A quest�o da sa�de no Brasil M�rcio V. Pinheiro* *m�dico, psiquiatra e psicanalista em Baltimore, Maryland, Estados Unidos. A constru��o de um sistema de sa�de acess�vel � a esperan�a dos brasileiros. Isso � coisa muito importante para estar sendo decidido assim �s pressas, sem um amplo debate com a participa��o de toda cidadania. Para tornar esse debate poss�vel os brasileiros deveriam ter acesso a dados confi�veis sobre os sistemas de sa�de de outros pa�ses. S� assim poderemos discernir o que ser� melhor para o Brasil. O acesso ao atendimento � sa�de, como bem reza a nossa Constitui��o, � um direito da cidadania. Com exce��o dos Estados Unidos e da �frica do Sul, todos os pa�ses do mundo oferecem hoje um sistema de sa�de com acesso universal aos seus cidad�os. J� se foi o tempo de uma medicina s� para os ricos, e uma caridade pouco confi�vel para os demais. Hoje, no mundo inteiro ningu�m duvida que o atendimento � sa�de n�o deve ser mais um privil�gio dos mais favorecidos. A doen�a e o sofrimento s�o inimigos tenazes e perigosos de qualquer sociedade que devem ser levados a s�rio na hora da distribui��o dos recursos p�blicos, frutos do trabalho de cada cidad�o. O Brasil caminha, a passos largos, para um sistema tr�plice de sa�de. Para os mais pobres e provavelmente mais doentes, existe um sistema �nico de sa�de (SUS). Para a classe m�dia vamos encontrar os planos de sa�de e as seguradoras ambos com fins lucrativos. Para os ricos, o atendimento "particular". Nesse sistema de sa�de fragmentado e injusto, o racionamento do atendimento se faz a partir do poder aquisitivo do cidad�o. Ser� que � isso que a popula��o brasileira quer? Se a resposta for sim, ent�o n�s teremos o sistema de sa�de que merecemos. Mas, se for n�o, fica ent�o uma pergunta inc�moda: porque o pa�s caminha nessa dire��o? Afinal, somos ou n�o somos uma democracia? As coisas n�o v�o bem para o Sistema �nico de Sa�de. Ele permanece muito centralizado e improvisado, remunera mal os profissionais e d� margem a muita corrup��o. Criou-se um Imposto Sobre as Opera��es Financeiras para torna-lo mais vi�vel mas, infelizmente, esse dinheiro est� sendo desviado para outras prioridades do governo. O Brasil n�o tem, como ocorre em outros pa�ses, um imposto sa�de adequado que permita o acesso � sa�de para toda popula��o. Sem tal sistema b�sico e confi�vel a classe m�dia brasileira, ansiosa com o prospecto da fal�ncia frente �s contas de m�dicos e hospitais, ir� buscar seguran�a nos planos e seguros sa�de, nacionais e multinacionais que agora se multiplicam no pa�s. N�o � dif�cil imaginar que quanto mais desmoralizado for o SUS, maior ser� o n�mero dos usu�rios dessas corpora��es da sa�de. Assim, essa j� sofrida classe m�dia ir� pagar duas vezes pela sua inseguran�a: seus impostos e suas presta��es. Os brasileiros ainda n�o sabem, mas essas corpora��es ir�o desenvolver no Brasil um linguajar novo, conforme j� ocorre nos Estados Unidos. Termos mais adequados para o mundo dos neg�cios do que para a pr�tica m�dica ser�o introduzidos. Por exemplo: O m�dico deixar� de ser um cl�nico: passar� a ser um "fornecedor" (provider). Ele n�o ir� mais tratar de seu paciente: ir� fornecer um "produto" (product). A rela��o m�dico paciente n�o ser� mais importante pois esse "produto" poder� ser entregue por qualquer um. Os fornecimentos desses "produtos" dever�o ser "autorizados" (authorized) pelos planos de sa�de e seguradoras, de acordo com os seus crit�rios de "necessidade m�dica" (medical necessity). Essa "necessidade m�dica" n�o ser� determinada pelos
m�dicos mas sim pelas empresas cujo lucros ser�o tanto maior quanto menos servi�os forem prestados. O atendimento m�dico ser� limitado por Organiza��es de Gerenciamento Cl�nico (Managed Care Organizations), tamb�m com fins lucrativos. Nos modelos de Organiza��es de Manuten��o da Sa�de (Health Maintenance Organizations -HMOs) o atendimento por especialistas dever� passar pelo crivo de um "m�dico porteiro" (gate keeper). Os m�dicos ser�o ou n�o "credenciados" (credentialed) pelos planos de sa�de e seguradoras dependendo do seu desempenho tendo em vista os interesses da empresa. Os interesses corporativistas nem sempre coincidirem com a boa pr�tica da medicina. As empresas de sa�de manter�o um perfil de cada m�dico credenciado para decidir quem fica e quem � exclu�do por n�o corresponder �s suas metas, isso �, o lucro. Al�m dos Estados Unidos, o Brasil � o �nico pa�s do mundo que est� adotando esse sistema. Pior do que isso, o Brasil, parece ser o �nico pa�s do mundo que est� permitindo a entrada das seguradoras norte americanas na sua �rea da sa�de. Mas, a ironia maior � que, enquanto isso ocorre no Brasil, dentro dos Estados Unidos esse sistema est� sendo cada vez mais questionado por ser um sistema mais caro e menos eficiente do que os de outros pa�ses, especialmente quando comparado com o Sistema �nico do Canada. Entre 1995 e 1996, os gastos com a sa�de no Canada aumentaram 1.2%, comparados com um aumento de 5.5% nos Estados Unidos. O Canad� gastou 9.5% do PNB na sa�de em 1966, menos do que 9.6% em 1955 e 10.1% em 1993, de acordo com o Managed Health Care Market Report, May 15, 1997. Existem hoje nos Estados Unidos cerca de 44.000,000 pessoas sem seguro sa�de. O povo americano tem recorrido aos poderes legislativos estaduais, que regulam os planos e seguradoras, pedindo prote��o frente a essas corpora��es. S� em 1997, mais de duzentas leis estaduais foram promulgadas regulamentando esses planos e seguros. Existe no Congresso americano um projeto lei para instala��o no pa�s de um Sistema �nico de Sa�de semelhante ao canadense, o ante projeto HR 1200 do deputado federal J. McDermott. De acordo com Woolhandler e Himmelstein (The Deteriorating Administrative Efficiency of the U.S. Health Care System, NEJM, May 2, 1991, figures updated to 1997), os Estados Unidos poderiam economizar $158 bilh�es anualmente em despesas administrativas e burocr�ticas se tivessem um seguro nacional sem fins lucrativos. Essa economia viria, $49 bilh�es da administra��o, $62 bilh�es dos hospitais, $45 bilh�es dos consult�rios m�dicos, e $2 bilh�es da administra��o dos asilos de velhos. Uma pesquisa feita com 1.011 fam�lias nos Estados Unidos revelou que oitenta e dois por cento dos americanos acreditam que "a assist�ncia m�dica se transformou em grandes neg�cios que colocam os lucros acima das pessoas" e setenta e quatro por cento acreditam que "a qualidade do atendimento m�dico � comprometido pelas companhias seguradoras no seu af� de n�o gastar dinheiro". Setenta e nove por cento dos americanos pensam que "algo est� muito errado com o nosso sistema de sa�de" e o que um "atendimento m�dico de qualidade n�o � acess�vel para o cidad�o comum". Oitenta e quatro por cento concordam que o governo federal deveria estar mais presente para "tornar poss�vel o acesso aos cuidados com a sa�de de boa qualidade independente do poder aquisitivo". Essa pesquisa tamb�m revelou que as pessoas com mais de 65 anos de idade que recebem cobertura m�dica atrav�s do
programa federal "Medicare" est�o mais satisfeitas com a qualidade e a cobertura do atendimento do que as pessoas mais jovens que recebem cobertura atrav�s de planos e seguradoras. Apenas dez por cento dos americanos acreditam que as informa��es vindas das ind�stria das cl�nicas gerenciadas (managed care) sejam confi�veis, apenas um pouco acima da ind�stria do fumo com seis por cento, de acordo com uma pesquisa de 1113 adultos feita em fevereiro de 1996. Esses dados mostram que mesmo nos Estados Unidos, o sistema de sa�de vigente n�o tem aceita��o. Ora, se o que � bom para os Estados Unidos nem sempre � bom para o Brasil, o que dizer do que n�o � bom para os Estados Unidos? O debate sobre o sistema de sa�de no Brasil n�o deveria se limitar apenas ao tipo e condi��es da cobertura dada pelos planos de sa�de e seguradoras. Apesar disso ter a sua import�ncia, o debate sobre a sa�de no Brasil deveria ser muito mais amplo e melhor informado, pesando as vantagens e as desvantagens dos diversos modelos globais de atendimento nos diferentes pa�ses. Considerem por exemplo a Inglaterra. L� apenas 14% da popula��o procuram o atendimento m�dico particular mesmo assim s� para certos atendimentos, mas essas pessoas tamb�m procuram os servi�os do Sistema Nacional de Sa�de. O setor particular est� quase que exclusivamente voltado para o atendimento cir�rgico eletivo n�o urgente, o atendimento odontol�gico e os �culos, setores que o Sistema Nacional de Sa�de n�o cobre muito bem. A grande maioria das pessoas, mesmo aquelas que t�m seguro m�dico suplementar, usam o m�dico da fam�lia do Sistema Nacional de Sa�de para os exames de rotina e quando precisam de hospitaliza��o s�o encaminhadas para os hospitais do sistema. Na Inglaterra os m�dicos s�o funcion�rios do governo mas existem tamb�m m�dicos particulares. J� no Canad� o modelo � diferente: os m�dicos e os hospitais n�o t�m v�nculos empregat�cios com o governo. O cidad�o canadense, de posse de sua carteira sa�de, � livre para procurar o m�dico e hospital de sua escolha gerando ent�o uma competi��o saud�vel entre os profissionais, baseada simplesmente no bom atendimento. A primeira prioridade do Brasil ser� a constru��o de um Sistema �nico de Sa�de confi�vel e de qualidade, com acesso universal, para o qual todos contribuam. Sem essa base s�lida, descentralizada e bem administrada, com puni��o pesada para os corruptos, o Brasil n�o ser� capaz de enfrentar o desafio da Organiza��o Mundial da Sa�de: "Sa�de para todos no ano 2.000". A focaliza��o do debate apenas nos planos de sa�de e seguradoras desvia a aten��o para a quest�o b�sica: como fazer o nosso SUS funcionar bem para todos? Os brasileiros n�o devem nunca perder essa meta de vista sob pena de virem a pagar muito caro na hora desagrad�vel que necessitarem de um atendimento m�dico adequado, eficaz e merecido.
O Dr. M�rcio V. Pinheiro � m�dico, psiquiatra e psicanalista em Baltimore, Maryland, Estados Unidos. M�rcio V. Pinheiro MD 7410 Village Road #14 Sykesville, MD 21784
USA 410-549-0082
[email protected] http://www.priory.com/psych/saude.htm dez 1997