EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO (BILDUNG) EM NIETZCHE José Fernandes Weber*
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A partir do estudo das obras de Friedrich Wilhelm Nietzsche, mostrase a existência de duas maneiras distintas, embora complementares, de se pensar a relação entre a formação do homem e a cultura, quais sejam: a primeira, apresentada no escrito Sobre o Futuro dos nossos Estabelecimentos de Ensino, em que o autor submete à crítica as tendências da “máxima extensão” e da “retração ou diminuição” da cultura; a segunda, desenvolvida nos escritos posteriores a obra Assim Falou Zaratustra, em que a análise de tal relação é deslocada do âmbito das instituições culturais e formativas para o âmbito do destino individual, ao modo do famoso “conhece-te a ti mesmo” socrático, em que ocorre o advento do tema da experimentação. Palavras-chave:
Nietzsche;
Filosofia
e
Educação;
Formação
(Bildung). No início de 1872, quando a decepção pela acolhida negativa de sua primeira obra O Nascimento da Tragédia, ainda não se abatera com toda a intensidade sobre o jovem professor de filologia, Nietzsche apresentou uma série de conferências organizadas pela “Sociedade Filológica”
da
Basiléia
tendo
por
tema
a
situação
dos
Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Doutorando na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Profa. Dra. Lídia Maria Rodrigo. Este trabalho beneficiou-se de uma bolsa de “Estágio de Doutorando no Exterior” (SWE), concedida pela CAPES e realizado entre maio de 2004 e fevereiro de 2005 junto a Universidade Nova de Lisboa (UNL) sob orientação do Prof. Dr. António Marques. Telefone: (43) 33288396 / (43)3371-4486 (Departamento de Filosofia/UEL) Endereço: Rua Jerusalém, nº. 99, Bloco 1, Apartamento 202, Residencial do Lago III / Gleba Palhano / Londrina / PR CEP: 86050-520 *
2
estabelecimentos de ensino e o seu futuro1. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino2 - título dado por Nietzsche a este conjunto de conferências - pode ser interpretado como um libelo de repúdio às tendências incorporadas aos estabelecimentos de ensino alemães; um escrito em que aflora grande lucidez sobre as conseqüências perniciosas de uma tendência cada vez mais intensa da cultura alemã. Elaboradas no período imediatamente posterior à publicação de NT, as conferências sobre os estabelecimentos de ensino guardam uma proximidade muito grande com as questões desenvolvidas por Nietzsche nos últimos parágrafos daquela obra e com o conjunto das suas análises filosóficas daquele período. O conjunto temático dos seus primeiros escritos pode ser esquematicamente enquadrado em três registros, a saber, “o trágico na Grécia pré-platônica”, “a crítica da cultura alemã” e “o projeto para o renascimento do espírito trágico na
Alemanha
do
século
XIX”.
As
conferências
sobre
os
estabelecimentos de ensino situam-se no interior deste “contexto temático”3. Nas suas conferências, em raras ocasiões Nietzsche referiu-se diretamente aos acontecimentos político-militares do ano de 1870/1 Guerra
franco-prussiana
e
unificação
dos
Estados
alemães
-
determinantes para a nova configuração dos estabelecimentos de Nietzsche pronunciou estas conferências nas seguintes datas: Primeira conferência: 16 de janeiro de 1872; Segunda conferência: 06 de fevereiro de 1872; Terceira conferência: 27 de fevereiro de 1872; Quarta conferência: 05 de março de 1872; Quinta conferência: 23 de março de 1872. De acordo com Scarlett Marton, “Mais duas conferências ainda eram esperadas. Dores de garganta impedem o jovem professor de proferi-las, e ele se alegra com o contratempo. Wagner insiste para que Nietzsche as conclua e publique, e ele não se deixa convencer.” (A este respeito, conferir: Marton, 1993, p. 23). 2 Doravante EE. 3 A dimensão crítica das conferências permite a afirmação de que, embora ainda não utilizasse o estilo polêmico como forma de expressão - o que somente aconteceria nas Considerações extemporâneas - o escrito das conferências sobre os estabelecimentos de ensino já trazia a marca do projeto de crítica da cultura alemã, convertido em programa nas extemporâneas. 1
3
ensino. Apesar disto, as experiências alemãs “recentes” encontram-se pressupostas. Em primeiro lugar, dada a proximidade temporal, a menção
àqueles
conhecimento
acontecimentos
do
público;
Em
foi
dispensada
segundo
pois
lugar,
no
eram
do
próprio
desenvolvimento argumentativo, ele tratou de mostrar que a situação presente da escola alemã - por ele considerada decadente - figurava como conseqüência inevitável das “novas tendências da cultura alemã”, sem contudo nomear diretamente as “causas históricas”. Quais seriam tais tendências? O próprio Nietzsche o diz: Dos corrientes aparentemente contrapuestas, de acción igualmente perjudicial y concordantes en sus resultados, predominam en la actualidad en nuestras escuelas [...]: por un lado, la tendencia hacia la máxima extensión de la cultura, y, por otro lado, la tendencia a disminuirla y debilitarla. De acuerdo con la primera tendencia, hay que llevar la cultura a ambientes cada vez má amplios; en el sentido de la segunda, se pretende de la cultura que abandone sus supremas pretensiones de soberanía, para ponerse al servicio de otra forma de vida, es decir, a la del Estado. (1980, p. 28-29).
Resultado dos intensos processos de transformação pelos quais passava a Alemanha naquela época, tais tendências eram a suma dos novos tempos, segundo Nietzsche, tempos difíceis e obscuros para a cultura4. A primeira tendência - máxima extensão da cultura A partir da segunda metade do século XIX, em virtude dos movimentos revolucionários, intensificaram-se na Europa as reivindicações de uma parcela significativa da população que passou a exigir maiores possibilidades de acesso, de participação e usufruto da vida social, tanto naquilo que diz respeito às atividades produtivas - “direitos trabalhistas” e possibilidade de empreendimento - quanto nos chamados “bens culturais”, em que o acesso a instrução desempenhava uma das reivindicações mais constantes. Na Alemanha, a preocupação com a instrução para a população não era um assunto novo, estando presente já nos escritos de Lutero e no grande empreendimento de reforma dos estabelecimentos d ensino levada a cabo por Wilhelm von Humboldt. Porém, a partir da unificação esta questão assumiu uma disposição peculiar na medida em que a partir de então, dada as especificidades da nova situação social, os princípios que sustentavam a proposta de Humbolt já não satisfaziam mais as exigências impostas pelas novas “necessidades sociais” impostas pelos novos tempos. As duas tendências diretivas das escolas alemãs - nos termos de Nietzsche, “da 4
4
representava a intensificação do princípio do acesso universal à educação como direito incondicional do homem, na medida em que à educação cabia a tarefa da formação dos valores humanos próprios a sociedade em que o indivíduo vivia. A princípio, a recusa de Nietzsche não se dirige ao aspecto formador da educação mas à ligação intrínseca que existia entre a formação e o caráter subjacente da universalização, a saber, o fato de que a universalização surgia como corolário do processo de formação do Estado nacional alemão. Quer dizer, o que fundamentava esta tendência não era o apreço pela cultura,
mas
a
incontornável
necessidade
de
estender
indiscriminadamente a um número maior de pessoas possível o acesso, não aos bens culturais, mas aos conhecimentos elementares para o ingresso numa atividade produtiva, afinal a consolidação do Estado recém formado dependia da ocupação laboriosa dos seus membros. Assim, ao recusar este princípio, Nietzsche não recusou a possibilidade de acesso às escolas ao conjunto de membros da nação alemã, e sim, procurou mostrar que a universalização do acesso à escola não implica na garantia do acesso à cultura. Mais, a universalização implicou no caso alemão, segundo ele, na banalização dos bens culturais, na medida em que implicou num acesso com pretensões notadamente utilitárias. Esta observação permite apontar para uma concordância e uma vinculação intrínseca entre aquelas duas tendências, pois a exigência de universalização da educação encontra sustentação e razão de ser na necessidade do Estado alemão em preparar funcionários para as ocupações do Estado e da indústria nascente. Se há um vínculo entre as duas tendências, em EE a crítica recai de forma mais intensa sobre a chamada diminuição ou debilitação da cultura, na medida em que ela surge como corolário da primeira cultura alemã” - identificadas por Nietzsche dizem respeito a esta nova situação social. Quer dizer, a máxima extensão e a diminuição (retração) da cultura servem de identificadores dos processos sociais pois representam tendências sociais no interior das instituições culturais.
5
tendência. Projetar os institutos de formação como espaço com vistas a instrumentalização para a mera sobrevivência material dos alunos, implicava em incorporar os dogmas da economia política aos institutos de formação, caracterizados por ele da seguinte maneira Conocimiento y cultura en la mayor cantidad posible producción y necessidades en la mayor cantidad posible -, felicidad en la mayor cantidad posible: ésa es la fórmula [...] En este caso vemos que el objetivo último de la cultura es la utilidad, o, más concretamente, la ganancia, un beneficio en dinero que sea el mayor posible. (Nietzsche, 1980, p. 58).
No seu entender, uma educação que tem como finalidade um emprego - aspecto utilitário - restringe-se inevitavelmente aos domínios da preparação para a sobrevivência, não possuindo meios nem competência para extrapolar o âmbito técnico da mera utilidade material. Ou seja, transforma-se numa técnica qualquer de defesa na luta pela sobrevivência material.5 Neste sentido, Nietzsche diz que existem dois tipos de instituições educativas: “instituiciones para la cultura y instituiciones para las necessidades de la vida” (Nietzsche, 1980, p. 133). Os estabelecimentos de ensino do seu tempo - escolas técnicas e o próprio bacharelado, visto que estava desacreditado pois perdera a sua orientação primitiva - pertencem a esta segunda espécie,
faltando
à
Alemanha
“una
especie
de
instituiciones
educativas: la de las instituiciones de la cultura.” (Nietzsche, 1980, p. 132). A princípio, a crítica de Nietzsche àquelas duas tendências poderia conduzir a conclusão de que as escolas técnicas, por serem prejudiciais a cultura, deveriam ser eliminadas. Porém, encontramos uma posição bastante diversa quando lemos o texto das conferências. Diz ele: “Desde luego, esto no es un reproche para las escuelas técnicas,
que
honorablemente, 5
han
seguido
tendencias
hasta bastante
ahora, más
A este respeito, conferir: Nietzsche, 1980, p. 129.
tan
feliz
modestas,
como pero
6
extraordinariamente necessarias” (Nietzsche, 1980, p. 119). Aqui existe uma indicação bastante precisa para aquilo que Nietzsche recusa nas tendências normativas da educação alemã do seu tempo. No
âmbito
da
organização
das
especificidades
dos
cursos,
a
conseqüência da efetivação daquelas duas tendências foi a supressão da diferença entre o bacharelado, claramente voltado ao estudo das humanidades, e as escolas técnicas, preocupadas com a formação para os empregos estatais e em menor escala, para os empregos nas indústrias6. A este respeito, diz Nietzsche: “es cierto que la escuela técnica y el instituto del bachillerato casi coinciden en líneas generales en sus fins actuales, y se distinguen entre sí por elementos tan tenues, que pueden contar con una plena igualdad de derechos ante el for del Estado” (Nietzsche, 1980, p. 132). Ou seja, se as escolas técnicas são necessárias para a instrumentalização de um conjunto de conhecimentos indispensáveis para uma determinada dimensão da vida social, a crítica não repousa sobre a especificidade das escolas técnicas, e sim, sobre a pretensão de equiparar as escolas técnicas - que possuem uma preocupação meramente utilitária, embora necessária - com os institutos de formação destinados ao estudo formador da cultura. Ou seja, o que distinguiria os dois modelos seria o fato de que enquanto as escolas técnicas sustentam-se na dimensão utilitária do conhecimento adquirido, as escolas para a formação cultural tem a formação como fim em si. De acordo com Nietzsche, o equívoco das tendências normativas da educação alemã do seu tempo estava no não reconhecimento das especificidades
referentes
a
cada
um
dos
modelos
de
estabelecimentos de ensino. Em dezembro de 1891, na conferência anual dos professores, o jovem Imperador Guilherme - que era ele mesmo um produto do clássico Gymnasuim - atacou aquela parcela do sistema educacional Na época de Nietzsche, havia uma relação direta entre as escolas técnicas e os empregos estatais, na medida em que a indústria ainda não atingira o estágio de desenvolvimento pleno. 6
7
alemão que ainda se orientava pelo estudo das humanidades. Ironicamente proferindo o seu discurso em latim, declarou: “Acima de tudo [...] está faltando a base nacional. Devemos educar jovens alemães e não jovens gregos e romanos.” (Apud EBY, 1976, p. 507). Nos anos posteriores, valorizou-se sobremaneira as escolas que preparavam a juventude alemã para a indústria e o comércio, sendo que, aquela tendência largamente criticada por Nietzsche em suas análises, enfim, atingira a posição de política diretiva da educação alemã7. Se a educação alemã apresentava um quadro tão insólito, o que fazer para modificá-la, transformando-a em espaço de gestação de uma cultura livre, não submetida aos interesses do Estado ou do mercado? De acordo com Nietzsche, “Antes de mais nada, destruindo o preconceito da crença na necessidade deste tratamento educativo.” (Nietzsche, 1976, p. 197). Este procedimento - apresentado por ele como uma exigência, uma espécie de imperativo para a análise da educação alemã - caracteristicamente negativo, foi levado a cabo com intensidade por Nietzsche, principalmente em EE. Porém, esta exigência crítica sustentava-se em uma valoração positiva do modelo dos institutos de formação criados por Wilhelm von Humboldt e Friedrich August Wolff, com relação aos quais, o sistema de ensino na Alemanha
do seu tempo não representa “[...] otra cosa que
desfiguraciones y aberraciones” (Nietzsche, 1980, p. 26). Ou seja, a valorização da “[...] noble tendencia primitiva” (Nietzsche, 1980, p. 26) dos estabelecimentos de ensino alemães era uma forma de apresentar, conjuntamente à crítica aos estabelecimentos do seu tempo, um modelo alternativo, por meio do qual a sua análise não permanecia apenas na dimensão da constatação dos equívocos da educação alemã, apontando para uma proposta alternativa. Nos seus primeiros escritos, a análise nietzscheana da educação e da formação situava-se de forma bastante intensa no interior dos 7
A este respeito, conferir: EBY, 1976, p. 507-519.
8
estabelecimentos de ensino8. Porém, nos escritos posteriores9, as suas análises sobre o referido tema deslocaram-se para o conjunto mais abrangente da crítica da cultura ocidental, precisamente, para o seu projeto de “transvaloração dos valores” sendo que a partir de então, as referências diretas ao tema da educação e da formação tornaram-se ocasionais e raras10. A que se deve este deslocamento da questão? Tal transformação possui um vínculo estreito com a modificação de alguns postulados filosóficos do autor. Consequentemente, permite vislumbrar uma modificação dos princípios pelos quais a educação e a formação eram pensados nos seus primeiros escritos, apontando ao mesmo tempo para a especificidade da sua nova concepção. De acordo com Salaquarda, Nós, seres humanos, temos necessidade de, ao menos, três espécies de educadores. Para nossa socialização primária, ao longo dos primeiros anos de nossa vida, necessitamos de pessoas como referência, que nos transmitam os valores e as regras de nossa cultura. Durante a socialização secundária, que hoje tem lugar geralmente na escola, os educadores devem nos mostrar como utilizar de modo autônomo, as técnicas culturais... Ao final, ele considera que a missão mais elevada de um educador seria a de transformar e redefinir os valores e as regras. (Salaquarda, 1989, 173-174).
A
partir
das
três
espécies
de
socialização
apresentadas
por
Salaquarda, às quais correspondem formas específicas de educação, é possível situar de forma mais satisfatória as transformações da consideração neitzscheana sobre o tema da formação. Se nos seus primeiros escritos as suas considerações voltavam-se mais aos Embora a sua análise estivesse situada no interior dos estabelecimentos de ensino, já nesse período, Nietzsche incorporara à discussão, a reflexão sobre a relação entre educação e cultura. 9 Escritos após o ano de 1884, ano da publicação das primeiras partes da obra Assim falou Zaratustra. 10 A última obra em que existe uma referência direta e constante ao tema da educação e da formação é Humano, demasiado humano (1878). 8
9
estabelecimentos
de
ensino
(socialização
secundária),
tal
fato
mantinha relação direta com a sua prática docente e com a valorização do princípio de que sem o desenvolvimento autônomo das chamadas “técnicas culturais” jamais se formaria no aluno a autonomia
para
o
pensamento.
Ou
seja,
sem
o
pleno
desenvolvimento dos elementos próprios a este estágio, jamais se instituiria a educação no sentido da transformação e da redefinição dos valores (terceiro sentido da educação). Quer dizer, mesmo nos seus
primeiros
escritos,
a
análise
da
educação
a
partir
dos
estabelecimentos de ensino não implicava no desconhecimento da dimensão da crítica dos valores. A grande transformação11 diz respeito não à modificação de aspectos particulares da sua concepção de formação ou de educação mas à transformação do conjunto de sua filosofia, ou melhor, da elaboração dos principais conceitos do seu pensamento12 que englobariam aqueles temas, passando a figurar como aglutinadores de sentido de todas as temáticas do seu pensamento. Sendo assim, os temas da educação e da formação foram incorporados àqueles conceitos sob o signo da experimentação. A partir de então, com uma intensidade muito maior, as expressões educação e formação passaram a ser compreendidas como aspectos de um mesmo processo, tanto de ensino quanto de aprendizagem13. Por outro lado, esta transformação permite mostrar que desde então Nietzsche não aceitava mais a validade do campo de discussão proposto pela tendências e teorias da cultura e da educação na Alemanha do século XIX. Esta recusa sustenta-se na proposição da crítica dos valores, tal qual apresentada no prefácio da obra Tal transformação já estava presente em Humano, demasiado humano (1878), intensificando-se em A Gaia Ciência e atingindo a plenitude com a obra Assim falava Zaratustra. 12 Os conceitos são: Eterno retorno e Vontade de poder. Neste mesmo contexto surgiram as noções de Transvaloração de todos os valores, Niilismo, Crítica da Verdade, Reversão do platonismo que figuram como contextos temáticos de operacionalização daqueles conceitos. 13 A este respeito, conferir: Salaquarda, 1989, p. 173. 11
10
Genealogia da Moral: “[...] necessitamos de uma crítica dos valores morais , o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (Nietzsche, 1998, p.12). Neste sentido, nos seus últimos textos,
a
questão
da
formação
enquanto
experimentação
-
incorporada ao projeto de “transvaloração de todos os valores” - é concebida no âmbito do projeto da crítica dos valores morais. Desde os primeiros escritos de Nietzsche, o objetivo da educação era a formação de personalidades autênticas, uma espécie de prática detida sobre si próprio por meio da qual instaurava-se um processo de aprendizagem em que exercitava-se não apenas a aprendizagem exterior de características e especificidades de outros homens e de outras culturas, mas uma atividade em que os conteúdos estudados se reverteriam, pela assimilação ou pelo abandono e crítica, em elementos de edificação do “caso particular” de cada um. Quer dizer, este “si próprio”, a especificidade do “caso” de cada um seria forjada exatamente nesse processo que é, antes de mais nada, um processo de edificação. Estas considerações revelam que, de acordo com Nietzsche, o resultado deste processo de edificação é a própria edificação do humano, a saber, a identidade individual - pessoal - e a cultural. Endossando integralmente tal interpretação, precisamente nesta dimensão do problema da aprendizagem - que é uma espécie de aprendizagem que implica em “tornar-se homem”, posto que o homem se “faz homem”, não preexistindo ao ato constitutivo Nietzsche situa a sua crítica à educação do seu tempo, figurando como ponto de partida para a apresentação da sua concepção de experimentação. No entender de Nietzsche, a educação no século XIX caracterizou-se por um empenho no estabelecimento e na perpetuação de “[...] um ideal de homem completamente adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas” (Giacoia Jr., 2000, p. 65). Ou seja, este empenho pode ser vislumbrado através da incorporação das chamadas “necessidades sociais” na prática educativa, que
11
passaram a ditar a sua direção, tanto na definição dos conteúdos considerados indispensáveis à prática educativa, quanto na definição dos objetivos propostos. Segundo ele, em ambas as dimensões como partes de um mesmo princípio - vislumbra-se um processo de mera adaptação às novas condições sociais. O resultado deste processo educativo é o reforço, a perpetuação de uma ordem social na qual o imperativo máximo é a adequação, a adaptação, jamais a criação que extrapola o âmbito
do “socialmente relevante”. Em
outras palavras, uniformização, rebanho. Do
contexto
da
crítica
à
adaptação,
emerge
a
temática
da
experimentação. Isto não implica em afirmar que a experimentação como
princípio
formativo
somente
possa
ser
colocado
em
confrontação com o tema da adaptação - este com um sentido eminentemente negativo - e sim que, por meio da contraposição, realça-se a sua abrangência e especificidade. A experimentação enquanto procedimento para a edificação da personalidade autêntica pode ser apreendida, na sua dimensão mais forte
e
característica,
naquilo
que
Nietzsche
denomina
de
“organização do caos”. No parágrafo de encerramento da segunda das extemporâneas, com o intuito de apontar para a necessidade de se conceber a cultura a partir do princípio da criação e não da mera repetição, Nietzsche afirma: “Que ele organize o seu caos interior, refletindo nas suas verdadeiras necessidades”. (Nietzsche, 1976, p. 205). Neste mesmo sentido, referindo-se aos gregos, Nietzsche assevera: [...] a sua cultura foi durante muito tempo um caos de formas e de concepções estrangeiras [...] os Gregos foram aprendendo a organizar o caos, entrando em si próprios [...] isto é, reflectindo nas suas verdadeiras necessidades e deixando morrer as suas necessidades factícias. Foi assim que tomaram nas mãos o seu destino e deixaram de ser os herdeiros e os epígonos instruídos do Oriente. Depois de uma penosa luta interior [...] tiveram a felicidade insigne
12
de enriquecer e alargar o tesouro herdado dos seus antepassados, transformando-se no modelo e nas primícias de todos os povos civilizados do futuro. (1976, p. 204-205).
O “caos inicial” da cultura grega dizia respeito à falta de uma disposição peculiar da vontade, à falta de “instituições espirituais” para a apropriação criativa dos materiais disponíveis provenientes do contato com povos orientais. Ou seja, o caos da cultura resultava da falta de um princípio organizador da multiplicidade. Porém, a organização do caos não implicou na sua eliminação pois, apesar do poder de organização, o homem, “No interior de si mesmo [...] é igualmente caos indômito.” (Müller-Lauter, 1998, p. 01). Ou seja, a situação do homem, assim como o caráter geral do mundo, segundo Nietzsche, é o caos. No seu entender, o “caso” grego é modelar pois representou
o
exemplo
por
excelência
em
que
a
proposição
anteriormente apresentada converteu-se em princípio de ordenação da cultura. Neste segundo estágio, a questão torna-se mais intensa pois, se o caráter geral da vida humana é o caos, a sua organização é concebida como um estágio sujeito a desagregação, podendo durar séculos, décadas ou mesmo dias, sendo que a manutenção da “unidade” depende exatamente da força do princípio unificador e criador. Ora, na dimensão da instabilidade e da conseqüente necessidade
de
poderes
configuradores
desta
organização
a
experimentação encontrará a sua plena manifestação. A organização do caos, sendo resultado de uma penosa luta interior, é a soma dos esforços por meio dos quais um homem ou uma nação se forjam na árdua tarefa de elucidar o sentido da existência, ou seja, de deter-se com o seu caso e, mantendo-se consigo, “refletir em suas verdadeiras necessidades”. A experimentação repousa, na acepção nietzscheana, no reconhecimento da inevitabilidade da dor e do aspecto caótico do seu interior, mas acima de tudo, na consciência e no sentimento de poder para a edificação de uma existência cuja dignidade situa-se na aceitação da dimensão multíplice da vida. Por
13
conseqüência, transforma
a
em
instabilidade causa
de
daquilo
acusação
que da
é
humano
vida,
pois
não
se
assumir
a
experimentação como princípio implica em assumir o artifício como critério de condução para os assuntos e eventos humanos. Se a experimentação implica em assumir o artifício, e as análises de Nietzsche sobre a cultura e a educação partem deste pressuposto teórico,
o
que
dizer
dos
princípios
e
dos
programas
dos
estabelecimentos de ensino, não só alemães, mas de uma maneira geral, dos estabelecimentos de ensino da cultura ocidental que sustentam-se sobre a crença nos princípios da identidade e da imutabilidade das verdades eternas? Com a proposta da formação enquanto experimentação, Nietzsche altera desde as bases a questão formativa na medida em que o próprio espaço e os valores da empresa formativa não são mais tomados como evidente. A parir de então, trata-se de reconduzir o tema da formação ao exercício de domínio do caos. A formação passou a dizer respeito ao árduo exercício de doação de sentido para a existência. Nietzsche seguramente reconheceu os perigos inerentes a esta abertura de horizontes. Nessa
atitude,
que
deve
comportar
para
além
dos
valores
costumeiros, além então, do bem e do mal, do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso, do belo e do feio, há seguramente, “um risco”, talvez o “risco supremo”, reconheceu Nietzsche. (Goyard-Fabre, 1977, p. 138). Se o jugo dos valores supremos cria dependências, talvez a mais intensa seja aquela da crença na necessidade da existência destes valores, decorrente do hábito da crença. O risco supremo não repousa propriamente na abertura de horizontes tornada possível pela aceitação da experimentação como princípio para o formar-se, para o existir, mas no desafio instaurado por este ato, afinal, desde então torna-se necessário trazer o sentido do ato à consciência, tornando-o responsabilidade do agente. Nos Ditirambos de Dioníso,
14
Nietzsche deu uma idéia do que seria o experimentar-se. Diz-nos ele: “[...] um prisioneiro agora, a quem coube a mais dura sorte: trabalhar curvado no teu próprio poço, escavando-te a ti mesmo, enterrando-te a ti mesmo [...] Procuraste a carga mais pesada: a ti te encontraste -, e não podes distanciar-te de ti” (Nietzsche, 1989, p. 49). Esta dimensão do problema da experimentação é abarcada por Nietzsche na figura do filósofo como médico da civilização. A sua posição de destaque, a ponto de ele poder ministrar o medicamento para os males da civilização, diz respeito à sua familiaridade com o exercício de organização do seu caos interior. Isto possibilita-lhe extrapolar a particularidade do seu empreendimento alçando-se a um domínio mais abrangente pois a sua tarefa não é ministrar uma poção salvífica, e sim, “(...) No meio do formigar, acentuar o problema da existência, sobretudo dos problemas eternos” (Nietzsche, s.d., p. 27), distanciando a cultura dos ditames da moda. A crítica, inicialmente endereçada aos estabelecimentos de ensino alemães, converteu-se em uma crítica global da moral subjacente ao ato formativo, ou seja, uma crítica da cultura, pois, o que está em jogo a partir de então não é mais apenas uma ocupação específica - a educação, a formação - mas a totalidade do próprio homem, na medida em que formar-se é tornar-se homem.
Bibliografia EBY, Frederick. História da Educação Moderna: Teoria, Organização e Prática Educacionais. Trad. Maria Angela Vinagre de Almeida, Nelly Aleotti Maia e Malvina Cohen Zaide, 2ª. Ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. GOYARD-FABRE, Simone. Nietzsche et la question politique. Paris: Éditions Sirey, 1977.
15
LEONEL, Zélia. Contribuição à História da Escola Pública (Elementos para a Crítica da teoria Liberal da Educação). Campinas, 1994. (Tese de Doutorado). MARTON, Nietzsche, a transvaloração dos Valores. São Paulo: Moderna, 1993. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Pysiologie de la Volonté de Puissance. Paris: Éditions Allia, 1998. p. 165-181. (Tradução inédita para o português feita por Volnei Edson dos Santos). NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Considerações Intempestivas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida. Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1976. ____. Ditirambos de Diónisos. Lisboa: Guimarães Editores, 1989. ____. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ____. O Livro do Filósofo. Trad. Ana Lobo. Porto: Rés Editora, s.d. ____. Sobre el Porvenir de Nuestras Escuelas. Trad. Carlos Manzano, 2ª. ed. Madrid: Tusquets, 1980. SALAQUARDA, Jörg. “L’enseignant de l’humanité”. In: Nietzsche Moraliste. Revue Germanique International, nº. 11. Paris: PUF, 1989. p. 173-189.