JACQUES MARIE ÉMILE LACAN - O ANALISTA DO FUTURO
Por Jorge Forbes Renovador do pensamento freudiano, Lacan trouxe para a psicanálise elementos estruturalistas e criou uma "clínica do real" apta a entender o sujeito pós-moderno Jacques Lacan, o menino Paris dormia às 3 horas da madrugada. Uma voz gaguejante atende ao telefonema que lhe interrompeu o melhor do sono: - Alô. - Alô, Richard? - Alôo. - Alô, Martin Richard? - Sim, quem é? - Lacan. - Quem? - Jacques Lacan. - Docteur? Oui, bom dia. - Escute, Richard, espero não o estar incomodando... estou lendo um trabalho seu a respeito de A carta sobre os cegos, de Diderot, que eu aprecio muito, e eu gostaria de discutir certos pontos, pessoalmente, com você. - Mas com o maior prazer, Doutor. - Que bom! Quando você pode? - Quando o senhor quiser, Doutor, é só em dizer que vou encontrá-lo. - Ah, como você é amável, Richard; aguardo você, então, no café da esquina da Saint Michel com o cais, dentro de trinta minutos. E desligou. Martin Richard ficou com o telefone na mão, com pouco tempo para decidir o que fazer. Não tinha coragem de ligar de volta para Lacan, eram três e cinco da
manhã, não se fazia isso. Também não podia deixar o Doutor – assim ele era chamado pelos próximos – esperando-o sozinho em um café. Só teve tempo de calçar seus jeans, tênis, jaqueta, pegar sua bolsa de livros, descer correndo as escadas, montar em sua bicicleta e aproveitar o leve declive do Boulevard Magenta para ganhar velocidade. Entrou no café disfarçando a falta de ar e se deparou com Lacan em uma mesa de canto, rodeado de papéis. Com o melhor dos seus sorrisos, o Doutor lhe estende a mão repetindo: - Puxa, como você é gentil, Richard. Jacques Lacan gostava de dizer que tinha cinco anos. Aos cinco anos a pessoa tem um querer direto, sem intermediários. É diferente do querer querelante e reivindicativo dos quinze, e do querer conforme às regras do adulto. Mas vale um detalhe: ter cinco anos após uma análise, chegar aos cinco anos pelo convívio diário com o Real – conceito lacaniano que se refere à impossibilidade da nomeação total de seu desejo (“o que será que será que nunca tem nome nem nunca terá?”) – é diferente de tê-los por biologia ou retardo. Jacques Lacan tinha cinco anos. Jacques Lacan, o cientista - “Eu sinto que você...” Essa frase acabou se incluindo no repertório caricatural dos analistas, junto com a barba, a reserva pessoal, e os “hums-hums”. Ela se refere à forma como foi entendida a “contratransferência”, Mais ou menos assim: quando o analisando ficar em silêncio, gaguejar ou se enganar, o analista pode lhe dizer a verdade que lhe está escapando, através do seu sentimento, o do analista. Pensa-se que por ter feito uma análise o analista esteja apto para se valer do seu sentimento como arauto do que o analisando teria dificuldade de dizer. É como se tudo fosse dizível se não fossem as dificuldades, e não que haja na estruturação humana uma impossível fundamental, impossível que está na base da singularidade criativa da espécie. Jacques Lacan foi contrário a essa forma de compreensão da psicanálise, desde seu Seminário I, em 1953. Ali, ele não nega a existência da contratransferência, só defende esse fenômeno – conhecido desde sempre: a reciprocidade empática – não é uma técnica freudiana e, se utilizado na análise, leva o analisando a se identificar com o analista, tal como uma pessoa vê o mundo pela óptica de sua família, de como seus pais lhe interpretaram o mundo. À contratransferência sensitiva Lacan antepôs um projeto de cientificidade de escuta. Valeu-se da lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure que, com seu peso de ciência, conforme Lacan explica em seu texto A instância da letra no inconsciente, ajudou a revelar que o inconsciente freudiano seria, para ele, estruturado como uma linguagem, e não por fantasias primitivas selvagens
que teriam de ser domadas em uma suposta maternagem compreensiva analítica. Se lermos a contracapa de seus Escritos, coletânea, lançada em 1966, lá veremos que Lacan queria pôr a psicanálise na orientação das “luzes”, do Iluminismo. Seu trabalho teve tanta repercussão, muito além de seus alunos, que ainda hoje muitos associam Lacan à lingüística, o que é desconhecer o que veio depois, especialmente depois de 1970. Jacques Lacan, Encore, as duas clínicas O título do Seminário XX, Encore, “Mais, Ainda”, de 1973, destaca o fato de que nem tudo foi dito na clínica do sujeito do inconsciente, na lógica do significante, nem tudo aí pode ser tratado, há algo “mais ainda”, que insiste além das tentativas da ordenação simbólica. É o tempo da clínica que dá primazia ao Real, à certeza, não à verdade; à conseqüência, mais que ao sentido;a um Real sem lei de formação, distinto do formulado pela ciência; a um Real do corpo distinto do biológico, o que explica o jogo de palavras do título original Encore, que em francês é homófono de “no corpo”. Há, portanto, duas clínicas em Lacan: uma primeira que privilegia o simbólico, chamada de clínica do significante, e uma segunda que privilegia o real, chamada de clínica do ato, ou do real, ou, ainda, borromeana, referência à uma topologia não cartesiana. Lembro que Lacan propôs três registros para o estudo da experiência humana, ma seqüência daqueles propostos por Freud, o Id, o Ego, e o Superego, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Sua explicação ultrapassa o escopo deste artigo. Entre as duas clínicas, várias são as diferenças, em especial quanto ao término do tratamento. É comum falar que uma pessoa faz ou deve fazer análise para se conhecer melhor e, se conhecendo mais, ter maior possibilidade de acerto em suas escolhas, em seu caminho. O final da análise seria um acréscimo de saber sobre o não sabido, o “inconsciente”, e sua verdadeira lógica. É uma referência da primeira clínica. Já na segunda clínica, o objetivo não é saber mais: quase ao contrário, Lacan faz uma virada de 180 graus nos anos 70, para sustentar que o que se trata é o limite do saber, e não o seu acréscimo, e que o final da análise está do lado do saber fazer (savoir faire) com o não sabido, com o inconsciente, e não do lado do fazer saber (faire savoir) a seu respeito. Não podendo ter garantia de sua ação em uma verdade prévia, resta uma aposta baseada em uma certeza a ser provada a posteriori. Não há nada além da palavra, o que equivale a dizer que além da cena está o obsceno e não um conhecimento maior. Um analisando diz:
- Doutor, cheguei à conclusão de que sou péssimo marido, mau amante e um pai medíocre. Como reagir? Estamos habituados a ouvir intervenções do gênero: - Por que o senhor diz isso?, ou: - Por que o senhor se deprecia desta forma?, ou ainda: - O senhor conhece alguma pessoa assim, na sua família? Agora, imaginemos que a resposta seja: - O fato de o senhor me dizer que é péssimo marido, mau amante e um pai medíocre não diminui em nada a possibilidade de o senhor ser um péssimo marido, mau amante e um pai medíocre. Nota-se a diferença, as pessoas passaram a achar que há sempre alguma coisa além da palavra, logo, ao se autocriticarem o fazem com uma certeza íntima de que não é nada disso do que estão dizendo, pois a verdade está encoberta e é melhor que a aparência. Pois bem, a segunda clínica de Lacan exige conseqüência e responsabilidade, dando um basta no relativismo. Comentaremos mais no último item. Jacques Lacan, o formador Diferentemente de Freud, que fez uma Sociedade de analistas, Lacan fez uma Escola de psicanálise. Pôs o acento na tarefa, não no clube de classe, e não titubeou em dissolver a sua própria Escola Freudiana de Paris, aos 80 anos de idade, por considerar que os efeitos grupais estavam impedindo o trabalho que deveria ser feito. Chamou-se de “Père sèvère”, um pai severo e perseverante, duro de acompanhar. Não há psicanálise sem psicanalistas, o que faz da formação de analistas um problema crucial para a psicanálise. Seu aforismo “o analista só se autoriza de si mesmo” foi mal compreendido. Pensou-se que bastava se autonomear analista, sem qualquer outro critério além da vontade. O engano é simples: confundiu-se “si mesmo” com “eu mesmo”. O “si mesmo” é o ponto de intimidade estranha, de “extimidade”, que um analisante se confronta, em sua análise pessoal, muito diferente do narcísico “eu mesmo”. A formação lacaniana é complexa e bem mais exigente que a universitária, uma vez que não é padronizada, o que impede o cumprimento de fórmulas prontas, o “cumprimento de tarefas”. É uma formação de um a um, e não em bloco. Não há “turma” de analistas, com ano de formação, como há turma de médicos, ou de advogados. A sua proposta de escola feita em 1964, em um mundo ainda industrial, deve ser repensada quarenta anos depois, em uma nova era da globalização:será necessário decidir se é o caso de aprimorar o anteriormente estabelecido ou de mudar o paradigma.
Jacques Lacan, o analista do futuro É curioso falar de um analista do futuro quando nos acostumamos a pensar em psicanalistas do passado. A idéia de que fazer análise seja remexer no velho baú da infância contribuiu para montarmos uma caricatura do psicanalista semelhante à antiga imagem do guarda-livros – uma pessoa empoeirada e opaca. Jacques Lacan é muito diferente dos modelos que podemos construir hollywoodianamente. Em vida, ele soube romper com todas as expectativas aprisionadoras. Após sua morte, sua obra continua surpreendendo pela novidade. E, como se não bastasse o já publicado, há também os Novos escritos, volume de 600 páginas que vêm se adicionar às anteriores. Lacan é um clássico, no sentido de um pensador que resiste ao tempo por não se deixar apreender em nenhuma interpretação classificatória. Sempre há mais Lacan do que aquilo que se pode apreender, da mesma maneira que há sempre mais Sófocles do que qualquer representação de Édipo Rei, ou mais Shakespeare, ou mais Van Gogh, ou mais Drummond, ou mais Tarsila. Essas pessoas não morrem porque não há túmulo que as contenha, não há palavra que as explique. Se Foucault tinha razão ao dizer que a palavra é a morte da coisa, os clássicos são mais coisa do que palavra, e por isso falamos deles sem esgotá-los. Lacan evitou que a psicanálise se transformasse em método tolo de adaptação social, armadilha à qual, infelizmente, alguns pós-freudianos não conseguiram escapar. Ele pôs o futuro na psicanálise. Demonstrou que as tentativas de explicação de si mesmo acabam, inevitavelmente, em um ponto duro, real, resistente – como em física fala-se em resistência dos materiais – a qualquer nomeação, semelhante ao “que será que será que nunca tem nome nem nunca terá”, cantado por Chico e Milton. Na impossibilidade de se garantir por meio de uma explicação causalista e reducionista do passado, o analisando é levado, na orientação lacaniana, a inventar-se um futuro, sem nenhuma outra razão além daquela do desejo. É uma posição nem sempre muito confortável, apesar de entusiasmante, pois se trata de uma invenção sem garantia repartida, sem o beneplácito da aceitação grupal, seja de que grupo for. Atenção: que não se pense ou não se confunda essa invenção do futuro, na lógica do desejo, com individualismo barato ou hedonismo de ocasião. A análise lacaniana parece a mais coerente com as conseqüências da globalização sobre as pessoas, com o sujeito pós-moderno. Vivemos um momento de transição histórica do sujeito da era industrial para o da era da globalização. O sujeito industrial caracterizou-se pelo privilégio do eixo vertical das identificações. É o que explica a organização piramidal da sociedade industrial, presente na família e nas corporações dessa época. Para entender esse sujeito, a estrutura do Complexo de Édipo proposta por Freud mostrou toda a sua importância.
O Complexo de Édipo também é uma estrutura que privilegia o eixo vertical das identificações – basta ver o papel fundamental que o pai tem nesse modelo. Agora, quando entramos na globalização, quando o sujeito não mais se dedica a ser parte de um grande ideal – não há mais grandes ideais -, quando a horizontalidade é mais importante do que a verticalidade anterior, Lacan propõe que uma análise possa ser conduzida além do Édipo, além das significações consagradas no ideal paterno e de seus representantes. É a análise do futuro, de um sujeito de uma nova era. Estamos começando a desbravar esse caminho, seguindo as pistas deixadas por Lacan. De seu legado, eu poria em relevo três expressões: “conseqüência”, “responsabilidade” e “novo amor”. “Conseqüência” porque, contrariamente ao que possa parecer, palavras não são só palavras. Não há nada a ser buscado além delas e sim nelas, como os poetas que renovam o termo mais banal dando-lhe uma nova dimensão. O analista empresta conseqüência às palavras do analisando. “Responsabilidade” não no sentindo moral, mas no sentido ético. Lacan diferencia moral – usos e costumes – de ética, posição subjetiva. A psicanálise lacaniana ensina que não há como não se responsabilizar pelo acaso e pela surpresa. A pessoa não é só o que escolhe, voluntariamente livre, mas também o que lhe ocorre: “Eu sou o meu acontecimento”. “Novo amor”: a psicanálise, dizia Lacan, não foi capaz de inventar um novo pecado, uma nova perversão. Talvez seja capaz de inventar um novo amor, que não seja voltado ao pai em última instância, mas que, sabendo dele se servir, possa ir além do chamado (em psicanálise, gozo fálico) e captar algo do real feminino. Tanto a globalização quanto a psicanálise de hoje revelam que entramos em um novo momento, mais propício à essência feminina. Muito da epidemia depressiva de nossos dias fica esclarecida pela desorientação ocasionada pela perda de orientação masculina. Lacan previu esses acontecimentos e deixou os instrumentos para tratá-los. Foi um analista do futuro.