Lendas Negras Da Igreja

  • June 2020
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LENDAS NEGRAS DA IGREJA VITTORIO MESSORI

PREFÁCIO Quando um moço, educado cristãmente pela família e a comunidade paroquial, através das asserções apodícticas de algum professor ou algum texto começa a sentir vergonha pela história de sua Igreja, encontra-se objetivamente no grave perigo de perder a fé. É uma observação lamentável, mas indiscutível; além do mais, mantém sua validez geral inclusive fora do contexto escolástico. Aqui temos um problema pastoral dos mais agudos; e surpreende constatar a pouca atenção que recebe nos ambientes eclesiásticos. Para salvar nossa alegria e orgulho de pertencer ao “pequeno rebanho” destinado ao Reino de Deus, não serve a renúncia a aprofundar nas questões que se expõem. É indispensável, pelo contrário, a aptidão para examinar tudo com tranqüila equanimidade: em oposição ao que usualmente se pensa, a cética cultura contemporânea não carece de contos, mas sim de espírito critico; por isso o Evangelho se encontra tão freqüentemente em posição desfavorável. Tal como disse em repetidas ocasiões, o problema mais radical em conseqüência da descristianização não é, em minha opinião, a perda da fé, mas a perda da razão: voltar a pensar sem preconceitos já é um grande passo a frente para descobrir novamente a Cristo e o projeto do Pai. Por outra parte, também é verdade que a iniciativa de salvação de Deus tem uma função sanadora integral: salva ao homem em sua totalidade; incluída, portanto, sua natural capacidade cognitiva. A alternativa da fé não é, em conseqüência, a razão e a liberdade de pensamento, tal como nos foi repetido obsessivamente nos últimos séculos; a não ser, ao menos nos casos de extrema e desventurada coerência, o suicídio da razão e a resignação ao absurdo. Com respeito à história da Igreja e às dificuldades pastorais que provoca, convém recordar a necessidade de uma tripla análise. O primeiro é de caráter essencialmente teológico tal que pode ser compartido só por quem possui “os olhos da fé”. Se trata fundamentalmente de adquirir e levar a nível da consciência uma

eclesiología digna deste nome. Poder-se-á chegar a compreender nela que a Igreja é, como dizia S. Ambrosio, ex-maculatis immaculata, uma realidade intrinsecamente Santa constituída por homens todos eles, em grau e medida diferente, pecadores. Aqui está precisamente seu prodígio e seu encanto: o Artífice divino, usando a matéria pobre e defeituosa que a humanidade lhe põe ao seu dispor, consegue modelar em cada época uma obra mestra, resplandecente de verdade absoluta e sobre-humana beleza; verdade e beleza que também são nossas, de cada um de nós, segundo a proporção de nossa efetiva participação no corpo de Cristo. Mostra-se assim verdadeiro e agudo teólogo-seja qual seja sua especialização acadêmica e sua cultura reconhecida -nem tanto o que se indigna e escandaliza porque há bispos que, em sua opinião, são asnos, como o que se comove e entusiasma porque admita a irreverência: “há asnos que são bispos”. Sob este aspecto, o crente pode aproximar-se das vicissitudes e acontecimentos da história da Igreja com ânimo muito mais emancipado que o que não é crente: sua eclesiología lhe permite não considerar a priori inaceitável nenhum dado que resulte realmente estabelecido e certo, por desonroso que pareça para o nome cristão; enquanto que o incrédulo se sentirá obrigado a rechaçar ou banalizar todo heroísmo sobre-humano, os valores transcendentes, os milagres que encontra sobrenaturalmente motivados. Mais ou menos o que ocorre no caso do Santo Sudário, por mencionar um tema que apaixona a Messori. Formalmente, como sabemos, nossa fé não resulta afetada, qualquer que seja o modo em que a ciência decida pronunciar-se: inclusive poderíamos nos permitir o luxo de não acreditar no que ela diga. Aceitar a autenticidade desse lençol, em troca, é moralmente impossível para quem não reconhece no Jesus de Nazaré o Cristo, filho do Deus vivente, pelo inexplicável que é o amontoado de eventos extraordinários que caracterizam sua origem e sua conservação. A suspeita de preconceito, já se vê, cai, neste caso, no campo de Agramante mais que no dos Paladinos. O segundo tipo de análise é de índole filosófica, e podem compartilhá-lo todos os que disponham de um mínimo de honestidade intelectual. Quando se fala de culpas históricas da Igreja, não se pode desprezar o fato de que esta é a única realidade que permanece idêntica no curso dos séculos, e portanto acaba sendo também a única chamada para responder dos erros de todos.

A quem lhe ocorre perguntar-se, por exemplo, qual foi, na época do caso Galileu, a posição das universidades e outros organismos de relevância social em relação à hipótese copernicana? Quem lhe pede contas a atual magistratura pelas idéias e as condutas comuns dos juizes do século XVII? Ou, para ser ainda mais paradoxal, a quem lhe ocorre reprovar às autoridades políticas milanesas (prefeito, presidente da região) os delitos cometidos pelos Visconti e os Sforza? É importante observar que acusar à Igreja viva de hoje em dia de sucessos, decisões e ações de épocas passadas, é por si mesmo um implícito mas patente reconhecimento da efetiva estabilidade da Esposa de Cristo, de sua intangível identidade que, ao contrário de todos os demais agrupamentos, nunca fica arrojada pela história; de seu ser “quase-pessoa” e portanto, só ela, sujeito perpétuo de responsabilidade. É um estado de ânimo que-precisamente através das atitudes de vingança e a vivacidade dos rancores -revela quase um initium fidei no mistério eclesiástico: o que, possivelmente, provoca a hilaridade dos anjos no Céu. Mas uma vez assimiladas estas notas, digamos, de “eclesiologia sobrenatural e natural”, as pessoas não podem eximir-se de analisar com maior concreção a questão: faz-se portanto necessário examinar a credibilidade do que usualmente se diz e se escreve sobre a Igreja. Terá que se averiguar a verdade, salvá-la das alterações, proclamá-la e honrá-la, qualquer que seja a forma em que se apresenta e a fonte de informação. Mais de uma vez S. Tomás de Aquino nos ensina que omne verum, a quocumque dicatur, a Spiritu Sancto est (“qualquer verdade, quem quer a diga, vem do Espírito Santo”); e seria suficiente esta citação para observar a invejável amplitude de espírito que caracterizava aos professores medievais. Reciprocamente, também terá que se dizer que as falsidades, as manipulações e os enganos devem ser desmascarados e condenados, qualquer que seja a pessoa que os proponha e quão ampla seja sua difusão. Agora bem, é necessário que nos demos conta de uma vez-diz, entre outras coisas, Vittorio Messori nestas páginas-do amontoado de opiniões arbitrárias, deformações substanciais e autênticas mentiras que gravitam sobretudo ao que historicamente concerne à Igreja. Encontramo-nos literalmente sitiados pela malícia e o engano: os católicos em sua maioria não reparam nisso, ou não querem fazê-lo. Se recebo um golpe na face direita, a perfeição evangélica me propõe

oferecer a esquerda. Mas se se atenta contra a verdade, a mesma perfeição evangélica me obriga a me consagrar para restabelecê-la: porque lá onde se extingue o respeito à verdade, começa a fechar-se para o homem qualquer caminho de salvação. Desta firme convicção, parece-me, nasceu este livro, que esperamos se converta imediatamente em um instrumento indispensável para a moderna ação pastoral. Algumas vezes imagino que o corpo da cristandade atual padece, por assim dizê-lo, algum tipo de deficiência imunológica. A agressão ao Reino de Deus iam praesens in mysterio é fenômeno de todos os tempos, e disso o Senhor nos avisou repetidamente, embora nas últimas décadas não se têm escutado muito suas palavras sobre o tema. Em troca, o que especialmente caracteriza nossa época é o princípio de que não se deve reagir: a retórica do diálogo a todo custo, um malentendido irenismo, uma estranha espécie de masoquismo eclesiástico parecem inibir todas as defesas naturais dos cristãos, de maneira que a virulência dos elementos patogênicos pode realizar sem obstáculos suas devastações. Felizmente, o Espírito Santo nunca deixa sem intrínseco amparo à Esposa de Cristo. Permanece sempre ativo, estimulando as antitoxinas necessárias sob diferentes formas e a diferentes níveis. O presente volume-que recolhe grande parte dos apreciados artigos do “Vivaio” de Vittorio Messori -seção do jornal católico nacional- é precisamente um destes remédios providenciais para nossos males: sua aparição é um sinal de que Deus não abandonou a seu povo. Messori é, graças a Deus, autor original e muito pessoal. E não é obrigatório compartilhar singularmente todas suas geniais opiniões, mas não podemos deixar de comparar, todos-e apreciar todos-seu valente serviço à verdade e seu amor pela Igreja.

Cardeal GIACOMO BIFFI Arcebispo de Bolonha

INTRODUÇÃO O presente livro é uma recopilação de artigos que publiquei em jornais italianos. A origem jornalística dos textos se manifesta no fato de que, em cada um deles, o argumento se encontra claramente enquadrado. Isso propicia que uma de suas formas de leitura possa ser a página aberta. O título que os une, Lendas negras da Igreja, manifesta a triste realidade daquela frase evangélica: “Crêem que vim a trazer a paz ao mundo? Digo-lhes que não, mas a divisão”. Entretanto, é necessário recordar o antigo princípio de que o movimento não se prova com complexas teorias a não ser, simplesmente, movendo-se. Assim também ocorre com o cristianismo: fé em um Deus que se tomou tão a sério o tempo dos homens que participou dele-encarnando-se em um lugar, em um tempo, em um povo, com um rosto e um nome-; a verdade do Evangelho se prova na história concreta. É Jesus mesmo quem lança o desafio: a árvore é julgada por seus frutos. É precisamente a defesa destes frutos o que serve de elo aos diversos capítulos deste livro. A paixão com que me enfrento ao conteúdo destes temas convive sempre com a vigilante auto-ironia de quem sabe bem que acreditar não é um arrogante, inclusive fanático, “segundo eu”. Em nenhuma página, nem sequer nas mais polêmicas, esqueci o conselho de S. Agostinho: Interficite enganos; homines diligite. Acabem com os enganos; amem aos homens. Não todas as idéias nem todas as ações são respeitáveis. Dignos de todo respeito são, entretanto, cada um dos homens. As considerações que desenvolvo nas páginas que seguem unem convicção e disponibilidade à discussão. E também se acham abertas à humildade da obediência, ao sacrifício duro mas convencido do saber calar, o momento em que assim se dita por quem, na Iglesia, ostenta a legítima autoridade sobre o “depósito da fé”. Graças a Deus não me encontro entre aqueles (hoje numerosos) que estão convencidos de que a eles lhes concedeu descobrir no que consista o “verdadeiro” cristianismo, a “verdadeira” Igreja e que pensam que só a partir dos anos sessenta do século XX um grupo de teólogos acadêmicos teriam descoberto o que quer dizer verdadeiramente o Evangelho. Como se, durante tantos séculos, o Espírito Santo tivesse estado entorpecido ou sádicamente, divertiu-se inspirando de modo errôneo e abusivo a tantas gerações de crentes, entre os

quais uma multidão de Santos que somente Deus conhece. Em realidade, não somos mais que anãos sobre as costas de gigantes E somente a consciência de nosso extraordinário passado onde abundou o pecado, sim, mas também a graça, pode nos abrir o caminho do futuro. 1. Sentimentos de culpa Ao cabo de três dias de fatigante viagem em comum, Leo Moulin, de oitenta e um anos, aparece jovial, elegante, atento e tão cordial como sempre. Moulin, professor de História e Sociologia na Universidade de Bruxelas durante meio século, autor de dezenas de livros rigorosos e fascinantes, é um dos intelectuais mais prestigiosos da Europa. É possivelmente quem melhor conhece as ordens religiosas medievais, e poucos sentem tanta admiração pela sabedoria daqueles monges como ele. Apesar de haver-se afastado das lojas maçônicas nas que militou (“Freqüentemente - diz-me - filiar-se a elas é condição indispensável para fazer carreira em universidades, jornais ou editoriais: a ajuda mútua entre os "irmãos maçons" não é um mito, é uma realidade ainda vigente”), segue sendo um leigo, um racionalista cujo agnosticismo borda o ateísmo. Moulin me encomenda que repita aos crentes um de seus princípios, amadurecido ao longo de uma vida de estudo e experiência: “Façam caso a este velho incrédulo que sabe o que diz: a obra mestra da propaganda anticristã é ter conseguido criar nos cristãos, sobretudo nos católicos, uma má consciência, lhes infundindo a inquietação, quando não a vergonha, por sua própria história. À força de insistir, da Reforma até nossos dias, conseguiram lhes convencer de que são os responsáveis por todos ou quase todos os males do mundo. Paralisaram-lhes na autocrítica masoquista para neutralizar a crítica do que ocupou seu lugar. “ Feministas, homossexuais, terceiro mundistas, pacifistas, representantes de todas as minorias, contestatários e descontentes de qualquer estirpe, cientistas, humanistas, filósofos, ecologistas, defensores dos animais, moralistas leigos “permitistes que todos lhes passassem contas, freqüentemente falseadas, quase sem discutir. Não houve problema, engano ou sofrimento histórico que não lhes tenha imputado. E vós, quase sempre ignorantes de seu passado, acabastes por acreditá-lo, até o ponto de respaldá-los. Em troca, eu (agnóstico mas também um historiador que trata de ser objetivo) lhes digo que devem reagir em nome da verdade. De fato, freqüentemente não é certo. Mas se em algum caso o é, também é certo que, depois de um balanço e vinte séculos de cristianismo, as luzes prevalecem ampliamente sobre as trevas. Logo, por que não pedis conta a quem lhes pede isso a vós? Acaso foram melhores os resultados do que veio depois? Desde que púlpitos escutais, contritos, certos sermões?” Fala-

me daquela Idade Média que estudou sempre: “Aquela vergonhosa mentira dos "séculos escuros", por estar inspirados na fé do Evangelho”, por que, então tudo o que fica daqueles tempos é de uma beleza e sabedoria tão fascinantes? Também na história serve a lei de causa e efeito...” Penso no historiador de Bruxelas enquanto atravesso em carro, a periferia de Milão numa manhã qualquer. Aqui, como em toda periferia urbana, um Dante contemporâneo poderia ambientar um dos círculos de seu inferno: ruídos ensurdecedores, aromas mefíticos, montões de escombros e refugos, águas envenenadas, calçadas obstruídas por veículos estacionados, escaravelhos e ratos, cimento enlouquecido, fibras de erva tóxica. Em qualquer parte adverte a ira e o ódio de uns contra outros: automobilistas contra caminhoneiros, pedestres contra motorizados, compradores contra vendedores, setentrionais contra meridionais, italianos contra estrangeiros, operários contra patrões, filhos contra pais. A degradação se instala nos corações muito antes que no ambiente. Ao fim, a meta: o grande mosteiro, a antiga casa religiosa. Aliviado por me liberar do carro atravesso o portão. De repente, o mundo troca a meu redor. Um grande pátio de uma antiguedade secular, fechado em todos seus lados por um soportal, sossega o ânimo com a harmonia de seus arcos. O silêncio, a beleza dos afrescos, o ritmo das edificações, a frescura das sombras. Mais à frente do pátio se vê um amplo jardim, último reduto em cujas árvores se refugiou tudo o que sobrevive ou voa na terra desolada das imediações. A hospitalidade dos religiosos te faz sentir que essa gente, em que pese a tudo, tenta fazer o bem e acredita que ainda é possível amar. Com uma mescla de ironia e angústia, penso na vingança da história dos últimos dois séculos, povoados por gente diversa mas unida por um furioso intento de suprimir os sinais cristãos, começando pelas congregações religiosas; pela necessidade de destruir com estas esses lugares de paz e beleza, vistos como imundos rincões de obscurantismo, anacrônicos obstáculos no caminho sobre a que edificar o sonhado “novo mundo”. Agora, mais à frente do muro que resguarda o jardim, temos o fruto do radiante amanhã prometido. Jamais o mundo, em nome da humanidade, voltou-se mais desumano. truncaram-se as expectativas: a realidade e a esperança de um mundo mais habitável perduram - mas por quanto tempo?-nestes resíduos religiosos que sobreviveram (por milagre, por azar, por obstinação dos cristãos, que ressurgem cada vez que são eliminados) à fúria dos “iluminados”. Seus filhos e netos se refugiam também aqui para lamentar-se de tudo que se perdeu. E para alegrar-se de que se salvou algo da raiva dos destruidores. Se pelo fruto se reconhece à árvore, possivelmente terei que extrair

alguma conclusão disso, embora seja para prosseguir com a admoestação de Moulin, o velho historiador agnóstico, aos crentes: “causa e efeito...”. Também nós temos nossos esqueletos no armário; e olho querendo dissimulá-lo. A realidade cristã sempre mescla o divino com o humano; a Igreja é casta et meretrix, conforme sentenciam os Padres. E assim são e foram sempre seus filhos. Mas olhemos também a nosso redor, já não tão envergonhados e intimidados. A caridade não é possível sem a verdade; para nós e para outros. I. ESPANHA, A INQUISIÇÃO E A LENDA NEGRA 2. Lenda negra I Dança com lobos, o filme norte-americano que fica do lado dos índios, ganhou sete Oscars. A meados dos anos sessenta o western se dispôs a experimentar uma mudança; as primeiras dúvidas a respeito da bondade da causa dos pioneiros anglo-saxões provocaram uma crise do esquema “branco-bompele-vermelha-mau”. Desde então, essa crise foi em aumento até a inversão do esquema: agora, as novas categorias insistem em ver sempre no índio ao herói puro e no pioneiro ao brutal invasor. Como é lógico, existe o perigo de que a nova situação se converta em uma espécie de novo conformismo do homem ocidental pós-cristão, politically correct, como se denomina a quem respeita os cânones e tabus da mentalidade corrente. Enquanto que antes se produzia a excomunhão social de todo aquele que não visse um mártir da civilização e um campeão do patriotismo “branco” no coronel George A. Custer, agora mereceria a mesma excomunhão todo aquele que falasse mal de Touro Sentado e dos dacotas, que aquela manhã de 25 de junho de 1876, no Little Big Horn, acabaram com a vida do Custer e com todo o Sétimo de Cavalaria. Apesar do risco de que apareçam novos slogans conformistas, é impossível não acolher com satisfação o fato de que se descubram os papéis “de outra” América, a protestante, que deu (e dá) tantas desdenhosas lições de moral à América católica. Do século XVI as potências nórdicas reformadas -Grã-Bretanha e Holanda in primis- iniciaram em seus domínios de ultramar uma guerra psicológica ao inventar a “lenda negra” da barbárie e a opressão praticadas pela Espanha, com a que estavam na luta pelo predomínio marítimo. Lenda negra que, como ocorre pontualmente com tudo o que não está

de moda no mundo leigo é descoberta agora com avidez por padres, frades e católicos adultos em geral, quem, ao protestar com tons virulentos contra as celebrações pelo Quinto Centenário do Descobrimento ignoram que, com alguns séculos de atraso, erigem-se em seguidores de uma afortunada campanha dos serviços de propaganda britânicos e holandeses. Pierre Chaunu, historiador de hoje, fora de toda suspeita por ser calvinista, escreveu: “A lenda anti-hispânica em sua versão norteamericana (a européia faz insistência sobretudo na Inquisição) desempenhou o saudável papel de válvula de escape. A suposta matança dos índios por parte dos espanhóis no século XVI encobriu a matança norte-americana da fronteira Oeste, que teve lugar no século XIX. A América protestante conseguiu livrar-se deste modo de seu crime lançandoo de novo sobre a América católica.” Entendamo-nos, antes de nos ocupar de semelhantes temas seria preciso que nos liberássemos de certos moralismos atuais que são irreais e que se negam a reconhecer que a história é uma senhora inquietante, freqüentemente terrível. De uma perspectiva realista que deveria voltar a impor-se, terei que condenar sem dúvida os enganos e as atrocidades (venham de onde vierem) mas sem amaldiçoar como se se tratou de uma coisa monstruosa o fato em si da chegada dos europeus às Américas e de seu assentamento naquelas terras para organizar um novo hábitat. Em história resulta impraticável a edificante exortação de “que cada um fique em sua terra sem invadir a alheia”. Não é viável não só porque desse modo se negaria todo dinamismo às vicissitudes humanas, mas sim porque toda civilização é fruto de uma mescla que nunca foi pacífica. Sem ânimo de incoar à História Sagrada mesma (a terra que Deus prometeu aos judeus não pertencia, mas sim a arrancaram à força a seus anteriores habitantes), as almas bondosas que renegam dos malvados usurpadores das Américas esquecem, entre outras coisas, que a sua chegada, aqueles europeus se encontraram a sua vez com outros usurpadores. O império dos astecas e o dos incas se criou com violência e se mantinha graças à sanguinária opressão dos povos invasores que tinham submetido aos nativos à escravidão. Freqüentemente se finge ignorar que as incríveis vitórias de um punhado de espanhóis contra milhares de guerreiros não estiveram determinadas nem pelos arcabuzes nem pelos muitos escassos canhões (que com freqüência resultavam inúteis naqueles climas porque a umidade neutralizava a pólvora) nem pelos cavalos (que na selva não podiam ser lançados à carga). Aqueles triunfos se deveram sobretudo ao apoio dos indígenas oprimidos pelos incas e os astecas. Portanto, mais que como usurpadores,

os ibéricos foram saudados em muitos lugares como libertadores. E esperemos agora a que os historiadores iluminados nos expliquem como é possível que em mais de três séculos de domínio hispânico não se produzissem revoltas contra os novos dominadores, apesar de seu número reduzido e apesar de que por este fato estavam expostos ao perigo de ser eliminados da face do novo continente ao mínimo movimento. A imagem da invasão da América do Sul desaparece imediatamente em contato com as cifras: nos cinqüenta anos que vão de 1509 a 1559, quer dizer, no período da conquista desde a Flórida ao estreito de Magalhães, os espanhóis que chegaram às Índias Ocidentais foram pouco mais de quinhentos (sim, quinhentos!) por ano. Em total, 27 787 pessoas nesse meio século. Voltando para a mescla de povos com os que é preciso fazer as contas de um modo realista, não devemos esquecer, por exemplo, que os colonizadores da América do Norte provinham de uma ilha que nos resulta natural definir como anglo-saxã. Em realidade, era dos bretões, submetidos primeiro pelos romanos e logo pelos bárbaros germanos - precisamente os anglos e os saxões-que exterminaram a boa parte dos indígenas e à outra a fizeram fugir para as costas da Gália onde, depois de expulsar por sua vez aos habitantes originários, criaram a que se denominou Bretanha. Pelo resto nenhuma das grandes civilizações (nem a egípcia, nem a romana, nem a grega, sem esquecer nunca a judia) criou-se sem as correspondentes invasões e as conseguintes expulsões dos primeiros habitantes. Portanto, ao julgar a conquista européia das Américas será preciso que nos cuidemos da utopia moralista a que gostaria de uma história cheia de reverências, de boas maneiras, e de “faltava mais, você primeiro”. Esclarecido este ponto, é preciso que digamos também que há conquistas e conquistas (e em filmes como o muito premiado Dança com lobos, se começa a entender) e que a católica foi ampliamente preferível a protestante. Como escreveu Jean Dumont, outro historiador contemporâneo: “Se, por desgraça, Espanha (e Portugal) passara à Reforma, tornara-se puritana e tivesse aplicado os mesmos princípios que a América do Norte ("diz a Bíblia, o índio é um ser inferior, um filho do Satanás), um imenso genocídio teria eliminado da América do Sul a todos os povos indígenas. Hoje em dia, ao visitar as poucas "reservas" do México à Terra do Fogo, os turistas fariam fotos dos sobreviventes, testemunhas da matança racial, levada a cabo também sobre a base de motivações "bíblicas" . Efetivamente, as cifras contam: enquanto que os pele- vermelhas que sobrevivem na América do Norte são uns quantos milhares, na América exespanhola e ex-portuguesa, a maioria da população ou é de origem índia ou

é fruto da mescla de précolombianos com europeus e (sobretudo no Brasil) com africanos. 3. Lenda negra II A questão das distintas colonizações das Américas (a ibérica e a anglo-saxônica) é tão ampla, e são tantos os preconceitos acumulados, que só podemos oferecer algumas observações. Voltemos para a população indígena, tal como assinalamos virtualmente desaparecida nos Estados Unidos de hoje, onde estão registradas como “membros de tribos índias” aproximadamente um milhão e meio de pessoas. Em realidade, esta cifra, de por si exígua, reduziria-se ainda mais se considerarmos que para aspirar ao chamado registro basta ter uma quarta parte de sangue índio. No sul a situação é exatamente a contrária; na zona mexicana, na andina e em muitos territórios brasileiros, quase noventa por cento da população ou descende diretamente dos antigos habitantes ou é fruto da mescla entre os indígenas e os novos habitantes. E mais ainda, enquanto que a cultura dos Estados Unidos não deve à indigena mais que alguma palavra, já que se desenvolveu a partir de suas origens européias sem que se produzisse virtualmente nenhum intercâmbio com a população nativa, não ocorre o mesmo na América hispano-portuguesa, onde a mescla não só foi demográfica mas também deu origem a uma cultura e uma sociedade novas, de características inconfundíveis. Sem dúvida, isto se deve ao distinto grau de desenvolvimento dos povos que tanto os anglo-saxões como os ibéricos encontraram naqueles continentes, mas também se deve a uma idéia religiosa distinta. A diferença dos católicos espanhóis e portugueses, que não duvidavam em casar-se com as índias nas que viam seres humanos iguais a eles, aos protestantes (seguindo a lógica da que já falamos e que tende a fazer retroceder para o Antigo Testamento ao cristianismo reformado) animava-os uma espécie de “racismo” ou ao menos, o sentido de superioridade, de “estirpe escolhida”, que tinha marcado a Israel. Isto, somado à teologia da predestinação (o índio é subdesenvolvido porque está destinado à condenação, o branco é desenvolvido como signo de eleição divina) fazia que a mescla étnica e inclusive a cultural fossem consideradas como uma violação do plano providencial divino. Assim ocorreu não só na América e com os ingleses mas em todas as demais zonas do mundo às que chegaram os europeus de tradição protestante. O apartheid sul-africano, por citar o exemplo mais clamoroso, é uma criação típica e teologicamente coerente do calvinismo holandês.

Surpreende, portanto, essa espécie de masoquismo que recentemente impulsionou à Conferência de bispos católicos sul-africanos a somar-se, sem maiores distinções nem precisões, à Declaração de arrependimento” dos cristãos brancos para os negros daquele país. Surpreende porque embora por parte dos católicos pôde haver algum comportamento imperdoável, digno comportamento, ao contrário do ocorrido no caso protestante, ia contra a teoria e a prática católicas. Mas dá igual, hoje por hoje, parece ser que existem não poucos clericais dispostos a carregar a Igreja com culpa que não tem. As formas de conquista das Américas se originam precisamente nas distintas teologias: os espanhóis não consideraram os habitantes de seus territórios como uma espécie de lixo que se tem que eliminar para poder instalar-se neles como donos e senhores. Reflete-se pouco sobre o fato de que a Espanha (com diferença da Grã-Bretanha) não organizou nunca seu império americano em colônias, mas em províncias. E que o rei da Espanha não se ateve nunca a coroa de imperador das Índias, a diferença de quanto fará, inclusive a princípios do século XX, a monarquia inglesa. Do começo, e mais tarde, com implacável perseverança, durante toda a história posterior, os colonos protestantes se consideraram com o direito, baseado na mesma Bíblia, de possuir sem problemas nem limitações toda a terra que conseguissem ocupar jogando ou exterminando a seus habitantes. Estes últimos, como não formavam parte do “novo Israel” e como levavam a marca de uma predestinação negativa, ficaram submetidos ao domínio total dos novos amos. O regime de solos instaurado nas distintas zonas americanas confirma esta diferença das perspectivas e explica os distintos resultados: no sul se recorreu ao sistema da encomenda, figura jurídica de inspiração feudal, pela qual o soberano concedia a um particular um território com sua população incluída, cujos direitos eram tutelados pela Coroa, que seguia sendo a verdadeira proprietária. Não ocorreu o mesmo no norte, onde primeiro os ingleses e depois o governo federal dos Estados Unidos se declararam proprietários absolutos dos territórios ocupados e por ocupar; toda a terra era cedida a quem o desejasse ao preço que se fixou posteriormente em uma média de um dólar por acre. Quanto aos índios que podiam habitar essas terras, correspondia aos colonos afastá-los ou melhor ainda, exterminá-los, com a ajuda do exército se fosse preciso. O termo “extermínio” não é exagerado e respeita a realidade concreta. Por exemplo, muitos ignoram que a prática de arrancar o couro cabeludo era conhecida tanto pelos índios do norte como pelos do sul. Mas entre estes últimos desapareceu logo, proibida pelos espanhóis. Não ocorreu o mesmo no norte. Por citar um exemplo, a entrada correspondente em uma enciclopédia nada suspeita como a Larousse diz: “A prática de arrancar o

couro cabeludo se difundiu no território do que hoje é os Estados Unidos a partir do século XVII, quando os colonos brancos começaram a oferecer fortes recompensas a quem apresentasse o couro cabeludo de um índio fora homem, mulher ou menino “ Em 1703 o governo de Massachusetts pagava doze libras esterlinas por couro cabeludo, quantidade tão atraente que a caça de índios, organizada com cavalos e matilhas de cães, não demorou para converter-se em uma espécie de esporte nacional muito rentável. O dito “o melhor índio é o índio morto”, posto em prática nos Estados Unidos, nasce não só do fato de que todo índio eliminado constituía uma moléstia menos para os novos proprietários, mas também do fato de que as autoridades pagavam bem por seu couro cabeludo. Tratava-se pois de uma prática que na América católica não só era desconhecida mas também, de ter tratado alguém de introduzi-la de forma abusiva, teria provocado não só a indignação dos religiosos, sempre presentes ao lado dos colonizadores, mas também também as severas penas estabelecidas pelos reis para tutelar o direito à vida dos índios. Entretanto, diz-se que milhões de índios morreram também na América Central e do Sul. Morreram, que dúvida cabe, mas não para estar ao borde do desaparecimento como no norte. Seu extermínio não se deveu exclusivamente às espadas de aço de Toledo e às armas de fogo (que, como já vimos, quase sempre falhavam), a não ser aos invisíveis e letais vírus procedentes do Velho Mundo. O choque microbiano e viral que em poucos anos causou a morte da metade da população nativa da Ibero-América foi estudado pelo grupo de Berkeley, formado por peritos dessa universidade. O fenômeno é comparável à peste negra que, procedente da Índia e China, assolou a Europa no século XIV. As enfermidades que os europeus levaram a América como a tuberculose, a pneumonia, a gripe, o sarampo ou a varíola eram desconhecidas no nicho ecológico isolado dos índios, portanto, estes careciam de defesas imunológicas para lhes fazer frente. Mas resulta evidente que não se pode responsabilizar disso aos europeus, vítimas das enfermidades tropicais às que os índios resistiam melhor. É de justiça recordar aqui, coisa que se faz com pouca freqüência, que a expansão do homem branco fora da Europa assumiu freqüentemente o aspecto trágico de uma hecatombe, com uma mortalidade que, no caso de certos navios, certos climas e certos nativos, alcançou cifras impressionantes. Ao desconhecer os mecanismos do contágio (faltava muito ainda para o Pasteur) houve homens como Bartolomeu de las Casas -figura controvertida que se terá que analisar prescindindo de esquemas simplificadores- que foram vítimas do equívoco: ao ver que aqueles povos diminuíam drasticamente, suspeitaram das armas de seus compatriotas,

quando em realidade não eram as armas as assassinas, a não ser os vírus. Trata-se de um fenômeno de contágio mortífero observado mais recentemente entre as tribos que permaneceram isoladas na Guiana Francesa e na região do Amazonas, no Brasil. O costume espanhol de dizer : Jesus!, a maneira de augúrio a quem espirra, nasce do fato de que um simples resfriado (do qual o espirro é sintoma) estava acostumado a ser mortal para os indígenas que o desconheciam e para os que careciam de defesas biológicas. 4. Lenda negra III “As pressões dos judeus através dos meios de comunicação e os protestos dos católicos empenhados no diálogo com o judaísmo tiveram êxito. A causa da beatificação de Isabel a Católica, rainha de Castela, recebeu nestes dias um imprevisto breque [...]. A preocupação por não provocar as reações dos israelenses, irritados pela beatificação da judia conversa Edith Stein e pela presença de um mosteiro em Auschwitz, favoreceu que se fizesse uma "pausa para refletir" sobre a conveniência de continuar com a causa da Serva de Deus, título ao que já tem direito Isabel I de Castela. “ Assim diz um artigo publicado no IL Nostro Tempo, Orazio Petrosillo, informador religioso do IL Messagero. Petrosillo recorda que o freio do Vaticano chegou a pesar do juízo positivo dos historiadores, apoiado em um trabalho de vinte anos contido em vinte e sete volúmes. “Nestas quantidades enormes de material-diz o postulador da causa, Anastasio Gutiérrez-não se encontrou um só ato ou manifestação da rainha, já fora público ou privado que possa considerar-se contrário à santidade cristã.” O padre Gutiérrez não duvida em tachar de “covardes aos eclesiásticos que, atemorizados pelas polêmicas, renunciam a reconhecer a santidade da rainha”. Entretanto, Petrosillo conclui dizendo, “tem-se a impressão de que a causa dificilmente chegue a termo”. Trata-se de uma notícia pouco reconfortante. Entretanto, não é a primeira vez que ocorre; restringindo-nos à Espanha, recordemos que Paulo VI bloqueou a beatificação dos mártires da guerra civil, por isso podemos comprovar que, uma vez mais, considerou-se que as razões da convivência pacífica contrastavam com as da verdade, que neste caso é atacada com uma virulência vizinha na difamação, não só por parte dos judeus (aos que na época da Isabel foi revogado o direito a residir no país), mas também por parte dos muçulmanos (expulsos de Granada, sua última posse em terras espanholas), e por todos os protestantes e os anticatólicos em geral, que sempre vão às nuvens quando se fala daquela velha Espanha cujos soberanos tinham direito ao título oficial de Reis Católicos. Título

que tomaram tão a sério que uma polêmica secular identificou hispanismo e catolicismo, Toledo e Madri com Roma. Quanto à expulsão dos judeus, sempre se esquecem certos feitos, como por exemplo, que muito antes de Isabel, os soberanos da Inglaterra, França e Portugal tinham tomado a mesma medida, e muitos outros países foram tomá-la sem as justificações políticas que explicam o decreto espanhol que, não obstante, constituiu um drama para ambas as partes. É preciso recordar que a Espanha muçulmana não era absolutamente o paraíso de tolerância que quiseram nos descrever e que, naquelas terras, tanto cristãos como judeus eram vítimas de periódicas matanças. Entretanto, está mais que provado que se terei que escolher entre dois males -Cristo ou Maomé-os judeus tomaram partido por este último, servindo de quinta coluna em prejuízo do elemento católico. Desde aí surgiu o ódio popular que, unido à suspeita que despertavam quem formalmente tinha abraçado o cristianismo para continuar praticando em segredo o judaísmo (los marranos), conduziu a tensões que com freqüência degeneraram em sanguinárias matanças espontâneas e contínuas às quais as autoridades tentavam em vão opor-se. O Reino da Castela e Aragão surgido do casamento dos reis ainda não se afiançava e não estava em condições de suportar nem de controlar uma situação tão explosiva, ameaçado como estava por uma contra-ofensiva de árabes que contavam com os muçulmanos, a sua vez convertidos por compromisso. Do ponto de vista jurídico, na Espanha, e em todos os reinos daquela época, os judeus eram considerados estrangeiros e davam-lhes proteção temporalmente sem direito a cidadania. Os judeus eram perfeitamente conscientes de sua situação: sua permanência era possível enquanto não pusessem em perigo ao Estado. Coisa que, segundo o parecer não só dos soberanos mas também do povo e de seus representantes, produziu-se com o tempo como resultado das violações da legalidade por parte dos judeus não-conversos como dos formalmente convertidos, pelos quais Isabel sentia uma “ternura especial” tal que pôs em suas mãos quase toda a administração financeira, militar e inclusive eclesiástica. Entretanto, parece que os casos de “traição” chegaram a ser tantos como para não poder seguir permitindo semelhante situação. Em qualquer caso, como mantém a postulação da causa de santidade de Isabel, “o decreto de revogação da permissão de residência aos judeus foi estritamente político, de ordem pública e de segurança do Estado, não se consultou absolutamente ao Papa, nem interessa à Igreja o julgamento que queira emitir neste sentido. Um eventual engano político pode ser perfeitamente compatível com a santidade. Portanto, se a comunidade judaica de hoje queria apresentar alguma queixa, deverá dirigi-la às autoridades políticas, caso as atuais sejam responsáveis pelo executado por

seus antecessores de faz cinco séculos”. Acrescenta a postulação (não terá que esquecer que trabalhou com métodos científicos, com a ajuda de mais de uma dezena de investigadores que dedicaram vinte anos a examinar mais de cem mil documentos nos arquivos de meio mundo): “A alternativa, o aut-aut "ou converter-se ou abandonar o Reino", que teria sido imposta pelos Reis Católicos é uma fórmula simplista, um slogan vulgar: já não se acreditava nas conversões. A alternativa proposta durante os muitos anos de violações políticas da estabilidade do Reino foi: "Ou cessam em seus crimes ou deverão abandonar o Reino." Como confirmação ulterior temos a atividade anterior de Isabel em defesa da liberdade de culto dos judeus contra as autoridades locais, com a promulgação de um seguro real assim como com a ajuda para a construção de muitas sinagogas. Não obstante, resulta significativo que a expulsão fora particularmente aconselhada pelo confessor real, o muito difamado Tomás de Torquemada, primeiro organizador da Inquisição, que era de origem judia. Também resulta significativo e demonstrativo da complexidade da história o fato de que, afastadas dos Reis Católicos, embora fora pelo clamor popular e por motivos políticos de legítima defesa, as famílias judias mais ricas e influentes solicitaram e obtiveram hospitalidade da única autoridade que a concedeu com gosto e a acolheu em seus territórios: o Papa. Disto só pode surpreender-se todo aquele que ignore que a Roma pontifícia é a única cidade do Velho continente em que a comunidade judia viveu desigualdades segundo os papas que lhes tocaram em sorte, mas que nunca foi expulsa nem sequer por breve tempo. Terá que esperar ao ano 1944 e a que se produza a ocupação alemã para ver, mais de mil e seiscentos anos depois de Constantino, aos judeus de Roma perseguidos e obrigados à clandestinidade; quem conseguiu escapar o fizeram em sua maioria graças à hospitalidade concedida por instituições católicas, com o Vaticano à cabeça. O caminho aos altares está proibido a Isabel também por quem terminou por aceitar sem críticas a lenda negra da que falamos e da que seguiremos nos ocupando, e que abundam inclusive entre as filas católicas. Não lhe perdoa à soberana e a seu consorte, Fernando do Aragão, o ter iniciado o patronato, negociado com o Papa, com o que se comprometiam à evangelização das terras descobertas pelo Cristóvão Colombo, cuja expedição tinham financiado. Em uma palavra, seriam os dois Reis Católicos os iniciadores do genocídio dos índios, levado a cabo com a cruz em uma mão e a espada na outra. E os que se salvaram da matança teriam sido submetidos à escravidão. Entretanto, sobre este aspecto, a história verdadeira oferece outra versão que difere da lenda.

Vejamos, por exemplo, o que diz Jean Dumont: “A escravidão dos índios existiu, mas por iniciativa pessoal de Colombo, quando teve os poderes efetivos de vice-rei das terras descobertas; portanto, isto foi assim só nos primeiros assentamentos que tiveram lugar nas Antilhas antes de 1500. Isabel a Católica reagiu contra esta escravidão dos indígenas (em 1496 Colombo tinha enviado muitos a Espanha) mandando liberar, desde 1478, aos escravos dos colonos nas Canárias. Mandou que se devolvesse às Antilhas aos índios e ordenou a seu enviado especial, Francisco de Bobadilla, que os libertasse, e este a sua vez, destituiu a Colombo e o devolveu a Espanha em qualidade de prisioneiro por seus abusos. A partir de então a política adotada foi bem clara: os índios são homens livres, submetidos como outros à Coroa e devem ser respeitados como tais, em seus bens e em suas pessoas.” Quem considere este quadro como muito idílico, conviria-lhes ler o codicilo que Isabel acrescentou a seu testamento três dias antes de morrer, em novembro de 1504, e que diz assim: “Concedidas que nos foram pela Santa Sede Apostólica as ilhas e a terra firme do mar Oceano, descobertas e por descobrir, nossa principal intenção foi tratar de induzir a seus povos que abraçassem nossa Santa fé católica e enviar a aquelas terras religiosos e outras pessoas doutas e temerosas de Deus para instruir aos habitantes na fé e dotá-los de bons costumes pondo nisso o zelo devido; por isso suplico ao Rei, meu senhor, muito afetuosamente, e recomendo e ordeno a minha filha a princesa e a seu marido, o príncipe, que assim o façam e cumpram e que este seja seu fim principal e que nele empreguem muita diligência e que não consintam que os nativos e os habitantes de ditas terras conquistadas e por conquistar sofram dano algum em suas pessoas ou bens, mas sim façam o necessário para que sejam tratados com justiça e humanidade e que se sofrerem algum dano, repararem-no. “ Trata-se de um documento extraordinário que não tem igual na história colonial de nenhum país. Entretanto, não existe nenhuma história tão difamada como a que se inicia com a Isabel a Católica. 5. Lenda negra 4 A Bartolomeu de Las Casas se atribui a responsabilidade da colonização espanhola das Américas. Um nome que se tira sempre a reluzir quando se fala das mais afortunadas de suas obras, com um título que em si constitui um programa: Muito breve relação da destruição das Índias. Uma destruição; se assim definir um espanhol, a conquista do Novo Mundo, como encontrar argumentos em defesa dessa empresa? Acaso o processo não se fechou com um inapelável veredicto contra a colonização ibérica? Pois não, não se fechou absolutamente. E mais, a verdade e a justiça

impõem que não se aceitem sem críticas as invectivas de Las Casas; para usar a expressão que utilizam os historiadores mais atualizados, chegou o momento de submetê-lo a uma espécie de processo, a ele, tão furioso nos que iniciava contra outros. Em primeiro lugar, quem era Las Casas? Nasceu em Sevilha em 1474, filho do rico Francisco Casaus, cujo sobrenome delata orígem judia. Alguns estudiosos, ao realizar uma análise psicológica da personalidade complexa, obsessiva, “vociferante”, sempre disposta a assinalar com o dedo aos “maus”, do Bartolomeu Casaus, convertido logo no padre Las Casas, chegaram inclusive a falar de um “estado paranóico de alucinação”, de uma “exaltação mística, com a conseguinte perda do sentido da realidade”. Julgamentos severos que, entretanto, foram defendidos por grandes historiadores como Ramón Menéndez Pidal. Trata-se de um estudioso espanhol, por isso se poderia suspeitar de parcialidade. Mas William S. Maltby não é espanhol, mas norte-americano de origens anglo-saxônicas, professor de História da América do Sul em uma universidade dos Estados Unidos, e em 1971 publicou um estudo sobre a “lenda negra”, as origens do mito da crueldade dos “papistas” espanhóis. Maltby escreveu, entre outras coisas, que (nenhum historiador que se preze pode hoje tomar a sério as denúncias injustas e desatinadas de Las Casas” e conclui: “Em resumidas contas, devemos dizer que o amor deste religioso pela caridade foi ao menos maior que seu respeito pela verdade.” Ante este frade que com suas acusações iniciou a difamação da gigantesca epopéia espanhola no Novo Mundo, houve quem pensou que talvez suas origens judaicas entrassem em jogo inconscientemente. Como se se tratasse de um ressurgir da hostilidade ancestral contra o catolicismo, sobretudo o espanhol, culpado de ter afastado aos judeus da península Ibérica. Com muita freqüência se escreve a história dando por descontado que seus protagonistas se comportam pura e exclusivamente de forma racional e não quer admitir ((precisamente no século da psicanálise!) a influência escura do irracional, das pulsações ocultas inclusive para os mesmos protagonistas. Portanto, é muito possível que nem sequer Las Casas tenha podido substrair-se a um inconsciente que, através da obsessiva difamação de seus compatriotas, incluídos seus irmãos religiosos, respondia a uma espécie de vingança oculta. Seja como for, o pai de Bartolomeu, Francisco Casaus, acompanhou a Colombo em sua segunda viagem ao outro lado do Atlântico, ficou nas Antilhas e, confirmando os dotes de habilidade e iniciativa semíticas, criou uma grande plantação onde se dedicou a escravizar aos índios, prática que, como vimos, tinha caracterizado o primeiro período da Conquista e, ao

menos oficialmente, só esse período. depois de cursar estudos na Universidade da Salamanca, o jovem Bartolomeu partiu com destino às Índias, onde se fez cargo da pingue herança paterna, e até os trinta e cinco anos ou mais, empregou os mesmos métodos brutais que denunciaria mais tarde com tanto afinco. Graças a uma conversão superaria esta fase para converter-se em intransigente partidário dos índios e de seus direitos. Depois de sua insistência, as autoridades da mãe pátria atenderam seus conselhos e aprovaram severas leis de tutela dos indígenas, o que mais tarde ia ter um perverso efeito: os proprietários espanhóis, necessitados de abundante mão de obra, deixaram de considerar conveniente o uso das populações nativas que algum autor define hoje como “demasiado protegidas”, e começaram a prestar atenção aos holandeses, ingleses, portugueses e franceses que ofereciam escravos importados da África e capturados pelos árabes muçulmanos. O tráfico de negros (colossal negócio virtualmente em mãos de muçulmanos e protestantes) só afetou de forma marginal às zonas sob domínio espanhol, em especial e quase em exclusiva, às ilhas do Caribe. Basta com que viajemos por essas regiões cuja população, na zona central e andina, é em sua maioria a Índia e, na zona meridional entre o Chile e Argentina, exclusivamente européia, para que possamos comprovar que é estranho encontrar a negros, a diferença do sul dos Estados Unidos, Brasil e as Antilhas francesa e inglesa. Entretanto, embora em número reduzido em comparação com as zonas sob domínio de outros povos, os espanhóis começaram a importar africanos, entre outros motivos porque não se estendeu a eles o amparo outorgado aos índios, implantado em tempos da Isabel a Católica e aperfeiçoada posteriormente. Aqueles negros podiam ser explorados (pelo menos nas primeiras épocas, pois inclusive lhes ia chegar uma lei espanhola de tutela, coisa que nunca ia ocorrer nos territórios ingleses), mas fazer o mesmo com os índios era ilegal (e as audiências, os tribunais dos vice-reis espanhóis, não estavam acostumados a ir com brincadeiras). Trata-se pois, de um efeito imprevisto e digamos que perverso da encarniçada luta empreendida por Las Casas que, embora se bateu nobremente pelos índios, não fez o mesmo pelos negros, aos que não dedicou uma atenção especial, quando começaram a afluir, depois de ser capturados nas costas africanas pelos muçulmanos e conduzidos pelos mercados da Europa do norte. Mas voltemos para sua conversão, determinada pelos sermões de denúncia das arbitrariedades dos colonos (entre os que ele mesmo se encontrava) pronunciados pelos religiosos-o qual confirma a vigilância

evangélica exercida pelo clero regular-. Bartolomeu de Las Casas se ordenou primeiro padre e logo dominicano e dedicou o resto de sua larga vida a defender a causa dos indígenas ante as autoridades da Espanha. É preciso que reflitamos, em primeiro lugar, sobre o fato de que o ardente religioso tenha podido atacar impunemente e com expressões terríveis não só o comportamento dos particulares mas também o das autoridades. Por utilizar a idéia do norte-americano Maltby, a monarquia inglesa não teria tolerado sequer críticas menos brandas, mas sim teria obrigado ao imprudente contestatário a guardar silêncio. O historiador diz também que isso se deveu “além das questões de fé, ao fato de que a liberdade de expressão era uma prerrogativa dos espanhóis durante o Século de Ouro, tal como se pode corroborar estudando os arquivos, que registram toda uma gama de acusações lançadas em público - e não reprimidas - contra as autoridades”. Por outra parte, reflete-se muito pouco sobre o fato de que este furioso contestatário não só não foi neutralizado, mas também se fez amigo íntimo do imperador Carlos V, e que este lhe outorgou o título oficial de protetor general de todos os índios, e foi convidado a apresentar projetos que, uma vez discutidos e aprovados apesar das fortes pressões em contra, converteram-se em lei nas Américas espanholas. Nunca antes na história um profeta, tal como Las Casas se considerava a si mesmo, tinha sido tomado tão a sério por um sistema político ao que nos apresentam entre os mais obscuros e terríveis. 6. Lenda negra 5 Portanto, as denúncias do Bartolomeu de Las Casas foram tomadas radicalmente a sério pela Coroa espanhola, o qual a impulsionou a promulgar severas leis em defesa dos índios e, mais tarde, a abolir a encomenda, quer dizer, a concessão temporária de terras aos particulares, com o que causou graves danos aos colonos. Jean Dumont diz a respeito: “O fenômeno de Las Casas é exemplar posto que supõe a confirmação do caráter fundamental e sistemático da política espanhola de amparo dos índios. Desde 1516, quando Jiménez de Cisneros foi renomado regente, o governo ibérico não se mostra absolutamente ofendido pelas denúncias, às vezes injustas e quase sempre desatinadas, do dominicano. O padre Bartolomeu não só não foi objeto de censura alguma, mas também os monarcas e seus ministros o recebiam com extraordinária paciência, escutavam-no, mandavam que se formassem juntas para estudar suas críticas e suas propostas, e também para lançar, por indicação e recomendação dele, a importante formulação das "Leis Novas". E mais: a Coroa obriga ao silêncio aos adversários de Las Casas e de suas

idéias.” Para lhe outorgar maior autoridade a seu protegido que difama a seus súditos e funcionários, o imperador Carlos V manda que o ordenem bispo. Por efeito das denúncias do dominicano e de outros religiosos, na Universidade da Salamanca se cria uma escola de juristas que elaborará o direito internacional moderno, sobre a base fundamental da “igualdade natural de todos os povos” e da ajuda recíproca entre o povo. Tratava-se de uma ajuda que os índios necessitavam de especial maneira; tal como recordamos (e freqüentemente se esquece) os povos da América Central tinham cansado sob o terrível domínio dos invasores astecas, um dos povos mais ferozes da história, com uma religião escura apoiada nos sacrifícios humanos massivos. Durante as cerimônias que ainda se celebravam quando chegaram os conquistadores para derrotá-los, nas grandes pirâmides que serviam de altar se chegaram a sacrificar aos deuses astecas até 80 000 jovens de uma só vez. As guerras se produziam pela necessidade de conseguir novas vítimas. Acusa-se aos espanhóis de ter provocado uma ruína demográfica que, como vimos, deveu-se em grande parte para choque viral. Em realidade, de não haver-se produzido sua chegada, a população teria ficado reduzida ao mínimo como conseqüência da hecatombe provocada pelos dominadores entre os jovens dos povos subjugados. A intransigência e às vezes o furor dos primeiros católicos desembarcados encontram uma fácil explicação ante esta escura idolatria em cujos templos se derramava sangue humano. Nos últimos anos, a atriz norte-americana Jane Fonda que, desde a época do Vietnã tenta apresentar-se como “politicamente comprometida” defendendo causas equivocadas, quis somar-se ao conformismo denegridor que fez presa de não poucos católicos. Se estes últimos lamentarem (coisa incrível para quem conhece um pouco o que eram os cultos astecas) o que chamam “destruição das grandes religiões pré-colombianas”, Fonda foi um pouco mais à frente ao afirmar que aqueles opressores “tinham uma religião e um sistema social melhores que o imposto pelos cristãos mediante a violência”. Um estudioso, também norte-americano, respondeu-lhe em um dos principais jornais, e lhe recordou à atriz (talvez também aos católicos que choram pelo “crime cultural” da destruição do sistema religioso asteca) como era o ritual das contínuas matanças das pirâmides mexicanas. Eis aqui o que explicou: “Quatro sacerdotes aferravam à vítima e a jogavam sobre a pedra de sacrifícios. O Grande Sacerdote lhe cravava então a faca debaixo do mamilo esquerdo, abria-lhe a caixa torácica e

depois pinçava com as mãos até que conseguia lhe arrancar o coração ainda palpitante para depositá-lo em uma taça e oferecer-lhe aos deuses. Depois, os corpos eram lançados pelas escadas da pirâmide. Ao pé, esperavam-nos outros sacerdotes para praticar em cada corpo uma incisão da nuca aos talões e lhes arrancar a pele em uma só peça. O corpo esfolado era carregado por um guerreiro que o levava a sua casa e o partia em partes, que depois oferecia a seus amigos, ou estes eram convidados à casa para celebrá-lo com a carne da vítima. Uma vez curtidas, as peles serviam de vestimentas à casta dos sacerdotes.” Enquanto que os jovens de ambos os sexos eram sacrificados assim a dezenas de milhares cada ano, pois o princípio estabelecia que a oferenda de corações humanos aos deuses devia ser ininterrupta, as crianças eram lançadas ao abismo do Pantilán, as mulheres não virgens eram decapitadas, os homens adultos esfolados vivos e rematados com flechas. E assim poderíamos continuar com a lista de delicadezas que dá vontade de desejar a Jane Fonda (e a certos frades e clericais vários que hoje em dia se mostram tão virulentos contra os “fanáticos” espanhóis) que passasse por elas e que depois nos dissesse se é verdade que “o cristianismo foi pior”. Um pouco menos sanguinários eram os incas, os outros invasores que tinham escravizado aos índios do sul, ao longo da cordilheira dos Andes. Como recorda um historiador: “Os incas praticavam sacrifícios humanos para afastar um perigo, uma carestia, uma epidemia. As vítimas, às vezes crianças, homens ou virgens, eram estranguladas ou degoladas, em algumas ocasiões lhes arrancavam o coração à maneira asteca. “ Entre outras coisas, o regime imposto pelos dominadores incas aos índios foi um claro precursor do “socialismo real” ao estilo marxista. Obviamente, como todos os sistemas deste tipo, funcionava tão mal que os oprimidos colaboraram com os poucos espanhóis que chegaram providencialmente para acabar com ele. Igual à Europa oriental do século XX, nos Andes do século XVI estava proibida a propriedade privada, não existiam o dinheiro nem o comércio, a iniciativa individual estava proibida, a vida privada se via submetida a uma dura regulamentação por parte do Estado. E, a maneira de toque ideológico “moderno”, adiantando-se não só ao marxismo mas também também ao nazismo, o matrimônio era permitido só se se seguiam as leis eugênicas do Estado para evitar “contaminações raciais” e assegurar uma “cria humana” racional. A este terrível cenário social, é preciso acrescentar que na América pré-colombiana ninguém conhecia o uso da roda (a não ser que fora para usos religiosos), nem do ferro, nem se sabia utilizar o cavalo que, ao parecer, já existia à chegada dos espanhóis e vivia em algumas zonas em estado rebelde, mas os índios não sabiam como domá-lo nem tinham inventado os arreios. A falta de cavalos significava também a ausência de

mulas e asnos, de modo que se a isso se acrescenta a falta da roda, naquelas zonas montanhosas todo o transporte, inclusive o necessário para a construção dos enormes palácios e templos dos dominadores, realizavamno as hordas de escravos. Sobre estas bases os juristas espanhóis, dentro do marco da “igualdade natural de todos os povos”, reconheceram aos europeus o direito e o dever de ajudar às pessoas que o necessitassem. E não pode dizer-se que os indígenas pré-colombianos não estivessem necessitados de ajuda. Não terá que esquecer-se que pela primeira vez na história, os europeus se enfrentavam a culturas muito distintas e longínquas. A diferença de quanto fariam os anglo-saxões, que se limitariam a exterminar a aqueles “estranhos” que encontraram no Novo Mundo, os ibéricos aceitaram o desafio cultural e religioso com uma seriedade que constitui uma de suas glórias. 7. Lenda negra 6 Resulta significativo quanto escreve o protestante Pierre Chaunu sobre a colonização espanhola das Américas e as denúncias como de Las Casas: “O que deve nos surpreender não são os abusos iniciais, a não ser o fato de que esses abusos se encontrassem com uma resistência que provinha de todos os níveis da Igreja, mas também do Estado mesmo de uma profunda consciência cristã.” Deste modo, as obras como a brevíssima relação da destruição das Índias de frei Bartolomeu foram utilizadas sem escrúpulos pela propaganda protestante e depois, pela iluminista, quando em realidade são- para utilizar as mesmas palavras que Chaunu “o mais formoso título de glória da Espanha”. Estas obras constituem o testemunho da sensibilidade para o problema do encontro com um mundo absolutamente novo e inesperado, sensibilidade que faltará durante muito tempo no colonialismo protestante primeiro e “leigo” depois administrado pela brutal burguesia européia do século XIX, já secularizada. Vimos como, da Coroa para abaixo, não só não se tomavam medidas contra uma denúncia como a de Las Casas, mas sim se tratou de pôr remédio com leis que tutelassem aos índios do que o “denunciante” mesmo seria proclamado protetor geral. O frade sulcaria o oceano em doze ocasiões para falar ante o governo da mãe pátria em favor de seus protegidos; em todas essas ocasiões ia ser honrado e escutado e seus cahiers de doléances foram ser transladados a comissões que posteriormente os utilizariam para redigir leis, e a professores que dariam vida ao moderno “direito das gentes” .

Encontramo-nos ante um fato inédito, que não tem comparação na história do Ocidente, e resulta muito mais surpreendente se se acrescentar que de las Casas não só foi tomado a sério, mas também, provavelmente, foi tomado muito a sério. Havemos dito já que existe a suspeita-perfilada por quem estudou sua psicologia- de que este convertido padecia de um “estado de alucinação”, de uma “exaltação mística”. Em palavras do norte-americano William S. Maltby, “os exageros de Las Casas o expõem a um justo e indignado ridículo”. Ou, por citar ao Jean Dumont: “Nenhum estudioso que se aprecie pode tomar a sério suas denúncias extremas.” Entre os milhares de historiadores que existem, citaremos ao leigo Celestino Capasso: “Miserável por sua tese, o dominicano não duvida em inventar-se notícias e em cifrar em vinte milhões o número de índios exterminados, ou em dar por fundadas notícias fantásticas como o costume dos conquistadores de utilizar aos escravos como comida dos cães de combate. . . “ Como diz Luciano Perena, da Universidade da Salamanca: “Las Casas se perde sempre em vaguedades e imprecisões. Não diz nunca quando nem onde se consumaram os horrores que denuncia, tampouco se ocupa de estabelecer se suas denúncias constituem uma exceção. Ao contrário, contra toda verdade, dá a entender que as atrocidades eram o único modo habitual da Conquista.” Para ele, personalidade pessimista e obsessiva, o mundo é em preto e branco. Por uma parte se encontram seus malvados compatriotas, que são como feras desenfreadas; pela outra estão os indígenas, vistos textualmente como “gente que não conhece rebeliões ou tumultos”, que está “de todo desprovida de rancor, ódio e desejo de vingança”. Neste sentido, encontra-se entre os predecessores do mito do “bom selvagem”, tão querido pelos iluministas do século XVIII como Rousseau, que segue vigente no atual e ingênuo tercermundismo segundo o qual todos os homens são Santos, sempre que não sejam nem europeus nem norte-americanos, os únicos que nascem marcados por uma culpa imperdoável. Assombra em um frade esta negação do pecado original, esta falta de realismo e de justiça: teríamos, por uma parte, a uns anjos indefesos, e pela outra, a uns demônios desumanos. Entre outras coisas, Hernán Cortés que pôs fim ao grande império dos astecas e ao que Las Casas apresenta de forma pessimista (coisa que, ao parecer, não merecia de tudo), foi quem viu baixar das pirâmides o rio de sangue humano das vítimas sacrificadas. Uma empresa como aquela, de conquistadores como aqueles, não se teria podido realizar jamais com boas maneiras; além disso, os espanhóis consideravam a dureza como algo sagrado porque daquelas populações “pacíficas” segundo Las Casas, também formavam parte os astecas- e também os incas, dos que se ocuparia Francisco Pizarro- com seu costume de arrancar

o coração a dezenas de milhares de jovens. Como todos os utópicos, Las Casas não superou a prova da realidade; entre muitos outros privilégios que o governo lhe concedeu o de tratar de pôr em prática, em territórios adequados postos ao seu dispor, seu projeto de evangelização apoiado só no “diálogo” e as desculpas. Em todas as ocasiões, acabou com a extermínio dos missionários ou com sua fuga, perseguidos pelos “bons selvagens” providos de temíveis flechas envenenadas. Como sempre que se tenta fazer realidade um sonho, converte-se em pesadelo. Por citar a um de seus mais recentes biógrafos, Pedro Borgés, professor da Complutense de Madri, Bartolomeu se refugiou outra vez na irrealidade, “pregando sempre não o que se podia, mas o que se devia ter feito”. O mesmo Borgés impede que pensemos que Las Casas é o precursor de uma “teologia da libertação” ao estilo marxista; como todo bom convertido, o que lhe interessava era a salvação eterna. Sua obsessão pelos índios não era para proteger seus corpos, a não ser para salvar suas almas. Só se os tratava de forma adequada foram aceitar o batismo sem o qual teriam ido ao inferno tanto eles como os espanhóis. Encontramo-nos pois exatamente no lado contrário de quem hoje não vê mais que a dimensão horizontal e que, portanto, não tem nada que ver com o místico Las Casas. De todos os modos, tal como reconhece Maltby, “fossem quais fossem os defeitos de seu governo, na história não houve nenhuma nação que igualasse a preocupação da Espanha pela salvação das almas de seus novos súditos”. Até que a corte de Madri não sofreu a contaminação de maçons e “iluminados”, não reparou em gastos nem em dificuldades para cumprir com os acordos com o Papa, que tinha concedido os direitos de patronato em troca do dever de evangelização. Os resultados falam; graças ao sacrifício e ao martírio de gerações de religiosos mantidos com folga pela Coroa, nas Américas se criou uma cristandade que é hoje a mais numerosa da Igreja católica e que, apesar dos limites próprios de todas as coisas humanas, deu vida a uma fé “mestiça”, encarnada pelo encontro vital de distintas culturas. O extraordinário barroco do catolicismo latinoamericano é a amostra mais evidente de que, apesar dos enganos e os horrores, uma das maiores aventuras religiosas e culturais teve uma feliz evolução. A diferença do ocorrido na América do Norte, na América do Sul o cristianismo e as culturas pré-colombianas deram vida a um homem e a uma sociedade realmente novos em relação à situação pré-colombiana. Apesar de seus exageros, de suas generalizações ilícitas, de suas invenções e difamações, Las Casas é testemunha importante de um Ocidente que não esquece as admoestações evangélicas. Foi um abuso isolá-lo do debate em curso então na península Ibérica, para instrumentalizá-lo como arma de guerra contra o “papismo”, fingindo

ignorar que contra Espanha se utilizava a voz de um espanhol (membro de uma ordem nascida na Espanha) escutado e protegido pelo governo e a Coroa dessa mesma Espanha. 8. Lenda negra 7 “Arma cínica de uma guerra psicológica”, é como define Pierre Chaunu o uso que as potências protestantes fizeram da obra de Las Casas. As rédeas da operação antiespanhola as levou sobre tudo Inglaterra, por motivos políticos mas também religiosos, pois naquela ilha, a separação de Roma efetuada por Henrique VIII tinha dado lugar a uma Igreja de Estado bastante poderosa e estruturada para ficar à frente das demais comunidades reformadas da Europa. A luta inglesa contra Espanha foi vista assim como a luta do “Evangelho puro” contra “a superstição papista”. Os Países Baixos e Flandres desempenharam um papel importante nesta operação de “guerra psicológica”, pois estavam encetados em uma luta contra os espanhóis. Foi precisamente um flamengo, Theodor De Bry, quem desenhou os gravados que acompanhariam uma das tantas edições realizadas em terras protestantes da Muito breve relação: desenhos truculentos, nos que os ibéricos aparecem entregues a todo tipo de sádicas crueldades contra os pobres indígenas. Dado que as imagens de Bry (que, como é lógico supor, trabalhou apoiando-se em sua imaginação) são virtualmente as únicas antigas da Conquista, e foram reproduzidas profusamente e continuam aparecendo inclusive hoje em todos os manuais escolares, não faz falta precisar em que medida contribuíram à formação da lenda negra. Para acrescentar um elemento mais aos muitos que já se citaram, é preciso observar que nunca se reflete sobre o que ocorreu depois do domínio espanhol. Já se sabe que a Espanha foi invadida por Napoleão e que, apesar da resistência tenaz e invencível que constituiu o primeiro sintoma do fim do império francês, teve que abandonar a si mesmos os extensos territórios americanos. Ao eclipsar a estrela napoleônica, a Espanha reconquistou seu governo mas já era muito tarde para restabelecer o statu quo nas terras de ultramar. Resultaram inúteis os intentos de domar a revolução dos “crioulos”, quer dizer, da burguesia branca que tinha conseguido radicar-se naquelas zonas. Esses burgueses acomodados eram os que sempre tinham mantido tensas relações com a Coroa e o governo da mãe pátria, acusados de “defender muito” aos indígenas e de impedir sua exploração. A hostilidade dos crioulos ia dirigida sobretudo contra a Igreja, e em particular, contra as ordens religiosas não só porque velavam para que se respeitassem as leis de Madri que tutelavam aos índios mas também porque (inclusive antes de Las Casas, a primeira denúncia contra os conquistadores

se fez no ano 1511 em uma igreja com teto de palha de Santo Domingo e a pronunciou o padre Antonio de Montesinos) sempre tinham lutado para que dita legislação fosse melhorada continuamente. )Esquece-se por acaso que as expedições armadas para destruir as reduções dos jesuítas tinham sido organizadas pelos latifundiários espanhóis e portugueses, os mesmos que exerceram fortes pressões sobre suas respectivas Cortes e governos para que a Companhia de Jesus fosse eliminada definitivamente? Devido a esta oposição à Igreja, vista como aliada dos indígenas, a elite crioula que conduziu a revolução contra a mãe pátria estava profundamente poluída pelo credo maçônico que deu aos movimentos de independência um caráter de duro anticlericalismo -por não dizer de anticristianismo-, que se manteve até nossos dias: Até o martírio dos católicos no México, por exemplo, ocorrido na primeira metade de nosso século. Os libertadores, os chefes da insurreição contra Espanha foram todos altos expoentes das lojas maçônicas; pelo resto, naquelas terras se formou na ideologia franco-maçônica Giuseppe Garibaldi, destinado a converter-se em Grande Mestre de todas as maçonarias. Uma análise das bandeiras e os símbolos estatais da América Latina permite comprovar a abundância de estrelas de cinco pontas, triângulos, pirâmides, esquadros e todos os elementos da simbologia dos “irmãos” . Resulta inegável o fato de que assim que se liberaram das autoridades espanholas e da Igreja, os crioulos invocaram os princípios de irmandade universal maçônica e dos “direitos do homem” de jacobina memória para liberar-se das leis de tutela dos índios. Quase ninguém diz a amarga verdade: passado o primeiro período da colonização ibérica fatalmente duro pelo encontro-desencontro de culturas tão distintas, não houve nenhum outro período tão desastroso para os nativos sul-americanos como o que se inicia nos começos do século XIX, quando sobe ao poder a burguesia supostamente “iluminada” . Ao contrário do que quer fazer acreditar, a lenda negra protestante e iluminista, a opressão sem limites e o intento de destruição das culturas indígenas começam quando a Igreja e a Coroa abandonam a cena. Após se inicia uma obra sistemática de destruição das línguas locais, para as substituir pelo castelhano, idioma dos novos dominadores que proclamavam ter assumido o poder “em nome do povo”. Mas era um “povo” constituído só pela exígua classe dos latifundiários de origem européia. A partir de então aparecem as medidas que nunca se implantaram no período colonial para impedir a mestiçagem, a mescla racial e cultural. Enquanto a Igreja aprovava e apoiava e alentava os matrimônios mistos, os governos liberais se opuseram a eles e, com freqüência, proibiram-nos.

Começou-se assim a seguir o exemplo pouco evangélico das colônias anglo-saxônicas do Norte, onde também, e não por acaso, foi a maçonaria a que guiou a luta pela independência. Criou-se então uma frente comum entre as lojas maçônicas da América setentrional e a meridional, primeiro para vencer à Coroa da Espanha e depois, à Igreja católica. Deste modo nasceu a dependência-que marcará toda a história e que continua até hojedo Sul com respeito ao norte. Resulta curioso ver como os progressistas que assinalam as culpas da colonização católica espanhola denunciam, ao mesmo tempo, a dependência dos Estados Unidos da América Latina; é evidente que não se dão conta de que seu duplo protesto encerra uma contradição: enquanto puderam, os reis da Espanha e os papas foram os grandes defensores da identidade religiosa, social e econômica das zonas “católicas”. O “protetorado” norte-americano ficou determinado pelos crioulos, “os ricos colonos que quiseram desfazer-se das autoridades espanholas e religiosas para poder levar a cabo sem impedimentos seus negócios”. Assim diz Franco Cardini a propósito dos norte-americanos cuja ajuda, freqüentemente oculta, solicitaram os “irmãos” em luta contra a Coroa e a Igreja: “Baste recordar os desmandos que acompanharam a hegemonização da zona panamenha e a guerra de Cuba a finais do século XIX; baste recordar o constante apoio norte-americano ao governo leigo mexicano que há décadas mantém uma Constituição que, com seu contexto mais que anticlerical, anticatólico humilha e ofende os sentimentos da maioria do povo mexicano, e quando se perfilava a possibilidade de que algo trocasse, Os EUA apoiou a bandidos como Venustiano Carranza. E não moveram um só dedo durante a sanguinária perseguição anticatólica dos anos vinte.” Já se sabe que hoje em dia o governo norte-americano favorece e financia o proselitismo de seitas protestantes que tem o efeito de apartar ao povo de suas tradições de quase meio milênio, o qual constitui uma grave violação da cultura. Os esforços “racistas” realizados depois da saída da Espanha ficaram plasmados simbolicamente na arte; enquanto que antes as duas culturas se entrelaçaram maravilhosamente, dando vida às obras mestras do barroco mestiço, com a chegada ao poder dos iluministas voltaram a separar-se. A extraordinária arquitetura das cidades coloniais e das missões foi substituída pela arquitetura de imitação européia das novas cidades burguesas, nas que já não havia lugar para os pobres índios. 9. A morte de um inquisidor O verão propícia as releituras, sobretudo as de textos clássicos. Como tal se considera A civilização do Ocidente medieval de Jacques Le Goff, que li quando se publicou em francês e que agora, depois de muitas edições em várias coleções, Einaudi volta a apresentar em edição de bolso.

Aproveito este dia do verão para dar uma repassada. Entre os medievalistas leigos, Le Goff é um dos santões mas não é alheio às gaffes, a mais clamorosa das quais é a do acessoramento histórico para a adaptação cinematográfica de O Nome da Rosa de Umberto Eco, quem teve que admitir que “sua” Idade Média, a do livro, era historicamente mais exata que a refletida em imagens com o conselho “científico” deste tão homenageado professor francês. Mas Le Goff também é autor do Nascimento do Purgatório, obra que, apesar de sua aparência severamente acadêmica, está infestada de um desejo iconoclasta (embora habilmente mascarado) para a pastoral e, sobretudo, o dogma católico. Voltemos para A civilização do Ocidente medieval, onde tampouco faltam perspectivas sectárias, ou antes, falsidades propriamente ditas. Por exemplo, nas páginas 102 e 103 da última edição italiana, diz assim: “Os dominicanos e os franciscanos se convertem para muitos em símbolo de hipocrisia; os primeiros inspiram ainda mais ódio pela forma em que se puseram à frente das repressões da heresia, que pelo papel assumido na Inquisição. Uma revolta popular em Verona acaba cruelmente com o primeiro mártir dominicano: são Pedro, chamado precisamente, Mártir, e a propaganda da ordem difunde sua imagem com uma faca cravada no crânio.” Em relação aos franciscanos, a afirmação é dificilmente sustentável, sobretudo se se têm em conta os limites que o mesmo Le Goff pôs a seu trabalho: o centro mesmo da Idade Média, os séculos que vão do X ao XIII. Agora bem, Francisco de Assis morreu em 1226 e no que resta do século, entre o movimento criado por ele e as camadas populares se produz uma espécie de idílio que durará bastante, e irá além da Idade Média e chegará em certo modo até nossos dias. Não é casualidade que a publicidade mesma recorra com freqüência à imagem de um frade franciscano para algum anúncio quando faz falta inspirar confiança e cativar.Acaso não era franciscano o padre Pio da Pietrelcina, protagonista do que provavelmente foi um dos movimentos devocionales “interclassistas” mais amplos, intensos e duradouros, nos que participaram ricos e pobres, cultos e ignorantes? Mas o que na frase de Goff não só é sectário mas também falso é a alusão a um “ódio” que acompanharia aos dominicanos por haver ficado à frente das repressões da heresia” e “pelo papel que assumiram na Inquisição”. Resulta surpreendente além disso, que um medievalista de tão considerado nível internacional tergiverse literalmente a verdade em relação a são Pedro de Verona.

Mas vamos por ordem. Em primeiro lugar, a Inquisição não nasce contra o povo a não ser para responder a uma petição deste. Em uma sociedade preocupada sobretudo pela salvação eterna, o herege é recebido pela gente (começando pela gente corrente e analfabeta) como um perigo, do mesmo modo que em culturas como a nossa, que não pensam mais que na saúde física, se consideraria perigoso a quem propagasse enfermidades contagiosas mortais ou envenenasse o ambiente. Para o homem medieval, o herege é o Grande Contaminador, o inimigo da salvação da alma, a pessoa que atrai o castigo divino sobre a comunidade. Portanto, e tal como confirmam todas as fontes, o dominicano que chega para isolá-lo e neutralizá-lo, não se vê rodeado de “ódio”, mas sim é recebido com alívio e acompanhado pela solidariedade popular. Entre as deformações mais vistosas de certa historiografia está a imagem de um “povo” que geme sob a opressão da Inquisição e espera com ânsia a ocasião de liberar-se dela. Mas ocorre justamente o contrário; se às vezes a gente se mostrar intolerante com o tribunal, não é porque seja opressivo mas justamente o contrário, porque é muito tolerante com pessoas como os hereges que, se tivermos que atender a vox populi, não merecem as garantias e a clemência da que os dominicanos fazem gala. O que em realidade quereria a gente é acabar com o assunto depressa, desfazer-se sem muitos preâmbulos daquelas pessoas para as que os juízes de roupa folgada multiplicam as garantias legais. Antes da propagação protestante do século XVI, entre a proliferação de movimentos hereges medievais, existe um só que parece afetar a amplas capas populares de algumas zonas; trata-se dos cátaros albigenses cuja erradicação exigiu uma “cruzada” especial na Provença. Mas, tal como recorda o mesmo Le Goff, a liderança albigense não foi assumida pelo povo, mas sim pela nobreza da França meridional que, mediante a propaganda ou a coação, contribuiu a que a heresia se estendesse ao povo. E foi por um motivo bem pouco religioso, conforme confirma o historiador: “A nobreza ansiava rebelar-se contra a Igreja, porque aumentavam os casos de impossibilidade de matrimônio por consangüinidade, provocando a conseguinte subdivisão dos domínios territoriais da aristocracia.” Em uma palavra, o que queriam era casar-se em família para não desprender-se de seus bens. Mas voltemos para um parágrafo tirado da Civilização do Ocidente medieval: “Uma revolta popular em Verona acaba cruelmente com o primeiro "mártir" dominicano: são Pedro, ‘chamado precisamente, Mártir, e a propaganda da ordem difunde sua imagem com uma faca parecida no crânio”, diz textualmente Le Goff. Resulta surpreendente; o futuro santo nasce, efetivamente, em

Verona, mas o matam em 6 de abril de 1252 em Brianza, perto de Meda, exatamente em um lugar boscoso denominado Farga, quando viajava de Como a Milão em companhia de outro religioso, ao que também assassinaram. Portanto, Verona não tem nada que ver, porque não foi ali onde morreu. Tampouco tem nada a ver uma presunta “revolta popular”. Renomado inquisidor pelo Papa mesmo, para lutar contra a heresia “patarina” ou “cátara”, Pedro foi assassinado em uma emboscada que lhe tenderam no bosque dois desses hereges, longa manus de uma conjuração secreta tramada contra ele. Os dois assassinos se arrependeram espontaneamente de sua ação e acabaram entrando na ordem dos dominicanos. Esta conversão foi determinada, entre outras coisas, pela reação popular ao homicídio; precisamente o povo que, segundo Le Goff, haveria se amotinado para acabar cruelmente com o “malvado inquisidor”, coletalhe imediatamente um dos mais extraordinários triunfos de devoção que recorde a história da santidade. Milão, que ia em massa a escutar seus sermões, foi à rua ao inteirar-se de que chegava seu corpo e ato seguido se entrega a um culto de tal alcance que são as mesmas autoridades leigas da cidade as que enviam uma delegação ao Papa para que seja reconhecida a santidade de Pedro. À comissão criada pelo Inocêncio IV para indagar sobre a vox populi lhe basta muito pouco para tomar uma decisão porque em 9 de março de 1253, quer dizer, apenas onze meses depois de sua morte, Pedro, o inquisidor, é inscrito no catálogo de mártires e logo no dos Santos. É tal o reconhecimento dos milaneses que, graças a uma assinatura popular, no Sant'Eustorgio se constrói um monumento sepulcral que se encontra entre uma das obras primas do gótico italiano. Quanto à imagem “com uma faca fincada no crânio”, como diz-lhe Goff, pode-se dizer que todas as crônicas contemporâneas referem que Pedro foi assassinado precisamente com um golpe de falcastro, nome que lhe dão os documentos antigos à arma parecida com uma foice, que lhe encontram cravada em metade da cabeça. Nada tem que ver pois “a propaganda”, trata-se simplesmente do respeito a uma realidade histórica. Vladimir J. Koudelka, historiador dominicano contemporâneo, escreveu: “Não devemos nos maravilhar se nos historiadores modernos encontram afirmações falsas sobre este santo.” Não, não nos maravilhamos, sabemos muito bem que são Pedro mártir está ligado à palavra inquisidor, que parece justificar todo tipo de imprecisões históricas.” 10. Inquisidores

Em um artigo de fundo de Indro Montanelli lemos: “A do bode expiatório era a técnica utilizada pela Inquisição nos séculos obscurantistas, quando ao povo exasperado por alguma peste ou carestia lhe indicava alguma bruxa ou algum curandeiro, ou presumido culpado de estender a peste, para que sobre eles desafogasse sua raiva enviando-os à fogueira.” Montanelli tem muitos méritos, todos estamos em dívida com ele porque cultiva com lealdade e, freqüentemente, com valentia, a arte do inconformismo. Mas por desgraça, neste caso ele também cai em um conformismo de manual “leigo, democrático e progressista”. Em efeito, todo aquele que conheça a verdadeira história sabe que ocorria exatamente o contrário; a Inquisição não intervinha para excitar ao povo a não ser, ao contrário, para defender de suas fúrias irracionais aos supostos curandeiros ou às supostas bruxas. Em caso de agitações, o inquisidor se apresentava no lugar seguido pelos membros de seu tribunal e, com freqüência, por uma equipe de seus guardas armados. O primeiro que faziam estes últimos era restabelecer a ordem e mandar a suas casas a chusma sedenta de sangue. Ato seguido, e tomando-se todo o tempo necessário, praticando todas as averiguações, aplicando um direito processual de cujo rigor e de cuja eqüidade deveríamos tomar exemplo, iniciava-se o processo. Na grande maioria dos casos e tal como provam todas as investigações históricas, dito processo não terminava com a fogueira mas com a absolvição ou com a advertência ou imposição de uma penitência religiosa. Quem se arriscava a acabar mal eram aqueles que, depois das sentenças, voltavam a gritar: “(Abaixo a bruxa!” ou “(Abaixo o curandeiro!”. E falando de curandeiros, a lembrança da leitura de Os noivos deveria bastar para que soubéssemos que a caça foi iniciada e sustentada pelas autoridades laicas, enquanto que a Igreja desempenhou um papel pelo menos moderado, quando não cético. Como se vê, neste caso a verdade histórica tampouco conta para nada quando se trata de difamar o presente ou o passado católicos. 11. Manzoni e a Espanha Acredito que têm razão quem, desde seu ponto de vista, deseja que por decreto ministerial se elimine a novela Os noivos dos programas de estudo. Remonto a minha pequena experiência de estudante afastado então de todo tipo de Igrejas e de toda identificação religiosa, aluno de um liceu de Turim que, há mais de um século, é possivelmente o maior santuário do

laicismo italiano intransigente. Fazia tempo tinha feito outra leitura privada da História milanesa do século XVII, quando tive que estudá-la, capítulo por capítulo, durante nove meses, na sala-de-aula vazia do “Massimo d'Azeglio”. Essas páginas funcionaram inclusive com o adolescente de quinto curso do bacharelado clássico que se acreditava alheio às preocupações fideístas. Embora não imediatamente e de forma explícita, tudo terá que dizê-lo, a não ser com efeito retardado, depositando-se tenazes no fundo da memória e da consciência para voltar a aparecer um bom dia, de repente e com uma força inesperada. Para exorcizar a edição de Os noivos aparecida em sua coleção de Clássicos, o editor Giulio Einaudi a publicou precedida por uma larga introdução de Alberto Moravia, que tentou rebaixar de categoria ao grande livro passando-o da literatura ao ensaio confessional, da poesia à propaganda devocional, dizendo que nele não podia haver verdadeira arte porque não era mais que um catecismo mascarado de relato. Com muita mais dignidade, Francesco de Sanctis havia dito que a humanidade das páginas do Manzoni não estava coberta pelo céu mas sim pelas abóbadas sempre mesquinhas, por mais altas e solenes que fossem, de uma catedral. E Benedetto Croce disse: “É um relato de exortação moral dos pés à cabeça, medido e guiado com pulso firme para esse único fim; entretanto, parece espontâneo e natural, por mais que os críticos se empenhem em analisá-lo e discuti-lo como uma novela de inspiração e de fatura poética, entrando assim em contradições inextricables e tornando escura uma obra que por si só é muito clara.” O mesmo Manzoni havia dito que era clara, ao assinalar que o estímulo que o tinha impulsionado a escrever era “a esperança de algum bem”. Em seu caso não lhe aplicava aquilo da “arte pela arte”, a não ser a arte ao serviço da caridade, a maior de todas as quais é a caridade da verdade. Dado que, a meu parecer, minha experiência privada de leitor coincide com a de tantos outros que estavam “afastados”: só Deus sabe quantos entre os que descobriram a fé tiveram ocasião de recitar as páginas de Os noivos, de experimentar os dramas espirituais de Lodovico, que se converte em padre Cristíforo e do Inominável que, ao final de seu angustiosa noite, ouve qual longínqua chamada a uma vida nova, o tanger de uns sinos. Portanto, é certo, este livro é perigoso, e se compreende por que há gente que quer tirar-lhe dos estudantes. Com a sabedoria de sua arte submissa, a cada geração sugere uma possibilidade do Eterno, propõe-lhe uma ocasião inaudita, faz resplandecer a esperança de uma existência distinta e mais humana em que encontrar a frescura da manhã.

Parafraseando o décimo capítulo: “É uma das faculdades singulares e incomunicáveis da religião cristã o poder guiar e consolar a quem quer que, em qualquer conjuntura, em qualquer termo vai a ela... É um caminho tão recorrido, que seja qual for o labirinto, o precipício de onde o homem chegue a ele, uma vez que por ele dá um passo, pode a partir de então caminhar com segurança e boa vontade, e chegar gratamente a um grato fim.” Esta “faculdade singular”, este “caminho tão recorrido” são postos ante quem lê e fazem do livro um dos instrumentos de evangelização mais eficazes, de maneira que, deixando de lado injustas desmitificaciones artísticas, não parece que lhes falte razão aos De Sanctis, aos Croce, aos Moravia, temerosos de propagandas cristãs. A propósito de razões ou falta delas, não a teve Manzoni ao oferecer uma imagem sem luzes da Itália “espanhola”, imagem que condiciona para sempre o julgamento do leitor. Já sabemos como as forças mais poderosas e ativas do mundo moderno se uniram para criar a lenda negra de uma Espanha pátria da tirania, do fanatismo, da cobiça, da ignorância política, da jactância arrogante e estéril. Para os protestantes, sobretudo para os anglicanos, foi questão de vida ou morte manter com uma guerrilha psicológica a guerra contra o Grande Projeto dos Habsburgo da Espanha: uma Europa unida por uma cultura latina e católica. A difamação sistemática da colonização espanhola acompanhou muitos dos tenazes intentos ingleses por apropriar o império sul-americano. Para os iluministas, os libertins do século XVIII e mais tarde, para todos os “progressistas” e todas as maçonarias dos séculos XIX e XX, Espanha foi a terra aborrecida do catolicismo como religião de Estado, da Inquisição, dos monges e os místicos. Para os comunistas, Espanha significava a derrota dos anos trinta. O judaísmo tampouco esqueceu nunca não só a antiga expulsão mas também as leis que, até tempos recentes, impediram que retornassem ao outro lado dos Pirineos. Fica o fato de que uma campanha tenaz e secular se encarregou de projetar a luz mais negativa possível sobre este povo que, lá onde chegou, deixou sempre a seu passo terras católicas. Inclusive na Ásia, onde os espanhóis conseguiram o que ninguém tinha conseguido antes, fora católico ou protestante: a conversão ao cristianismo, duradoura e em massa, de toda uma região, a das Filipinas, com a exceção de Mindanao, que seguiu sendo muçulmana. São coisas que certa cultura não pode perdoar. Voltaremos sobre o tema para o final deste livro.

Os leitores ignoram freqüentemente que ao falar da Espanha e dos espanhóis, Manzoni se deixou levar por um certo iluminismo (do que se desvinculou de todo só em sua última obra, a implacável e inacabada arenga contra a Revolução francesa) que o induziu a carregar as tintas em excesso. Por exemplo, uns estudos minuciosos e insuspeitáveis demonstraram que o vigário de fornecimentos por conta do vice-rei espanhol na carestia de 1629, que na novela aparece como um patife e um covarde, foi em realidade Ludovico Melzi, um jovem e culto milanês, homem estudioso e enérgico, que se prodigou ao máximo para assegurar que a cidade tivesse pão. Nas cenas de tumultos de São Martino, o capitão de Justiça aparece descrito com um ar caricato, ou algo pior; em realidade se tratava também de um milanês, um tal Giambattista Visconti, magistrado temido e apreciado por seu valor, seu rigor e sua eqüidade e, entre outras coisas, por escritor e poeta. Devemos a Fausto Nicolini, o grande historiador, amigo e discípulo favorito de Croce (e portanto nestes temas, nada suspeito de parcialidade) uns estudos decisivos sobre Milão, Nápoles e, em geral toda a Itália sob o domínio espanhol. É preciso analisar o julgamento global de uma época sobre a qual se abatem nossos preconceitos, dos que é culpado Manzoni. Assim escreve Nicolini, seguidor de Croce e devoto exclusivamente da “religião da liberdade”: “Não foi ignorante uma dominação estrangeira como a espanhola que, apesar das insídias internas e externas de todo tipo, soube consolidar-se e durar dois séculos. Não foi fraca uma dominação estrangeira que, ao arrancar de suas províncias itálicas a má erva da anarquia feudal, conseguiu proteger nossa Península do iminente perigo turco e, ao mesmo tempo, manter intacta a unidade religiosa sem a qual essa política lhe teria resultado muito mais difícil em outro momento. Foi muito menos tirânica do que usualmente se crê uma dominação estrangeira habitualmente respeitosa das instituições políticas e administrativas locais e rígida impartidora de justiça. Foi curiosamente exploradora uma dominação estrangeira a qual, apesar das pessoais gestas rufianescas de certos vice-reis e governadores, e uma vez feitas as contas, as províncias italianas lhe custavam mais do que lhe rendiam. Em certo sentido, atrevome a dizer que foi inclusive benéfica esta dominação estrangeira que, apesar de sua culpa fundamental de ser, precisamente, estrangeira, conseguiu certa gratidão dos italianos embora não fora mais que por estes dois motivos: por haver evitado a grande parte da Itália, no momento em que era incapaz de uma vida autônoma, o mal maior de passar a ser

província francesa, ou diretamente franco-turca, e ao proclamar-se a independência das Sicílias reconquistadas, por ter dado a toda a Itália o primeiro e mais forte impulso para liberar-se de qualquer outro estrangeiro.” Assim escrevia Nicolini em meados dos anos trinta. Após outros estudos, evidentemente desconhecidos pela vulgata de muitos livros de texto, confirmaram-nas. Portanto, parece que fica claro que sem os dois séculos de presença espanhola que foram do XVI ao XVII, a Sicília teria se tornado muçulmana e a Sardenha e parte do sul italiano a teriam seguido. Quanto à Itália do norte, quase sem lugar a dúvidas teria ficado devastada pelas guerras de religião entre católicos e reformados que se instalaram em outras partes da Europa. O Piemonte, e inclusive a Ligúria, teriam sido anexadas ao reino da França. Surpreende que esse patriota que foi Manzoni, até a risco de ser excomungado, membro do primeiro Senado da Itália unida, não tenha compreendido este papel histórico de um grande país, condenado obstinadamente com a expressão convertida em canônica, o desgoverno espanhol. 12. Os iberos Jules Michelet, historiador progressista e anticlerical do século XIX, profeta da laica “religião da humanidade”, observa que a ordem dos dominicanos, fundada pelo castelhano Domingo de Guzmán na Idade Média, foi a principal coluna ao serviço do papado romano. Mais tarde, com a mudança de era, este papel de tropa fiel passou à ordem dos jesuítas fundada pelo basco Ignacio de Loyola. Passou um século desde que Michelet escreveu suas obras, encontramo-nos na soleira de uma nova época e pareceria que essa função esteja passando a outra instituição religiosa, a Opus Dei, criada pelo aragonês José María Escrivá do Balaguer. Portanto, parece ser que da península Ibérica saem sempre os homens que têm como singular carisma sua fidelidade a Roma. Pelo resto, não se trata de um papel iniciado com o cristianismo; os imperadores romanos procuravam na Espanha aos soldados de absoluta confiança que formavam sua guarda pessoal, e que eram os únicos pelos que não temiam ser traídos. A península Ibérica não só foi para Roma a primeira posse fora da Itália, mas também se integrou com tal profundidade e espontaneidade à cultura latina que virtualmente fez desaparecer todo rastro da língua e a religião existentes antes da chegada das legiões. É muito pouco o que se sabe dos iberos pré-romanos. Entretanto, resulta interessante notar que alguns dos melhores imperadores e escritores latinos

vinham dali. Em uma palavra, Espanha parece ter na história um papel (ao que nos referimos já) oposto ao que desempenhou a Alemanha; nesta última existiu a tentação constante da revolta contra Roma; na primeira, uma tendência de mais de dois mil anos de servir a Roma com fidelidade, já fora que em Roma reinassem césares ou papas. Acaso não será esta uma das enigmáticas constantes da história, algumas das quais analisamos já? 13. Mártires na Espanha O Papa beatificou como mártires pela fé a onze vítimas da guerra civil espanhola. Não faz muito, correspondeu o turno a outras vinte e seis. A série de beatificações começou em 22 de março de 1986, com o decreto de aprovação do martírio de três carmelitas de Guadalajara. Durará muito tudo isto, dado que os processos em curso são mais de cem, muitos deles de grupo, e se referem em seu conjunto a 1206 vítimas da perseguição anarcosocialista-comunista dos anos trinta. Já se sabe que um dos marcos que distinguem ao mundo é o de dividir não só aos vivos mas também aos mortos; não todos os mortos, e muito menos todos os mártires, são iguais; estão os que devem ser venerados e recordados e os que terá que esquecer. Por desgraça, esta perspectiva tão mundana, porque está ligada ao poder político e cultural vigente em cada momento, parecia ter poluído a uma parte da instituição eclesiástica. Em efeito, houve uns anos nos que uma espécie de silêncio incômodo (quando não um distanciamento manifesto por parte de certa publicidade católica) precipitou-se sobre a terrível matança da que foram vítimas na Espanha da Guerra Civil mais de 6 832 pessoas entre padres, religiosas, monjas e milhares de leigos, que morreram pelo solo feito de ser crentes. Assim, a partir dos anos sessenta, e tal como escreve D. Justo Fernández Alonzo, diretor do Centro Espanhol de Estudos Eclesiásticos, “motivos de oportunidade aconselharam moderar o curso dos processos de beatificação já iniciados; só a partir de princípios dos anos oitenta voltaram a ter via livre”. Fizeram falta o valor e o amor pela verdade de João Paulo II para reabrir uma página da história que muitos, inclusive certas forças poderosas da mesma Igreja, tivessem preferido que continuasse fechada para sempre. Atualmente, o final do comunismo por autodissolução e a conseguinte relaxação da pressão exercida por uma historiografia marxista tendenciosa

que impunha um temor reverencial deveriam favorecer uma releitura objetiva do papel da Igreja na Espanha, devastada primeiro pela guerra civil e subjugada depois pelo autoritarismo franquista. Esse regime, apressadamente definido como ofascista” e equiparado inclusive com o nazismo, quando em realidade estava muito longe do paganismo racial que distingue a este último, e da idolatria ao Estado de hegelismo caseiro, que aflora no fascismo italiano, esse regime dizíamos, conseguiu manter a Espanha fora da Segunda Guerra Mundial apesar das pressões de Hitler e Mussolini, e não se distinguiu por uma atitude belicosa para o exterior. O final de Francisco Franco e de seu regime não é não comparável ao sangrento do Ceaucescu na Romênia nem à quebra econômica e social da Europa comunista. O rei Juan Carlos do Borbón, ao que o socialista e fanático republicano Sandro Pertini considerava como um dos melhores chefes de Estado, foi eleito para a sucessão e preparado conscienciosamente para ocupar o trono pelo velho caudilho. Sucessão que se produziu sem traumas, em um clima de pacificação e sobre bases econômicas que permitiram a Espanha situar-se nestes anos entre os países do mundo de crescimento mais rápido; todas estas coisas estiveram espetacularmente ausentes nos países do Leste, onde tudo está por reconstruir tanto no plano da economia como no plano moral, enquanto que os ânimos se encontram ainda divididos. Não se trata mais que de umas idéias para uma reflexão futura que julgue com serenidade uma azeda polêmica que tem quase meio século, contra uma Igreja que teria favorecido a um presumido “Anticristo”, sobre o que o historiador inglês contemporâneo Paul Johnson, de estrita tendência democrata-liberal, escreve: “Franco sempre esteve decidido a manter-se à margem da guerra, que considerava uma terrível calamidade e, sobretudo, uma guerra que para ele, católico convencido, representava a fonte de todos os males do século, ao ser conduzida por Hitler e Stalin. Em setembro de 1939, declarou a absoluta neutralidade da Espanha e aconselhou a Mussolini que fizesse o mesmo. Em 23 de outubro de 1940, quando se reuniu com o Hitler em Hendaya, recebeu-o com frieza, por não dizer com desprezo. Falaram até as duas da madrugada e não ficaram de acordo em nada.” Sejam quais forem as conclusões às que cheguem sobre o franquismo os historiadores do futuro, sempre está claro que os processos canônicos bloqueados por Roma e reiniciados agora por um Papa que “não se amolda ao mundo”, vão além de toda consideração política. O que conduz a incluir a essas vítimas na lista de mártires, que logo se proporão para a veneração e a imitação dos crentes, é um motivo exclusivamente religioso; o que se deve valorar não são umas motivações políticas, mas sim se a matança se realizou por ódio à fé e se foi aceita pacientemente por amor a Cristo e por fidelidade a ele, talvez com o explícito perdão dos assassinos.

O que é certo é que na Espanha republicana a matança de católicos (e só de católicos, porque as Iglesias e pastores protestantes não foram tocados) não teve por finalidade castigar a homens específicos e seus supostos culpados. Constituiu um intento de fazer desaparecer à Igreja mesma. Como escreve o historiador de esquerda Hugh Thomas: “Nunca na história da Europa e possivelmente na do mundo, viu-se um ódio tão encarniçado para a religião e seus homens.” E, para citar a outro estudioso fora de suspeita e, além disso, testemunha direta, como Salvador de Madariaga (antifranquista convencido, partidário do governo republicano e exilado depois da derrota): “Ninguém que tenha boa fé e boa informação pode negar os horrores daquela perseguição: durante anos, bastou unicamente o fato de ser católico para merecer a pena de morte, infligida freqüentemente nas formas mais atrozes.” Houve casos como o do pároco de Navalmoral, submetido ao mesmo suplício que Jesus, começando pela flagelação e a coroa de espinhos até chegar à crucificação, no que o martirizado também se comportou como Cristo, benzendo e perdoando aos milicianos anarquistas e comunistas que o atormentavam. Houve casos de religiosos aos que encerraram na praça de touros e lhes cortaram as orelhas como nas corridas. Houve casos de centenas de padres e freiras aos que queimaram vivos. A uma mulher “culpada” de ser mãe de dois jesuítas a afogaram fazendo-lhe tragar um crucifixo. Em um momento dado, no fronte chegou a faltar gasolina, utilizada com profusão para queimar não só aos homens, mas também as obras de arte e as antigas bibliotecas da Igreja, um desastre cultural provocado por um ódio cego para a fé. Mas não era a primeira vez que se produziam feitos similares; o mesmo ocorreu com o vandalismo francês jacobino e com o do Ressurgimento italiano. Os partidos e movimentos republicanos (anarquistas, comunistas, mas em sua maioria socialistas que se distinguiriam mais tarde na guerra como ferozes demagogos) que subiram ao poder em 1931 favoreceram imediatamente o clima de ódio religioso que, em só dez dias da insurreição de Asturias de 1934, deu como resultado a matança de 12 sacerdotes, 7 seminaristas, 18 religiosos e o incêndio de 58 Iglesias. A partir de julho de 1936, a matança se generalizou: deu-se morte nas formas mais atrozes a 4184 sacerdotes diocesanos (incluindo seminaristas), 2 365 frades, 283 monjas, 11 bispos, um total de 6 832 vítimas “clericais”. Se contam por dezenas de milhares os leigos assassinados pelo solo fato de levar uma medalha religiosa com a imagem de um santo. Em certas diocese como a do Barbastro, em Aragón, em um só ano foi eliminado o 88 % do clero diocesano. A casa das salesianas de Madri foi assaltada e incendiada e as religiosas foram violadas e espancadas depois de ser acusadas de dar

caramelos envenenados às crianças. Os corpos das monjas de clausura foram exumados e expostos em público como escárnio. chegou-se ao extremo de recuperar barbáries cartaginesas como a de atar a uma pessoa viva a um cadáver e deixá-la ao sol, até que ambos se apodrecessem. Nas praças se fuzilava inclusive às estátuas dos santos e as hóstias consagradas eram utilizadas de forma obscena. Entretanto, durante décadas, inclusive um certo setor católico considerou que na tragédia espanhola quem devia perdoar e esquecê-lo tudo era a Igreja e não os anarquistas, os socialistas e os comunistas. Rechaçava-se com um certo desgosto a idéia do martírio desses inocentes, até o ponto de bloquear os processos. Entretanto, embora neste mundo a verdade pareça débil, à larga resulta invencível. E as liturgias de beatificação e canonização como as que proliferam em São Pedro começam a fazer que surja plenamente. II. ESPANHA E AMÉRICA: MAIS LENDA NEGRA 14. América: línguas cortadas? Como exemplo clamoroso e atual do esquecimento (ou manipulação) da história, como sinal de uma verdade cada vez mais em perigo, pensemos no que ocorreu à vista de 1992, o ano do Quinto CentenÁrio do desembarque do Cristóvão Colombo nas Américas Já se têm falado amplamente disso. Aqui nos limitamos a examinar um aspecto concreto do acontecimento. Antecipemos já que o descobrimento, a conquista e a colonização da América Latina - central e meridional - viram o trono e o altar, o Estado a Igreja estreitamente unidos. De fato, já desde o princípio (com o Alexandre VI), a Santa Sede reconheceu aos reis da Espanha e de Portugal os direitos sobre as novas terras, descobertas e a descobrir, em troca do “Patronato”: quer dizer, a monarquia reconhecia como uma de suas tarefas principais a evangelização dos indígenas, e se encarregava da organização e os gastos da missão. Um sistema que também apresentava seus inconvenientes, limitando por exemplo, em muitas ocasiões, a liberdade de Roma; mas que entretanto resultou muito eficaz -pelo menos até o século XVIII, quando nas Cortes de Madri e Lisboa começaram a exercer influência os “filósofos” ilustrados, os ministros maçons - porque a monarquia se tomou muito a sério a tarefa de difusão do Evangelho. Portanto, as polêmicas que já nasceram sobre este passado implicam também à Igreja, por seu estreito vínculo com o Estado, na acusação de

“genocídio cultural”. Que, já se sabe, sempre começa pelo “corte da língua”: ou seja a imposição aos mais fracos do idioma do conquistador. Mas tal acusação surpreenderá a quem tem conhecimento do que realmente passou. A propósito disto escreveu coisas importantes o grande historiador (e filósofo da história) Arnold Toynbee, não católico e portanto fora de toda suspeita. Este célebre estudioso observava que, atendendo seu fim sincero e desinteressado de converter aos indígenas ao Evangelho (objetivo pelo qual milhares deles deram a vida, muitas vezes no martírio), os missionários em todo o império espanhol (não só nas Américas Central e do Sul, mas também nas Filipinas), em lugar de pretender e esperar que os nativos aprendessem o castelhano, começaram a estudar as línguas indígenas. E o fizeram com tanto vigor e decisão (é Toynbee quem o recorda) que deram gramática, sintaxe e transcrição a idiomas que, em muitos casos, não tinham tido até então nem sequer forma escrita. No vice-reinado mais importante, o do Peru, em 1596 na Universidade de Lima se criou uma cadeira de quéchua, a “língua franca” dos Andes, falada pelos incas. Mais ou menos a partir desta época ninguém podia ser ordenado sacerdote católico no vice-reinado se não demonstrava que conhecia bem o quéchua, ao que os religiosos tinham dado forma escrita E o mesmo passou com outras línguas: o náhuatl, o guarani, o tarasco... Isto era acorde com o que se praticava não só na América, mas também no mundo inteiro, lá onde chegava a missão católica: é seu o mérito indiscutível de ter convertido inumeráveis e escuros dialetos exóticos em línguas escritas, dotadas de gramática, dicionário e literatura (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a missão anglicana, dura difusora somente do inglês). Último exemplo, o somalí, que era língua só falada e adquiriu forma escrita (oficial para o novo Estado depois da descolonização) graças aos franciscanos italianos. Mas, como dizíamos, são coisas que já deveria saber qualquer que tenha um pouco de conhecimento da história desses países (embora pareciam ignorá-lo os polemistas que começaram a gritar à vista de 1992). Mas nestes anos um professor universitário espanhol, membro da Real Academia da Língua, Gregorio Salvador, verteu mais luz sobre o assunto. demonstrou que em 1596 o Conselho de Índias (uma espécie de ministério espanhol das colônias), frente à atitude respeitosa dos missionários para as línguas locais, solicitou ao imperador uma ordem para a castelhanização dos indígenas, ou seja uma política adequada para a imposição do castelhano. O Conselho de Índias tinha suas razões a nível administrativo, vistas as dificuldades de governar um território tão extenso

fragmentado em uma série de idiomas sem relação o um com o outro. Mas o imperador, que era Felipe II, respondeu textualmente: “Não parece conveniente forçá-los a abandonar sua língua natural: só terá que dispor de uns professores para os que queriam aprender, voluntariamente, nosso idioma. O professor Salvador observou que detrás desta resposta imperial estavam, precisamente, as pressões dos religiosos, contrários à uniformidade solicitada pelos políticos. Tanto é assim, precisamente por causa deste freio eclesiástico, a princípios do século XIX, quando começou o processo de separação da América espanhola de sua mãe pátria, só três milhões de pessoas em todo o continente falavam habitualmente o castelhano. E aqui vem a surpresa do professor Salvador. “Surpresa”, evidentemente, só para os que não conhecem a política dessa Revolução francesa que tanta influência exerceu (sobretudo através das seitas maçônicas) na América Latina: é suficiente observar as bandeiras e os timbres estatais deste continente, cheios de estrelas de cinco pontas, triângulos, esquadros e compassos. Foi, de fato, a Revolução francesa a que estruturou um plano sistemático de extirpação dos dialetos e línguas locais, considerados incompatíveis com a unidade estatal e a uniformidade administrativa. Opunha-se, nisto também, ao Ancien Régime, que era, em troca, o reino das autonomias também culturais e não impunha uma “cultura de Estado” que despojasse às pessoas de suas raízes para obrigá-las à perspectiva dos políticos e intelectuais da capital. Foram pois os representantes das novas repúblicas - cujos governantes eram quase todos homens das lojas maçônicas - os que na América Latina, inspirando-se nos revolucionários franceses, dedicaram-se à luta sistemática contra as línguas dos índios. Foi desmontado todo o sistema de amparo dos idiomas pré-colombianos, construído pela Igreja. Os índios que não falavam castelhano ficaram fora de qualquer relação civil; nas escolas e no exército se impôs a língua da Península. A conclusão paradoxal, observa ironicamente Salvador, é esta: o verdadeiro “imperialismo cultural” foi praticado pela “cultura nova”, que substituiu a da antiga a Espanha imperial e católica. E portanto, as acusações atuais de “genocídio cultural” que apontam à Igreja se devem dirigir aos “ilustrados”. 15. O ouro de Colombo Mais sobre o ouro; mas não negro: amarelo. Encontrá-lo era o sonho supremo de Cristóvão Colombo e de seus patrocinadores, Fernando e

Isabel, os “Reis Católicos”. Gente de fé sincera, verdadeiros crentes além das debilidades humanas - em Jesus, o pobre por antonomásia. Então por que este afã? Os historiadores não nos dizem isso. Em seu misticismo, Colombo (para quem se falou inclusive de um processo de beatificação) não estava motivado absolutamente por razões comerciais, mas religiosas: não só queria levar o Evangelho a outros povos, mas também também encontrar nas Índias ocidentais o ouro para financiar uma nova grande cruzada, que levaria aos espanhóis a cruzar o estreito de Gibraltar, invadindo o África muçulmana, e de ali avançar para Jerusalém, para reconquistar o Sepulcro perdido trezentos anos antes. Até recordou aos reis em seu testamento o compromisso para esta cruzada, que não se realizou sobretudo pela explosão da Reforma protestante, que dividiu para sempre a comunidade cristã. É um elemento mais que poucos conhecem e que deve corroborar as motivações religiosas, frente às econômicas e políticas (tal como quer a história laicista), da marcha para o Ocidente da catolicíssima e difamada Espanha. 16. Entre a América do Sul e a Europa do Norte Na América Latina, dizem-nos, a Igreja católica “está com os pobres”. Mas os pobres não estão com a Igreja: milhões deles passaram-e seguem passando, milhares e milhares cada dia-às seitas anticatólicas que vêm dos Estados Unidos; ou, como no Brasil, aos cultos animistas e sincretistas. No continente que antes era “o mais católico do mundo”, o protestantismo (em suas versões “oficiais” ou nas versões enlouquecidas do fundamentalismo americano) está em caminho de converter-se estatisticamente em maioria, se se mantiver o ritmo atual de abandono da Igreja romana. Encontraríamo-nos frente a um desses “resultados catastróficos da catequese e a pastoral” dos que muitas vezes falou o cardeal Ratzinger. Em efeito, os que analisaram as causas da “grande fuga” - e que o têm feito no território enfrentando-se à realidade, mais que a esquemas teóricos constataram que a “demanda” religiosa sul-americana se dirige a outra parte porque a “oferta” católica não a satisfaz. Brevemente: o povo (mitificado povo) já não está em sintonia com uma Igreja que acentuou tanto seu compromisso político, social, de justiça e bem-estar terrestres, que chegou a ofuscar sua dimensão diretamente religiosa. Enfim, o padre comicial, sindicalista e politizado já não basta para satisfazer a necessidade de uma esfera sagrada, transcendente e de esperança eterna: daqui a busca alternativa em seitas que se excedem no contrário, rechaçando qualquer compromisso com a realidade social, para anunciar uma salvação que chegará só ao final da história, no momento da volta gloriosa de Cristo, ou em um paraíso ao que só se pode acessar pela

porta estreita da morte. Como sempre, pois, os efeitos concretos se revelaram o exato contrário das previsões de muitos. Transformar o Evangelho em um manual para a “libertação” sócio-política, certamente gratifica aos teólogos, mas não convence aos que queriam “libertar-se”, que portanto se dirigem a outro lado, onde possam encontrar satisfação a sua necessidade de adorar, rezar e esperar em algo mais duradouro e profundo que as reformas econômicas de sempre. Não faz falta tampouco, para conservar aos “pobres”, certo masoquismo católico atual. Há frades, e inclusive bispos, que encabeçaram movimentos de protesto contra as celebrações do Quinto Centenário da Conquista ibérica do 1492: escutando-os, parece que teria sido muito melhor deixar aos indígenas das Américas com seus sangrentos cultos idolátricos tradicionais, sem “incomodá-los” com o anúncio do Evangelho. Estamos assim ante o espetáculo de homens de Igreja empenhados em difamar quanto possam o que sua própria Igreja fez no passado, sem lhe conceder atenuantes históricos e nem sequer tentar discernir a verdade da calúnia, a “lenda negra” dos fatos concretos. E enquanto os católicos assim se flagelam, os índios passam aos cultos dos missionários norte-americanos: esses que mais motivos teriam para auto-acusarse, já que (falamos muito disso), a diferença da colonização ibérica, que apesar de seus enganos e horrores levou a compenetração das culturas, a anglo-saxã levou ao genocídio, ao índio aceitável só uma vez morto. Mas os pastores protestantes não fazem nenhuma autocrítica: anunciam (a sua maneira) a Cristo, o perdão, a salvação e a vida eterna; e isto é o que importa aos descendentes dos índios. Assim na América Central e do Sul já abandonaram o catolicismo uns quarenta milhões de pessoas. E muitos mais escolhem cada dia o mesmo caminho. É um adeus pronunciado já, por outra parte, por muitas pessoas que vivem em um contexto socioeconômico completamente diferente: na Holanda, por exemplo. Testemunho do clima que reina entre os restos e o deserto da que foi uma das religiões mais exemplares, valentes e fervorosas do mundo, é também a carta que tenho em cima de meu escritório, que me enviou por fax um leitor desde Amsterdam. É um professor italiano, empenhado há meses em um solitário duelo com a KRO, a rádio e televisão “católica” (onde o adjetivo, precisa o amigo terá que pô-lo, faz tempo, entre aspas). Os “ex” e as “ex”, que (segundo a pessoa que me tem escrito) compõem a

quase totalidade do plantel da KRO, tinham decidido celebrar o Natal transmitindo o filme O nome da rosa, adaptação da novela do Umberto Eco. Agora bem: tal como me confirmou o mesmo Eco em uma entrevista, a novela queria ser um ajuste de contas com seu passado católico, uma maneira de expressar mediante uma sugestiva forma narrativa os “venenos” (palavras do próprio escritor) da dúvida agnóstica e atéia. Disse-me, entre outras coisas, como uma confissão aberta: “Este é o germe do livro: por volta de anos que tinha vontades de matar a um frade...” E acrescentou que a novela era uma espécie de “manifesto” da “meditada apostasia” do catolicismo em sua juventude. Esta intenção anticristã, filtrada-na página escrita-pela habilidade artística de Eco, converteu-se em mera propaganda anticlerical em sua transcrição cinematográfica, cujo resultado não convenceu nem ao mesmo escritor. Marco Tangheroni, bom conhecedor daquela época, professor de história medieval na Universidade de Pisa, escreveu: “A descrição da Igreja da época que se faz no filme é completamente falsa. O filme acolhe e leva a seus extremos a antiga, enganosa visão da Idade Média, criada por ódio anticatólico entre os séculos XVIII e XIX, para deformar deliberadamente um período glorioso e luminoso da história da humanidade.” Este, pois, era o filme que a televisão “católica” holandesa propunha para “edificar” a seus espectadores no dia de Natal. Frente aos protestos obstinados e públicos de meu leitor-e de algum sobrevivente mais no naufrágio de uma Igreja que queria ser mestra de “modernidade” e acabou na catástrofe atual, entre outras coisas com a metade das crianças sem batizar-decidiu-se postergar a emissão do 25 ao 29 de dezembro. Mas o filme se emitirá igualmente pela cadeia “católica”. O professor italiano me comenta que de todas formas não pensa renunciar a sua batalha. Não quereríamos desanimá-lo revelando que no grupo de empresas de rádio e televisão que asseguraram a produção do filme, destacava, como cabeça de lista, a rede Uno da RAI, o canal democrata-cristão, segundo a partilha política. E revelando, além disso, que a primeira laurea honoris causa que Eco recebeu por O nome da rosa, foi concedida pela Universidade de Lovaina, que, por língua e história, tem estreitos vínculos com a próxima Holanda. A Universidade de Lovaina, se por acaso alguém o esqueceu, é uma das universidades “católicas” mais antigas e prestigiosas. Por duas vezes, neste século, o povo crente desses países se entregou com sacrifício a sua reconstrução, depois da primeira e a segunda guerra mundiais. Às vezes, alguém se pergunta se estes padres, professores e notáveis sabem quem entre os católicos - e com que fim - seguem lhes assegurando (talvez com a pobre oferenda dos fiéis) pão, status social,

poder... Outra laurea chegou para nosso professor Eco: a da Universidade Jesuíta americana. E o Centro Católico Cinematográfico Italiano deu julgamento positivo ao filme que meu leitor não queria ver nas telas “católicas” holandesas. Estamos com ele. Mas não deveríamos nos sentir ridículos dom-quixotes lutando em semelhante batalha? 1 7. Cristeros Lê-se (e se escuta) todo tipo de coisas sobre o Quinto Centenário do descobrimento da América. O aniversário gerou um rio de palavras, no que se mesclam verdades e lendas, intuições profundas e palavras de ordem superficiais. O que mais entristece é a atitude de certos religiosos - sobretudo do hemisfério norte, europeu e americano - que apesar da queda repentina daquele marxismo que tinham abraçado com entusiasmo de conversos, seguem aplicando suas falaciosas e desastrosas categorias interpretativas. Até há frades e monjas que publicamente criticam aos missionários cristãos por ter destruído as idolatrias pré-colombianas, esses fetichismos ferozes que - é o caso dos astecas - tinham como base indispensável o sacrifício humano coletivo. Em sua opinião, possivelmente, teria sido muito melhor que estes povos não tivessem entrado nunca em contato com essa mania perigosa de seus irmãos de então de considerar importante o anúncio de Cristo e do Evangelho. Mas no conjunto do insosso, falso e não-cristão (embora defendido por quem se apresenta como “cristão”, e mais que qualquer outro, pois se chama a si mesmo “defensor dos oprimidos”), destacam algumas publicações que merecem nossa atenção. Entre outras, a tradução, publicada por Are, da obra do Alberto Caturelli, eminente professor da Filosofia na universidade argentina de Córdoba. O livro - com o título O novo mundo redescoberto - é uma extraordinária mescla de metafísica, história e teologia: o resultado é uma esclarecedora reflexão, porque analisa o que aconteceu às Américas em linha com uma “teologia da história”, da qual carecem os crentes há muito tempo com o resultado de fazê-los insignificantes. É um destino frente ao qual Jean Dumont também tenta reagir, com seu pequeno, denso e nervoso livro, provocativamente “católico” já do título: O Evangelho nas Américas. Da barbárie à civilização. A tradução italiana é das Edições Edieffe, a mesma editorial que publicou a atrevida tradução do panfleto sobre a Revolução Francesa do mesmo Dumont (de que falaremos mais adiante), e o implacável Le génocide franco-français

de Reynald Secher. É Jean Dumont quem recorda o caso do México, muitas vezes esquecido, aos “novos” católicos em veia masoquista, a esses crentes que julgam a epopéia do anúncio da fé em terras americanas só como uma guerra de massacre e conquista, disfarçada de pseudoevangelização. Trata-se de acontecimentos recentes, de faz uns decênios, que entretanto parecem enterrados sob uma cortina de esquecimento e silêncio. Aqui estão padres e frades nos contando por enésima vez as atrocidades, certas ou supostas, dos conquistadores do século XVI, e discretamente, ao mesmo tempo, de maneira obstinada, o dos cristeros do século XX. Um silêncio não casual, porque precisamente os cristeros, com sua multidão de mártires indígenas, desmontam o esquema que dá por forçada e superficial a evangelização da América Latina. Tratemos, pois, de refrescar um pouco a memória. Como já recordamos em capítulos dedicados à “lenda negra” antiespanhola, a princípios do Século XIX a burguesia crioula, quer dizer de origem européia, lutou para liberar-se da Coroa espanhola e da Igreja, e ter assim as mãos livres para explorar os índios, já sem o estorvo dos governadores de Madri e os religiosos. É um “movimento de libertação” (mas só para os brancos privilegiados) reunido ao redor das lojas maçônicas locais, sustentadas pelos “irmãos franco-maçons” da América anglo-saxônica do Norte, que precisamente a partir de agora começa seu desumano processo de colonização do Sul “latino”. As novas castas no poder nas antigas províncias espanholas levam a cabo uma legislação anticatólica, enfrentando-se com a resistência popular constituída em sua maioria por aqueles índios ou mestiços que-segundo o esquema atual-teriam sido batizados à força e desejariam voltar para seus cultos sangrentos. No México as leis “jacobinas” e a primeira insurreição “católica” são do período entre princípios de nosso século. O jacobinismo liberal se faz aliado do socialismo e o marxismo locais, de maneira que “entre 1914 e 1915 os bispos foram detidos ou expulsos, todos os sacerdotes encarcerados, as monjas expulsas de seus conventos, o culto religioso proibido, as escolas religiosas fechadas, as propriedades eclesiásticas confiscadas. A Constituição de 1917 legalizou o ataque à Igreja e o radicalizou de maneira intolerável” (Félix Zubillaga). Cabe assinalar que aquela Constituição (ainda em vigor, ao menos formalmente: em suas viagens ao México as autoridades chamaram João Paulo II sempre e só senhor Woityla) não foi submetida à aprovação do povo. Que não somente não a teria aprovado mas que em seguida deu a conhecer sua posição: primeiro mediante a resistência passiva e logo com

as armas, em nome da doutrina católica tradicional segundo a qual é lícito resistir com a força a uma tirania insuportável. Começava assim a epopéia dos cristeros, assim chamados, despectivamente, porque diante do pelotão de fuzilamento morriam gritando: (Viva Cristo Rei! Viva Cristo e Nossa Senhora de Guadalupe! Os insurretos, que (igual a seus irmãos de La Vendée) militavam sob as bandeiras com o Sagrado Coração, chegaram a desdobrar 200000 homens armados, apoiados pelas Brigadas Bonitas, as brigadas femininas para a sanidade, a subsistência e as comunicações. A guerra eclodiu entre 1926 e 1929. E se ao final o governo se viu obrigado a aceitar um compromisso (e os bandoleiros católicos, não obstante os êxitos, tiveram que obedecer, contra sua vontade, à ordem da Santa Sé e depor as armas), foi porque a resistência à descristianização tinha penetrado até o fundo em todas as classes sociais: estudantes e operários, amas de casa e camponeses. Melhor dizendo, em palavras de um historiador imparcial, “não houve nem um só camponês que, direta ou indiretamente, não desse apoio aos cristeros”. Ao contrário das revoluções marxistas, que em nenhuma parte do mundo e nunca nem sequer na América Latina puderam realmente chegar ao povo (isto foi evidente, por exemplo, na Nicarágua, quando se deu voz ao povo), a Cristiada mexicana foi um movimento popular, profundo e autêntico. Centenas de homens e mulheres de todas as classes sociais se deixaram massacrar para não ter que renunciar a Cristo Rei e à devoção pela gloriosa Virgem de Guadalupe, mãe de toda a América Latina. Morreu fuzilado, entre outros, o padre Miguel Agustín Pró, ao que o Papa beatificou em 1988. A resistência mais heróica se deu precisamente entre os índios do México central, que tinha sido berço dos astecas e de seus cultos negros; enquanto que a casta dos “sem Deus”, no governo, vinha das regiões do norte, escassamente cristianizadas por causa da supressão, no século XVIII, das missões jesuítas. A luta dos cristeros em defesa da fé foi uma das mais heróicas da história, e chegou, embora em formas não tão cruentas, até nossos dias. Apesar da Constituição “atéia” vigente no México desde 1917, possivelmente em nenhum outro lugar João Paulo II teve uma acolhida de massas mais sincera e festiva. E nenhum santuário do mundo é tão visitado como o do Guadalupe. Como explicam esta fidelidade os que nos querem convencer de que houve uma evangelização forçada que se impôs a fé usando o crucifixo

como um garrote? III. A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA 18. Direitos do homem l Olhando a televisão francesa (vê-se bem em Milão), vou topar com o mesmo debate de sempre sobre os “direitos humanos”. Participa também um sacerdote, um teólogo. Em realidade, escutando-o, parece um desses intelectuais transalpinos mais preocupados com sua imagem de pessoas inteligentes e ao dia, que solidários (ou pelo menos coerentes) com sua Igreja. Um desses que correm o risco de fazer da “ciência de Deus” - a que Tomás do Aquino praticava colocando, para inspirar-se, sua grande cabeça em um tabernáculo- uma ideologia a plasmar segundo os gostos da época, como se tivesse acima de tudo um fim: obter a aprovação (“Bravo! Muito Bem!”) daquele Constantino de hoje que é o tirano mediático, sem a qual negam lugar nas mesas redondas. O guia é o de sempre: o clérigo exibindo-se em desculpas contritas por uma Igreja tão grosseira e míope que não celebrou desde o primeiro momento e sem reservas os “imortais princípios” proclamados pela Revolução francesa em 1789 e logo confirmados na “Declaração universal” aprovada pelas Nações Unidas em 1948. Igual a um pobre arrependido, o reverendo jura que isto não acontecerá mais: agora os católicos são “adultos” e compreenderam quão equivocados estavam eles e quanta razão tinham outros. “Os democratas” podem estar tranqüilos: a seu lado terão padres como este, conscientes de que o Evangelho não é mais que “a primeira, a mais solene declaração de direitos humanos”. Diz exatamente isso. Vivi um tempo suficiente para não me deixar impressionar muito. Tinha eu a idade da razão, já desde fazia muito tempo, quando o marxismo parecia triunfador e se acreditava que o nascimento do homem novo e da história nova teria que fixá-los deferentemente em 1917, em São Petersburgo. Naqueles tempos não se organizavam mesas redondas sobre a “liberdade” burguesa nascida da Revolução francesa (ou, se se preferir, da americana), a não ser sobre a “justiça” proletária. Lembro muito bem a teólogos como o desta noite -e os intelectuais junto a ele- ironizando sobre os “direitos puramente formais”, a “liberdade ilusória”, aquele “vender ilusões em benefício da classe burguesa” que foi, em palavras do Marx, a Declaração de 1789. (Quantos católicos “modernos” teorizavam, ante a complacência dos meios de comunicação, que a Igreja trairia a humanidade e o encontro decisivo com a história se não se transformava em uma espécie de “Seção católica da Internacional comunista”! Cada paróquia,

cada diocese tinha que converter-se em um soviete! Mas o vento muda, e os intelectuais com ele, inclusive os eclesiásticos. Eis aqui então os mesmos nomes, as mesmas caras, com os mesmos tons peremptórios, reclamando uma reorganização da Igreja como “ Seção católica da Internacional liberal-maçônica”. De fato (documentos na mão), antes de ser proclamada pela Assembléia Naclonal francesa, a “Declaração dos direitos do homem” foi elaborada nas lojas maçônicas e nas “sociedades do pensar”, onde-entre aventais, paletas e triângulosreunia-se a burguesia européia “ilustrada”. Enquanto que até muito recentemente se considerava a Bíblia inteira como o manifesto da justiça social e o “manual do proletário” (até houve estudiosos especializados em “novas leituras do Evangelho do enfoque do materialismo dialético”), agora essa mesma Bíblia não seria outra coisa que o manual do liberal o motivo de inspiração para os que acreditam em uma sociedade democrática de tipo norte-europeo. O modelo ao que a Igreja deveria adequarse, já não é o soviete, mas o Parlamento eleito por sufrágio universal. Antes, segundo a opinião de alguns eclesiásticos, toda a obra de Marx-Engels tinha que ser a base de uma nova religião universal ao serviço da justiça. Agora-em opinião de seus seguidores - a nova religião capaz de unir aos homens é unicamente a dos direitos humanos, do lema liberté, égalité, fraternité. Portanto, profetas do Verbo já não são os bolcheviques, mas esses jacobinos e girondinos para quem o marxismo dirigiu, durante mais de um século, duras injúrias, tratando-os como às moscas no carro da burguesia. Vantagens da idade: como já conheci as intransigências “proletárias”, não me deixo comover pelos atuais entusiasmos “liberais”. Ouvi-os quando arremetiam contra os iniciadores-franceses ou americanos-da “democracia formal” do 1700. Como poderia me impressionar seu amor atual pelos réprobos de ontem, seu renegar de 1917 para “voltar a descobrir” o 1789? Não sou (desgraçadamente) cartuxo, mas aqui, em meu escritório, tenho o emblema daquela ordem gloriosa, que em mil anos nunca quis revisar suas regras (Cartusa numquam reformata, quia numquam deformata, por dizê-lo a sua maneira, humildemente orgulhosa: a Cartuxa nunca reformada, já que nunca foi deformada). Debaixo do emblema, o famoso lema: Stat crux, dum volvitur orbis, a cruz permanece firme, enquanto o mundo dá voltas. Não todos, certamente, estão chamados a esta aprazível imperturbabilidade, vocação de uma elite que recebeu “a boa parte, que não lhe será tirada” (Lc. 10, 42). Mas incumbe sobre todos os cristãos o dever de ser conscientes de que “o mundo dá voltas”, que a

indulgente ironia de quem sabe que os tempos mudam enquanto o Evangelho permanece igual deve combinar-se-em difícil síntese-com a atenção pela atualidade. E como hoje formam parte da atualidade aqueles “direitos do homem” que os maçons do século XVIII e os funcionários da ONU do século XX quiseram proclamar, terá que interrogar-se sobre o tema. Por que a Igreja desconfiou deles durante tanto tempo? Por que a primeira encíclica que parece aceitá-los-a Pacem in terris de 1963-preocupa-se de advertir: “Em algum ponto estes direitos provocaram objeções e foram objeto de reservas Justificadas ” ? Tentaremos esboçar uma resposta nos parágrafos que seguem. 19. Direitos de hombre 2 Vamos tratar então de esclarecer o tema, tão inflado há algum tempo, dos “direitos do homem”, tal como se entendem na Declaração de 1789 e na das Nações Unidas de 1948. Em seu significado atual, a palavra “direito” que não existe no latim clássico (o jus é outra coisa) é bastante recente. Alguns afirmam que sua origem não se remonta além dos séculos XVI-XVII. A perspectiva anterior, apoiada em uma visão religiosa, preferia falar de “deveres”. Em efeito, toda a tradição judeo-cristã também se apóia em uma “Declaração”, mas que concerne aos deveres do homem”: é o Decálogo, a lei que Deus entregou a Moisés. O mesmo Jesus não fala de “direitos”: ao contrário, protagonista positivo de suas parábolas é o servidor, que obedece fielmente a seu amo sem discussões. E um de seus maiores elogios o recebe o centurião de Cafarnaum, que expõe uma visão da vida e do mundo apoiada totalmente na obediência - portanto, nos “deveres”-e não nas reivindicações-os “direitos”-: “Porque também eu, que sou um subordinado, tenho soldados a minhas ordens, e digo a este: "Vai, e ele vai; a aquele: "Vem", e vem; e a meu criado: "Faz isto", e o faz.” “Jesus se admirou ao ouvi-lo...” (Mt. 8, 910). Inútil recordar as palavras de Paulo aos Romanos: “Todos têm que submeter-se às potestades superiores; porque não há potestade que não esteja sob Deus, e estão as que foram ordenadas por Deus. Assim o que resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem se fazem réus de julgamento” (Rom.13,1-2). Segundo Paulo, de maneira coerente com toda a estrutura bíblica, a mulher tem obrigações com o homem, o escravo com seu amo, o crente com os responsáveis pela Igreja, os jovens

com os anciões; e todos as têm um com o outro e com Deus. “Eu, por minha parte, não me aproveitei de nada disso; nem escrevo isto para que se faça assim comigo; porque melhor me fora morrer antes que ninguém me prive desta minha glória.” Isto diz o apóstolo na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor. 9, 15): portanto, se alguém puder legitimamente reconhecer-se a si mesmo algum “direito”, renunciar a este será uma “glória”. Em 1910, voltando a afirmar a doutrina católica, S.Pio X escrevia em uma carta aos bispos da França: “ preguem arduamente suas obrigações tanto aos potentes como aos fracos. A questão social estará mais perto de sua solução quando uns e outros, menos exigentes em seus direitos respectivos, cumpram seus deveres com maior precisão. “ Nesta mesma perspectiva, como cristão, encontrava-se Aleksandr Soljenitsin quando-no discurso que pronunciou em Harvard em 1978, que converteria em desconfiança a simpatia que até então lhe tinha outorgado a inteligência ocidental - pedia a todo mundo que “renunciasse ao que nos corresponde de direito”, e aconselhava “a autolimitação livremente aceita”. E seguia assim: “chegou o momento, para o Ocidente, de afirmar os deveres dos povos mais que seus direitos.” E até mais: “Não vejo nenhuma salvação para a humanidade fora da autorrestrição dos direitos de cada indivíduo e de cada povo.” Fonte de toda a tradição cristã, Soljenitsin pedia a “um mundo que só pensa em seus direitos” que “voltasse a descobrir o espírito de sacrifício e a honra de servir”. Em efeito, todos os autores espirituais nos dizem que o non serviam!, (não servirei! (e portanto “não reconheço obrigações, só reivindico meus direitos”) é o grito de rebelião de Satanás contra Deus. Tão profunda era a consciência disso entre os crentes, que o abbé Grégoiré, que entretanto foi fiel à Revolução desde o começo e votou a “Declaração dos direitos” na Assembléia Nacional pediu - mas em baldeque se elaborasse uma “declaração de deveres” paralela. De espírito religioso, inclusive em sua luta contra a Igreja, o mesmo Giuseppe Mazzini titulou assim seu “catecismo”: Os deveres do homem. Para ele tampouco podia existir liberdade, nem organização social firme e duradoura, sem passar antes pelo cumprimento do dever, de que derivavam (mas em um segundo momento) os direitos. Por outra parte, para dar complemento à doutrina cristã, não terá que esquecer (ao contrário, sse terá que ter sempre presente) que os deveres do homem têm um enfoque preciso: e é que ao homem - a cada homem, qualquer que seja seu sexo, raça e condição social-lhe reconhece um direito fundamental. É o direito a reconhecer-se filho de Deus, criado e salvo por ele, por amor gratuito; o direito inaudito de chamar Deus não só “pai”, mas

também inclusive “papaizinho”, abba. Isto muda tudo, radicalmente. Tal como se observou: “trata-se de direitos do homem que se terá que respeitar, porque todos os homens são filhos de Deus, meus irmãos, antes que direitos do homem por reivindicar.” Ou, tal como dirá um grande estudioso do pensamento católico da tradição medieval, Étienne Gilson: “Aos cristãos importam os direitos do homem muito mais que aos incrédulos, porque para estes só têm fundamento no homem, quem os esquece, enquanto que para os cristãos têm fundamento nos direitos de Deus, quem não nos permite esquecê-los.” Quanto havemos dito até aqui (e muitíssimo mais se poderia acrescentar) ajuda a entender a atitude da Igreja ante a “Declaração” de 1789. Quando, por exemplo, condena-se com facilidade o que seria uma atitude “míope” e “fechada” do Magistério frente à irrupção de novas formas de organização humana, obra-se uma censura, quer esquecer-se o que, na Bíblia, soa hoje a escândalo: recordávamo-lo citando as palavras de Paulo sobre a autoridade. Se, em palavras de Clemenceau, “a Revolução francesa é um bloco unitário: toma ou se deixa”, a Bíblia também é um “bloco unitário” e terá que ter em conta todas suas palavras. Ante o giro revolucionário de finais do século XVIII, terá que enfrentar-se a uma perspectiva que, pela primeira vez na história não só do cristianismo, mas também de toda a humanidadesendo as demais religiões concordes, neste aspecto, com a perspectiva cristã-afirmava que a origem e a legitimidade do poder não derivava de Deus mas sim do povo e de sua vontade, expressa por maioria em eleições. Terei que aceitar que a radical igualdade de natureza entre os homens (que é um dos aspectos fundamentais da Boa Nova) levava consigo a igualdade prática dos direitos sociais: o que não era plausível em uma perspectiva essencialmente “hierárquica” (ou, melhor, “orgânica”) como a cristã. Paulo, enquanto anunciava a grande mensagem segundo o qual já não há “nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”, também ensinava-sendo a sociedade dos filhos do Pai um só corpo no que cada membro tem sua função-que há membros subordinados a outros; e todos estão subordinados a Cristo. O problema era (possivelmente é) muito mais complexo do que querem acreditar hoje alguns católicos. A Igreja não é proprietária, a não ser guardiã e servidora de uma mensagem com a que deve confrontar-se continuamente, para adequar-se a ela. E essa mensagem lhes parecia, a esses nossos irmãos na fé, em contradição com o que o “mundo” (pelo menos, o de uns intelectuais) começava a afirmar. Mas também havia outras objeções que atuavam, e que possivelmente

seguem atuando, embora muitos não parecem ser muito conscientes disso. É um tema ao que voltaremos em outro apartado. 20. Direitos de hombre 3 Aos problemas gerais (dos que falamos) expostos pela “Declaração dos direitos do homem” de 1789 e a de 1948, outros se acrescentavam - e se acrescentam - quando se examinam concretamente os textos. O texto de 1789 diz: “A Assembléia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão. Artigo 1: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.” Esse “Ser Supremo” (o Deus sem cara e inacessível no Céu do deísmo dos ilustrados, o “Grande Relojoeiro” de Voltaire, o “Grande Arquiteto do Universo” dos maçons) é a única referência “religiosa”. Mas é uma reverência puramente ritual a Algo (mais que a Alguém) que está sobre as nuvens, que não tem nada que ver com o que os homens estabelecem autonomamente, apoiando-se só naquele livre “pacto social” que, para o Rousseau, é a única base da convivência humana. Outra coisa é o Bill of Rights, aquela “Patente de direitos” proclamada doze anos antes, em 1776, pelos constituintes americanos. A Constituição dos Estados Unidos declara: “Todos os homens foram criados iguais e têm uns direitos inalienáveis que o Criador lhes outorga...”. Pese à origem estritamente maçônica dos Estados Unidos (todos os pais fundadores, como Franklin ou Washington, estiveram abertamente filiados às lojas maçônicas, e a grande maioria de seus presidentes esteve e está), o documento americano não estabelece o fundamento dos direitos do homem na vontade deste, mas no projeto de um Deus Criador. Não é casualidade que nem a proclamação de independência americana nem sua Constituição provocaram reações nos ambientes católicos. E sempre foi reconhecida a lealdade patriótica dos católicos da Federação. A diferente atitude de Roma ante a “Declaração” francesa obedeceu a que, enquanto para os americanos é o Criador quem faz aos homens iguais e livres, para os franceses os homens nascem livres e iguais porque assim o estabelece a Razão, por que eles o querem e o proclamam. Irmãos: mas sem pai. O paradoxo é ainda mais evidente na “Declaração” da ONU: aqui, para conseguir o maior consenso (mas ainda assim os países muçulmanos não quiseram aderir-se: mulheres e escravos, para o Corão, não são e não podem ser “iguais” a quem é homem e livre) eliminou-se qualquer referência a esse inóquo “Ser Supremo”. Diz o texto das Nações Unidas em seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais por

dignidade e direitos.” Eles estão dotados de razão e consciência e devem atuar uns para os outros com espírito de fraternidade .” Aqui também nos encontramos ante o “dever” de uma fraternidade sem paternidade comum. Não se diz portanto, onde estriba este “dever”, por que terá que respeitá-lo, nem quer dizer. É o drama de toda moral “laica”: um “por que escolher o bem em lugar do mal?” que fica sem nenhuma resposta razoável. Em efeito, a “Declaração” das Nações Unidas é possivelmente o documento internacional mais violado e ludibriado de toda a história, inclusive por parte de governos que, enquanto pisam em todos os direitos do homem, que solenemente votaram e aceitaram se sentam e pontificam naquela mesma Assembléia de Nova Iorque. É suficiente dar uma olhada ao relatório anual da Anistia Internacional: leitura aterradora que nos ensina a eficácia dos “compromissos morais” e das declarações de liberdade igualdade e fraternidade que só se apóiam na “razão” e não derivam de Alguém cuja lei transcenda ao homem. Que este resultado fora inevitável já o tinha previsto a Igreja, confirmando de fato uma desconfiança secular. antes de ser proclamada a “Declaração” da ONU, o Osservatore Romano (15 de outubro de 1948) publicava um comunicado oficial, hoje completamente esquecido, escrito, segundo uma atribuição nunca desmentida, por Pio XII. Observava-se nele, entre outras coisas: “Não é portanto Deus, mas o homem, quem anuncia aos homens que são livres e iguais, dotados de consciência e inteligência, e que devem considerar-se irmãos. São os mesmos homens que se investem de prerrogativas das que também poderão arbitrariamente despojar-se.” Uma crítica na linha da tradição. Já recordamos como a formulava Étienne Gilson em 1934. Confirmando a negativa de levar a sério uma “Declaração” cujo efeito principal parecia o aumento da hipocrisia, mais que da fraternidade entre os homens, o Papa Pacelli nunca mencionou o documento da ONU nos dez anos que restavam. E quando João XXIII, em 1963, publicou a Pacem in terris, citou aquele texto, mas (o recordávamos) preocupando-se de advertir que “em algum ponto esta Declaração provocou objeções e foi objeto de reservas justificadas”. Interrogado a propósito disto, o Papa Roncalli disse que de todas as “reservas” e “objeções” a principal era precisamente “a falta de fundamento ontológico”: ou seja, os direitos humanos apoiados exclusivamente no terreno brando e falacioso da boa vontade do homem. Olhando o presente, já se sabe com quanta energia e paixão João Paulo II proclama esses “direitos” no mundo, mas sua adesão-confirmada abertamente em ocasião de 40 anos da ONU - não está falta de críticas.

Só dois exemplos. O primeiro, a carta de 10 de dezembro de 1980 aos bispos do Brasil: “Os direitos do homem só têm vigor lá onde sejam respeitados os direitos imprescritíveis de Deus. O compromisso para aqueles é ilusório, ineficaz e pouco duradouro se se realizar à margem ou no esquecimento destes. “ Outro exemplo: o discurso em Munique, em 3 de maio de 1987: “Hoje em dia se fala muito sobre direitos do homem. Mas não se fala dos direitos de Deus.” E seguia: “Os dois direitos estão estreitamente vinculados. Lá onde não se respeite a Deus e sua lei, o homem tampouco pode fazer que se respeitem seus direitos. Terá que dar a Deus o que é de Deus. Assim só será dado ao homem o que é do homem.” Como falava em ocasião da beatificação de um jesuíta vítima do nazismo, João Paulo II continuava: “Nós já comprovamos claramente, também na conduta dos dirigentes do nacional-socialismo que sem Deus não existem sólidos direitos para o homem. Eles desprezaram a Deus e perseguiram a seus servidores; é assim trataram inhumanamente aos homens. “ A propósito do nazismo, terá que dizer (sem tirar nada ao horror hitleriano) que em seu caso, os mesmos Estados que quiseram a “Declaração” de 1948 e que hoje celebram o segundo centenário da de 1789 passaram por cima o artigo 11 da primeira lei e do artigo 8 da segunda. Diz o texto da ONU “Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento que se cometeram, não constituíam ato delitivo segundo o direito nacional e internacional.” E o texto da Revolução: “Ninguém pode ser condenado se não é em virtude de uma lei estabelecida e promulgada com antecedência ao delito. “ Eminentes Juristas de todo o mundo, com garantias de objetividade, assinalaram que, à luz da proibição absoluta de uma lei retroativa, os processos contra os líderes alemães (começando pelo processo do Nuremberg) e do Japão derrotado violam aquelas “Declarações”. Em efeito, uma vez terminada a guerra - e expressamente, para estes processos - definiram-se as figuras (desconhecidas até então) do “crime contra a humanidade” e do “crime contra a paz”, por cuja violação-cometida quando as figuras jurídicas ainda não existiam- aqueles líderes foram condenados à pena capital ou a cadeia perpétua. Que fique claro: do ponto de vista moral, estes tipos mereciam semelhante fim. Mas a nível jurídico é outro assunto (sem esquecer que, uma vez mais passando por cima do direito, os juízes - representantes dos vencedores - eram parte em causa e não magistrados imparciais). É um exemplo mais de que João Paulo II, como seus predecessores, recorda: apoiado exclusivamente no homem, todo “direito do homem” está em poder do homem, sofre impunemente violações e exceções e pode ser manipulado segundo a conveniência política. 21. Direitos do homem 4

Temos a cabeça, diz Pascal, para que “procuremos as razões dos efeitos”. Sem ficar, portanto, no que acontece, mas nos interrogando a respeito das causas, freqüentemente não tão evidentes. Um dever de lucidez-acrescenta esse grande-que incumbe especialmente aos cristãos, a quem em efeito lhes disse: “Vós sois o sal da terra...Vós sois a luz do mundo” (Mt. 5, 13-14). Agora bem, deveria estar claro que as “razões” de muitos “efeitos” que ocorrem fora e dentro da Igreja estão em poucas, mas decisivas, palavras. A “Declaração dos direitos do homem” de 1789 proclama no artigo 3: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer uma autoridade que não derive expressamente dela.” E, no artigo 6: “A lei é a expressão da vontade geral. ” A “Declaração universal de direitos humanos” das Nações Unidas, em 1948, confirma e faz explícito no artigo 21: “A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos. Esta vontade tem sua expressão em eleições honestas que devem realizar-se periodicamente, com sufrágio universal igual e voto secreto.” Conforme vimos já em três “capítulos”, estas duas “Declarações” representam quase a Bíblia de uma nova religião: a religião do homem, onde todos poderiam-melhor, deveriam-convergir. Uma base comum para crentes e não crentes, para construir juntos uma sociedade diferente e melhor. Mas ainda não falamos - salvo algumas antecipações - do motivo principal pelo qual o pensamento cristão (e especialmente católico) resistiu-se durante tanto tempo a aceitar em seu conjunto e sem reservas “Declarações” como as da Revolução francesa e das Nações Unidas. Nelas, em efeito, considera-se ilegítima e arbitrária qualquer autoridade que não derive expressamente do povo através do voto. A lógica dos artigos citados (que são o ponto central desses textos, o princípio unificador de todo moderno “direito do homem”) rechaça qualquer autoridade que não seja legitimada por eleições livres, periódicas, universais. Terá que opor-se, portanto, ao que não é “democrático” neste sentido. Mas em todas as sociedades humanas, de qualquer época e qualquer país, existem autoridades “naturais” que não derivam do artifício de eleições: a família, por exemplo, onde os pais não são escolhidos pelos filhos, e, entretanto, legitimamente pretendem autoridade sobre eles. A escola, onde o professor exerce uma autoridade que não deriva do sufrágio dos alunos. A mesma pátria, que não é fruto de livre eleição, mas sim de

um “destino” (nascer aqui e não lá); e, entretanto, inclusive as constituições mais avançadas lhe outorgam tal autoridade, que nos pode pedir até o sacrifício da vida em sua defesa. De fato, a partir de 1789-e de maneira cada vez mais acelerada desde 1948-a lógica da “democratização” de tudo e a todo custo chegou a afetar a estas realidades, provocando atitudes de oposição à autoridade da família, da escola, da pátria e de tudo o que não deriva de sufrágio universal. Mas entre estas realidades “não-democráticas” estava e está sobretudo a Igreja, com sua pretensão fundamental: uma autoridade, a sua, que não vem de abaixo, do “corpo eleitoral”, mas sim de cima, de Deus, da Revelação em carne e palavras, que é Cristo. Tanto é assim, que um ano depois de proclamar os “direitos do homem”, a Revolução, com a “Constituição civil do clero” de 1790, reorganizava a Igreja segundo os princípios “democráticos”, os únicos princípios legítimos: supressão das ordens religiosas (consideradas contrárias aos direitos humanos) e eleição de párocos e bispos, feita por todo o corpo eleitoral, incluídos, portanto, não-católicos e ateus. Logo, quando as tropas francesas ocuparam Roma, em seguida aboliram o papado, que era “um poder arbitrário, por não derivar do sufrágio universal”. Nenhuma religião é “democrática”, obviamente (não há votação sobre Deus, se existir ou não; sobre as obrigações e deveres que, segundo a fé, Ele impõe aos homens). Menos “democrático” ainda o cristianismo, segundo o qual o homem foi criado por indiscutível vontade de Deus. O qual, logo, escolheu a um povo para lhe impor uma lei que não tinha sido concordada nem legitimada por eleições: não era uma “Declaração de direitos”, a não ser aquela “Declaração de deveres do homem” que é o Decálogo. Jesus é justo o contrário de um “eleito pelo povo”: “Por Ele o mundo tinha sido feito, e o mundo não o conheceu”; “Ele veio ao seu, e os seus não o receberam” (Jn. 1, 10-11). Pilatos propôs uma espécie de referendum “democrático” a uma representação do povo, reunido com seus chefes: o resultado foi negativo para o candidato, eliminado por maioria em benefício de Barrabás. Jesus, submetido a livres eleições, não teria aprovado os “exames de Messias” nem sequer entre seus discípulos, tão contrários a seu destino que o “porta-voz da base”, Pedro, é duramente reprovado “porque não sente as coisas de Deus, mas as dos homens” (Mt. 16, 23). A “Constituição” do cristão, o “sermão da montanha” não o pede o povo-que, ao contrário, desconcerta-se frente a ele-, mas sim lhe propõe com um ato unilateral. E tampouco é democrática a estrutura da Igreja, que não se apóia em eleições, a não ser nos Apóstolos, a quem lhes recorda: “Vós não me escolhestes ; mas Eu vos escolhi” (Jn. 15, 16). O qual é justo o contrário do princípio que legitima a autoridade segundo todas as modernas declarações

dos direitos do homem. Que, aceitos sem as necessárias reservas e objeções, levam por necessidade lógica, na Igreja, a aquelas mesmas conseqüências às que chegaram os revolucionários. É difícil negar coerência a esses teólogos que pedem a “democratização” da Igreja; onde não somente todas as autoridades (do vice-pároco ao papa) deveriam ser legitimadas por eleições do “povo de Deus” mas também o dogma, expressão de uma intolerável mentalidade hierárquica, deveria ceder o passo à livre opinião e a moral deveria ser submetida a periódicos referenduns. Terão que ser conscientes de que a aceitação de uma determinada mentalidade por parte católica leva longe da estrutura da fé, que entretanto se diz querer seguir praticando. Fazem falta lucidez e coerência: existe, em todas as coisas (repetimolo), uma relação de causa e efeito que parece ignorar, em troca, quem com superficialidade pensa poder abraçá-lo tudo e o contrário de tudo. 22. Justiça para o passado Preocupamo-nos muito pela justiça no presente, aqui e agora. Mas muito menos pela justiça no futuro e no passado. Justiça para o futuro é respeitar os direitos dos que virão depois de nós, sentir a responsabilidade de lhes entregar um mundo que não esteja completamente devastado e envenenado, que ainda conserve alguns de seus dons originários de beleza e fecundidade. Mas também existe uma justiça para o passado, para os que viveram antes de nós: uma justiça que nem sequer os crentes respeitam de todo. No ano do segundo centenário da Revolução francesa, por exemplo, muitos católicos - entre eles algum bispo - esqueceram-se com embaraçoso si1êncio, dos três mil padres assassinados, da multidão de religiosas violadas e freqüentemente torturadas até a morte das dezenas de camponeses esquartejados em províncias que se revoltavam em nome de uma religião a que não queriam renunciar. Não só existem os horrores de La Vendée, de cujo extermínio sistemático os historiadores falam como o primeiro genocídio da história moderna, onde os jacobinos anteciparam, contra aqueles camponeses firmes em sua fé, os intentos de “solução final” dos nazistas contra os judeus. Em todas partes houve massacres e perseguições de crentes: primeiro na França, e depois em outros países, inclusive na Itália, lá onde chegou a Revolução. Mas que La Vendée resultasse tão indômita também se deve a que tinha sido teatro de pregações de um dos Santos mais apreciados por João Paulo II, que, dizem, considera a possibilidade de

proclamá-lo doutor da Igreja: Louis-Marie Grignon de Montfort. Segundo o esquema usualmente aceito, o oeste da França se revoltaria contra a Paris dos jacobinos, empurrado pelos aristocratas e o clero que queriam manter seus privilégios. É uma mistificação, desmascarada já há algum tempo mas ainda apresentada nos manuais de escola frente à evidência dos documentos: estes demonstram, sem que possa haver dúvidas, que a sublevação começou de baixo, do povo, que freqüentemente, com sua iniciativa, arrojou as hesitações do clero e dos nobres (muitos dos quais preferiram fugir ao estrangeiro em lugar de assumir suas responsabilidades). Insurreição popular, pois, e não “política” -embora acompanhada de contradições e enganos, como todo o humano-, e nem sequer “social”, mas fundamentalmente religiosa, contra os intentos de descristianização que uma minoria de ferozes ideólogos realizava na capital. Nenhuma das ideologias modernas teve uma base popular: o marxismo nunca chegou ao poder através de eleições livres e, lá onde estava no poder, caiu sem que ninguém movesse um dedo para defendê-lo; em 25 de julho de 1943, para acabar com o fascismo bastou um anúncio na rádio e um pôster nas esquinas das ruas; com a queda de Berlim, o nazismo desapareceu. Por outro lado (isto tampouco terá que esquecê-lo, apesar das retóricas), o povo tampouco se levantou para defender o liberalismo quando Mussolini e Hitler acabaram com ele. E, para ficar na Revolução francesa o povo acolheu sem reclamos o autoritarismo napoleônico que sufocou os “imortais” princípios de 1789. A insurreição das massas em defesa do cristianismo no oeste da França (e mais tarde na Itália, no Tirol e na Espanha invadida por Napoleão) é portanto um fato único e surpreendente para os historiadores. Em todo caso é justo não esquecê-lo como ao contrário se fez durante muito tempo em nome do conformismo de alguns, que temem estar na parte “equivocada” da história. Além disso, hoje em dia, inclusive os leigos mais honestos estão cada vez menos seguros de que fora realmente “equivocada”. 23. La Vendée Já temos aqui o livro desmancha-prazeres, a implacável obra de um jovem historiador que provocou as iras da inteligência francesa, que suntuosamente patrocinada por François Mitterrand - celebrou em 1989 “glórias” e “faustos” da Grande Révolution que cumpria então duzentos anos. Estamos falando do genocídio franco francês:

La Vendée ve1lgée, de Reynald Secher. Estas terríveis páginas tiveram em seu momento algum eco em nossos jornais, mas a indústria “oficial” do livro, que entretanto vai saqueando de tudo, até o irrelevante, especialmente do francês, não tinha encontrado lugar para elas. Supriu isto uma nova e pequena editorial que - ( avis rara! - não só não esconde sua orientação católica, mas também desta inspiração quer fazer a única base, sem compromissos, de sua produção. Seu programa editorial, portanto, prevê a publicação de obras novas, originais ou traduções, mas “malditas”, ou seja rechaçadas pela ideologia dominante nas editoriais, incluída alguma que já foi, ou ainda se declara, “católica”. Mas também prevê a recuperação de obras do pensamento cristão dos séculos XIX e XX impossíveis de encontrar, muitas vezes não por falta de mercado, mas sim por falta de “simpatia” por parte de certa cultura que se declara “pluralista”, “paladina da tolerância”, enquanto está realizando uma dura censura ideológica. Esta nova editorial, na fase inicial de sua atividade - antes do livro sobre La Vendée, que mencionamos e de que falaremos mais adiante publicou outro ensaio contra-revolucionário. É o panfleto, também desmancha-prazeres, Pourquoi nous ne célébrons pas 1789, escrito por Jean Dumont, que em poucas páginas, acompanhadas por ilustrações raras da época, mostra com vigor e informação extraordinários “os falsos mitos da Revolução francesa”, tal como diz o título da tradução italiana. Em um tamanho e a um preço reduzidos aqui temos a obra de síntese que muitos leitores procuravam para esclarecer idéias (em uma perspectiva que quer ser explicitamente católica) a respeito daquela revolução cujos efeitos ainda perduram. Mas vamos ver agora Le génocide franc-français, esse livro de Secher que, pese ao obstrucionismo realizado pelo conformismo “politicamente correto”, provocou na França uma profunda comoção. Reynald Secher, o jovem autor (nascido em 1955) originário de La Vendée, foi procurar uma documentação que muitos consideravam já perdida. De fato, os arquivos públicos foram diligentemente depurados, na esperança de que desaparecessem todas as provas do massacre realizado em La Vendée pelos exércitos revolucionários enviados de Paris. Mas a história, como se sabe, tem suas astúcias assim Secher descobriu que muito material estava a salvo, conservado, às escondidas, por particulares. Além disso pôde chegar à documentação cadastral oficial das destruições materiais sofridas pela La Vendée camponesa e católica, levantada em armas contra os “sem Deus” jacobinos.

Nos mapas dos geômetras estatais da época está a prova de uma tragédia inimaginável: dez mil de cinqüenta mil casas, o 20 % das construções de La Vendée, foram completamente destruídas segundo um frio plano sistemático, nos meses em que se desencadeou a fúria dos jacobinos governamentais com seu lema aterrador: “liberdade, igualdade, fraternidade ou morte”. Praticamente todo o gado foi massacrado. Todos os cultivos foram devastados. Tudo isto, segundo um programa de extermínio estabelecido em Paris e realizado pelos oficiais revolucionários: deixar morrer de fome a quem, escondendo-se, tivesse sobrevivido. O general Carrier, responsável em chefe da operação, arengava assim a seus soldados: “Não nos falem de humanidade para estas feras de La Vendée: todas serão exterminadas. Não terá que deixar vivo a um só rebelde.” Depois da grande batalha campal em que foram exterminadas as intrépidas mas mal armadas massas camponesas da “Armada Católica”, que foram ao assalto detrás dos estandartes com o Sagrado Coração e ainda por cima a cruz e o lema “Dieu et le Roy”, o general jacobino Westermann escrevia triunfalmente a Paris, ao Comitê de Saúde Pública, aos adoradores da deusa Razão, a deusa Liberdade e a deusa Humanidade: “La Vendée já não existe, cidadãos republicanos! Morreu sob nossa livre espada, com suas mulheres e meninos. Acabo de enterrar a um povo inteiro nos pântanos e nos bosques do Savenay. Executando as ordens que me destes, esmaguei aos meninos sob os cascos dos cavalos e massacrando às mulheres, que assim não parirão mais bandoleiros. Não tenho que lamentar nenhum prisioneiro. Exterminei-os a todos.” De Paris responderam elogiando a diligência posta em “purgar completamente o chão da liberdade desta raça maldita”. O termo “genocídio”, aplicado por Secher a Vendée, desatou polêmicas, por considerar-se excessivo. Em realidade o livro mostra, com a força terrível dos documentos, que essa palavra é absolutamente adequada: “destruição de um povo”, segundo a etimologia. Isto queriam “os amigos da humanidade” em Paris: a ordem era a de matar sobretudo as mulheres, por ser o “sulco reprodutor” de uma raça que tinha que morrer, porque não aceitava a “Declaração dos direitos do homem”. A destruição sistemática de casas e cultivos ia na mesma direção: deixar que os sobreviventes desaparecessem por escassez e fome. Mas quantos foram os mortos? Secher dá pela primeira vez as cifras exatas: em dezoito meses, em um território de só 10 000 quilômetros quadrados, desapareceram 120 000 pessoas, pelo menos o 15 % da população total. Em proporção, como se na França atual fossem

assassinadas mais de oito milhões de pessoas. A mais sangrenta das guerras modernas - a de 1914-1918 - custou algo mais de um milhão de mortos franceses. Genocídio, pois; verdadeiro holocausto, e, como comenta Secher, tais termos remetem ao nazismo tudo o que puseram em prática as SS foi antecipado pelos “democratas” enviados de Paris com as peles curtidas dos habitantes de La Vendée se fizeram botas para os oficiais (a pele das mulheres, mais suave, era utilizada para as luvas). Centenares de cadáveres foram fervidos para extrair graxa e Sabão (e aqui se superou até a Hitler: no processo de Nuremberg se documentou-e as mesmas organizações judias o confirmaram-que o sabão produzido nos campos de concentração alemães com os cadáveres dos prisioneiros é uma “lenda negra”, sem correspondência com os fatos). Experimentou-se pela primeira vez a guerra química, com gases asfixiantes e envenenamento das águas. As câmaras de gás da época foram navios carregados de camponeses e padres, levados no meio do rio e afundados. São páginas, disponíveis agora, que provocam sofrimento. Mas a busca de uma verdade escondida e apagada bem vale o trauma da leitura. 24. Vinganças Dizem que “cristianismo” é viver com plenitude o presente, projetados para o futuro e mantendo firmes as raízes no passado. Hoje parecemos carecer precisamente deste último aspecto: como uma perda da memória histórica, já seja por falta de conhecimento do que nos precedeu, já seja por uma espécie de esquecimento, tão vacilantes como somos em nos reconhecer herdeiros de um passado que acreditam cheio só de infâmias e grandes traições ao Evangelho. É preciso reagir, em nome daquela verdade e aquele respeito que hoje invocamos para todos. De fato, difamar o passado é lhe faltar o respeito como se tivesse sido formado só por hipócritas preguiçosos ou brutos incapazes de entender o que só nós entenderíamos-àquela Igreja militante que nos trouxe a fé. Acaso o devido respeito só é para os “distantes” e não para nossos pais, que certamente fizeram das suas (como nós, por outra parte), mas que também escreveram uma história que João XXIII, no discurso de abertura do Concílio, definiu, em seu conjunto, como “luminosa”, fazendo um balanço do passado antes de que os padres conciliares construíssem o futuro? Para dar um exemplo, partimos de um acontecimento: a morte, em Berlim, de Rudolf Hess, o líder nazista fugido na Inglaterra, por razões ainda obscuras, ao princípio da guerra, e em seguida encarcerado. Um

tribunal tão desconcertante como o de Nuremberg o condenou à cadeia perpétua: com leis retroativas aplicadas por juízes tais como a URSS de Stalin, fiel aliado de Hitler até que o amigo o traiu; os EE. UU. de Hiroshima e Nagasaki e de crimes contra a cultura, tal como a inútil destruição de Montecassino; a Grã-Bretanha dos 250000 mortos inermes de Dresden; França, falsa ganhadora, que nos quatro anos do Vichy destacou por seu esmero antijudaísmo, que depois, em poucos meses de guerra, cobriu-se de infâmia com suas tropas coloniais e que finalmente, na espiral de vinganças posterior à libertação, conheceu mais de cem mil execuções sumárias e impunes. Aquela cadeia perpétua a Hess, interrompida só por sua morte na prisão de Berlim-Spandau reabriu o eterno debate sobre a relação entre vencedores e vencidos. Seguindo um pouco essas polêmicas, pensava no que tinha acontecido na Igreja quando seu inimigo mais implacável mordera finalmente o pó. Possivelmente nenhum déspota prejudicou tanto à comunidade eclesiástica como Bonaparte, nem mais obstinadamente tratou de apagá-la ou, não conseguindo, quis fazer dela uma larva, um dócil instrumentum regni. Pio VI, despojado de todos seus bens, morreu prisioneiro na França em 1799, e parecia impossível lhe encontrar um sucessor (“Pio Sexto e último!”, gritava a canaille). Pio VII, eleito tempestuosamente por um grupo de cardeais que puderam reunir-se em Veneza, passou a maior parte de seu pontificado de uma prisão a outra: ameaçado, isolado, enganado, testemunha impotente da destruição de sua Igreja, em uma espiral de violências e humilhações que terminou somente com a caída do tirano. A hora da vingança chegou no fim de maio de 1814, quando o Papa banido voltou para Roma no que foi um triunfo do povo. Encontrou a novecentos presos, entre franceses e colaboracionistas nativos, encerrados no Castel Sant'Angelo. Apesar dos protestos dos romanos-que tinham sofrido os vexames, a arrogância e o despojo (arquivos e pinacotecas levadas a Paris), a mobilização de jovens no exército e os altos impostosem seguida liberou seiscentos deles, e menos de dois meses depois liberou a outros mediante uma anistia. Também lhe chegaram protestos, mais potentes e ameaçadores, do restaurado no trono, rei da França, quando acolheu, visitando-a freqüentemente, à mãe de Napoleão, rechaçada por sua própria filha, a grande duquesa de Toscana, quem esperava assim ganhar o favor dos vencedores. Ao redor da Madame Mere acabou reunindo-se em Roma, única cidade que a tinha aceito, a numerosa parentela do imperador caído. O prefeito napoleônico, que tinha sido seu carcereiro em Savona, recebeu uma carta paterna de Pio VII para que se livrasse dos remorsos que o afligiam. Esse Papa, realmente “estranho” ante os olhos do mundo (e de

fato a diplomacia européia estava escandalizada), chegou a enviar uma mensagem ao príncipe regente de Grã-Bretanha para que liberasse o detento de Santa Helena, ou ao menos mitigasse sua prisão. Escrevia: “Já não pode ser um perigo para ninguém, queremos que não se converta em um remorso para alguém.” E quando lhe recordavam sua fúria contra a Igreja e sua pessoa, o velho beneditino exortava a pensar em seus lados positivos: “Há que esforçar-se para entender e perdoar.” Finalmente, quando lhe comunicaram que o detento, doente, queria um confessor, ele mesmo escolheu um padre córsico que pudesse entender melhor a seu conterrâneo em Santa Helena. E chorou com sua mãe e seus irmãos, e organizou sufrágios, quando chegou a Roma a notícia de sua morte. Tudo isto ocorria quando ainda ficavam abertas as feridas da perseguição, e a Igreja pagava o preço de desastres cujas conseqüências duraram ao menos um século; segundo alguns historiadores, até nossos dias. É sempre tão perigoso e difícil, portanto - como pretende certa vulgata que se difunde em jornais e textos de escola, e como asseguram inclusive alguns católicos, afetados por um curioso masoquismo -, remover em nosso passado? Às vezes; mas não sempre. Seguindo a um desses teólogos que tanto influíram no Concílio Vaticano II, o santo e senha do católico de hoje em dia teria que ser “enjamber seize siecles (saltar dezesseis séculos),” apagar até sua lembrança, para voltar à Igreja préconstantiniana; a única, em sua opinião, realmente evangélica e apresentável à sociedade. Além de impossível, tal propósito mostra desconhecimento da história, muito mitificada, da comunidade primitiva um olhar às epístolas de Paulo, aos cronistas eclesiásticos primitivos e aos Padres recorda que o bem vai acompanhado pelo mal-e da história que seguiu. Cortar as raízes sempre é a melhor maneira de fazer morrer uma árvore. Procuremos, pelo menos ser conscientes disso. 25. Os regicidas É a Noite entre o 16 e 17 de maio de 1793: a Convenção Nacional vota a condenação à morte do rei Luis XVI. Os votantes (com chamada nominal, portanto de forma manifesta) são 721. Deles, 361 dizem “sim” à guilhotina, 360 dizem “não”. A diferença é de um só voto, mas para o rei e a monarquia é o fim. Ilustram bem o clima em que se desenvolveram a discussão e o voto, declarações como a do deputado jacobino Legendre, quem disse estar convencido da necessidade de “degolar ao porco” e enviar logo uma parte a cada departamento, como advertência aos reacionários e exortação para os revolucionários. Danton recorda na Convenção: “Não queremos julgar ao rei, queremos matá-lo.” E Robespierre: “Vocês não são juizes, não terá que fazer nenhum processo. Decapitar ao rei é uma medida indispensável para a

saúde pública.” O abbé Grégoire, o bispo líder da Igreja cortesã, quem jurou fidelidade ao novo regime, diz: “Os reis são, na ordem espiritual, o que a gangrena é na ordem material. ” Mas às vezes os historiadores são indiscretos. E alguém se incomodou em olhar o que ocorreu com os 361 que votaram a guilhotina para o que chamavam, despectivamente, “o cidadão Luis Capeto”. Deles 74 morreram de forma violenta: quase todos, a sua vez, degolados. É a revolução que, como se sabe, sempre devora a seus próprios pais e filhos. Outros morreram por outras causas. Mas dos sobreviventes, 121 procuraram e obtiveram cargos públicos, às vezes de muita responsabilidade, sob o império de Napoleão. Chamaram-se a si mesmos, com orgulho, “regicidas”; e na petição de condenação à morte para Luis XVI tinham visto (isso disseram) o fim de todos os privilégios, os direitos divinos, as desigualdades, as autoridades que não derivavam do povo. Mataram pois a um rei talvez inepto, mas pacífico; e poucos anos mais tarde ficaram ao serviço de um imperador feroz que tinha querido ser coroado pelo Papa (o que nunca pretendeu a antiga dinastia), e tentava restaurar os faustos monárquicos do Roi Soleil (Rei Sol). Coisas que é preciso recordar. Mas que não surpreendem a quem conhece um pouco aos homens. Apartir, obviamente, de si mesmo. 26. Vandalismo Vandalismo: (Tendência a devastar e destruir algo com obtusa maldade, especialmente se for bonito ou útil.” Assim o define o Dicionário Zingarelli, que não recorda a origem do substantivo, limitando-se a mencionar a tribo bárbara que saqueou Roma no ano 455. “Vândalos” era o antigo nome desses terríveis germanos. Mas só em 1794 nasceu a palavra “vandalismo”, por obra do Henri-Baptiste Grégoire, o padre que, desde o começo até o final, esteve com a Revolução francesa; que foi um dos promotores daquela Constituição Civil do clero que provocou morte, deportação ou desterro a milhares de seus irmãos que se negaram a jurá-la (os “refratários”); que quis ser eleito bispo “democrático e constitucional” de Bois; que foi um dos mais intransigentes em pedir a guilhotina para Luis XVI (“Os reis-disse-são na ordem moral o que os monstros são na ordem material”); que morreu muitos anos depois, em 1831, declarando-se ainda e sempre católico, mas negando-se a reconciliarse com Roma. E ao que em ocasião das celebrações de 1989 o presidente Mitterrand fez transladar a uma tumba do Panteão, entre as glórias da França.

A história ensina que sempre há “capelães” ao lado de qualquer personagem e qualquer movimento sócio-político que chega ao poder ou que de alguma forma consegue atenção e prestígio. Para seguir em nosso século, vimos padres propondo um certo “modernismo” religioso, também em complacente resposta ao liberalismo político, e portanto como maneira de alistar-se nas filas da burguesia triunfante antes da Grande Guerra. Vieram depois os padres fascistas, que desfilavam em formação frente a Mussolini na via do Império, levantando o braço na saudação romana e luzindo medalhas de guerra na batina. Até o fascismo agonizante da república de Salo teve seus “assistentes espirituais” virulentos e antisemitas, às vezes, como aquele dom Calcagno com sua Cruzada itálica, que acabou fuzilado em uma praça de Milão. Logo foi o turno dos padres comunistas ou pelo menos simpatizantes e eleitores, quando não escolhidos. Sopram agora outros ventos, e aqui aparecem novos capelães para os novos astros: os socialistas da máxima eficiência produtiva no público e o hedonismo no privado, ou os democratas-liberais, que voltaram com grande potência e glória. Sempre foi assim, desde a época de Constantino (possivelmente inclusive antes), e assim será sempre: o importante é ser conscientes disso e não deixar-se impressionar por tanto revoar de batinas-metafóricas, já se sabe, pois se abandonaram os hábitos eclesiásticos - ao redor de homens e ideologias beijados pela fortuna, o poder ou simplesmente a moda. Mas sem esquecer nunca que a decisão de estar no bando que parece “justo” em um momento dado não sempre se apóia no oportunismo, ou no desejo de ser aceitos, arrebatar um pouco de aplausos, livrar-se dos perigos e a solidão de quem vai a contra a corrente. Muitas vezes se apóia na boa fé de quem trata de evitar maiores problemas à Igreja e aos crentes, atuando do interior do palácio. Apóia-se na consciência, embora deformada, de que o cristianismo não é uma doutrina fora do tempo, flutuante no ar, por cima da história, mas o anúncio de um Deus que tomou tão a sério esta história para comprometer-se com ela até o final, assumindo não somente o aspecto físico de homem, mas a própria natureza humana. “O décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, Filipo seu irmão tetrarca da Ituréia e da Traconítide...” (Lc. 3, 1): mensagem histórica como nenhuma outra religião, o Evangelho pede que junto à tensão vertical, para o Céu, haja também um empenho horizontal, no pó (que freqüentemente se converte em lodo) da Terra. Desta necessidade de “comprometer-se”, de “sujar as mãos” com a

história, também derivam, indevidamente, o que poderiam parecer, e freqüentemente são, enganos, debilidades inaceitáveis, amizades daninhas ou inoportunas. E quem sabe se isto não forma parte do plano de um Deus providente, que para chegar a realizar seus fins necessita também de enganos e divisões entre os que acreditam servi-lo; quem sabe, sobretudo, o que há nos rins e e no coração” de quem toma determinadas decisões, que não podemos “esquadrinhar” nós, a não ser só o “que julga com Justiça”. Mas voltemos para nosso abbé Grégoire, o capelão da Revolução, o chefe moral da Igreja patriótica, e a sua invenção linguística, “le vandalisme”. Figura complexa, enigmática, mas em primeiro plano, que não podemos encerrar no esquema do padre servil por medo ou afã de honras, o bispo “constitucional” de Blois ousou selar com este termo - no salão da Convenção dizimada pela guilhotina - a fúria infernal que se desatou sobre o patrimônio artístico francês. “Neste aspecto, as perdas foram irremediáveis. Depois da tormenta, a França ficou mais pobre. Os tesouros mais nobres da arte cristã foram afetados ou destruídos para sempre. Hoje ao visitante lhe falam de "restaurações". Mas em realidade em muitos casos se trata de reproduções.” Assim escreve em La Chiesa e la Rivoluzione francese (Edições Paulinas) o historiador Luigi Mezzadri. Quem além da perda dos tesouros de muitas bibliotecas eclesiásticas, recorda a completa destruição (e, precisamente, por puro “vandalismo”) dos mosteiros de Cluny e Longchamp, a abadia de Lys, os conventos do Saint-Germain-dê-Prés, Montmartre, Marmoutiers, a catedral de Macon, a de Boulogne-sur-Mer, a Sainte Chapelle de Arras, o castelo dos Templários no Montmorency, os claustros de Conques e outras infinitas obras de grande antiguidade e beleza. Em uma cidade como Troyes houve quinze Igrejas destruídas, em Beauvais doze, em Chalons sete; e a triste contagem poderia seguir páginas e páginas, sem esquecer que virtualmente não houve lugar de culto, em cada aldeia, que não fora invadido e saqueado. Em Avinhão não se limitaram a devastar o palácio dos Papas mas sim, cegados pelo ódio, alimentaram durante dias uma grande fogueira com os móveis preciosos e, sobre tudo, com as maravilhosas obras da pinacoteca. Daqui, o veemente protesto do bispo Grégoire, que entretanto era pai e filho daquela revolução iconoclasta. Resulta difícil, além disso, justificar esta destruição atribuindo à excitação dos ânimos rebeldes. O pior, de fato, ainda tinha que chegar. E chegará com Bonaparte. Quem completou o desastre suprimindo ordens e congregações religiosas lá onde chegava e expulsando padres e monjas de seus conventos, mosteiros e Igrejas. Em 1815, vinte e seis anos depois

daquele funesto 1789, não só a França, mas também a Europa inteira, era um campo desolado, uma extensão de ruínas amontoadas lá onde os homens tinham trabalhado durante séculos para criar beleza. Mas que tinha a grave culpa de ter sido promocionada para finalidades religiosas, para dar glória a Deus e resplendor visível ao culto e a oração. Remeter assim com uma palavra - vandalismo - a uma população Bárbara-os vândalos-não parece absolutamente casual: nunca, da época das invasões e a decadência do Império romano do Ocidente, o continente tinha conhecido tão parecida e inútil destruição de belezas.

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