JANTAR
DE
GUERRA
Fui convidado por Antonio para jantar. Longe de ser uma alegria, nós dois no tétrico casarão, naquela sala suntuosa cheia de sombras, um de cada lado da mesa compridíssima. Mas ele vivia muito solitário e provavelmente sofria com isso. Eu lhe via o rosto senhoril e bom entre as chamas dos dois candelabros de prata: uma mania, mesmo estes; claro que muito elegante. Com voz plácida ele me anunciou que ela estava para voltar; esperava-a naquela mesma noite ou o mais tardar na manhã seguinte. Eu , que conhecia toda a história, fitava-o consolado; dá gosto ver uma pessoa feliz. Um criado silencioso tirou quase inadvertidamente as tigelas de sopa. Um outro , antes de eu perceber , serviu o vinho. - Trabalhei hoje o dia todo para deixar em ordem o apartamento dela – disse Antonio - , há dois anos que estava desabitado. Depois você vai vê-lo...Ah, não sabe o que significa uma voz de mulher nesta casa...- Ele, tão orgulhoso e reservado, sentia evidentemente necessidade de abrir-se, feito uma criança. Pelo rabo do olho entrevi, nas mãos de um criado, um grande peixe decorado com maionese, ervas e até uma espécie de troféu de papéis prateados e policromos que lhe saía da boca. Daria para dez pessoas. Foi colocado sobre um móvel. Então os criados se retiraram com passos de feltro. Esperamos ,a conversar, alguns minutos. Uma campainha soou, nas lonjuras do casarão; Antonio devia ter apertado o botão invisível; instalado no pavimento ou sob a mesa. Mas ninguém acorreu. - Fomos abandonados – anunciou por fim com um sorriso e, indo até a porta, chamou: - Rosa! Rosa! - Estou indo – ouviu-se responder, e poucos instantes depois entrava uma criada pálida, com um simples avental branco. - Desculpe-me, sabe – explicou Antonio -, mas a gente tem de se acostumar. Senti-me algo embaraçado. Olhei à volta. E as tapeçarias? Ao entrar, vira-as de relance, nos lugares costumeiros, com as suas melancólicas figuras de guerreiros antigos agora não estavam mais ali. - E as tapeçarias? – perguntei. Ele sacudiu brandamente a mão direita com resignada indiferença, como a dizer que se tinham ido, ido. Entrementes a criada, como se não fosse novata no servir à mesa, mostrava desenvoltura até excessiva. Terminado o peixe ( que estava excelente), retirou os pratos atirando um
sobre o outro com grosseria; em seguida nos deu os de fruta. E o prato do meio, e o assado? , perguntei-me, curioso. Conhecia bem os hábitos de Antonio. Mas ele não disse uma palavra. Ao mesmo tempo a criada, sem que eu percebesse, tinha retirado os candelabros de prata. Olhei os móveis em redor. Não estavam ali. Desaparecidos como que por encanto. Veio uma cesta de palha com quatro maçãs. - Não são grande coisa – disse Antonio pegando uma – esta deve ser a menos pior. – E me estendeu através da mesa (através da imensa mesa para vinte e quatro pessoas!). – Mais tarde vou fazê-lo ver amostras de tecidos para móveis – acrescentou Antonio - , você tem de me ajudar a escolher. Sabe como ela tem gostos difíceis. Quero que ao chegar possa encontrar o seu quartinho em ordem. - Mas quando é que vai chegar? - No mês que vem, espero; assim pelo menos me prometeu. O tempo se precipitava, pois, arrastando-o para baixo, para as trevas, em progressiva humilhação. “ Agüenta, agüenta!” , eu tinha vontade de gritar-lhe, porque sabia que, querendo, ele era forte. Em vez disso, permanecia inerte: deixava-o prosseguir, sem me preocupar em detê-lo. No entanto, do sorvedouro, por assim dizer, a sua cabeça não parava de emergir, malgrado os embates, idêntica e de certo modo vitoriosa. Ele teve um arrepio. - Sim – eu disse -, também tenho frio. Por que não acende a lareira? - Oh! – respondeu com uma inflexão de espanto e fez um gesto. Olhei. As paredes do pequeno tinelo eram lisas do pavimento até o teto, sem vestígio de lareira. O candelabro central, do qual pendia a pêra da campainha, iluminava-o pela metade, projetando as nossas duas sombras. Uma noite úmida e fria. Antonio apertou o botão da pêra, ouviu-se de fora o chamado. Mas a criada não apareceu. - Ah, estava me esquecendo – sussurrou ele, como se me pusesse a par de um segredo. – Agora estou sozinho , sabe? – E levantou-se da mesa. – Mas se esperar dois minutos vou fazer um café. Quando ele alcançou a soleira ouviu-se um tenebroso ribombo ,distante. As paredes tremeram um pouco. Depois, silêncio. Ele se voltou por um instante e sorriu. Logo após veio um ruído de louças da cozinha. - É uma mistura inventada por mim – dizia-me ele pouco depois mexendo a xícara. – Por sorte tenho guardada uma certa quantidade. Não para mim, não faço questão. Mas caso ela voltasse... – Envolvera o pescoço num cachecol de lã. Fazia
de fato um frio de rachar. – Depois de tudo, se viesse... – continuou – aqui há luz, de noite. – E parecia que isso seria para ela uma atração maravilhosa. – Quando fizer frio de verdade, acenderemos a estufa. Na cave tenho ainda um pouco de lenha. Ou você pensa?... Que podia eu responder-lhe? - Não, não – disse. – Estou certo de que voltará. Aqui ela estará muito bem. Ouviu-se um assobio lá embaixo na rua, a que respondeu outro distante: eram assaz sinistros. - É sempre assim – explicou Antonio apertando o cachecol -, há algum tempo é sempre a mesma história. – Naquele momento faltou luz. Escuridão cerrada. Via-se contudo, através das brechas do teto esboroado, um trecho de céu noturno, com nuvens cerradas. Ele se sentava num caixote, apontando as costas à parede chamuscada, e apertava as espáduas com as mãos na esperança de aquecer-se. Acima dele, a extrema solidão. Todavia, através das trevas ele me fitava, sem pedir misericórdia alguma. Então senti que o prédio a nossa volta estava completamente deserto. Sem se levantar, ele riscou um fósforo e acendeu um toco de vela, que pôs em pé sobre o pavimento. - Pode-se lá confiar? – perguntou apontando para a luz da vela e depois para o teto esboroado. – Os aeroplanos? – respondeu com doçura. – O que poderão ver? – A chama da vela oscilava. Divisei, através de suas roupas esfarrapadas, uma grande ferida, cavernosa, profunda; devia já ser antiga e desprendia mau cheiro. - Poderei deixar-lhe este cantinho, se ela algum dia voltar – explicou-me sem sombra de ironia . – É mais resguardado. Eu me arranjarei lá na frente...Mas não quer sentar-se? Quer mesmo ir embora ? Ainda é cedo. - Não, não, é hora. Espero que voltemos a ver-nos – respondi. –E muitíssimo obrigado. - Oh, eu é que devo agradecer-lhe. Sei que o fiz passar mal. Esperemos que de outra vez. Agora, para combater o frio, batia os braços contra o corpo, à maneira dos carroceiros de inverno. Mas o fazia com indiferença aristocrática, como se fosse um exercício, ou então uma alusão brincalhona aos pobres que batem os dentes. Coisinhas brancas puseram-se a voltear em torno da vela. - Está nevando – disse, e parecia estar contente com isso. --------------------------------------------
AS MONTANHAS SÃO PROIBIDAS Dino Buzzati Cia das Letras 1993