete dele? – Estás a brincar? Só entro lá com uma equipa da polícia de choque. Amy percorreu rapidamente o corredor até uma porta decorada com capas de livros de banda desenhada, fotografias do rosto juvenil e atraente de Elliot e fotos de apresentadores de talk-shows concorrentes, estas últimas enfeitadas com barbicha, bigode e chifres de diabo. Bateu, esperou e, quando não teve resposta, enfiou uma chave na fechadura. Lá dentro, no meio da decoração kitsch e berrante que teria feito as delícias de qualquer fã de Andy Warhol, havia um colchão no chão. Elliot Thornton, génio da comédia, estava lá deitado, nu e a ressonar. Ao seu lado via-se uma garrafa de bourbon vazia, um espelho sujo de pó branco, uma caixa de palhinhas e um frasco de Valium. Amy correu para ele e ajoelhou-se. Depois de confirmar que não estava mais pedrado do que o costume,

endireitou-se e encarou-o, desesperada. – Seu imbecil autodestrutivo – murmurou, pegando-lhe na mão. Elliot começara a perder a definição muscular na barriga, tinha o nariz inchado, viam-se cabelos prematuramente grisalhos nas têmporas e a sua libido, em tempos incontrolável, parecia permanentemente vencida. Porém, passara anos a cuidar dele, e os velhos hábitos custam a morrer. Quando Elliot acordou, trouxe-lhe um café e sentou-se enquanto ele o bebia. – Não estou a safar-me sozinho, querida – gemeu Elliot. – Já não te safavas quando estávamos juntos. – Vá lá; durante quanto tempo vais continuar a torturar-me? – Como estou sempre a sugerir, experimenta dar primeiro uma volta à tua vida e depois falamos. – Oh, céus, mais sermões! – Acariciou o pénis flácido e suspirou de alívio quando o membro reagiu. – Fala para o microfone. – Não, obrigada, mas por acaso tenho uma coisa para te contar. – Ah, pois: já está mais do que na altura de admitires. Quem é o filho da mãe? Amy suspirou, saturada. – Quem me dera que houvesse alguém. Seria uma conversa mais fácil. Elliot mirou-a de soslaio e parou de se acariciar. – Hã? Amy contou-lhe tudo sobre Freddie e o programa especial. Os olhos de Elliot semicerraram-se e fechou as mãos sobre a barriga, furioso. – Tenho sido simpático, à espera que voltes para mim; dei-te um emprego que não merecias só para te ter por perto! Mas agora acabaram-se as esmolas, querida! – Esmolas? – Amy tentou manter a voz calma. Uma pessoa furiosa era mais do que suficiente. – Sou tua escrava há anos. Conquistei tudo o que tenho, e sabes bem o quanto valho. É o primeiro ano em que a equipa de criativos do programa é nomeada para um Emmy! Eu contribuí para isso, Elliot. – Egocêntrica! – Acalma-te, Miss Simpatia. Não quero deixar de escrever para ti só porque me surgiu esta oportunidade. Ainda tenho um longo caminho a percorrer até ao sucesso… – Sucesso! – Elliot sentou-se e inclinou-se para ela com expressão incrédula e provocante. – Onde é que lês o teu horóscopo, querida? Estás a ser enganada! – Eu sei que ainda é apenas uma fantasia, mas vou tentar fazer nome. – Não enquanto trabalhares para mim! – Pegou no copo de café e atirou-o para o outro lado da sala, contra uma estante repleta de troféus e prémios. – Queres ter o teu velho num lar caro? Muito bem! Vais ter de arranjar outra maneira de o pagares. Acabou-se! Põe-te na rua! Amy levantou-se, dirigiu-se à porta e abriu-a, com a mão tensa no puxador. Estava tão revoltada que quase não se importou que Elliot a tivesse despedido. Quase. Aquele era o momento decisivo: ou nadava ou ia ao fundo de vez.

– Adeus – disse, baixinho. – Vais voltar! Nunca conseguirás safar-te sozinha! Não passas de uma iludida. O que é isto: uma crise de meia-idade? Raios, ainda nem tens trinta anos! – Bateu com os punhos. – És uma seguidora, não uma líder! Vão devorar-te viva! Não tens o que é preciso para jogar no campeonato dos grandes! – Limpa o nariz. Estás a sangrar. – Não conseguia ignorar o impulso para cuidar dele, mas bateu com a porta com força ao sair.

Rodeada pelos colegas, aborrecidos por ficarem sem ela para servir de intermediário, foi arrumou as coisas no seu gabinete. Quando um dos telefones tocou, alguém se afastou, de má vontade, para atender. – O segurança diz que está lá em baixo uma pessoa à tua procura – informou. – Quem? – Esperas que seja eficiente quando estou tão deprimido? Esqueci-me de perguntar. – Deixa lá, eu acho que sei quem é. É o tipo sobre o qual lemos naquele tabloide, no outro dia, o que faz joias de crânios de pombo. Liguei-lhe e pedi-lhe para passar por cá hoje. Pensei que podíamos fazer um segmento… – Lutando para não chorar, alisou rugas invisíveis na roupa e atirou a mala para a caixa de cartão onde guardara o resto das suas coisas. – Quando descer mando-o subir a ele para conversarem. Os outros gemeram e ficaram com ar ainda mais infeliz. Amy abraçou-os, um a um, e chorou um bocadinho. – Foi um prazer conhecer-vos enquanto ainda têm cabelo. – Nós descemos contigo. Acompanhamos-te na tua fuga para o mundo cruel. – Não, quero chorar baba e ranho no elevador sem audiência. Mas obrigada. Assim que se viu no elevador, com a porta fechada, pôs a caixa debaixo do braço, chorou alto por um instante e depois limpou os olhos rapidamente. Não queria parecer maluca aos olhos do homem dos crânios de pássaro, que até podia ser um tipo artístico sensível. O átrio lá em baixo estava vazio à exceção de Jackson, o segurança de meia-idade. – Onde está o tipo que queria falar comigo? Jackson apontou para uma antecâmara soalheira do outro lado do átrio. – Foi para ali. Pareceu-me irrequieto. – Andar à procura de pombos mortos com cabeças artísticas deve ser enervante. Toma conta das minhas coisas enquanto vou falar com ele, por favor. Atravessou o átrio, alisou o cabelo e passou os dedos pelo rosto. Quando chegou à porta da sala, parou, surpreendida. O homem estava de costas para ela, a sua silhueta delineada pela luz que entrava pelas janelas arqueadas. Amy estava à espera de alguém com ar de quem não tinha nada melhor para fazer do que envernizar crânios de pombo. Aquele homem, contudo, parecia-lhe o oposto: imóvel, com as mãos atrás das costas, concentrado… Amy ralhou consigo própria por estar a observá-lo sem anunciar a sua presença, mas não conseguiu evitar. Uma estranha sensação de reconhecimento apoderou-se dela,

confundindo-a. A solidão dele. A elegância inconfundível. O cabelo, da cor de chocolate negro. A aura de riqueza. Mesmo de costas, o fato parecia de extraordinário bom corte. Aquele homem não era um californiano, ou sequer americano: emoldurava-o uma aura de Velho Mundo. Quando finalmente entrou na sala, estava tão atrapalhada que quase tropeçou. Parou e respirou fundo. Sentia-se como se estivesse num sonho. O homem soltou um som exasperado e levantou as mãos num gesto impaciente. – Ne t’en fais pas – murmurou. – Sois patiente! Aquela voz. Dez anos agitaram-se dentro de Amy, deixando-a aturdida, incapaz de apreender como é que o mundo o trouxera até ali, àquele momento da sua vida quando tudo se desmoronava. Afinal, fora ele que a colocara naquela trajetória. Deu mais um passo em frente e estendeu-lhe as mãos. Quando tentou falar, só conseguiu emitir um murmúrio rouco: – Podes parar de dizer a ti próprio para ter paciência, doutor. Estou aqui.

2 Conhecido como «Wild Bill» Hickok, foi uma figura lendária do Velho Oeste (1837-1876). (N. do E.) 3 Personagem principal do romance homónimo da autoria de Júlio Verne. (N. do E.)

Capítulo 20

Sebastien voltou-se, uma reação tão rápida e intensa que Amy sentiu a força emocional como uma onda de calor. Os olhos grandes e escuros tinham agora rugas fundas aos cantos, mas não haviam perdido nenhum do seu efeito esmagador. O rosto era ainda mais brutal, como granito sujeito ao passar do tempo e às tempestades da vida. A cicatriz ainda cortava o queixo na diagonal e, por cima, a boca continuava dura e atraente. Limitou-se a olhar para ele, com as mãos no rosto, chocada. Achava que estava a sorrir, mas tinha a certeza. Sabia que estava estupefacta, louca de alegria, e que temia aquilo que ele a fazia sentir. Os olhos dele brilharam, observando-a com atenção. – Lembras-te de mim. Amy quase se engasgou com a ironia. – Claro que sim. – Mas não sei se fiz a coisa certa ao vir aqui. – Sim! – A exclamação veemente remeteu-os de novo ao silêncio. Sebastien parecia contente, mas Amy ficou apreensiva. Controla-te, pensou. Abraçou-o com força, o que era, raciocinou, uma reação perfeitamente aceitável ao ver a pessoa que mudara a sua vida há uma década, mas surpreendeu-se quando ele soltou uma exclamação abafada de espanto, levantando-a do chão e estreitando-a de uma forma que era muito mais do que um olá entre velhos conhecidos. Passados dez anos, ele lembrava-se e ela nunca se esquecera. – É tão bom abraçar-te – murmurou Sebastien. – Tão bom. A sua voz era um elixir que a embriagava, pelo que a autopreservação era essencial. Ficou tensa e soltou-o – não zangada, apenas a tentar manter alguma dignidade. Sebastien sentiu a alteração e pousou-a. Os seus braços relaxaram um pouco mas continuou a abraçá-la, com as mãos possessivamente pousadas nas suas costas. A sua expressão fez com que Amy se sentisse frágil. – Não acredito nisto – admitiu. – O que estás aqui a fazer? – Isso, minha querida Miracle, é uma longa história. – Vieste aos Estados Unidos em trabalho? – Não. Comprei uma casa a norte de São Francisco. Uma vinha antiga, com uma grande casa de pedra. Estou a viver lá. O Pai Natal existe. Tentou parecer indiferente – todavia, o transe que os envolvia fez com que parecesse um esforço ridículo. Procurou uma forma diplomática de forçar a realidade a impor-se. – Onde está a senhora esposa?

Sebastien inclinou a cabeça e fitou-a com olhar perspicaz. – Como sabes que me casei? – Oh, alguém me contou, há uns bons anos. – Divorciei-me. – Oh! – guinchou Amy, espantada. – E tu? – Uma velha solteirona. – Maravilhoso. – Ainda não estou a acreditar – disse Amy. – A sério. O que estás a fazer aqui? – O que for preciso para te explicar estes últimos dez anos. Ou melhor: vim saber se estás interessada em ouvir a minha explicação. Ou apenas em jantar comigo… com alguém que quer saber tudo o que te aconteceu. – Isso terá de ser um longo jantar. – Espero bem que sim. Amy soltou um suspiro trémulo. Mergulhara numa fantasia tornada realidade e sentia-se indefesa, tonta, alucinada. Se aquilo era a realidade, estava pronta. Acalmou-se, pigarreou e respondeu ao convite. – Gostava muito de jantar contigo. Podíamos encontrar-nos uma destas noites. Quanto tempo vais ficar em Los Angeles? A frieza na voz dela fê-lo franzir a testa. – Indefinidamente. – Quando chegaste? – Esta manhã. Vim de carro. – Deves ter saído de casa a meio da noite. – Sim. – Alguma emergência médica? – Não. Ontem à noite vi o teu nome nos créditos de um programa de televisão. Fiz uns telefonemas para descobrir onde eram os escritórios do programa, fiz a mala e vim-me embora. Cheguei a Los Angeles há uma hora… e aqui estou. Amy tentou lembrar-se de qual era o valor máximo de batimentos cardíacos para uma mulher da sua idade. Julgava que não devia estar muito longe do limite. – Para quando queres marcar o jantar? – Para agora, mas contento-me com logo à noite, se tiver de ser. – Já tomaste o pequeno-almoço? – Não. – Então vamos. As feições duras de Sebastien suavizaram-se num belo sorriso. – Mon dieu. Claro. Adorava.

Amy hesitou. – Sebastien, o que se passa? Não estás ocupado com trabalho? – Estou a tirar uma licença sabática. Vou tentar explicar-te tudo de maneira percetível, até porque só agora é que também começa a fazer sentido para mim. – Quanto tempo pensas ficar nos Estados Unidos? – Não tenho quaisquer planos para me ir embora. – É uma resposta muito diplomática. – Então aqui tens outra, mais específica: a minha vida agora é aqui. Quero fazer da Califórnia o meu lar permanente. Amy tinha tanto a descobrir sobre o estranho que continuava a abraçá-la – e havia tanto para Sebastien descobrir sobre ela. Não eram as mesmas pessoas de há uma década. No entanto, encaixavamse um no outro com um abandono imprudente, como se nada mais importasse e o tempo não tivesse passado. Se Sebastien não a amara e nem sequer tentara contactá-la durante todo aquele tempo, porque se importaria com ela agora? – Quando é que deixaste a França? – Em dezembro. – Ora, ainda és um recém-chegado. – Dava-me jeito ter uma guia. – Ao teu serviço. Podemos começar pelo pequeno-almoço, embora eu ache que se tentar comer alguma coisa o meu estômago vai dizer: «Fofinha, não conseguirias interessar-me em comida nem que fosse caviar.» – A tua voz… Incrível. Ainda bem que não mudou. – Deve ter sido das poucas coisas que mantive. Sebastien acenou com a cabeça. – Também estou diferente. Para melhor, em alguns aspetos, embora tenha piorado noutros. – Os seus braços ficaram tensos e perscrutou-lhe o rosto com minúcia. – Mas ainda comunicamos muito bem um com o outro, não achas? Estavam demasiado perto para evitar o toque da respiração de um nos lábios do outro, o cheiro, o turbilhão de questões e emoções mal resolvidas, e agora, subindo rapidamente à superfície, o desejo. Amy entregou-se ao beijo dele e ouviu-se a si própria emitir pequenos sons desesperados sob a ternura avassaladora do toque. Não valia a pena tentar analisar a situação. Desejava-o mais agora do que há dez anos e, a menos que aquilo fosse um sonho, ele correspondia-lhe.

Seriam precisos dias até Amy compreender a lógica por detrás de tudo o que lhe estava a acontecer: de momento encontrava-se aprisionada num tornado emocional, pelo que tudo o que podia tentar fazer era agarrar-se a qualquer coisa que lhe parecesse sólida.

Exceto que não se estava a sair muito bem: depois do almoço, quando Sebastien sugeriu, de repente, «Gostavas de ver a minha casa nova?», como se não estivessem a falar de uma viagem de nove horas até à região vinícola, retorquiu: «Estava a ver que nunca mais convidavas.» Saíram de Los Angeles sem sequer passar pelo hotel para ir buscar a mala dele, ou por casa de Amy para arranjar uma muda de roupa. Levavam apenas o que traziam vestido. Bem, tinha também a sua mala de mão e a caixa com as coisas que trouxera do escritório, o que já era alguma coisa, pensou Amy. Estavam também a meio caminho do seu destino, um facto que a deixava, ao mesmo tempo, empolgada e preocupada. O sol era uma moeda de prata a derreter em direção ao Pacífico. O Ferrari novo agarrava-se à estrada sinuosa da montanha com a precisão de um íman sobre aço. Mais uma vez, levava-a para um sítio desconhecido a uma velocidade irresistível. Recostou-se no banco. O vento levava consigo a necessidade de falar. Tinham conversado a manhã toda, mas, por acordo tácito, as últimas horas no carro tinham sido passadas em silêncio, o que era ideal para absorver o choque. Dançar no limiar das memórias era complicado; tinham falado de mil coisas – principalmente sobre ela e o seu trabalho, por insistência de Sebastien –, evitando as questões mais importantes. De cada vez que as perguntas por responder ameaçavam sufocá-la, Amy sentia-se como se esvaziasse um poço fundo apenas com as mãos. O que correra mal no casamento dele? Por que razão não havia filhos? Porque a procurara, ao fim de dez anos? O que queria dela? E, mais importante do que tudo, o que é que estava disposta a dar-lhe? – Conheces bem esta zona? – perguntou Sebastien enquanto a estrada atravessava um cenário de pequenas praias. – Não estamos longe de Monterey. – Uma aldeia piscatória? – Só se forem pescadores endinheirados. A zona é tão bonita quanto cara. Porquê? – Queres passar lá a noite? Podíamos terminar a viagem amanhã em poucas horas. A perspetiva deixou-a tonta. Estava disposta a atirar-se para um precipício se ele lhe pedisse, e isso incomodava-a. Não fazia ideia do que podia esperar de Sebastien. Ele podia voltar a desaparecer. Não teria aprendido nada sobre autopreservação? Levantou o queixo e olhou em frente. – Pode ser. Há algumas estalagens fabulosas… antigas mansões vitorianas reconvertidas. Parece-te bem? – Claro. E a ti? – Sim. – O peso da situação mal esclarecida tornou-se insustentável e Amy perguntou, sem rodeios: – Isto é uma proposta indecente? Se não é, vou ficar envergonhadíssima, mas se é, ainda não estou preparada para aceitar. – Não pensei que estivesses. Ia sugerir quartos separados. Amy riu-se e deu-lhe uma palmadinha no ombro, contente por ter uma desculpa para lhe tocar.

– Ainda bem que esclarecemos esse assunto. A Menina Boas-Maneiras ficaria orgulhosa de mim. Sebastien pegou-lhe na mão e beijou-a. – Não há motivo para ficares envergonhada. A minha proposta indecente estará à espera, quando quiseres que a faça.

A estalagem virada para a Baía de Monterey parecia saída de um livro, um local romântico que troçava dos receios de Amy e a deixava furiosa consigo mesma por serem necessários. A tensão de estar com Sebastien reduzira o delírio das primeiras horas a uma confusão taciturna que lhe causara uma enxaqueca. Não que lamentasse estarem juntos, mas sentia-se exausta do choque emocional e, quando olhou para o rosto fatigado de Sebastien, percebeu que ele também. Não falaram muito ao jantar: a sala de refeições era bonita, mas formal, e não encorajava conversas íntimas. Ao crepúsculo deram um pequeno passeio pela praia estreita e rochosa por baixo da estalagem, ainda em silêncio, lado a lado, sem se tocarem. Amy sabia, contudo, que Sebastien estava muitíssimo consciente da presença dela, tal como ela da dele, e quando voltaram à estalagem não conseguiu evitar tocar-lhe no rosto e beijá-lo ao de leve. O «boa noite» de despedida soou absurdamente inadequado, mas Amy estava demasiado perturbada para conseguir dizer mais. Sebastien puxou-a para si e estreitou-a durante muito tempo, acariciando-lhe o cabelo. – Nunca te esqueci, Miracle. Por favor, acredita. Amy recuou, de cabeça erguida, a dignidade a construir um muro entre ambos. – Estou contente por estares aqui e por estarmos juntos. Nunca me arrependi do que aconteceu entre nós: mudou a minha vida de uma forma maravilhosa e nunca mais conheci um homem que me fizesse sentir assim. Mas não vou permitir que voltes a magoar-me, não se o puder evitar. Raios! Provavelmente não posso, mas vou tentar. Sebastien levou a mão à face dela, tocando-lhe com as pontas dos dedos e destruindo o muro de dignidade. – Vai descansar. Estou apenas feliz por te ter encontrado. Posso cuidar dos outros problemas, a seu tempo. – Não estou habituada a que cuidem de mim. Sebastien sorriu, mas havia um brilho de desafio nos seus olhos. – Aprenderás.

Enquanto percorriam as divisões frescas e vazias, Amy pensou que a casa de pedra, com a sua mistura de calor e reserva, era perfeita para Sebastien. Na sala principal, uma janela grande deixava ver as colinas cobertas de latadas, tingidas com o verde novo da primavera. – Percebo porque a adoras – comentou.

Sebastien estava ao lado dela junto da janela, e afastou os olhos da paisagem para a fitar. Os seus olhos emanavam serenidade. – Nunca será um sítio grandioso ou presumido – retorquiu – mas é confortável. A seguir, mostrou-lhe um cómodo, grande e espartano, anunciando: – O quarto de hóspedes. – Olhou para a bolsa que Amy trazia ao ombro, com ar divertido. – Podes deixar a bagagem onde quiseres. Amy reparou nos romances empilhados na mesa de cabeceira, num frasco de água-de-colónia em cima da cómoda e nos fatos pendurados no roupeiro. – Desconfio, caro senhor, que este não só é o quarto de hóspedes, como é também o único quarto. – Ainda não tinham debatido aquela questão. Nem sequer tinham falado sobre quanto tempo Amy podia ali ficar, se bem que fosse ponto assente que ela ia ficar. – Eu durmo lá em cima – apressou-se Sebastien a esclarecer. – Há um sofá no sótão. – O meu nível de culpa disparou. Por amor de Deus, deixa-me ser eu a dormir no sofá velho, sujo e bafiento. – Pôs as mãos nas ancas. – É aquilo que se espera que eu diga, mas estou a ser sincera. Insisto. – Não. Tu ficas na minha cama – rejeitou Sebastien suavemente. – Oh… – Assim sonharás comigo. Se dormires no sofá, só pensarás em morcegos. – Há morcegos lá em cima? – Sim. Amy atirou a mala para cima da cama. – E o meu sentimento de culpa desapareceu. – Sorriu-lhe e perguntou: – Há algum sítio aqui perto onde se possa comprar roupa? Preciso mesmo de roupa interior e de um vestidinho barato. – Há uma cidadezinha a poucos quilómetros. Eu levo-te lá… mas só se me deixares ser eu a comprar. – Não quero que me compres uma cidade. Sebastien lançou-lhe um olhar confuso, depois percebeu a piada e abriu um sorriso radiante. – É maravilhoso ter-te aqui. Já percebi por que motivo te estás a sair tão bem como comediante. – Oh, não tentes dar-me graxa. Tens estado a custear tudo desde que nos encontrámos. És muito espertinho, doutor, mas não aprovo. Portanto, obrigada… – Amy, enquanto estiveres comigo, o teu dinheiro não serve para nada. Sei que, se estás a pagar o lar do teu pai, não deve sobrar-te muito, e também estou familiarizado com o custo de vida na Califórnia. Portanto vamos comprar roupa: algo melhor do que um vestidinho barato. E eu ofereço. Amy abriu a boca para protestar, mas Sebastien cortou-lhe a palavra. – Eu nasci rico, e sempre o serei. Não pretendo usar a minha fortuna para impressionar ou manipular ninguém: o meu dinheiro serve apenas para facilitar certos aspetos da vida. Se quiseres usá-lo, ótimo. Aproveita. Admiro a tua independência, que é nobre, mas não queiras sacrificar-te inutilmente. – Naquele tempo deste-me dinheiro porque era mais fácil do que te dares a ti mesmo! É por isso que agora não o quero!

Sebastien agarrou-lhe nos pulsos e puxou-a, beijando-a até Amy ficar sem fôlego. Depois, afastou-a um pouco e examinou o seu rosto confuso com ar solene. – Podes ter-me; porém, enquanto não decidires se tal perspetiva te agrada ou não, acho que serás mais feliz se aceitares o meu dinheiro. Mon dieu! Se eu quisesse comprar o afeto de uma mulher, seria mais mãos-largas. – Hesitou e ergueu uma sobrancelha de forma maliciosa. – Gostavas de ter um colar de diamantes? – Vestidinho. Cuecas. Lê os meus lábios. – Hum… Mais tarde, quando estiveres com menos disposição para discutir.

Era tão fácil falar com ele sobre os assuntos pouco importantes. Descalça, com um vestido de cambraia azul de alças finas, sentia-se como uma camponesa feliz na única divisão da casa que se encontrava minimamente equipada, a cozinha. Esforçando-se para que não fosse óbvio que andava atrás dele, percebeu que Sebastien fazia o mesmo, como se ambos andassem apenas à procura de desculpa para estarem perto um do outro. – Queres um copo de vinho? – ofereceu Sebastien, dirigindo-se à garrafeira que cobria uma das paredes. Amy já a inspecionara. – Tens o Savin Pinot Noir de 1987? – questionou, por sua vez. O olhar que ele lhe lançou foi primeiro surpreendido, depois fascinado. – Estudaste os vinhos de Savin? Era o tipo de oportunidade que ela imaginara nas suas fantasias, anos antes. Em francês lento, mas excelente, debitou uma lista dos melhores vinhos do rótulo da família dele e terminou com uma vénia. Sebastien aproximou-se dela e segurou-lhe o rosto com ambas as mãos. – Isso tudo… por minha causa? Amy tremeu de emoção; não valia a pena fazer joguinhos. – Sim. Aprendi francês, tive boas notas no curso e fiz tudo o que podia para te deixar orgulhoso. – Nesse caso, porque vendeste o Ferrari que te dei? – perguntou Sebastien com ar grave. – Quem é que te contou? – O Pio Beaucaire. Lembras-te dele? O administrador na casa vinícola. – Sim, sei que é. Mas como é que ele sabia? – Andava a vigiar-te. – Foste tu quem lhe pediu? – Não. O Pio fê-lo porque… não interessa o motivo, por agora. Amy baixou a cabeça. – O meu pai e a Maisie precisavam de dinheiro. Eu adorava aquele carro; sempre que o conduzia, sentia-te perto de mim. – Miracle, eu devia ter percebido. Desculpa.

– Pensaste que andei a esbanjar o dinheiro, não foi? – Foi o que o Pio me deu a entender, sim. – E acreditaste que eu era capaz… – Sim; no entanto, recordei-me de quão jovem tu eras. Mais para mais, foi um presente sem condições. – Quem podia esperar que uma miúda campónia desse valor a um presente daqueles, certo? – Para com isso! Nunca te considerei uma rústica. Não me interessa o que aconteceu ao estúpido carro. Aliás, uma das razões que me levou a oferecer-to foi exatamente para que pudesses vendê-lo se precisasses de dinheiro. – Está bem, se assim o dizes. Vamos mudar de assunto. – Forçou um sorriso mas, por trás, havia a consciência de que o passado estava a apanhar o presente, devagar mas seguramente.

Após algumas horas de sono profundo, acordou a transpirar e saltou da cama. De pé na escuridão do quarto de Sebastien, respirou fundo até recordar onde se encontrava. Olhou para o teto e pensou em Sebastien, lá em cima. Tirou a colcha da cama, enrolou-a à volta da t-shirt com que dormia e, descalça, dirigiu-se à porta das traseiras que dava para a varanda. Adorava o chão de pedra áspera e as vigas de madeira. Encostouse a um poste e contemplou a lua sobre as vinhas. Apertando os braços à volta do corpo, tentou acalmarse. – Não adianta – disse Sebastien por trás dela. Sobressaltada, virou-se. Ele estava na outra ponta da varanda. O luar revelou que vestia apenas umas calças de caqui largas. – Não consegues dormir e eu também não. Tens perguntas para me fazer. – Há tanta coisa que não sabemos um sobre o outro! E ainda não percebi por que razão me procuraste. É como se eu fosse importante para ti… – Detesto a infelicidade que percebo na tua voz. – Não é infelicidade, é choque. Ainda não tive tempo para cair em mim. – Temos todo o tempo do mundo. Mas o importante é que tu queres saber mais sobre mim, tal como eu sobre ti, e por que vieste comigo para aqui sem hesitar, como se não tivesse passado uma década. – Sinto-me como se tivesse de novo dezoito anos: suspensa de cada palavra tua, disposta a fazer tudo o que queres… Só que já não tenho dezoito anos e não sou ingénua; imprudente e impulsiva, sim, mas ingénua, não. Disse a si própria que não tinha o direito de estar aborrecida, dado que Sebastien nada lhe prometera quando a deixara da primeira vez e, na verdade, fora maravilhoso para ela – tirando, claro, o facto de não a amar. Mas não conseguia evitar estar zangada com ele por não a ter amado então, e por agora agir como se a tivesse amado.

– Trouxe muitas complicações à tua vida – disse Sebastien, perturbado. – E há questões do passado que, muito honestamente, têm de ser esclarecidas de parte a parte. Mas não devíamos permitir que isso estrague o presente. – Não quero conversar sobre isso hoje. Ainda não tenho a certeza de estar pronta para ouvir. – Eu também não estou ansioso por escutar todas as explicações; todavia, são necessárias. Anda. Podemos dar um passeio e… – Não. Por favor. Tenho medo de dizer a coisa errada. – Lembro-me de que costumas dizer exatamente o que sentias. Gostava dessa franqueza. – Não tinha nada a perder. Sabia que não me amavas como eu a ti, e também por isso nunca pensei que fosse digna de ser amada. Mas sou. – Eu sei. Sempre soube, mesmo quando tu ainda desconhecias tal verdade. Amy emitiu um som estrangulado. – Quase morri quando partiste para África. Costumava rezar para que me escrevesses, ou me telefonasses de vez em quando, nem que fosse para saber se eu estava a gastar mal o dinheiro que me tinhas dado. Mas nunca o fizeste. Porquê, se gostavas assim tanto de mim? – Fui um idiota. Queria que te tornasses uma mulher forte e autónoma, e tive medo de te prejudicar se deixasse que dependesses de mim, mesmo em pequenas coisas. Era orgulhoso e tinha a certeza de que sabia o que era melhor para ambos. – Deu um passo para ela. O luar revelou a sua expressão contida. Abraçou-a e encostou a cabeça à dela enquanto as suas mãos a acariciavam, reconfortando-a. Amy sentiu o peito dele a mover-se encostado à sua face. E, quando Sebastien lhe murmurou ao ouvido, a sua voz estava carregada de angústia. – Por causa do meu orgulho, outras pessoas conseguiram intrometer-se entre nós. Desculpa, Miracle. – Apertou-a com força. Será que ele sabe o que aconteceu entre mim e o Jeff? pensou Amy, de repente. Oh, céus! Se aquilo voltasse a surgir agora, para os separar, nunca se perdoaria. Esforçou-se por pensar com calma. Talvez Sebastien se referisse a Marie. – A culpa não foi tua – respondeu com cautela. – Talvez fosse apenas cedo de mais para ficarmos juntos. Eu também cometi os meus erros. – Foi há tanto tempo! Aquilo que recordo agora é a alegria, a forma como me fazias rir… e chorar. Chorar era bom. Amy soltou uma exclamação suave. – Oh, tive tantas saudades tuas; pensei tanto em ti, tentei ser o tipo de pessoa que tu poderias amar… – E salvaste-me a vida, mais do que uma vez. Olha.. – Enfiou a mão no bolso das calças e tirou algo que reluziu ao luar. Amy olhou para a corrente de prata. Nela estava suspensa uma espécie de moeda prateada. – O que é isso? – Lembras-te do dia em que te vi fazer truques de magia num festival nas montanhas? E depois usaste

uma ficha de videojogos para me ensinar… – Guardaste-a? – Sim. – E usava-la num fio? – Sim. Tenho de te contar o que aconteceu. Amy sentou-se numa cadeira e Sebastien aos seus pés, na beira da varanda, sem a desfitar enquanto falava. Ela ouviu em silêncio, enquanto o médico lhe contava como a ficha o salvara de uma facada em África, como a guardara nos anos seguintes, como tentara deitá-la fora e como, finalmente, aparecera no momento em que ele mais precisava. Quando Sebastien acabou, Amy estava a chorar baixinho. Ele levantou-se e ajudou-a a fazer o mesmo. – Quando estava em África, fiz planos para voltar aos Estados Unidos e procurar-te. Se não fosse o meu orgulho ferido, tê-lo-ia feito: era-me difícil aceitar as emoções que experimentava contigo, pelo que optei por as reprimir. Não era capaz nem de mostrar ou de aceitar amor. Estou a esforçar-me muito para mudar. – Estavas a planear voltar para mim? – Sim. Juro. Se eu tivesse sido franco em relação aos meus sentimentos por ti, tu sabê-lo-ias e ninguém teria conseguido roubar-te. Jeff. Sebastien descobrira o que acontecera entre ela e Jeff, aquela noite terrível que tinham passado juntos. O esclarecimento atormentava Amy, mas teve medo lhe perguntar. – Perdoa-me – murmurou Sebastien. Amy ergueu os olhos, espantada. – Porquê? – Treinei-me para ser frio e indiferente, e perdi-te por causa disso. – Perscrutou o rosto dela em busca de respostas e Amy viu o desespero silencioso no seu olhar. – Espero não te ter perdido para sempre, Amy. Sei que temos muito a aprender um sobre o outro, mas estar contigo parece-me certo. Amy deixou a pergunta sobre Jeff esfumar-se. Porquê desenterrar aquilo agora? Uma feroz necessidade de proteção invadiu-a. Nada tinha qualquer importância, exceto que Sebastien quisera encontrá-la outra vez, que guardara a velha ficha como se fosse sagrada e que nunca a esquecera. Abraçou-o e esforçou-se por falar. Tinha a garganta entupida pelos sonhos recuperados. – Não me perdeste, Sebastien. Só não sabias onde eu estava.

As carícias lentas encheram-lhe as veias como um rio de seda, fazendo-a afundar-se na cama devido ao peso do desejo nos músculos. Ele foi paciente enquanto conquistava cada pequeno reino do seu corpo com as pontas dos dedos e a exploração lânguida das mãos. Amy inclinou a cabeça para trás na almofada, erguendo ligeiramente o corpo a cada carícia, sentindo os seios doridos, túrgidos, à espera de voltar a receber as mãos dele, a boca dele, a bênção que todas as

outras partes do seu corpo tinham já recebido. O latejar rítmico entre as pernas tornou-se mais intenso quando ele a penetrou. Estendeu-lhe as mãos e vibrou por ele, o seu corpo como um instrumento afinado a reagir ao toque de um virtuoso, subindo em direção ao auge, o crescendo a transbordar para a boca dele quando a beijou e bebeu os seus gemidos. O seu prazeroso acolhimento trouxe-lhe palavras fortes de devoção da parte dele, exortações atormentadas, libertadas do local onde as prendera até agora. Amy apertou-o com lágrimas no rosto e abraçando-o com as pernas, num gesto de conforto e, ao mesmo tempo, num convite. Dentro dela, Sebastien moveu-se com uma energia convulsiva, enquanto as suas mãos lhe prendiam o cabelo e inclinava o rosto para o toque dos dedos dela. A primeira vez foi uma luta entre ternura e ânsia, contenção e caos, emoções tão em carne viva que tinham de sangrar antes de o processo de cicatrização poder começar. Mundos de luz nasceram no êxtase frenético. Após o clímax, Amy acariciou-lhe as costas, tentando acalmá-lo, bem como a si própria. Sebastien murmurou Je t’aime, je t’aime e Amy começou de novo a chorar. – Passei dez anos a falar contigo na minha cabeça – explicou-lhe. – Como gostava que me tivesses ouvido! – E ouvi, meu amor, e ouvi – assegurou Sebastien, pensando nos murmúrios que nunca compreendera por estar demasiado distante de si próprio, até àquele momento.

Capítulo 21

Do outro lado da janela aberta do quarto, a tarde de primavera estava amena e tranquila, repleta dos sussurros do vento e dos pássaros. Era impossível Amy mover-se sem se sentir atraída por tudo nele, como se Sebastien fosse um íman. – Tenho medo de olhar para ti – murmurou-lhe contra o ouvido, a respiração ainda acelerada, a recuperar. – Tenho medo de que seja bom de mais para ser verdade. Sebastien fê-la derreter com as carícias das mãos grandes, suaves mas provocadoras, a descer-lhe ao longo das costas. – Pensei que já não conseguia sentir-me assim – sussurrou em resposta. Prendeu-lhe a ponta do lóbulo da orelha com os lábios, beijando-lhe o rosto e o queixo antes de roçar a face na dela e alcançar-lhe a boca. Amy olhou para os olhos escuros e brilhantes. A felicidade que viu neles, combinada com o rubor das faces, fê-la sorrir. – Valeu a pena esperar tanto tempo por ti. Reparou no endurecimento da expressão dele e na forma como os seus olhos se tornaram distantes. Sebastien protestou quando saiu de cima dele e se deitou ao seu lado, mas Amy abanou a cabeça. Pôs a perna em cima das coxas dele e acariciou-lhe o peito enquanto estudava a mudança na sua disposição, preocupada. – Não faz mal – confortou-o baixinho, adivinhando-lhe os pensamentos. – Faz, sim. Perdemos tantos anos. Não consigo afastar este sentimento de proteção obsessivo por aquilo que temos agora, uma intuição de que pode voltar a desaparecer num instante. Pousou o dedo nos lábios dele. – Não acontecerá se admitirmos os problemas e se os quiseres resolver tanto como eu. – Problemas? – Tenho uma carreira que me exige muito tempo. É um tipo de trabalho… e de estilo de vida… completamente diferente daquilo que tu conheces. – Oh, isso. – Sebastien pôs o problema de lado com um suspiro enfadado. – Não me importo de ser o poder por trás do trono. Nós, os de Savin, sempre desempenhámos esse papel na história de França. Na verdade, é a posição mais importante. Ela riu-se. – Devia ter calculado que nada abalaria a tua confiança. – Não me importo com a devoção que dedicas ao teu trabalho, meu amor. Respeito-a. Quando eu regressar à medicina, estou certo de que também respeitarás a minha devoção.

Amy inclinou a cabeça e lançou-lhe um olhar desconfiado. – Há aí uma ameaça velada. – Nada disso: apenas a certeza de que ambos teremos de fazer cedências. Admito que sempre fui algo intransigente, mas hei de mudar. – Eu estou no extremo oposto. Estás a olhar para uma especialista em condescender. O sorriso malicioso de Amy fê-lo rir. Apertou-lhe um seio ao de leve. – Ótimo. Podes ensinar-me. – Oh, assim farei. – Nesse caso, talvez o único problema significativo seja o Elliot Thornton. Fala-me acerca dele. Amy franziu a testa e não disse nada. Sebastien passou o braço sob os ombros dela e puxou-a para si, provocando-a. – Já te contei tudo o que interessava sobre a minha relação com a Marie. Agora fala-me sobre este Thornton. Cedências, minha querida Miracle. – Lançou-lhe um olhar amável, mas autoritário. – Fala. – Preocupo-me com ele. Gostava de poder ajudá-lo. O Elliot costumava ser impecável. No entanto, acho que o que mais me atraía nele era saber que precisava de mim. Por fim, acabei por perceber que isso não significava o mesmo que gostar dele. Faz algum sentido? – Sim. No entanto, tenho uma exigência: quero-o fora da tua vida. Não sou… hum, qual será a palavra certa? – Sebastien franziu a testa. – Não sou moderno o bastante para te encorajar a continuares amiga dele. Preferia até que não o voltasses a ver. – Meu caro doutor, não há um único homem no planeta de quem precises de ter ciúmes. A mão livre de Sebastien deslizou sobre a anca dela e desapareceu entre as suas coxas. Com as pontas dos dedos, espalhou a humidade proveniente de ambos os corpos. Era uma carícia terna, sem qualquer indício de domínio. – Acredito, mas permite-me ser ferozmente territorial em tudo o que te diz respeito. Amy percebeu que Sebastien se estava a esforçar para não deixar que os ciúmes o fizessem parecer um homem das cavernas. Não era que não confiasse nos sentimentos dela – Amy sabia-o –, mas queria afastar qualquer outro homem que alguma vez a tivesse desejado. Era uma atitude surpreendentemente primitiva para um homem moderno como ele, embora a tivesse deixado tão contente que Amy quase ficou embriagada com o desejo de lhe agradar. No entanto, sabia que tinha de ser honesta. – Não amo o Elliot, mas quero ajudá-lo, se puder. Não posso prometer-te que lhe vou virar as costas se ele conseguir ser meu amigo. – Fez uma pausa, preparando-se para o que se seguiria. – O Elliot e eu já tínhamos acabado a nossa relação muito antes de tu voltares. Não precisas de te preocupar. – Não estou a acusar-te de nada. – Queres… falar sobre o Jeff Atwater? O silêncio prolongou-se. Sem a desfitar, a expressão dele tornou-se mais reservada. – Não, acho que não – respondeu, por fim. Ainda tinha a mão em cima da coxa dela e recomeçou a acariciá-la lentamente. Todavia, havia um novo brilho, duro e desafiador, no seu olhar. – Queres lembrar-

te dele? Ele sabe sobre aquela noite. Não há dúvida. – Não, o que aconteceu entre nós foi breve e terminou há dez anos. Um único e lamentável erro. – Tinhas desistido de esperar por mim, e compreendo-te. Afinal, nunca te dei motivos para pensares de outra forma. – Pôs fim ao assunto com um gesto, os seus olhos mais frios do que Amy gostaria. – Um dia, quando formos velhos e estivermos aborrecidos e não tivermos mais nada para falar, conversaremos sobre o Jeff. Mas agora não. Amy acenou, sem certezas de quanto tempo poderiam deixar aquela parte penosa do passado por explorar. – Com que então, queres ser amiga do Elliot Thornton – resmungou Sebastien, mudando de assunto. – E reabilitá-lo. – Sim, quero. Num gesto de protesto lento e enfático, Sebastien ergueu a mão e apontou para ela, como se a avisasse do perigo de testar os seus limites. Amy devolveu o olhar de censura com expressão maliciosa, enquanto os seus dedos tamborilavam no peito dele a um ritmo enganadoramente ligeiro. – Cedências – recordou-lhe. Com um brilho nos olhos, a atitude de Sebastien mudou. Parecia agora exasperado. Baixou a mão e segurou-lhe os dedos. – Seja. Cedências. – A palavra foi dita em tom duro, e Amy percebeu. Beijou-o para honrar o compromisso e esperou que isso a viesse a ajudar no futuro.

Sebastien foi com ela a Nova Iorque, para a sua audição no Late Night with David Letterman. Amy ficou fora de si quando o produtor de Letterman lhe ofereceu um lugar de stand-up num dos programas da semana seguinte. Regozijou-se com o orgulho de Sebastien. Na suite de hotel, na manhã subsequente, acordou e viu que tinha ao pescoço um colar de ouro com um pendente de diamante. – Já viste o que a fada dos dentes me trouxe? – perguntou, emocionada, fitando os olhos solenes de Sebastien. – E nem precisei de lhe dar um dente em troca. – Ela devia saber que esta é uma ocasião importante e que merece ser celebrada. – Tenho recebido muitas prendas, ultimamente. – E está mais do que na altura, acho eu. – Mas tenho de fazer algo em troca. Pela fada dos dentes, quero eu dizer. – Podias dar-lhe outro nome. Recostou-se e chamou-a com o dedo, com uma expressão presumida no rosto. A rir, feliz como nunca se tinha sentido na vida, Amy saltou para cima dele.

David Letterman gostou do número: embora constasse que considerava Elliot um idiota, quando se cruzara com eles no circuito de clubes fora sempre simpático, e aquele dia não foi exceção. Depois de terminar, Amy sentou-se na cadeira dos convidados e conversaram acerca da sua juventude no Sul. A julgar pela sinceridade de Letterman e pelos risos entusiásticos do público, calculou que se saíra bem com o chorrilho de mentiras criativas. Quando o programa foi para intervalo, o apresentador inclinou-se e deu-lhe os parabéns, pedindo-lhe para ficar mais uns minutos e convidando-a a voltar noutras ocasiões. – Se mo pedisse, acorrentava-me à sua secretária e engraxava-lhe os sapatos – garantiu Amy. Letterman aprovou a ideia. Porém, embora fosse simpático, era também malicioso: assim que o intervalo acabou, a primeira coisa que fez foi chegar a cadeira para trás e perguntar-lhe por Elliot. – Vá lá, sabemos que costumavam andar juntos – insistiu, em tom animado. – Como é uma noite de farra com o Elliot Thornton? Aposto que ele é o tipo de pessoa que faz batota no minigolfe. Amy fingiu-se atrapalhada – era fácil, dadas as circunstâncias – e contou alguns episódios inocentes sobre as aventuras de Elliot com as suas motorizadas. Na manhã seguinte, enquanto ela e Sebastien atravessavam o átrio do hotel para se dirigirem à limusina que os levaria ao aeroporto, um fotógrafo saltou de trás de uma das plantas e começou a tirar fotografias, de pronto seguido por uma jornalista. A mulher gritou o seu nome e o título do tabloide para o qual trabalhava, questionando-a com grosseria: – O programa do Elliot Thornton acaba de ser cancelado. A vossa relação contribuiu para os problemas pessoais do Elliot? É verdade que o conheceu quando era estudante universitária, e que o Elliot a seduziu durante uma orgia de sexo e drogas no seu quarto de motel? Não conseguiu perguntar mais nada porque Sebastien lhe tirou o gravador da mão e o atirou. Depois deu uma pancada na Nikon do fotógrafo, que voou contra a parede de azulejos. Amy assistiu, horrorizada e ao mesmo tempo maravilhada com a capacidade de Sebastien de os silenciar com um olhar de pura ameaça. Os paparazzi fitaram-no, boquiabertos, e afastaram-se para os deixarem passar. Após estarem em segurança dentro da limusina, Sebastien fechou os olhos e encostou a cabeça ao banco. – Suponho que exagerei. – Um pouco. – O que é isso? Amy pegou-lhe numa das mãos e beijou-a. – Esquece, doutor. Adoro as tuas intenções, apesar de os métodos precisarem de um bocadinho de trabalho. – Vai ser assim muitas vezes, não vai? Se tu ficares famosa? Amy fez uma careta. – Espero que não. Ninguém estaria interessado em mim se não fosse por causa do Elliot. Neste

momento andam em cima dele, é só isso. Sebastien? – Sim? – Aquela jornalista provavelmente vai escrever sobre ti. – Sobre mim? – Sim. Vai nomear-te como «o violento homem misterioso que roubou a namorada de Elliot Thornton». – Processo-a por difamação. Amy abanou a cabeça, infeliz. – E ela escreverá outro artigo sobre ti, e será ainda pior: eu serei obrigada a chegar a vias de facto com ela porque não vou permitir que ninguém te envergonhe, muito menos por minha causa. – A culpa não é tua. – Este género de situação não é boa publicidade para um cirurgião cardíaco. Quero que consigas trabalhar neste país sem que as pessoas se riam de ti nas tuas costas por minha causa. – Deixa-te de disparates. A minha reputação sobreviveu a muito pior. – Encostou-se e puxou-a para si. Amy abraçou-o e sentiu a fúria no corpo dele, o que a alarmou. Não queria que Elliot se limitasse a sobreviver na América. Queria que ele prosperasse. E se isso não acontecesse?

O programa especial Mulheres com Piada foi uma experiência nova e fabulosa. Foi gravado no Alexus, um teatro pequeno, mas prestigiado, em São Francisco. Amy tinha os joelhos a tremer quando pisou o famoso palco, em frente de uma plateia cheia, com câmaras a gravarem a sua atuação e Sebastien sentado algures na escuridão ao fundo da sala. Era uma das dez comediantes escolhidas. A sua agente, uma mulher enérgica chamada Bev Jankowski, pertencia a uma firma pequena e respeitável. Bev declarou que Amy estivera muito acima das outras e que estava lançada. Esperava-se dos agentes que se desfizessem em tais elogios, mas, ainda assim, Amy gostou de a ouvir. Todavia, a reação de Sebastien era a que lhe importava mais, até porque ele nunca a vira atuar. Encontrou-se com ele no corredor apinhado junto dos camarins, olhou para o seu sorriso e soube que não tinha feito figuras tristes. O artigo no tabloide fora tão mau como previra, mas Sebastien aguentara bem o seu impacto. Estendeu os braços e, com falsos maus modos, lançou-lhe: – Esperei muito tempo para te ver provar o teu talento às outras pessoas. Mas não te esqueças de que fui o primeiro a descobri-lo. A rir, Amy atirou-se para os braços dele. – A minha agente recebe dez por cento e o resto é para ti, prometo. – Hum, não sei… Duvido que ela dê tanto valor a percentagem como eu. – A Bev recebe apenas os dez por cento que são públicos. – É justo. Abraçaram-se e ficaram enlaçados um instante, a apreciar o momento e a presença um do outro. Amy

desconfiava que exibia um sorriso parvo e comovido, mas a expressão nos olhos dele indicou-lhe que estava a adorar. – Vamos lá diretos ao assunto, miúda. Nunca vi cena lamechas mais longa. A voz de Elliot era sardónica. Amy virou-se para ele. Estava magro e macilento, tinha o nariz quase em ferida e sombras arroxeadas sob os olhos. Apesar do comentário sarcástico, fitava-a com ar melancólico. – Olá, miúda. Há muito tempo que não te insultava. – A voz tremia-lhe. – Olá. – Uma vaga de carinho fê-la pegar-lhe na mão de forma maternal. – Espero que já estejas farto de não devolver os meus telefonemas. Por onde tens andado? – A visitar o Oeste Selvagem. – O seu olhar desviou-se para Sebastien. – E tu tens andado ocupada, pelo que soube. Sebastien estendeu a mão e apresentou-se. Para surpresa de Amy, Elliot fez o mesmo. Parecia quebrado, perdido. – Obrigado. Inspirou-me, sabe? Sebastien fitou-o sem maldade. – Como assim? – A endireitar a minha vida. – Lançou um olhar esperançoso a Amy. – Deixei-me das coisas más, querida. Juro. Amy abraçou-o. Não sabia se Elliot estava ou não a ser verdadeiro, mas sentiu o coração apertado por ele. – Estou orgulhosa de ti. – Recuou e estudou-o com tristeza. Conhecia demasiado bem as suas tendências melodramáticas, mas, mesmo assim, ele parecia miserável. – Se puder fazer alguma coisa por ti… – Passavas a vida a dizer que nós os dois teríamos outra hipótese, se eu me endireitasse. Pois bem, vim cobrar a promessa. – Elliot, não é assim tão simples. – Ergueu os olhos para Sebastien. O médico tinha os maxilares cerrados com força, embora parecesse mais aborrecido do que zangado. Sabia que o comediante não era uma ameaça. Amy agarrou-o nos ombros e sugeriu, no tom mais ligeiro que conseguiu: – Porque não vamos almoçar um destes dias? Podemos conversar. Sabes que ainda sou tua amiga. – Esquece este tipo, querida – foi a resposta de Elliot ao convite, acenando com a cabeça na direção de Sebastien. – Andei a investigá-lo. Aposto que não o conheces tão bem como pensas. – Oh, Elliot, és mesmo um trafulha… – Sabes que ele matou a própria filha? Amy bloqueou Sebastien, que dera um passo na direção de Elliot. Quando olhou para o seu rosto, viu fúria controlada, sim, mas também aceitação. – Onde é que o seu investigador foi buscar essa informação distorcida? Elliot não tirou os olhos de Amy. O horror parecia tê-la hipnotizado.

– A filha nasceu deformada – continuou Elliot – mas o teu amiguinho não esperou que ela morresse para a rejeitar: pegou na faca de cirurgião, cortou, aproveitou o que havia para aproveitar e deitou fora o resto. Foi despedido por causa disso e deu cabo da sua reputação. Não admira que tenha vindo para os Estados Unidos à tua procura. Ele contou-te isto? – Elliot, é melhor dares meia-volta e saíres daqui. – O silêncio terrível de Sebastien deu forma a um medo terrível dentro dela. – Pergunta-lhe, querida. E depois liga-me, está bem? – Virou-se e afastou-se. Amy ergueu os olhos para Sebastien e compreendeu que Elliot falara a verdade, pelo menos em parte. – Vamos para um sítio sossegado conversar – pediu-lhe Sebastien, com ar fatigado. – Talvez agora eu compreenda o passado bem o suficiente para to poder explicar.

A Baía de São Francisco estendia-se abaixo da pequena colina do parque, um espelho negro e enorme que refletia as luzinhas dos barcos e da cidade. Porém, o nevoeiro da noite começava a cair, ameaçando a paisagem límpida. O brilho do candeeiro de rua perto deles já estava a ficar encoberto pela neblina. Amy encostou-se ao tronco retorcido de um pequeno carvalho e perguntou a si própria se aquele seria mais um ponto de viragem na vida dela e de Sebastien. Pareciam encontrar sempre sítios isolados e belos para momentos assim. Com os olhos perdidos nas trevas à distância, de cabeça erguida, as mãos apertadas, Sebastien falou. Amy ouviu-o descrever a criança que ele e a mulher tanto tinham desejado, e, embora soubesse que não houvera amor naquele casamento, sentiu-se como uma intrusa, tal como quando estivera de pé, à chuva, a observá-los junto à propriedade dele. Nunca lhe contara, e achava que nunca o faria. No entanto, sofreu por Sebastien quando ele falou sobre o quanto amara a filha, a forma como ela morrera e os seus motivos para fazer o que fizera. Quando terminou, Sebastien virou-se para Amy, perturbado. – O que pensas de mim agora? – Penso que tens uma enorme capacidade de amar e que tomaste a decisão certa. – Hesitou enquanto tentava recompor-se, com as emoções à flor da pele. – Mas gostava de saber o que pensas de ter filhos, depois de tudo aquilo pelo que passaste. – Sentiu um arrepio enquanto pesava o silêncio dele. – Por favor, Sebastien, responde-me. – Não quero voltar a passar por todo aquele sofrimento. – A sua voz tinha uma tonalidade desesperada, amargurada, mas Amy percebeu que era em parte tristeza, em parte vergonha. – Não faço ideia da razão pela qual a Marie e eu não conseguimos ter um filho saudável… não havia nenhum motivo aparente. Se eu fosse o filho da mãe insensível que muitos pensam que sou, seria fácil voltar a tentar. Mas correr o risco de sujeitar outra criança àquela tortura seria obsceno. Não posso fazê-lo. Amy levantou as mãos, entre a neblina, e levou-as ao rosto. – Tens medo de haver algum problema contigo? Não acredito nisso. Por favor, não acredites também.

– Não posso arriscar. Se tivesses passado pelo que eu passei… – Mas não passei, e tenho fé. – Susteve a respiração e olhou para ele. Depois acrescentou, em tom gentil: – O que estás a dizer afeta o nosso futuro juntos. Queres mesmo tomar essa decisão sozinho? Sebastien pegou-lhe nas mãos. – Não. O que tu pensas é crucial. Tens alguma dúvida de que nos vamos casar? Todos os anos de espera, de amor, encaixaram no seu lugar. – Nenhuma – murmurou. – Mas eu quero ter filhos. Sebastien inclinou a cabeça. – Não quero que sofras como a Marie. – Tinha a voz rouca; Amy sabia que se esforçava para se controlar. Aproximou-se e tentou confortá-lo. – Tudo o que quis foi sempre difícil de conseguir – sussurrou-lhe. – Não preciso de garantias de que as coisas vão resultar na perfeição. Se aprendi alguma coisa com a forma como cresci, é que aquilo de que tenho medo acaba por ser o que me torna forte, confiante e feliz… se não fugir. Sebastien ergueu a cabeça e fitou-a com a testa franzida. – Nunca fugi dos meus medos: sempre os enfrentei, e garanto-te que os resultados nunca me fizeram feliz. Todavia, fortaleceram-me e tornaram-me confiante. – Apertou-lhe as mãos com força e Amy afastou o rosto da intensidade daquele olhar. – Amy, decidi fazer uma vasectomia. A tremer, ela libertou-se e recuou. A perspetiva de Sebastien pôr fim a uma parte tão íntima do futuro de ambos estava para lá da sua compreensão, mas, ao mesmo tempo, esforçou-se por pensar em todas as desilusões que ele sofrera e no medo que tinha de nunca ser capaz de ter um filho saudável. – Compreendo por que razão tens medo. Mas não nos faças isso a nós, a ti próprio. – Não teria objeções se quisesses adotar… – E tu? Não desejas um filho teu? Sebastien abanou a cabeça. – No entanto, não te negarei o direito de seres mãe… – Não é suficiente. – Olhou para ele, infeliz. – Nunca pensei muito em ter filhos, mas apenas porque nunca achei que o Elliot tivesse feitio para ser pai. No entanto, quero construir uma família: nunca tive… uma família como a das outras pessoas… e acalento este sonho obstinado de obter tudo aquilo que me faltou em criança, o que inclui criar filhos felizes e bem ajustados. – Queres obter uma vitória moral sobre o teu pai, reconstruindo a tua infância através dos teus filhos. Achas que são motivos suficientes para trazer crianças a este mundo tão feio? – O meu mundo não é tão negro como o pintas. – Apenas porque não tiveste de ver a tua filha morrer; não seguraste o seu coraçãozinho nas tuas mãos, consciente de que era tudo o que podias salvar dela… Tudo o que valia a pena salvar. – No entanto, se tivéssemos um bebé saudável pensarias de maneira diferente, não? A neblina estava agora a assentar à volta deles, cinzenta e fria. Sebastien passou a mão pelo cabelo, tão perturbado que Amy lhe pegou na outra mão.

– Como te sentirias? – insistiu. – Ficaria preocupado, com medo de cometer os mesmos erros que o meu pai. – Estudou a reação dela com expressão séria. – Tu tens a certeza de que consegues triunfar sobre o passado. Eu não tenho assim tanta certeza de conseguir derrotar o meu. – És um homem bom, Sebastien. Não és como o teu pai, e também não és o meu pai; não permitirei que te transformes em nenhum dos dois. Sempre me incentivaste a acreditar em mim própria e a ir atrás daquilo que quero. Pois bem: quero filhos… nossos. E acredito em ti. Sei que serás um pai maravilhoso. Tenho a certeza. Sebastien segurou-lhe nos ombros. – Miracle – disse, carinhosamente –, o teu sobrenome engraçado sempre foi tão apropriado. Meu milagre. Mudaste tanto na minha vida, em mim. Agora que te recuperei, sinto satisfação, prazer e uma calma dentro de mim que nunca havia sentido. Quero ter-te ao meu lado para o resto da minha vida. Tentarei fazer-te muito feliz. – Hesitou e a suavidade desapareceu-lhe do rosto. – Mas não correrei o risco de te perder no parto. Também temo isso, sabes. Amy chorou baixinho, acariciando-lhe a face com os dedos. – Sê paciente contigo próprio. Ainda não tiveste tempo suficiente para sarar. Sebastien puxou-a para os seus braços. – Não. Tenho de ser honesto. O que aconteceu com a minha filha quase me destruiu. Nunca o esquecerei. Podes achar que é uma ideia mórbida, se quiseres, mas penso que nunca terei descendentes. Acho que não estou destinado a isso. Algo correrá sempre mal. Toda a vida senti que era perseguido por um qualquer destino terrível, que já há muito me devia ter alcançado. Por favor, tenta compreender. Se algo te acontecesse, nunca me perdoaria. Se morresses a dar à luz o meu filho, morreria também. As lágrimas angustiadas de Amy deslizaram-lhe pelos dedos quando lhe segurou no queixo. Acreditava que conseguiria ensiná-lo a confiar na felicidade; sabia que nunca o amaria mais do que naquele instante. – Promete-me só uma coisa. Não faças ainda a operação, e nunca sem antes falares comigo. Por favor. – A voz falhou-lhe. – Sabes que não te vou surpreender com um bebé que não desejas. Mas tens de me prometer. – Meu amor, não duvido da tua honra. – Endireitou-se e trocaram um olhar terno; Sebastien assentiu. – Não farei nada sem que estejamos primeiro de acordo. Juro. – Beijou-a suavemente nos lábios. – Ainda casarás comigo, depois de tudo o que te contei? Amy segurou-lhe no rosto com as duas mãos. – Claro que sim. Tenciono fazê-lo desde que tinha dezoito anos. – Graças a Deus, acreditaste em mim. Não quero destruir nunca essa confiança. – Não o farás. Beijaram-se. Sebastien franziu a testa como se estivesse a olhar para o passado, enquanto Amy via apenas um futuro com batalhas que estava mais do que disposta a travar.

Capítulo 22

– Tens de fazer uma digressão – sugeriu-lhe a agente. – Graças à presença no Letterman e ao especial, podes ser cabeça de cartaz nos melhores clubes em todo o país. Estamos a falar de uns dois mil dólares por semana só no início, já para não falar em mais presenças em talk-shows e nas audições que quero que comeces a fazer para a televisão. Não é altura para ficares em casa enroscada com o teu homem. Amy sorriu. – Esquece. Vou casar-me na mesma dentro de duas semanas. – Nem me lembres. Até fico agoniada. – Uma cerimónia pequena e íntima, numa capela na região vinícola… – Então porque é que não me convidaste? Tens medo que eu afogue as mágoas em chablis nacional barato? – Não há convidados. Só o sacerdote e a mulher dele. – Eu também casaria às escondidas, se estivesse a arruinar a minha carreira. – O Sebastien e eu sempre fomos pessoas solitárias, percebes, mas agora somos nós os dois contra o mundo… – Oh, por amor de Deus, não comeces a soar como a letra de uma canção pirosa. – … pelo que decidimos que a cerimónia seria só nossa. – É tudo tão doce que tenho de fazer uma análise aos diabetes. Amy franziu a testa e olhou para o horizonte enevoado de Los Angeles. – Sei que pensas que estou a dar um passo demasiado grande, demasiado depressa. E sei que partir em digressão seria a coisa indicada a fazer, em termos da minha carreira. Mas há mais do que uma forma de fazer as coisas. Bev, posso ficar em Los Angeles e trabalhar na Comedy Store, o que não é uma má maneira de ter exposição, como terás de admitir. Posso ir a todas as audições que quiseres, incluindo para os filmes infantis de que me falaste. Afinal, se há voz feita para desenhos animados, é a minha. Bev escondeu o rosto nas mãos e suspirou. – Mas não uma digressão. – Exato. – Diz-me uma coisa: esse homem vale mesmo o sacrifício? – Sim. – Mas contaste-me que ele também vai retomar a sua carreira. Pensava que os cirurgiões cardíacos tinham vidas agitadíssimas, pouco tempo livre. Ele quase nem daria pela tua ausência… – Acho que daria se eu estivesse fora meses seguidos – retorquiu Amy secamente. – Além disso, o

Sebastien também está a fazer sacrifícios. É provável que não se dedique à prática privada. Teve uma oferta para trabalhar num instituto de investigação. – Está bem, está bem, ganha o amor verdadeiro. Vamos concentrar-nos nas coisas positivas. Toma. – Entregou uma pasta a Amy. – Gostava que fosses a uma audição para um pequeno papel num telefilme. Uma audição. Ia mesmo pedir a desconhecidos que acreditassem que era atriz. Todos aqueles anos como fã dedicada, a decorar as falas e os gestos dos grandes atores, talvez lhe viessem agora a ser úteis. Sebastien estava à sua espera quando voltou para o quarto de hotel. Falou-lhe sobre a audição. – Mesmo que não consiga o papel, é assombroso. Quem diria que eu havia de estar a fazer audições para um filme. Sebastien aplaudiu. – Não estou surpreendido. Tens um talento natural. – Hum… Mais, mais. – Beijou-o. – Como correu a reunião no instituto? – Muito bem. Parecem interessados em mim. – Fez uma vénia. – Conheço a sensação. As negociações estão então a andar? – Sim. – Olhou para o sorriso radiante no rosto de Amy. – A ideia agrada-te? – Só quero que te sintas em casa aqui. E que sejas feliz. – Já sou feliz, minha querida Miracle. Mas, por falar em casas, precisamos de outra casa na Califórnia: um bocadinho mais perto de Los Angeles. Julgo que também devíamos ponderar adquirir um apartamento em Nova Iorque, uma vez que as pessoas que trabalham no mundo do audiovisual parecem estar sempre a saltitar entre cá e lá. E talvez uma casa de campo na Georgia. Gostavas? – Colecionas casas como outros homens colecionam garrafas de vinho. – Não fiques tão surpreendida. Não será divertido, escolher as casas e decorá-las? Não gostavas? Amy encostou-se a ele, a rir. – Tenho tanto jeito como uma pedra para decoração de interiores. O que achas de estofos de napa? – Contratamos um profissional. – Acho que não há terapeutas especializados em tratar pessoas com disfunção de decoração. Sebastien riu-se. – Queria dizer decoradores profissionais, claro. – Vou precisar de algum tempo para me habituar a isto tudo. – Ao quê? – À felicidade. Sebastien pegou-lhe na mão e conduziu-a através do quarto, até à casa de banho sumptuosa. A água borbulhava na banheira enorme. Havia velas acesas à volta e um balde de prata com uma garrafa de champanhe. – Uma celebração – indicou, enquanto começava a despi-la. – Da felicidade.

Para Amy, o som do telefone a tocar a meio da noite parecia sempre assustador. Sebastien, contudo, que passara a maior parte da sua vida adulta a atender chamadas de emergência relacionadas com os seus pacientes, nem sequer se atrapalhou na escuridão sedosa do quarto de hotel. A sua voz era coerente e calma. Ouviu durante alguns segundos, começou a falar em francês e sentou-se. Com o coração aos saltos, Amy debateu-se com os lençóis e mantas enquanto ouvia, confusa. Não conseguia perceber o que se passava pelas respostas breves de Sebastien. Finalmente, conseguiu acender o candeeiro. Olhou para as costas nuas de Sebastien e viu-as ficarem tensas à medida que a conversa progredia. Um tom duro introduziu-se na sua voz. Um pequeno músculo junto da coluna estremeceu. Amy sentou-se e pousou-lhe a mão no ombro; ele puxou-a para baixo e à volta do corpo, encostando-a ao peito. Amy sentiu o bater acelerado do coração dele sob os dedos. Preocupada, aproximou-se mais e abraçou-o, encostando-lhe o rosto às omoplatas. Quando ele desligou, ficou imóvel, a olhar para o chão. – O que se passa? – murmurou Amy. – Houve um acidente de avião. O meu cunhado ia a caminho do Mónaco num pequeno avião privado. Despenhou-se por causa de uma tempestade, perto de Paris. A minha irmã e o meu pai estavam com ele. Amy soltou um grito e colocou-se à frente dele, de joelhos no chão. Pegou-lhe nas mãos. No rosto de Sebastien, viu tristeza mas também o tipo de fúria sombria que, julgava, o abandonara para sempre. – O meu cunhado morreu – continuou Sebastien. – A minha irmã ficou gravemente ferida, mas esperase que sobreviva. No entanto, os médicos dizem que serão precisos meses até recuperar por completo. – Ficou calado, o rosto uma máscara impenetrável, perfeitamente controlado. – E o teu pai? – Partiu as costas: ficou paralisado e tem outras lesões… Está em coma. Os médicos duvidam que sobreviva. – Lamento muito, meu amor. – Tenho pena da minha irmã. Amy estremeceu. – E também do teu pai. Afinal, ele já não pode magoar-te. O riso brutal de Sebastien assustou-a, e recuou rapidamente para olhar para ele. Tinha os olhos a brilhar. – Isso, minha querida Miracle, é o que ainda vamos ver.

Amy só queria despachar o assunto o mais depressa possível. Sebastien partira para Paris dois dias antes, mas insistira para que ficasse e fizesse a audição. De qualquer maneira, não havia necessidade de Amy estar presente no funeral do cunhado. No entanto, uma dúvida irritante não a deixava sossegar: estaria Sebastien relutante em apresentá-la aos amigos da família e parceiros de negócios?

Oh, não sejas exagerada. Já ultrapassaste as tuas inseguranças, lembras-te? Ele ama-te. Tem orgulho em ti. Vão casar dentro de duas semanas. Certo? Certo!

O produtor do telefilme tinha um ar simpático e intelectual, como um hamster de óculos. Sentado a uma secretária mais prática do que elegante, observava-a com atenção. – Amy? – disse. – É um papel simples. Não precisa de grande ponderação da sua parte. Ela sorriu rapidamente. – Desculpe. – Não há problema. Eu sou a avó da Shirley; a Amy faz de Shirley. Estamos na lavagem automática. A Shirley está confusa, algo que lhe acontece constantemente. Comece na fala: «Isto é um pedacinho de cotão ou o Frankie deixou outra vez o rato no cesto da roupa suja?» Amy representou a cena, mas a sua cabeça estava em França, com Sebastien. Não esperava conseguir o papel, embora fosse secundário e não exigisse grande talento, o que até nem era negativo, uma vez que nem sequer era atriz. Quando acabaram, o produtor fitava-a, boquiaberto. Todas as outras pessoas presentes na sala exibiam expressões estranhas, meio sorridentes, meio estupefactas. Sentiu o coração apertado. Então, fora mesmo má. Lembrou-se daquela noite terrível, na universidade, quando fizera audições para uma peça. Bom, pelo menos desta vez não falhara devido a um ataque de ansiedade. – Bom, parece que estamos despachados – disse, atrapalhada. – Obrigada pela oportunidade. – Nós ligamos-lhe. O que significava «Não nos ligue». No hotel, começou a fazer as malas. Tinha avião bem cedo para Nova Iorque, onde faria ligação com o voo para Paris. Irrequieta, começou a andar de um lado para o outro, a pensar em Sebastien. O funeral do cunhado teria lugar no dia seguinte: logo de madrugada na hora de Los Angeles, ao final da tarde em Paris. Sebastien estaria com os dois filhos pequenos da irmã. Que apoio emocional poderia dar-lhes no estado de espírito frio e sombrio em que se encontrava? A mudança de atitude dele perturbava-a. Desde o telefonema ficara reservado e brusco, e havia ali mais do que preocupação pela família. Enfiou as mãos nos bolsos das calças e continuou a andar, a pensar em Sebastien e em crianças, em Sebastien e em famílias problemáticas, em Sebastien e na sua própria carreira. O telefone tocou. Era a agente. – Não me correu muito bem – comentou Amy, assim que atendeu. Bev desatou a rir. – Está bem: então deve ser por isso que acabaram de te oferecer o papel. – Estás a brincar! Depois de eu acabar de ler, o produtor olhou para mim como se eu fosse uma verruga no traseiro de uma rã. – Uma verruga talentosa. Segundo o próprio, deixaste toda a gente impressionadíssima. Acharam-te

fantástica. – Vou para Paris amanhã de manhã. Deixo-te o meu número fixo de lá, para me contactares caso decidam que estavam só a brincar. – Oh, por favor, tenta conter tanto entusiasmo – resmungou Bev. – São só dez mil dólares por duas semanas de trabalho e um papel num telefilme respeitável. – O Sebastien precisa de mim em Paris. – Não é altura para estares concentrada na tua vida pessoal. Volta depressa. Começas a filmar na Florida dentro de três semanas. – Oh, já estaremos cá nessa altura. Não há problema. – Faz a tua agente feliz. Nada de homens até sermos ricas.

Esperava que Sebastien a fosse buscar ao aeroporto mas, em vez disso, encontrou um motorista à sua espera. Segurava um cartaz com o nome dela. – O doutor de Savin pede desculpa por não ter podido vir buscá-la pessoalmente – informou num inglês com forte sotaque francês. – Está na empresa, em reunião com os diretores do consórcio. Amy ficou consternada. Já passava da meia-noite. O funeral fora à tarde. Os negócios da família precisariam mesmo de atenção naquela noite, quando a irmã e o pai de Sebastien estavam no hospital a recuperar, e os sobrinhos descansavam entregues a empregadas? Tentando não mostrar o seu desagrado, limitou-se a encolher um pouco os ombros. – Muito bem. Façamo-nos à estrada, então. – Pardon, mademoiselle? Sentiu-se corar. – Quero dizer… Ah… Estou pronta. O motorista ergueu uma sobrancelha ao ver a tatuagem no pulso dela, a espreitar da manga do casaco azul. Achara-se muito chique com o casaco solto, de gola larga, com o colarinho branco do vestido a espreitar por baixo, à la Katharine Hepburn; agora, porém, esforçou-se por não puxar as mangas para baixo. – Muito bem – respondeu o motorista, por fim. – Vou levá-la a casa da irmã do doutor. O doutor está lá instalado. Amy pigarreou e disse, com grande elegância: – Bien. Merci. O motorista olhou com expressão inescrutável para o saco que Amy trazia a tiracolo. Inclinou-se e estendeu a mão. Amy passou-lho, reparando que a manicura do motorista era melhor do que a sua. Sentia-se completamente deslocada.

Enquanto o motorista transportava a sua bagagem por uma escadaria larga de mármore, uma governanta de ar imponente, com um vestido preto bem engomado, abordou-a com educação. – O doutor ligou e avisou que não se demora. Pediu que seja servida uma ceia nos seus aposentos; entretanto, posso pedir ao cozinheiro que lhe traga um café ou um copo de vinho? Amy tentou não olhar de boca aberta para a decoração sumptuosa da casa e respondeu que esperaria que o doutor chegasse. Mesmo a sua vida entre os ricos e famosos na Califórnia não a preparara para aquele cenário: do hall, sob o grande candelabro, conseguia ver uma sala de estar onde o luxo parecia escorrer das paredes. Era uma magnificência ao estilo do Velho Mundo – mobílias do século XVIII, dourados trabalhados, tapeçarias e tapetes sumptuosos, porcelanas e peças de terracota requintadas –, mais apropriada num museu da França pré-revolucionária do que numa residência particular. – Nesse caso, deixe-me levá-la aos aposentos do doutor, se desejar – ofereceu-se a governanta. Era uma mulher graciosa e formal, embora despretensiosa; enquanto subiam a longa escadaria olhou para o patamar superior e exclamou, com gentileza: – Au dodo! Amy viu duas crianças de pijama, que a fitavam com ar perturbado, mas curioso. Ambas recuaram alguns passos, hesitantes, quando a governanta os mandou para a cama. Amy retribuiu o olhar e tentou recordar o que Sebastien lhe contara: o sobrinho tinha seis anos, a sobrinha apenas quatro. Eram crianças bonitas, loiras, que permaneceram em silêncio, de mãos dadas. O menino parecia abatido, mas a irmã, demasiado pequena para compreender que perdera o pai, sorriu imediatamente a Amy. A governanta suspirou. – Posso apresentar-lhe o Jacques e a Louise? Já deviam estar a dormir há duas horas. A ama deles está de folga e, bom, esta noite a disciplina é… pouco importante. Acariciou o cabelo revolto de Jacques e o rapazinho afastou-se, com ar de quem está zangado com o mundo. Amy ajoelhou-se em frente deles. Sentiu um nó na garganta perante a tristeza óbvia do menino e a inocência da irmã. – Allô. Je m’appelle Amy. – Nós falamos inglês – informou Jacques com expressão grave. – És a namorada do tio? – Sou. Hum. Oh, céus! – Estendeu a mão e tocou na orelha de Louise. – Tinhas um cêntimo escondido no cabelo! – Enfiou a mão no bolso da camisola do pijama de Jacques e encontrou outro. – Deve haver aqui magia. Louise riu de contentamento, mas Jacques abanou a cabeça. – Hoje não. O nosso papá morreu. Fomos ao funeral dele. A maman está no hospital e vai demorar muito tempo a voltar para casa. E o grand-père também está no hospital; se calhar não volta a acordar. – Eu sei – respondeu Amy baixinho. – E se viessem comigo para o meu quarto e me fizessem companhia enquanto desfaço as malas? Quem sabe? Pode ser que encontre mais magia. – Oh, sim! – exclamou Louise. A governanta interveio, abanando a cabeça.

– O vosso tio Sebastien vai chegar muito cansado e precisa de sossego. E vocês também têm de descansar. – O tio não nos quer ao pé dele – explicou Jacques com ar zangado, dirigindo-se a Amy. – Não gosta de nós. Amy mordeu o lábio. – Isso não é verdade. – É, sim. Ele nunca gostou de nós. Boa noite. – Jacques tinha a dignidade de um homenzinho em ponto pequeno. Puxou a mão de Louise e afastou-se. Mirando Amy e a governanta por cima do ombro, a menina seguiu-o, parecendo triste. – Pobrezinhos – lamentou a governanta. Amy endireitou-se com lentidão, exausta e deprimida. – Sei que o doutor tem dificuldade em lidar com crianças. – Sim. Suponho que ele lhe falou sobre… sobre o casamento anterior… – Como é óbvio. Percorreram um corredor com grandes quadros e espelhos em molduras douradas, e viraram para outro corredor igualmente impressionante. A governanta suspirou, cansada. – O doutor perdeu a mãe quando era pouco mais velho do que o Jacques. Eu já trabalhava para a família nessa altura. Estava cá quando o acidente aconteceu. O doutor nunca mais foi o mesmo menino depois disso. Na verdade, deixou de ser criança. Passaram-se anos antes que o voltasse a ver sorrir ou rir. – Há mais alguma notícia da irmã ou do pai dele? – Não, nada. – A governanta abriu uma porta dupla enorme e entraram numa suite onde as antiguidades se misturavam com peças modernas. As paredes e janelas estavam cobertas com brocados de tons cinzentos e dourados, e uma luz suave derramava-se dos apliques nas paredes. Era um espaço elegante e masculino, sensual, mas também imponente na sua grandiosidade. – Este quarto costuma ser reservado a hóspedes? – perguntou Amy. – De certa forma. A madame mandou-o decorar para o pai. A casa dele não fica longe, mas a madame queria que ele tivesse os seus aposentos aqui. Amy olhou para a cama enorme, com a colcha de seda cor de bronze e a armação imponente. Não parecia ser uma antiguidade, embora o design fosse mais grandioso do que na maioria das mobílias modernas: era feita numa madeira escura exótica, toda trabalhada. Os postes, decorados com trepadeiras e rosas em relevo, chegavam quase ao teto. Amy não queria dormir no quarto do pai de Sebastien. Guardava para si o azedume que sentia pelo comte de Savin, pois não queria encorajar o ódio de Sebastien, mas as histórias que ele lhe contara sobre as manipulações implacáveis do pai tinham-na deixado revoltada e assustada. – O comte ficava aqui muitas vezes? – perguntou. A governanta suspirou.

– Nunca. A madame ficou tão desiludida! Instalei aqui o doutor porque me pareceu apropriado… e porque a cama foi feita para um homem comprido. O doutor é tão alto como o pai. Amy soltou a respiração, aliviada. A governanta indicou-lhe o quarto de vestir onde tinham colocado as malas dela. – O comte ainda não recuperou a consciência, e ninguém tem esperança de que tal aconteça. Pobre madame! Está consciente, mas tão ferida! Tem as pernas e a pélvis esmagadas. Vai demorar muitos meses a recuperar. Enfim, faremos o melhor possível. O doutor, quando quer, é um filho e irmão dedicado. Sei que não desiludirá a família. Já restam tão poucos. A chorar baixinho, a governanta dirigiu-se para a porta. – Creio que não abandonará esta pobre família amaldiçoada. Perdoe-me se a incomodei com a minha tristeza. Por favor, não diga nada ao doutor. – Não se preocupe, eu compreendo. Boa noite. – Boa noite. Amy parou no meio do quarto magnificente, com um buraco a crescer dentro de si. Sebastien detestava voltar a um mundo que o assombrava, mas era demasiado honrado para abandonar a irmã. Estremeceu. Ele poria a família em primeiro lugar, e a ela em segundo. Dez anos antes, escolhera a carreira e o orgulho; agora, estava em riscos de o perder para a família. Tomou um duche e vestiu um pijama de seda vermelha; depois,sentou-se entre as almofadas, no banco junto da grande janela, a olhar sem nada ver para a neblina noturna que se abatera sobre o jardim elegante da mansão. A luz da janela deixava ver as pequenas manchas de cor de um caleidoscópio de flores. A primavera em Paris era tão melancólica e bela como ela sempre ouvira dizer. O seu coração deu um salto quando ouviu passos à porta do quarto. Sebastien bateu e entrou sem esperar por resposta. Via-se que o fato preto passara por um longo dia, mas o homem que o envergava não perdera a elegância. Atirou a gabardina para cima de uma cadeira e dirigiu-se a ela. Amy levantou-se do banco e estendeu-lhe os braços, demasiado emocionada para conseguir falar. Não admitirei voltar a ficar em segundo lugar. Nos braços dele, absorveu a raiva de Sebastien, a sua sensação de impotência, a sua tristeza. Quando o médico baixou o rosto para ela e lhe acariciou a face com as pontas dos dedos, os seus olhos estavam sombrios e cansados. – Desculpa não te ter ido buscar ao aeroporto. – Não faz mal. – Faz, sim. Vejo-o na tua cara. – Esquece o aeroporto. Diz-me o que se está a passar com a tua família. Conduziu-o até ao banco sob a janela e sentaram-se. Sebastien puxou-a para si e Amy encostou as costas ao peito dele; ele encostou o rosto ao cabelo dela e praguejou baixinho. – Há problemas nos negócios do meu pai… e já há algum tempo, pelo que soube esta noite: lutas de poder, acusações de má gestão, talvez até desfalques…

– O teu pai sabia? – Não, tenho a certeza que não. Nunca o teria tolerado. Sempre pensei nele como um homem jovem e autoritário, mas esta noite apercebi-me de como envelheceu. – E a tua irmã sabia? – É possível. Nunca falava comigo sobre os negócios… era uma questão de orgulho para ela, de ciúmes. Imagino que andava a esforçar-se por controlar as coisas a partir da posição de pouco poder que o meu pai lhe deu. – Hesitou e, por um momento, Amy ouviu apenas o som da sua respiração, a fúria e a derrota que fluíam dele como uma maré. – Quando o meu pai morrer, a minha irmã não fica com nada, apesar de ele saber, há anos, que eu me limitarei a passar a minha parte dos negócios para ela. Amy apertou-lhe as mãos. – O que vais fazer? – Salvar o que puder, pela Annette. – Inclinou a cabeça contra o ombro dela. Ambos sabiam o que aquelas palavras significavam. Amy conseguia sentir a raiva no corpo dele. Os seus braços apertaram-na com mais força. – Tens de ficar – murmurou Amy, com voz tensa. – Sim. Até a minha irmã estar em condições de tomar conta das coisas. – Meses. – Sim. A palavra afundou-se nela com uma finalidade arrepiante. Ainda presa no seu abraço, virou-se e estudou-lhe os olhos, vendo neles tanta tristeza e infelicidade que soltou uma exclamação gutural de angústia. – Estou a esforçar-me por compreender – assegurou. – Meu Deus, achas que estou a escolher lados? Achas que me estou a esquecer de ti? – Não tenho ciúmes da tua família. Tenho apenas receio de que decidas que é aqui o teu lugar, em França. Que te esqueças do motivo pelo qual quiseste mudar de rumo quando chegaste à Califórnia. – E estás a dizer-me que não poderias viver aqui, se eu te pedisse? Séria, Amy assentiu. – Não posso abandonar tudo aquilo que consegui alcançar com o meu trabalho. E não me encaixaria aqui: o nosso verdadeiro problema é esse, e ambos o sabemos. – Há uma parte de ti que nunca aceitará o teu próprio valor. Nada que eu te diga fará qualquer diferença. Neste momento não posso apaziguar as tuas inseguranças. Posso apenas garantir que te amo, que hei de amar-te sempre e que me orgulho de te ter ao meu lado. – Nos Estados Unidos. Não aqui. – Encostou a cabeça ao peito dele. Já não conseguia continuar a discutir. – Tenho bastante experiência em esperar por ti… uma década. Mas não é algo que me agrade. Depois de acabar as gravações do filme… – O filme? – Céus! Nem te contei que consegui o papel. O jet lag desorientou-me mesmo. Parece-me que foi há

um século. – Olhou em volta. – E noutro mundo. Sebastien segurou-lhe no rosto com ambas as mãos e fitou-a com os olhos cheios de lágrimas. – Estou tão orgulhoso de ti. – É um papelzinho insignificante, mas… – Um dia serás uma estrela, e eu tornar-me-ei insuportavelmente pomposo quando disser às pessoas que sempre soube que isso aconteceria. As defesas de Amy caíram por terra e aninhou-se nos braços dele. Sebastien puxou-a para o seu colo e apertou-a contra si. – Passei muito tempo a tentar perceber o que devia ter, e o que mereço ter – considerou Amy. – Não abrirei mão disso. Não desistirei de ti, claro, mas também não renunciarei à minha carreira. Quando acabar o filme, vou começar uma digressão de stand-up. – Isso significa andar a percorrer o país? – Sim. – Afastou-se um pouco e fitou-o com tristeza. – Estarei a viajar ou a trabalhar todos os dias. Ele fitou-a com expressão resignada, tão infeliz como a dela. – Será complicado vermo-nos. – Praticamente impossível. – Quero que cases comigo antes de voltares. Vou tratar de tudo amanhã. – Não. Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Sebastien perguntou: – Isso é alguma forma de me castigar? – Se fosse, seria um castigo para mim também. Nem acredito que estou a dizer não. Mas vou ter de o fazer até estar tudo resolvido aqui e até puderes voltar para a Califórnia. Não vou começar o nosso casamento com uma separação. Já tivemos a nossa conta. – Não são as mesmas circunstâncias! O que estás a tentar fazer? Provar a ti própria que eu vou voltar? – Em parte, sim. – Maldição! – Olhou para Amy como se fosse uma desconhecida; depois, levantou-se, puxou-a para cima e apertou-a contra si. – Sabes mesmo como me espicaçar… o que me faz reagir. – Pensas que é fácil para mim, deixar-te? Pensar em acordar a meio da noite e tu não estares lá? Saber que só poderei ouvir a tua voz ao telefone? Saber que não poderei olhar-te ou ver-te sorrir? Tudo isso me causa uma intensa dor física. Vou ter saudades tuas a cada segundo. – Então saberás o inferno que eu estarei a passar também. – Afastou-se um pouco, passou o braço sob as pernas dela, pegou-a ao colo e dirigiu-se à cama que fora desenhada para o pai, onde a pousou. Com gestos bruscos, despiu-lhe o pijama, rasgando e arrancando botões, mas quando lhe tocou na pele as mãos deixaram de ser violentas e tornaram-se persuasivas. Amy olhou para Sebastien em silêncio, hipnotizada, com os braços ao lado da cabeça, agarrada às almofadas. Sebastien não desviou os olhos dos dela enquanto se livrava também das suas roupas.

– És minha, e serás sempre minha, e esperarás para sempre se eu te mandar. – Nas minhas condições, mas… Sim. – Admitiu-o com raiva, não rendida, e puxou-o para si.

– Diz-me onde vamos – pediu-lhe Amy, com os dentes cerrados. – Estou a falar a sério. Do lado de fora do carro, as colinas deslizavam velozmente, verde e mais verde salpicado com as flores da primavera. Passaram por uma aldeia e uma abadia, e a estrada continuou a subir em direção aos picos irregulares e cobertos de neve dos Alpes, à distância. – Não é óbvio? – perguntou Sebastien, com as mãos segurando com firmeza o volante de mais um Ferrari. – Vamos às montanhas. Pensei que gostavas que eu te raptasse assim, sem dizer nada. Tornou-se um jogo entre nós, não achas? Amy cruzou os braços sobre o casaco e estudou o perfil dele. Os gladiadores romanos deviam ter rostos assim – nobres mas marcados, demasiado duros para serem considerados bonitos. E aquela tensão de quem está pronto para a batalha… isso também devia estar presente. – Não é como das outras vezes – respondeu. – Das outras vezes não estavas zangado comigo. – E também não o estou zangado agora. Cala-te, Miracle. Vais compreender mais depressa do que gostarias. A apreensão dela aumentou. Aquilo começara ao nascer do dia, quando as emoções da noite anterior os tinham despertado de um sono leve. Acordar com a dor recente da separação apoderara-se do momento e tinham feito amor de forma selvagem e magoada, que doía mais do que ajudava. A seguir, Sebastien praguejara amargamente contra o mundo em geral e mandara-a vestir-se, dizendo que lhe queria mostrar uma coisa. Agora, horas depois, estavam ali, sem terem comido nem trocado duas palavras desde a partida de Paris. Amy estava furiosa com Sebastien por estar a ser tão misterioso, e com medo de que algo terrível os esperasse no fim da viagem. As montanhas agigantavam-se acima deles com uma grandiosidade ameaçadora. De olhos resolutamente postos na estrada, Amy continuava receosa. Por fim, a estrada entrou num vale largo e plano, com um lago azul-escuro aninhado no meio. O vale estava repleto de casas, lojas e hotéis que pareciam relativamente modernos, embora fossem deliberadamente pitorescos, ao estilo da província francesa. – Garonne – indicou Sebastien com desagrado evidente. – Uma estância de férias. Há trinta anos era encantadora. Agora é apenas lucrativa. – Há trinta anos? – Costumava vir cá muitas vezes quando era pequeno. Com a família. – Apertou os lábios numa linha dura e Amy percebeu que ele dissera tudo o que tencionava, para já. Olhou para os elevadores de esqui na encosta verde da montanha. Estavam a ser utilizados mesmo não havendo neve, cheios de pessoas que pretendiam apenas ver a paisagem lá de cima, presumiu. Ao

que parecia, a cidade era popular até nos meses mais quentes. Sebastien procurou uma estrada estreita que subia, sinuosa, a encosta da montanha. Amy sentiu os ouvidos estalarem com a pressão. Agarrou-se ao banco e encolheu-se enquanto o Ferrari fazia as curvas apertadas, com os pneus a chiar. O panorama do vale a afastar-se, cada vez mais abaixo deles, era estonteante. – Por favor, abranda. – Não confias em mim? Acredita, eu sei onde esta estrada é perigosa e ainda não chegámos a esse ponto. Amy fitou-o, assustada e confusa. Nunca o tinha visto assim. Algo feio e antigo parecia debater-se dentro dele, talvez a mesma coisa com que sempre lutara. Estava agora a vir ao de cima e a ameaçar tudo o que havia entre os dois. Em voz baixa e tom cauteloso, pediu: – Se vais matar-nos, pelo menos explica-me porquê. Abruptamente, ele encostou o Ferrari à berma interior da estrada e parou a centímetros da face íngreme da montanha. Estava branco como cal e tinha as mãos a tremer. – Perdoa-me. Estava a torturar-me a mim próprio e não me apercebi de como devia ser assustador para ti. Aquele homem preocupado era alguém que ela reconhecia: estremecendo de alívio, Amy encostou a cabeça ao ombro dele. – Por amor de Deus, diz-me o que estamos a fazer aqui. – Espera. Já falta pouco, juro. Pegou nas mãos dela e beijou-as; depois, virou de novo o carro para a estrada e conduziu a uma velocidade mais razoável. Amy reparou vagamente que a estrada fazia outra curva apertada. A seguir viu uma protuberância da montanha, ao lado da estrada, que abria numa zona relvada, uma pequena mancha verde entre o alcatrão e a encosta íngreme salpicada com árvores. À beira da área relvada, havia uma barreira larga de postes e corrimões de aço. Sebastien virou o Ferrari para a relva e parou bem longe da barreira. Desligou o motor e ficou sentado em silêncio, a olhar para o muro de aço cinzento, com a respiração acelerada, os olhos semicerrados numa expressão pensativa. De súbito Amy compreendeu. – Foi aqui que a tua mãe teve o acidente? Sebastien inclinou a cabeça num aceno quase impercetível, sem nunca desviar os olhos do muro de aço. – Era feito de madeira, na altura, menos seguro. Agora, por mais que uma pessoa tentasse passar, a barricada provavelmente aguentaria. Por mais que uma pessoa tentasse passar. A tremer, Amy saiu do carro e contornou-o até ao lado do condutor. Abriu a porta de Sebastien antes que ele conseguisse levar a mão ao puxador, ajoelhou-se na

base da porta e abraçou-o. Nos braços de Amy, o controlo de Sebastien vacilou. Encostou a testa à dela e soltou um suspiro trémulo. – Tens de compreender por que motivo eu me sinto tão dividido em relação à minha família. Por que razão me tornei esta mistura ridícula de desprezo e dedicação. Talvez compreendas porque não posso deixá-los quando mais precisam de mim… – Sebastien, eu nunca disse que queria que tu os abandonasses… – Vais perceber por que motivo não posso abandoná-los – repetiu –, mas também o porquê de eu nunca querer… de não conseguir… partilhar qualquer verdadeira noção de família com eles. Vem. Vamos até à barreira. Saiu do carro e pegou-lhe na mão. Amy sentiu os joelhos fracos quando se aproximaram da barreira, que lhes dava pelo peito, e olharam para a encosta íngreme. – Mudou muito. As árvores… são todas diferentes. – É a primeira vez que voltas cá? – Sim. – Sebastien, sempre me deixaste acreditar que o acidente não te tinha afetado muito. Falavas disso como se fosse algo que já esqueceste há anos. – Havia algo mais horrível naquele lugar do que tudo o que Amy conseguia imaginar. A antecipação era tal que só lhe apetecia gritar. – O que aconteceu aqui, de verdade? Sebastien virou o rosto orgulhoso e angustiado para ela. O vento agitou-lhe o cabelo. – Não foi um acidente. – O quê? – Amy olhou para a encosta, agoniada, e de novo para Sebastien, em busca de respostas. Com certeza que não quisera dizer o que ela percebera. – Como é que pode não ter sido um acidente? – A minha mãe atirou o carro através da barreira de propósito. Queria matar-se, e também aos meus irmãos e a mim. Amy cambaleou. – Porquê? – Culpava-se a si mesma pela infidelidade do meu pai. Ele tinha amantes e a minha mãe decidiu que a vergonha e a culpa eram todas dela. Queria castigar-se a si própria, mas não queria morrer sozinha. Amy sentiu os joelhos a fraquejar. Sebastien segurou-lhe no braço e sentaram-se juntos. Amy olhou por entre os postes da vedação para a bonita encosta primaveril e tentou imaginá-la coberta de neve, uma carrinha retorcida entre as árvores, sangue e corpos na brancura… e Sebastien, ferido, aterrorizado e sozinho no meio de tanta morte. – Como sabes que ela queria matar-vos a todos? – Ela disse-me, antes de morrer. Estava convencida que falava com o meu pai. Pensou que eu estivesse morto, como o Antoine e a Bridgette. – Engoliu em seco. – Depois do que aconteceu aqui, passei a sentir-me amaldiçoado, como se tivesse feito batota e estivesse condenado a ser apanhado, mais

cedo ou mais tarde. – Um sorriso amargo cruzou-lhe o rosto. – Uma atitude autodestrutiva, não achas? – Conta-me exatamente o que aconteceu. Tudo. Por favor. Sebastien começou. Amy encostou a cabeça à barricada e escutou, de olhos secos, enquanto uma grande dor lhe invadia o peito. Quando ele terminou, abraçou-o de novo. Desta vez, Sebastien retribuiu, apertando-a com força e escondendo o rosto no cabelo dela. – Só três pessoas sabem a verdade. Tu és uma delas – murmurou, por fim. – O meu pai e eu somos as outras. Que tal é fazer parte de um triunvirato tão pouco sagrado? Amy acariciou-lhe os ombros. – Melhor do que estar de fora. – Tranquilizei-te em relação às minhas intenções, ou apenas te convenci de que te darei demasiado trabalho? – Estou tranquila. Vou voltar para a América e esperar. – Muito bem. Ótimo. Não quero que sejas arrastada para a fealdade à volta da minha família. A… maldição. Correndo o risco de parecer ridículo, vou chamar-lhe aquilo que parece ser. Nunca esperara que Sebastien fosse tão melodramático. – Não acreditas realmente nisso. – Quer seja mera coincidência, ou não, acredito, sim. Talvez se revele como o feio resultado das manipulações do meu pai…. Porém, seja qual for a causa, não te quero enredada na teia dos meus problemas familiares. Amy esforçou-se por falar sem perder a compostura. – Depois de dez anos separados, pensei que agora… – Estamos juntos, e nada mudou. – Tu mudaste, nos últimos dias. A amargura voltou. Olho para ti e vejo algo tão frio que me assusta. – Escondeu o rosto nas mãos. – O Jacques e a Louise precisam tanto de ti. Como podes tratá-los tão mal? – Esforço-me por os evitar. – A sua voz era baixa, angustiada. – Mas é exatamente assim que os magoas! – Temo feri-los de outra forma qualquer se me aproximar… feri-los espiritualmente, quero eu dizer. – Hesitou, engolindo em seco. – Tenho medo de gostar demasiado deles: as crianças são tão frágeis… – Como aquele menino que viu a família morrer, e nunca mais foi o mesmo? – Talvez me reveja, sim. Só sei que me é difícil encorajar o seu afeto. – Como vais viver na casa da tua irmã, com os teus sobrinhos, nos próximos meses? Aquelas crianças precisam de afeto, não da supervisão fria e distante de um estranho que, por caso, partilha com eles laços de sangue. – Os empregados cuidarão deles. Têm uma ama. Passam os dias na escola. A Annette virá para casa dentro de poucas semanas. Vão ficar bem. – Ouve, posso ajudar-te com o Jacques e a Louise. Não te largarei enquanto não melhorares essa atitude. Serei como um cão com o osso. – Tentou chegar até ele através da brincadeira, mas Sebastien

abanou a cabeça. Enquanto o impacto dos meses que tinham pela frente se abatia sobre eles, trocaram um olhar infeliz. – Fica comigo até teres de voltar para as filmagens – pediu-lhe Sebastien, cansado. – E eu prometo ir visitar-te antes de começares a trabalhar na digressão pelos clubes. Amy acenou, a chorar, e beijou-o. – Consegues manter essa velha maldição longe de nós nas próximas duas semanas? – Tenho a certeza disso. – Acariciou-a e beijou-a, encostando a cabeça à dela e fechando os olhos. – O que me assusta são os meses posteriores.

Sebastien saía todos os dias às seis da manhã e voltava doze horas depois, de rosto macilento, frustrado e cansado. Todas as noites, subiam para o quarto a seguir ao jantar, e Amy massajava-lhe os ombros enquanto ouvia Sebastien descrever a confusão enfurecedora em que os negócios do pai se tinham transformado. Faziam amor, às vezes uniões rápidas e ardentes, outras com uma ternura tão tranquila que Amy mal conseguia respirar com a emoção. Depois, mais calmo, Sebastien tomava banho, vestia-se e saía para passar o resto do serão no hospital. Amy via o quanto o seu apoio era importante para Sebastien, o que intensificava a sensação de que lhe cabia a tarefa de menorizar os problemas dele. Essa noção do valor que tinha na vida de outrem foralhe inculcada durante os anos em que lutara pela aprovação do pai, e era o que a motivava agora. Todas as noites, já tarde, quando Sebastien voltava do hospital, esgotado e deprimido, recebia-o com um ouvido atento e compreensivo, uma bebida e mãos carinhosas. Recusava-se a fechar os olhos enquanto não tivesse a certeza de que ele estava satisfeito e profundamente adormecido, e levantava-se antes dele todas as manhãs para ir à cozinha, onde o cozinheiro preparava o pequeno-almoço preferido dele e o colocava num tabuleiro. Quando Sebastien acordava, na luz fria da madrugada, Amy já o esperava com o jornal do dia, o pequeno-almoço e a sua atenção dedicada. No entanto, depois de ele sair para o escritório trabalhava com afinco nos novos números de comédia, preocupada com a digressão. Quando não estava a trabalhar, passava o tempo com Jacques e Louise, tentando, com toda a sua energia natural, colmatar o vazio que a indiferença de Sebastien criara; tencionava que, quando voltasse para os Estados Unidos, os sobrinhos conseguissem abordá-lo de forma mais aberta. Estava a funcionar à base de adrenalina e sentia-se tão cansada que se sentia fisicamente fraca, mas nunca abrandou. Sebastien queria mimá-la, mas Amy não gostava de ser dependente e preferia ser a cuidadora, como sempre. Com Elliot era um trabalho maternal, mas com Sebastien era uma parceria que a satisfazia. Ignorou o lado mais sombrio daquela sua característica: a obsessão em dar sempre apoio e antecipar as necessidades, a sensação de fracasso sempre que não o conseguia. Todo o seu esforço teve um custo. Uma tarde, quando Sebastien chegou a casa um pouco mais cedo do que o costume, encontrou-a deitada na carpete azul do quarto de brincadeiras de Jacques e Louise, a

dormir. Amy acordou ao sentir a mão dele tocar-lhe ao de leve no ombro e com Sebastien a chamá-la. Pestanejou, ensonada, e sentou-se. Sebastien estava de joelhos ao lado dela, elegante como sempre, imponente no fato preto. Olhou de testa franzida para a boneca de trapos que Amy usara como almofada e afastou-a. Amy tentou ajeitar o cabelo, pensando que devia estar com a cara marcada. – Oh, céus! Ia descer para esperar por ti, mas o Jacques começou a mostrar-me um dos seus livros e… Onde estão eles? – Estão a jantar com a ama. Disseram-me que estavas aqui. – Levantou-se e ajudou-a a fazer o mesmo; beijou-a bruscamente e olhou em volta, para o estranho e desconfortável mundo infantil. – Porque passas tanto tempo com os meus sobrinhos? Amy apertou os braços à volta do pescoço dele e fitou-o com ar malicioso e melodramático. – Tenho um caso com um dos soldadinhos de brincar do Jacques. Admito o meu fetiche por pequenos homens de plástico. – O semblante dele aligeirou-se com a sombra de um sorriso, mas havia rugas de exaustão nos cantos dos olhos. Amy tocou-lhes com a ponta do dedo. – Não te preocupes, doutor. Estava a brincar. Desculpa não estar à tua espera lá em baixo quando chegaste. – As crianças adoram-te. Estás a tentar fazer com que me sinta culpado por as evitar? – Sim. – Não vai resultar. – Bom, nesse caso tenho de passar ao Plano B. – Beijou-o, escondendo a exasperação por trás da determinação em manter-se paciente e bem-disposta. – Vamos. A mesa para o jantar está posta no nosso quarto e comprei um frasco novo de óleo para massagens. Comestível. Com sabor a plantas. Podemos pô-lo na salada e ser atrevidos com a alface. – Estás pálida. – Segurou-lhe no queixo e estudou-lhe o rosto. – Tens olheiras fundas e os olhos injetados de sangue, minha querida Miracle. Não é a cara de uma mulher que afirma passar o dia recostada na sua alcova. – Estou bem. Para de me diagnosticar, doutor. Tu é que precisas de descanso e de mimos, não eu. – Beijou-o de novo e afastou-se com um passo de dança, puxando-lhe as mãos. – Estou a fazer-me indispensável, percebes? Para que não te esqueças de mim quando me for embora, dentro de uma semana. Agora anda. Quero estar sozinha contigo e com a nossa alface. – Hum… Acho que te vou pôr na cama e dar-te um sonífero leve. Começo a perceber que se calhar me estou a aproveitar da tua compulsão. – Que compulsão? – A que te torna maníaca quando queres agradar a alguém que amas. – Não sou maníaca. – Culpas-te a ti própria por eu estar deprimido, apesar de não ter nada a ver contigo. É uma atitude que espero conseguir eliminar, com o tempo, mas já vi que tenho um longo trabalho para frente. – Só quero tomar conta de ti. Agora cala-te e vem jantar.

– Não pode ser, Miracle. Não tenciono passar a semana toda preocupado contigo. Vais parar de andar a correr atrás de mim de mãos estendidas. Se eu quisesse uma escrava, contratava-a. A fachada de Amy desfez-se e a raiva veio ao de cima. Não compreenderia Sebastien que ela só sabia ser assim, uma cuidadora? Que a atenção constante ao prazer dos outros – fazê-los rir quando estava em palco, concentrar-se totalmente nele naquela fase complicada da sua vida – era um hábito que fazia com que se sentisse segura, e que sem isso nem se reconheceria? – Se não me deixas tomar conta de ti, vou-me embora mais cedo – avisou. – Que disparate. – Não estou a brincar. Não sei ser de outra maneira. Sentir-me-ia perdida. Passaria o tempo a preocupar-me contigo. Preciso de sentir que estou a ajudar, como se pudesse controlar todos os teus problemas por ti, se me esforçar o suficiente. Não fiques zangado comigo. Sebastien pegou-lhe ao colo. – Meu amor, não estou zangado. No entanto, não vou permitir que te esgotes. Já para a cama. Hoje eu é que vou dar-te comida e cuidar de ti até adormeceres. – Tu e que exército? – Tentou brincar, mas a voz tremia-lhe. – Tenho uma centena de soldados de plástico do meu lado. – Já não. – Sebastien saiu do quarto de brincar com ela nos braços e empurrou a porta de madeira pesada com o pé. A porta fechou-se com um baque sólido e definitivo. – Agora somos só nós os dois. Ninguém te virá salvar das minhas ordens. Rende-te. Amy jantou em silêncio. Sentia a pele húmida e peganhenta, e a repreensão anterior deixara ansiosa. O jantar, carne assada com legumes de sabor delicado, não lhe caiu bem, e parou de comer a meio. Por fim, ocorreu-lhe que talvez estivesse a sofrer de algo mais do que cansaço emocional. – Sentes-te bem? – perguntou Sebastien, tocando-lhe no rosto transpirado. – Não! Eu sabia. Arranjaste maneira de adoecer! – Desculpa. – Saiu às pressas e dirigiu-se à casa de banho do quarto, trancando a porta atrás de si. Sebastien ficou a ouvi-la vomitar do outro lado, ralhando-lhe por ter trancado a porta. – Estou bem – gritou Amy, agarrada à sanita enquanto o estômago lhe indicava que os seus problemas estavam longe de ficar resolvidos. – É provável que seja algo viral – sugeriu Sebastien. Limpou-se, trémula e fraca, mas decidida a não passar ali a noite. Abriu a porta, endireitou os ombros e encarou para Sebastien. – Estás a ver? Já me sinto melhor. Não preciso que te preocupes comigo. – Talvez eu também gostasse de tomar conta de ti. Ou é uma honra que a tua dignidade se recusa a conceder-me? – És um querido, mas não estou doente. Agora vai ver a Annette e o teu pai, como sempre, e quando voltares estarei nova em folha. – Não. Estás com péssimo aspeto. Deixa de ser teimosa.

– Tu é que me estás a deixar maldisposta com a discussão. Todos os homens franceses gostam de discutir. Parece um desporto nacional. – Susteve a respiração ao sentir uma cãibra no baixo-ventre. Sem pensar, esfregou a barriga por cima do vestido azul. Sebastien viu a reação dela e abanou a cabeça. – Estás com diarreia? – Que pergunta tão romântica! – Não cores. Afinal, passei anos a estudar, a cheirar e a limpar todos os mais encantadores produtos do corpo humano. Não há nada que me ofenda. Ou que me faça sentir embaraçado. E depois de toda a intimidade que partilhámos, espanta-me que estejas envergonhada. – Só temos mais uma semana! Não quero ficar doente! – Encostou-se à ombreira da porta abanando a cabeça, zangada, quando Sebastien entrou, e gemeu exasperada quando lhe pegou ao colo. – Vamos voltar à casa de banho, minha senhora? – perguntou Sebastien em tom gentil e divertido. Amy agarrou-se à barriga e assentiu debilmente. Sebastien mandou um dos empregados à farmácia, com uma receita, mas o medicamento não ajudou muito a acalmar o estômago de Amy. Passou o resto dessa noite e o dia seguinte a lutar com aquilo a que começou a chamar a vingança de Napoleão. Sebastien cuidou dela o tempo todo, obrigando-a a aceitar um novo papel na relação. Amy amava-o por isso, mas sentia-se muitíssimo infeliz com aquela sua incapacidade. Na tarde seguinte, assim que deram pela porta do quarto aberta, Jacques e Louise vieram espreitar. Amy acenou-lhes, sem energia, de baixo dos cobertores, e eles retribuíram o cumprimento. Louise parecia chorosa e Jacques, ansioso: Amy compreendia que, de há uns tempos para cá, o mundo dos adultos devia parecer-lhe um lugar imprevisível e perigoso. – É só uma dor de barriga – explicou, no tom mais animado que conseguiu. – E cheiro mesmo mal! Eles levaram a mão à boca e riram-se. Sebastien assistiu à troca de palavras sentado à secretária do outro lado do quarto, onde estava a ler alguns documentos. – Agora vão brincar e deixem a Amy descansar. As crianças acederam de má vontade e saíram arrastados pela ama. Amy fechou os olhos enquanto o estômago protestava. – Se queres que eu me sinta melhor, vai brincar um bocado com eles. – Caluda! Daqui a pouco vou lá abaixo buscar-te mais uma chávena de chá. – Não quero chá. Quero… – O estômago revoltou-se inesperadamente e Amy atirou-se para a beira da cama. Quando vomitou em cima do tapete antigo, escondeu a cabeça nos braços e começou a chorar e a dar murros no colchão, dominada pela frustração. Sebastien tentou acalmá-la com murmúrios reconfortantes e a seguir limpou-a, bem como ao tapete. Amy tapou a cara com uma almofada para abafar os soluços indignados. – Por norma, este vírus desaparece tão depressa como apareceu – murmurou Sebastien, sentado ao seu lado, a acariciar-lhe o cabelo. – Tenta dormir, meu amor.

– Quero cuidar de ti. Queria que fosse tudo perfeito. Já não temos muito tempo juntos. Está tudo estragado. Por fim, Sebastien perdeu a paciência. Pegou-lhe no queixo e obrigou-a a olhar para ele. – Raios, tu é que estás a estragar tudo, com essa insistência em ser demasiado dura contigo própria. Achas que te vou abandonar se não fores sempre forte? Porque é que eu posso ter defeitos, mas tu tens de ser uma espécie de Joana d’Arc? – Foi por isso que te apaixonaste por mim quando me conheceste. Quiseste-me porque eu tentei salvar-te de ti próprio. – E salvaste-me. Continuas a salvar-me. – Com gentileza, limpou-lhe o rosto com uma toalha húmida enquanto ela o fitava, espantada. – Minha querida Miracle, achas que eu seria capaz de pôr tudo o resto de lado para cuidar de ti desta maneira se não tivesses já sido bem-sucedida na tua missão? Se consigo ser humano, dar e merecer amor, é graças a ti. Sabe Deus o que teria sido de mim se não nos tivéssemos conhecido. Sabe Deus o que eu era antes de te ter voltado a encontrar. – Oh, Sebastien… – Cumpriste o teu dever, Joana d’Arc. Continuas a cumpri-lo, só por me amares e por quereres que eu te ame também. Agora, por favor, deixa-me cuidar de ti. Acredites ou não, também é aquilo em que sou melhor. – Eu acredito – respondeu Amy com ternura. – Foi por isso que quiseste ser médico, não foi? – Foi a primeira motivação, sim. Mas, de alguma forma… perdeu-se com o passar dos anos. – A expressão dele entristeceu. – Sentes falta do teu trabalho, não é? Começo a perceber o quanto te custa estar afastado. – Pensei que morreria quando fui obrigado a abandonar a minha carreira, mas apercebi-me de que estava a morrer por causa dela. Precisava deste tempo para analisar bem as coisas. – Com os olhos cheios de ternura, observou-a. – Quando voltar à medicina, já não será o único interesse da minha vida. Serei um médico melhor porque serei uma pessoa completa. Graças a ti. Pegou-lhe na mão enquanto Amy adormecia. Na manhã seguinte, sentindo-se melhor, Amy comeu uma torrada seca enquanto o observava com ar pensativo por cima da chávena de chá com mel. – Uma vez que és um excelente médico, estou a tentar ser uma boa paciente. Vês? Sebastien piscou-lhe o olho. – Não há dúvida de que a tua atitude cheira melhor. Nessa noite, em honra da sua recuperação, Sebastien colocou-lhe um pouco de brandy no chá. Pouco depois, Amy sorria-lhe maliciosamente e chamava-o com o dedo. Quando a tomou nos braços, ela sentiu uma maior gentileza e confiança no seu toque. Fizeram amor lentamente, com simplicidade, mas cada sensação parecia repleta de um significado portentoso. Amy tentou decifrá-lo, mas perdeu-se na torrente de emoções. A seguir, ficou deitada com a cabeça no ombro dele, a sentir o calor de Sebastien espalharse através dela, com grandes mudanças a sussurrarem para além das margens do seu controlo.

Capítulo 23

Sebastien foi ao encontro dela três semanas depois. Amy terminara o trabalho no filme e faltavam três dias para o primeiro espetáculo da digressão, num clube em Chicago. As quatro semanas seguintes estavam também preenchidas. A agente estava encantada. Ela e Sebastien arrendaram um chalé a noroeste do Illinois, com vista para uma ravina cheia de flores silvestres, uma cascata e rochedos de granito majestosos. Mesmo em junho as noites eram frescas; acenderam a lareira e puseram o colchão ao pé do lume. Enrolados em mantas, fizeram amor com a atenção lenta e minuciosa de conhecedores a saborear a última garrafa de uma colheita excecional. A meio da noite, Amy levantou-se e foi à casa de banho. Após confirmar que a porta estava trancada, esfregou-se entre as pernas com uma toalha branca, examinando-a em seguida com um frenesim alimentado pelo desespero. Nem um sinal do vermelho que a tranquilizaria. Implorara ao seu corpo que lhe desse algum sinal. Não havia razões para aquele atraso: tomava a pílula e nunca se descuidara. A toalha imaculada troçava dela. Atirou-a para o chão e sentou-se, com os braços à volta dos joelhos. Nos últimos dois dias passara em revista as memórias dos anos passados com Elliot, tentando recordar se o seu ciclo menstrual, regulado pela pílula, alguma vez se atrasara, mas concluiu que não. Concordara em respeitar os desejos de Sebastien a esse respeito, pelo que, para bem dos dois, esperava não estar grávida. Cedências. Todavia, em relação àquilo não havia cedência possível. A tremer, levantou-se e regressou à sala em bicos de pés. Parou junto do colchão e olhou para Sebastien, que dormia, deitado de costas, com as mantas enroladas à sua volta como uma paisagem de trapos abalada por um terramoto. A sua turbulência e o seu espírito poderoso viam-se mesmo quando descansava. À sua maneira, Amy era tão forte como ele, mas, se aquilo que temia se realizasse, não sabia se a força a ajudaria. Enrolou-se numa manta, saiu para o alpendre e sentou-se no degrau, grata pela escuridão que a escondia e pelo som da cascata, a alguns metros, que abafava o seu choro. Sebastien acordou e foi à procura dela, com uma manta enrolada à cintura. Inconsciente do efeito que provocava, ajoelhou-se ao lado de Amy e tocou-lhe no rosto molhado, tomando-a nos braços e sussurrando-lhe palavras de conforto. – Não há motivo para lágrimas, minha querida Miracle – sussurrou. – Este será um revés temporário, uma separação provisória. Agora convence-me de que o tempo vai passar depressa, ou eu rapto-te. Amy pensou que morreria de saudades de Sebastien, antes mesmo de ele partir. No último dia da sua visita, Sebastien mencionou que havia algo que tinha de fazer. Admitia que era

impulsivo e pouco prático, mas já alugara um avião privado para a viagem. Queria que fossem os dois passar o dia a Atlanta e visitar o pai dela ao lar. – Porquê? – perguntou Amy, confusa. – Talvez isso me ajude a lidar com o meu próprio pai. – Conheceste o meu pai há dez anos, e para mim chega. Não quero que se vejam outra vez. Ele está num estado deplorável. Agora tenho vergonha dele de uma forma diferente. – Sê justa, meu amor. Eu também sinto vergonha do meu pai, mas levei-te a visitá-lo. Enquanto estavam em Paris, Amy convencera Sebastien a levá-la ao hospital, uma noite. Tinha necessidade de pôr Philippe de Savin em perspetiva, pela sua própria paz de espírito. Quando o viu – magro, frágil, paralisado, inconsciente – mal conseguiu vislumbrar o patriarca autoritário que Sebastien lhe descrevera, o homem que alienara ou destruíra a maior parte da família por se recusar a viver por outras tradições que não as suas. Sebastien ficou chocado quando Amy declarou que sentia compreendêlo. Ninguém compreendia Philippe de Savin, contrapôs. Amy tocara-lhe numa das mãos com as veias azuis salientes, examinando-a, medindo-lhe as ainda existentes força e graciosidade. As mãos do pai dela e as de Sebastien eram tal-qual. Guardou a observação para si e disse a Sebastien que os pais de ambos eram muito parecidos: produtos das suas próprias desilusões e da incapacidade de ver o mundo para lá das suas expectativas grandiosas. E agora Sebastien insistia em visitar o seu pai! Amy temia o encontro de tal forma que nem as palavras tranquilizadoras de Sebastien durante a viagem de avião tiveram efeito. No lar, encontraram o pai de Amy sentado junto de uma janela, ao sol, usando um dos fatos de treino que a filha lhe trouxera numa visita anterior. Estava preso à cadeira de rodas porque não conseguia ficar direito sem ajuda. O rosto parecia tranquilo, mas sem vida. Sofrera vários pequenos AVC ao longo do último ano; expressava-se através de alguns sons guturais distorcidos e movimentos fracos de uma das mãos. Tinha um lado da boca virado para baixo, e a pele à volta parecia cera derretida. Amy beijou-lhe a testa pálida e salpicada de pequenas manchas e viu a mão estremecer. Tinha a certeza de que Zack a reconhecia, mas não sabia se a sua presença o deixava contente. Como toda a vida tivera essa dúvida em relação ao pai, aprendera a não se deixar oprimir por ela. – Cortaram-lhe o cabelo – observou, enquanto tocava nas madeixas curtas e grisalhas. Chamou uma auxiliar e perguntou-lhe porquê. Desde o princípio, sempre advertira para que não lhe tocassem no cabelo. – Contratámos alguns funcionários novos – explicou a mulher. – Um deles levou o senhor Zack lá abaixo ao barbeiro, por engano. Não sabia que não podia. – Por favor, não voltem a fazer isso. O meu pai gosta de usar o cabelo comprido. – Fique descansada. Depois da auxiliar se afastar, Amy prometeu: – Voltará a crescer, pai. Zack emitiu um som, que tanto podia ser uma imprecação como uma risada. Amy olhou para

Sebastien, que os observava com atenção. – Era o seu sinal de rebeldia – explicou ela com a voz embargada. – Devia poder mantê-lo, mesmo aqui. – Deu uma palmadinha no ombro do pai e apontou para Sebastien. – Este é o doutor de Savin, pai. Conheceste-o há muito tempo. Numa feira medieval nas montanhas. Lembras-te? O pai limitou-se a pestanejar. Sebastien pegou-lhe na mão e apresentou-se, apertando ao de leve. Amy sentiu uma esperança lancinante nascer-lhe no peito, mas Zack Miracle limitou-se a olhar para ele com olhos vagos e curiosos que rapidamente se desviaram, ausentes, para pousarem de novo nela. – Ellen? Pronunciou o nome com uma clareza surpreendente. Amy ficou arrepiada e murmurou para Sebastien: – A minha mãe chamava-se Ellen. – Depois virou-se para o pai e corrigiu-o, em tom paciente: – Sou a Amy. – Ellen. – Zack agitou a mão, esticou-a lentamente e tocou-lhe na barriga com o dedo ossudo. – Bé… bé… Nã mors. Amy ficou sem pinga de sangue. Bebé. Não morras. Pigarreou e explicou a Sebastien: – A minha mãe morreu quando eu nasci. Ele está confuso. Com as mãos a tremer, pegou na do pai e segurou-a. Ele repetiu o aviso, com dificuldade devido à boca torta, mas mesmo assim conseguiu dizê-lo mais alto do que da primeira vez. Amy acariciou-lhe a mão. O Sebastien que se preocupe com maldições. Eu recuso-me. Para com isso, pai. Zack tornou a repetir e mexeu-se na cadeira, claramente agitado. Sebastien pousou uma mão no ombro de Amy e ela deu um salto. – Não sei o que é que lhe deu hoje! – Acalma-te, meu amor. Fala com ele. – Sebastien inclinou-se para a frente e pousou a outra mão no joelho do pai dela. – Esta não é a Ellen – indicou, no seu tom grave e penetrante. O homem olhou para ele. – Não é a Ellen – repetiu. – Não tem um bebé. Não vai morrer. O pai de Amy acalmou-se. Baixou as pálpebras e, após alguns segundos, voltou a olhar para a janela com expressão vazia. – Acho que ele gosta mais de ti do que tu julgas – comentou Sebastien, acariciando-lhe o ombro. – É evidente que amava muito a tua mãe. – Talvez, mas penso que sempre me guardou ressentimento por ter sido eu a razão da sua morte. Fui um grande erro, desde o princípio. – Olha para mim. – A intensidade na voz de Sebastien sobressaltou-a. O médico segurou-lhe no rosto e fitou-a. – Somos mais do que se esperava que fôssemos. Não interessa como é que viemos ao mundo. Amo-te. – Também te amo. – Amy abraçou-o e concentrou-se em pensamentos positivos. Não deixaria que o seu futuro fosse afetado pelas recordações mórbidas, fosse de quem fosse – nem pelas do pai e de Sebastien, e muito menos pela suas.

Vendera a casa do pai há mais de um ano, para cobrir os custos do lar. Doara a maior parte do recheio ao Exército de Salvação e guardara as coisas pessoais, como as recordações do circo e os quadros, num armazém arrendado. Uma vez que Sebastien os queria ver, levou-o até lá com alguma relutância. – Sinto-me mal quando olho para estas coisas – explicou. – Trazem demasiadas más recordações, acho eu. Passei tantos anos a vê-lo pintar, enquanto bebia e fumava charros. – Dentro do pequeno armazém, abriu um caixote de madeira e apontou para as telas. – Dá uma vista de olhos e vê o que achas. Quando encontrou o primeiro retrato de Amy, Sebastien parou. – Claro que o teu pai gostava de ti. Vê-se bem na forma como te representa. – Os teus olhos são mais generosos do que os meus. – Quando decorarmos as nossas casas, gostava de mandar emoldurar alguns destes quadros. Deviam estar em exposição. Amy beijou-o, grata, mas abanou a cabeça. – Não consigo imaginar ter estes quadros numa parede onde me podem ver. – Ver-te? – Sinto o meu pai a observar-me quando olho para eles. E não tenho a certeza se é uma observação benigna, se é que me entendes. – Já eu penso o contrário. Com carinho, pousou a mão no rosto dele, mas o olhar que lhe lançou era de censura. – És muito magnânimo quanto aos sentimentos do meu pai. – Enquanto sou cínico em relação aos sentimentos do meu? Sim, minha querida Miracle, mas é por isso que nós os dois fazemos um par tão maravilhoso: queremos o melhor um para o outro sem enganos nem desonestidades. O sentimento de culpa fê-la desviar os olhos. – É verdade que quero o melhor para ti – murmurou, encostando a cabeça ao ombro dele. Não conseguia contar-lhe. Ainda não.

Amy apercebeu-se de que a cena parecia um filme de segunda categoria: só faltava acenar com o lenço branco à medida que via o grande jato afastar-se. Um pôr do sol rosa e dourado cobria o horizonte. Encostou a testa ao vidro de uma das janelas junto à porta de embarque e pensou que não aguentaria a beleza daquele poente. Não chorou, embora soubesse que o faria mais tarde. Tentou pensar em termos de princípios, não de fins. Era assim que Sebastien queria. Fora por isso que esperara até chegarem à porta de embarque para lhe dar o anel – uma grande safira rodeada por diamantes, com as iniciais de ambos e a data gravadas no interior – e uma cruz de prata esterlina, presa num fio também de prata, que pertencera à mãe. Era um crucifixo celta, delicadamente ornamentado. Sebastien explicou-lhe que, para os antigos celtas, o círculo

representava o sol e era também um símbolo de eternidade, de infinito. Enquanto via o jato descolar, Amy segurou a cruz. Estava quente, sob o sol, como uma promessa de fé e, conhecendo Sebastien, um símbolo de proteção.

A médica sabia dar as notícias com estilo. – O seu palpite está certo. Temos bebé. Amy olhou, entorpecida, para um quadro de carneirinhos a brincar na parede do gabinete da obstetra. – Mas como? – Bem-vinda ao mundo das hipóteses improváveis. Faz parte dos dois por cento de taxa de falha da pílula. – Estive doente há algumas semanas. Vomitei tudo o que comia durante dois dias. Tomei sempre a pílula, mas talvez não tenham chegado ao seu destino. – É possível. Como se sente, sabendo que está grávida? – Preocupada. – Com certeza que conhece as suas opções. – Sim. – Olhou para a barriga lisa, coberta pelo vestido leve. Tentara não se ligar à vida que podia ter dentro de si. Ao mesmo tempo, contudo, uma convicção profunda e terna crescera. Aquela certeza, agridoce, arrepiou-a. Pousou a mão na barriga e murmurou: – Olá. O teu pai deseja-te tanto como eu. Só não sabe, ainda. Mas não te preocupes. Vai correr tudo bem. – Suponho que é evidente qual a opção que escolheu. – A médica recostou-se na cadeira e começou a escrever num bloco. – É saudável e parece estar tudo bem com a gravidez. Marque uma consulta com o seu ginecologista habitual quando voltar a Los Angeles. – Vou andar em digressão pelo país nos próximos meses. Isso é mau, não é? – Não se cuidar de si e fizer check-ups regulares. – Posso fazer isso. – O pai do bebé está consigo? – Não. – Não está interessado? – Ficaria interessadíssimo… se eu lhe contasse. Só que neste momento não o posso fazer. É complicado. Claro que lhe contaria: quando a gravidez estivesse mais avançada, a situação familiar mais controlada – quando Sebastien conseguisse ver raios de luz em vez de negrume. Até lá, a única coisa que podia fazer era cuidar da sua saúde e enviar boas vibrações ao bebé que tinha dentro de si. Aquela criança não nasceria sob uma maldição paterna.

Capítulo 24

O dia frio de outono tornou-se chuvoso antes do meio-dia. Não era um bom dia para estar nas docas, e muito menos nas que pertenciam a uma companhia de navegação e armazenamento tão mal gerida, que perdia dinheiro e que nunca devia ter sido adquirida pelo consórcio familiar. No entanto, Sebastien gostava de libertar a energia acumulada com algum trabalho braçal de monta. Ao descarregar os pesados caixotes carregados de peças automóveis, estava a enfrentar forças que compreendia. De certa forma, fazia-lhe lembrar a cirurgia cardíaca: as suas mãos eram guiadas por instinto, a sua energia conseguia ultrapassar os obstáculos, tomava decisões e via-as concretizadas de imediato. Aquele trabalho fazia-o desejar ardentemente estar de novo num bloco operatório. Sorriu para si próprio quando se apercebeu da estranheza da comparação. Não era um homem de negócios, nem fingia ser. Quando relacionadas com margens de lucro ao invés de tensões arteriais, as estatísticas entediavam-no. Não havia nelas nada humano, nada palpável, nada que pudesse usar para reparar um corpo danificado e observar a recuperação com uma sensação de vitória primitiva, o triunfo da vida sobre a morte. Quando era obrigado a tomar uma decisão de negócios, tinha de escutar e filtrar os conselhos de uma dúzia de executivos, pesando os argumentos de cada um com uma perícia minuciosa, mas sem qualquer talento. Era forçado a esconder a sua incerteza por trás de uma fachada de confiança, para que não desconfiassem da sua vulnerabilidade e não se aproveitassem dela. Que diferença em relação à cirurgia, onde antevia todas as respostas antes mesmo de as perguntas surgirem! Hoje, a sua frustração estava no auge. Sentia um orgulho perverso ao ver como os diretores andavam de roda dele, a tentar parecer úteis e a disfarçar a consternação. Nenhum dos executivos do pai alguma vez vestira um fato-macaco e trabalhara ao lado dos estivadores. Passado o choque inicial, os estivadores, homens enormes, corpulentos, com um bom humor exuberante, sorriam-lhe, lembrando-lhe a família materna das aldeias piscatórias bretãs. Reparou nos tendões esticados nas mãos e perguntou a si próprio quanto tempo faltaria para poderem voltar ao trabalho em que eram melhores. Queria retomar a carreira cirúrgica e recuperar a sua vida junto de Amy. Ligava-lhe todos os dias, ao meio-dia em França, e ela estava sempre à espera. Conforme a cidade onde se encontrava, era final da tarde ou princípio da noite e preparava-se para trabalhar: dois espetáculos por noite, três aos fins de semana. Muitas vezes, conversavam até ao minuto em que ela tinha de deixar o quarto de hotel. Há um mês que não estavam juntos e os dias pareciam anos – felizmente, verse-iam na semana seguinte.

Os telefonemas diários eram o único elemento que lhe dava forças para continuar. Os seus dias eram ocupados com reuniões, viagens e burocracias. O pai continuava no hospital, a agarrar-se à vida, embora cada dia que passava em coma tornasse a sua sobrevivência menos provável. Annette tivera alta há poucas semanas, mas só porque Sebastien lhe arranjara cuidados de enfermagem e fisioterapia diária em casa. O que não conseguia arranjar, por mais que tentasse, era o estado de espírito dela. Os ciúmes que Annette tinha daquele seu recém-adquirido poder minavam a relação dos dois. As lesões e a dor por ter perdido Giancarlo afetavam-na tanto como as suspeitas em relação à autoridade do irmão. Sebastien perdera a irmã, o único membro da família de quem ainda era próximo. Atirou as caixas para cima das pilhas mais altas e sentiu músculos negligenciados esticarem-se. O diretor-geral da companhia aproximou-se dele pela quarta vez na última meia hora, a torcer as mãos. – Por favor, senhor, não há necessidade disto. Não consigo compreender o seu objetivo… – Pare de me aborrecer ou ponho-o a trabalhar num cargo que exige mais do que talento para desculpas. O diretor ficou vermelho como um tomate ao ver os esgares que os estivadores não conseguiram esconder. – Estou cansado desta humilhação! Queixou-se da forma como organizei o armazém, acha a minha contabilidade insatisfatória, e agora tenta mostrar-me que os meus estivadores têm excesso de trabalho e são mal pagos! Recuso-me a aceitar isto! Se continuar, tenho de me demitir! Sebastien parou apenas o tempo suficiente para lhe lançar um olhar furioso. – A sua demissão foi aceite. Adeus. Que se lixe a diplomacia.

A raiva de Annette estava à espera dele, como de costume, quando chegou a casa à noite. Da cama de hospital que lhe tinham instalado no quarto, fitou-o, furiosa, com os olhos vidrados por causa da medicação para as dores. – Já ouvi dizer que deste um bonito espetáculo hoje. A demonstrar a tua afinidade com os pobres trabalhadores explorados despedindo um diretor-geral razoavelmente eficiente. Que melodramático! Sebastien sorriu e rangeu os dentes. – Queria ver se as docas estavam a ser tão mal geridas como me parecia. E estavam. Não tenho o teu talento diplomático para obter o melhor de gestores medíocres, pelo que resolvo os problemas de outra maneira. – Humilhaste também os outros diretores. – E mereceram-no. Acalma-te, Annette. Ainda não estás suficientemente recuperada para te envolveres em mexericos empresariais. É um passatempo cansativo. – Tolerava os ciúmes irracionais da irmã devido ao seu estado, na esperança de que passassem depois de recuperar, mas eram uma razão

acrescida para contar os dias e até as horas até Amy acabar a digressão. Pelo menos nessa altura poderiam estar juntos. Deixou-se cair numa poltrona aos pés da cama. Cruzou as pernas e fingiu-se concentrado numa partícula de poeira no vinco perfeito das calças. Só passara por ali para satisfazer a necessidade diária que Annette tinha de notícias dos negócios; tinha outros deveres à sua espera. – Esta noite vou ao jantar da ópera em teu lugar – informou. – Detestas ópera. A única música que alguma vez consideraste digna de atenção é aquela chinfrineira do jazz. – Isso não importa. Tens alguma mensagem que queiras que eu transmita? Pediram-me para dizer algumas palavras sobre o teu trabalho de voluntariado. Annette puxou as mantas, irritada. – Oh, deixa ver… Conta-lhes como te apoderaste de tudo. Confessa-lhes que, quando eu estiver em condições de voltar, estarás tão acostumado ao controlo que me começarás a ignorar, como o papá sempre fez. Explica-lhes que o papá ficaria felicíssimo se acordasse e descobrisse que o filho pródigo finalmente assumiu o comando. – Se desperdiçares a tua energia com paranoias, a recuperação será mais demorada. – Que me interessa? – As lágrimas deslizaram-lhe pelas faces magras. – Perdi o Giancarlo, sou uma inválida e tu só estás à espera de que o pai morra para herdares tudo! Sebastien recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Annette nunca confiaria nele, embora não tivesse dúvidas de que o amava. O favoritismo teimoso do pai em relação a ele marcara-a, tanto quanto ao seu irmão Jacques. – Só quero a minha liberdade – lamentou-se a Annette, como em inúmeras outras ocasiões. – Assim que estiveres boa, vou voltar para a América. – Oh, eu sei, eu sei: vais viver lá, voltar à medicina e casar com a tua americana esquisita. Sebastien endireitou-se e olhou para ela. A sua tolerância estava a chegar aos limites. – Quem é que tem andado a falar contigo sobre a Amy? – Oh, ouvi os empregados. Dizem que é uma atrizita qualquer, que tem uma voz estranha e faz truques de magia. Mencionaram tatuagens e uma cicatriz…. Não acredito que sejas capaz de casar com uma mulher dessas. Sebastien levantou-se, aproximou-se da cama e pegou-lhe na mão. Fitou a irmã até Annette corar e virar a cabeça para a parede. – Não me olhes assim, Sebastien. Desculpa. – Recomeçou a chorar. – Não gosto de ser má contigo. Estou tão confusa. Tão… tão furiosa com o papá por te ter deixado com este problema. – Ele ainda não morreu. – Nunca sairá do coma. Sebastien disfarçou um sorriso desprovido de humor. – Há o Sol, a Lua e o nosso pai. Se tivesse de apostar, mais depressa arriscaria na sobrevivência

dele. Tinha razão. Uma semana depois, o pai abriu os olhos e, num murmúrio firme, exigiu atenção.

Philippe de Savin ficara paralisado do pescoço para baixo, um facto que nem a sua força de vontade indómita conseguiria alterar. – Estás contente? – perguntou ao filho, num murmúrio. Sebastien desviou os olhos do saco do cateter preso aos pés da cama. Manteve uma expressão neutra e uma postura rígida, enquanto se debatia com sentimentos de piedade que não desejava sentir. – Não. Para ser franco, não gosto de gerir os negócios. – Nesse caso, porque voltaste? – Pela Annette. – Ah… Nem sequer admitirás sentir qualquer noção de dever em relação a mim. – Não posso admitir algo que não existe. – Então, porque vieste aqui hoje? – A Annette pediu-me um relato em primeira mão do teu estado. A tua filha gosta de ti; o que é espantoso, considerando o pouco que mereces o amor dela. – Oh, meu filho, meu filho! Pensas que não amo a tua irmã? Ou a ti? – Por favor, confissões não. Vindas de ti, não soam a autênticas. – Porque havia de dizer outra coisa se não a verdade, neste ponto da minha vida? – Então, tens mantido esse afeto em segredo todos estes anos? Que interessante! – Sempre quis o melhor para os meus filhos. – Deve ser por isso que três deles não sobreviveram. – Escuta-me: queria o melhor para todos, mas um homem sábio compreende que tem de concentrar as suas esperanças no mais forte. Depois do Antoine… esse filho eras tu. – Eu nunca almejei ser o teu preferido, ao contrário do Antoine, e já o expressei vezes de mais. Porque é que continuas a querer impor-me os teus objetivos? – Eu, impor-te…? Eu quis dar-te os meus sonhos. – A única coisa que eu queria de ti era o Antoine, a Bridgette e a minha mãe, e não pudeste devolvermos. – Eu sei. Pensei que o resto acabasse por compensar essa falha. Sebastien deixou-se cair numa cadeira de metal ao lado da cama e olhou para o pai, chocado. – Queres que acredite que me massacraste e manipulaste ao longo de todos estes anos por sentimento de culpa? O pai olhou lentamente em volta, como se estivesse à procura de respostas no quarto de hospital. – A culpa e o orgulho são companheiros terríveis, que lutam entre si. Mas sim, sempre pensei que tinhas sofrido com nobreza e que devias ser recompensado de igual forma.

– Mesmo que a recompensa fosse algo que nunca ambicionei. – Não sabias o que querias, exceto castigar-me. Achei que a tua atitude mudaria, com o tempo. – Conseguiu esboçar um sorriso. – Bem, olha para mim agora. Não fui já castigado o suficiente? Sebastien recusou-se a responder. Afinal, um «sim» poria fim a trinta anos de amargura. – E o Jacques e a Annette não mereciam ser recompensados? – Não. Foram criados no luxo, tiveram todas as vantagens… – Também eu. – Mas a força deles nunca foi posta à prova, como a tua. – As mortes da mãe, do Antoine e da Bridgette não foram um teste à minha força: se assim fosse, terte-ia matado. Pensei nisso durante muito tempo; tinha vergonha da minha fraqueza por não ser capaz de o concretizar. – Uma criança a pensar em homicídio é um exemplo de força. Chega aqui. Não consigo virar a cabeça para te ver. Vem. Olha-me nos olhos. Sebastien sentiu-se vulnerável e ameaçado, zangado. As emoções trouxeram ao de cima memórias enterradas da confusão que se apoderara dele nos anos após a tragédia. Levantou-se de um salto e inclinou-se sobre a cama, agarrado às proteções laterais, encarando o pai com fúria. – Podes ter a tua vingança agora – murmurou o pai sem desviar o olhar, em tom autoritário. A entendimento daquela sugestão entorpeceu Sebastien. Ouviu o sangue a rugir-lhe nos ouvidos. Horrorizado, continuou a fitar o pai, que o provocava. – Mata-me – ordenou a voz suave e determinada. Sebastien apoiou-se nas barras metálicas, apercebendo-se de que tinha as pernas bambas. – O que tu queres é salvação, não morte. – Não é essa a tua especialidade, doutor? – Arruinar-me por ti? Não. Nunca mais. – Então tem misericórdia. Julgas que quero continuar a viver assim? Sei que não durarei muito, mas isto é… uma tortura. – Eu sei. – Ah, aprovas o meu sofrimento. – Não. – A tremer, encostou a mão à face do pai. Os olhos do velho homem tremeluziram de surpresa ao sentir o toque gentil. – Gostava de poder ajudar-te. – Porquê? – Por causa da minha formação médica. – Não. Por amor. Sebastien recuou. A palavra ficou suspensa no ar, sem ser rebatida ou retribuída, mas também sem ser negada. – Descansa. Volto amanhã. – Estarei à espera. – Sebastien nunca vira uma expressão tão calorosa nos olhos do pai. Daí em diante, voltou todos os dias. Às vezes, ele e o pai nem sequer falavam. O esforço era

demasiado para Philippe, em termos físicos, e para Sebastien, em termos emocionais. Quando falavam, era acerca dos negócios. Sebastien não admitia que queria confortar o pai, e o pai nunca admitiria precisar de conforto.

– Olá – cumprimentou-o Amy num tom sedutor. Sebastien aproximou mais o auscultador do ouvido, fechou os olhos para a visualizar e recostou-se na cama. – Olá, meu amor. – Como estava o teu pai hoje? – Cada vez mais fraco. Tem fluido nos pulmões. – Sebastien hesitou, e depois acrescentou, contrariado: – Hoje apercebi-me de uma coisa: consigo estar ao pé dele porque sei que já não tem poder para nos manter afastados. Além disso, ver como tu resolveste os teus sentimentos pelo teu pai, como te tornaste mais forte por causa dele… Sinto que tenho de fazer o mesmo com o meu. – Ainda bem. Estou tão contente por já não o odiares. – Mesmo assim, não peças que seja demasiado generoso, Miracle. Amy suspirou e mudou de assunto. – Como está a tua irmã? – Hoje saiu pela primeira vez de casa. O terapeuta levou-a a passear no jardim; fez o caminho todo pelo próprio pé. – Fantástico! E os teus sobrinhos? – Estão zangados comigo. Não os deixei ir ao cinema ver o Bambi. – Qual era o problema? É um clássico! – Contaram-me que a mãe do Bambi morre e achei que não era o mais adequado neste momento. – Franziu a testa, sentindo-se tolo. – Não percebo nada de crianças. Achas que fiz mal? Um segundo depois, Amy respondeu-lhe num tom suave e carinhoso. – Não, doutor, acho que és um querido. O sentimento dela agradava-lhe, mas fê-lo sentir mais ainda a solidão. Não conseguiu arranjar uma resposta digna. – Sebastien? O Jacques e a Louise adoram-te. Se lhes desses uma oportunidade, iam arranjar um cantinho no teu coração e nunca mais de lá sairiam. – Não é bom para as crianças serem demasiado dependentes. – Preferias que fossem adultos em ponto pequeno? Não lhes faças isso. Deixa-os ser descontraídos e divertirem-se e… ajuda-os a aprender com os seus erros. – Miracle, sabes tão bem como eu o valor da autoconfiança. – Compreendo onde queres chegar, a sério. Mas lá porque as coisas foram difíceis para nós, lá porque tivemos de crescer demasiado depressa, têm de ser igual para o Jacques e a Louise? Eu não

desejaria que eles tivessem uma infância como a minha. Gostavas que fosse como a tua? – Estás a insinuar que eu espero que sofram como eu sofri? Julgas que estou a ser cruel? – Cruel não. Apenas… esquecido. Não te recordas de como eras antes de a tua mãe morrer? – Não. – Tens de te esforçar. Se queres ser bom com crianças, tens de te lembrar de como era ser uma. Sebastien disfarçou o desconforto com um tom exasperado. – Porque é que estamos a debater este tópico? Não preciso de ser bom com crianças. – Ai isso é que precisas. – A voz de Amy não mudara, mas o tom melódico e ligeiro ganhara uma tonalidade de urgência. – Quero que tentes. Para seres justo comigo, connosco, tens de tentar mudar a tua postura em relação a ter uma família. – E se não conseguir? – O silêncio tenso de Amy fê-lo arrepender-se da sua franqueza. – Não respondas. Foi uma pergunta estúpida. Não vale a pena especular sobre o futuro distante. Tenho a certeza de que chegaremos a um compromisso. Baixinho, Amy retorquiu: – Se nunca quiseres filhos, nem tenho palavras para te explicar o quanto isso me magoará. A angústia na voz dela chocou-o. Pensara que nada conseguiria afastá-la, mas de súbito apercebeu-se de que aquela questão podia fazê-lo. – Tenho a certeza de que chegaremos a um compromisso – repetiu, abalado. – Temos de chegar. Um silêncio tenso abateu-se sobre eles. – Então… como foi o teu dia? – perguntou Amy. A pergunta afastou a nuvem de desconforto e a conversa tornou-se mais fácil. – Está tudo bem – mentiu Sebastien. – Pareces cansado. Foi um dia longo no escritório? – Sim. Um caos absoluto. Imagino que deve ser sempre assim quando é preciso arrumar a casa num consórcio como este. – Aposto que és um arrumador feroz. – Claro. Um autêntico ditador. Todos os cirurgiões o são, por natureza. O meu lugar é no bloco operatório e é para onde voltarei daqui a poucos meses. Tenho tanto trabalho pela frente! – Doutor, vai correr tudo bem. A maioria dos cirurgiões cardíacos dariam a aorta direita para saber tanto como aquilo que tu já esqueceste. – Que confiança maravilhosa. Agora sei porque gosto tanto de falar contigo. – Fez uma pausa e acrescentou: – Amo-te. Amy soltou um soluço estrangulado. – Eu também. E tenho saudades tuas. Espera. – Amy precisou de um instante para recuperar a compostura. Sebastien ouviu-a pigarrear e fungar. A solidão dela fundiu-se com a sua e esfregou os olhos doridos.

– Só mais uns dias – recordou-lhe. – Esta manhã acordei aos beijos à almofada. Estava num avião. As hospedeiras tinham ficado especadas a olhar para mim. Foi muitíssimo embaraçoso. Sebastien sorriu. – Vais estar em Kansas City esta noite? – Sim. Vou atuar num clube chamado Happy’s até domingo. – Fez uma pausa. – E a seguir apanho o avião para Paris. Sebastien fechou os olhos, em antecipação. – Tenho uma surpresa para ti. Assim que chegares, vais ter de apanhar outro avião. Para Rennes. Pensei em encontrarmo-nos lá e darmos um passeio pelo campo. Reservei uma casinha em Beg-Meil. É uma das cidades costeiras mais bonitas da Bretanha. – Bretanha… De onde era a tua mãe? – Sim. – Adorava ir lá! Mas… Faz-me um favor. Em vez de te encontrares comigo no aeroporto em Rennes, pode ser num hotel? – Que misteriosa. – Não, é só porque quero que tudo esteja perfeito quando nos virmos. Quero que o nosso encontro seja em privado. – O seu tom tornou-se provocador. – Tenho uma lista de coisas obscenas que quero fazer assim que te puser as mãos em cima, e no aeroporto não posso, pelo menos sem atrair espetadores. – Adoro a tua impaciência, meu amor. Está bem. Eu trato de tudo. Obscenas, hã? Mal posso esperar. – Oh, vais ter um choque. – De súbito, a voz de Amy subiu uma oitava, como acontecia sempre que estava tensa. – Literalmente. Sebastien ficou preocupado com o nervosismo que pressentiu nela. – Ontem contaste que o teu filme estava em fase de edição. Mais alguma novidade? – Oh, sim! Quase me esquecia. O meu papel não foi cortado! Tenho uns bons dez minutos de tempo de ecrã. – Maravilhoso! Amy suspirou. – Não se constrói uma carreira com dez minutos de falas patetas como: «Querido, o teu pato comeu os atacadores dos meus ténis.» Não é arte. – Tenho a certeza de que vou gostar. Sempre preferi o Jerry Lewis ao François Truffaut. – Sim – retorquiu Amy, divertida –, mas isso é porque a tua ideia de entretenimento é brincar ao «Mamã Dá Licença» com cadáveres. – O que é o «Mamã Dá Licença»? – É um jogo. Ensino-te quando nos encontrarmos em Rennes. – Estou a contar os dias. – Quatro. Mais as seis horas e quarenta e sete minutos que ainda faltam do dia de hoje.

– Amy? – Sim? – Quando chegares, vamos começar a fazer planos para o casamento. – O silêncio do outro lado da linha espantou-o. – Amy? – Sim. Sim. É boa ideia. Muito boa ideia. – Passa-se alguma coisa? – Claro que não. Estava só a pensar. – Em quê? – Oh, é que… Engordei um bocadinho. Sebastien suspirou, aliviado. As mulheres e a sua vaidade! – Só isso? Miracle, não tenho nada contra uma mulher que gosta de comer. Não te preocupes: de certeza que vou gostar do que quer que tenhas a mais. Amy soltou um som estrangulado e mudou de assunto. Mais tarde, depois de desligar, deitado na cama a olhar para o vazio de testa franzida, Sebastien apercebeu-se de que ele é que ficara preocupado.

Uma noite, ao regressar do escritório, encontrou Marie, que viera visitar Annette. Estavam na sala de estar grande no piso térreo da casa. Annette estava deitada no sofá, enrolada em mantas, e Marie sentada numa cadeira Luís XVI, tão colorida como ela era escura. Parecia elegante e formal no vestido preto e direito. Todos os sinais da sua fase esotérica tinham desaparecido: até voltara a usar pérolas. Ficou tensa quando Sebastien entrou na sala e franziu a testa quando ele a cumprimentou. – Ouvi dizer que tencionas voltar a casar. Com uma atriz americana. – Em primeiro lugar, a Amy é uma comediante; ainda não se firmou como atriz. E, sim, tencionamos casar. – Nunca esperei que tivesses tantas saudades da vida de casado para voltares a tentar tão cedo; no fim de contas, estamos divorciados há menos de um ano. – Por vezes, até eu me espanto. E como estás tu? – Ocupada, muito ocupada. Vou abrir uma cadeia de livrarias. – Desejo-te boa sorte. Marie afastou tal noção com um aceno elegante. – Quando é que a sorte foi mais do que trabalho duro e a capacidade de pôr de lado os sentimentos para alcançar um objetivo? Sebastien riu-se baixinho e dirigiu-se à lareira de mármore, onde se encostou, perdido nos seus pensamentos enquanto contemplava as chamas crepitantes. Marie resumira na perfeição a sua atitude perante a vida ou, pelo menos, a atitude que aplicara no casamento. Não lhe guardava qualquer rancor por isso – na verdade, partilhara da mesma visão durante muitos anos –, mas sentia-se feliz por Amy o ter salvado de tal destino.

–… por favor, perdoa o Sebastien – estava Annette a dizer. Sebastien levantou a cabeça e viu que ambas as mulheres o observavam: Annette com ar divertido, Marie com expressão fria e confusa. – Ultimamente distrai-se muito. Não nasceu para os negócios. É pressão a mais. Sebastien sorriu. – Sim. Dou-te tudo de boa vontade. Mais alguns meses e tenho a certeza de que estarás a ocupar o meu lugar. – Vou lembrar-te dessa promessa. Sebastien ainda estava distraído por pensamentos agradáveis sobre o futuro. Ocorreu-lhe que já não estava nem um pouco interessado em Marie, em termos emocionais, vendo-a mais como uma estranha do que como a mulher que partilhara uma coexistência dramática. Aproximou-se dela, inclinou-se e beijou-a na testa. – Foi um prazer voltar a ver-te – disse, com sinceridade. – Por favor, desculpem-me não continuar a fazer-vos companhia, mas tenho de tratar de uns documentos. Boa noite. Marie olhou para o ex-marido, boquiaberta. – O que é que te deu? Mudaste. Mal te reconheço. – Ainda bem, não achas? – Deu-lhe um novo beijo na testa e saiu da sala, sentindo-se satisfeito e livre. No dia seguinte encontrar-se-ia com Amy em Rennes. Nada mais tinha importância, a não ser os poucos e preciosos dias que passariam juntos. Mais do que nunca, Amy era o centro da sua autodescoberta e o motivo pelo qual gostava do que começara a descobrir sobre si próprio.

Rennes era tão antiga e imponente como o granito que compunha quase todos os seus edifícios oitocentistas. Era uma cidade neoclássica bonita, embora um pouco pomposa, com algumas avenidas largas e o distinto Palais de Justice, onde em tempos se reunira o parlamento regional. As áreas mais recentes constituíam uma mistura fervilhante de indústrias modernas e subúrbios apinhados. Sebastien conduziu através da cidade sem reparar na paisagem. A boca secara-lhe com o entusiasmo. Tirou o relógio de prata do bolso das calças do fato preto e viu as horas. Não queria estar vestido de maneira tão formal aquando da chegada de Amy, mas os negócios tinham-no atrasado e não quisera perder tempo a mudar de roupa. Assim que chegou ao hotel, colocou a mala e algum dinheiro na mão de um carregador e gritou-lhe o número do quarto enquanto atravessava o átrio sumptuoso. Não tinha paciência para o elevador antigo com a sua grade ornamentada; em vez disso, dirigiu-se à escadaria ao fundo do átrio e subiu os quatro pisos a correr. O carregador, ofegante, corria atrás dele. Quando o apanhou, Sebastien já ia a meio do corredor do quarto andar, à procura da porta do quarto. – Quatrocentos e quinze. É aqui, senhor – indicou o carregador. – A senhora chegou há uma hora. – Para consternação de Sebastien, o homem antecipou-se e bateu à porta. – Carregador, madame! Exasperado, Sebastien segurou-lhe no braço. – Não é necessário mais nada, obrigado. Pode ir.

– Entre! – convidou Amy, de dentro do quarto. O rapaz empurrou a porta e Sebastien esqueceu-se de tudo, exceto do desejo de a olhar. Entrou e parou. Os seus olhos viraram-se de imediato para ela. Amy estava sentada num sofá de brocado, de costas para a porta. Estava virada para trás, a sorrir, com um braço sobre as espaldas do móvel. Tinha o cabelo preso de lado com uma travessa dourada. O pouco que conseguia ver dela estava coberto por um casaco preto sedoso, por cima de uma blusa do mesmo material, com um decote pronunciado. Tinha os olhos verdes a brilhar, divertidos. A sua pose e aparência eram tão propositadamente dramáticas – e tão eficazes – que Sebastien sentiu crescer dentro de si uma mistura de orgulho, excitação e amor. Amy dera-se a bastante trabalho para lhe agradar. – Era este o senhor que esperava, madame? – perguntou o carregador. Ela acenou que sim. – Este mesmo. Obrigada. – O seu francês, com o excêntrico sotaque americano, era encantador. Sebastien estava sequioso do som da sua voz. Enfiou mais dinheiro na mão do carregador e conduziu-o à porta. O rapaz sorriu e acenou enquanto a fechava atrás de si. Sebastien deu meia-volta e dirigiu-se a Amy, de mãos estendidas; no entanto, e ao contrário do que esperava, ela não se levantou de um salto e correu para ele. Em vez disso, levantou-se com uma lentidão elegante, fazendo rodopiar o casaco de seda comprido, que fechou com as mãos à frente do corpo. Reparou que vestia uma saia preta e sapatos pretos de salto fino. Ao pescoço, trazia a cruz celta e, na mão esquerda, o anel que ele lhe dera. A rapariga por quem se apaixonara há mais de dez anos tornara-se uma mulher bela e elegante, e Sebastien nunca estivera tão consciente desse facto como agora. Mas havia também algo novo nela – uma reserva, um mistério. Franziu um pouco a testa enquanto contornava o sofá e lhe estendia os braços. – Não – disse Amy, recuando um passo e segurando-lhe nas mãos. – Deixa-me olhar para ti primeiro. Espantado, Sebastien estacou. Agora que estava mais perto, podia ver que o rosto de Amy estava pálido, embora com as faces coradas, e que a maquilhagem não conseguia disfarçar a fadiga ou a ansiedade. – Amo-te – disse, fitando-o com uma angústia que Sebastien não conseguiu compreender. Apertou-lhe as mãos. – O que foi? O que se passa? – Baixou os olhos e viu a barriga saliente, agora que ela deixara o casaco abrir-se. Continuou a olhar, sem querer acreditar no que significava. – Não quis contar-te antes – explicou Amy, com voz perturbada. – Estavas envolvido nos problemas da tua família. Queria que tivesses tempo para controlar melhor as coisas. O golpe duro da realidade tirou-lhe o fôlego. Amy estava grávida. Recuou e baixou as mãos. – Quando é que isto aconteceu? – Em Paris. Quando estivemos em casa da tua irmã. – Por entre o rugido nos ouvidos, Sebastien ouviu-a recordar-lhe que estivera doente e explicar que isso devia ter afetado a eficácia da pílula contracetiva. – Sabes que eu não faria isto de propósito – assegurou-lhe. – Não fui descuidada. Por favor,

acredita em mim. Antes mesmo de levantar os olhos para o rosto angustiado de Amy, Sebastien soube que era verdade. – O problema não é como aconteceu. Porque não me contaste assim que desconfiaste? Amy tinha os olhos rasos de lágrimas. – Eu queria o bebé e tinha a certeza de que tu não… – Hesitou e perscrutou-lhe os olhos. – Que não o queres. – Os seus ombros abateram-se. Sebastien esforçou-se por não gritar, mas não conseguiu. – Claro que não quero! Não tenho qualquer motivo para acreditar que nós os dois temos mais hipóteses de fazer um bebé saudável do que eu e a Marie! – Engoliu em seco, convulsivamente, e tentou acalmar-se. – Disse-te que não conseguiria passar por isto outra vez. Traíste a minha confiança quando não me contaste que estavas grávida logo. – Estava a tentar tornar as coisas mais fáceis para ambos. Há tantas gravidezes que correm mal nos primeiros três meses… Tinha medo de perder o bebé. Se isso tivesse acontecido, tu nem precisarias de saber. – Maldita sejas, tu e os teus segredos! Não quero que te convertas numa mártir. Quero que me incluas em todas as decisões que possam afetar-te, que possam afetar-nos aos dois. – Tenho tentado encontrar o equilíbrio entre o que é melhor para nós e o que é melhor para o nosso bebé. Custou-me muito não te contar. O que é melhor para o nosso bebé. Sentiu uma estranha combinação de amor por ela e de fúria por aquilo que ela queria. Ela vai perder o bebé. Nascerá deformado. Ou a Amy morrerá de complicações no parto. Tinha a certeza disso, uma convicção que, mais do que derivada de uma avaliação racional com base nas tentativas passadas, vinha de um medo profundo e trocista que o fazia sentir-se vazio por dentro. – O que eu quero não interessa – contrapôs com frieza. – Isso é evidente. Agora havia apenas silêncio entre eles, um silêncio gelado. Sebastien viu raiva e desilusão nos olhos de Amy que, ainda assim, lhe deu uma oportunidade de se salvar. – O que preferias que eu tivesse feito? – questionou num murmúrio. Sebastien afundou-se na velha escuridão. – Um aborto. Lentamente, Amy sentou-se e, cruzando as mãos no colo, olhou em frente. – Não. Tenho fé suficiente por nós os dois… os três. Até tenho fé suficiente para pensar que não percebeste bem aquilo que acabaste de sugerir, e que tudo o que será necessário para que mudes de ideias é termos um bebé saudável. – Não vais ter nenhum bebé… – Bateu com as mãos, num gesto brusco. – Seja, então! Se não tens qualquer respeito pela minha vontade, pelo menos não tornes isto ainda pior. – Do medo nasceu uma necessidade de a dominar, de recuperar o que restava do seu controlo. Lutaria contra as suas próprias superstições de todas as maneiras possíveis. – Vamos casar assim que eu conseguir organizar a

cerimónia, e tu não vais voltar para a América. Vamos arranjar um apartamento em Paris. Vou selecionar vários médicos para te verem regularmente e tu… – Vou voltar para Paris esta noite e apanhar o primeiro avião para casa. Sebastien olhou para o rosto lívido de Amy, que continuava sentada na beira do sofá, de queixo erguido, as mãos apertadas com tanta força que parecia que os ossos das articulações lhe iam furar a pele. – Recuso-me a ter a tua confusão e a tua raiva perto deste bebé nos próximos meses. E não vou casar contigo como uma adolescente envergonhada que tem medo do que as pessoas vão pensar. O nosso filho não vai olhar para a nossa certidão de casamento, um dia, e perguntar a si próprio se nós quereríamos mesmo casar. Casarei contigo depois do bebé nascer, se tiver a certeza de que tu o amas tanto quanto a mim. – Não vais voltar para a América e viver sozinha, muito menos viajar e trabalhar. Proíbo-o! Compreendes? Independentemente do que penso em relação a esta gravidez, quero cuidar de ti. A rigidez dela dissolveu-se. As lágrimas deslizaram-lhe pelas faces e fitou-o com tristeza. – Não estarias a cuidar de mim enquanto eu achar que odeias o nosso filho. – Não odeio aquilo em que não consigo acreditar! Não percebes? Há demasiado sofrimento envolvido na espera, na esperança. Não quero afastar-te, mas não me peças para fingir que estou feliz e entusiasmado por ser pai! Amy limpou a cara. – Está bem. Mas vais amar o bebé quando ele nascer. Então, porque não fingir que vai correr tudo bem? – Ouve. – Inclinou-se para Amy, com as mãos estendidas numa súplica. – Nem sequer sei que tipo de pai poderia ser, ou se serei capaz de mostrar o tipo de afeto e paciência de que as crianças precisam. – És. – Raios! Vives dentro de uma espécie de casulo feliz e esperançoso que não te protege, não mais do que uma camada de ar e pensas que, desde que queiras muito uma coisa, a conseguirás! – Quis-te a ti. E tenho-te. Quis estar no mundo do espetáculo. E estou. Por isso, não troces do meu casulo. – Não podes vencer sempre. – Lançou um olhar mordaz ao ventre dela, e Amy puxou o casaco para o esconder. – Desta vez, acho que estás a ser tonta. Amy levantou-se, cambaleante. – Talvez. Pelo menos a tua reação não foi pior do que eu esperava. Com licença. – Descalçou os sapatos de salto alto e desapareceu num ápice pela porta que dava para o quarto da suite. Sebastien seguiu-a até à casa de banho e encontrou-a a vomitar na sanita. Quando se ajoelhou ao lado dela e lhe encostou uma toalha molhada à testa, Amy começou a soluçar. Limpou-lhe o rosto, ignorando-a quando tentou afastar-lhe as mãos. Por fim, exausta, Amy encostouse a ele. Ajudou-a a levantar-se e deu-lhe um copo de água para enxaguar a boca. Ficaram ambos em

silêncio, a evitar olhar um para o outro. Sebastien conduziu-a à cama e deitaram-se em cima da colcha de damasco. Amy virou-lhe as costas mas não protestou quando Sebastien se encostou a si. Rodeou-a com os braços, mas evitou tocar-lhe na barriga. Se reparou, Amy não fez qualquer comentário, mas apertou a mão dele nas suas, com força. Sebastien tinha um nó na garganta, por isso também não disse nada. Não era preciso. Sentia-se amargurado e assustado – não queria um bebé, embora a amasse. Ambas as coisas eram do conhecimento dela. Quanto ao resto, Amy teria de aceitar que iam lidar com a situação à maneira dele, o que significava que ela voltaria para Paris e viveria sob a sua supervisão rigorosa. Por fim, Amy adormeceu. Sebastien considerou que era um sinal de rendição e beijou-lhe o cabelo antes de permitir que a sua própria exaustão emocional levasse a melhor. Teve sonhos vívidos e perturbadores; neles, Amy morria ou desaparecia, e via bebés sem rosto. Quando acordou o quarto estava escuro e percebeu que estava deitado sozinho. Percorreu a suite à procura dela, mas Amy e a sua bagagem tinham desaparecido. Encontrou um bilhete preso na pega da sua mala. Prepara-te para amar o nosso bebé, que eu cuido de mim.

Capítulo 25

Uma semana depois, no final da sua atuação num clube em Minneapolis, saiu e encontrou Sebastien à sua espera. Vacilou entre as boas-vindas e o temor quando o viu, com o corta-vento preto aberto sobre o tronco forte, por cima da camisa clara; a sua expressão era fria como o verão no Minnesota e tinha as mãos agressivamente enfiadas nos bolsos das calças. Deixá-lo no hotel em Rennes fora uma das decisões mais difíceis que tomara na vida, mas não se arrependia. Tivera de o obrigar a escolher entre o passado dele e o futuro de ambos. Aproximou-se lentamente, com os joelhos fracos. Queria tanto estender-lhe os braços, implorar-lhe que lhe assegurasse que estava tudo bem, que viera para garantir que queria o bebé. Depois reparou na mulher de ar severo ao lado dele, com uma gabardina castanha e uma grande mala de cabedal pousada no chão aos seus pés. O olhar de Amy vagueou da mulher séria, de cabelo grisalho, para o sobrolho franzido de Sebastien. Nada que pudesse dizer resumiria melhor o seu dilema do que a simples verdade. – Não mudei de ideias, mas ainda bem que me encontraste – disse, parando junto dele e fitando-o diretamente. Por momentos, os olhos de Sebastien traíram a sua agitação; pigarreou e indicou a mulher com um gesto brusco. – Esta é a Magda Diebler. Frau Diebler, apresento-lhe a Amy Miracle. – Olá, Frau Miracle – cumprimentou Frau Diebler com sotaque carregado. – Olá. – Amy lançou um olhar espantado a Sebastien. Ele inclinou a cabeça para a zona atrás de si, onde ficava o átrio, o bar e os escritórios do clube. – Há algum sítio onde possamos falar em privado? – Sou a cabeça de cartaz. Tenho o meu próprio camarim. É do tamanho de um armário, mas acho que nos conseguimos enfiar os dois lá dentro. – Ótimo. Frau Diebler, dê-nos um momento. Frau Diebler endireitou-se e inclinou a cabeça num aceno seco. O carrapito de cabelo grisalho abanou um pouco. – Ja, Herr Doktor. Amy conduziu-o por um corredor lateral até uma porta estreita com o nome dela escrito num cartaz feito à mão. Dentro do pequeno espaço havia um toucador, uma casa de banho, um cabide e uma cadeira extra, onde Sebastien se sentou. Amy preferiu o banco do toucador. Sentia a pulsação acelerada na garganta.

– Troças do amor e do respeito que temos um pelo outro – começou Sebastien, em tom rígido. – Recuso-me a viver contigo se não tentares amar o nosso bebé. – Inclinou-se para a frente e pegoulhe nas mãos. – O meu bebé não nascerá a ser indesejado… pelo menos, nunca saberá que o pai não o desejava. Viste o que eu passei com o meu pai. Céus, Sebastien, aquilo que tu passaste com o teu! Não faças o mesmo ao teu próprio filho. Sebastien apertou-lhe as mãos com força, com um músculo a palpitar na face. – É exatamente isso que estou a tentar evitar. Outro erro. – Ou uma oportunidade de corrigir as coisas! – Tu e eu conseguimos pôr as nossas vidas em ordem. Toda a felicidade que desejámos está ao nosso alcance, porque estamos juntos. Esperei tanto tempo por isto. Não quero continuar a sentir-me amaldiçoado. Não quero que nada ponha em risco a nossa relação. – Eu sei, doutor. Não achas que eu também quero proteger o que temos? Mas isso agora inclui um bebé. Não o planeei, e nunca o teria feito de propósito contra a tua vontade. Aconteceu. Se acreditas tanto em sinais e prenúncios, vê este como um sinal bom. Sebastien soltou-lhe as mãos com uma exclamação zangada e derrotada. – Esta discussão é inútil. Tenho um avião para apanhar. – Acabaste de chegar! – Não me vou demorar: tenho uma dezena de reuniões com os executivos do meu pai esta semana, a Annette vai fazer enxertos de pele nas pernas, o Jacques foi suspenso da escola por andar à pancada e ainda ontem fez um olho negro à irmã. Castiguei-o e ele odeia-me. Não sei como falar com ele… Ah, e o meu pai tem uma infeção nos rins. – Deu um soco no ar. – Quero estar aqui, mas precisam de mim lá. Com uma exclamação de compreensão, Amy inclinou-se e estendeu-lhe os braços. Sebastien deixou-a abraçá-lo e, depois, cedeu e retribuiu, apertando-a com tal desespero que Amy ficou com os braços trémulos. – Não sabes que faria quase tudo para te ver feliz? Nunca quis causar-te esta angústia. Ao princípio, até pensei que pudesse haver um aborto espontâneo… Mas este bebé quer tanto nascer: é saudável e está a crescer bem, apesar de ter sido concebido contra todas as probabilidades. Estamos destinados a tê-lo. – Miracle, a tua gravidez não passou de um acidente. – Acreditas tanto que o destino traz coisas más às nossas vidas. Porque não consegues acreditar que também nos pode trazer coisas boas? – Não te quero perder, Miracle! Não te quero ver magoada nem desapontada. – Então, não me odeies por desejar este bebé. – Sabes que não é isso. Temo por ti e nada que me possas dizer conseguirá alterar isso. – Vai para casa – murmurou Amy, derrotada. – Um dos motivos pelos quais esperei para te contar foi porque já tinhas muito com que te preocupar. Eu não quero nem preciso de ser uma fonte extra de preocupação e cuidados. Só preciso que estejas preparado para aceitar este bebé quando ele nascer. Sebastien empurrou-a com gentileza, mas exibindo uma expressão fechada e dura.

– Tal como já mencionei, tenho de ir apanhar o avião. Não há tempo para mais discussões. – Doutor, vieste de França ao Minnesota só para… Quem é aquela mulher? – A tua enfermeira-obstetra. Toma. – Abriu o casaco e tirou um envelope grosso do bolso interior, que lhe atirou para o colo. – As referências dela. Tratei de tudo em relação ao visto. Para onde fores, ela vai. Quando tiveres problemas médicos… – Não terei problemas. – … ela tomará conta de ti. Por favor. – Desviou os olhos, com o maxilar contraído. Amy viu-o esforçar-se por se controlar e percebeu que a raiva dele escondia medo e tristeza. No entanto, quando olhou de novo para Amy já recuperara a compostura. – Deves-me pelo menos isso. – Não quero uma estranha sempre atrás de mim, Sebastien. – Quero-te a ti, seu filho da mãe arrogante e teimoso. Sebastien apontou para o envelope. – Tens aí um conjunto de cartões de crédito e cheques de uma conta em Nova Iorque, tudo em teu nome. Compra o que quiseres. Certifica-te de que tu e a Frau Diebler viajam de forma confortável. Não precisam de partilhar os quartos de hotel. Sugiro que reserves suites para ambas. – Raios! Estava a pensar pô-la a dormir aos pés da minha cama como um pastor alemão. – Então não vais discutir? Aceita-la? – Uma espia? Uma guarda? É isso que queres que aceite? Será que nunca vais confiar em mim? Deixaste-me com um guardião quando partiste para África, lembras-te? Não gostei na altura, e agora é igual. – Se bem me lembro, até gostaste bastante. – A voz dele era baixa e brutal. – Se calhar devia ter sugerido antes o Jeff Atwater. Amy levou as mãos à boca e olhou para Sebastien, chocada. A sua crueldade era como uma mão a apertar-lhe o coração. Viu o brilho sombrio da revolta nos olhos dele. – Não acredito que me disseste isso. Não o mereço. Sebastien perdeu o controlo. – Quero que fiques em segurança! – Levantou-se, atirando a cadeira ao chão. – Quero saber que não estás a sofrer durante esta gravidez insensata! Não posso ficar aqui contigo, e não posso obrigar-te a vir para França comigo! O mínimo que podes fazer é ficar com o raio da enfermeira, para eu ficar descansado! Amy atirou o envelope contra a parede e aproximou-se dele. Agarrou-lhe na camisa e tentou abaná-lo. – Contratar uma enfermeira para andar atrás de mim não vai resolver o teu problema! Por favor, tenta querer este bebé. Tenta amá-lo. Não quero passar os próximos cinco meses sem te ver. – A escolha é tua. Quando decidires voltar para mim, serás recebida de braços abertos. Amy pegou-lhe na mão e encostou-a ao ventre distendido. – Diz-nos isso aos dois. A mão de Sebastien tremeu. Olhou para ela, amargurado e resignado.

– Aceitas a enfermeira? – perguntou, entre dentes. Lentamente, Amy soltou-lhe a mão e encostou-se a ele, com a raiva a dissipar-se. Não haveria vencedor nesta batalha. Encostou-lhe a cabeça ao ombro, com o rosto virado para fora. – Aquela mulher é uma fraca substituta daquilo que eu preciso de ti, mas aceito que, por ora, é o melhor que podes fazer. Ela pode ficar. Sebastien recuou, hesitou e depois ergueu a mão para lhe acariciar o cabelo. Amy continuou com a cara virada, mas começou a chorar baixinho. Ouviu a porta do camarim abrir-se e fechar-se logo depois. Deixou-se cair no banco do toucador e escondeu o rosto nas mãos. Quando conseguiu controlar-se, saiu e encontrou Magda Diebler a olhar de boca aberta para um comediante que se preparava para subir ao palco, com um ramo de crisântemos brancos enfiados na braguilha das calças. A enfermeira virou os olhos azuis para ela. – Olá outra vez, Frau Miracle. É interessante, este seu trabalho – comentou, continuando a ver o comediante abanar os crisântemos. Amy olhou para a porta do clube com um nó de tristeza na garganta. Sebastien estava sozinho com a sua desilusão e a sua raiva, a caminho do aeroporto, separado dela por apenas alguns minutos. Mesmo a fúria que sentia não conseguia sufocar a dor da saudade. Temia os próximos seis meses de espera solitária, mas, mais do que isso, temia o que aconteceria se, depois, tivesse de escolher entre o filho e ele.

O primeiro confronto com Magda Diebler teve lugar na manhã seguinte, quando a enfermeira irrompeu pelo quarto de hotel de Amy às seis da manhã. A jovem enfiou um roupão por cima da t-shirt larga e sentou-se na beira da cama, meio aturdida, enquanto Frau Diebler, que não queria nada dessas familiaridades do primeiro nome, se sentava de forma rígida numa cadeira, com um vestido castanho engomado que realçava o corpo de meia-idade alimentado por comidas com elevado teor de gordura e disciplina. Frau Diebler abriu um bloco de notas de capa preta. – Comecemos por discutir o seu horário, Frau Miracle. – Acabo de trabalhar às duas da manhã, na maior parte das noites. Deito-me às três. O meu dia começa ao meio-dia. E se me acordar mais alguma vez a esta hora, chamo a segurança do hotel e informo-os de que é uma terrorista e me está a tentar raptar. – O seu horário não é adequado. – Frau Diebler rabiscou qualquer coisa. – Vou apresentar relatórios ao doutor de Savin sobre o seu estado, duas vezes por semana. Pode recusar-se a cooperar comigo, se quiser, mas cada infração será incluída nesses relatórios. – Sigo todas as instruções da minha obstetra. Como bem, faço o devido exercício, descanso bastante. Faço tudo o que é possível para cuidar de mim e deste bebé. Para não falar em todas as outras coisas. – Apontou enfaticamente para a barriga. – Leio-lhe livros infantis. Encosto fones à barriga e ponho música

clássica. Falo constantemente com ele. Eu e este bebé somos uma equipa. Não precisamos de um cão de guarda. Frau Diebler ignorou-a. – A partir de agora também faço parte da equipa. Vamos começar. – Abriu uma mala de médico que tinha aos pés. – Todas as manhãs vou medir-lhe a tensão arterial e a temperatura. Por favor, deite-se de lado e levante o roupão. Amy olhou para o termómetro mais grosso que alguma vez vira. Parecia industrial. Lembrou-se do momento mais humilhante da sua doença, em Paris, e do ar divertido de Sebastien perante a reação dela. Amor, só os americanos é que põem os termómetros na boca. Agora vira-te, por favor. – Nunca mais – asseverou. – Já tive a minha quota-parte com termómetros europeus, muito obrigada. Vou comprar-lhe um bom termómetro americano. – Não me diga que é uma dessas americanas que tem vergonha de admitir que tem um reto! O absurdo da situação fez Amy soltar uma gargalhada. Valha-me Deus, são seis da manhã e estou a falar de retos com esta mulher. – Sei onde o meu reto está e como o usar. É tudo o que importa. Percebo que os europeus têm maneiras diferentes de fazer as coisas, mas não tente enganar-me. E se há supositórios nessa sua malinha, também pode livrar-se já deles. – Isto vai tudo para o meu relatório! – Frau Diebler, se não tiver cuidado, pode acabar amarrada e amordaçada no porão de um avião com destino a Frankfurt. – Não. A senhora vai honrar o acordo que fez com o doutor de Savin. Cedências. Foi o que ele me disse antes de partir, ontem à noite. Assegurou-me de que manteria a sua palavra. Era verdade. Amy tentou pensar em alternativas que não a fizessem faltar à sua palavra. Afastou o cabelo do rosto e sorriu a Frau Diebler de forma conciliatória. – Muito bem, vamos recomeçar e ser simpáticas uma para a outra. Fale-me um pouco sobre si. O que gosta de fazer no seu tempo livre? Frau Diebler animou-se um pouco. – Bom, adoro fazer compras. É um dos motivos para estar tão contente com este trabalho. Os americanos têm lojas maravilhosas. Claro que há roupas de que gosto que estão além das minhas posses, mas… – Só se não estiver disposta a negociar. O silêncio invadiu o quarto. Os olhos penetrantes de Frau Diebler trespassaram Amy. – Não aceito subornos. Faço o meu trabalho. – Não será bem um suborno, mas uma cedência. Um pequeno acordo de negócios entre duas mulheres que têm objetivos comuns: uma parceria tranquila, um bebé saudável e um doutor de Savin despreocupado. – Ja – admitiu Frau Diebler, embora algo desconfiada.

– Então… talvez eu pudesse ajudá-la com as suas compras se estiver disposta a fechar os olhos a pormenores insignificantes do plano pré-natal em que não estejamos de acordo. Quero eu dizer que podia ser, ah… cuidadosa com aquilo que transmite ao doutor. – Não posso ignorar as minhas responsabilidades profissionais, Frau Miracle. – Oh, claro que não! Mas podia esquecer os termómetros retais, os supositórios e a alvorada às seis da manhã, não podia? E, em troca, eu podia fazer tudo para que a minha enfermeira andasse mais elegante. – Amy lançou-lhe um olhar solene. – Na minha área, tenho de insistir para que a minha… equipa se apresente de forma chique. – Ah, sim, compreendo. Naturalmente que não quero embaraçá-la. – Insisto para que me deixe oferecer-lhe roupas novas. Frau Diebler guardou o termómetro, pegou na mala e levantou-se. – Boa manhã, Frau Miracle. Volto ao meio-dia. Depois de ela sair, Amy voltou para a cama e, a rir baixinho, puxou as mantas para cima da cabeça.

A agente queria que ela fizesse audições para alguns programas de televisão, e havia ofertas para nova ida ao Letterman e a um outro programa de um canal por cabo. Bev discutiu os projetos entre enormes suspiros, classificando-os em duas categorias: A. M. e D. M., Antes de Mamã e Depois de Mamã. Pelo menos, estar grávida tinha partes divertidas. Amy depressa se habituou a ouvir as pessoas dizerem-lhe que estava enorme para uma gravidez de apenas cinco meses e meio. Bastava-lhe aparecer em palco com passo arrastado e expressão maliciosa que o público desatava logo a rir. Felizmente havia alguma coisa boa naquela existência de dores nas costas, estrias e tornozelos inchados. Naquela noite estava mais cansada do que o costume e sentia-se como se alguém lhe tivesse pendurado uma melancia irrequieta no corpo. O bebé parecia adorar o palco, como se houvesse um elo de ligação interno que o alertava para a mudança de disposição da mãe: assim que se aproximava do microfone iniciava-se um tumulto dentro do seu útero. Quando o segundo espetáculo acabou, estava desesperada por se sentar. Com uma risada cansada, agarrou-se à barriga com as duas mãos assim que saiu do palco. – Já acabou, bebé. Frau Diebler, em Armani, estava à sua espera com um copo de sumo de laranja e um comprimido. – Está na hora das vitaminas, Frau Miracle. – Danke. – Amy engoliu o sumo e escondeu a vitamina na mão, livrando-se dela assim que apanhou Frau Diebler distraída. A seguir, dirigiram-se aos camarins, evitando a multidão de pessoas ociosas que enchia os bastidores. Ouviu passos atrás de si e alguém lhe gritou: – Ei, mamã cómica, não te arrastes tão depressa! Parou e virou-se.

– Elliot! O antigo namorado estava com melhor aspeto do que da última vez que o vira, embora não muito melhor: tresandava a uísque e tinha os olhos injetados de sangue. – Amy – cumprimentou, num tom sincero e ligeiramente arrastado. – Ninguém me contou que ficaste prenha. Soltou um soluço e cambaleou. Parecia alegre e amistoso, fazendo lembrar o rapaz que ela conhecera antes da cocaína. Amy passou-lhe um braço à volta da cintura e Elliot deu-lhe uma palmadinha na barriga por cima da blusa larga às riscas. – Foi o doutor francês que fez isto? – Onde tens andado? – Segurou-lhe na mão. – A última vez que ouvi falar de ti, estavas em negociações para um programa especial num canal por cabo. – Ah, os miúdos é que andam a tomar conta das coisas. Estou velho. Uma vez que Elliot tinha apenas trinta e quatro anos, Amy suspeitou de outros motivos. Não era segredo que continuava a ser alcoólico, ainda que se tivesse livrado das drogas. De facto, parecia ter compensado a falta de droga com um aumento da quantidade de álcool. – Então o que andas a fazer ultimamente? – quis saber Amy. – A escrever, escrever, escrever. Um guião. – Ótimo. É sobre o quê? Elliot pensou por um minuto. – Não me lembro. – Anda, eu chamo-te um táxi. – Não serve de nada. Não me lembro em que hotel estou. – O que aconteceu à tua casa em Malibu? – Qualquer coisa a ver com a hipoteca. O banco esperava que eu a pagasse. – Que indelicados. Então, mudaste-te para um hotel? – Hum-hum. – Pensa, vá. Como é que se chama? – Ignorou a resposta incoerente dele ao sentir uma estranha cãibra na parte inferior da barriga. Dobrou-se e mordeu o lábio. A dor passou depressa, mas deixou-a gelada de medo. Decidiu voltar imediatamente para o hotel e descansar. Lançou um olhar rápido a Frau Diebler, que estava distraída a olhar para Elliot, de testa franzida. Este continuou a sorrir e a soluçar. – Em que hotel é que estás a viver? – repetiu. Elliot abanou a cabeça. – Hei de encontrá-lo… talvez. Amy suspirou, derrotada. – Se te portares bem, podes vir comigo para o meu hotel. A Magda e eu temos uma cama a mais. Podes desmaiar nela. – Tenho de ligar primeiro ao doutor de Savin a confirmar – informou Frau Diebler, tirando as

medidas a Elliot para o seu relatório. – Frau Diebler, já lhe falei na mala Gucci que vi na Vogue? Acho que seria perfeita para si. A enfermeira franziu os lábios e pensou por um instante. – Ja, tenho a certeza que sim. Elliot apontou para ela. – Quem é esta? – A minha guarda-costas pessoal. Frau Diebler, este é o Elliot Thornton. Depois explico-lhe melhor. Frau Diebler levantou uma sobrancelha. – Podemos confiar neste homem? – Sim. Pode parecer repulsivo e comportar-se de forma repugnante, mas não é violento. Elliot deu uma palmadinha na barriga de Amy. – Nunca faria mal a uma grávida. – Eu sei. Vamos embora. Elliot passou o braço pelos ombros dela e soluçou ainda mais alto enquanto Amy o ajudava.

– Respire devagar – indicou o médico das Urgências. – Acalme-se. Amy, deitada na maca, acenou com a cabeça. – Estou apenas assustada. Quando acordei e vi sangue… – Não é invulgar acontecer numa gravidez. Não significa que esteja a ter um aborto. Amy abanou a cabeça. – Não compreende. Não posso deixar que nada corra mal com esta gravidez. – Vai passar aqui a noite e amanhã pode falar com o seu obstetra. – Não tenho um obstetra em Los Angeles. Tenho andado em digressão nestes últimos meses. Ando com todos os exames atrás e vou ao médico na cidade onde estou. Tenho estado ótima, mesmo! Até agora… – Podemos pedir a um dos obstetras do hospital que a veja e faça alguns exames. – Sim, obrigada. – Vou mandar alguém informar o seu marido de que vai ficar internada. – O meu marido? – O homem que está a dormir ao canto da sala de espera. Debaixo de uma planta. – Que apropriado. – Levou as mãos à cabeça e tentou pensar. O que havia de fazer com Elliot? Não podia abandoná-lo. – Não é meu marido. É só um amigo. – Elliot ajudara-a a sair da suite de hotel sem acordar Frau Diebler, para que a enfermeira não se apercebesse de que havia um problema. Sorriu contra vontade ao pensar na mulher diligente que, ignorante, dormia durante a grave crise, assim perdendo a possibilidade de receber outro Armani, com um lenço Chanel como bónus. O médico agitou-se, embaraçado.

– Peço desculpa, mas o seu amigo está embriagado? – Não me diga que reparou. – Esfregou a barriga, num gesto protetor. – Ele ajudou-me a chegar aqui, mas acho que não conseguiria voltar para o hotel sozinho. Não pode dormir no meu quarto esta noite? – Com certeza que se consegue arranjar qualquer coisa. Volto já. O médico apertou-lhe o braço e afastou-se. Amy acariciou a barriga e falou com o bebé em tom urgente, tentando tranquilizá-lo com mãos trémulas.

– Gémeos. – O obstetra sorriu-lhe e apontou para o ecrã onde estava a passar a sua ecografia. – Um menino e uma menina. Amy olhou para o ecrã, chocada. – Um casalinho. Frau Diebler, com expressão tão fechada como uma trovoada sobre o Reno, estava sentada numa cadeira ao lado da marquesa, a escrever freneticamente no seu bloco e a fazer perguntas clínicas. Ficara muitíssimo aborrecida com o sucedido na noite anterior. Desta vez, Amy não sabia se conseguiria comprar o silêncio dela. Não admira que dessem tantos pontapés. Tenho cá dentro um grupo de folclore. O obstetra continuou a falar e que o sangramento não era invulgar em gravidezes gemelares e que, embora pudesse existir o risco de complicações extra, para já parecia estar tudo bem. – Complicações? – Ficou paralisada ao ouvir a palavra. – Que género de complicações? O obstetra descreveu a lista de potenciais problemas, interrompendo-se de vez em quando para lhe recordar que podia ficar tranquila, que parecia estar tudo bem – tinha apenas de descansar mais. Quando acabou de falar, Amy parecia muitíssimo angustiada. – Tenho de ligar ao doutor para lhe falar nisto – informou Frau Diebler em tom soturno. Amy virou-se para ela. – Não exagere. Não há nada de errado. – Gémeos! Sangramento! Frau Miracle, desta vez não posso… – Não quero que o doutor de Savin se preocupe comigo. Ele só vai saber que são dois quando eu decidir contar-lhe. Pode comprar o que quiser que eu pago, desde que continue a guardar os meus segredos. Se abrir a boca, ficará desempregada tão depressa que o seu chucrute não terá tempo de fermentar. Estamos entendidas? – Eu sou flexível, sim. Mas… não tão flexível. Tenho de preservar a minha ética profissional. – E isso significa que…? – Tem de parar de trabalhar. Não há cedências nesse ponto. – Concordo consigo, até porque não pretendo correr riscos desnecessários. Mas não contará ao doutor de Savin que eu vou ter gémeos. Só servirá para o deixar mais aflito. Estamos entendidas? Ele não pode saber! Eu própria lhe direi, na altura certa.

Frau Diebler suspirou. – Eu gosto de si, Frau Miracle, a sério, e não quero agravar os seus problemas pessoais com Herr Doktor, pelo que nada direi sobre os gémeos. Mas, em troca, tem de cooperar comigo em tudo o que for possível. Amy agarrou-lhe na mão e apertou-a com vigor. – Combinado. – Quer que vá chamar o seu marido? – perguntou o obstetra, confuso, assistia à conversa. – O programa dele era um dos meus preferidos… – O senhor Thornton não é meu marido. Mas pode pedir-lhe que entre, por favor? Depois de o médico sair, ouviu distraidamente enquanto Frau Diebler resmungava sobre vitaminas e descanso. Esconder aquela notícia de Sebastien fazia-a sentir-se desleal e falsa. Ele tem tanto medo de que esta gravidez te faça sofrer. Queres mesmo fazê-lo passar pelo inferno de lhe contares que vais ter gémeos? A única coisa que ele pode fazer é preocupar-se ainda mais. No ecrã, os dois bebés pareciam perfeitos. Amy deu por si a chorar e a sorrir ao mesmo tempo. – Meu Deus, dois pelo preço de um! – exclamou Elliot, quando se sentou na cadeira ao lado dela. – Incrível! Isto parece um documentário da National Geographic! Como é que se vão chamar? Vamos escolher nomes! – Acalma-te. – Deu-lhe uma palmadinha na mão. – Tens de ligar ao francês para lhe contar. – Não. – Deprimida, admitiu que já tomara a sua decisão. Rezou para que Sebastien compreendesse os seus motivos depois de os gémeos terem nascido bem, saudáveis e lindos. Partilhou o segredo com Elliot, que adorou poder pregar tamanha partida a Sebastien. – Podes confiar em mim – garantiu-lhe, com um aceno solene. – Vou parar de trabalhar e arranjar um sítio sossegado para me esconder nos próximos meses. – Espera aí! – Elliot pegou-lhe nas mãos. – Já sei o que podemos fazer! Podemos arranjar um apartamento! Eu serei o teu enfermeiro. Posso tomar conta de ti! – Só por cima do meu cadáver – interveio Frau Diebler. – Elliot, meu querido, neste momento nem sequer consegues tomar conta de ti próprio. Até tens no pescoço restos da mostarda do que comeste ao almoço. A reação abatida de Elliot não era falsa. De súbito, todas as derrotas do último ano abateram-se sobre ele. Fitou-a com olhos angustiados e suplicantes. – Eu inscrevo-me num programa de reabilitação. Se ficarmos juntos, talvez consiga melhorar. Juro que vou tentar. Irei à escola dos copos todos os dias, e posso fazer de enfermeiro para ti e para os bambinos. – Elliot, não posso consentir que faças uma coisa dessas… – Por favor. Se fores tu a precisar de mim, e não o inverso, terei a inspiração necessária para me endireitar. Parece loucura, não é?

– O suficiente para fazer sentido, acho eu. – Mas não ia correr riscos com Elliot e as suas alterações de humor. Não sabia quando é que ele se voltaria a descontrolar, e o que podia acontecer então. – Agradeço, mas não posso aceitar a tua oferta. Preciso da minha privacidade, Elliot. – Ja – concordou Frau Diebler, com um olhar assassino. – Mas, querida… – Não. Desculpa. – E se eu me mudar para um apartamento próximo? Podemos tentar encontrar duas casas no mesmo prédio. Por favor! O desespero dele tocou-a. Apesar de toda a humilhação e egoísmo que Elliot demonstrara ao longo dos anos, houvera também alturas em que se mostrara atencioso e generoso. À sua maneira insegura, sempre lhe fora leal, e Amy sentia-se em dívida pela ajuda que ele lhe dera na sua carreira, apesar de nem sempre ter sido magnânimo. – Pronto, está bem. Podemos ser vizinhos se te inscreveres no programa e estiveres sóbrio. – Vamos a isso. – Há meses que Elliot não parecia tão contente. – Quem sabe, querida, quando eu for outra vez respeitável, talvez decidas dar-me uma nova oportunidade. Frau Diebler soltou uma exclamação desdenhosa. Amy deu uma resposta brincalhona, tentando manter a paz, mas sentiu uma vaga de claustrofobia. Os próximos três meses seriam um martírio, e, assustada, sentiu uma necessidade premente de manter os caminhos de fuga bem desimpedidos.

– Como te sentes? – Apesar das ligações telefónicas de má qualidade, a voz de Sebastien era sedutora. Dominada por uma vaga de solidão e dúvida olhou em volta, sentindo-se isolada no quarto de hotel. – Tenho saudades tuas – respondeu. – Eu também. Nem tenho palavras. Acredita. – Mas ainda bem que não podes tirar algum tempo para me vir ver. Parece que engoli uma bola de praia. – A Frau Diebler diz que estás saudável. É tudo o que interessa. É verdade? – Sim, claro. Não há problemas além do normal. – Como assim? – perguntou Sebastien rapidamente. Amy riu-se. – Doem-me os pés, tenho os tornozelos inchados e mamas gigantes que me vão sufocar se crescerem mais. – Ah! Manda-me uma fotografia disso. – O seu tom de voz era de manifestos alívio e divertimento. – Mas, tirando isso, sentes-te bem? – Sim. Entristecia-a que Sebastien nunca perguntasse pelo bebé, como se, ao ignorá-lo, ele não existisse.

Mas agora que havia dois – o seu segredo –, quase dava graças por aquela atitude. – Sinto-me bem, mas estou uma vaca inchada e os espetadores começam a fazer muuu sempre que entro em palco; também ando um bocado cansada, por isso… vou parar de trabalhar e ficar os três meses que faltam num apartamento. Com a Frau Diebler, claro. Estamos a ver casas nos subúrbios. Com vista para lindas autoestradas e outros prédios de apartamentos caros. – Se não vais trabalhar mais, devias vir para cá. – Só se for de barco. O obstetra proibiu-me de andar de avião. É uma regra geral, ao que parece. – Posso alugar um voo especial para ti. Com um médico particular a bordo. Não há problema. – Não. Não pode ser. Provavelmente correria tudo bem, mas… acho que é mais seguro ficar aqui. – O que significa que não estares perto de mim é o melhor para ti. – Disse-o sem censura, num tom cansado. – Eu não ia afligir-te, meu amor. Guardaria as minhas opiniões para mim. – Doutor, tu e eu somos duas cordas do mesmo violino. Mesmo que vibres sem qualquer som, eu sinto. Sempre senti. Após um momento de silêncio, Sebastien comentou, aborrecido: – Por uma vez, gostava que tu e eu não fôssemos tão próximos. Tornaria tudo mais fácil. Amy soltou uma risada forçada. – Sabes que eu não tenho jeito para estar indefesa ao pé de ti. Acabaria por andar a arrastar-me de um lado para o outro a tentar tomar conta de ti, tu ainda ficarias preocupado comigo e daríamos cabo dos nervos um do outro. – Não é um bom motivo. – Por favor, tenta compreender. Eu aviso-te assim que me encontrar um apartamento. É só até fevereiro, sabes. O parto será nessa altura. – Estarei aí durante as duas últimas semanas da gravidez. Não me interessa o que tiver de fazer para conseguir sair daqui. – Ainda bem. Quero que estejas aqui comigo. Gostavas de assistir ao parto? Sei que alguns homens não gostam de… – Minha querida Miracle. Não só estarei na sala de partos, como supervisionarei cada mão que te tocar. Podes avisar já o teu obstetra. Vai correr tudo bem, pensou Amy, com alegria. Ele está entusiasmado. Consigo pressenti-lo na sua voz. – Eu aviso-o – prometeu. – Talvez não consiga apagar um erro, mas de certeza que posso impedir outros. A satisfação dela desvaneceu-se. Baixinho, tentando conter a raiva e a desilusão, despediu-se e desligou.

Amy nunca vira Elliot sóbrio no Natal. Às nove da manhã estava à porta dela, com uma garrafa de

cidra, um presunto e um presente. Atrás dele, o sol iluminava o corredor do piso superior do prédio de dois andares, aquecendo as paredes a imitar o estilo de uma hacienda. Trazia na cabeça chifres de rena de plástico. – Rudolph? – perguntou Amy. – Bruce, a rena gay. Ninguém fala muito nele. Beijou-o na face. – Entra, Bruce. – Onde está a Frau Hitler? – Foi ver as montras a Beverly Hills. – O que significa que provavelmente tem mais alguma chantagem planeada. – Desde que fique de boca fechada, quero lá saber. Elliot ajudou-a a sentar-se no sofá ao lado da árvore de Natal e sentou-se ao seu lado dela, com uma careta. – O que é que o Sebastien diria se soubesse que eu vivo há seis semanas no andar de baixo e que estou sempre aqui metido? Amy esfregou a testa, cansada. – Não acharia piada nenhuma. – Bom, um pouco de fingimento é bom para não deixar arrefecer a paixão. – Elliot fez um ar presumido, que se tornou consternado ao reparar na expressão de Amy. – Não te zangues. – Estou a tentar ser tua amiga e manter-te no bom caminho. Estou a tentar ter dois bebés saudáveis. Estou a tentar não dar em maluca a pensar se o Sebastien na realidade quer filhos, mas não consegue admiti-lo, nem a si próprio. Não vou complicar mais as coisas dizendo-lhe que tu estás de volta. Mas não penses que planeio traí-lo. – Está bem, está bem, acalma-te. – Deu-lhe uma palmadinha na barriga. – Só não te esqueças de que quero estes bambinos, mesmo que ele não os queira. – Elliot, não… – Feliz Natal, mamã cómica. – Inclinou-se para a frente e beijou-a ao de leve nos lábios. Amy agarrou-lhe nos chifres e recuou, decidida a ser firme, mas diplomática. – Feliz Natal, Bruce. Não te esqueças de que és gay. – Amy, eu amo… – Não o digas. Por favor, não. Elliot recostou-se no sofá, tirou os chifres de rena e deu-lhe o presente que trouxera. Era um espelho de mão, em prata esterlina, com o seu monograma gravado na parte de trás. Embora fosse uma prenda demasiado cara, o que incomodou Amy, ela agradeceu. – Toma, abre a tua. Elliot rasgou o papel e encontrou uma caixa cheia de jogos novos para a Playstation. – Oh, meu Deus, fantástico! Obrigado, querida!

O entusiasmo dele era sincero. Desceu imediatamente para ir buscar os comandos da Playstation, que depois ligou à televisão dela e, como um miúdo distraído, esqueceu-se de tudo o que o rodeava enquanto jogava. Amy ficou contente. Mais tarde, Elliot percorreu o apartamento com ar espantado, como se nunca tivesse estado sóbrio o bastante para reparar nas decorações de Natal e nas mobílias baratas. Amy tinha de admitir que a casa parecia um motel barato decorado por um elfo. Entreteve-se na grande cozinha e fez um almoço de Natal enorme – peru, puré de pão de milho, legumes e tarte de abóbora. Trabalhou devagar, com a cabeça perdida em pensamentos de Sebastien, cheia de saudades, com a solidão a causar-lhe um nó na garganta. Invejava a enorme carga de trabalho que o ajudava a não pensar muito na separação. Para manter a sanidade mental, Amy passava o dia a ler romances, a congeminar novas piadas para o seu número e, por vezes, aventurava-se até à sala e via um filme. Quanto a Elliot, esforçara-se por se tornar indispensável: fazia recados, levava-a ao médico e preparava jantares para os seus velhos amigos, que encaravam a sua reabilitação com uma incredulidade discreta. Na maior parte do tempo, tudo o que Amy podia fazer para o manter na linha era certificar-se de que Elliot ia às sessões de terapia todas as tardes, ouvi-lo quando estava deprimido, o que acontecia com frequência, e cozinhar-lhe refeições enormes. Comer era um vício que ele podia ter, e os médicos encorajavam-no, por enquanto. Frau Diebler atormentava-a com vitaminas e batidos de proteínas, registava-lhe a tensão arterial, a temperatura e o peso todas as manhãs, e transmitia a Sebastien os detalhes mais inocentes. Estava tudo bem. Aos sete meses de gravidez, Amy sentia-se gigantesca, mas saudável, e não voltara a ter problemas. A campainha da porta tocou. Amy viu Elliot levantar-se de um salto e correr para a porta, onde espreitou pelo óculo. – Parece um tipo das entregas. No Natal? É melhor esconder-me. Correu para a casa de banho dos fundos e fechou a porta. Ouvira dizer que alguns dos tabloides iam começar a importuná-lo e, por mais que gostasse de atenção, não queria trazer os seus problemas a público naquele momento. Amy revirou os olhos e dirigiu-se à porta. Um estafeta entregou-lhe duas dúzias de rosas vermelhas e uma pequena caixa embrulhada em papel dourado. – Do doutor de Savin – informou, antes de partir. Elliot saiu da casa de banho quando ela estava a sentar-se no sofá e a abrir um estojo de joias. Olhou, boquiaberta, para os brincos de esmeralda. Por baixo, havia um papel fino com um bilhete, escrito na caligrafia forte e fluida de Sebastien: Tenho saudades tuas, meu amor. Para o próximo Natal celebraremos juntos, só nós, e a tristeza deste ano estará esquecida.

Era uma mensagem terna, mas a forma indiferente como excluía a gravidez magoava-a mais do que se a tivesse ignorado. Se não conseguia lidar com um bebé, o que aconteceria com dois? Sem que desse por isso, Elliot leu a mensagem por cima do seu ombro. – Ele não quer brincar aos pais e mães – murmurou. – Abre os olhos, miúda. – Vai lá para baixo e deixa-me sozinha um bocadinho. – Eu quero os teus miúdos, está bem? Amo-te a ti e a eles… – Para! – A tensão e tristeza transformaram-se numa sensação avassaladora de desespero, e de consciência da ironia dos sentimentos natalícios, que não passavam de cinzas escondidas em purpurinas. – Elliot, desculpa. Não quero magoar-te. És um querido por te preocupares comigo. Mas não digas mais nada. Sentindo-se enorme, feia e sozinha, arrastou o corpo inchado para o quarto e trancou a porta. Deitouse e abraçou a barriga. Têm de ser os dois perfeitos. Têm de ser. Têm de ser.

No princípio de janeiro, Elliot sentia-se forte o bastante para começar a trabalhar nos clubes da cidade. Amy tinha sentimentos contraditórios em relação a tal decisão. Havia demasiadas tentações nos clubes – comediantes que viviam uma vida desregrada, sempre à procura de sarilhos. O obstetra dera-lhe ordens rigorosas para descansar mais; não podia continuar a ser a guarda-costas de Elliot. Queria mandar Frau Diebler em seu lugar, mas a enfermeira recusou. Detestava o comediante. Os proprietários de alguns clubes, como Mitzi Shore da Comedy Store, gostavam de ajudar os que queriam livrar-se dos problemas com álcool e drogas, pelo que Amy não se preocupava muito quando Elliot lá atuava. Não aguentava muita pressão naquele momento, mas Mitzi dava-lhe os horários tardios para poder entrar sem dar nas vistas e trabalhar com públicos mais reduzidos e menos exigentes, vigiando-o com uma ferocidade maternal; no entanto, havia muitos outros clubes em que os proprietários não faziam de ama-seca, e alguns até encorajavam os excessos. Elliot nunca soubera recusar um desafio, especialmente os mais autodestrutivos. Amy vigiava-o com atenção, mas não viu sinais de desvios. Elliot admitia que não era fácil, mas parecia determinado. Era agora um homem de Perrier e vitaminas. Foi então que, certa noite, ele não voltou para casa. Prometera passar pelo apartamento de Amy depois das atuações, fosse a que horas fossem, e cumprira. Amy fez alguns telefonemas e localizou-o em Hollywood, no condomínio de um comediante famoso, com um gosto notório pela cocaína. – Estou a pôr-me à prova – garantiu-lhe Elliot ao telefone. – Juro por Deus, querida, estou só aqui sentado a ver toda a gente ficar pedrada. – Vou mandar-te um táxi. Vem para casa. Elliot desligou-lhe o telefone na cara, mas apanhou o táxi. Quando chegou ao apartamento, bastou uma olhadela e Amy percebeu logo que Elliot lhe mentira. E ele compreendeu que Amy sabia a verdade. – Foi só uma vez. Não é nada de especial. Amanhã confesso na sessão com o psiquiatra e fica tudo

bem. Estava tão acelerado que passou o resto da noite a jogar. Os médicos avisaram-no para parar de atuar até voltar a fortalecer a força de vontade. Elliot largou o programa de reabilitação e começou a passar mais tempo nos clubes. Impotente, Amy assistiu a tudo. Não havia dúvidas de que o ex-namorado voltara a consumir. Elliot insistia ter tudo controlado, mas Amy sabia que ele se estava a afundar de novo. E, desta vez, temia que batesse no fundo.

Capítulo 26

A meio da noite, o hospital era um sítio calmíssimo. A solidão e o silêncio faziam com que o mundo parecesse seguro, como se a morte tivesse de esperar até de manhã, quando havia mais gente acordada. Era uma ilusão. Sebastien estava sentado ao lado do pai, a observar a sua respiração esforçada. A cada inalação ouvia-se um som líquido no fundo dos pulmões. À cabeceira da cama havia uma botija. Sebastien ajustou o tubo transparente que levava o oxigénio ao nariz do pai. Este entreabriu os olhos azuis, onde ainda era evidente um brilho de força. – Vieste – disse, em voz fraca, repleta de fluido. Sebastien afastou uma madeixa branca da testa do pai. Tal como o pai de Amy, Philippe fora sempre esquisito em relação ao cabelo. Não era um sinal de rebeldia, como no caso de Zack, mas de controlo. Por outro lado, talvez fossem duas faces da mesma moeda. Amy. Precisava dela esta noite, mais do que nunca. A ansiedade e a frustração com a decisão dela de prosseguir com a gravidez nunca o tinha feito amá-la menos, apesar de ainda guardar ressentimento em relação ao inútil amontoado de células que crescia dentro dela. Estava agora quase a entrar no oitavo mês. Quer Amy se sentisse desconfortável na companhia dele ou não, tinha de estar ao seu lado nas últimas duas semanas de gravidez. Faria o que fosse preciso para conseguir estarem juntos no fim. No princípio, corrigiu-se, amargamente. O princípio da verdadeira tortura. Como amava aquela mulher… e como estava aterrorizado por ela. Imaginar o parto era angustiante. Céus, sabia que era disparatado recordar como a mãe dela morrera, mas não conseguia deixar de pensar nisso. Ao lembrarse, o desagrado pelo acidente teimoso que vivia dentro dela transformava-se num ódio negro, acabando por se sentir agoniado por desprezar o filho de ambos. Amy podia dar à luz a mesma coisa deplorável e deformada que Marie, um bebé que lhe partiria o coração e a convenceria por fim de que Sebastien não estava destinado a ser pai e de que nada na forma como fora criado o preparara para ser bom. Passou a mão trémula pela testa e olhou para o seu pai, que o vira apenas como o substituto de Antoine, o primogénito, aquele que fora educado para assumir o controlo, que estava ansioso por aprender como se construíam impérios e como se geriam negócios. O resto da família, incluindo a mãe, não tinha qualquer importância para Philippe de Savin. – Vieste – repetiu o pai. – Estou aqui, sim – respondeu Sebastien, sentindo-se vazio e confuso. O pai inalou com esforço, para conseguir falar.

– Disse aos médicos, há muito tempo… não quero medidas extraordinárias. Garantes-me isso? – Sim. – Sebastien inclinou-se sobre ele, para conseguirem olhar um para o outro mais facilmente. – A Annette deve estar a chegar. Vem com a enfermeira dela. – Ótimo. Estava com receio de já não conseguir falar, se esperasse muito mais. – Por um momento, lutou para respirar. Os seus olhos ardentes trespassaram os de Sebastien. – Tenho uma coisa para lhe dizer. Minutos depois, a enfermeira chegou com Annette, sentada numa cadeira de rodas, e conduziu-a para junto da cama. Annette olhou para o pai com tristeza e pegou-lhe numa das mãos inertes. – É só mais uma noite má, papá. Não sejas mórbido. De manhã estarás melhor. – Não. Isto é diferente. Sinto-o. – Um brilho duro de satisfação e orgulho iluminou-lhe os olhos. – Ainda… controlo o meu destino. Annette gemeu baixinho. – Gosto muito de ti, papá. – Eu sei. Sebastien desviou os olhos, com a velha raiva renovada. Eu sei. Annette, pelo menos, merecia mais do que isso. – Sebastien. – A voz do pai arrancou-o aos seus pensamentos. Olhou para os olhos azuis-claros, que perscrutaram os seus por um instante e depois se viraram para Annette. – Já disse ao Sebastien, e agora digo-te a ti também. Quero que fiques à frente dos negócios. O Sebastien concordou em prescindir dos seus direitos a teu favor. Annette apertou-lhe a mão, chorosa. – Oh, papá… – Faço isto porque o mereces mais do que ele, e o Sebastien também o sabe. Ele está apenas à espera da minha morte para regressar à sua carreira de cirurgião. O que seria de tudo o que construi? Por aquilo que ouvi nos últimos meses, ele não tem, nem de longe, o teu talento para os negócios. Annette encostou a cabeça ao corpo do pai e chorou. Philippe olhou para Sebastien, que manteve a rigidez por um instante, lutando por manter o controlo, consciente de que, mesmo agora, era o que o pai esperava dele. Tréguas, um pedido de desculpas, respeito – o pai dera-lhe as três coisas. E devolvera-lhe também o afeto da irmã, pois doravante Annette esqueceria os ciúmes. – A minha decisão é definitiva. Exijo a tua colaboração, Sebastien – ordenou o pai, e fixou nele os olhos molhados de lágrimas. Lágrimas. Sebastien alisou o cabelo do pai. Tinha um nó na garganta tão grande, de gratidão e vitória, que só conseguiu falar num murmúrio. – Cumprirei a tua vontade. – Para variar – disse o pai, em tom desdenhoso. Mas não havia qualquer raiva no olhar que lhe lançou. Sabia que os segredos eram aquilo que partilhavam melhor.

– A Amy ligou enquanto estavas no escritório – comunicou-lhe Annette. Faltavam poucas horas para o funeral do pai. Sebastien largou a pasta numa mesa à entrada e enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo. Ergueu os olhos para Annette, de pé com a ajuda das muletas, encostada à balaustrada do patamar ao cimo da grande escadaria. Vestia um roupão largo e fluido que lhe dava um ar ainda mais régio do que o habitual. Estava pálida e triste, mas havia um brilho provocador nos seus olhos. – Espero que tenhas sido educada. – Sim. Na verdade, gosto dela, Sebastien. Parece uma pessoa sensata e é evidente que te adora. Claro que não se pode dizer que isso seja muito sensato, mas nós, os que te adoramos, temos de permanecer unidos. Somos tão poucos! – Um grupo de elite. – Não precisas de lhe ligar antes de… enfim. Ela só queria saber como estavas. Tem a ideia de que, por trás desse exterior severo, bate um coração vulnerável. Respondi-lhe que é capaz de ter razão. – É evidente que não discutiram assuntos práticos. – Ela falou com o Jacques e com a Louise e fê-los sentirem-se um bocadinho melhor. Estavam doidos para falar com ela. Ganharam-lhe um grande afeto quando ela esteve aqui, sabes, e a Amy manteve uma maravilhosa camaradagem com eles. Explicou-lhes que gostavas muito do avô e tens muita pena por ele ter morrido. Assegurou-lhes de que podiam contar contigo para os ajudar. O Jacques contou-me isto com incredulidade. O que havemos de fazer com esta mulher maravilhosa e iludida que está convencida de que serás um pai afetuoso para o filho que lhe fizeste? – Vamos enterrar um pai mau antes de chorarmos por outro, por favor. Sebastien sentia que o passado completava hoje um círculo e estava prestes a confrontá-lo. Dirigiu-se ao armário das bebidas e serviu-se de um copo. À tua, papá. Maldita seja a tua alma.

Tivera esperança de que o funeral do pai fosse fácil de suportar, uma despedida da amargura, uma porta aberta através da qual conseguisse entrever com clareza o resto da sua própria vida, mesmo que o seu filho e de Amy fosse tudo aquilo que temia. Porém, junto da campa, a sua depressão só se intensificou. Detestava como os funerais eram concebido para provocar os pensamentos mais mórbidos a par e passo. A multidão era enorme: gente poderosa, da elite, todos trajando preto, todos obedientemente respeitosos, mas discretamente enfadados. O cemitério antigo estava repleto de grandes estátuas de anjos medievais que pareciam pairar sobre os vivos e ameaçá-los, os rostos de pedra manchados, como se estivessem a derreter como o céu de janeiro, cor de chumbo, por cima deles. Não choveu, mas uma neblina gelada abateu-se sobre o cemitério e invadiu o sangue de Sebastien. Passou os olhos pelas dezenas de pessoas mais próximas, reunidas em torno do jazigo de granito com o nome de Savin gravado em caligrafia antiga. Apenas Annette, sentada na cadeira de rodas ao seu lado, chorava. Fez-lhe lembrar a cena clássica de Um Cântico de Natal de Dickens. Scrooge a assistir ao

próprio funeral, onde ninguém o chora ao fim de uma vida fria e solitária. Como acontecerá comigo. Estremeceu dentro do sobretudo preto de caxemira. Não sejas absurdo e sentimental. Contudo, sentiu a boca seca. Acabaria por afastar Amy e o filho de ambos? Na remota possibilidade, recordou a si próprio, de terem um filho saudável, que sobrevivesse. Enquanto o padre debitava a sua ladainha ao lado do jazigo, Sebastien sentiu-se nauseado. O seu olhar distraído virou-se para Jacques e Louise, de pé ao lado da mãe, e uma sensação de reconhecimento trespassou-o. Os rostos das crianças mostravam o mesmo horror que ele sentira, o mesmo medo do desconhecido, mas também, na expressão de Jacques, com os seus seis anos, uma tristeza terrível. Ele gostava do avô, apercebeu-se Sebastien, espantado. Quando o padre terminou, as pessoas começaram a reunir-se à volta de Annette. Sebastien, com o coração acelerado, beijou-a na face molhada e disse: – Vou levar as crianças para casa. Não precisas de te apressar. Conversa com os teus amigos, se quiseres. – Queres levar os miúdos? De certeza? – Fitou-o, surpreendida. Ao longo dos meses, Sebastien sempre tentara evitá-los e isso tornara-se uma rotina inflexível. – Não olhes para mim como se estivesse a planear vendê-los aos trolls, Annette. Só estou a oferecerme para os levar para casa. – É que… Oh, está bem. Já aconteceram coisas mais estranhas. Obrigada. – Não quero ir com o tio Sebastien – protestou Jacques. Vestira calças compridas pela primeira vez. O fato preto e o sobretudo conferiam-lhe uma maturidade que afetava o pequeno rosto inchado e triste, a tentar controlar-se. Por baixo do cabelo loiro os olhos grandes fitaram Sebastien. Ele tem o sangue dos de Savin. Depressa aprenderá a esconder as suas emoções, pensou Sebastien, consternado. Louise encostou-se mais ao irmão. – Venham comigo, os dois – ordenou, estendendo-lhes a mão. Com quatro anos de idade, já era difícil para Louise compreender sequer que as pessoas morriam, quanto mais que aquela cerimónia mórbida era apenas algo que tinha de suportar e ultrapassar o mais depressa possível. Olhou para Sebastien por entre os caracóis loiros, enfiou uma mão debaixo da capa de lã preta que trazia por cima do vestido e estendeu a outra para a dele. Pela forma como inspecionou a enorme mão do tio, era evidente que esperava que ele lhe fosse esmagar os dedos a qualquer momento. – A Amy disse-nos para gostarmos de ti hoje – comentou. – Nós prometemos. – Não quero ir com ele – repetiu Jacques. Annette olhou para as pessoas à sua volta, que incluíam muitos parceiros de negócios. Sebastien sabia que a irmã não queria uma cena. Nem birras. Viu-a endireitar as costas na cadeira de rodas. – Vão com o tio Sebastien e nem mais uma palavra. Jacques fora demasiado bem disciplinado para fazer outra coisa a não ser fechar a boca e olhar para Sebastien com desagrado. Sebastien chamou-o com um gesto de cabeça. – Anda.

Depois de estarem os três sentados no confortável banco de trás de uma das limusinas que enchiam a rua do cemitério, Sebastien largou a mão de Louise e inclinou-se para carregar no botão do intercomunicador. Louise estava sentada de um lado, Jacques do outro. Enquanto indicava ao motorista que fosse pelo caminho mais longo para casa, reparou nos olhos escuros e curiosos da menina – o mesmo olhar da avó materna – a observá-lo com ar cada vez mais ousado. Jacques, contudo, continuava a fitar o chão da limusina, ressentido. Assim que o carro começou a andar, Sebastien recostou-se e olhou para o sobrinho. Jacques, ao sentir que estava a ser observado, ergueu os olhos para Sebastien. – Tu não gostavas do avô. E também não gostas de nós. Pois bem, nós não gostamos de ti. Sebastien queria dizer qualquer coisa reconfortante, mas as palavras do menino fizeram-no sentir-se tolo. – Não espero que gostem de mim – respondeu a Jacques. – Mas têm de me respeitar. Tal e qual como exigiria o meu pai, pensou, com uma careta. Louise puxou-lhe a manga do sobretudo e Sebastien virou-se para a sobrinha, desconfiado. O rosto delicado estava distorcido pela fúria. Tinha a boca a tremer e os olhos cheios de lágrimas. – Porque é que não gostas de nós? Não te fizemos nada de mal. Sebastien abriu a boca, fechou-a outra vez e olhou para Louise de testa franzida. – Eu… eu gosto de vocês. – Gostas? – Não – interrompeu Jacques em tom seco. – Achas que damos trabalho. – Levantou o queixo. – Se o meu papá ainda cá estivesse eu nem sequer teria de falar contigo. – O papá foi-se embora num acidente de avião – explicou Louise, como se Sebastien pudesse não se lembrar. Jacques acrescentou, em voz bem alta: – E não teria de falar contigo se o avô de Savin ainda fosse… – O vosso avó morreu. – Sebastien não suavizou o tom de voz. Queria obter um efeito brutal. – Nunca mais vai voltar. Tal como o vosso pai. Desejar e fazer ameaças infantis não mudará a verdade. – Como me lembro bem disso. Os ombros de Jacques abateram-se. O menino virou-se e encostou a testa à janela da limusina. Louise começou a chorar baixinho. Sebastien sentiu o remorso por trazer ao de cima memórias vívidas e desagradáveis. Ele fora como Jacques e Louise há trinta anos, tão fácil de magoar; porém, no seu caso não havia ninguém que o pudesse compreender, ninguém a quem pudesse confiar as razões terríveis por trás da sua fúria e da sua dor. E agora condenava Jacques e Louise a sofrerem como ele. Louise parou de chorar com um soluço estrangulado quando Sebastien a puxou para o seu colo e a segurou com um braço. Pôs o outro à volta dos ombros de Jacques. O rapaz virou-se no banco e olhou para o tio, boquiaberto. Sebastien puxou-o para si. Embora

estupefacto com as suas próprias ações, os remorsos que o desfaziam por dentro e o esmagavam sob o peso de tantas emoções contraditórias não permitiam que a lógica assumisse o controlo. Esperava que Jacques o rejeitasse, mas o menino, embora chocado, ficou quieto. – Eu gosto muito de vocês, dos dois – repetiu Sebastien em tom brusco, as palavras a escaparem-se dos seus lábios enquanto olhava para os sobrinhos. – E sei como é difícil compreender o que aconteceu ao vosso papá e ao avô. Também é difícil para mim. – Não, porque tu eras médico – respondeu Jacques. – Viste muitas pessoas mortas. É por isso que não choras. Foi o que a mamã nos disse. – Ainda sou médico. E nós também choramos, como toda a gente. – Mas tu não choraste pelo avô. – Isso não significa que não gostasse dele. – Espantado por ter dito as palavras em voz alta, viu os olhos de Jacques tentarem descortinar a verdade no seu rosto. Foi arrancado aos seus pensamentos perturbados por Louise, que se enroscou nele e olhou de frente para a sua cara. – Eu chorava se tu morresses, tio Sebastien. Só um coração de pedra conseguiria resistir a um apelo tão melancólico. Olhou para a sobrinha, com uma sensação de deslumbramento a invadir-lhe o peito. Que idiota sentimental me tornaria, se tivesse filhos como estes. – Eu não – anunciou Jacques. Afastou a irmã e ergueu os olhos para Sebastien. – O que é que nós fizemos para estares sempre tão zangado connosco? – Nunca estive zangado com nenhum de vocês. Nunca me fizeram nada de errado. – Então porque não gostas de nós? – Gosto muito de vocês, mas, sabem, os adultos e as crianças não têm muito de que conversar uns com os outros. – Nós estávamos sempre à conversa com o avô. Ele contava-nos histórias sobre a guerra. – Alguma vez vos falou da avó de Savin? Ou do Antoine e da Bridgette? – Quem são esses? – quis saber Louise. – Eram nossos tios. Como o tio Jacques – explicou-lhe Jacques. – Eram os irmãos mais velhos da mamã. A mamã disse que morreram há muito tempo. – Oh! – Louise parecia desconfiada. Os seus olhos curiosos ergueram-se para Sebastien. Parecia confusa. – Tu também és irmão da mamã? – Isso mesmo. A vossa mamã e eu tivemos uma irmã – explicou, com paciência. – A Bridgette. E dois irmãos, o Antoine e o Jacques. – O Jacques é o meu irmão – contradisse Louise. O irmão soltou uma risada. – O tio e eu temos o mesmo nome, sua tartaruga palerma! – Chega – interrompeu Sebastien, sentindo-se estranhamente animado e esperançoso. – Querem que

vos fale sobre eles e sobre a avó de Savin? A vossa avó vinha de uma terra cheia de lendas e contos de fadas. – Onde? – perguntou Louise. Sebastien respirou fundo e começou a falar-lhes sobre a Bretanha, e sobre a singular filha de um pescador que se apaixonou por um jovem e galante soldado. As crianças ouviram-no sem pestanejar, hipnotizadas. Sabia finalmente o que podia partilhar com os sobrinhos, e aquela era uma dádiva que mais ninguém lhes podia dar.

Quando acordou, viu Annette inclinada sobre ele, a sorrir com lágrimas no rosto, os braços apoiados nas muletas. Depois de um momento de desorientação lembrou-se de onde estava – sentado, encostado à cabeceira da cama de Jacques – e com quem. Louise adormecera no seu colo, com a cabeça no peito dele. Jacques estava deitado ao lado, com um braço em cima das pernas do tio, o rosto apoiado no seu sobretudo, que não chegara a despir. – Que magia aconteceu aqui? – murmurou Annette, enquanto os observava. Sebastien abanou a cabeça, sem saber bem, embaraçado e satisfeito. – Temos mais em comum do que eu julgava. – Volta para a América. Já. – O quê? – Despacha-te, antes que te esqueças deste momento. Partilha-o com a Amy e garante-lhe que és um candidato melhor para a paternidade do que alguma vez suspeitaste. – Estás a tirar conclusões a mais de um simples… – Vai! Quero-te num avião amanhã. Eu já consigo tomar conta das coisas por aqui. Foste além das tuas obrigações. Agora vai e vive a tua vida, e não desapontes aquela americana espantosa que te compreende melhor do que qualquer um de nós, e que vê em ti algo pelo qual valeu a pena esperar. Liberdade. Saboreou-a como se fosse um bom vinho maduro deixado a respirar para ser aberto naquele exato momento. Não sabia se Amy o receberia de braços abertos, nem como conseguiria esconder os seus medos quando a visse grávida de oito meses. Porém, ao olhar para as crianças que o tinham conquistado e sido conquistadas por ele – tudo graças à paciência de Amy – teve esperança.

Capítulo 27

Amy estava sentada no sofá da sala, com o candeeiro na mesinha alugada a banhar com uma luz branca e suave o guião que tinha nas mãos. Estremeceu dentro da pequena tenda que era a camisa de dormir cor-de-rosa, tentou pôr os pés debaixo do corpo e desistiu quando percebeu que, com aquela barriga, era um esforço hercúleo. Tentou de novo prestar atenção ao guião, e mais uma vez os seus pensamentos se desviaram para Sebastien, no funeral. Olhou para o aparelho em cima da mesa e desejou que ele lhe ligasse. Quando o aparelho tocou, tentou alcançá-lo depressa, gemendo entre dentes porque a barriga a atrapalhava até nas tarefas mais simples. – Estou? – Ainda ando nas compras – anunciou Frau Diebler. – Há um saldo de sapatos na Neiman-Marcus. Volto dentro de uma hora. Bebeu o seu leite? – Quase um litro. E tudo o que tenho feito desde que saiu é estar sentada no sofá, como uma batata gigante. Estou a descansar, juro. Nem as baleias descansam tanto quando ficam encalhadas na praia. – Muito bem. Não me demoro. – Faz-me uma massagem nas costas quando chegar? – Claro que sim. Frau Miracle, pede-me essas coisas sempre com tanta delicadeza. Não é preciso. Sou sua empregada. Pode limitar-se a comunicar-me o que deseja. – Nada disso. Somos parceiras. – Obrigada, Frau Miracle. Respeito-a e fico contente por o sentimento ser mútuo. – Frau Diebler pigarreou. – Bem, chega de conversas. Descanse! – Não se preocupe. Seria preciso um guindaste para me arrancar deste sofá. Depois de desligar, atirou o guião para o lado e esfregou a testa tensa. Porque é que Sebastien não lhe ligara? Talvez não queira partilhar o que sente contigo. Talvez já não precise de o fazer… – Oh, para com isso – murmurou para si própria. – Grávida maluca, com as hormonas todas descontroladas. Um leite com chocolate acalmar-lhe-ia os nervos. Leite com chocolate sobre uma salada de fruta. Era um desejo repugnante, mas saudável. Até Frau Diebler aprovaria. Amy apoiou as mãos no sofá e, a soprar, começou o movimento rítmico para trás e para a frente que, esperava, a arrancaria às almofadas do sofá. No exato momento em que se conseguiu levantar, meio cambaleante, ouviu passos do lado de fora da porta. Faziam eco no corredor do segundo piso, um som oco que a alertava sempre que havia alguém a

dirigir-se para ali. Os passos pararam abruptamente e o seu dono ignorou a campainha, começando aos murros na porta metálica envernizada. – É o Elliot. Deixa-me entrar, querida. Um sinal de aviso instintivo imobilizou-a. Embora tivesse voltado a consumir, Elliot permanecera calmo e razoável. Aquela urgência na voz era algo novo, e Amy não sabia o que significava. Aproximouse da porta mas não a abriu. – Está tudo bem? – Preciso de falar, querida. Ainda são só nove horas. Vá lá. É importante, mais ou menos. Por favor. Ao ouvir o por favor, Amy relaxou. Nos velhos tempos, Elliot nunca era educado quando estava sob o efeito da cocaína. – Está bem. Espera um bocadinho. Destrancou a porta e abriu a corrente. Elliot empurrou a porta com tal força que as paredes estremeceram. Acertou no ombro direito de Amy, que recuou, desequilibrada, e quase caiu, com uma pontada de dor a apanhar-lhe o braço. Olhou para ele, primeiro com estupefação e depois com medo, ao reparar no cabelo revolto e no olhar furioso. Elliot entrou no apartamento e parou, com as pernas abertas, as mãos cerradas ao lado do corpo. Embora estivesse imóvel, parecia tão tenso que ela conseguia ver as mangas curtas da camisola a estremecer. As calças de ganga justas revelavam o palpitar rítmico de um músculo no joelho. Estava equilibrado nos calcanhares dos ténis. – Sua cabra – insultou-a, em voz baixa e gelada. Tão naturalmente quanto conseguiu, Amy recuou. Tinha o coração aos saltos. Elliot parecia capaz de qualquer coisa. Nunca a insultara assim, nem nas piores fases. Quando chegou ao sofá, contornou-o e colocou-se por trás, usando-o como uma barreira. Levou a mão à barriga num gesto protetor. Atrás dele, a porta continuava aberta, deixando entrar a humidade da noite de janeiro. Amy pensou se haveria algum vizinho lá fora, que a conseguisse ouvir se gritasse a pedir ajuda. – Sai – ordenou a Elliot. – Sai antes que digas mais alguma coisa de que te virás a arrepender. Elliot avançou para ela com passos calculados, agachado como um predador. – Ficaste com o papel principal naquela série que o Hadley Rand vai fazer. Aquela merda daquela série importante de que toda a gente anda a falar. Porque não me contaste que estavas na corrida para o papel? Por que raio tive de saber que o conseguiste por um dos imbecis do Hadley, demasiado pedrado para manter a boca fechada? Amy desviou-se ao longo do sofá, com as mãos nas espaldas do móvel e, de relance, olhou de novo para a porta aberta. Sentiu o estômago apertado com a sensação, quase esquecida, de estar encurralada, em pânico. No seu estado não conseguiria correr suficientemente depressa para chegar à porta antes de Elliot. Parou e olhou para ele com toda a calma que conseguiu fingir. – É só um piloto. Pode nem sequer avançar. Não quis que soubesses que tinha feito a audição. Estás numa fase vulnerável e não tencionava que achasses que estávamos a competir. Só soube esta tarde. Ia

contar-te logo à noite. – Mentirosa. – Chegou-se ao pé do sofá e parou, a um metro dela. Tremia. – Todo este tempo pensei que me querias ajudar a endireitar, mas não te importas se eu vivo ou morro. Tens-te concentrado na tua carreira e agora que te saiu a sorte grande estás a borrifar-te para mim! – Ouve o que estás a dizer, Elliot! O que é que andaste a snifar? Sabes que eu me importo contigo. Elliot tinha as veias do pescoço salientes. – Sei que me amas! – gritou, e saltou para a frente. Agarrou-a por um pulso e torceu com tanta força que Amy sentiu um músculo a rasgar antes de a dor explodir em fragmentos de luz perante os seus olhos. Faltaram-lhe as forças nos joelhos, mas cerrou o punho livre e atingiu-o no estômago antes de cair no chão. Elliot dobrou-se para a frente, a tossir. Depois esbofeteou-a. Os dentes dela fecharam-se com força e mordeu a língua. – Sei que me amas – repetiu, aos gritos, com a saliva a salpicar o rosto de Amy. – Raios, quero que o proves! Amy fechou outra vez o punho, mas, apesar do terror, apercebeu-se de que bater-lhe era a coisa mais perigosa que podia fazer. Não lhe batas, ou ele vai ripostar. Faz o que for preciso para proteger os bebés. Tentou dobrar-se para a frente e proteger a barriga, mas Elliot agarrou-a pelas axilas e obrigou-a a levantar-se. – Mostra-me. Mostra-me que gostas de mim, sua cabra egoísta. – Agarrou-a pela nuca e, encostandose às costas dela, empurrou-a pelo corredor que levava aos quartos. – Não grites. Não faças um único som ou juro que te ponho a dormir. A mente de Amy era um turbilhão de terror. Tentou firmar os pés descalços na carpete, mas Elliot continuou a empurrá-la até ao quarto. – Não vais fazer isto, tu não queres fazer isto, Elliot. Elliot, tu não és assim, tu não és capaz de fazer uma coisa destas, Elliot… – Cala-te! – Conduziu-a até aos pés da cama e empurrou-a com força. Amy virou-se e caiu de costas, com um gemido, presa ao colchão pelo peso e pelo volume da barriga. Tentou virar-se e sair da cama, mas, quando conseguiu voltar-se de lado, Elliot atirou-se para cima da cama, atrás dela, e prendeu-a com o braço sobre o pescoço. – Mostra-me que gostas de mim! Esticou a mão livre por cima dela e apertou-lhe um dos seios pesados e sensíveis através da camisa de dormir, enquanto ela tentava respirar e lutar contra ele. Tentou agarrar-lhe a mão, em pânico, quando esta deixou o seio e deslizou sobre a enorme protuberância da barriga. Elliot suava e tremia, a emitir sons guturais que se transformaram em soluços. – Para, Elliot, por favor, para – implorou, arquejante. – Vá! Mostra-me! Ama-me! Enfiou-lhe a mão entre as pernas e tentou introduzir os dedos dentro dela, mas a barreira da camisa de

dormir e os movimentos furiosos de Amy impediram-no. Quando lhe puxou a camisa de dormir para cima, percebeu que Elliot não iria parar antes de a violar e de a magoar com gravidade. Atirou a cabeça para trás com toda a sua força e acertou-lhe no nariz. Elliot foi apanhado de surpresa pela dor e afrouxou o domínio por um segundo. Amy deu-lhe uma cotovelada e, no mesmo movimento, arrastou-se até à beira da cama. Caiu de gatas enquanto Elliot se atirava e lhe agarrava as costas da camisa. Amy esticou-se para a cómoda e agarrou no puxador da gaveta de cima, que deslizou e caiu no chão, espalhando lenços, meias e a pistola. Elliot chorava histericamente. – Vou foder-te no chão, se é isso que queres! – Amy ouviu a cama a ranger quando ele se levantou. Oh, meu Deus, não tenho alternativa. Meio ajoelhada, meio apoiada à mesa de cabeceira, virou-se com a arma na mão e desarmou a segurança, atrapalhada, enquanto a parte mais racional da sua mente rezava. – Não! Não! – gritou, enquanto Elliot se lançava de novo para ela. – Ama-me! A expressão no rosto dele, quando Amy puxou o gatilho, era de incredulidade.

No meio da tristeza, da humilhação e da dor física, apercebeu-se vagamente de que Frau Diebler chegara à esquadra. Ouviu o sotaque alemão brusco no corredor do lado de fora do gabinete do detetive, a ordenar aos agentes que lhe saíssem da frente, como se fossem seus criados. Quando ela entrou no gabinete onde Amy estava à espera, sozinha, recebeu-a com um sorriso triste. O rosto da enfermeira perdeu toda a severidade. Sentou-se na cadeira ao lado de Amy, atarantada como uma galinha. Amy estava contente de a ver. – Os vizinhos deram-lhe o meu recado? – Ja. E disseram-me que o Elliot vai sobreviver. Foi só no ombro? – Sim. Quando os paramédicos chegaram informaram-me que era grave, mas que não corria risco de vida. Frau Diebler encostou-se e olhou com expressão tempestuosa para o pulso inchado de Amy. – Vou levá-la já para o hospital. Imediatamente! – Ainda tenho de responder a mais algumas perguntas. É rotina. – Aquele Elliot, ele não a acusou de… – Não. Quando os agentes chegaram, contou-lhes exatamente o que tinha acontecido. A verdade. – Apoiou a cabeça na mão. – A verdade. Pediu-me desculpa. – Apertou os braços à volta do corpo e fechou os olhos. O polícia, um veterano de olhar amável, voltou a entrar. – Preciso de falar com a senhora Miracle – indicou, olhando para Frau Diebler.

Amy deu-lhe uma palmadinha na mão. – Este é o agente Rodriguez. Espere por mim lá fora. Depois de Amy e Rodriguez estarem sozinhos, com a porta fechada, o detetive sentou-se na beira da secretária, virado para ela, e observou com atenção. – Vai ser como discutimos há pouco. – Isso significa que o juiz concordará em reduzir a acusação se o Elliot aceitar ser hospitalizado para uma desintoxicação? – Sim. – Ótimo. Mas o que lhe vai acontecer agora? – Ficará sob vigilância no hospital, um ou dois dias. Quando tiver alta, ou o advogado o consegue libertar sob fiança, ou é transferido para a prisão. – Rodriguez tocou-lhe no ombro. – Vá para casa. O pior já passou. Mas não tinha passado. Quando saiu do gabinete, encontrou Frau Diebler a desligar o telefone na secretária de um funcionário. – Obrigado – agradeceu. – O custo da chamada internacional será pago no destinatário, tal como prometido. Amy puxou-a para um canto sossegado. Doía-lhe o corpo todo e estava agoniada. Cambaleante, olhou para Frau Diebler, assustada. – Ligou ao doutor de Savin? – Sim. Lamento muito, mas teve de ser. – Frau Diebler parecia aflita. – Não posso esconder-lhe uma coisa destas. Contei-lhe tudo e Herr Doktor está a tratar das coisas para vir imediatamente. Lamento ter de lhe fazer isto, mas no fundo é a ele que tenho de prestar contas. Sinto-me envergonhadíssima por o ter enganado: se lhe tivesse contado sobre esse Elliot antes, talvez o que aconteceu esta noite pudesse ter sido evitado. Amy encostou-se à parede e soltou uma imprecação. – Que mais é que lhe contou nesse seu acesso de sentimento de culpa? – Que está grávida de gémeos, que já teve um sangramento e… que tem estado a ajudar o Elliot Thornton. Que ele é nosso vizinho há quase três meses. Amy procurou uma cadeira e deixou-se cair nela. O que pensaria Sebastien dela por lhe ter escondido o problema médico, o facto de ter dois bebés e não um para ele aceitar, e de ter deixado Elliot voltar a entrar na sua vida, criando a oportunidade para o confronto daquela noite pôr em perigo a sua própria segurança, bem como a dos filhos? As hipóteses de Sebastien mudar de ideias em relação aos bebés tinham ido por água abaixo. Chegou até a pensar se ainda a quereria a ela – não que fizesse qualquer diferença, se rejeitasse os bebés. Compreenderia Sebastien que só quisera impedir que ele se preocupasse, que quisera mostrar uma fachada perfeita, a gravidez perfeita, para que ele a aprovasse? Depois de tudo o que acontecera, duvidava e muito. Tinha a certeza de que Sebastien não vinha a caminho para lhe comunicar que mudara

de opinião. – Já não precisa de ficar comigo – disse a Frau Diebler. – O que acontecer agora será entre mim e o doutor. Duvido que ele torne a acreditar em mim, por isso não fará diferença se eu a mandar embora. – Mas, Frau Miracle… – Ligou-lhe e respeito as suas razões, mas já não preciso de negociar consigo. Volte para o apartamento e arrume as suas coisas: quero-a fora de lá amanhã. Ah, e não voltarei para lá consigo esta noite. Adeus. – Mas… mas, Frau Miracle, não pode… Onde ficará entretanto? – Num hotel. Não quero dormir onde o Elliot quase… não quero ficar no apartamento. E não pretendo voltar a vê-la. Cumpriu o seu dever, mas magoou-me, a mim e ao doutor, mais do que imagina. – Frau Miracle… Peço desculpa, mas não compreendo. – Adeus. – Amy voltou a entrar no gabinete do agente Rodriguez, que ergueu os olhos da secretária. – Preciso de uma boleia para um bom hotel. Há alguém que me possa levar ou devo chamar um táxi? – Precisa é de alguém que a oiça, a julgar pela sua cara. – Já fico feliz se tiver uma boleia. – Acho que lhe posso oferecer ambas as coisas. – Levantou-se e pegou nas chaves do carro, enquanto sorria a Amy de uma forma tão paternal que ela teve vontade de chorar.

Mal dormiu, nessa noite. Rodriguez ligou-lhe na manhã seguinte. – Verifiquei o seu apartamento. A enfermeira já lá não está. Mas tenho de a avisar de uma coisa. Tem meia dúzia de repórteres e fotógrafos acampados à porta, à espera que chegue. A notícia do que aconteceu ontem já se espalhou. A sensação de desespero e isolamento de Amy intensificou-se. Com ela, veio também a raiva que acumulara. – Estou aqui sentada, sem nada a não ser a mala, o casaco e o vestido que enfiei ontem antes de chamar a polícia. E aqueles abutres estão à espera que eu chegue a casa para me comerem viva. – Posso mandar alguém consigo para abrir caminho até à porta. – Não vou voltar para lá. Recuso-me a ser tratada como fruta madura que podem descascar para encontrar os podres. – Olhe, o melhor é habituar-se. Os paparazzi não desaparecessem assim; vão acabar por encontrá-la. – Vou para São Francisco. Não posso andar de avião, mas alugo um carro com motorista. – Ótimo. Quando chegar lá e estiver instalada, ligue-me. Convém saber onde está, para o caso de haver mais perguntas. – Amy agradeceu e desligou. A seguir ligou para Mary Beth, que passara a manhã à espera de notícias. – Preciso da tua ajuda – pediu-lhe Amy. – Aos oito meses de uma gravidez gemelar, não devia andar de um lado para o outro sozinha.

– Vou ter contigo a São Francisco, ao aeroporto. Dá-me cinco minutos e já te ligo com o número do meu voo. Enquanto esperava, Amy agarrou-se à barriga e baloiçou lentamente o corpo, tentando acalmar-se, e aos bebés. O quarto de hotel, com o seu charme impessoal, era arrepiante. Perguntou a si própria quando é que Sebastien chegaria a Los Angeles. Mais do que nunca, estava desesperada por paz, sossego, dignidade, e sabia que Sebastien estaria demasiado zangado para lhos poder proporcionar. O assédio da comunicação social também não a ajudaria, e ainda tinha de lidar com a própria vergonha por se ter metido numa situação tão desagradável com Elliot. Tinha de cuidar de si e dos bebés. Sabia, mais do que nunca, que eram todos sobreviventes.

Comprou uma muda de roupa e alguns artigos de higiene e meteu-se numa pequena limusina cinzenta para a viagem até São Francisco, que demoraria um dia inteiro. O motorista, um homem corpulento e careca, tão elegante como o carro, lançou-lhe um olhar curioso, mas não disse nada. Amy dormitou aos bocados nas horas que se seguiram, entre as paragens frequentes para ir à casa de banho. Estava enjoada e não conseguia comer. O motorista foi paciente e prestável, parando para lhe comprar água e incentivando-a a mordiscar bolachas de água e sal. Quando chegaram ao aeroporto em São Francisco, Amy estava exausta, mas sentia-se suficientemente forte para continuar sozinha. Arrastando o saco novo com os seus escassos bens, procurou uma bilheteira e perguntou sobre o voo de Mary Beth. – Problemas mecânicos – foi informada. – Tiveram de fazer escala em Dallas e só voltaram a descolar há meia hora. Ainda terá de esperar um bom bocado. Amy dirigiu-se a um café, com os ouvidos a zumbir de fadiga. Bebeu um copo de leite e, irrequieta, decidiu ir tratar do aluguer do carro e depois encontrar um sítio para respousar um pouco. Quando se colocou na fila do guichet de aluguer de viaturas, cambaleou e agarrou-se à barriga, o que levou um funcionário do aeroporto a correr para ela enquanto pedia, pelo rádio, uma cadeira de rodas. Apesar dos seus protestos, o funcionário não a deixou e começou a insistir com os empregados para despacharem o processo de aluguer. Amy encolheu-se perante os olhares curiosos dos outros viajantes. E depois um clarão explodiu ao seu lado. Virou-se e ergueu a mão para proteger os olhos. – O que está a fazer em São Francisco, senhora Miracle? – O fotógrafo era um homenzinho pequeno e veloz como um furão, com uma data de fios de ouro e câmaras ao pescoço. Continuou a tirar-lhe fotografias, a máquina a clicar sem interrupção, como uma arma automática carregada. – Quem é você? – Virou a cabeça e escondeu o rosto, sentindo-se indefesa e encurralada. – Ron Falcone. Freelancer. Amy rangeu os dentes. Era um dos paparazzi que costumavam deambular pelos locais como o aeroporto, na esperança de apanhar as celebridades. Quando namorava com Elliot vira-o muitas vezes dar espetáculo para aquele género de gentinha.

– Não tenho nada a declarar, Ron. Por favor… – Como está o Elliot Thornton? – Não tenho nada a declarar. – Deixe-a em paz – ordenou o funcionário do aeroporto, colocando-se à frente dela e gritando para o guichet: – Despachem o carro da senhora Miracle! Já! – É verdade que a tentou violar? – perguntou o fotógrafo em voz alta. – Não. Não. – Agarrou nos impressos que a empregada lhe estendia, assinou-os com mão trémula e pegou nas chaves. – Quem é o pai do seu bebé? É o Elliot? Porque é que lhe deu um tiro? – Levem esta senhora ao carro! – ordenou o funcionário. Um segurança apareceu e pegou-lhe no braço. – Precisa de ajuda, minha senhora? – Sim. Obrigada… – Acha que esta publicidade vai promover a sua carreira? – gritou Falcone, enquanto tentava afastar o funcionário do aeroporto, com a câmara levantada por cima da cabeça do outro homem e continuando a fotografá-la. Amy apoiou-se no segurança que a afastou da multidão até uma saída lateral. – Detesto aquele filho da mãe do Falcone – resmungou o guarda. Decidiu que, se conseguisse chegar ao carro, conduziria até se sentir segura. Era capaz de ser uma longa viagem.

Uma porta dupla de vidro reforçado bloqueava a entrada da enfermaria para detidos, no hospital. Um jovem agente, de aspeto atormentado e decidido a seguir as regras, estava sentado a uma secretária do lado de fora. Parecia cada vez menos provável que ele cedesse, enquanto analisava as roupas amarrotadas de Sebastien, a barba por fazer que lhe escurecia as faces e a sua aparência exausta. Sebastien sabia que, aos olhos do polícia, parecia desesperado. E estava desesperado, porque ainda não conseguira localizar Amy. As palavras de Frau Diebler não lhe saíam da cabeça. Gémeos. Amy não quisera que ele soubesse disso, nem que estava a tentar ajudar Elliot Thornton – tivera medo da sua reação. As ações de Sebastien tinham-na impossibilitado de confiar nele, de lhe pedir ajuda. – Saí de Paris ontem à noite – explicou de novo, em voz rouca de cansaço. – Cheguei a Los Angeles há uma hora. Quando liguei para os seus superiores, disseram-me que o agente estaria aqui esta tarde e talvez conseguisse falar com ele. – Ali está ele. Boa sorte. Um homem corpulento acabara de sair de um dos quartos no corredor para lá das portas de vidro. Dirigiu-se a Sebastien por entre o mar de enfermeiros, auxiliares e macas, estudando-o com expressão

neutra. Quando chegou à porta, Sebastien viu, pelo distintivo na lapela do fato castanho, que era Rodriguez, o polícia à frente do caso de Elliot. Rodriguez abriu a porta e pôs a cabeça de fora. – Sim? – Este tipo está à procura da Amy Miracle. – Sim, ele e todos os outros repórteres da cidade. Sebastien rangeu os dentes. – Chamo-me de Savin. Não sou um repórter. Sou o… – procurou as palavras certas, sentindo-se tolo e impaciente. – Sou o futuro marido dela. – Se ela ainda me quiser. – Não posso dar-lhe qualquer informação sem autorização dela. Posso apenas garantir-lhe que está em segurança. – Deixe-me falar com o Elliot Thornton. Rodriguez riu-se. – Isto não é o clube, homem. – A Amy está grávida de oito meses, de gémeos – explicou Sebastien, pronunciando cada palavra com raiva mal contida. – Os meus filhos. Foi espancada, aterrorizada e quase violada ontem à noite. Será assim tão difícil compreender por que razão quero falar com o homem que lhe fez isso, e porque preciso de a encontrar? – Amigo, pela sua expressão, ainda estrangulava o Thornton, e isso era coisa para me estragar o dia. – Pode pelo menos dar uma mensagem à Amy? Indicar-lhe o nome do meu hotel, para ela me telefonar? – Escreva a informação e deixe-a com este agente. Vou pensar no assunto. – Talvez eu possa ajudar – disse uma voz atrás de Sebastien. Virou-se e ficou cara a cara com Jeff Atwater, que parecia acabado de sair das páginas de uma revista de moda masculina, mas cujos olhos tinham um brilho solidário. Após um segundo de espanto, a raiva trouxe-lhe à memória a sua última imagem de Jeff, caído no chão de um hotel em São Francisco, com a boca a sangrar. – Sai da minha frente – rosnou Sebastien baixinho, a voz tão dura e implacável como a parede de betão por trás de Jeff. Jeff empalideceu ainda mais. – Ouvi dizer, há vários meses, que tu e a Amy se tinham reconciliado. Nunca deixei de me preocupar com ela, embora à distância. Numa ocasião a Amy procurou a minha ajuda, por causa do Elliot Thornton. – O que quer que a Amy tenha sentido por ti um dia, já morreu há muito. Não permitirei que te atravesses outra vez entre nós. – Até parece que alguma vez tive alguma hipótese! – Raios, a Amy não precisou de ti durante anos. Por que motivo precisaria agora? Aquilo que tiveram foi assim tão significativo?

– Meu Deus, nunca lhe perguntaste sequer o que aconteceu? Passámos uma noite juntos, Sebastien, uma mísera noite. Eu seduzi-a e levei-a a fazer algo que ela na realidade não desejava. Odiou-me por isso e eu odiei-me a mim próprio. É disso que estás a falar? Não tivemos nenhuma relação. Só te deixei pensar que sim para te manter longe dela. Raios, eu queria mais, mas nunca pude competir com a tua recordação santificada. A pobre miúda estava convencida de que tu havias de vir buscá-la um dia. Se o velho Pio Beaucaire não a tivesse persuadido do contrário, ela nem sequer teria caído nas minhas garras. Sebastien deu um passo na direção dele, quase a perder o controlo. – Fizeste-me isso? A mim e a ela? Mentiste. Porquê, raios? – Fui um idiota. Estava confuso e era ganancioso. O teu pai não queria que tu te envolvesses com a Amy. Pagou-me para garantir que cada um seguia o seu caminho. Eu já estava farto da vida de merda da classe média. Queria dinheiro. – O meu pai pagou-te? – Sebastien agarrou na camisa branca engomada de Jeff e empurrou-o contra a parede. – Traíste-nos por dinheiro? Rodriguez saiu para o corredor. – Não quero ter de me meter nisto. Acabem com isso, os dois. – Não há problema – assegurou Jeff ao detetive, sem nunca desviar os olhos de Sebastien. – Ele só me bate em convenções médicas. – Porquê? – quis saber Sebastien. – Porque é que nos traíste? – Por dinheiro, sim. Mas também… por causa da Amy. Não foste o único que se apaixonou por ela. Sebastien manteve-o encostado à parede e fitou-o nos olhos, à procura da verdade. O seu ódio por Jeff não diminuíra, mas compreendia-o agora um pouco melhor. Pensou em Amy, no que ela devia ter passado, pois sabia que se teria culpado a si própria. E ao longo de todo aquele tempo conservara um lugarzinho duro e rancoroso escondido dentro de si, porque julgara que Amy o trocara por Jeff. Precisava de a encontrar e de corrigir as coisas, tudo. – És um monte de lixo inútil – murmurou a Jeff, apertando-lhe mais a camisa. – Não sabes o que é amar outra pessoa além de ti. – Então porque achas que apareci aqui hoje? Por causa de algum instinto caridoso em relação ao Thornton? Raios, claro que não! Estou a tentar ajudá-lo, pela Amy. E por ti. Ouve, acredita no que quiseres em relação a mim, mas esta é a minha forma de pedir desculpa. Falei ao telefone com o advogado do Elliot. Ele pediu ao Thornton para me contactar. – Olhou para Rodriguez. – Sou o doutor Atwater, o psiquiatra, e tenho aqui a autorização para falar com o Thornton. – Muito bem. Jeff indicou Sebastien com um gesto de cabeça. – Será que este tipo de ar enganadoramente assassino pode vir comigo? Rodriguez resmungou entre dentes. – Ele é mesmo o doutor de Savin? – Em carne e osso – respondeu Jeff.

– Bom, se assim o diz, está bem. Cinco minutos. – Se o teu pedido de desculpas é sincero, isto é tudo o que quero – lançou Sebastien. – Como desejares. – Jeff fez-lhe sinal para o seguir. O homem pálido e macilento deitado na cama de hospital, com um ombro envolto em ligaduras e o braço ao peito, encheu Sebastien de ódio e piedade, ao mesmo tempo. Elliot olhou para os dois visitantes com olhos baços e fundos. – Onde está ela? Está tudo bem? Sebastien aproximou-se dos pés da cama. Independentemente da piedade, seria muito fácil esquecer que havia um polícia de uniforme ao canto do quarto. Seria facílimo cerrar as mãos na garganta de Elliot e apertar. – Diga-me você – respondeu. As lágrimas deslizaram pelo rosto de Elliot. – Não sei. Jeff aproximou-se. – O seu advogado informou-me que a Amy não vai apresentar queixa desde que se interne voluntariamente num programa hospitalar de reabilitação. Quero que entre no meu centro. É o melhor. Se quiser mesmo melhorar, vai consegui-lo, sob a minha supervisão pessoal. – Neste momento, tudo o que eu quero é morrer. Sempre que penso no que fiz à Amy, no que tentei fazer… Sei que estava fora de mim. Ela não me ama há muito tempo. – Olhou para Sebastien e ergueu a mão trémula para limpar a cara. – Você esteve sempre presente, desde o início. O raio de uma sombra, desde antes de eu a conhecer! Mas a culpa não é sua de as coisas terem corrido mal. É minha. Esta é a primeira vez que o admito. – Muito nobre, seu filho da mãe, depois de a ter magoado e humilhado. – Vou dar entrevistas. Vou contar tudo, tudo… como ela tentou ajudar-me a ficar sóbrio, como escrevia para mim sem ninguém saber, o quanto a massacrei por me ter deixado. E… o que aconteceu ontem à noite. Tudo. Hei de compensá-la. Quero que a Amy seja feliz. – Elliot virou a cara para o lado e engoliu em seco, com a almofada branca a emoldurar as feições destruídas e o perfil inchado. – Sei que acabou tudo. Diga-lhe que a amo, mas que sei disso. – Primeiro tenho de a encontrar. – Sebastien dirigiu-se à porta, parou e os seus olhos encontraram o olhar derrotado e angustiado de Elliot. Desprezava-o, e sempre o desprezaria, mas o homem estava destruído: já não era um inimigo. – Eu dou-lhe a sua mensagem – prometeu. Mas, céus, onde é que ela está? Jeff aproximou-se e estendeu-lhe a mão, numa despedida. – Invejo o que tu e a Amy têm. Nunca baixarei as defesas o suficiente para ter este tipo de relação com alguém. Ela salvou-te de ti próprio. Gostava que tivesse feito o mesmo por mim. Diz-lhe que eu… diz-lhe que… não foi só por causa do dinheiro. Àquele homem, que fora seu amigo e o traíra, Sebastien nunca daria qualquer conforto, ou sequer um

aceno de assentimento. Quando o fitou num silêncio mortífero, Jeff baixou a cabeça e voltou para junto de Elliot. – Vamos tornar isto mais fácil e falar sobre o seu futuro – anunciou, sentando-se numa cadeira ao lado da cama. – Tenho todas as razões para pensar que, agora, poderá ter um.

A mente de Amy era uma masmorra de exaustão. Doíam-lhe as costas. O pescoço e os seios doridos juntavam-se ao pulso magoado para formar um circuito de dor. Agarrou-se à base da cabine telefónica e tentou não vomitar com os vapores acres que se erguiam do chão da estação de serviço. – Agente Rodriguez, por favor. Após o que pareceu uma eternidade, o detetive atendeu. – Onde está? – Vou a caminho de Mendocino, na zona vinícola. – Meu Deus, está sozinha? – Sim. Tive de fugir à pressa. – Explicou-lhe rapidamente o sucedido. – Não devia estar a conduzir! – A quem o diz. Se a minha barriga crescesse mais um bocadinho, não conseguiria chegar ao volante. – Oiça, tive uma visita do seu doutor de Savin. Amy suspirou de alívio. – Ele mencionou onde estava instalado? – Sim. Deixou o nome e o número do hotel. – Pode dar-lhe uma mensagem minha? Diga-lhe que vou para a casa dele na vinha. A casa está fechada há quase um ano e não quero ficar lá sozinha. Peça-lhe que venha ter comigo o mais depressa possível. – Vou tentar. – E pode tentar também localizar a minha amiga Mary Beth? Deixar-lhe uma mensagem no aeroporto ou ir buscá-la quando ela chegar? Explique-lhe por que razão precisei de me vir embora. – Farei os possíveis. Tem a certeza de que está bem? O doutor de Savin ainda vai demorar umas cinco ou seis horas a chegar aí, ou mais, mesmo que eu consiga apanhá-lo agora. Tenho a sensação de que ele não é do tipo de ficar sentado à espera de um telefonema. Provavelmente anda a interrogar toda a população de Los Angeles à sua procura. – Estou bem. Apenas cansada. Sei que não devia estar sozinha, mas está tudo bem. A sério. Vou descansar e esperar que ele chegue. Agora nada tinha qualquer importância a não ser o que era melhor para os bebés, mesmo que isso significasse expor-se à fúria de Sebastien. – Vá para a casa e não se esforce muito – ordenou Rodriguez. – Assim que ele chegar ficará tudo melhor.

Amy agradeceu-lhe e desligou. Fechou os olhos. Não, o pior ainda nem sequer começou.

Estremeceu de alívio quando finalmente percorreu com o carro alugado o longo caminho sombrio de acesso à casa e à vinha de Sebastien. Tinha uma chave que ele lhe dera quase um ano antes, durante aqueles dias embriagantes e cheios de promessa após o reencontro. Enquanto percorria as divisões frescas de pedra, com uma mão nas costas e a outra debaixo da barriga, Amy ficou surpreendida ao perceber como se sentia reconfortada. Tinham tido esse tempo, esse tempo maravilhoso antes de ele precisar de voltar para França e de ela engravidar. Existira mesmo. Acontecera tanta coisa num ano! Sentiu a cabeça a andar à roda com as memórias e o medo de que nada voltaria a ser maravilhoso entre eles. Dirigiu-se ao quarto e deitou-se em cima do colchão, enrolada em mantas bafientas, imediatamente grata por poder descansar, mais do que qualquer outra coisa. O sol do final da tarde não aquecia o quarto. Mais tarde, ligaria o aquecedor a gás ao canto. A eletricidade e a água estavam desligadas, mas pelo caminho passara pela pequena loja de mercearias e material de campismo e comprara uma lanterna, garrafas de água e alguma comida. Faria uma refeição maravilhosa. Assim que me sentir um bocadinho melhor, pensou, afundando-se na almofada sem fronha, com cheiro a mofo, com um gemido de satisfação. Os seus pensamentos desvaneceram-se perante a maré de exaustão. Conforto. Estava tão perto de Sebastien quanto podia, enrolada nos sonhos que tinham partilhado ali.

A casa estava agora às escuras. Encontrou a lanterna, acendeu-a e percorreu o corredor até à cozinha com cuidado. Não tinha apetite, mas fez um esforço para comer uma fatia de pão. Olhou para o relógio. Sebastien ainda demoraria algumas horas a chegar. Arrastou-se de novo para o quarto, pôs a lanterna na mesa de cabeceira e enfiou-se de novo debaixo das mantas. Dormitou e sonhou com elfos a dançarem-lhe em cima da barriga. Doía. Acordou para sair daquele sonho desagradável. Depois, sustendo a respiração, incrédula, percebeu por que motivo estava a sonhar com dores de barriga. Sentiu o sangue abandonar-lhe o rosto enquanto a contração lenta e funda crescia dentro dela até atingir a intensidade de uma cãibra menstrual das más. O grito silencioso de protesto fez eco na sua cabeça. Ainda não. Não aqui. Não agora! A contração dissipou-se. A suar, olhou para o relógio e esperou. Podia não ser nada, apenas uma reação ao stresse. Claro. Ia ter um trabalho de parto e um parto perfeitos. Não um prematuro e não ali, no meio do nada, sem hospital nem médicos. Sem Sebastien. Sebastien. Estariam as circunstâncias a conspirar para que os receios dele se tornassem realidade? Amaldiçoados. Os bebés estão amaldiçoados. Ele tinha razão.

Para de pensar essas coisas! A contração seguinte, também relativamente leve, surgiu vinte minutos depois. Amy olhou para o relógio sob a luz da lanterna e disse a si própria que vinte minutos era ótimo. Se estava em trabalho de parto, provavelmente ia demorar bastante tempo. Ouviu o vento frio agitar os carvalhos lá fora. O quarto era uma gruta escura com um pequeno centro desesperadamente luminoso onde ela se encolheu, a contar os minutos, recusando-se a deixar a sua imaginação encontrar fantasmas nas sombras.

Gritou ao acordar do sono curto, banhado pela dor. A luz da alvorada passava pela malha das cortinas do quarto. Outra contração trespassou-a. Depois sentiu uma vaga de líquido entre as pernas e afastou as mantas. Durante a noite procurara nos armários de Sebastien e encontrara uma camisa de flanela dele, que era agora tudo o que tinha vestido. Levantou-a e levou a mão ao meio das pernas. Depois de confirmar sem margem para dúvidas que as águas tinham rebentado, soltou um grito. Onde estava Sebastien? Muito bem, calma. Veste qualquer coisa e mete-te no carro. Na véspera comprara um vestido pré-mamã de lã azul. Enfiou o vestido por cima da camisa de Sebastien e calçou os ténis. Com o sobretudo pelos ombros, a mala debaixo do braço e um pano de cozinha dentro das cuecas, saiu para o ar fresco da manhã. Quando a contração seguinte lhe trespassou o corpo disse Uau, oh, uau, porque isso fazia a situação parecer muito mais engraçada do que era. Depois, arrastou-se até à cerca em madeira que ladeava o caminho e agarrou-se a ela até lhe faltarem as forças nas pernas. Sentou-se na relva húmida e fria ao lado e tentou respirar como aprendera nas aulas de preparação para o parto. Quando a dor passou, levantou-se e regressou à casa. As contrações eram agora de cinco em cinco minutos. Foi buscar toalhas, que colocou ao lado da cama. Encontrou um frasco de álcool e despejou-o num copo. Ligou o aquecedor e abriu as cortinas para ter mais luz. Enfiou uma faca de cozinha no copo de álcool e colocou-o na mesa de cabeceira, para ter algo com que cortar os cordões umbilicais. Tirou os atacadores dos ténis, lavou-os e pousou-os numa toalha a secar. Era a única coisa que lhe ocorria que podia usar para atar os cordões. Por fim, pôs um copo de sumo de laranja e um naco de queijo na mesa de cabeceira, para ter algo que lhe desse força. A seguir despiu tudo, exceto a camisa de Sebastien, e subiu para a cama. Estava na hora de enfrentar a verdade. Ia ter os bebés antes de Sebastien chegar. Eles podiam ser demasiado pequenos e frágeis, ou morrer de alguma complicação, e ela também. Aterrorizada, pensou que podia estar prestes a concretizar a maldição dos de Savin. – Sebastien, preciso de ti – murmurou. – Vou lutar o mais que conseguir. Não desistirei. Mordeu uma toalha dobrada quando a contração seguinte chegou.

O carro alugado saiu a toda a velocidade de baixo dos carvalhos do caminho e travou com uma derrapagem. O pátio estava iluminado pelo sol matinal. Sebastien desligou o motor e saiu. Correu pelos degraus que levavam ao alpendre e dirigiu-se à porta enquanto tirava a chave do bolso das calças cinzentas amarrotadas. Quando Rodriguez lhe ligara, às duas da manhã, tinha acabado de sair do duche, depois de passar metade da noite no circuito de clubes de Los Angeles a falar com vários amigos de Amy, nenhum dos quais sabia onde ela estava. Tinha um pressentimento de que não lhe tinham dado o meu recado, murmurara o polícia. Sebastien vestira-se e saíra em cinco minutos. Agora, ao olhar para baixo, reparou que abotoara mal o casaco de malha que vestira sobre o tronco nu e calçara os mocassins sem meias. A Amy vai fartar-se de rir quando olhar para mim. Precisava de a ouvir rir, apesar de estar zangado e assustado. Por que diabo fugira? Sabia, no fundo da sua consciência, que agira desta forma porque não confiava nele, mas tencionava reconquistar essa confiança. De sobrolho franzido, entrou em casa e fechou a porta, com um baque que ecoou nas frias paredes de pedra. As mãos tremiam-lhe. – Miracle – chamou, em tom severo, olhando para o corredor vazio. Através da porta aberta do quarto, ouviu um grito abafado. A dor que sentiu naquele grito galvanizouo. Correu para o quarto e parou, incrédulo, perante a cena com que se deparou. Amy olhou para ele com olhos vidrados pela dor, agarrada à almofada que tinha sob a cabeça, com o rosto esgazeado, o cabelo encharcado em suor. Tinha as pernas dobradas, formando uma tenda com o lençol, mas o ventre inchado ondulava sob o tecido. Um lamento baixo brotou-lhe dos lábios. Sebastien posicionou-se ao seu lado em dois passos. Afastou o lençol e olhou, desesperado, para o corpo em esforço, coberto apenas com uma camisa que reconheceu como sua, amachucada por baixo dos seios. Ouviu o seu próprio gemido de frustração e medo. Rapidamente, ajoelhou-se ao lado dela, segurou-lhe o rosto e beijou-a. Amy gritou e ergueu a boca para a dele num gesto desesperado de boasvindas. Frenético, Sebastien afastou-lhe o cabelo do rosto. Amy abanou a cabeça de um lado para o outro e fitou-o com angústia. – Queria esperar até os bebés nascerem, para veres que estão bem, saudáveis, para os poderes amar. Mas… correu tudo mal! Entrei em trabalho de parto ontem à noite e estou só de oito meses e pensei que podia aguentar até tu chegares e… – Calou-se e fitou-o nos olhos. – E não quero que me odeies ou a eles se eu morrer. – Ouve-me bem! Ouve! Eu só conseguia pensar em encontrar-te! Vais sobreviver a isto e depois vamos esquecer o que aconteceu! Com os tendões esticados no pescoço, enquanto lutava contra a dor, ela disse entre dentes: – Tu não os queres… aos bebés. Sebastien acariciou-lhe o rosto corado e esforçou-se por manter um tom calmo. – Vou levar-te para o carro…

– É tarde de mais – interrompeu Amy, ofegante. – Chiu. Calma. Vou pegar em ti. Vamos para o hospital… – É tarde de mais! – gritou Amy, inclinando a cabeça para trás. Mordeu o lábio e gemeu, numa expressão profunda e primitiva de dor. – Tenho contrações… de minuto a minuto… Tenho de fazer força. Agora! Sebastien levantou-lhe o tronco e sentou-se atrás dela, apoiando-a contra o peito. Amy apertou-lhe as mãos e ele envolveu-a nos braços. – Respira, meu amor. Respira. Amy soprou e acenou com a cabeça. Sebastien praguejou, sentindo-se impotente. Toda a sua vida fora dedicada a vencer batalhas como aquela. Agora, vinte anos de formação médica troçavam dele. Mais uma vez, não podia fazer nada senão assistir, de mãos atadas, enquanto alguém que ele amava sofria. A velha fúria cresceu dentro de si, rindose dele por ter pensado que podia corrigir os erros que tinham começado antes do seu próprio nascimento e que os tinha conduzido àquele momento. Quando a contração passou, Amy soluçou e empurrou-lhe debilmente os braços. – Não queres os bebés. Não podes fazer nada por mim se ainda não os amas. – Amo-te a ti. Achas que quero que sofras? – Saltou da cama. – Agora vamos trabalhar. Juntos. Correu para a cozinha e lavou as mãos. A sacudi-las, entrou de novo no quarto e ajoelhou-se na cama entre as pernas dela. – Vou examinar-te. Amy agarrou-se ao lençol. – Há qualquer coisa errada. O primeiro bebé já devia ter nascido. Estou demasiado cansada, não aguento muito mais. – Calma, amor, calma. Vou fazer-te o toque, está bem? Sebastien introduziu a mão e sondou cuidadosamente com as pontas dos dedos. – Não há nada errado. Excelente dilatação, meu amor. Estás a sair-te bem. – Por favor, salva-os. Mesmo que não os ames, salva-os por mim. Sebastien encostou a testa a um dos joelhos dela e soltou uma exclamação angustiada. – Achas que não tentaria salvar-vos aos três? A resposta dela foi incompreensível porque uma nova contração a fez gritar. Sebastien explorou freneticamente dentro dela, rezando para que os seus dedos encontrassem a superfície lisa e curva de uma pequena cabeça. Um arrepio percorreu-o quando, ao invés, apalpou uns pés minúsculos. – O que se passa? – perguntou Amy, ofegante. – Vejo pela tua… expressão… que há qualquer coisa erra… – O primeiro bebé está virado ao contrário. Amy chorou. – Desculpa, doutor! Por favor… não odeies os nossos… bebés.

– Odiá-los? Odiá-los? Raios, eles são vítimas inocentes. Só gostava de poder ter impedido isto. – Não digas isso! Não penses que fizeste alguma coisa errada! Não fizeste! E a única forma de nos magoares, a mim ou aos bebés, é não nos amares agora! O que… o que estás a fazer? Sebastien virou a mão para cima e encaixou os dedos à volta dos tornozelos do bebé. – Concentra-te na respiração. Vou puxar devagarinho. Amy soltou gemidos guturais. – Estás a portar-te muito bem. Mais uns segundos. – O medo deixou-o tonto. – Estará vivo? – Claro que sim. Nunca permitiria que fosse de outra forma. – Arrogância. Gosto. Ótimo. A abanar a cabeça, Sebastien viu os pés e pernas delicados aparecerem, cobertos da proteção cerosa típica dos recém-nascidos. Puxou com firmeza e sentiu o bebé começar a deslizar para a liberdade. Pensou que o coração lhe rebentaria de agonia quando Amy gritou de novo. Ela deixou-se cair na almofada, a gemer. – Está aqui. Está aqui. – Quase. – De súbito, as ancas e o tronco apareceram. Sebastien segurou o corpinho frágil na mão. – Um menino – anunciou, entorpecido. – Um filho – murmurou Amy. Sebastien libertou os braços do bebé enquanto pensava, com a mente num turbilhão. A cor é boa. O cordão não está a estrangulá-lo. Por favor, por favor, que esteja vivo. – Faz força, amor – incentivou. – Faz força para a cabeça sair. Amy fez força e Sebastien puxou e, um segundo depois, tinha o filho nas mãos. – Ele está bem? – perguntou Amy, tentando sentar-se. – É tão pequenino! Sebastien sentia-se aturdido. Pousou o corpinho do bebé na coxa de Amy e começou a examiná-lo com desespero. – A pulsação é forte. Os reflexos são bons. – Mexeu-se! Tentou levantar a cabeça! A chorar, estendeu a mão sobre a barriga para tentar alcançar o bebé. – Ele está bem? Por favor, diz-me que ele está bem. Sebastien cortou o cordão e atou-o com um atacador. A seguir, pousou o bebé na barriga da mãe para que Amy conseguisse acariciar-lhe a cabeça, enquanto continuava a examiná-lo. – Não sei, não sei – disse, angustiado. – Há tanta coisa que pode correr mal! – Não digas isso! Não existe maldição nenhuma. Ama-nos! Quero que estes bebés se sintam desejados. Não como nós os dois, quando nascemos. Desejados. Não repitas o único erro que realmente existiu e importou. – Estou a tentar! Juro-te! Beijou a cabeça do filho com um pedido de desculpas rápido e desesperado.

– Amo-te. Amo a tua irmã. Amo a tua mãe. Nunca deixarei que sofram. – Olhou para Amy. – Acredita em mim. Dá-me uma oportunidade de o provar. Amy estudou-lhe o rosto por um instante e um brilho de deslumbramento iluminou-lhe os olhos. O bebé chorou, um som baixo mas forte. Moveu os braços e as pernas, a testar a extensão do seu novo mundo. As mãos fracas de Amy acariciaram-lhe a pele enrugada. – Parece que ele só estava à espera de te ouvir dizer isso – murmurou. – Já está contente por estar vivo. Agora ela e Sebastien partilhavam o mesmo deslumbramento. Os olhos de Amy, apesar de vidrados pela dor, tinham um brilho empíreo. – Ele está mesmo bem, doutor. E a irmã também vai ficar. Salvámo-nos porque vieste ajudar-nos. Salvaste as nossas vidas. É uma magia poderosa. Acredita em mim: nós os dois, juntos, e os nossos bebés, todos temos um futuro, graças a ti. Estendeu a mão e apertou a dele. A filha nasceu minutos depois, vermelha e ativa e com a cabeça coberta de cabelo acobreado, muito parecido com o da mãe. Sebastien pousou-a ao lado do irmão, em cima da barriga de Amy, e inclinou a cabeça entre ambos. Amy acariciou-lhe o rosto com ternura enquanto Sebastien chorava. Sentia-se finalmente completo e o fardo desaparecera. Ela compreendia. Ali não havia qualquer erro, absolutamente nenhum.

Epílogo

Amy ficou parada em silêncio por um momento, de rosto erguido para a brisa de primavera, a organizar os pensamentos enquanto admirava as flores brancas do cornizo próximo. Havia tanto a dizer, e tanto que nem sequer conseguia pôr em palavras. Gostava que tivesses estado no casamento. Que pudesses ver os teus netos. De saber o que pensas de mim agora. E o que pensarás de mim no futuro. Decidiu começar com as partes fáceis. – Consegui um papel numa série de televisão. As filmagens são perto da minha casa na Califórnia, sabes? Por isso não preciso de estar longe dos bebés nem do Sebastien, tal como eu queria. É um papel principal. Ei, sou a estrela. O que me dizes disto? Aposto que te surpreendi, tanto quanto a mim própria. Olhou para o lírio laranja que tinha nas mãos e girou-o, distraída, enquanto engolia a amargura. Trouxera o lírio da antiga casa. Era simultaneamente vulgar e belo. – Suponho que tive de trabalhar duas vezes mais do que as outras pessoas para chegar onde queria, mas é possível por isso me tenha feito chegar duas vezes mais longe. Ajoelhou-se e pousou o lírio ao lado da lápide de granito. – Nunca te perdoarei, mas já não preciso de te odiar. Posso sobreviver a tudo porque sei que sobrevivi a ti. Chorou um pouco pelo pai, pela raiva e pelo sofrimento que o tinham distorcido e feito dele um ser humano tão infeliz. Depois levantou-se e sacudiu a terra do vestido. – Tenho um longo caminho pela frente, pai. Não voltarei a vir cá. Não te devo nada. Com a cabeça inclinada, pensativa, virou costas à campa e desceu a colina relvada até ao caminho alcatroado. O som da porta do carro fê-la erguer os olhos. Sebastien saíra do banco de trás da limusina e estava ao lado da porta aberta, à espera dela, com expressão solene enquanto olhava em volta, para o cemitério. Não há aqui fantasmas, garantiu-lhe em silêncio. Nem maldições. Sebastien inclinou a cabeça e ergueu uma sobrancelha como se questionasse a confiança dela. Amy levantou o queixo e desceu a colina a baloiçar os braços, com uma atitude desafiadora. Acredita em mim. Vês? Os fantasmas sabem que é melhor não se meterem connosco, enquanto estivermos juntos. Sentia-se mais leve. Haveria sempre más recordações, mas nunca seriam tão fortes como as memórias boas que ela e Sebastien estavam a criar todos os dias. O médico tornara-se um pai carinhoso para os filhos, do tipo que nenhum dos dois tivera. O amor que dava a Amy e que dela recebia em igual medida era a base para um casamento que se alimentaria a si próprio, ano após ano. Sentia agora a confiança necessária para caminhar em direção a ele absolutamente livre das lembranças que finalmente

sepultara, sem reconciliação mas também sem arrependimentos. Sorriu-lhe ao percorrer os últimos metros, e naquele momento os anos passados fundiram-se com os anos que tinham pela frente. O vento empurrou uma nuvem, que encobriu o sol. Uma sombra passou sobre Sebastien, agarrou-se a ele e fê-la suster a respiração. Haveria sempre sombras. Mas depois Sebastien estendeu-lhe as mãos e a escuridão dissipou-se.