Historia Da Filosofia 03 Nicola Abbagnano

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histÓria da filosofia volume terceiro nicola abagnano digitalizaÇÃo e arranjo: Ângelo miguel abrantes. histÓria da filosofia volume iii traduÇÃo de: armando da silva carvalho capa de: j. c. composiÇÃo e impressÃo tipografia nunes r. josé falcão, 57-porto editorial presenÇa . lishoa 1969 título original storia della filosofia copyright by nicola abbagnano reservados todos os direitos para a língua portuguesa à editorial presenÇa, lda. - r. augusto bil, 2 cie. - lisboa terceira parte filosofia escolÁstica i as origens da escolástica § 173. carÁcter da escolástica a palavra escolástica designa a filosofia cristã da idade média. o termo scholasticus indicava nos primeiros séculos da idade média aquele que ensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio (gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria, aritmética, astronomia e música). mais tarde passou a chamar-se também scholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficial era o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que a princípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e mais tarde na universidade (studium genei-ale). a origem e o desenvolvimento da escolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funções que determinaram também a forma e o método de actividade literária dos escritores escolásticos. como as formas fundamentais do ensino eram duas, a

lectio, que consistia no comentário de um texto, e a disputatio, que consistia no exame de um problema tendo-se em consideração todos os argumentos que se possam aduzir pro e contra, a actividade literária dos escolásticos assume sobretudo a forma de commentari (à bíblia, às obras de boécio, à lógica de aristóteles e mais tarde às sentenze de pedro lombardo e às outras obras de aristóteles) ou de recolha de questioni. recolhas deste género são os quodlibeta que compreendem as questões que os -aspirantes ao grau de teologia deviam discutir duas vezes por ano (pelo natal e pela páscoa) sobre qualquer tema, de quodlibet. as questiones disputatae são muitas vezes o resultado das disputationes ordinariae que os professores de teologÍa mantinham durante os seus cursos sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos. a conexão da escolástica com a função docente não é um facto puramente acidental e extrínseco; faz parte da própria natureza da escolástica. todas as filosofias são determinadas na sua natureza pelos problemas que constituem o centro da sua investigação; e o problema da escolástica consistia em levar o homem à compreensão da verdade revelada. tratava-se portanto de um problema de escola, ou seja, de educação: o problema da formação dos clérigos. a coincidência típica e total do problema especulativo com o problema educativo justifica plenamente o nome da filosofia medieval e não explica os caracteres fundamentais. em primeiro lugar, a escolástica não é, como a filosofia grega, uma investigação autónoma que afirme a sua independência crítica frente a qualquer tradição. a tradição religiosa é, para a escolástica, o fundamento e a norma da sua investigação. a verdade foi revelada ao homem através das sagradas escrituras, através das definições dogmáticas de que a comunidade cristã se serviu para fundamentar a sua vida histórica, através dos padres e doutores inspirados ou iluminados por deus. para o homem, trata-se apenas de aproximar-se dessa verdade, compreendê-la na 10 medida do possível, mediante os poderes naturais e com a ajuda da graça divina, e fazê-la sua para assumi-ia como fundamento da própria vida religiosa. mas mesmo nesta perspectiva, que é a da própria investigação filosófica, o homem não pode nem deve basear-se apenas nas suas faculdades; a tradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo-lhe, através dos

órgãos da igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. trata-se mais de uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo não pode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer à ajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria igreja reconhece como particularmente inspirados e apoiados na graça divina. daí o uso constante das auctoritates na especulação. auctoritas é a decisão de um concílio, uma expressão bíblica, uma sententia de um padre da igreja. o recurso à autoridade é a manifestação típica do carácter comum e superindividual da investigação escolástica, na qual o indivíduo quer sentirse continuamente apoiado e sustentado pela autoridade e tradição eclesiástica. daqui deriva o outro aspecto fundamental da investigação escolástica. esta não se propõe formular ex novo nem doutrinas nem conceitos. o seu principal objectivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o de encontrar a verdade. deste modo, como a norma da investigação resulta da tradição religiosa, os instrumentos e os materiais dessa investigação são provenientes da tradição filosófica. esta vive substancialmente à custa da filosofia grega; primeiro a doutrina platónico-agostiniana, depois a aristotélica, fornecem-lhe os instrumentos e os materiais de especulação. a filosofia, como tal, é para ela simplesmente um meio: ancilla theologiae. claro que as doutrinas o os conceitos que são adoptadas de acordo com aquele 11 objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto ao seu significado original. mas a escolástica não se propõe realizar esta transformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem disso consciência. o sentido da historicidade é-lhe estranho. doutrinas e conceitos surgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e considerados independentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica do filósofo que os elaborou. a idade média coloca tudo num mesmo plano e fez dos filósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais é lícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias

exigências. nesta estrutura formal que a filosofia medieva apresenta, reflecte-se a própria estrutura social e política do mundo medieval este é um mundo constituído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do alto dirige e determina todos os aspectos. tem-se afirmado em regra que a concepção medieval do mundo se inspira no aristotelismo: com efeito, essa é substancialmente a concepção estoico-platónica à qual acabam por se reduzir e adaptar as próprias doutrinas aristotélicas. o mundo é uma ordem necessária o perfeita na qual todas as coisas têm um lugar e uma função determinados, permanecendo nesse lugar e nessa função pela força infalível que determina e orienta o mundo vindo do alto. tudo o que o homem pode e deve fazer é conformar-se com esta ordem: o próprio livre arbítrio pode ser utilizado com utilidade desde que integrado nessa conformidade. as instituições fundamentais do mundo medieval, o império, a igreja, o feudalismo, apresentam-se como os defensores da ordem cósmica e como os instrumentos da força que o rege. essas são dirigidas substancialmente no sentido de fazer surgir todos os bens materiais e espirituais a que o homem pode aspirar, desde o 12 pão quotidiano à verdade, como derivantes da ordem a que pertencem, assim como da hierarquia de que são intérpretes e os guardiães dessa mesma ordem. num mundo assim constituído, a investigação filosófica não pode desenvolver os seus princípios e a sua disciplina senão a partir da hierarquia em que se concretiza a ordem universal ou da força que se mantém causa dessa estrutura. como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta ordem começa a afirmar-se a partir do século viii, com o desaparecimento quase total das trocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades, deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. o despertar do tráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século xi, as viagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordem cósmica. essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos, que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem, incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração

dos outros. o poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou conservar os bens que são indispensáveis ao homem. a luta pela autonomia comunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, é substancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidade de providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidades autónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciar pela sua própria defesa. nestas condições, a investigação filosófica adquire um respirar novo e uma nova dimensão de liberdade. os seus pressupostos hierárquicos não são por enquanto postos em dúvida, os seus limites e as suas condições sobrenaturais 13 continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racional do homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certos emites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz. tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de tal iniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e a fé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderes naturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. mas até este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios do século xiii; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade, a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se o âmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobre domínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançar com a sua força autónoma. sobre este desenvolvimento, que compreende os aspectos sociais e políticos como os filosóficos do inundo ocidental nos séculos da idade média, se funda a caracterização da filosofia escolástica como o problema da relação entre razão e fé e a sua periodização fundada nas diversas formas de resolver tal problema. É evidente que deste ponto de vista o problema da relação

entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também um problema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre os textos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações e implicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que pode e deve ter a -iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direcção da vinda individual e colectiva, perante a posição que deve ocupar a ordem cósmica e a hierarquia que a representa. por isso é também o problema da liberdade que o homem pode reivin14 dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação (a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. se designarmos, nos termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmente abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das concordâncias e das polémicas do pensamento medieval. isso pode permitir que nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou políticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem os aspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. o que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal homogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais. esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o aspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e definitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntese tomista. mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia existente na idade média, uma parte importante dos pensadores medievais. uma preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base

deste privilégio. a filosofia medieval, tal 15 como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita o caracterizada apenas com base no seu problema dominante, e não nas soluções que foram dadas a esse mesmo -problema. a continuidade desta filosofia pode ser reconhecida apenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nas soluções apresentadas. e a periodização da mesma pode ser efectuada apenas com base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais. a esta exigência responde a periodização tradicional que distingue quatro fases na escolástica. a primeira, chamada pré-escolástica, é a do renascimento carolíngio, durante a qual é pressuposta e admitida pura e simplesmente a identidade da razão e da fé. na segunda, chamada altaescolástica, que vai da metade do século xi até ao fim do século xii, o problema da relação entre a razão e a fé começa a esboçar-se e a ser posto claramente na base da antítese potencial entre os dois termos. na terceira, que vai de 1200 aos primeiros anos de 1300, organizam-se os grandes sistemas escolásticos que constituem o que se costuma chamar o "florescimento da escolástica". na quarta, que compreende o século xiv, verifica-se a dissolução da escolástica pela reconhecida insolubilidade do problema que foi seu fundamento. todavia, ainda que acabada como período histórico, a escolástica permanece actual para exprimir a exigência, para o homem que vive numa tradição religiosa, de compreender e justificar racionalmente essa mesma tradição. esta exigência surge com frequência ao longo da história da filosofia. outras formas de escolástica, recorrendo às formas filosóficas na altura dominantes, apresentar-se-ão no ulterior decurso do pensamento filosófico. 16 § 174. o renascimento carolingio os séculos viii e ix -assinalam a concentração das forças sobreviventes da cultura nos grandes impérios do ocidente: o império árabe e o império carolíngio. tanto um como o outro tomaram possível um -renascimento cultural. carlos magno, pela própria necessidade de garantir a unidade do seu império e de administrá-lo, necessidade que exigia o emprego de numerosos funcionários

dotados de uma corta cultura, promoveu e encorajou os estudos. no período precedente, estes eram cultivados apenas nas regiões periféricas: por um lado, nas cidades da itália meridional, como nápoles, amalfi e salerno; por outro, nos mosteiros ingleses e irlandeses. na época carolíngia converteramse no património das grandes abadias, que exerceram a função que primeiramente havia pertencido às cidades. nos fins do século viii, a obra de alcuíno foi o início da -reconstrução intelectual da europa. tendo nascido em 730 na inglaterra, alcuíno formou-se na escola episcopal de york; em 781 foi chamado pelo imperador carlos magno para dirigir a escola palatina e transformou-se no organizador dos estudos no império franco. morreu no ano de 804. as obras de alcuíno são quase exclusivamente constituídas por extractos tirados de outros autores. a sua gramática foi obtida em prisciano, donato, isidoro, beda; a sua retórica num texto de cícero de inventione, a sua, dialéctica num texto pseudoagostiniano sobre as categorias. mesmo o texto de animae ratione ad eulaliam virginem, que é o primeiro tratado de psicologia da idade média, não passa de uma série de extractos de agostinho e cassiano. alcuíno é o grande organizador do ensino no reino franco. foi ele quem ordenou os estudos segundo as sete disciplinas do trívio e do quadrívio, o a que chama as sete colunas da sabedor-ia (patri. 17 lat., 101, 853 c). no seu escrito teológico sobre a trindade (de fide sanctae et individuae trinítatis, três livros), alcuíno trata da essência divina, das propriedades de deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção, mantendo-se em tudo fiel à especulação de santo agostinho. tal como este, insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, em relação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas, adquirem um novo significado. em deus tudo se identifica: o ser, a vida, o pensamento, o querer e o agir, e no entanto ele é a simplicidade absoluta. num escrito seu sobre a alma, dedicado à jovem eulália, alcuíno define a alma como "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e

capaz de boa ou má vontade>. a alma assume vários nomes consoante as suas funções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentido enquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razão enquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. mas estas funções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de serem indicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (de animae ratione, 11). aicuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrina platónica: a racional, a irascível e a apetitiva. as três partes da alma racional, memória, inteligência e vontade reproduzem a trindade divina (segundo a doutrina de agostinho). a alma é o fundamento da personalidade humana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também ao corpo. a alma é incorpórea o como tal imortal. o seu bem mais @levado é deus e o seu destino é o de amar a deus. para tal destino a alma prepara-se através das virtudes; e entre estas alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé, esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia, 18 justiça, força e temperança, das quais dá definições platónicas de de officiis de cicero. a obra de alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. fredegiso, que lhe sucedeu como abade de s. martinho de tours e foi, a partir de 819, até 834, ano da sua morte, chanceler de ludovico o pio, compôs uma obra na qual se levantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (de nihilo et tenebris). fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se se nega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certa maneira é (patr. lat., 105. ., 751). o próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, uma vez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado. a expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a sua realidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjos e as almas dos homens. discípulo de alcuíno foi rabano mauro. nascido na mogúncia no ano de 776 ou 784, foi primeiro professor e depois abade no mosteiro de fulda; em 847 foi

nomeado arcebispo de mogúncia, onde morreu no ano de 856. rabano é considerado como o escritor da escola da alemanha. da escola de fulda saíram um grande número de doutores que foram ensinar pelas províncias vizinhas o que haviam aprendido com o seu mestre. um caso anedótico ;revela-nos a hostilidade de alguns eclesiásticos do tempo contra a cultura e a fama que rabano tinha conquistado. o abade de fulda apoderou-se um dia dos cadernos de rabano e dos seus alunos e declarou que proibia para o futuro a introdução de qualquer novidade no mosteiro; além disso empregou os monges mais aplicados em trabalhos pesados e contínuos. os monges apelaram para o rei que se pronunciou contra o abade. rabano foi reintegrado na sua cátedra continuando a leccio19 nar. os seus contemporâneos chamaram-lhe rabano o sofista. rabano preocupou-se sobretudo com a educação filosófica e teológica do clero. com este fim, compÔs três livros sobre a instrução dos clérigos (de institutione clericorum) que é uma compilação cujo material foi extraído dos padres da igreja, de isidoro e de beda. rabano insiste na necessidade e importância do estudo das artes liberais e também dos filósofos pa gãos e em particular dos platónicos. justifica a utilização da cultura profana com a teoria da injusta posse: "se os filósofos disseram nos seus escritos coisas verdadeiras e que estão de acordo com a fé, não se deve recear e retomá-los como injustos possuidores" (111, 26). na verdade, os filósofos descobriramnas enquanto guiados pela verdade, isto é, por deus: por isso elas não lhes pertencem, mas a deus. num tratado de universo, tirado em grande parte das etimologias de isidoro e da de natura reruni de beda, recolheu um rico material profano de ciências naturais. numa glosa às categorias de aristóteles, rabano nega, referindo-se à doutrina deste filósofo, a univocidade do ser, isto é, nega que o termo "ser" conserve o mesmo significado referindo-se a tudo o que existe, e afirma, em contrapartida, a sua equivocidade, a diversidade dos seus significados. a univocidade ou a equivocidade do ser devia converterse, no século xiii, num dos ternas fundamentais da polémica filosófica.

um discípulo de rabano, servato lupo, que foi abade de ferrières desde 842 até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suas cartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. o seu tratado sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e da eucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de agostinho. 20 da escola de alcuíno saiu também pascásio radoberto, abade de corbie desde 842 e falecido em 860. pascásio compôs em 831 a obra de corpore et sanguine domini. a sua obra major é um comentário ao evangelho de são mateus. na obra intitulada de fide, spe et charitate, distingue três espécies de coisas críveis. a primeira é a das que se podem crer imediatamente, como as coisas visíveis; a segunda, a das coisas que se podem crer e compreender ao mesmo tempo, como os axiomas e as verdades racionais. a terceira é a das coisas que a revelação ensina acerca de deus; e estas não são simultaneamente críveis e compreensíveis, devem ser primeiramente cridas com todo o coração o com ,toda a alma, para depois serem compreendidas. pascásio exprime assim aquela precedência da fé sobre a razão que devia ser a especulação de anselmo. um outro monge de corbie, godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou com particular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina da dupla predestinação. sustentava que deus predestina tanto o bem como o mal e que alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morte espiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque deus os criou desde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo. esta doutrina da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre de godescalco, o monge ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida pelo arcebispo de reims hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamente através da refutação deste último. § 175. henrique e remigio de auxerre henrique de auxerre (841-876) foi discípulo de servato lupo e continuou a

tradição humanística 21 do mestre. com efeito, foi autor de uma vita s. germatú, em verso, que enriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da divisio naiurae de joão escoto. a ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um texto pseudo-agustiniano sobre as categorias. estas glosas apresentam uma tese que será a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais não são realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidas pela experiência. a formação dos conceitos de género e espécie é feita por uma exigência de economia mental. uma vez que os nomes dos seres individuais são inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixálos, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão), com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveis indivíduos. mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e, por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplos e menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. em seguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo que permite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância. um discípulo de henrique, remígio de auxerre (841-908) ensinou na escola de auxerre todas as artes liberais e especialmente a gramática, a dialéctica e a música. escreveu comentários às obras de gramáticos e poetas latinos; ao génesis e aos s mos. o seu comentário a marciano capella possui significado filosófico. ao contrário do seu mestre henrique, remígio inclina-se para o -realismo, ou seja, para a afirmação da realidade substancial dos conceitos. remí gio sustenta que o conceito mais geral que a inteligência pode alcançar é o da essência, que compreende todas as naturezas; e que tudo o que existe, existe pela participação na essência. 22 a essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é o indivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível.

segundo esta doutrina, que se relaciona com a de joão escoto, o indivíduo seria o resultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. igualmente se relaciona com o platonismo a doutrina de remígio sobre o conhecimento humano. a natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelo pecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforços fatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem à inteligência. assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticos ou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. com efeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo para a luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado. nota bibliogrÁfica § 173. a tentativa de compreender a escolástica do ponto de vista do conteúdo, como uma síntese doutrinal, foi levada a efeito por de walf, histoire de ia phil. méd., (v. ediç. 1924 e ediç. post.) que colocou os fundamentos desta síntese na geração da comunidade entre o ser divino e o ser das criaturas, na afirmação do valor da personalidade humana, na existência de uma essência supra-material e na objectividade do saber humano. de walf considerou anti-escolásticos os sistemas que se afastam destes fundamentos, por exemplo, o de escoto erigena, o panteísmo do sé culo xii, a averroísmo. mas aqueles fundamentos são tão genéricos que não chegam para caracterizar a escolástica e explicar as suas mais importantes afirmações. para o estudo da escolástica são fundamentais, além da patrologia grega e latina de migne, as seguintes colecções de textos e estudos: barach e worbel, bibliotheca philosophiae mediae aetatis baeumker, reitrage zur geschichte der philosophie des mittelal23 ters, textos e investigações, mónaco, a partir de 1891; elaurÉau, notices et extraits de quelques manuscrits de ia bibliothêque nationale, paris, 18901893, 6. vols. não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quais existem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e que possivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficos re@ferid4ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota

bibliográfica referente a cada um dos filósofos. obras de carácter geral sobre a escolástica: sockl, geschichte der philosophie des mittelalters, 3 vols., mogúncia, 1864-1866; haurÉau, histoire de ia philosophie scolastique, 2 vol., paris, 1872-1880; pimvet, essai d'une histoire générale et comparée des philosophies médiéval,es, paris, 1905, 2.1 ed., 1913; baeumker, die ehristliche philosophie des mittelalters, in allgem-eine geshichte der philosophie, leipsig, 1913; grabmann, geschichte der scholastischen me@ thode, 2 vols., freiburgo, 1909-1911; 1956 (ed. fotoestática); duhem, le systême du monde, de platon à copernic, 10 vols., paris, 1913-1959; gilson, la philosophi,e au moyen age, 1922, 1952; wesprit de ia philosophie médiévale, paris, 1932, 1944; brÉhier, la philosophie du moyen áge, paris, 1937; copleston, a histgry of philosophy, h: medieval philosophy, londres, 1958; vignaux, la philosophie du moyen âge, paris, 1958; vasoli, la fij-osofia mediovale, milão, 1961. para bibliografia especial: ueberweg-geyer, die patristische und scholastische philosophie, berlim, 1928; de brie, bibliographia philosophica, 1934-1945; 2 vols., bruxelas, 1950-1954; mosciietti, bibliografia critica general per ia storia del pensiero cristiano, in grande antologia filosofica, iii, milão, 1954; vasoli, op. cit. para ulteriores actualizações bibliográficas: repertoire bibliographique de ia revue philosophique de louvain. § 174. sobre o renascimento carolíngio: brunhes, la foi chrétienne et ia philosophie au temps de ia renaissance carolingienne, paris, 1903; pirenne, mahomet et charlemagne, paris, 1937. as obras de aicuino em pat. lat., 100.,_101.o_ e. m. wilmont-13uxton, alcuin, londres, 1922. o texto de fredegiso em pat. lat., 105.1, 751-756. -geymonat, 1 problemi del nulila e delle- tenebre in fredegiso di tours, in saggi di filosofia neorazionalistica, turim, 1953, p. 101-111. 24 alcuino as obras de servato lupo in pat. lat., 119.1, 431-700.

as obras de pascásio radúberto in. pat. lat., 120.o. as obras de ratramno in pat. lat., 121.o, 13-346. as obras de i-linkmar in pat. lat., 125.--126.o. sobre este autor: j. a. endres, em "beitrage", xvii, 2-3. § 175. de henrique de auxerre, la vita de san germano, editada em "mon. germ. hist.". poeti latini dell'evo carolingio, m, 428-517. excertos das glosas ao texto pseudo-agustiniano em cousin, inédits d'abélard, p. 621, e haureau, de ia phil. schal., i, p. 131-143. de remígio os comentários in pat. lat., 131.1, 51-134.-j. burnam, commentaire anonyme sur prudence d'après de ms. 413 de valenciennes, paris, 1910. 25 11 joÃo escoto erÍgena § 176. joÃo escoto: a personalidade histÓrica inesperadamente aparece, na primeira metade do século ix, a grande figura de joão escoto. na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homem dotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidade especulativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. através de santo agostinho, joão escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito da investigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica da grécia. erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-as decididamente. quando tropeça com a realidade incompreensível de deus ou da essência das coisas, não afasta as armas dialécticas nem prescreve o abandono, à fé, mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito da investigação, dialectiza-a e faz dela um elemento de clareza. a razão preguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formas de entrincheirar-se por detrás das exigências da fé, não consegue assenhorear-se dele. 27 a obra de joão escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução da escolástica. as suas fontes principais são as obras de santo agostinho, do pseudo-dionísio (que o próprio escoto traduziu do grego) e dos padres da

igreja, especialmente de s. gregório e s. máximo. em toda a especulação posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele directa ou poa. o papa honório 111, -numa bula de 23 de janeiro de 1225, condenou a sua obra-prima: de divisione naturae. muitos doutores escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suas afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco fundamental na filosofia escolástica. § 177. joÃo escoto: vida e obra joão escoto é chamado erígena devido ao facto de ter nascido na irlanda (eriu-erin, irlanda). a data do seu nascimento deve andar à volta de 810. não se sabe com precisão o ano em que se dirigiu a frança, para a corte de carlos o calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. com efeito, escoto erígena participou na controvérsia teológica suscitada pela tese do monge godescalco sobre a predestinação, ora a condenação de godescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. muito provavelmente, a vinda de joão escoto para frança foi anterior ao ano de 847. carlos o calvo nomeou-o director da academia do palácio, a schola palatina, em paris; a convite do mesmo rei, erígena traduz as obras de dionísio o areopagita, cujos textos o imperador bizantino, miguel balbo, tinha oferecido a ludovico pio no ano de 827. o papa nicolau 1 queixou-se ao rei do facto de erígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de a publi28 car e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha. depois da morte de carlos o calvo, no ano de 877, não há notícias seguras sobre joão escoto. segundo alguns, teria morrido em frança nesse mesmo ano; segundo outros, teria sido chamado pelo rei alfredo o grande, para a escola de oxford e, mais tarde, como abade de malmesbury ou de athelney, teria sido assassinado pelos monges. a actividade filosófica de joão escoto pode ser dividida em dois períodos. no primeiro período, escoto erígena inspirou-se sobretudo nos padres latinos, isto é, em gregório magno, isidoro e especialmente em santo agostinho. a este período pertence o texto contra o monge godescalco: de divina praedestinatione. num segundo período, erígena sofre a influência dos

teólogos e filósofos gregos. em 858, traduz os textos do pseudodionísio o areopagita; em 864, os ambígua de máximo o confessor e o texto de hominis opificio de gregório de nisa. estes trabalhos guiaram-no na criação da sua obra-prima, a de divisione naturae, em cinco livros. escrita em forma de diálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da idade média. esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o método apriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. as glosas de erígena aos opuscula theologica de boécio, são o comentário mais antigo aos escritos teológicos de boécio. muito conhecidas na idade média, mas nunca impressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de 870, e apresentam com a divisio naturae a mesma relação que existe entre as retractationes e as outras obras de santo agostinho. a cultura e capacidade especulativa de joão escoto colocam-no acima do nível dos seus con29 temporâneos. não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores e do espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como da orientação especulativa. § 178. joÃo escoto: fÉ e razÃo o pressuposto da investigação de joão escoto é o acordo intrínseco entre razão e fé; entre a verdade a que chega a livre investigação e a que é revelada ao homem pela autoridade dos livros sagrados e dos escritores iluminados. "não há salvação para as almas dos fiéis se não em crer no que se diz com verdade sobre o único princípio das coisas, e em entender o que com verdade se crê" (de div. nat., 11, 20). a autoridade das sagradas escrituras é indubitavelmente indispensável ao homem, porque só elas podem conduzi-lo aos lugares secretos em que reside a verdade (1, 64). mas o peso da autoridade não deve, de forma alguma, afastá -lo daquilo que a recta razão o persuada. "a verdadeira autoridade não cria obstáculos à recta razão, nem a recta razão cria obstáculos à autoridade. não há dúvida de que ambas dimanam de uma fonte única, isto é, da sabedoria divina" (1, 66). mas a

dignidade maior e a prioridade da natureza correspondem à razão, e não à autoridade. a razão nasceu no princípio dos tempos, juntamente com a natureza: a autoridade nasceu depois. a autoridade deve ser aprovada pela razão, de contrário poderá não parecer sólida: a razão não precisa de ser apoiada ou corroborada por qualquer autoridade. em suma, a própria autoridade nasce da razão, porque a verdadeira autoridade não é mais que a verdade descoberta pela razão dos santos padres e por eles transmitidas por escrito em benefício da posteridade (1, 69). e joão escoto coloca na boca 30 do mestre, que é o principal interlocutor do diálogo, um enérgico convite à livre investigação: "devemos, seguir a razão que procura a verdade e não está oprimida por qualquer autoridade e que de nenhuma maneira pode impedir que seja publicamente exposto e difundido aquilo que os filósofos procuram assiduamente e com dificuldade conseguem encontrar" (11, 63). esta enérgica afirmação da liberdade de investigação, que faz de escoto erígena um sobrevivente exaltado do espírito filosófico dos gregos, não implica neste autor qualquer limitação ou negação da religião. e isto porque a religião não se identifica com a autoridade, mas com a investigação. religião e filosofia são uma e a mesma coisa: "que significa -lidar com a filosofia senão expor as regras da verdadeira religião, por meio das quais a suma o principal causa de todas as coisas, isto é deus, é humildemente adorada e racionalmente investigada? (de praedest., 1). joão escoto, neste ponto, está muito próximo do espírito de investigação agustiniana, para a qual a fé é mais um ponto de chegada que de partida, e no término da longa e laboriosa via da investigação, e muito mais um princípio, uma direcção, um guia da investigação, do que um limito ou um obstáculo. e de facto, o pressuposto agustiniano da verdade suprema, que se revela e afirma na investigação humana, volta a repetir-se- em escoto erígena. a natureza humana considerada por si, é uma substância em trevas que, não obstante, é capaz de participar da luz da sabedoria. quando o ar participa do raio solar não significa que o mesmo seja luminoso por si, mas pelo esplendor do sol que nele aparece. assim acontece com a parte racional na nossa natureza quando participa do verbo, ou seja, da verdade divina, que por si só não

compreende as coisas inteligíveis e deus e apenas as conhece por inter31 médio da luz divina que nela existe (de div. nat., 11, 23). na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luz divina que no homem procura. a palavra de jesus, segundo s. joão: "não sois vós que falais é deus que fala em vós" é entendida por escoto da seguinte forma: "não sois vós que me compreendeis, sou eu que mo compreendo a mim próprio em vós, através do meti espírito" (hom. in joh., p. 291-a). § 179. joÃo escoto: as quatro naturezas o título da obra principal de joão escoto: * divisão da natureza é de pura origem platónica. * "divisão" a que se refere significa a operação fundamental da dialéctica platónica, operação que erígena defende como constitutiva da própria estrutura da natureza; e a "natureza", segundo os ensinamentos do parménides e do sofista, é o conjunto do ser e do não ser. retomando um modelo de santo agostinho (de civ. dei, v, 9). erígena divide * natureza em quatro partes. a primeira natureza cria e não é criada: é ela * causa de tudo o que é e que não é. a segunda é criada e cria, constitui o conjunto das causas primordiais. a terceira é criada e não cria e corresponde ao conjunto de tudo o que é gerado no espaço e no tempo. a quarta não cria nem é criada, é o próprio deus, como fim último da criação (de div. nat., 1, 1). faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudo aquilo que não é. pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação das várias determinações possíveis do ser. deste modo poderá afirmar-se que não são as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe32 riores em relação às coisas superiores e celestes, ou as coisas futuras que ainda não são; ou as que nascem e morrem; ou, em suma, as que transcendem o entendimento e a razão. to-das as coisas deste género, de certa forma, não

são: todavia não se identificam com o nada e, constituem parte da realidade universal a que escoto chama natureza (1, 3 e segs.). as quatro naturezas constituem o círculo vital do ser divino: "em primeiro lugar, deus descende da super-essencialidade da sua natureza, na qual deve dizer-se que ele não é; criado por si próprio nas causas primeiras, convertese em princípio de toda a essência, de toda a vida, de toda a inteligência, o que a teoria gnóstica considera como causas primordiais. em segundo lugar, ele desce às causas primordiais que estão entre deus e a criatura, entre a inefável super-essencialmente de deus, que transcende toda a inteligência e a natureza que se manifesta aos que têm um espírito puro; encontra-se no efeito das causas primordiais e manifesta-se abertamente nas suas teofanias. em terceiro lugar, procede através das formas múltiplas de ta-is efeitos até à última ordem da natureza inteira que contém os corpos. deste modo, procedendo ordenadamente em todas as coisas, cria todas as coisas e acaba por ser tudo em tudo; e volta a si próprio, chamando a si todas as coisas, e apesar de se encontrar em todas as coisas, não deixa de estar acima de tudo" (111, 20). este círculo, pelo qual a vida divina procede a constituir-se constituindo todas as coisas e com elas torna a si própria, é o pensamento fundamental de joão escoto. nele se encontra contida e determinada a relação entre deus e o mundo. o mundo é o próprio deus, enquanto teofania ou manifestação de deus; mas deus não é o mundo, porque 33 ao criar-se e converter-se em mundo, se mantém acima dele. § 180. joÃo escoto: a primeira natureza: deus a primeira natureza é deus, na medida em que não tem princípio, e é a causa principal de tudo o que procede d'ele. com efeito, deus é o princípio, o meio e o fim: é princípio na medida que d'ele derivam todas as coisas que participam da essência; é o meio, na medida em que n'ele e por ele subsistem

e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas se movem para ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da sua perfeição (1, 11). como princípio, meio e fim, a natureza divina não se limita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que ela própria cria, tal como o nosso intelecto se cria a si próprio através dos pensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (1, 12). deus é incriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima de todos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. É unidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na sua singularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingénita, o pai; a substância génita, o filho; a substância procedente da ingénita e da génita, o espírito santo. joão escoto vai buscar ao pseudo-dionísio, a distinção das duas teologias: a positiva e a negativa. a primeira afirma de deus todos os atributos que lhe correspondem. a outra nega que a substância divina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; isto é: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida. mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a deus assumem nesta referência um valor diferente daquele que possuem quando se 34 referem às coisas criadas. deus não é propriamente essência, mas superessência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todos os caracteres positivos que possam ser atribuídos a deus. de modo que a própria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhe queira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que deus é a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele seja essência (1, 14). É certo que a deus não se pode atribuir nenhuma das categorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significado diferente. se deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um género (como, por exemplo, animal). ora deus não é nem género nem espécie nem acidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificálo (115). a conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relação a deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d'ele. "ele supera todo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo que o conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeira sapiência" (1, 66).

mas se deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por si próprio na criação, que é uma contínua manifestação d'ele ou teofania. a essência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturas intelectuais e é possível conhecê-la nelas. teofania é o processo que desce de deus ao homem através da graça, para regressar do homem a deus, com o amor. teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifeste a essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (1, 10; v, 23). cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processo da teofania. o pai é o criador de tudo, o filho cria as causas primordiais das coisas que 35 subsistem nele de forma universal e simples; o espírito santo multiplica estas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por géneros e espécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, quer das sensíveis (11, 22). § 181. joÃo escoto: a segunda natureza: o verbo a segunda natureza, a que é criada e cria, corresponde à segunda pessoa da trindade. contém as ideias e as formas das coisas; é portanto o verbo divino, através do qual todas as coisas foram criadas. escoto interroga-se sobre o valor causal que podem ter as formas subsistentes no verbo divino; se os corpos do mundo são formados por elementos que foram criados do nada. se o nada fosse efectivamente a origem de tais corpos, teria sido também a sua causa. sendo assim, o nada seria melhor que as próprias coisas de que foi causa, uma vez que a causa é sempre superior ao efeito. escoto resolve a dificuldade afirmando que os elementos que compõem o mundo não foram criados pelo nada, mas pelas causas primordiais. e volta a levantar o problema a propósito destas últimas. teriam sido estas criadas do nada? escoto responde que também estas não foram criadas do nada; sempre estiveram com o verbo porque são coessências. a criação do nada não se refere às causas primordiais, nem tão-pouco às coisas que dependem delas. o nada não encontra lugar nem dentro nem fora de deus. o facto de as coisas terem sido criadas do nada significa apenas que existe um sentido no qual não são: com efeito, as coisas tiveram um princípio no tempo através da geração e antes desta não apareciam nas formas nem nas espécies do mundo

sensível. mas, noutro sentido, são sempre, já que subsistem como causas primordiais no verbo 36 divino, na qual nunca começam ou deixam de existir (111, 15). a teofania divina começa nas causas primeiras que subsistem no verbo. para elas, o próprio criador é criado por si mesmo e por si se cria, isto é, começa por surgir nas. suas teofanias, a emergir dos recessos da sua natureza o a descer aos princípios e às coisas, começando assim a existir juntamente com elas (111, 23). joão escoto, ao longo de toda a sua obra, insiste na identidade essencial das criaturas com o criador, na permanência da criatura na própria essência do criador, ria presença substancial deste naquelas. o mundo é o próprio deus na sua auto-revelação. tal é o princípio que domina toda a especulação de erígena. deus não pode, certamente, subsistir antes do mundo. deus precede o mundo, não no tempo, mas apenas racionalmente enquanto causa dele. mas não começa a ser causa num momento dado, uma vez que é essencialmente causa e, embora não fosse causa se não criasse o mundo, a sua criação deve ser eterna, co-eterna com ele (111, 8). "deus não existia antes de criar todas as coisas" q, 72) afirma escoto. § 182. joÃo escoto: a terceira natureza: o mundo a terceira natureza, criada e não criadora, é o próprio mundo-o conjunto universal das coisas sensíveis e não sensíveis que procedem das causas primeiras pela acção distributiva e multiplicadora do espírito santo. escoto -sustenta que todos os corpos do mundo são constituídos de forma e matéria. a matéria, quando privada de forma e de cor, é invisível e incorpórea e é por isso, objecto não dos sentidos mas da razão. É resultado do conjunto das diversas qualidades, por si mesmas incorpóreas, que a cons37 tituem reunindo-se conjuntamente: e transforma-se nos distintos corpos à medida que se lhe juntam as formas e as cores (111, 14). também a terceira natureza, isto é, o mundo, não se distingue na realidade do verbo divino. a razão, afirma energicamente escoto, obriga-nos a reconhecer que no verão não só subsistem as causas primeiras, como ainda os seus efeitos, e do mesmo modo, nele se encontram os lugares e os tempos, as

substâncias, os géneros e as espécies, até as espécies especialíssimas representadas pelos indivíduos com todas as suas qualidades naturais. numa palavra, subsiste no verbo tudo o que está reunido no universo das coisas criadas, tanto o que é compreendido pelos sentidos, ou pela inteligência humana ou angélica, como o que transcende os sentidos e a própria mente (111, 16). o mundo foi certamente criado: afirma-o a sagrada escritura. o mundo é certamente eterno, porque subsiste no verbo; afirma-o a razão. de que maneira se conciliam criação e eternidade, é problema que a mente humana não pode resolver. mas, na realidade, talvez o problema seja mais aparente do que real. as coisas que subsistem no espaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundo sensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem em deus, e são o próprio deus. não se trata de duas substâncias diversas, mas de dois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do verbo divino, ou na vida do tempo. assim, não há duas substâncias "homem", uma como causa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, que pode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seus efeitos criados. entendida da primeira forma, está livre de toda a mutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades 38 e quantidades diversas e é susceptível de ser conhecida pela inteligência (iv, 7). vê-se assim, que deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas. a ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem e estão. a sagrada escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outro lado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixará também de ser o que é. pois bem, se os princípios do mundo são as causas de que saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. o mundo não será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminado o seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. pois bem, as causas primeiras do mundo são o próprio verbo divino: ao verbo divino voltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. uma vez reunido a deus, para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior a atingir o necessariamente repousará. por isso o princípio e o fim do

mundo subsistem no verbo de deus e são o próprio verbo (v, 3, 20). se a tese típica do panteísmo é de que deus é a substância ou a essência do mundo, não há dúvida de que a doutrina de escoto é um rigoroso panteísmo. "deus está acima de todas as coisas e em tudo, disse escoto, só ele é a essência de todas as coisas porque só ele é; e, sendo tudo em tudo, não deixa de ser tudo fora de todas as coisas. ele é tudo no mundo, tudo ao redor do mundo, tudo ria criatura sensível, tudo na criatura inteligível, é tudo ao criar o universo, torna-se tudo no universo, está todo em todo o universo, está todo nas várias partes deste, porque ele é o todo e a parte e não é nem o todo nem a parte" (iv, 5). constantemente, o panteísmo, quer na filosofia medieval quer na moderna, assumiu como princípio seu a tese-deste modo expressa,-de que deus é 39 a substância do mundo. por outro lado, poderá compreender-se que uma outra enérgica afirmação de escoto erígena, a de que deus está fora de todo o universo e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova do carácter não panteísta da sua doutrina. § 183. joÃo escoto: o conhecimento humano o homem interior é uma imagem da trindade divina. escoto retoma e desenvolve, à sua maneira, este pensamento de santo agostinho. as três pessoas divinas relacionam-se entre si como a essência (ousia,) a potência (dytzaniis) e o acto (energheia). na alma humana, a essência é a inteligência ou nous, que é a parte mais elevada da nossa natureza e pode perceber deus e as coisas nas suas causas primordiais. a razão ou logos corresponde à virtus ou dynamis e refere-se aos princípios das coisas que vêm imediatamente a seguir a deus. o sentido interior ou dianoia corresponde ao acto ou energheia e diz respeito aos efeitos, visíveis ou invisíveis, das causas primordiais. este sentido interior é essencial à razão e ao entendimento, apesar de o sentido interior, que se serve dos cinco órgãos e reside no coração, pertencer mais ao corpo do que à alma e perecer com a dissolução do corpo (11, 23).

a estas três partes da alma correspondem três movimentos diversos: segundo a alma, segundo a razão, segundo os sentidos. o primeiro movimento é aquele mediante o qual, a alma se move até ao deus desconhecido, para além de si própria e de toda a criatura. através deste primeiro movimento, deus aparece à alma como transcendente a tudo o que é e como absolutamente indefinível. o segundo movimento é aquele pela qual a alma define o deus desconhecido como causa de todas as coisas, por40 anselmo de aosta que nele estão as causas primordiais. o terceiro movimento é o que diz respeito às razões das coisas singulares. parte das imagens recolhidas pelos sentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimas das coisas das quais são imagens. através deste movimento, a própria imagem sensível transfigura-se. de imagem impressa nos órgãos dos sentidos, transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamente desta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razões eternas das coisas (11, 23). a correspondência entre a alma e deus estende-se também àquilo que diz respeito ao conhecimento que a alma tem de si própria. como deus é cognoscível. através das suas criaturas, mas incompreensível em si próprio, já que nem ele próprio nem outro pode entender que coisa seja, uma vez que não possui um quid, uma essência determinada que se possa entender, assim a alma humana sabe que é, mas de nenhuma maneira pode conhecer aquilo que é. e isto não é um limite ou uma imperfeição da própria mente. assim como a melhor maneira de aproximarmo-nos de deus não é a afirmação mas a negação, não é o conhecimento mas a ignorância, porque deus, não tendo limites, não pode ser definido nem restringido a uma essência determinada; também se à alma fosse possível conhecer a sua própria essência, isso significaria a possibilidade de circunscrevê-la e implicaria a sua dissemelhança com o criador (iv, 7). § 184. joÃo escoto: divindade do homem

circula em toda a obra de joão escoto o sentido do valor superior e divino do homem. o pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de 41 santo agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuarse neste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidades e do seu êxito final. "0 homem, afirma, não foi chamado imerecidamente fábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele. compreende como o anjo. raciocina como homem, sente como animal irracional, vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisa criada". em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, por carecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (111, 37). muito significativas são as considerações que escoto tece, com visível complacência, em torno do tema "se o homem não pecasse ... ". se o homem não pecasse seria de certo omnipotente como deus. com efeito, nada o separaria de deus, e ele, que é a imagem de deus, participaria totalmente na perfeição do seu modelo. pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como deus, conheceria nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. se o primeiro homem não tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana terse-ia transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa mesma coisa. e isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "se, afirma escoto, eu compreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. e quando tu compreendes o que, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e correctamente compreendemos. porque o homem é verdadeiramente o seu entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da verdade (iv, 9). 42 a perfeição do homem é tão grande que nem mesmo o pecado original chega para destruí-ia. com elo o homem não perdeu a

sua natureza que, enquanto imagem de deus, é necessariamente incorruptível; perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse desprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz escoto, que a natureza humana, feita à imagem de deus, nunca perdeu a força da sua beleza e a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. uma forma, divina como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz de suportar a pena do pecado" (v, 6). com o mesmo optimismo escoto considera o destino último do homem. a morte é para o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se com deus. não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeu ao pecar. a primeira fase deste retorno a deus dá-se quando o corpo se dissolve nos quatro elementos de que é formado. a segunda fase é a ressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através da reunião dos quatro elementos. na terceira fase, o corpo transformar-seá em espírito. na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causas primordiais, que subsistem em deus de forma imutável. na quinta fase, a natureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em deus "como o ar se move na luz" (v, 8). este triunfo final da natureza humana não será, no entanto, uma anulação em deus. o dissolver-se místico do homem em deus está excluído por joão escoto. o destino da natureza humana não é o de perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância, de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do ser divino, como o ar na luz. o misticismo neoplatónico é aqui corrigido 43 pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qual conserva, mesmo perante deus, e em virtude de deus, a sua autonomia substancial. § 185. joÃo escoto: o mal e a liberdade humana esta mesma posição leva joão escoto a modificar a doutrina agustiniana da liberdade humana. de santo agostinho, retoma o ponto de partida para a sua doutrina do mal. que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade, é para escoto erígena um pressuposto evidente. deste pressuposto tira a conclusão de que deus não conhece o mal. com efeito, o conhecimento divino é imediatamente criador: deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as

coisas são porque deus as conhece. a causa da sua essência é a ciência divina. tudo o que é, é pensamento divino. o homem é definido por escoto como "uma noção intelectual eternamente criada na mente divina"; e esta mesma definição aplica-se a tudo o que existe (iv, 7). daqui se conclui que se deus conhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real no mundo (11, 28). mas o mal não é real. não é algo substancial e as próprias aparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são por si, más. um objecto belo e precioso que inspira ambição no avarento pode inspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. não é, portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas a disposição maléfica daquele que a contempla (iv, 16). do mal, que não é realidade, não há portanto em deus presciência; nem tão-pouco predestinação. a pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por deus; pois também ela é dor e privação, e não uma realidade 44 positiva. a pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligada a ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mente divina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (de praedest., 15, 8). quando as sagradas escrituras falam de predestinação ou de presciência divina do mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamos saber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois das aclamações e a tristeza depois da alegria. mas as trevas, o silêncio, a tristeza, não são mais que noções negativas e indicam. apenas a ausência das realidades -positivas correspondentes (ibid., 15, 9). para escoto, tal como para santo agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à deficiência ou ausência de vontade. mas enquanto para santo agostinho a vontade livre é unicamente a vontade do bem, para escoto erígena a vontade livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. esta mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (do div., nat., iv, 14). mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. se deus tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa direcção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e

em parte não livre. ora uma liberdade parcial não é possível. se mesmo numa parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. um livre arbítrio que oscila não pode permanecer de pé (de praedest., 5, 8). se se afirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrio claudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio a justiça divina não poderia exercer-se. uma vez que a jus45 tiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de deus em reconhecer a cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. mas que significado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudesse fazer o bem? deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qual ele pudesse pecar ou não pecar. só um livre arbítrio assim criado torna o homem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina (ibid., 5, 9). a liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou não pecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de ser premiado ou castigado segundo um juízo. e como só a vontade dotada de livre arbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada por deus. também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede de vingança, têm em vista a correcção dos réus e castigam não a sua natureza, mas apenas os seus delitos. do mesmo modo, a punição divina do pecado dirigese apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva a natureza do pecador, que permanece capaz de regressar a deus, no triunfo final (v, 31). para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua natureza como pela graça divina. o homem deve à própria natureza o haver sido retirado do nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa à substância divina. a natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebido pela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem. § 186. joÃo escoto: a lógica de acordo com a orientação platonizante do sistema, a lógica de escoto erígena é realista: pressupõe a realidade objectiva de todas as deter46

minações lógicas universais, de todos os conceitos de género e espécie. está no espírito de uma lógica que quanto mais um conceito é universal, tanto maior é a sua realidade objectiva; assim os conceitos dos géneros supremos são mais reais que os dos géneros menos extensos; e os conceitos de género são mais reais que os conceitos de espécie, nos quais todo o género se subdivide; enfim, as espécies especialíssimas, isto é, os indivíduos, têm uma -realidade menor que as espécies superiores ou mais extensas. comentando uma passagem bíblica, escoto afirma que deus criou primeiro o género, porque nele se contêm e estão reunidas todas as espécies; o género divide-se em seguida e multiplica-se nas formas gerais e nas espécies especialíssimas. daqui pode tirar-se uma conclusão fundamental sobre o valor objectivo da dialéctica: "a arte que divide os géneros em espécies e resolve as espécies e os géneros, a chamada dialéctica, não foi criada através das investigações humanas, mas baseia-se na própria natureza e foi criada pelo autor de todas as artes que são verdadeiramente artes, descoberta pelos sábios e empregada para proveito de toda a classe de investigações sobre as coisas." (iv, 4". e assim a tábua lógica dos conceitos dispostos segundo a ordem da sua universalidade, identifica-se, segundo escoto, com a ordem metafísica das determinações do ser. a mais universal determinação lógica, e por conseguinte, a mais real determinação objectiva, é a essência (ousia), que é incorpórea, simples e indivisível. a essência existe nos géneros e nas espécies, mas não se divide neles, permanecendo não-multiplicada, mesmo que se multiplique nos géneros, nas espécies e nos indivíduos (1, 34). "a essência subsiste toda reunida, está eterna e imutavelmente nas suas subdivisões, e todas as suas subdivisões constituem simultaneamente e sempre, nela, uma 47 unidade inseparável" (1, 49). na realidade uma só, é o próprio incompreensível como o próprio deus; o que se com o intelecto em toda a criatura,

por isso, a essência de todas as coisas é deus (1, 1). É incognoscível, e percebe com os sentidos ou se compreende é apenas algum acidente da essência

incompreensível (1, 3). a lógica de escoto, que nasceu dois séculos antes de a discussão sobre os universais se transformar no problema fundamental da dialéctica, apresenta antecipadamente a solução tipicamente realista do problema e é a fonte de todas as soluções do mesmo tipo que foram adoptadas depois. representa também o papel de um termo de comparação polémico para as escolas anti-, realistas. nota bibliogrÁfica § 177. as obras de joão escoto e as suas traduções do pseudo-dionísio e dos ambígua de mássimo o confesor, in p. l. 122.1; de divisione naturae, ed. schlüter, munique, 1938; commentarius ad opuscula boethii, ed. rand, mónaco, 1906;autographa, ed. rand, mónaco, 1912. § 178. j. huber, johannes scotus erigena, 1861, ed. fot., 1960; bett, j. s. e., cambridge, 1925; cappuyns, j. s. e., paris-louvaina, 1933, com bibl.; dal pra, s. e., milão, 1951 com bibliografia. § 181. gregory, sulla metafisica di g. s. e., in "giorh. crit. della fil. ital.", 1957; mediazione e incarnazione, n~ filosofia dell'e.> ib., 1960. 48 iii dialÉcticos e antidialÉcticos § 187. gerberto as condições políticas do século x, sobretudo a dissolução do império carolíngio, detiveram quase por completo a recuperação intelectual do ocidente. restabelecida a unidade do império com otão o grande, o movimento da cultura tornou a prosseguir. neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, gerberto, que se formou na escola de aurillac. a partir de 972 foi professor na escola de reims; em 982 foi designado abade de bobbio, em 991, arcebispo de reims; em 998, arcebispo de ravena; em 999, papa, com o nome de silvestre 11. morreu no ano de 1003. gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-

se no estudo da mecânica e das matemáticas. atribui-se-lhe a invenção de um relógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. para explicar a sua vasta erudição, um antigo cronista, vicente de beauvais (speculum historiale, xxiv, 98) conta que gerberto tinha feito uma larga estadia em espanha, 49 país de nigromantes. aí, conseguiu seduzir a filha de um desses doutores diabólicos e roubar-lhe, em seguida, os livros. o mago, advertido pelas constelações celestes, dispôs-se a perseguir o ladrão; este, no entanto, aproveitando-se das indicações dos mesmos astros, conseguiu furtar-se à perseguição que aquele lhe movera, escondendo-se durante uma noite debaixo do arco de uma ponte destruída. o diabo em pessoa foi buscá-lo depois e levou-o sobre o mar para que um dia algum dos seus adeptos pudesse ocupar a cátedra do príncipe dos apóstolos. provavelmente, esta lenda fabulosa oculta a realidade de uma viagem de gerberto a espanha e da procedência árabe de boa parte da sua cultura. gerberto escreveu comentários à isagoge de porfírio, às categorias e ao livro de interpretatione, de aristóteles, e aos comentários lógicos de boécio. o seu escrito, de rationali et ratione uti, uma questão que disputou em ravena com otrício, na presença de otão ii, propõe-se investigar o significado da expressão "empregar a razão". a questão apresenta-se, à primeira vista, com carácter lógico-gramatical; mas a solução de gerberto eleva-a. a um plano metafísico. É regra fundamental da lógica aristotélica que o predicado seja mais universal que o sujeito: por exemplo, na proposição "sócrates é mortal", o predicado mortal é mais universal que o sujeito, porque pode referir-se a muitos outros seres além de sócrates. mas na expressão que se encontra em santo agostinho (de ord., 11, 12, 35): rationale, id est quod ratione utitur, o predicado "ratione utitur" é mais restrito que o sujeito "rationale", porque nem sempre quem é racional se serve efectivamente da razão. esta é a dificuldade que dá origem à discussão. para resolvê-la, gerberto distingue as substâncias necessárias e eternas das mutáveis e caducas. as primeiras são suprasensíveis, cognoscíveis apenas pela razão e sempre em acto. 50 as outras são sensíveis e naturais, sujeitas a mudança e, por conseguinte, à geração e à corrupção. ora, uma vez que todas as substâncias da primeira classe estão sempre em acto, o ser -racional e o servir-se da razão são

nelas completamente coincidentes; porque são racionais precisamente no sentido de que a sua razão está sempre em acto, ou seja, que sempre se servem dela. a situação é diversa quando se trata de substância da segunda classe. na alma, que está unida ao corpo, a racionalidade não está em acto, mas em potência, e passa da potência ao acto precisamente quando se diz que a alma "se serve da razão". daqui se conclui que, para a alma, o servir-se da razão não é um predicado necessário, como para as substâncias supra-sensíveis, que são razão em acto, mas um atributo acidental que pode acontecer ou não à racionalidade potencial da pró pria alma. deste modo, cerberto, empregava os conceitos aristotélicos de potência e acto, para chegar a uma distinção entre substâncias racionais puras e substâncias racionais sensíveis, que é de grande interesse para o posterior desenvolvimento da metafísica escolástica. § 188. dialÉcticos e antidialÉcticos a segunda metade do século xi e o século xii são, no ocidente, um período de florescimento intelectual. a cultura deixa de ser património das abadias e o ensino tende a organizar-se na forma que há-de possuir no século xiii com as universidades. este período representa a primeira verdadeira idade da escolástica que alcança a consciência do seu problema fundamental: o de compreender e justificar as crenças da fé. alguns julgam encontrar a solução do problema entregando-o à razão e à ciência que parece ser mais própria dele, a dia51 jéctica; outros desconfiam da dialéctica. e apelam para a autoridade dos santos e dos profetas, limitando a sua tarefa de investigação filosófica à defesa das doutrinas reveladas. daqui nasce a polémica entre dialécticos e teólogos e que ocupa o século xi. na realidade, mesmo os mais hostis à dialéctica, mesmo os mais acérrimos defensores da superioridade da fé, não abandonam a investigação, propriamente escolástica, do melhor caminho para levar o homem à inteligência das verdades reveladas. entre os dialécticos sobressai a figura de berengário de tours. formouse no convento de saint-martin, em seguida frequentou a escola de chartres, dirigida por fulberto, de quem foi discípulo. desdenhando as outras artes liberais, dedicou-se à dialéctica e em breve se divertia ao recolher nos

escritos dos filósofos argumentos contra a fé dos simples. conta-se que fulberto, no leito de morte, disse que berengário era um diabo enviado pelos abismos para corromper e seduzir os povos. o seu êxito como professor foi, todavia, enorme. no ano de 1040 chegou a arquidiácono de angers. morreu em 1088. berengário põe a razão acima da autoridade e exalta a dialéctica, sobrepondo-a a todas as ciências. baseando-se em santo agostinho, considera a dialéctica como a arte das artes, a ciência das ciências. recorrer à dialéctica significa recorrer à razão. e quem não recorre à razão pela qual o homem é a imagem de deus, abandona a sua dignidade e não renova em si, no dia a dia, a imagem divina (de sacra coena, edic. vischer, p. 100). a mais famosa das polémicas de berengário é a que se refere à eucaristia, que sustentou contra lanfranco, e à qual está dedicado o seu escrito de sacra coena adversus lanfrancum. berengário sustenta o princípio aristotélico de que os acidentes ou qualidades de uma coisa não podem subsistir sem a substância dessa mesma coisa. deste modo, no sacra52 mento da eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substância não pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devem permanecer como tais, mesmo depois da consagração. esta vem acrescentar à substância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de cristo. tal doutrina impugnava a definição dogmática. da eucaristia, que afirma a transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de cristo; e suscitou violentas polémicas. a doutrina de berengário foi condenada pela igreja. o mais notável adversário de berengário foi lanfranco de pavia, nascido no ano de 1010, aluno da escola de bolonha, já então florescente. lanfranco, dotado de um espírito aventureiro e entusiasta, percorreu a borgonha e a frança e fixou-se na normandia. aqui fez-se monge na abadia de bec, que através dele se tornou famosa. em 1070 foi nomeado arcebispo de cantuária; morreu em 1089. lanfranco é um adversário da dialéctica que é, segundo pensa, completamente incapaz de levar o homem a compreender os mistérios divinos.

declara energicamente que prefere ouvir discutir sobre os mistérios da fé com autoridades sagradas de que com razões dialécticas. (de corp. et sang. domitú, 7). "quem vive da fé, afirma, não procura analizá-la com a argumentação nem concebê-la com a razão; prefere prestar fé aos mistérios celestes em vez de se cansar em vão, pondo de lado a fé, para compreender o que não pode ser compreendido" (ibid. 17). mas, não obstante estas afirmações, lanfranco não deixou de ser um dialéctico. se a dialéctica, abandonada a si própria, falha no campo dos mistérios da fé, guiada e sustentada pela fé, pode prestar úteis serviços àquela. com este espírito comentou as cartas de são paulo, como nos dá testemunhos sigiberto de gemblou (de sctipt. eccles., c. 155; em patr. lat., 160, 582 c): "lanfranco, dia53 léctico e arcebispo de cantuária, expôs as cartas do apóstolo são paulo: e sempre que teve oportunidade, apresentou as suas teses, os seus argumentos e as suas conclusões segundo as regras da dialéctica". pode dizer-se que na relação entre a razão e a fé, lanfranco escolheu a mesma posição que depois foi assumida pelo seu grande discípulo, anselmo de aosta. contra os dialécticos polemizou pedro damiano, nascido em 1007 em ravena. em 1035 retirou-se para viver como ermitão em fonte avellana, e dali foi chamado, no ano de 1057, para ser consagrado cardeal-bispo de aosta. morreu em faenza em 1072. a maior parte da obra de pedro damiano é dedicada à ascese monástica e a questões eclesiásticas. a sua posição perante a dialéctica e as ciências mundanas está expressa na obra que compôs em 1067, de divina omnipotentia. "muitas vezes, afirmou, a virtude divina destrói os silogismos armados pelos dialécticos e as suas subtilezas e confunde os argumentos que foram considerados inevitáveis e necessários pelos filósofos" (de div. omnip., 10). a dialéctica e, em geral, toda a arte ou perícia humana não deve chamar a si arrogantemente o trabalho principal e pelo contrário deve servir velut ancilla dominae quodam famulatus obsequio (ibid. 5). a tese típica de pedro damiano é a da superioridade da omnipotência divina nos confrontos da natureza e da história. uma vez que as leis são atribuídas à natureza por deus, as coisas naturais obedecem às suas leis até que deus o

queira; mas, quando deus não quer, esquecem a sua natureza e obedecem a ele. a omnipotência divina não encontra nenhum limite, nem mesmo no passado: pois deus pode fazer com que as coisas que aconteceram não tenham acontecido: portanto o pode (no tempo presente) refere-se à vontade de deus que é eterna e está fora do tempo; e nós devemos antes dizer que podia 54 não fazê-las acontecer. a muitos dos próprios escolásticos considerações semelhantes parecerão implicar a tese da superioridade da omnipotência divina em relação ao próprio princípio da contradição: aquela tese pode, com efeito, exprimir-se com a afirmação de que deus pode fazer com que não tenham acontecido as coisas que aconteceram. de qualquer modo, pedro damiano serviase da tese da omnipotência divina para retirar validade autónoma ao mundo da natureza e do homem; e mesmo no campo político (como testemunham as considerações desenvolvidas na sua disceptatio sinodalis) a sua preocupação dominante é a de retirar ao imperador toda a dignidade de potência autónoma e de considerá-lo como um simples delegado do papa. nota bibliogrÁfica § 187. as obras de gerberto, em patrist. lat., vol. 139, 57-338; outra edição de olleris, paris, 1867. epistolae, ed. havet, paris, 1889; opera mathematica, ed. bubnov, berlim, 1899.-picavet, gerbert ou le pape philosophe, paris, 1897; leflon, gerbert, p=3, 1946. § 188. as obras de berengãrio in p. l., 150.1; de sacra coena, ed. vischer, berlim, 1834; ed. beekenkamp, l'aya, 1941.-a. j. macdonald, berengar and the reform of sacramental doctrine, londres, 1930. as obras de lanfranco in p. l., 150.'.-macdonald, lanfrane, oxford, 1926. as obras de pedro damiano in p. l., 144.o-145.o; de divina omnipotentia e outros opusculos, ao cuidado de brezzi e nardi, com trad. ital., florença, 1943. -endres, nei "beitrãge", vlu, 3, 1910; j. gonsette, p. d. et ia culture profane, lovaina, 1956. 55 iv

anselmo de aosta § 189. anselmo: a figura histÓrica anselmo de aosta representa a primeira grande afirmação da investigação na idade média. mas a sua investigação tem mais um valor religioso e transcendente do que humano. com acentos agustinianos, abandona a deus a iniciativa e a orientação das suas pesquisas; e no esforço de aproximar-se da verdade revelada não vê mais que a progressiva acção iluminadora da própria verdade. "ensina-me a procurar-te, diz (pros., 1), e mostra-te a mim que te procuro. eu não posso procurar-te, se tu não me ensinas, nem encontrarte se tu não te mostras. que eu te procure desejando-te, que eu te deseje procurando-te, que te encontre amando-te e que te ame procurando-te. reconheço-te, senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem para que me lembre de ti, pense em ti e te ame; mas esta imagem está tão gasta pela miséria dos vícios, tão ofuscada pela acumulação dos pecados, que não pode fazer aquilo para que foi feita se tu não a renovares e a não reconstituíres. não pretendo, 57 senhor, penetrar na tua altíssima dignidade, porque não posso, de facto, comparar a ela o meu entendimento, mas desejo entender de alguma maneira a tua vontade que o meu coração crê e ama. também não procuro entender para crer mas creio para entender. e também creio nisto: que senão acreditar primeiro, também não poderei compreendem. a -prioridade da fé sobre a compreensão exprime claramente o carácter religioso da investigação de anselmo, tal como a prioridade da compreensão sobre a fé exprimirá o carácter filosófico da investigação de abelardo. esta religiosidade encontra a sua melhor expressão no ponto culminante da investigação de santo anselmo, a prova ontológica da existência de deus. como o próprio anselmo reconhece, na sua resposta a gaunilon, o pressuposto da prova é a fé. só a fé transforma em afirmação indubitável a possibilidade de pensar o ser maior de todos. se se pode pensar este ser, deve-se pensálo como existente; mas não se pode pensá-lo verdadeiramente apenas com a fé. a prova ontológica é a própria fé que esclarece o seu princípio e se converte em certeza intelectual.

§ 190. anselmo: vida e obra anselmo nasceu em 1033 em aosta, no piemonte. entrou para o mosteiro de bec, na normandia, foi prior em 1063 e abade em 1078. a maior parte das suas obras são o resultado das discussões que dirigia no mosteiro. de 1093 até 1109, ano da sua morte, foi arcebispo de cantuár@a. o seu secretário, eadmer, dá-nos uma pormenorizada descrição da sua vida. de natureza dócil e contemplativa, anselmo foi impelido para a vida do claustro por necessidade de recolhimento e de 58 meditação. a sua fama de santo atribuiu-lhe bem cedo poderes sobrenaturais. curou e levou à penitência um velho monge, de quem previu a morte, que se verificou na altura e da forma que havia predito. apagou um incêndio numa casa vizinha do mosteiro fazencio o sinal da cruz sobre as chamas. e uma vez que estava na sua cela meditando sobre o dom da profecia viu através, das paredes, os frades que preparavam na igreja o ofício da meia-noite. afastado contra a sua vontade da vida contemplativa, teve que ocupar-se de negócios e política, primeiro como abade de bec e depois como arcebispo de cantuária. na qualidade de arcebispo viu-se envolvido na vida agitada da igreja inglesa nos tempos de guilherme o vermelho que pretendia subordinar à sua vontade o cloro inglês e subtrair-se à vontade papal. anselmo dirigiu-se a roma para buscar apoio e conforto junto de urbano 11. regressado a inglaterra teve novos desentendimentos com henrique 1, que queria conservar o direito de investidura dos bispos com o anel e a cruz. conseguiu um compromisso pelo qual o rei renunciava a conferir a investidura e os bispos rendiam-lhe homenagem (1106). alguns anos depois, anselmo, que nunca abandonara as suas meditações, morria, quando procurava concluir as suas investigações sobro a origem da alma. entre os anos 1070 e 1078 anselmo compôs o monologion, cujo primeiro capítulo era exemplum meditandi de ratione fidei; em seguida o proslogion, que primeiramente se intitulava fides quarens intellectum e o apêndice polémico liber apologeticus contra gaunilonem; em continuação, compôs quatro diálogos,

de veritate, de libero arbítrio de casu diabuli, de gramatico. nos últimos anos da sua vida escreveu o cur deus homo e o seu apêndice de conceptu virginali. outras obras suas: de fide 59 tritwatis, de concordia praescientiae et praedestinationis, meditationes, e, além disso, homilias, discursos e cartas. § 191. anselmo: fÉ e razÃo a frase que exprime a posição de anselmo, sobre o problema escolástico é a seguinte: credo ut inielligum (pros., 1). a fé é o ponto de partida da investigação filosófica. nada se pode compreender se não se tem fé; mas a fé por si só não basta, é preciso confirmá-la e demonstrá-la. esta confirmação é possível. "0 que nós cremos pela fé sobre * natureza divina e as pessoas da mesma, excepto * encamação, pode ser demonstrado com razões necessárias, sem se recorrer à autoridade das escrituras" (de fide trin., 4). e, uma vez que isso é possível, passa a ser um dever: "É negligência não intentar compreender o que se crê, depois de havermos sido confirmados pela fé" (cur deus homo, 12). a própria encarnação é apresentada por anselmo, na obra que dedicou a este tema, como uma verdade que a razão pode alcançar por si própria; não existe dúvida, com efeito, de que os homens não teriam podido salvar-se, se o próprio deus não tivesse encarnado e não tivesse morrido por eles (ibid. prol.). deste modo, anselmo considera o acordo entre a fé e a razão intrínseca e essencial. certamente que, se uma contradição se produzisse, não seria necessário admitir a verdade do raciocínio, mesmo quando este parecesse irrefutável (de concordia praescientiae, 6); mas anselmo está intimamente seguro de que não pode haver uma verdadeira contradição, porque a inteligência está iluminada pela luz divina, exactamente como a fé. o que não implica, por outro lado, que a verdade se encontre inteiramente ao alcance do homem. "seja o que for que o homem possa dizer sobre o saber, 60 afirma anselmo, as razões supremas, os mistérios da fé, -permanecem sempre

escondidos" (cur deus homo, 1, 2). o que investiga uma realidade incompreensível, como é a trindade, deve bastar-lhe alcançar com a inteligência o conhecimento de que isso exista, ainda que não compreenda de que modo exista. (mon., 64). anselmo afirmou desta forma, em limites extensos, o valor da investigação. distingue a verdade do conhecimento, a verdade do querer e a verdade da coisa. a verdade do conhecimento consiste na conformidade do conhecimento com a coisa e consegue-se quando se conhece a coisa tal como é. esta verdade define-a anselmo como rectitudo cognitionis. a verdade da vontade é, analogamente, rectitudo voluntatis. agir segundo a verdade, significa fazer o bem, fazer o que se deve fazer. mas também aqui o critério é objectivo; a medida está no objecto, isto é, na coisa. o fundamento de toda a verdade é a verdade da coisa, a rectitudo rei. mas esta verdade, por sua vez, está fundada na verdade eterna, que é deus: as coisas são verdadeiramente aquelas que estão na mente de deus, na qual subsistem as suas ideias ou exemplares. o próprio deus é, portanto, a absoluta verdade, que é norma e condição de qualquer outra verdade (de verit., 2-10). anselmo segue aqui os passos da especulação de santo agostinho na sua de vera religione. no âmbito do pensamento platónico-agustiniano movem-se também as suas investigações sobre a existência de deus. § 192. anselmo: a existÊncia de deus o monologion é um conjunto de reflexões sobre a essência divina que conduzem a uma demonstração da existência de deus. anselmo parte do pressuposto de que o bem, a verdade, e em geral 61 todo o universal, subsiste independentemente das coisas particulares e não apenas nelas. há muitas coisas boas, quer sejam meios, isto é, por utilidade, quer sejam fins, isto é, pela sua bondade ou beleza intrínseca. mas todas são mais ou menos boas e não de forma absoluta; pressupõem, portanto, um bem absoluto, que seja a sua medida e do qual obtenham o grau de bondade ou verdade que possuem. este sumo bem é deus. da mesma maneira, tudo o que é perfeito e, em geral, tudo o que existe, existe por participação de um ser único e sumo. o sumo bem, o sumo ser, o sumo grau, tudo o que no mundo tem verdade e valor, coincidem em deus.

o monologion desenvolve uma argumentação cosmológica que vai do particular ao universal e do universal a deus. o proslogion desenvolve, pelo contrário, uma argumentação ontológica que começa no simples conceito de deus para chegar à demonstração da sua existência. está dirigido contra a negação pura e simples da existência de deus, contra o néscio do salmo xiii "que disse em seu coração: deus não existe". evidentemente, mesmo o que nega a existência de deus deve pensar no conceito de deus, pois é impossível negar a realidade de algo que nem sequer se pensa; a prova que vai do conceito à realidade é, portanto, a que não pode ser negada de modo nenhum. portanto o conceito de deus é o de um ser maior de que não se pode pensar nada maior (quo maius cogitari nequit). mesmo o néscio deve admitir que o ser, a respeito do qual nada maior pode ser pensado. existe no intelecto, mesmo que não exista na realidade. com efeito, uma coisa é existir na nossa inteligência, e outra coisa existir na realidade; a imagem que o pintor quer pintar não existe ainda na realidade, mas existe certamente no seu pensamento. posto isto, aprova de anselmo é a seguinte: 62 "certamente, aquilo de que não se pode pensar nada maior, não pode existir apenas no intelecto. porque se existisse apenas no intelecto, poder-seia pensar que existe também na real-idade e que, portanto, era maior. assim, se aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar existe apenas no intelecto, aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar é, por sua vez, aquilo de que se pode pensar algo de maior. mas isto é, certamente, impossível. portanto, não há dúvida de que aquilo do qual nada maior se pode pensar existe tanto no intelecto como na realidade. "(prosl., 2). o argumento baseia-se em dois pontos: 1.o que o que existe na realidade é "maior", ou mais perfeito do que o que existe apenas no intelecto; 2.o que negar que existe realmente aquilo em relação ao qual nada maior pode pensar-se, significa contradizer-se, porque significa admitir que se pode pensá-lo maior, isto é, existente na realidade. À objecção de que então não se vê como é possível pensar que deus não existe, anselmo responde que a palavra pensar tem dois significados: pode pensar-se a palavra que indica a coisa e pode pensar-se a própria coisa. no primeiro sentido pode pensar-se que

deus não existe, como, por exemplo, se pode pensar que o fogo é água; no segundo sentido, não se pode pensar que deus não existe (prosl., 4). ao argumento ontológico, o monge gaunilone, do mosteiro mar-montier, no seu liber pro insipiente, opôs que, em primeiro lugar todo aquele que decididamente nega a existência de deus começaria por negar que tivesse o seu conceito (que é o ponto de partida do argumento ontológico); e, em segundo lugar, mesmo admitindo que se tenha o conceito de deus como o de um ser perfeitíssimo, deste conceito não pode deduzir-se a existência de deus, da mesma maneira que não pode deduzir-se 63 a realidade de uma ilha perfeitíssima a partir do conceito de tal ilha. anselmo replicou com o uber apologeticus. É impossível negar que se pode, pensar em deus: para demonstrax esta impossibilidade basta a mesma fé de que tanto anselmo como gaunilonern estão dotados; e se se pode pensar em deus, deve-se reconhecê-lo como existente, sendo impossível negar a existência àquilo que se pode pensar como a maior de todas as coisas. de uma ilha fantástica, ainda que se a conceba perfeita, não se pode dizer que ;seja aquilo em relação ao qual nada mais perfeito pode pensar-se. da possibilidade de pensá-la não se segue da simples possibilidade de pensar em deus como o ser mais perfeito de todos. o argumento ontológico foi uma vez defendido e outras criticado durante a escolástica e estas alternativas mantiveram-se no pensamento moderno. na realidade, o argumento não é uma prova mas um princípio. não é uma prova, porque a existência que se pretende deduzir está já implicitamente contida na definição de deus como o ser em relação ao qual nada maior se pode pensar e, por isso, no simples pensamento de deus: como prova é um círculo vicioso. como princípio, exprime a identidade de possibilidade e realidade no conceito de deus. se se pode pensar deus, deve-se pensá-lo como existente: o pensamento de deus é o próprio pensamento desta identidade da possibilidade e da existência, identidade que, como anselmo afirma no liber apologeticus, é realizada pela fé. a fé consiste precisamente em admitir, como necessariamente real, a perfeição possível: o argumento ontológico, que deduz dessa perfeição aquela existência não é, por conseguinte, outra coisa senão a

explicação da fé na sua expressão racional ou no seu princípio lógico. tratase uma vez mais das fides quarens intellectum, do credo ut intellígam: do 64 processo através do qual o acto de fé se converte em acto de razão e a iluminação divina em investigação filosófica. § 193. anselmo: a essência de deus das próprias provas que demonstram a existência de deus, resulta que só deus é o ser perfeito e absoluto e que as outras coisas quase não são ou apenas são (fere non esse et vix esse, mon., 28). sujeito ao devir e ao tempo, o ser das coisas finitas começa e acaba continuamente e continuamente muda; é por isso um ser aproximativo e apenas tal, não podendo ser comparado com o ser imutável de deus. ao qual santo anselmo reconhece aquela necessidade, cujo conceito ia sendo elaborado pela escolástica árabe, a partir de avicenas. a natureza de deus é tal que não pode proceder nem de si nem de outro; nem dá a si própria uma matéria da qual possa ser retirada, nem outro pode darlhe tal matéria (mon., 6). É, portanto, originária e necessária. por conseguinte, as propriedades que se afirmam da natureza divina devem ser predicados dela quidditativamente e não qualitativamente: isto é, como partes ou aspectos integrantes da essência divina, mas de forma alguma diversas desta essência. deus não pode ser justo ou sábio, se o não for em si e por si; não é, certamente, pela participação de uma justiça ou sabedoria distintas d'ele. o melhor portanto, é dizer não que deus é justo, mas que é * justiça; não que tem vida, mas que é a vida; * analogamente que é a verdade, o bem, a grandeza, a felicidade, a eternidade, o poder, a imutabilidade, a unidade e, em geral, todas as qualidades 65 que implicam excelência e perfeição em quem as possui (mon., 15-16). por outro lado, todas estas qualidades não podem subsistir na essência divina como uma multiplicidade numérica. a natureza divina exclui toda a composição

e não pode constar de partes ou de aspectos diversos. as qualidades diversas que se lhe atribuem, enquanto idênticas a ela, são idênticas entre si; e assim a justiça ou a sabedoria e qualquer outra qualidade é a própria essência divina e, quem afirma uma delas afirma também esta (mon., 17). disto se conclui que a essência divina não é substância, no sentido de substracto ou esteio de qualidades ou acidentes. É substância no sentido de que subsiste por si e em si; mas neste sentido não pode ser compreendida sob a categoria universal de substância, uma vez que está fora de todo e qualquer conceito genérico. a única determinação que se pode atribuir à essência divina como substância é a espiritualidade; o ser espiritual é, com efeito, mais excelente que o ser corpóreo e por isso o único que é próprio de deus (mon., 27). uma tal substância está absolutamente para além das variações temporais. na vida divina, não existe sucessão, tudo está presente num único acto indivisível. está completa de uma vez para sempre na sua totalidade o não pode ter aumento ou diminuição (ibid., 24). a sua imutabilidade exclui, em suma, que nela existam caracteres acidentais, que, como tais, implicariam mutabilidade. em deus podem subsistir tais caracteres, mas não analogamente ao que, por exemplo, é a cor do corpo, mas apenas como relações determinadas, puramente exteriores, como quando se diz que é maior que todas as outras naturezas. só nestes limites, a categoria de acidente não contradiz a natureza divina (ibid., 25). 66 § 194. anselmo: a criaÇÃo uma vez que deus é o ser e as coisas existem apenas pela participação do ser, toda a coisa tem o seu ser através de deus. tal derivação é uma criação do nada. e de facto, as coisas criadas não podem proceder de uma matéria. esta, por sua vez, deveria derivar de si própria, o que é impossível, ou da natureza divina. neste caso, a natureza divina seria a matéria das coisas mutáveis e estaria sujeita às mudanças e à corrupção daquelas. ela, que é o sumo bem, estaria submetida à mutabilidade e à corrupção; mas o sumo bem não pode deixar de o ser. a matéria das coisas criadas não pode ser nem por

si nem de deus; não há, portanto, matéria das coisas criadas. só resta então admitir que foram criadas do nada (ibid., 7). contra a interpretação (que se encontra, por exemplo em erígena) de que o "nada" do qual as coisas procedem é algo positivo, por exemplo, uma causa material ou uma realidade potencial, anselmo tem o cuidado de acrescentar que isso não é nem uma matéria nem outra coisa real; e que a expressão criação do nada significa apenas que o mundo primeiramente não existia mas existe agora. a expressão "criação do nada" é idêntica à que se emprega dizendo que "se fez do nada" um homem que agora é rico e poderoso e que dantes não era. significa o salto do nada para qualquer coisa (ibid., 8). todavia, o mundo foi racionalmente criado e nada pode ser produzido de tal modo sem se supor na frazão de quem produz um exemplar da coisa a produzir, isto é, uma forma, similitude ou regra dela. deve existir, na mente divina, o modelo da ideia da coisa produzida, como na mente do artista humano existe o conceito da obra que vai realizar: com a diferença de que o artista tem 67 necessidade de uma matéria exterior para realizar a sua obra e deus não, e de que o primeiro deve obter das coisas externas o próprio conceito da obra, enquanto deus cria por si próprio a ideia exemplar (ibid., 11). num e noutro caso, não obstante, a ideia da obra é uma espécie de palavra interior; deus manifesta-se nas ideias, como o artista através do seu conceito, mas a expressão não é uma palavra exterior, uma voz; é a própria coisa, à qual se dirige o engenho da mente criadora (ibid., 10). a criação do nada é precisamente esta articulação interior da palavra divina. sem a actividade criadora de deus, nada existe e nada dura; deus não só dá o ser às coisas, como também as conserva e faz durar continuando a sua acção criadora. a criação é contínua (ibid., 13). daqui se segue que deus está e deve estar por todas as partes; onde ele não está, nada existe e nada está de pé. isto não quer dizer, certamente, que ele esteja condicionado pelo espaço

e pelo tempo. n'ele não existe nem o alto nem o baixo, nem o antes nem o depois: ele está em todas as coisas existentes e em cada uma delas vive uma vida interminável, que é toda ao mesmo tempo (totum simul) presente e perfeita (lbid., 14,22-24). § 195. anselmo: a trindade a palavra interior de deus não é o som de uma voz, mas essência criadora. este é o ponto de partida da especulação trinitária de santo anselmo. aquela palavra interior é a divina sabedoria, o verbo de deus: por isso tudo foi dito e tudo foi feito. o verbo, por um lado, é idêntico com a essência de deus; por outro, idêntico com a essência da criatura. É idêntico com a essência de deus, porque não é criatura, mas princípio da criatura, e porque está em deus, no qual não subsiste nem 68 diversidade nem multiplicidade. por outro lado, é a própria essência das coisas criadas: pois de que seria verbo se não fosse verbo das mesmas? todo o verbo é verbo de alguma coisa. É necessário portanto entender que não existiria o verbo se não existissem as criaturas? a coisa é inconcebível, porque o verbo é necessário e eterno como o próprio deus. mas, por outro lado, se as criaturas não existissem, como poderia ser verbo do que não existe? a solução é de que o verbo é, em primeiro lugar, a inteligência que deus tem de si mesmo. assim, tal como a mente humana tem conhecimento e compreensão de si própria, o mesmo acontece com deus: o verbo é, portanto, coeterno com deus porque é a eterna inteligência que deus tem de si. mas, ao mesmo tempo, é também verbo das coisas criadas. "com um só e mesmo verbo o sumo espírito fala de si próprio e de todas as coisas criadas" (ibid., 33). se tais coisas em si mesmas são mutáveis, são todavia imutáveis na sua essência e no seu fundamento, que está no verbo divino; e existem tanto mais verdadeiramente quanto mais semelhantes são a tal fundamento (ibid., 34). por seu lado, o verbo, mesmo na sua identidade com o sumo espírito, distingue-se dele: são dois, apesar de não ser possível exprimir a forma como o são. são distintos pela recíproca relação, porquanto um é o pai e outro o filho; e são, por sua vez, idênticos na substância, porquanto no pai há a essência do filho, e no filho a essência do pai. l@nica e indivisível é, com efeito, a essência de ambos (ibid., 43). portanto, uma vez que o sumo espírito se i-econ,hece o se compreende no

filho, deve também amar-se, seria inútil, com efeito, a inteligência sem o amor (ibid., 43). o amor depende, portanto, da inteligência que o sumo espírito tem de si, isto é, depende do pai e do filho, conjuntamente. esta 69 dependência não significa geração: o amor não é filho. e, no entanto, é uma dependência que supõe participação na sua natureza comum; e uma vez que tal natureza é espírito, o amor chama-se espírito (ibid., 57). cada uma das três pessoas divinas, participando da total natureza divina, recorda, compreende e ama sem necessidade de outra. e, apesar de a memória ser própria do pai, a inteligência do filho, o amor do espírito, cada uma das pessoas é essencialmente memória, inteligência e amor. da inteligência, memória e amor de cada uma delas não derivam nem outros filhos nem outros espíritos: nisto consiste o mistério inexplicável da trindade divina (ibid., 62-64). santo anselmo procurou esclarecer com uma imagem este mistério. consideremos, afirma (de fide trinitatis, 8), uma fonte, o rio que nasce dela e o lago no qual se recolhem as suas águas: damos ao conjunto destas três coisas o nome de nilo. trata-se de três coisas distintas uma das outras; não obstante, chamamos nilo à nascente, nilo ao rio, nilo ao lago e, finalmente, nilo a todo o conjunto. não falamos de três nilos, ainda que sejam três coisas distintas entre si. são três, a nascente, o rio e o lago; pois é sempre o único e o mesmo nilo, um só fluir, urna só água, uma só natureza. há aqui uma trindade no uno e uma unidade em três, que é a imagem da trindade divina. § 196. anselmo: a liberdade a investigação levada a cabo por anselmo no monologion e no proslogion tende a compreender deus na sua essência e na sua existência. anselmo procura traduzir com ela, a certeza da fé em verdade filosófica; e com isto oferecer um caminho de abordagem à verdade revelada, de modo que o 70 homem consiga chegar junto desta o mais perto possível. mas paralelamente a esta investigação, anselmo empreende outra, dirigida ao homem e às suas

possibilidades de elevar-se até deus. o tema desta investigação é a liberdade. a ela anselmo, dedicou duas obras: o de libero arbitrio, e o de concordia praescientiae et praedestinationis nec non et gratiae dei cum libero arbitrio, composta, esta última, no ano de 1109, depois do seu regresso a inglaterra. a liberdade supõe, em primeiro lugar, duas condições negativas: que a vontade seja livre de coacção por parte do toda a causa externa e seja livre da necessidade natural interna, como é o instinto nos animais (de libero arbitrio, 2, 5). a liberdade é essencialmente liberdade de escolha e esta está ausente quando existe coacção e necessidade. posto isto, anselmo exclui a ideia de que a liberdade possa definir-se (como havia feito escoto) como possibilidade de escolher entre pecar e não pecar. se fosse assim, nem deus nem os anjos, que não podem pecar, seriam livres. em todo o caso, quem não pode perder aquilo que o favorece é mais livre do que aquele que pode perder; e deste modo quem não pode afastar-se da rectidão de não pecar é mais livre do que qualquer outro que pode fazê-lo. a capacidade de pecar não aumenta nem diminui a liberdade; por isso não é elemento ou parte da liberdade (de lib. arb., 1). o primeiro homem recebeu de deus originariamente a rectidão da vontade, isto é. a justiça. poderia ter podido e devido conservá-la; e para esse fim precisamente lhe foi dada a liberdade. portanto, esta, não é arbítrio de indiferença, isto é, vontade que se decide indiferentemente entre o bem e o mal; é a capacidade positiva de conservar a justiça originária e de conservá-la pela mesma justiça, e não em vista de um motivo estranho (lbi(l., 13). 71 este poder em que consiste a liberdade não o perde o homem em caso algum, nem sequer com o pecado. como quem já não vê um objecto, conserva a capacidade de vê-lo, porque o vê-lo ou não depende da distância do objecto e não da perda de vista, assim a capacidade de conservar a rectidão da vontade permanece no homem mesmo através do pecado e entra em acção logo que deus restitui ao homem a rectidão da vontade que perdeu. portanto, o homem pode perdê-la apenas por um acto seu de vontade e nunca por causas externas. o próprio deus não pode retirá-la ao homem. uma vez que consiste em querer o que deus quer que se queira, se deus a afastasse do

homem não quereria que o homem quisesse aquilo que ele quer que ele queira. uma vez que isto não se pode imaginar, deus não pode tirar ao homem a vontade justa: só o homem pode perdê-la. nada é portanto mais livre que a vontade (ibid., 11). não contradiz isto a frase bíblica de que o homem que peca se converte em "escravo do pecado". o converter-se em escravo do pecado significa apenas que perde a rectidão da vontade e que não tem a capacidade de voltar a adquiri-la a não ser por dádiva gratuita de deus. a escravidão do pecado é a impotentia non peccandi: o homem que perdeu a rectidão da vontade não pode deixar de pecar; mas mesmo assim permanece livre porque conserva a possibilidade de conservar aquele. la rectidão, se essa lhe for devolvida. disto :resulta que, tal como santo agostinho, anselmo estabelece uma estreita relação entre a liberdade humana e a graça divina. não há dúvida de que a vontade quer com rectidão apenas porque é recta. mas como a vista boa não é boa porque vê bem, mas porque vê bem é boa, também a vontade não é recta porque quer com rectidão, mas quer com rectidão porque é recta. isto significa que 72 abelardo a vontade recebe a sua rectidão não de si própria (a partir do momento em que cada acto recto seu a pressupõe), mas da graça divina (de concord. praesc. c. 3, 3). a última condição da liberdade humana é, portanto, a graça divina. como capacidade de conservar a justiça originária, a liberdade humana está condicionada pela posse dessa justiça; e uma tal posse apenas pode virlhe de deus. § 197. anselmo: presciÊncia e predestinaÇÃo como a liberdade humana não se opõe, em nada, à graça divina, assim também nenhum limite ou restrição produzem na liberdade humana a presciência e

a predestinação divinas. É certo que deus prevê todas as acções futuras dos homens, mas esta previsão não impede que as acções dos homens sejam efectuadas livremente. com efeito, deus prevê as acções dos homens na liberdade, que é atributo fundamental das mesmas. não é preciso dizer, afirma santo anselmo, "deus prevê que eu vou ou não pecar" mas é necessário acrescentar que ele prevê que eu vou ou não pecar sem necessidade e assim, tenha eu pecado ou não, uma e outra coisa será liberdade, porque o próprio deus prevê que isso acontecerá sem necessidade. (de concord. praesc., q. 1, 3). existe uma dupla necessidade: uma que precede o efeito, a outra que se segue à realização da coisa. a primeira é verdadeiramente determinante, a segunda não. a primeira está, por exemplo, imcluída na afirmação "os céus necessariamente giram"; a segunda está contida na afirmação "tu falarás". de facto, a necessidade natural obriga os céus a moverem-se, embora não exista nenhuma necessidade que obrigue o homem a falar. mesmo neste caso, a previsão verificar-se-á e, por conseguinte, é certa; mas a sua certeza em nada 73 anula ou diminui a liberdade do facto previsto. indubitavelmente, o que é não pode não ser. uma acção livre, uma vez que se haja verificado, tem uma necessidade de facto, que obriga a admiti-ia tal como é. mas esta necessidade de facto não anula a liberdade, ainda que a torne previsível com absoluta certeza por parte de deus. análogas considerações valem para a predestinação. deus predestina a salvação dos eleitos e aqueles que não predestina estão condenados. pode-se, por conseguinte, falar também de uma predestinação dos condenados, porquanto deus permite a sua condenação: ainda que a predestinação só seja positiva e efectiva para os eleitos. a predestinação tem em conta a liberdade. deus não predestina ninguém coagindo uma vontade, deixa sempre a salvação nas mãos do predestinado. tal como a presciência que nunca se engana, sabe de antemão tudo o que acontecerá, quer aconteça necessária quer livremente, também a predestinação, que nunca se altera, apenas prodestina em virtude e em conformidade com a presciência (de concordía praese. q. 2, 3). são predestinados à salvação aqueles apenas cuja boa vontade deus conhece de antemão.

§ 198. anselmo: o mal relaciona-se com os conceitos agustinianos o tratado de anselmo, sobre o problema do mal. como existem duas espécies fundamentais de bem, a justiça e o útil, assim existem também duas espécies fundamentais de mal: a injustiça (malum injustitiae) e odano (malum incommodi). o verdadeiro e próprio mal é apenas a injustiça. a injustiça é sempre algo de negativo; é a pura e sim les negação do zd p que deve ser, isto é, da justiça. e mesmo que o bem seja verdadeiramente a justiça, o mal não tem em nenhum caso realidade positiva: é uma pura 74 negação e pode, com todo o direito, ser chamado o nada (de casu diaboli, 1226). quanto ao dano, ou seja, o mal físico, também é na sua essência uma negação; mas como às vezes surge acompanhado de uma acção positiva, é nesta que se pensa quando se lhe chama mal. não há dúvida de que a cegueira, por exemplo, é simples negação da vista; mas é acompanhada de tristeza e dor, que são realidades positivas e constituem o aspecto pavoroso do mal (ibid., 26). contudo, a tristeza, a dor e o horror que estas coisas determinam na alma, seguem-se à privação do bem, que é o verdadeiro fundamento de todo o mal. o verdadeiro e único bem é a justiça, pela qual são bons, isto é, justos, os anjos e os homens e pela qual a própria vontade é boa ou justa. pois bem, a justiça consiste na conformidade da vontade humana com a vontade divina. a vontade da criatura racional deve estar submetida à vontade divina e aquela que não tributa a deus esta honra devida, tira a deus o que é seu e por isso peca. a deus apenas pertence ter vontade própria, isto é, uma vontade que não está sujeita a ninguém. todo aquele que se atribui de uma vontade própria esforça-se por tornar-se semelhante a deus per rapinam e por privar deus, naquilo a que a ele se refere, da sua dignidade e singular excelência (de fide trinit., 5).

o traço característico destas formulações de anselmo consiste na redução de todo o valor moral à vontade, a ú nica em que reside a justiça e a injustiça. os apetites sensíveis, por seu lado, não são bons nem maus. o homem é justo ou injusto, não porque os sente ou não, mas apenas porque os consente ou não com a vontade. o pecado consiste não em senti-los, mas em consenti-los (de concep. virg., 4). a única origem do mal é a própria vontade. a vontade pode perder a sua rectidão enquanto quer o que não deve querer; mas o 75 poder perdê-la não é fundamento do mal; uma vez que não a perde porque pode perdê-la, mas apenas porque quer perdê-la. o mal não tem outra causa positiva. também não se pode atribuir a deus, porque não se pode afirmar que ele dê aos homens uma vontade má, senão no sentido de que não impede, podendo fazê-lo, que uma tal vontade aconteça. tudo o que há de bom na vontade e nas acções dos homens, procede da graça de deus; só o mal procede do homem. e assim como a vontade é o único sujeito das valorações morais, assim também apenas ela é responsável e pode ser castigada. não existe pena que não esteja dirigida contra a vontade e nenhuma coisa pode sofrer um castigo se não está dotada de vontade. assim como é a vontade que actua sobre os membros e os sentidos, assim também é a vontade que, através dos membros e dos sentidos é castigada ou recompensada (ibid., 23). num cas @ apenas o pecado não depende da vontade, é o caso do pecado original. adão pecou por livre vontade; os seus descendentes pecam por necessidade natural (lhid., 23). mas em adão estava presente toda a natureza humana; nele, portanto, pecaram todos os homens, não pessoalmente, mas na sua origem e na sua natureza comuns. § 199. anselmo: a alma a doutrina de anselmo sobre a alma segue de perto a agustiniana sobre o mesmo tema, mas possui um notável avanço em relação àquela no que se refere à demonstração da imortal-idade. o homem é formado por duas naturezas, a alma e o corpo (medit., 19) a parte mais elevada, porque está mais pró)qimo da suma essência, é a alma e mais precisamente, o intelecto. de facto, só através da inte-

76 ligência se pode conhecer e buscar a deus e pode o homem aproximar-se d'ele. a alma é como um espelho na qual se reflecte a imagem da suma essência, que não se pode contemplar face a face. anselmo segue, neste ponto, santo agostinho: a alma recorda, compreende e ama-se a si própria; e desta forma reproduz a trindade divina, que é precisamente memória, inteligência e amor (monol., 67). a natureza da alma marca o seu destino. a alma deve exprimir com actos de vontade a imagem da trindade divina que nela está impressa naturalmente: deve, por conseguinte, empenhar toda a sua vontade em recordar, compreender e amar o sumo bem; esse é o fim da sua existência (ibid., 68). deste seu destino deriva a sua imortalidade. se a alma está destinada a amar sem fim a sua essência é necessário que esteja viva sempre e que a morte não venha interromper, em certo ponto, sem demérito seu, o amor que deve a deus. nem deus poderia reduzir a nada uma criatura que ele criou para que o amasse ou permitir que lhe seja retirada a criatura que ama a vida que ele lho deu, quando ela ainda não o amava, para que possa amá-lo: tanto mais que o criador ama toda a criatura que verdadeiramente o ama. É portanto evidente que uma vida entregue ao amor de deus não pode ser senão feliz. a alma tem, por conseguinte, assegurada pelo seu destino uma vida eterna e feliz (ibid., 69). mas a imortalidade não se refere apenas à alma que ama a deus. se para a alma que ama deus, a imortalidade é, por parte de deus, um dom de amor, para a alma que despreza deus, a imortalidade é, por parte de deus, um acto de justiça. seria, com efeito, injusto que a alma que despreza deus fosse castigada com a perda da vida e do próprio ser, e não tivesse outro castigo além do de tornar ao estado em que se encontrava antes de toda a culpa, isto é, antes de existir. mesmo 77 a alma injusta deve, por conseguinte ser imortal, para sofrer uma pena, tal como é imortal a alma justa para gozar do prémio eterno (ibid., 71). todas as almas são, portanto, imortais, tanto as justas como as injustas; mesmo

aquelas que não são capazes nem de uma coisa nem de outra, como as almas das crianças, devem sê-lo, porque devem ter a mesma natureza (ibid., 72). sabemos pelo biógrafo eadmer que anselmo morreu quando tentava ansiosamente esclarecer a natureza e a origem da alma. com efeito, pouco nos dizem as obras que nos deixou. a investigação de anselmo, que começa com deus, termina com a alma humana. na verdade, anselmo tinha feito suas as palavras de santo agostinho: "desejo conhecer deus e a alma: e nada mais". nota bibliogrÁfica § 190. as obras de santo anselmo em p. l., 158.---159.1, e>d. schmitt 5 vols., roma-londres, 1938-1951. opere filosofiche, trad. ital. de c. ottaviano, 3 vols., lanciano, 1938. - de rémusat, saint-anselme de canterbury; vanni-rovighi, sanvanselmo, milão, 1949 com bibliografia; levasti, santianselmo, bari, 1929; domet de vorges, saint-anselme, paris, 1901. § 191. heitz, essai historique sur les rapports entre ia philosophie e ia foi bérenger de tours à saint-thomas, paris, 1909; betzendõrfer, glauben und wissen bei den grassen denkern des mittelalters, 1931; gilson, in "arch. hist. doct. lit. m<)yen age" 1934, 5-51. § 192. koyré, l'idée de dieu dans ia philosophie de saintanselme, paris, 1923; k. barth, fides quaerens intellectum, mónaco, 1931. sobre o argumento ontológico na escolástica: daniels, nei beitrage, vii1@ 1-2. muitissimos filósofos tomaram posição sobre o argumento ontológico e das discussões referentes a esse ponto encontrar-,se-á eco na presente obra. 78 § 193. seeberg, dogmengeschischte, ei, 1913, p. 150 sgs., 207-226. § 194. baeumker, nei beitrâge, x, 6, 1912. § 195. martin, la question de péché originel dans saint-anselme, in reme des sciences philos. et théol. 1911, p. 735-749. 79 v a discussÃo sobre os universais § 200. universais: o problema e o seu significado histÓrico a partir do século xii um dos tomas de discussão mais frequentes entre

os escolásticos é o chamado problema dos universais. o problema parece ter surgido com uma passagem de 1sagoge (introdução) de porfirio às categorias de aristóteles e dos comentários de boécio a elas referentes. a passagem de porfirio é a seguinte: "sobre os géneros e as espécies não direi aqui se subsistem ou se estão s@mplesmente no intelecto, e, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, separados das coisas sensíveis ou situados nas mesmas, exprimindo os seus caeacteres uniformes". das alternativas indicadas por porfirio nesta passagem, uma apenas não obtém qualquer confrontação na história desta polémica: aquela, segundo a qual, os universais seriam realidades corpó reas. em compensação, uma alternativa que, porfirio não tinha previsto verificou-se históricamente: isto é, que o universal não existe 81 nem no intelecto e não passa de um simples; nome, de um flatus vocis. de qualquer modo, resulta da passagem de porfirio que as duas soluções fundamentais do problema são aquelas que mais tarde se chamarão realismo (ou formalismo) e nom;inalismo (ou terminismo), a primeira das quais afirma, enquanto a outra nega, que os universais existem, de qualquer forma, fora da alma. as soluções que a discussão dos universais encontrou dentro da escolástica foram numerossímas: joão de salisbúria (metalogicus, 11, 17) dános disso uma primeira amostra, no entanto bastante incompleta (cfr. pranti, geschishte der logik, ii, p. 121 sgs.). apesar do problema sobre o qual se discutia não fosse precisamente novo (como veremos em seguida), o próprio facto da posição explícita do problema (ainda que mediante o recurso a um texto antigo) e o reconhecimento da possibilidade de resolvê-lo em mais direcções é já por si significativo e pode ser considerado com um sinal do novo espírito que começa a invadir a escolástica a partir dos últimos decénios do século xi. anteriormente a este período, nenhum pensador conseguia pôr em dúvida que os géneros e as espécies fossem ideias arquétipos na mente divina e formas dessa mesma mente impressas nas coisas. deste ponto de vista, o problema dos universais não tinha sentido. levantá-lo significa, com efeito, admitir que o mesmo pode ser tesolvido de forma diferente das doutrinas que a primeira escolástica tinha deduzido da patrística e que se tornaram o património da especulação teológica. a

posição do problema significa, portanto, a consideração do assunto de um ponto de vista, que deixa de ser apenas teológico, para passar a ser também filosófico: isto é, de um ponto de vista que vê nos universais não apenas os instrumentos da acção criadora de deus mas também, e sobretudo, os instrumentos ou condições das operações 82 cognoscitivas do homem. a posição deste problema é, já de per si, a instauração de um ponto de vista que diz mais respeito ao homem que a deus: com efeito, o problema colocado nos termos de porfírio não é outro senão o problema da validade do conhecimento racional em geral. isso é o indício de uma nova importância atribuída ao homem; e. deste ponto de vista, também as inumeráveis subtilezas que desde logo possam ser consideradas como a expressão da nova liberdade com que o homem se encara e encara os seus problemas. esta nova liberdade, que se manifesta, (como veremos no capítulo seguinte) na renovada atenção que os filósofos dispensam ao mundo da natureza e aos seus problemas, acompanha e suporta o ressurgir económico e social da época: que se exprime na formação ou na consolidação das repúblicas marítimas e das comunas, nas trocas, nas viagens, na economia mercantil e, em geral, no prosseguimento da actividade e do espírito lógico. do ponto de vista da história da lógica, a posição do problema dos universais está condicionada pela possibilidade reconhecida de uma alternativa diferente da metafísica ou da teologia que era aceite sem discussão no período precedente. É esta a alternativa nominalística que em breve passa a chamar-se a via moderna da ló gica e que não é mais que a direcção cínico-estoica apontada pela lógica, de harmonia com as obras de boécio e de cícero e contraposta à direcção tradicional platónico-aristotélica. nominalismo e realismo correspondem, substancialmente, a estas duas direcções originárias. para o realismo, isto é, para a tradição platónica-aristotélica, o universal é algo de diferente, um conceptus mentis, é a essência necessária ou a substância das coisas e a ideia de deus. para o nominalismo, isto é, para a tradição estoicizante, o universal é 83 urna marca das próprias coisas e está em lugar (supponit) delas. apesar das suas querelas e de procurarem sempre novas soluções (que muitas vezes se

distinguem umas das outras apenas por um cabelo), os escolásticos, com o seu eclectismo desenvolto, não renunciam, no entanto, aos resultados que no campo da lógica se possam obter, utilizando ora uma ora outra das duas orientações. a partir do século xiii os tratados lógicos justapõem simplesmente às doutrinas lógicas aristotélicas, as estóicas, dando igual importância tanto a umas como a outras sem se preocuparem com as divergentes orientações teóricas. as summulae logicales de pedro hispano constituem o mais famoso modelo desta justaposição. o antagonismo entre o realismo e o nominalismo, entre a via antiga e a via moderna, é no entanto um antagonismo de fundo que transcende o alcance das subtis, abstractas e frequentemente aborrecidas querelas a que deu lugar. do realismo pode-se fazer uso teológico e cosmológico, com o nominalismo não. por isso, as correntes da escolástica que se inspiraram no realismo foram as que se aplicaram a defender a teologia e a concepção teológica do mundo. as que se inspiraram no nominalismo alinharam em geral contra a teologia e assumiram posições críticas nos confrontos da concepção teológica do mundo, conseguindo algumas vezes alcançar ousadas inovações que constituem como que o anunciar ou a preparação de novas concepções da natureza e do homem. compreende-se a razão porque, no final da escolástica, o nominalismo tenha prevalecido: os problemas da teologia, respeitantes ao domínio da fé, não interessavam já à filosofia, que se voltava para outros campos, nos quais se poderiam deter, de forma mais oportuna e eficaz, os poderes racionais do homem. 84 § 201. roscelino a primeira e clamorosa fase da querela dos universais foi provocada pelo aparecimento em cena de um nominalismo na sua forma mais extrema, defendido por uma figura singular, a de roscelino. otão de freising, na sua crónica sobre as proezas de frederico, afirma que roscelino "foi o primeiro nos nossos tempos, que propôs na lógica a doutrina das palavras (setentiam vocum)". sabemos que roscelino nasceu em compiègne, estudou em soissons e reims e ensinou como teólogo na escola-cátedra de compiègne, depois na de loches, bretanha, onde teve entre os seus alunos

abelardo, e em seguida em besançon e tours. devia ter morrido entre 1123 e 1125, a julgar pelas apóstrofes que abelardo lhe dirige nos seus escritos. de roscelino, temos apenas uma carta dirigida a abelardo sobre a questão da trindade. não sabemos se escreveu mais alguma outra coisa ou se as suas obras não foram ainda descobertas entre os manuscritos medievais. É provável que não tenha escrito mais nada, porque os seus adversários, anselmo, abelardo e joão de salisbúria não lhe atribuem nenhum livro e os padres do concílio de soissons, que condenaram a sua doutrina trinitária, não deixariam de entregar às chamas os seus escritos se tivessem existido. não podemos, portanto, conhecer a doutrina de roscelino a não ser a-través dos escritos dos seus adversários e, especialmente, de anselmo e de abelardo. anselmo coloca roscelino entre os dialécticos, mais ainda, entre os hereges dialécticos do seu tempo, "que acreditam que as substâncias universais não passam de um sopro de voz (flatus vocis); e que, por "com, apenas entendem o corpo colorido, e por "sabedoria" a própria alma do homem". santo anselmo acrescenta ainda a explicação de semelhante opinião: tais pessoas perma85 n=m enredadas nos sentidos e não conseguem libertar deles a razão. "nas suas almas, a razão que deve ser a parte dominante e julgadora de tudo o que há no homem, está de tal maneira submergida nas imaginações corporais que não conseguem livrar-se delas; e mantêm-se incapazes de discerni-la quando afinal deveriam servir-se dela apenas para a especulação". (de fide trin., 2). esta incapacidade de roscelino para seperar a razão do envólucro sensível é também motivo, segundo anselmo, da heresia trinitária defendida pelo clérigo de compiègne: "quem não compreende nem sequer a maneira como os homens constituem a única espécie homem, como poderá compreender a maneira como através da misteriosíssima natureza divina, várias pessoas, sendo cada uma delas um deus perfeito, constituem as três um só deus? e quem tem a mente tão obscurecida que não sabe distinguir o cavalo da sua cor, como poderá distinguir o deus único das suas diferentes relações? em suma, quem não compreende que o homem não é o próprio indivíduo, de forma alguma poderá entender por homem a natureza humana" (ibid.). joão de salisbúria dános um testemunho análogo sobre o nominalismo de roscelino: coloca-o "entre os que afirmam que os géneros e as espécies não são outra coisa a não ser vozes"

(metal., 11, 13, policrat., vii, 12). abelardo ilustra-nos outro aspecto de tal nominalismo. roscelino sustentou que é impossível que as coisas constem de partes e que as partes das coisas são, como as espécies, nomes diversos das próprias coisas (obras inéditas, edic. cousin, 471). vimos já como santo anselmo relaciona com o nominalismo a heresia trinitária de roscelino. ele próprio nos afirma que, segundo roscelino, "as três pessoas da trindade são três real-idades como três anjos ou três almas, apesar de serem absolutamente 86 idênticas pela vontade e podem (de fide tiin., 3); podendo-se acrescentar, se fosse costume admiti-lo, que constituem três divindades (epist., 11, 41). mas sobro esta doutrina temos algumas referências do próprio roscelino na sua carta a abelardo. roscelino começa por identificar pessoa com substância, a propósito de deus. uma vez que, em deus, diversos nomes não indicam realidades diversas, mas a mesma única e simplicíssima realidade, a pessoa só pode significar substância. mas se as pessoas são diversas porque uma gera e a outra é gerada, é evidente que são diversas as substâncias da trindade divina. a trindade é una pela comunhão das três substâncias, não porque seja constituída por uma única substância. reconhece-se, portanto, à trindade uma unidade de semelhança ou de igualdade, mas não de substância. daí se conclui que roscelino deduziu o seu trideísmo da identificação de substância e pessoa (que na tradição eclesiástica sempre foram distintas): e foi levado a essa identificação por imaginar que as determinações diversas que se atribuem a deus não são mais que nomes diversos de uma realidade única. a heresia de roscelino foi condenada pela primeira vez num concílio que se celebrou em reims em 1092 ou 1093. roscelino foi obrigado a abjurar e a ele se submeteu com receio de ser assassinado pelo povo de reiras; mas tendo abandonado a cidade, voltou a defender as suas teses. foi novamente condenado em 1094 num concílio convocado pelo rei filipe para celebrar as suas bodas com bertrada. expulso de frança, dirigiu-se a inglaterra, onde uma nova

perseguição o obrigou a regressar a frança. tornou a aparecer para combater a doutrina de abelardo, em 1121. o seu carácter surge-nos, através da carta que conhecemos dele, como pouco recomendável: ataca abelardo nos 87 é termos mais violentos e atira-lhe em cara cinicamente a mutilação que lhe havia sido infligida. 1 § 202. guilherme de champeaux o realismo de guilherme de champeaux opõe-se ao nominalismo de roscelino. guilherme nasceu em champeaux, perto de melun, à volta de 1070 e foi discípulo em paris de anselmo de laon (falecido em 1117), que contou entre os seus alunos alguns dos homens mais notáveis do seu tempo, entre os quais se encontravam abelardo e gilberto. até 1108, guilherme passou da escola catedral de paris para a abadia de são victor, da qual foi prior e abade. em seguida foi nomeado bispo de chálons-sur-marne. viveu até morrer em grande amizade com são bernardo e faleceu no ano de 1121. dos seus numerosos escritos ficaram: o de eucaristia, o de origine animae e um diálogo sobre a fé católica. no que se refere à doutrina sobre os universais, a nossa principal fonte é a polémica que contra ele desencadeou abelardo. guilherme sustentava a realidade substancial dos universais e afirmava que tal realidade se encontra inteiramente em todos os indivíduos, que se multiplicam e se diferenciam entre si por qualidades acidentais. por exemplo, a espécie "homem" é uma realidade que permanece una e idêntica em todos os homens; a ela se acrescentam depois as qualidades acidentais que são diferentes em sócrates, platão e nos outros indivíduos particulares (abelardo, obras inéditas, de gen. et. spec., 513). abelardo, que foi discípulo de guilherme, vangloria-se de o ter obrigado a modificar, e mais ainda, a abandonar completamente esta tese. eis o texto de abelardo (hist. calam., 2): "guilherme corrigiu a 88 sua opinião afirmando que a realidade universal se encontra nos indivíduos não essencialmente, mas individualmente". individualiza-se, isto é, nos indivíduos de modo que perde a sua unidade essencial e se multiplica

neles, o que é uma renúncia a afirmar a realidade em si do universal. mas com isto a tese do realismo não se encontrava de todo abandonada: estava apenas abandonada a realidade separada do universal e admitia-se o universal in i-e, o universal individualizado e incorporado na mesma coisa individual. esta é uma segunda fase do pensamento de guilherme. enquanto que a primeira nega efectivamente a realidade dos indivíduos, reduzindo-os a meras modificações acidentais da essência universal, a segunda sustenta a realidade dos indivíduos, afirmando, não obstante, a presença neles da essência universal individualizada. um fragmento das senientiae faz-nos conhecer uma terceira fase da doutrina de guilherme sobre os universais; a essência comum dos indivíduos particulares nem seria a mesma: os diversos indivíduos teriam apenas essências semelhantes. nesta terceira fase, a doutrina de guilherme transforma-se em puro conceptualismo. § 203. o tratado "de generibus et speciebus" o tratado de generibus et speciebus foi considerado por cousin como uma obra de abelardo e incluído entre as suas obras inéditas. ritter foi o primeiro a negar esta atribuição e atribui o tratado a joscelino (gausleno, 11251151), bispo de soissons. esta atribuição foi logo confirmada por outros eruditos, e, com efeito, joão de salisbúria, no seu metalogicus (11, 17) atribui a gausleno a doutrina de que o universal é o conjunto das coisas siri89 gulares; doutrina contida no tratado. nele se define a espécie como todo o conjunto de indivíduos que têm a mesma natureza. "essa colecção, apesar de ser essencialmente múltiplice, chama-se tradicionalmente uma só espécie, um só universal, uma só natureza da mesma maneira que se fala de um só povo, ainda que este seja constituído por muitas pessoas" (abelardo, obras inéditas, edic., cousin, 527). para o indivíduo, a espécie é matéria, a individualidade a forma. por exemplo, sócrates é composto da matéria "homem" e da forma "sócrates", platão, de uma forma semelhante, isto é, "homem", e de uma forma diferente, isto é, "platão", e assim para os outros. e como a socratitas que constitui formalmente sócrates não subsiste fora de sócrates, também a essência "homem"

que em sócrates constitui a socratitas não subsiste se não está em sócrates. o ponto de vista defendido neste tratado aproxima-se muito do de abelardo. nota bibliográfica § 200. sobre a querela dos universais, que ocupa a actividade filos6fica de todos os escritos da época, veja-se a seguinte bibliografia. § 201. a carta de roscelino a abelardo está publicada nas obras de abelardo, em patr. lat., verl. 1.78.o, 357 e sgs. nova ed. de reiners, em beitrage, viii, 5, 66-80. picavete: poscezin, paris, 1911. sobre o nominalismo: reiners, op. cit. § 202. as obras de guilherme de champeaux, em p. l., 163., 1037-1072. as sententiae (ou quaest"es), em lefÈvre, les variations de g. de ch. et de ia question des universaux, lille, 1898; grabmann, geschischte des scholast. methode, n 136-168. @ 203. o de generibus et speciebus, encontra-se nas obras inéditas de abelardo, editadas por cousin; ritter, gesch. d. phil., vii, 1844, 364; prantl, ii, 142-147; robert, les écoles et ilenseignement de ta theologie pendant ta preinière moitié du xii mcle, paris, 1909, 202, 205. 90 vi abelardo § 204. abelardo: a figura histÓrica abelardo é a primeira grande afirmação medieval do valor humano da investigação. trata-se de urna figura que nem sequer a tradição medieval conseguiu reduzir ao esquema estereotipado de sábio ou santo; trata-se de um homem que pecou e sofreu e que colocou todo o significado da sua vida na investigação; de um mestre genial que fez durante séculos a fortuna e a fama da universidade de paris, e que encarna, pela primeira vez na idade média, a filosofia na sua liberdade e no seu significado humano. dotado de grande presença física (heloísa dá-nos disso testemunho em ep., h em patri 178.*, col. 185, quando ele se dirigia ou regressava das aulas, com o seu olhar enérgico e a cabeça erguida, despertava a admiração de todos), de uma eloquência precisa e cortante, de um extraordinário poder dialéctico que o tornava invencível em todas as discussões, estava destinado ao êxito, que efectivamente lhe

sorriu, acarretando-lhe invejas, perseguições e condenações. mas o centro da sua 91 personalidade é a exigência da investigação: a necessidade de resolver em motivos racionais toda a verdade que seja ou queira ser como tal para o homem, de enfrentar com armas dialécticas todos os problemas para leválos ao plano de uma compreensão humana efectiva. para abelardo, a fé no que se não pode entender é uma fé puramente verbal, privada de conteúdo espiritual e humano. a fé, que é um acto de vida, é inteligência do que se crê: todas as forças do homem devem portanto dirigir-se para a compreensão. nesta convicção reside a força da sua especulação e do seu fascínio como professor. nele torna-se claro o significado, até então incerto e débil, da ratio medieval. a ratio é a investigação a que o homem se entrega para compreender e fazer a sua verdade revelada e na qual realiza e encontra a sua substância humana. a razão é para o homem o **tiruico gu ,ia possível; e o exercício da razão, que é próprio da filosofia, é a actividade mais elevada do homem. portanto, se a fé não é uma obrigação cega que pode dirigir-se no sentido do preconceito e do erro, deverá estar sujeita à joeira da razão. deste ponto de vista, não subsiste uma diferença radical entre os filósofos pagãos e os filósofos cristãos; se o cristianismo constitui a perfeição do homem, também os filósofos pagãos, enquanto filósofos, foram cristãos na sua vida e na sua doutrina (theol. christ., 11, 1). § 205. abelardo: vida e escritos as movimentadas circunstâncias da vida de abelardo são contadas por ele próprio numa carta que tem o título de historia calamitaium. pedro abelardo nasceu perto de nantes, no ano de 1079, estudou dialéctica com guilherme champeaux, de 92 quem logo se tornou adversário e rival. ensinou primeiramente dialéctica em várias localidades de frança, depois, em 1113, teologia na escola catedral de paris. o ensino de abelardo desenrolou-se entre discussões clamorosas e polémicas violentas, suscitadas pela sua intemperança dialéctica e pela inveja que o seu êxito provocava.

em paris, apaixonou-se por heloísa, sobrinha de um tal fulberto, cónego, que era bela e muito culta e de quem teve um filho, astrolábio. tendo casado com ela para aplacar a ira do tio, quis manter secreto esse casamento, com receio que pudesse prejudicar a sua fama e carreira de professor, e enviou heloísa para o convento de argenteuil, perto de paris, onde fora educada desde criança. mas os tios e os parentes de heloísa, julgando que abelardo pretendia desembaraçar-se dela, vingaram-se e mandaram-no castrar enquanto ele dormia. coberto de vergonha pelo ultraje recebido, abelardo entrou num convento; e os dois esposos consagraram-se a deus: abelardo na abadia de são dionísio perto de paris; heloísa, no mosteiro de argenteuil. no epistolário de abelardo conservam-se algumas cartas de heloísa plenas de afecto e força de resignação depois deste infortúnio, abelardo renovou com redobrado entusiasmo o ensino, num lugar afastado em nogent-sur-seine, para onde os discípulos o acompanharam e onde construíram um oratório que ele consagrou ao espírito santo ou paracleto. em 1136 reapareceu em paris e reatou as suas lições na montanha de santa genoveva, onde tinha conseguido os seus primeiros êxitos como professor. exaltado pelos seus discípulos pela eloquência e ardor da sua dialéctica, invejado pelos outros professores, em breve abelardo deu aso a que fosse apontado como herege. o concílio de soissons condenou a sua doutrina trinitária e obrigou-o a queimar por suas próprias 93 mãos, o livro de unitate et trinitate divina (1121). nos últimos anos da sua vida manteve uma polémica com são bernardo, que provocou a sua condenação pelo sínodo de sens (1140). abelardo apelou para o papa o resolveu dirigir-se a roma para defender a sua causa; mas o abade podro de cluny convenceuo a permanecer em cluny e a reconciliar-se com a igreja, com o papa e com são bernardo. abelardo compôs, nesta altura, uma apologia e passou os últimos dias da sua vida na abadia de saint marcel. aqui morreu em 20 de abril de 1142 com 63 anos. os seus restos mortais foram sepultados no paracleto o para ali foram levados e sepultados a seu lado, vinte e um anos depois, os restos mortais de heloísa (1164).

abelardo é o autor de uma dialéctica, escrita em 1121, de numerosas obras lógicas constituídas de comentários (glossae) aos escritos lógicos de porfírio e boécio e de uma obra intitulada sic et non, que é a típica expressão do seu método. além disso, escreveu três obras sobre o problema trinitário: tractatus de unitate et trinitate divina, introductio ad theologiam, theologia christiana. as referências contidas nestas obras permitem conjecturar que a theologia christiana foi escrita depois de de unitate, e provàvelmente entre 1123-1124, e que a introductio não é mais que a primeira parte da theologia condenada no concílio de sens. em continuação, abelardo escreveu um conientario sobre a epístola aos romanos e a Ética ou scito te ipsum. posteriores ainda são as cartas a heloísa, os sermões, os hinos, os problemata, a exposiiio in exameron. a carta com o título historia calamitatum foi escrita entre 1133 e 1136. nos últimos anos, passados em cluny, abelardo escreveu carmen ad astrolabium e o dialogus inter indaeum, philosophum et christianum (1141-1142). 94 § 206. abelardo: o mÉtodo abelardo exerceu sobre o desenvolvimento da filosofia medieval uma influência decisiva. esta influência deve-se, em primeiro lugar, ao seu fascínio como mestre. ele foi, senão o fundador, pelo menos o precursor da universidade de paris. o seu prestígio como professor e a superioridade do seu método consagraram a celebridade da escola de paris e prepararam a formação da universidade. a obra na qual melhor esclareceu e pôs em prática o seu método de investigação é o sic et non. trata-se de uma compilação de opiniões (sententiae) de padres da igreja, ordenadas segundo os problemas que abordam, de forma a que apareçam as diversas opiniões como respostas positivas ou negativas ao problema proposto (daí o título que significa sim e não). o processo ameaçava lançar o descrédito sobre a unidade da tradição eclesiástica, fazendo realçar os seus contrastes de forma evidente; mas a finalidade de abelardo era a de expor os problemas de forma nítida para demonstrar a necessidade de resolvê-los. com este fim, descreve no prólogo uma série de regras. começa por distinguir os textos do velho e do novo testamento e os textos patrísticos. os primeiros lêem-se com a obrigação de crer; os outros, com liberdade de juízo. se se encontra nos primeiros alguma coisa que pareça absurdo, é preciso supor, não que o autor esteja enganado,

mas que o código é falso ou que o intérprete se equivocou ou então somos nós que não conseguimos compreender. mas no que se refere aos outros textos, muito do que contêm foi escrito mais segundo a opinião do que a verdade. quando neles se encontram opiniões diferentes e opostas sobre o mesmo tema, é preciso ter em conta o fim que o autor tinha em vista, e é preciso distinguir as épocas em que a coisa foi dita, porque o que se 95 admite numa época é proibido noutra e o que é prescrito rigorosamente na maioria das vezes é depois suavizado pela dispensa. em suma, esta é a regra fundamental, e muitas controvérsias podem facilmente ser resolvidas se se tiver em conta que as mesmas palavras têm significados diversos na boca de diferentes autores. há que realizar, portanto, uma investigação completa para resolver os contrastes entre os textos que têm autoridade em filosofia. e se se considerar que a disciplina que estuda e prescreve o uso das palavras e o seu significado é a lógica, vê-se que a lógica terá, na investigação escolástica, como propõe abelardo, um lugar predominante. a lógica equivale à razão humana. a investigação de abelardo é uma busca racionalista que se exerce sobre os textos tradicionais para encontrar neles, livremente, a verdade que contêm. esta investigação deve ser entendida como uma constante interrogação (assidua seu frequens interrogatio). principia na dúvida, porque só a dúvida promove a investigação e só a investigação conduz à verdade (dubitando enim ad inquisilionem venimus; inquirendo veritatem percipimus). nisto reside, sem dúvida, o motivo de fascínio que a personalidade de abelardo exerceu sobre os seus contemporâneos e da eficácia do seu ensino sobre a escolástica. abelardo é uma das personalidades que mais sentiu e viveu as exigências e o valor da investigação. os resultados especulativos são para ele menos importantes que a investigação necessária para chegar a esses resultados. o ter encarnado o espírito da investigação racional numa época de despertar filosófico, levou-o a ser considerado o fundador do método escolástico. este método, em breve se fixou, depois dele, num esquema que foi seguido universalmente, o esquema da questio, que consiste em partir de textos que

dão soluções opostas ao mesmo problema 96 para chegar a elucidar, por um caminho puramente lógico, o própria problema. este método, que a princípio foi tido como duvidoso e combatido, em breve prevaleceu em toda a escolástica. § 207. abelardo: razÃo e autoridade o predomínio da investigação na especulação de abelardo confere à razão o predomínio sobre a autoridade. abelardo não nega a função da autoridade na investigação: "enquanto a razão se mantém oculta, afirma, (theol. christ., 111, migne, col. 1226), deve bastar a autoridade e deve respeitar-se sobre o valor da autoridade aquele conhecidíssimo princípio, transmitido pelos filósofos: não se deve contradizer o que parece verdadeiro a todos os homens, ou aos que são mais, ou aos que são doutos". só à autoridade nos devemos confiar enquanto se mantiver oculta a razão (dum ratio latet). mas a autoridade passa a ser inútil quando a razão possui meios para encontrar, por si, a verdade. "todos sabemos que, naquilo que pode ser discutido pela razão, não é necessário o juízo da autoridade" (theol. christ., 111, col, 1224). É certo que a razão humana não é medida suficiente para compreender as coisas divinas (de unit. et trin., edic. stólzie, 27). a propósito da trindade, por exemplo, abelardo diz explicitamente que não pode prometer com este argumento ensinar a verdade à qual nenhum homem pode chegar, mas propor apenas uma solução verosímil ou próxima da razão humana e que, ao mesmo tempo, não seja contrária à fé (int. ad theol., h, 2). mas isto não implica que a fé não se deva alcançar e defender com a razão. se não é preciso discutir, nem sequer sobre o que se deve ou não deve crer, que nos resta senão prestar fé tanto 97 aos que dizem a verdade como aos que dizem o que é falso? (ibid., 11, 3). não cremos numa coisa porque deus a tenha dito, mas porque admitimos que ele a

disse, e assim nos convencemos de que a coisa é verdadeira. uma fé cega, prestada com ligeireza, não tem nenhuma estabilidade, é uma fé incauta e privada de discernimento: em qualquer caso é preciso discutir, pelo menos de antemão, se é necessário acreditar ou não (ibid., 11, 3). a última convicção de abelardo está expressa na historia calamitatum (cap. 9). nela afirma que escreveu o livro sobre a unidade e trindade divina para os seus discípulos que, no campo teológico, procuravam argumentos humanos e filosóficos e queriam mais raciocínios do que palavras. É ingénuo pronunciar-se palavras cujo significado não se entende, uma vez que não se pode crer senão no que se entende, e é ridículo predicar aos outros aquilo que quem predica ou quem ouve não consegue apreender. não se pode crer senão no que se compreende. nesta frase se contém o verdadeiro cerne da investigação de abelardo. a própria verdade -revelada não é verdade para o homem, se não apelar para a sua racionalidade, se não o deixa entender e apropriar-se dela. § 208. abelardo: o universal como discurso na discussão sobre os universais, a posição de abelardo é típica e vai influenciar poderosamente o desenvolvimento posterior do problema. com efeito, abelardo foi o primeiro que baseou a sua solução não já na verdadeira ou suposta realidade metafísica do conceito, mas unicamente na sua função, que é a de significar as coisas. abelardo parte da definição de universal dada por aristóteles (de interpr., 1, 6). "universal é o 98 que nasceu para ser predicado de muitas coisas". em virtude desta definição, abelardo acentua o carácter lógico e puramente funcional do universal e, por um lado, nega que possa, por qualquer título, ser considerado como uma realidade ou res, e por outro, que possa considerar-se como um puro nome. não pode ser considerado como realidade porque nenhuma realidade pode ser predicada de outra. rem de re praedicari monstrum dicunt, afirma joão de salisbúria no metalogicus (11, 17) referindo-se a abelardo e aos seus continuadores. por outro lado, não pode ser uma pura voz, porque a própria voz como tal é uma coisa, uma realidade particular que não _ pode ser predicada de outra. a fórmula de roscelino: universal est vox, é substituída por abelardo pela fórmula universal est sermo: diferentemente de vox,

sermo supõe predicabilidade, referenoia a uma realidade significada, o que a escolástica posterior chamará intencionalidade. este ponto de vista que encontra a sua expressão mais clara nas glosas a boécio, tem o grande mérito de ter clarificado a natureza puramente lógica e funcional do conceito. trata-se de uma descoberta que o posterior desenvolvimento da lógica medieval não irá esquecer. através dela, abelardo pode justificar a realidade objectiva do universal sem ter de recorrer às hipóstases metafísicas do realismo. É evidente que não existe o universal fora das coisas individuais. quando os filósofos afirmam que a espécie é criada pelo género, não pressupõem com isto que o género preceda às suas espécies no tempo ou exista antes delas. o género não é de forma alguma anterior à espécie, e nunca pôde existir um animal que não fosse nem racional nem irracional: o género não pode existir senão com a espécie, tal como esta não pode existir senão com aquele. (int. ad theol., 11, 13). mas o facto de o universal não existir na realidade como tal, não significa que não 99 seja nada. as coisas singulares, nas suas propriedades e na sua natureza, são uniformes ou semelhantes, a~r desta uniformidade ou semelhança não constituir, por sua vez, uma coisa singular. todas as coisas separadas, como sócrates e platão, são opostas em número mas convergem nalguma coisa, por exemplo, no facto de serem homens. e esta convergência ou uniformidade é real: abelardo define-a, como um status, que não é nem uma res nem um nihilum. quando se diz que todos os homens se aproximam pelo facto de serem homens (in statu hominis), deve-se entender apenas que todos são homens e que nisto não diferem em nada. (philosophische schriften, ed. glyer p. 1920). tal é a a tese típica do nominalismo medieval; e a lógica nominalista integrá-lo mais tarde, com a doutrina da suppositio: mediante a qual se exprime a função própria do conceito (como -sinal) de estar em lugar, nas proposições e nos raciocínios em que é utilizado, de um conjunto de objectos entre os seus similares. § 209. abelardo: o acordo entre a filosofia e a revelaÇÃo o valor que a investigação racional como tal assume aos olhos de abelardo, condu-lo naturalmente a reconhecer o valor de todos aqueles que se dedicam ao mesmo tipo de investigação, mesmo que estejam fora do cristianismo.

abelardo reconhece assim que a verdade falou também pela própria boca dos filósofos pagãos, que também poderiam ter reconhecido a natureza trinitária de deus (intr., ad. theol., 1, 20). a distinção entre filósofos pagãos e cristãos deixa de ter valor para ele: todos estão unidos pela razão. tanto a vida como a doutrina dos filósofos, afirma ele, encarnam o mais alto grau da perfeição evangélica ou apostólica, e pouco 100 ou nada se afastam da religião cristã (theol., christ., 11, 1, col. 1184). a intenção fundamental de abelardo nas suas especulações teológicas, é precisamente a de mostrar o acordo substancial entre a doutrina cristã e a filosofia pagã. abelardo dá-se conta, todavia, de estar a forçar, nesta sua tentativa, o sentido literal das expressões dos filósofos a que se refere, mas defende-se recordando que os próprios profetas, quando através deles falava o espírito santo, não entendiam, senão em parte, o significado das suas palavras: as quais muitas vezes são tomadas claras e interpretadas por outros (introd. ad theol., 1, 20). de acordo com estes pressupostos, o tratamento racional do dogma trinitário é em abelardo conduzido no sentido de demonstrar o acordo substancial dos filósofos, em particular de platão e dos neo-platónicos, com a revelação cristã. com efeito, até mesmo os filósofos pagãos, segundo abelardo, conheceram a trindade. e admitiram que a inteligência divina ou nous nasceu de deus e é coeterna com ele, e, além disso, consideraram a alma do mundo, como uma terceira pessoa, que procede de deus e é a vida e a salvação do mundo. " platão, afirma abelardo, reconheceu explicitamente o espirito santo como a alma do mundo e como a vida de tudo. uma vez que na bondade divina tudo, de certo modo, vive; e todas as coisas estão vivas e nenhuma está morta em deus; o que significa que nenhuma é inútil, nem mesmo, os males, que são dispostos da melhor maneira para bem do conjunto" (theol., christ., 1, 27, c. 1013). se platão afirma que a alma do mundo é em parte indivisível e mutável e em parte divisível e mutável, enquanto se multiplica nos vários corpos, isto deve ser entendido no sentido de que o espírito santo permanece

indivisível em si mesmo; mas, enquanto multiplica os seus dons, aparece dividido na sua 101 acção vivificadora. quando platão afirma que a alma foi colocada por deus no meio do mundo e que a partir daí se estende igualmente por todo o globo, o que ele quer afirmar, de forma elegante, é que a graça de deus se oferece igualmente a todos, e que nesta casa ou templo que é seu, o mundo, ele dispõe todas as coisas de modo salutar e justo (introd. ad theol., 1, 27). a doutrina platónica coincide assim de forma substancial, com a fé na trindade; e se platão afirma que a mente e a alma do mundo foram criadas, trata-se de uma expressão imprópria que quer significar a geração e a providência das duas pessoas, divinas do pai ubid. 1, 10). § 210. abelardo: a trindade divina estas analogias guiam abelardo nas suas interpretações trinitárias. a distinção das três pessoas é baseada na distinção dos atributos. com o nome do pai indica-se a potência da majestade divina pela qual pode fazer tudo o que quer. com o nome de filho ou verbo designa-se a sapiência de deus, pela qual ele pode conhecer tudo e de modo algum ser enganado. com o nome de espírito santo exprime-se a caridade ou benignidade divina, pela qual deus quer que tudo seja disposto do melhor modo e dirigido ao melhor fim. estes três momentos da trindade garantem a perfeição divina, uma vez que não é perfeito em tudo quem é importante em qualquer coisa, nem é perfeitamente santo quem pode enganar-se em qualquer coisa, nem é perfeitamente bondoso quem não quer que tudo seja disposto do melhor modo. os três atributos de deus, expressos nas três pessoas da trindade, pressupõem-se e reclamam-se uns aos outros. e assim, ainda que a sapiência pertença ao filho e a caridade ao espírito santo, todavia, tanto o pai como 102 o espírito santo são inteira sapiência; e, do mesmo modo, tanto o pai como o filho são também caridade (int. ad theol., 1, 7-10). em razão desta

unidade dos atributos divinos, as várias pessoas derivam umas das outras. o pai, que é a potência, gera em si a sua sapiência, que é o filho, se bem que a própria sapiência divina, seja uma potência, isto é: um poder de deus: o poder de discernir a forma de evitar qualquer engano ou erro, de modo a que nada pode subtrair-se ao conhecimento de deus. o espírito santo procede do pai e do filho, enquanto a bondade é própria do espírito, a forma de produzir os seus efeitos deriva da potência e da sapiência de deus: pois se não derivasse da potência seria privado de eficácia e se não derivasse da sapiência não conheceria a melhor forma de explicar-se e de produzir os seus efeitos. o espírito santo designa portanto o proceder de deus de si para as criaturas, que têm necessidade dos benefícios da graça divina, proceder que é ditado pelo amor de deus (1b., 11, 14). o filho e o espírito santo diferem, todavia, na sua derivação de deus pai: o filho é gerado pelo pai, e é da mesma substância do pai, uma vez que a sapiência é uma determinada potência; o espírito santo não é da mesma substância do pai e do filho porque a caridade, que não é atributo, não é nem potência nem sapiência, ainda que esteja condicionada na sua eficácia, tanto por uma como por outra. fala-se, portanto, de geração do filho em relação ao pai, e de processão do espírito santo, tanto em relação ao pai como ao filho (1b., 11, 14). a relação entre as três pessoas divinas e a sua geração ou processão é ilustrada em abelardo com uma comparação. a divina sapiência é um aspecto determinado da divina potência do mesmo modo que um selo de bronze é uma determinada parte do bronze. a divina sapiência recebe o seu ser 103 da divina potência tal como o selo de bronze recebe o seu ser do bronze de que é formado. para que seja um selo de bronze, é necessário que exista o bronze; assim a divina sapiência que é a potência de conhecer, exige necessariamente que haja a divina potência, de que é formada. e como o bronze se chama a substância do selo, assim a divina potência é a substância da divina sapiência. nesta similitude, o espírito santo é aquele que se serve do selo e aquele que pressupõe o ser do próprio selo e do bronze que o constitui. tal como aquele que ao usar o selo se serve de qualquer coisa mole sobre a qual imprime

a imagem que existe na substância do selo, assim o espírito santo, com a distribuição dos seus dons, reconstitui em nós, a imagem destruída de deus, para que de novo sejamos feitos conforme a imagem do filho de deus, isto é: de cristo. em suma, tal como o bronze, o selo e o acto de selar são uma só coisa na sua essência, ainda que se trate de três coisas distintas uma das outras; assim também o pai, o filho, e o espírito santo são uma única essência, mas são distintos uns dos outros nos seus atributos pessoais, de forma que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra. o bronze, como matéria, não é a forma do selo e reciprocamente. assim o pai não é o filho, e a potência divina não é a divina sapiência; e reciprocamente (int. ad. theol., 11, 14). estas especulações trinitárias de abelardo suscitaram a crítica de s. bernardo que interpretou os atributos com que abelardo caracteriza as três pessoas divinas como se fossem omnipotência, semi. -potência, nenhuma potência (de erroribus ab., 3, 8). e na verdade tal coisa é teológicamente imprópria, uma vez que não assume a substancialidade das pessoas divinas que são reduzidas, segundo o esquema de escoto erígena, a três momentos da vida divina (modalismo). por outro lado, a especulação de abe104 abelardo conduz heloísa para o convento do paráclito lardo tem uma intencionalidade mais cosmológica do que teológica. o seu objectivo é mais o de esclarecer a estrutura e a constituição do mundo e a relação entre o mundo e deus, do que propriamente esclarecer a natureza de deus. e esta sua intencionalidade cosmológica foi aplicada e utilizada pelos filósofos posteriores, especialmente os da escola de chartres. § 211. abelardo: a unidade divina no que se refere à natureza de deus em si própria, abelardo repete a especulação negativa de escoto erígena. não é possível definir a essência de deus, porque deus é inexprimível. deus está fora do número das coisas, porque não é nenhuma delas. todas as coisas pertencem ou à categoria da substância ou a outra categoria. mas aquilo que não é substância não pode subsistir em

si. ora bem, deus é o princípio e fundamento de tudo, portanto não pode pertence- ao conjunto das coisas que não são substância. mas tão-pouco pode ser integrado nas substâncias. com efeito, o que é característico da substância é o permanecer numericamente una e idêntica, ainda que possa receber em si determinações diversas e opostas. mas deus não pode receber nenhuma dessas determinações, porque nele não há nada de acidental e de mutável. por isso, mais que substância, deve-se chamar-lhe essência, dado que nele, o ser e o subsistir são absolutamente -idênticos. nenhum nome, nenhuma palavra referida a deus conserva o significado com a qual são referidas todas as coisas criadas. a natureza divina apenas pode ser exprimida com parábolas e metáforas. podemos distinguir, por exemplo, na substância do homem a vida animal, a razão, a mortalidade, etc., ainda que a essência do homem permaneça numericamente una e idêntica. do mesmo modo pode105 mos supor que na divina substância se podem distinguir atributos diversos, constitutivos de três pessoas diferentes, permanecendo, no entanto, aquela substância una e idêntica (intr., ad theol., il, 12). para compreender a unidade das pessoas divinas é útil considerar uma outra imagem que abelardo vai buscar à gramática. a gramática distingue três pessoas: a que fala, aquela a quem se fala e aquela de que se fala; mas reconhece que estas três pessoas podem ser atribuídas a um mesmo sujeito. uma pessoa pode falar de si a si própria; neste caso, referem-se ao mesmo sujeito todas as três pessoas da gramática. além disso, a primeira pessoa é o fundamento das outras, uma vez que não há ninguém que fale, também não há ninguém a quem se fale e ninguém de que se fale. em suma, a terceira pessoa depende das duas precedentes, pois que só entre duas pessoas que falam se pode falar de uma terceira pessoa. em tudo isto podemos encontrar a imagem da unidade divina; ainda que a segunda pessoa, com efeito, pressuponha a primeira e a terceira as outras duas. e como um e mesmo homem pode ser a primeira, a segunda e a terceira pessoas gramaticais, sem que estas três pessoas se confundam ou anulam; assim também em deus a mesma essência pode ser as três pessoas, sem que as três pessoas se identifiquem umas com as outras (lbid., 11, 12). § 212. abelardo: deus e o mundo

as relações entre deus e o mundo são esclarecidas em abelardo com o fundamento dos atributos divinos e em primeiro lugar o da omnipotência, que é o atributo próprio do pai. a conclusão a que abelardo chega, a propósito deste atributo, é de que deus não pode fazer nem mais nem menos 106 daquilo que faz e por isso a sua acção é necessária. com efeito, deus apenas pode fazer o bem. deus faz aquilo que quer, mas quer aquilo que é bom. o princípio da sua acção não é o sic volo, sic iubeo, sit pro ratione voluntas: ele quer apenas que aconteça aquilo que é bom que aconteça. (theol. christ., v, col. 1323). É claro pois, que, em tudo aquilo que deus faz ou deixa de fazer, há uma justa causa... tudo aquilo que ele faz, deve fazê-lo, porque se é justo que alguma coisa aconteça, é injusto que essa coisa seja omitida (intr., ad theol., 111, 5). nem se pode dizer que, se deus tivesse feito algo de diferente daquilo que fez, esse algo seria também bom, porque seria feito por ele; uma vez que, se aquilo que não fez, fosse bom como aquilo que faz, não haveria fundamento para a sua escolha nem motivo para fazer uma coisa e omitir outra. se aquilo que faz é apenas o bem, deus pode fazer apenas aquilo que faz. tinha pois razão platão ao afirmar que deus não podia criar um mundo melhor do que aquele que criou (lb., 111, 5). em deus, possibilidade e vontade são uma e só coisa: é verdade que ele pode tudo o que quer, mas é verdade também que ele não pode, senão aquilo que quer. esta doutrina de abelardo implica a necessidade da criação do mundo e o optimismo metafísico. o mundo foi necessariamente querido e criado por deus. tudo o que deus quer, quere-o necessariamente, nem a sua vontade pode permanecer ineficaz; necessariamente, pois, ele leva a seu termo tudo aquilo que quer (theol., christ., v, col. 1325 e segs.). a necessidade do mundo não implica a essência da liberdade em deus. a liberdade não consiste em escolher indiferentemente o fazer uma coisa ou outra, mas antes em executar sem coacção, e com plena independência, aquilo que se decidiu consciente e racionalmente. esta liberdade pertence também a 107 deus: pois tudo aquilo que ele faz, fá-lo apenas por sua vontade, e portanto sem precisar de qualquer coacção (intr. ad theol., 111, 5).

deus concedeu ao homem a possibilidade de pecar e de fazer o mal para que, em confronto com a nossa fraqueza, nos surja na sua glória, uma vez que de forma alguma ele pode pecar: e para que ao afastarmo-nos do pecado não atribuamos isso à nossa natureza, mas à ajuda da sua graça que dispõe para a sua glória não só o bem como também o mal (ib., hi, 5). a necessidade que é própria de deus reflecte-se nas acções de deus no mundo. deus prevê tudo: e se bem que a sua previsão não seja necessariamente determinante em relação aos acontecimentos singulares, não pode contudo ser desmentida e esses acontecimentos devem integrar-se na ordem das suas previsões. nesta ordem integra-se também a predeterminação. deus predestina os eleitos à salvação, mas mesmo aqueles que ele não predestina e que por isso estão condenados, integram-se na ordem providencial do mundo. a acção de deus não é nunca sem motivo, ainda que o motivo permaneça oculto aos homens. mesmo a traição de judas integra-se na ordem providencial, porque sem a sua existência não teria sido possível a redenção da humanidade. e, tal como a traição de judas, todos os males que podem acontecer ou acontecem, estão ordenados pela providência divina para o bem, o têm o seu motivo e o seu resultado inevitável, mesmo que o homem não possa dar-se conta disso un ep. ad rom., col. 649-52). § 213. abelardo: o homem a alma humana é, segundo abelardo, uma essência simples e distinta do corpo. existe um sentido ao afirmar-se que até as criaturas intelectuais, como 108 a alma ou o anjo, são corpóreas, enquanto estão ,limitadas no espaço; mas trata-se de um sentido impróprio que deriva de um conceito falar de corporeidade. a alma está toda presente em todas as partes do corpo e é o princípio da vida corpórea. só através da alma o corpo é o que é (intr. ad theol., hi, 6). como natureza espiritual, a alma traz em si a imagem da trindade divina. o que na alma é substância, é na trindade a pessoa do pai; o que na alma é virtude e sapiência é na trindade o filho, que é a virtude e a sapiência de deus; aquilo que na alma é a propriedade de

vivificar-se é na trindade o espírito santo, ao qual corresponde a missão de dar vida ao mundo (1b., 1, 5). a alma humana é dotada de livre arbítrio. "por livre arbítrio, afirma abelardo, entendem os filósofos o livre juízo da vontade. o arbítrio é, com efeito, a deliberação ou o juízo da alma, pelo qual alguém se propõe fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. este juízo é livre quando nenhuma necessidade de natureza impõe a realização do que se decidiu e permanece em nosso poder tanto o fazer como o deixar de fazem (lb., 111, 7). os animais não têm livre arbítrio porque não têm raciocínio e mesmo nós estamos privados de livre arbítrio quando queremos aquilo que não está no nosso poder ou quando alguma coisa acontece sem a nossa decisão. como capacidade de executar voluntariamente e sem coacção a acção que se decide a seguir a um juízo racional, o livre arbítrio pertence quer aos homens quer a deus e em geral a todos os que não estão privados na faculdade de querer. pertence também, e em grau eminente, aos que não podem pecar. o que não pode peca-r, não pode certamente afastar-se do bem; mas isso não implica que seja obrigado a fazêlo por uma necessidade de coacção. essa impossibilidade não deve confundir-se com uma constrição que impeça ou vincule o juízo racional 109 da vontade (1b., 111, 7). pode dizer-se, assim, que a liberdade de escolha é mais ampla no âmbito do bem, quando aquele que escolhe está livre da servidão do pecado (1b., 111, 7). § 214. abelardo: a Ética o ponto central da ética de abelardo é a distinção entre vício e pecado e entre pecado e má acção. o vício, é uma inclinação natural da alma para o pecado. mas se tal inclinação consegue ser combatida e vencida, não só não dá origem ao pecado, como torna ainda mais meritória a virtude. o pecado é, pelo contrário, o consentimento dado a essa inclinação e é um acto de desprezo e de ofensa a deus. consiste no não cumprir a vontade de deus, no transgredir uma sua proibição. trata-se de um não-fazer, ou de um não-omitir; de um não-ser, de uma deficiência, de uma ausência de realidade: de algo sem substância (scito te ipsum 3). a acção pecaminosa pode ser

cometida mesmo sem o consentimento da vontade, mesmo sem pecado: como acontece quando, por defesa. se mata um perseguidor furioso. o mal da alma é verdadeiramente apenas o pecado, o consentimento dado a uma inclinação viciosa. a vida humana é uma contínua luta contra o pecado. "desta forma, nós estamos sempre empenhados num combate interior para recebermos no outro mundo a coroa dos vencedores. mas para que haja batalha é necessário que exista um inimigo que resista e que não deixe de surgir. este inimigo é a nossa vontade pecaminosa, sobre a qual devemos triunfar submetendo-a ao querer de deus; mas nunca conseguiremos eliminá-la definitivamente porque devemos ter sempre um inimigo contra quem combatem (1b.). abelardo está na situação de -insistir, com base nestas premissas, sobre a pura interioridade das valoho rações mormis. a acção pecaminosa nada acrescenta ao pecado que é o acto pelo qual o homem despreza o querer divino. onde não existe consentimento da vontade não existe pecado, ainda que a acção seja em si pecaminosa (como no caso de quem mata coagido), e quando existe consentimento da vontade na inclinação viciosa, o facto de se seguir a ela uma acção pecaminosa nada acrescenta à culpa. deve-se chamar transgressor, não àquele que faz aquilo que é proibido, mas àquele que apenas consente no que é proibido por deus: e assim a proibição deve entender-se como referida não à acção, mas ao consentimento. "deus tem em conta não as coisas que se fazem mas o ânimo com que elas são feitas; e o mérito e o valor do que actua não consiste na acção mas na intenção" (1b.). uma mesma acção pode ser boa ou má; por exemplo, enforcar um homem tanto pode ser um acto de justiça como de malvadez. nem sempre o juízo humano pode adequar-se a esta exigência da valoração humana. mas isso acontece porque os homens não têm em conta a culpabilidade interior, a não ser o acto pecaminoso externo, que é efeito da culpa. apenas deus que observa, não as acções, mas o espírito com que são praticadas, pode avaliar segundo a verdade, o valor das intenções humanas e julgar exactamente a culpa (1b., 5). o juízo humano afasta-se necessariamente do juízo divino. o primeiro castiga mais a acção do que a intenção, porque segue mais um critério de oportunidade do que um dever de justiça e tem em mira, sobretudo,

a utilidade comum; o segundo, pelo contrário, castiga exclusivamente a intenção e inspira-se na mais perfeita justiça, sem ter em conta as repercussões sociais da culpa. mas enquanto o juízo humano se conforma com necessários critérios de oportunidade, tal coisa não é justificável com o fundamento da realidade moral 111 do homem. para esta real-idade não é a acção mas a intenção que conta, e a acção só é boa quando procede de uma boa intenção. na verdade, a bondade da intenção deve ser real, não aparente; é necessário que o homem não se engane ao crer que o fim para que tende seja da vontade de deus (1b., 11). abelardo procede coerentemente nesta ética da intenção e não se detém perante as consequências teologicamente perigosas da mesma. se o pecado está apenas na intenção, como se justifica o pecado original? abelardo responde que o pecado original não é um pecado, mas a pena de um pecado. "quando se diz que as crianças nascem com o pecado original e que nós todos, segundo o apóstolo, pecámos como adão, é como se se dissesse que do pecado de adão derivou a nossa pena, que é a sentença da nossa condenação" (1b., 14). igualmente impróprio é chamar pecado à ,ignorância em que vivem os infiéis em relação à verdade cristã e as consequências que surgem de tal ignorância. "não constitui pecado o ser infiel, ainda que -tal coisa impeça a entrada na vida eterna àqueles que chegaram ao uso da razão. para ser-se condenado é suficiente não acreditar no evangelho, ignorar a cristo não se aproximar dos sacramentos da igreja, ainda que isto aconteça não por maldade, mas apenas por ignorância" (1b., 14). não se pode ter por culpa o facto de não acreditarem no evangelho e em cristo aqueles que nunca ouviram falar nem dum nem doutro. afirmar que se pode pecar por ignorância significa entender o pecado num sentido lato e impróprio, já que o pecado é verdadeiramente apenas a ignorância quando é efeito de negligência consciente. nota bibliogrÁfica § 205. as obras teológicas de abelardo in p. l., 178.o. alguns escritos foram publicados parcialmente por cousin, ouvrages inédits d'abélard, paris, 1836 112 (cousin tem uma nova edição das obras já editadas, conjuntamente com jourdain, paris, 1849-1859); outros por gyeer, abaelards philosophie schriften, nei "beitrage", xx1, 1-4, 1933; e por dal pra, p. abelardo

scritti filosofici, milão, 1954. outras edições: de unitate et trinitate divina, ed. stõlzl,e, friburgo, 1891; theologia summi boni, ed. ostlender, nei "beitrage", xxv, 1939; dialectica, ed. de kijk, utrecht, 1956; historia calamitatum, ed. monrain, paris, 1959. rÉmusat, abélard, 2 vols. paris, 1845; ottaviano. p. abelardo, roma, 1931; s1kes, p. abelard, oambridge, 1932; gilson, heloise et abélard, paris, 1938 (trad. ital., turim, 1950); lloyd, p. abelard: the orthodox rebel, londres, 1947; moore, he"se and abelard, londres, 1952. § 206. robert, les écoles et venseignement de ia théologie pendant ia première moitw du xiie siècle, paris, 1909; grabmann, geschichte de scholastichen methode, 11, 199-221). § 207. moore, reason in the theology of. p. abelard, in "proceed. cathol. philos. assoc.", 1937. § 208. reiners, nei "1@eitrãge", vh1, 5, 1910; geyer, nei "beitrage", supp1. 1, 1913; arnold, zur geschichte der suppositionstheorie, in " symposion", 1952; moody, truth and consequence in medieval logic, amsterdão, 1953. § 210, 211. grunwald, nei "beitrage", vii, 3, 36-40; mccallum, a.is christian theology, londres, 1948. § 214. dittrich, geschichte der ethik, 111, 67-74; dal pra, in "riv. stor. f*ilos.", 1948; in "acme", 1948. 113 vii a escola de chartres § 215. o naturalismo chartrense o -problema dos universais, ao fim das suas primeiras manifestações, constitui o sinal de um novo interesse pelo homem e em especial pelos seus poderes cognoscitivos; e o resultado imediato desse interesse é uma mais extensa autonomia reconhecida a tais poderes. mas o século xii oferece também, nalguns caminhos abertos pela filosofia, o exemplo de um novo interesse pelo mundo da natureza; e também neste caso o resultado desse interesse é o reconhecimento de uma mais extensa autonomia da natureza em

confronto com o seu próprio criador. este segundo aspecto da escolástica do século xii, constitui o caminho seguido pelos filósofos que ensinaram na escola catedral de chartres, que foi fundada, no fim do século x, por fulberto (falecido 1028). mas juntamente com o interesse naturalístico, a escola de chartres cultivou igualmente o interesse pelos estudos literários o gramaticais e pela lógica; tanto assim que nos oferece a melhor documentação sobro a viragem que a filosofia escolástica sofre no 115 século xii; uma viragem através da qual o mundo do homem passa a ser observado e encarado com renovado interesse, ainda que no lugar subordinado que apesar de tudo mantém perante as forças transcendentes que o dominam. os temas da filosofia naturalista, que os filósofos de chartres preferem, são muito simples e todos se reconduzem à tentativa de abelardo de inserir o timeu platónico no tronco da teologia cristã. abelardo tinha identificado a platónica alma do mundo com o espírito santo. esta identificação é mantida pelos filósofos de chartres, mas agora a identificação passa a ser entre a alma do mundo e a natureza. a natureza passa a ser a força motriz, ordenadora e vivificadora do mundo; e com estas características ganha uma dignidade e uma potência autónomas. a natureza é designada força universal (vigor universalis) que não só faz com que existam todas as coisas individuais como também ela própria e de forma autónoma. e nas composições literárias que exprimem imaginosamente e segundo os modelos clássicos estes conceitos, ela surge personificada e exaltada como a filha de deus, a genitrix de todas as coisas, a ordem, o explendor e a harmonia do mundo. mas o importante é que, reconhecida à natureza uma tal dignidade, se torna possível reconhecerlhe também uma certa autonomia: começa a dar-se conta de que é possível explicarse a natureza com a natureza, e os filósofos de chartres. utilizando as fontes clássicas e patrísticas (especialmente cícero), recorrem de boa vontade às doutrinas epicuristas e estóicas para as suas explicações cosmológicas. obviamente, a utilização de doutrinas assim heterogéneas platonismo, epicurismo, estoicismo, todas filtradas pela retorta da teologia abelardiana-dá lugar a construções conceptuais heterogéneas e confusas que têm escasso valor científico e filosófico. mas a importância destas

tentativas não 116 está nos seus resultados, mas antes nos caminhos filosóficos para que apontam; caminhos que se dispõem a dar um relevo cada vez maior à natureza e ao homem, mesmo que a natureza e o homem sejam concebidos, não em oposição ao transcendente, mas como manifestações do próprio transcendente. a direcção que encontra na escola de chartres a mais rica expressão filosófica tinha sido preparada, desde o século anterior, por um certo prosseguimento dos conhecimentos científicos devido sobretudo aos contactos com os árabes. antes da primeira metade do século xi, no que diz respeito às ciências naturais e à medicina, a cultura medieval tinha ficado onde a deixara as obras de gerberto d'aurillac. mas nos princípios daquele século, o médico constantino africano traz para o conhecimento do mundo ocidental, com numerosas traduções, a ciência e a medicina greco-árabe. constantino nascera em cartago e viajara pelo oriente e pelo egipto. em 1060 deteve-se em salerno onde florescia uma grande escola de medicina. mais tarde torna-se frade no claustro de montecassino. traduz do árabe dois livros de medicina intitulados pantegni e viaticum que foram em seguida atribuídos ao médico ebreu isaac e impressos com o seu nome (lyon, 1515). em seguida, constantino traduz obras médicas do mesmo isaac e dos grandes médicos gregos hipócrates e galeno, tendo chamado a atenção para a teoria atómica dos mesmos. a obra de constantino foi continuada pelo inglês adelardo de bath (nascido em 1090) que ensinou durante alguns anos em laon, na escola de anselmo, e viajou pela itália meridional pela espanha e pela Ásia menor, para regressar, após sete anos, a inglaterra e dar a conhecer o que tinha aprendido com os árabes. traduz então os elementos de euclides e tratados árabes de aritmética e de astronomia; 117 compõe dois livros dos quais um, quaestiones naturales, é uma obra de física; o outro, de codem et diverso, tem a forma de uma carta a um sobrinho o é uma alegoria na qual a filosofia e a filoscomia disputam o jovem adelardo, vangloriando-se cada uma dos seus próprios méritos.

nas quaestiones naturales adelardo explicitamente contrapõe a razão à autoridade para aquele que tenta indagar o mundo natural. nesta indagação, afirma ele, aquilo que é preciso deter o conhecer, é a razão das coisas (quaest, nat., 6). esta forma de agir não afecta, de modo algum, o poder de deus; porque deus tudo fez, mas não fez nada sem razão: e é no sentido de conhecer essa razão que se deve orientar a ciência humana (1b., 1). na investigação dessa mesma razão, adelardo recorre frequentemente à teoria atómica que provavelmente, deduzia da obra de constantino africano e que neste período, como veremos em seguida, é frequentemente invocada, se bem que seja conhecida, mais do que através de lucrécio, através das advertências dos escritores patrísticos: calcídio (in tim, 279), ambrogio (in hexam., 1, 2), santo agostinho (epi., 118, 4, 28) e isidoro (etim., 13, 2, 1 e segs.). por outro lado, adelardo introduziu pela primeira vez no ocidente latino a prova aristotélica da existência de deus, deduzida do movimento (quaest, nat., 60). de tudo isto pode, portanto, deduzir-se que teria conhecido através dos árabes a física de aristóteles, que era ainda inacessível aos filósofos do ocidente e que ele cita (1b., 18). quanto ao problema dos universais, adelardo faz sua a solução de abelardo, mas exprime-a de forma diferente. os nomes "género", "espécie", "indivíduo" , são impostos à mesma substância, mas de um ponto de vista diferente. assim o nome de género "animal" designa um sujeito dotado de sensibilidade e de alma; o nome de espécie "homem" designa esse mesmo 118 sujeito mas acrescentando-lhe o raciocínio e a mortalidade; o nome individual "sócrates" designa todas as coisas precedentes com mais uma distinção numérica devida a caracteres acidentais. adelardo conclui que aristóteles tinha razão ao afirmar que os géneros e as espécies existem apenas nas coisas sensíveis; mas acrescenta que também platão tinha razão em dizer que eles existem na sua pureza, enquanto formas sem matéria, na mente divina. todos estes temas e motivos são abordados na escola de chartres cujo primeiro representante de envergadura foi bernardo, professor de 1114 a 1119 na escola catedral, e de 1119 a 1124, chanceler da abadia. dele não possuímos escritos mas conhecemos a sua doutrina através dos testemunhos de joão de salisbúria

que no seu metalogicus (iv, 35) lhe chama "o mais perfeito entre os platónicos do seu século". o que sabemos das suas doutrinas aparece como um resumo do timeu platónico visto através de abelardo. bernardo identifica os géneros e as espécies com as ideias platónicas e sustenta que, tal como as ideias, são eternos. não são todavia coeternos com deus no sentido em que são coeternas entre si as pessoas da trindade. as ideias, enquanto subsistentes na mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento: na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideais, impressas por deus, imagens a que bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisas singulares (1b., 11, 17). mas bernardo foi sobretudo (quanto sabemos) um gramático e um literato, admirador entusiasta dos autores antigos: dizia ele que nós somos, em relação aos antigos, como anões sobre os ombros de gigantes: podemos ver mais além apenas porque podemos subir até à sua altura (1b., ri, 4). o irmão mais novo de bernardo, teodorico, de chartres, foi professor em chartres em 1121; em 119 1140 ensinou em paris onde joão de salisbúria foi seu aluno e em 1141 foi chanceler de chartres e ao mesmo tempo arquidiácono de dreux. morreu em 1150. teodorico, é autor de um heptateucon ou manual das sete artes liberais de que se servia no seu ensino e que é um documento do material de estudo utilizado nas escolas na primeira metade do século xii; de um comentário ao géneses hexameron ou de septem diebus e de um comentário ao de trínitate de boécio. na especulação de teodorico é sensível a influência das obras de escoto erígena. como este, teodorico distingue quatro causas e que em seguida são quatro fases do processo de auto-realização de deus no mundo: a causa eficiente, que é deus pai; a causa formal que é a sapiência ou o filho de deus, que organiza a matéria; a causa final que é o espírito santo que anima e vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa material que são os quatro elementos que o próprio deus criou do nada no princípio. como se vê, teodorico, tal como abelardo, identifica o espírito santo com a alma do mundo e na sua obra é frequente a insistência neoplatónica

(obtida em escoto erígena) sobre o primado ontológico da unidade, que é o próprio deus. teodorico insiste também na sua noção de unidade ao considerar deus, no seu comentário ao de trh*ate de boécio, como a única forma do ser (forma essendi) de que participam todas as coisas existentes, tal como da única matéria participam todas as coisas materiais. É provável que esta doutrina não tenha, para teodorico, o significado panteístico que à primeira vista pode apresentar; mas com tal significado podia ser encarada, assim como foi, por alguns escolásticos, como veremos. É portanto característica de teodorico (como de todos os filósofos de chartres) a tese de que a obra miraculosamente criadora de deus se extingue 120 com a produção dos quatro elementos; criados os quatro elementos, a acção natural da capacidade deles próprios produz o ordenamento do mundo e a disposição das suas partes: nesta acção tem grande papel o fogo com o seu poder iluminante e incandescente. trata-se da velha doutrina estoica, extraída da tradição neoplatónica. aluno de bernardo foi guilherme de conches de quem sabemos pouquíssimo. nascido, provavelmente, em 1090, era ainda vivo em 1154 e foi professor de gramática em chartres. escreveu uma philosophia que é :a sua primeira obra sistemática, um dragmaticon, composto entre 1144 e 1149 e que pode considerar-se a sua obra mais amadurecida. extractos do dragmaticon são o de secunda e o de tertia philosophia. escreveu também glosas a boécio, glosas ao timeu e um tratado de ética, moralium dognw philosopharum, que é uma recolha de máximas de moral extraídas de autores pagãos e ordenadas sistemàticamente. a guilherme costuma também ser atribuído um compendium philosophiae em seis livros que é também atribuído a hugo de são victor, mas que é provàvelmente obra de um compilador anónimo. em todos estes escritos podemos encontrar, com pequenas oscilações e retraimentos, a doutrina típica da escola de chartres. nas glosas ao timeu que parecem ser anteriores à philosophia e que foram publicadas recentemente, gui]herme afirma: "a alma do mundo é o vigor natural que permite a umas coisas terem movimento, a outras o crescimento, a outras o sentir, a outras o

discernir. quanto a mim julgo que este vigor natural é o espírito santo, ou seja, a divina e benigna concórdia da qual todas as coisas retiram o ser, o movimento, o crescimento, o sentir, o viver e o discernir". com mais incerteza, esta doutrina vem repetida na philosophia, mas desaparece do dragmaticon, talvez 121 por efeito da condenação que, na pessoa de abelardo, essa mesma doutrina tinha entretanto sofrido. mais caracteristicamente, guilherme insiste na composição atómica dos quatro elementos. segundo guilherme, a á gua, o ar, a terra e o fogo não são verdadeiramente elementos porque são divisíveis: os verdadeiros elementos são indivisíveis porque são simplicíssimos. no entanto, guilherme chama elementata ou elementos do mundo à água, ao ar, à terra e ao fogo e reserva o nome de elementa apenas para os átomos aos quais atribui as qualidades fundamentais opostas: quente e frio, seco e húmido (philosophia, 1, 21). todos os temas da escola de chartres encontram uma expressão imaginosa na obra de bernardo silvestre, autor de um poema intitulado de mundi universitate sive megacosmus et microcosmus escrito à volta de 1150 e dedicado a teodorico de chartres. a obra está redigida em verso e em prosa segundo o exemplo do de consolatione de boécio e do de nupliis de marciano capella e é uma espécie de cosmogonia inspirada no timeu de platão. bernardo personifica as entidades teológicas e metafísicas da escola de chartres: a matéria ou hyle, concebida como absolutamente informe, aparece reconduzida à ordem e à harmonia do intelecto ou noys, pelos trâmites da natureza ou physis; e no cume desta ordem foi colocado o homem, o microcosmos. a oposição entre o carácter informe, pavoroso e maligno da hyle e a ordem racional que a ph),sis procura impor, dá colorido dramático à obra. nela, os próprios atributos das pessoas da trindade tomam-se puramente cosmológicos, isto é, relativos às funções que as pessoas desempenham perante o mundo e caracterizadas como potência, sapiência e bondade, segundo um esquema que nós podemos encontrar frequentemente nos mestres de chartres e que deriva de abelardo. 122 § 216. gilberto de la porrÉe

o mais notável representante da escola de chartres é gilberto porretano. nascido em poitiers, foi aluno de bernardo de chartres e de anselmo e rodolfo de laon. ensinou em chartres e em paris com grande sucesso e foi bispo de poitiers (1142-1154). gilberto foi autor de numerosos escritos, quase todos mantidos inéditos. os mais notáveis são o commentario aos opúsculos teológicos de boécio e um tratado das últimas seis categorias de aristóteles que tem o título de sex principiis,- tem-se duvidado da autenticidade deste escrito, mas sem razões suficientes. de qualquer modo, trata-se de um escrito que contém as teses típicas de gilberto e que em breve se tomou famoso; foi usado como texto de ensino na universidade de paris e comentado por diversos autores: a última vez pelo humanista hermolau bárbaro que o publicou na sua edição das obras de aristóteles. gilberto define a fé como a "percepção, acompanhada de aprovação, da verdade de uma coisa" o sustenta que a fé precede a razão no domínio teológico, mas segue-a no domínio filosófico. as coisas criadas não têm necessidade verdadeira e própria: uma vez que nelas tudo é variável, mesmo aquilo que em regra se considera necessário. a necessidade existe apenas nas coisas divinas e a fé precede a razão. nós não acreditamos porque sabemos, mas sabemos porque acreditamos (non cognoscentes credinw sed credentes cognoscimus). a fé, prescindindo completamente dos princípios da razão, consegue compreender não só o que a razão humana não pode compreender, mas também aquilo que ela pode compreender com os próprios princípios. justamente por isso, a fé católica é considerada o exórdio não só do conhecimento teológico mas de qualquer outro; é privada de qualquer incerteza e 123 é o fundamento mais firme e certo mesmo dos conceitos naturais (in boeth. de praed. trium pers., in p. l., 64. , 1303). com base neste pressuposto. gilberto defende a estreita união entre a razão e a fé em toda a investigação filosófica. "une a fé à razão, afirma ele, para que a fé confira, em primeiro lugar, autoridade à razão e em seguida a razão confira assentimento à fé" (ib., 1310). segundo um testemunho de joão de salisbúria (metal., 11, 17), gilberto

distinguia o universal in rem do universal ante rem. o universal in re, forma inata ou espécie, considerava-o inerente às coisas criadas. a forma inata seria a cópia do exemplar existente na mente divina, tal como a espécie imanente nos indivíduos é, segundo platão, a cópia da ideia. o intelecto humano abstrai o universal das coisas individuais para considerar melhor a sua natureza e melhor compreender as suas propriedades. o universal não é uma realidade em si, numericamente una, mas a simples colecção das coisas singulares, unificadas segundo as suas propriedades comuns. noutros termos, gilberto participa aqui no ponto de vista de abelardo: o fundamento objectivo da universalidade do conceito, o fundamento que garante ao conceito a sua verdade, é a semelhança que as coisas singulares têm entre si, a sua uniformidade colectiva. o universal tinha já sido definido como colecção de coisas singulares por joscelino ou gauleno no tratado de generibus et speciebus (§ 203). mas gilberto acrescenta aqui uma opinião sua: distingue dois significados na palavra substância. num primeiro sentido, mais geral, é substância o que para subsistir não precisa de qualidades acidentais. neste sentido, a substância é subsistência, isto é, essência e exprime o quo est da coisa. num segundo sentido, que é o próprio, a palavra substância significa aquilo que subsiste, a realidade existente ou subsistens, o quod est (in boeth., de 124 trin., in p. l., 64. , 1281). no primeiro sentido, os géneros e as espécies, ou seja, os universais, subsistem enquanto são subsistentiae ou essências determinadas, que não precisam de acidentes para existirem no modo que lhes é próprio. mas no segundo sentido, apenas os indivíduos são substâncias porque só esses, na realidade, existem. os indivíduos, portanto, não só subsistem, subsistunt, mas também existem, substant, porque estão dotados de diferenças próprias e específicas e constituem os sujeitos reais dos acidentes, enquanto são as suas causas e princípios. quando o indivíduo subsistente tem também o atributo da racionalidade, toma o nome de pessoa (in boeth. de duab. nat., ib., 1375 sgs.). com base na distinção entre subsistência e subsistente, gilberto faz a

distinção entre forma e matéria. a forma é o que determina uma coisa no seu ser específico; a matéria é o sujeito determinável da forma. por isso se pode chamar também matéria às essências enquanto são os sujeitos dos seus caracteres e são determinadas ou concriadas por tais caracteres. existe uma forma simples que é "o ser do artífice", isto é, deus, como existe uma matéria simples que é a matéria-prima ou informe, a hyle de platão. entre estes dois extremos, estão as realidades compostas ou concretas, que são matéria e forma, conjuntamente, no sentido referido acima. a sua criação é uma concriação (concretio): isto é, a união sucessiva, num sujeito indeterminado mas determinável, de essências ou subsistências que o determinam. neste sentido, a função criadora de deus é uma função formadora e deus é a forma originária de tudo (in boeth, de trin., ib., 1266). se se quisesse exprimir esta doutrina nos termos do que em seguida se chamará o problema da individuação, será necessário afirmar que, para gilberto, o princípio da individuação é a forma. os seres singulares são determinados e indi125 viduados pela essência de que são investidos o ser, a corporeidade, a sensibilidade, a inteligência, etc. dois seres que se distingam apenas numericamente, por exemplo, dois homens, distinguem-se entre si pelas propriedades formais que os constituem; e mesmo se tais propriedades lhes faltassem, distinguir-se-iam pela sua diferença de lugar que é também ela uma diferença qualitativa ou formal. se por um lado gilberto considera intimamente unidas a fé e a razão, entende distinguir nitidamente o domínio das disciplinas singulares e, em primeiro lugar, o da teologia do da filosofia. esta distinção não deve ser baseada numa diversidade de actividade ou de atitude espiritual, mas apenas sobre uma diversidade de princípios objectivos. toda a ciência deve partir de fundamentos próprios, de princípios que são específicos da ciência e inerentes ao seu objectivo. gilberto gaba-se de ter feito pela teologia aquilo que foi feito pela matemática, de ter determinado os conceitos e princípios fundamentais da ciência teológica (in boeth. de hemom., ib., 1316). nas disciplinas teológicas, todavia, é preciso servimo-nos de princípios que são diferentes dos que são adoptados nas considerações das coisas naturais. e, com efeito, o objecto da teologia é completamente diferente do objecto das ciências naturais. as coisas naturais são dotadas de matéria e de movimento, enquanto que deus é privado de matéria e de movimento. por tal motivo não são aplicadas a deus as categorias e os

conceitos que servem para compreender as coisas naturais. a própria categoria de substância é indevidamente referida a deus, porque designa aquilo que suporta as qualidades acidentais. em relação a deus será mais próprio falar em essência; mas em verdade, nem a sua realidade subsistente, o quod est, nem a sua subsistência, o quo est, são apreendidas pela razão. de deus apenas se pode afirmar que a singularidade da sua essência impedem qualatribuição. deus é portanto inteligível, compreensível (in boeth. the duab. nat., sobra a distinção entre essência e substância, entra subsistência o subsistente se baseia a doutrina de gilberto sobre a trindade. gilberto distingue entre deidade o deus. a deidade é a única essência divina, da qual participam as três pessoas diversas do pai, do filho e do espírito santo. as três pessoas são três realidades singulares, numericamente distintas; a sua unidade é a forma comum da deidade, de que todas participam. em virtude da forma de deidade cada uma delas é o que é, e cada uma delas é deus. a fórmula de gilberto é a seguinte: "deus é o pai, o filho e o espírito santo". a essência divina que constitui a sua unidade é na verdade real, mesmo nas três pessoas distintas. esta doutrina trinitária atraiu sobre si a condenação da igreja. depois do encerramento do concílio de sens, dois arquediáconos de poitiers foram junto do papa eugénio 111 e denunciaram o seu bispo como criador de novidades teológicas heréticas. dirigiram-se em seguida a claraval e informaram s. bernardo da questão. o resultado foi que no concílio de paris em 1147 e no de reiras em 1148, a interpretação trinitária de gilberto foi condenada. s. bernardo combateu a distinção entre deitas e deus; e o seu secretário godofredo escreveu contra gilberto o seu libellus contra capitula gilberti porretani. a principal acusação de godofredo contra gilberto é a de que a sua doutrina equivale a admitir não já uma trindade, mas uma quaternidade divina. por um lado, existiria a forma da deidade, por outro as três pessoas de deus. estas três pessoas seriam distintas umas das outras nas suas relações, pelas quais uma é o pai, a outra o 127 filho e a terceira o espírito comum e santificante: mas estas relações seriam estranhas à única essência divina que apareceria como uma quarta realidade, juntamente com a trindade das pessoas divinas.

gilberto explicava o dogma da encarnação sustentando que só a pessoa divina, isto é, cristo, mas não a natureza divina, ou seja a forma da deidade, assumiu a natureza humana. esta doutrina era consequência natural da distinção entre a deidade e deus (in boeth. de duab., ib., 1938). a mesma distinção pode ser encontrada na doutrina antropológica de gilberto. o ser da alma e o ser do corpo constituem, na sua unidade, a subsistência, o quo est do homem; apesar de o próprio homem constituir, como um todo, o quod est, a substância existente como tal. o homem não é nem a alma, nem o corpo, considerados por si. com a morte, o homem como tal deixa de existir, mas a sua parte fundamental, a alma, não perde a sua existência (1b., 1295). com efeito, a alma não é privada de substância ou enteléquia, mas antes uma subsistência real, uma essência subsistente. todavia, a alma como tal não é uma pessoa; a personalidade pertence apenas ao homem como um todo. gilberto fazia deste modo valer com lógica rigorosa, em todas as partes do seu sistema, a distinção entre subsistência e subsistente, entre essência e substância. É evidente que na sua investigação a solução do problema dos universais havia de influir a de todos os outros problemas. gilberto é, sobretudo, um lógico e no discorrer do seu pensamento obedece às exigências da sua doutrina lógica. e mesmo as suas investigações lógicas exerceram sobre a escolástica posterior a maior influência. o seu escrito de sex ptincipÚs baseia-se na pretensa diferença entre as primeiras quatro e as outras seis restantes categorias aristotélicas. as primeiras quatro 128 (substância, qualidade, quantidade, relação) designariam, além da substância, o que é absolutamente inerente à substância, e seriam, por conseguinte, formas inerentes. as últimas seis designariam, por seu lado, modalidades externas que interviriam para alterar a condição da substância sem, no entanto, se unirem a ela, e seriam por isso formas assistentes. precisamente dessas formas assistentes (acção, paixão, lugar, quando, situação, posse) é que se ocupa o texto de gilberto. § 217. joÃo de salisbúria

joão de salisbúria está ligado à escola de chartres não só pelas relações que teve com alguns mestres daquela escola mas também pelo entusiasmo pelos estudos humanísticos e pela independência de pensamento que, tal como aqueles, sempre demonstrou ter. no entanto, as suas doutrinas teológicas e cosmológicas afastaram-se das que eram defendidas na escola de chartres: as quais foram além dos seus interesses porque suportadas por ele para lá dos limites da capacidade humana. nasceu na velha salisbúria, em inglaterra, entre 1115 e 1120. foi para frança ainda jovem, à volta de 1136 e aqui permanece até finais de 1148. a sua educação filosófica divide-se entre paris, onde ensinava abelardo, e chartres, onde foi discípulo de guilherme de conches e gilberto de ia porréc. em 1151 regressa a inglaterra e é nomeado capelão do primaz de cantuária, teobaldo; depois da morte deste, foi secretário do seu sucessor, tomás becket, com o qual travou relações de amizade. em seguida foi nomeado bispo de chartres (1176) e nesta cidade viveu até morrer (1180). o interesse humanístico de joão de salisbúria é evidente no seu entheticus sive de dogmate philosopharum (1155), um poema em dísticos, que é 129 um manual de ensino cuja primeira parte é constituída por uma história da filosofia greco-romana. escreve também numerosas epistolae, uma historia pontificalis, de que existe um fragmento, uma vida de anselmo de cantuária e uma vida de tomás becket. em 1159, ou seja vinte anos depois do início dos seus estudos, escreve as suas principais obras: o policratus, que é a primeira obra medieval de teoria política, e o metalogicus que se apresenta como uma defesa do valor e da utilidade da lógica contra um tal que ele designa com o nome fictício de cornifício. em cornifício podemos ver, segundo os intérpretes modernos, a corrente que se opunha aos estudos humanísticos em proveito da física; ou que propunha uma extensão da pesquisa lógica da palavra às coisas. mas, a acreditar nas declarações de joão de salisbúria, cornifício era um sofista que escarnecia do saber autêntico e da técnica das artes para se entregar a exercícios confusionistas e à discussão de questões como esta: "se o porco conduzido ao mercado é levado pelo homem ou pela corda" (metal., 1, 3).

toda a doutrina de joão de salisbúria é animada de um espírito autenticamente crítico: o seu objectivo é o de estabelecer claramente os limites e os fundamentos das possibilidades cognoscitivas humanas. joão de salisbúria afirma-se um académico e sustenta que a investigação se deve contentar, a maior parte das vezes, com o provável: "como académico, em todas as coisas que possam ser para o filósofo objecto de dúvida, não juro que é verdadeiro aquilo que afirmo: no entanto, verdadeiro ou falso, contento-me apenas com a probabilidade". e ainda: "prefiro duvidar com os académicos sobre as coisas individuais, do que definir temerariamente, com simulação consciente e perniciosa, o que permanece oculto e ignorado" (metal., prol.). esta prudente posição é justificada por joão de salis130 búria com as próprias limitações da ciência humana, às quais se subtraem as coisas futuras. "sei com certeza que a pedra ou a seta que lanço às nuvens deverá cair por terra, porque assim exige a natureza das coisas, todavia, não sei se elas apenas podem cair no chão e porquê; com efeito, elas poderão cair ou não. também a outra alternativa é verdadeira, ainda que não necessariamente, como é verdadeira aquela que eu sei que acontecerá... aquilo que ainda não é, não é ciência, mas apenas opinião" (policrat., 11, 21). daqui deriva que todas as afirmações que implicitamente e explicitamente digam respeito ao futuro têm um valor provável, não necessário: a sua probabilidade é baseada na indeterminação do seu objecto e é por isso impossível de eliminar. com efeito, deve-se chamar provável àquilo que acontece frequentissimamente: o que não acontece nunca de outra maneira é ainda mais provável: e o que se crê que não pode acontecer de outra maneira adquire o nome de necessário (metal., 111, 9). donde se conclui que o "necessário" segundo joão de salisbúria é limitado à "crença"; enquanto que o "provável" exprime a uniformidade objectiva dos eventos e baseia-se na frequência com que acontecem. joão de salisbúria tira todas as consequências implícitas neste ponto de vista. a dialéctica, como lógica do provável, é o instrumento indispensável de todas as disciplinas (,metal., 11, 13). a pretensão da astronomia divinatória de predizer infalivelmente o futuro é absurda porque o futuro não é necessariamente determinado e é por isso imprevisível (policrat., 11, 19). a infalível presciência que deus tem das coisas futuras não implica de forma alguma a sua necessidade (lb., 11, 21).

no entanto, se o conhecimento humano se mantivesse encerrado no círculo do provável, isso significaria para joão de salisbúria, um abandono à 131 dúvida radical do cepticismo. tem de haver um ponto firme qualquer onde possamos apoiar o edifício das nossas limitadas certezas. os sentidos, a razão e a fé fornecem o ponto firme dessa natureza. afirma joão de salisbúria: "parece ser importante aquilo que a autoridade dos sentidos, da razão o da religião nos persuade a admitir; e a dúvida em torno do ser tem o carácter de doença, do erro ou do crime. perguntar se o sol brilha, se a neve é branca, se o fogo aquece, é próprio do homem privado de sensibilidade. perguntar se três é mais que dois, se o todo contém a metade, se quatro é o dobro de dois, é próprio de quem não tem discernimento ou possui uma razão ociosa ou completamente doentia. quem levanta o problema da existência de deus, do @@eu poder, da sua sabedoria ou da sua vontade é não apenas irreligioso como também pérfido e merecedor de uma pena que o castigue" (policrat., vii, 7). os primeiros princípios da ciência estão entre estas coisas indubitáveis (1b.); e entre as ciências, a matemática é a única que atinge a necessidade pelo seu carácter demonstrativo (metal., 11, 13). e no que se refere à religião, joão de salisbúria, sustenta que é tão impossível demonstrar a existência de deus como negá-la. reconhece, no entanto, o valor da prova cosmológica que vai de causa em causa até à causa primeira (policrat., 111, 8); e sustenta, por outro lado, que a ordem finalista do mundo revela claramente a sabedoria e a bondade do criador (metal., iv, 41). que deus seja poderoso, sapiente, bom, venerável e amável é princípio único de toda a religião, princípio que todos admitem gratuitamente, sem provas, por puro espírito de religiosidade (policrat., viii, 7). mas outras determinações são alheias à razão. a própria trindade é, para a razão humana, um mistério impenetrável (1b., 11, 26). no entanto, pode-se reconhecer que 132 deus é o fundamento da ordem do mundo, mas não se pode conceber essa ordem como um facto inelutável, segundo a concepção dos estóicos, porque isso não exclui a mobilidade das coisas e a liberdade da vontade humana (1b., 11, 20). joão de salisbúria insiste no carácter prático e de devoção da fé religiosa.

tal como a alma é a vida do corpo, também deus é a vida da alma. tal como o corpo morre se a alma o abandona, também a alma perde a sua verdadeira vida se deus a abandona (entet., 181). por isso o destino da alma o a sua felicidade consiste em entregar-se à acção da graça de deus (policrat., 111, 1). como se depreende, joão de salisbúria introduziu drásticas limitações à especulação teológica e cosmológica ou, para melhor dizer, estabeleceu como linha de princípios, a possibilidade e a eficácia. debrucemo-nos sobre os três campos em que a investigação humana pode aplicar-se com uma certa possibilidade de sucesso: a matemática, a lógica, a política. destes três campos, as obras principais de joão de salisbúria tratam dos dois últimos. o metalogicus é o documento de interesse que joão de salisbúria escreveu sobre os problemas lógicos do seu tempo; além disso, é nesta obra que pela primeira vez se utiliza os livros tópicos de aristóteles. no que se refere ao problema dos universais, joão de salisbúria ao mesmo tempo que dá notícia das soluções mais importantes oferece-nos importantes informações sobre as escolas lógicas do tempo. a sua posição pessoal perante este problema é ecléctica mas inclina-se bastante para a doutrina de abelardo. considera os universais como formas ou qualidades comuns imanentes das coisas, formas que o intelecto abstrai das próprias coisas. os universais (géneros e espécies) não são substâncias que existam como natureza; na -realidade, só as substâncias singulares existem, substâncias a que aris133 tóteles chamou substâncias primeiras, e que são objecto do conhecimento sensível. os géneros e as espécies são produto da abstracção, figmenta rationis, que a razão cria a fim de melhor proceder na sua investigação sobre as coisas naturais (metal., u, 20). no entanto não são privados de verdade objectiva, porque correspondem a uma conformidade efectiva das coisas singulares entre si: por isso aristóteles lhes chamou substâncias segundas, querendo com isto indicar que, sendo insubsistentes enquanto realidades singulares, são no entanto, algo de real. o intelecto humano pode erguer-se até aos universais apenas pela via da indução, partindo das coisas sensíveis. joão de salisbúria refere-se à

doutrina aristotélica de que evidentemente aceita os resultados: "os conceitos comuns são criados pela indução sobre as coisas singulares. com efeito, é impossível chegar-se a considerar os universais senão através das induções que estão na base de todas as nossas noções abstractas. mas é impossível induzir aquilo que é desprovido de sensibilidade. com efeito, os sentidos são a forma de conhecimento das coisas singulares e não é possível ter conhecimento das coisas singulares senão através dos universais conseguidos pela indução; não é possível a indução sem a sensibilidade. com efeito, dos sentidos deriva a memória, da memória frequentemente repetida surge a experiência, e da experiência os princípios da ciência ou da arte... e assim os sentidos corpóreos, que são a primeira força e o primeiro exercício da alma, lançam os fundamentos de todas as artes e formam o conhecimento preexistente, que não só abro a vida aos primeiros princípios, como também aos géneros" (metalog., iv, 8). trata-se, como é evidente, das mesmas considerações que encerram os segundos analíticos de aristóteles, considera134 ções cujo significado empirístico é sublinhado por joão de salisbúria. o policraticus é o único livro de filosofia política medieval anterior à descoberta da política de aristóteles. as fontes da teoria nele exposta são cícero, séneca e os textos patrísticos e a base da teoria é o conceito estóico da lei natural como norma universal e perpétua à qual se submetem, mesmo as coisas. esta norma é a imagem do querer divino, a custódia da segurança, a unidade do povo, a regra do dever, o extermínio dos maus, a punição da violência e de todas as transgressões (policrat., iv, 2). nela se baseia a relação entre o súbdito e o rei; e a diferença entre um príncipe e um tirano reside no facto de que o primeiro não só transgride a lei como ainda não se propõe a fazê-la respeitar a valer (1b., iv, 4). por esta via, joão de salisbúria vai ao ponto de justificar o tiranicídio. quanto ao resto, a sua doutrina, é inspirada nos princípios do teocracismo medieval. § 218. alano de lille na direcção aberta pela escola de chartres podemos integrar a obra de alano de lille (ab in.yulis, lille ou ryssel, na flandres), chamado o doctor universalis, falecido em citeaux no ano de 1203 e que foi professor em paris. entre as suas obras existe um

anticlaudiano que é uma espécie de enciclopédia do saber corrente; o de planctu naturae em verso e prosa, no qual as reminiscências mitológicas, as alegorias, e os ensinamentos morais se misturam com uma filosofia da natureza proveniente da escola de chartres; uma ars praedicandi que é um manual de predicação; os sermones; o distinctiones dictionum theologicarum que é uma espécie de léxico das expressões bíblicas; o contra 135 haereticos e o regulae de sacra theologia que são as suas obras teológicas. recentemente foi atribuída também a alano a paternidade de um tractatus de virtutibus et vitiis e de uma summa que começa com as palavras quoniam homines, ainda não publicada. a figura de alano poeta, cosmólogo e teólogo reproduz fielmente o cliché dos mestres de chartres dos quais ele deduz, com igual fidelidade, todas as suas doutrinas. tal como os professores de chartres, também ele é devedor de abelardo, de quem reproduz, à letra, no seu tractatus de virtutibus, as doutrinas morais. a ú nica característica original da obra de alano é a forma sistemática que pretendeu dar às suas especulações teológicas, tendo sobretudo em vista a tarefa a que se havia proposto: a de defender contra descrentes e heréticos (maometarios, judeus, valdeses) a validade da fé cristã. por isso também alano nos deixou uma clara definição dos limites entre a razão e a fé. no prólogo do contra haereticos, é assim que descreve o objectivo proposto: "ordenei diligentemente as razões prováveis da nossa fé às quais um espírito engenhoso e perspicaz dificilmente pode resistir, para que aqueles que desdenham prestar fé às profecias e ao evangelho sejam pelo menos convencidos pela razão humana. no entanto, se estas razões podem induzir os homens a acreditar, não são suficientes para se conseguir uma fé plena: não terá mérito aquela fé apoiada única e exclusivamente na razão. a nossa glória estará em compreender in patria (ou seja, no céu) aquilo que agora apenas podemos contemplar como num espelho e através de enigmas" (contra haeret., prol.). começa aqui a distinção entre o domínio da razão e o domínio da fé e que receberá a sua mais clara formulação em s. tomás. a pretensão de compreender a verdade da fé na sua necessi136 bernardo de claraval (retrato de el greco)

dade, de demonstrá-la como se fosse verdade de razão, pretensão que surge, por exemplo em santo anselmo, é aqui abandonada. o que é objecto de fé não pode ser compreendido e por isso não é objecto de ciência. "nada se pode conhecer que não se possa compreender, mas nós não apreende mos deus com o intelecto, portanto não existe ciência de deus. somos, certamente, induzidos pela razão a supor que existe deus, mas não o sabemos com certeza, acreditamos apenas. isto é a fé, uma presunção que nasce de razões certas, mas não suficientes para constituírem uma ciência. como tal, a fé está acima da opinião, mas abaixo da ciência" (lb., 1, 17). a distinção entre ciência e fé está aqui feita de forma bastante clara. a fé deve conservar o seu mérito de conhecimento certo mas não demonstrativamente necessário; diferente portanto da ciência. todavia, alano tentou organizar cientificamente a teologia precisamente sobre o modelo da ciência mais rigorosa, a matemática. no escrito intitulado regulae ou maximae theologicae formulou os princípios da teologia, partindo do pressuposto de que "toda a ciência se baseia nos seus princípios como nos seus próprios fundamentos", fixando, assim, as regras fundamentais da ciência teológica, recolhendo e sistematizando os resultados da especulação teológica. destas regras, a primeira é a afirmação da unidade de deus: "a mónada é aquilo em virtude do qual todo o ente é uno": afirmação que óbviamente não é mais que o lugar-comum neoplatónico mas que assume um particular relevo nos escritos de alano, dada a posição polémica assumida por estes escritos. essa atitude polémica dirige-se em primeiro lugar contra a seita herética dos cátaros: cuja doutrina fundamental consistia no reconhecimento de um dualismo fundamental de princípios: um óptimo e criador da ordem e da perfeição do mundo, o outro 137 péssimo e criador princípio a hyde de que falam uma boa expressão: no contrapor a deus,

da desordem, da luta e do mal. deste segundo os poemas chartrenses, informe, caótica e maligna, é entanto, nesses poemas @i ufle não tem força para se é ela própria criada por deus e submetida à ordem da

alma, do mundo-natureza. contra este dualismo (que implicava também o da condenação e da salvação, considerados como dois estados não mediáveis entre si, nem mesmo através dos meios carismáticos da igreja), a afirmação feita por alano da unidade de deus como mónada primeira e absoluta, ainda que no seu carácter filosófico já gasto, adquire um valor de novidade polémica. e não é po@ acaso que alano utiliza e cita (na obra intitulada aphorismi de essentia summae bonitatis contra haeret., 1, 30, 3 1) o uber de catísis: o texto de próculo que está rigorosamente centrado sobre o conceito de deus como absoluta unidade devia parecer a alano o melhor antídoto contra qualquer concessão dualista. com efeito, alano afirma que a causa primeira, enquanto é simples e forma absoluta, é absoluta unidade, e, assim, a própria unidade absoluta; e que referidos a tal unidade, os atributos diversos exprimem sempre a mesma essência simplicíssima (reg. teol., 11). como abelardo, e muitos dos mestres de chartres, alano está ainda convencido que já os filósofos pagãos concebiam esta verdade e que, por exemplo, a conheciam aristóteles e hermes trismegista (contra haeret., 111, 3; reg. theol., 3). § 219. o panteísmo: amalrico de bena e david de dinant algumas das mais importantes e mais debatidas teses da escola de chartres têm um franco sabor panteístico. o panteísmo consiste em sustentar que 138 a relação deus-mundo seja necessária perante o próprio deus: isto é, o mundo deriva de deus como necessidade, quer como manifestação sua, quer como seu aspecto necessário, de tal modo que sem o mundo, deus não seria deus. esta tese está óbviamente implícita em todas as especulações teológicas que definem o ser de deus ou o das pessoas da trindade nos termos das suas relações com o mundo: por exemplo, na tese de que o espírito santo é a alma do mundo e que a alma do mundo é a própria natureza; ou na tese de que o pró prio deus é a forma essendi ou essência de todas as coisas. a última tese é sem dúvida a mais explicitamente panteísta: entendida no sentido de que deus contém a essência (as formas, as ideias, os modelos de todas as coisas)

levanos a considerar deus como a essência das coisas e as coisas, na sua essência, como elementos necessários da essência divina. estas conclusões vêm no entanto bastante esbatidas e atenuadas, por parte dos mestres de chartres, com várias observações destinadas a acentuar a diferença entre o ser das criaturas e o ser de deus. mas no período de que nos ocupamos, portanto da segunda metade do século xii, essas mesmas concepções são ainda apresentadas em toda a sua crueza panteística por pensadores que não hesitaram em tirar delas as conclusões mais paradoxais. temos notícia de dois destes pensadores, amalrico de bena e david de dinant e sabemos que as suas ideias foram seguidas por numerosos grupos sobre os quais caíram as condenações eclesiásticas. e não se trata, na verdade, de teses que pertençam à esfera das discussões teoréticas: pela única obra polémica que temos contra a seita de amalrico, um escrito anónimo de 1210 e que tem o nome de contra amaurianos, sabemos que da tese da presença de deus em todos os seres, e portanto em todos os homens também, os sequazes de amal139 rico derivam a possibilidade para todos os homens de se salvarem mediante o simples conhecimento dessa presença divina, sem a necessidade de se socorrerem dos dons carismáticos cuja eficácia era por eles negada: negando assim todas as funções à administração eclesiástica que é a administradora desses mesmos dons. estas características relacionam estreitamente o panteísmo de amalrico com as seitas heréticas que floresciam no século xii e que estavam todas ligadas na luta contra o privilégio, que a igreja reivindica pela sua hierarquia, de administrar a salvação. valdeses, cátaros, amaricianos, sustentam todos que o homem se salva através de uma relação directa com deus ou que o próprio deus o escolha manifestando-se nele ou a ele: o panteísmo de amalrico ou de david é antes de mais e sobretudo a expressão metafísica de uma insurreição contra a hierarquia eclesiástica que, por seu lado, como é já assente, tinha raízes económico-sociais. de amalrico, nascido em bena (no distrito de chartres) sabemos apenas que morreu em paris, como professor de teologia em 1206 ou 1207. das notícias obtidas através de vários cronistas sabe-se que ensinava que deus é a

essência de todas as criaturas e o ser de tudo e que o criador e a criatura se identificam. provavelmente estas teses, que se aproximam das que eram sustentadas por muitos mestres de chartres, tinham para amalrico o significado mais próximo do que era defendido por escoto erígena; com efeito, ele afirmava que as ideias estão na mente divina, criam e ao mesmo tempo são criadas e que deus é o fim de todas as coisas que a ele regressam e na sua unidade indivisível permanecem e estão (gerson, concordia nwtaphysicae cum logica, in opera, iv, 825). mas a intenção de amairico compreende-se melhor pelas 140 consequências que ele tirava das próprias teses: deus identifica-se com todas as coisas, disseminadas como estão no espaço e no tempo, identifica-se também com o próprio tempo e com o espaço como se identifica com todos os homens que assim se unificam nele. desta presença de deus nos homens, amalrico extrai a negação, como já foi dito, da validade dos sacramentos e do magistério eclesiástico. todas estas doutrinas foram condenadas no sínodo de paris de 1210 e pela obra de inocêncio iii, no iv concílio de latrão de 1215. do outro representante do panteísmo, david de dinant (na bélgica) não sabemos nada. atribuem-se-lhe dois textos: de tomis hoc est de divisionibus que reproduz o título da obra principal de escoto erígena e quaterni ou quaternuli, nome por que foram indicados os escritos condenados a serem queimados (denifle, chart., univers. paris., 1, 70). mas provàvelmente este segundo não é um título mas apenas o nome genérico dos opúsculos de david. tomás de aquino dá-nos a seguinte exposição da doutrina de david: "david divide a realidade em três partes: corpos, almas e substâncias separadas. ao princípio indivisível de que são constituídos os corpos chamou hyle (matéria), ao princípio indivisível de que são constituídas as almas chamou noun ou mente; e chamou deus ao princípio indivisível das substâncias eternas. david afirmou que estes três pii---ncípios são uma única e idêntica coisa, concluindo-se assim que todas as coisas são pela sua essência uma só" (in sent., 11, d. 17, q. 1, a. 1). segundo s. tomás, a diferença entre a doutrina de amalrico e a de david é que, para amalrico, deus é essência ou forma de todas as coisas, enquanto que para david é a matéria. a mesma caracterização da doutrina de david é-

nos dada por alberto magno (sunma theol., i, tract. iv, q. 20). como ser originário, deus é o ser puramente poten141 cial. david, provàvelmente, desenvolveu as implicações positivas da teologia negativa própria da sua época. deus está fora de todas as categorias que constituem o ser em acto; mas, fora das categorias, não há senão o ser em potência, que é a primeira condição para a constituição de todas as coisas. david identificou o ser em potência com deus e uma vez que o ser em potência é a matériaprima, identificou a matéria-prima com deus. § 220. joaquim de fiore as seitas heréticas do século xii tinham entre si de comum a crença numa iminente e final renovação do mundo que elas designavam como o advento do reino do espírito santo. sabemos que também os amauricianos possuíam esta crença e sustentavam que depois da época do pai e da do filho, a época do espírito santo traria consigo a abolição de todas as formas legais e sacramentais que tinham caracterizado a época precedente (caesarius, dialogus miraculorum, ed. strange, p. 306). esta divisão das épocas históricas, para lá da esperança escatológica em que se baseia, parece ser sugerida pelas especulações trinitárias que abelardo tinha iniciado e que floresceram na escola de chartres. a ela se encontrava, portanto, ligada a obra do mais famoso e popular profeta do século xii, o abade joaquim. joaquim de fiore nasceu em 1145 em dorfe ceico, perto de cozença. a partir de 1191 foi abade do mosteiro por ele fundado em são joão de fiore, calábria, e aí morreu em 1202. a lenda apoderou-se deste abade profético, cujos dados históricos são escassíssimos. segundo a biografia urdida por um frade de seiscentos, jaime grego, que obteve informações pelas cartas do antigo convento de fiore, 142 mas que certamente modificou e transfigurou, joaquim de fiore fez uma peregrinação à terra santa e passou por constantinopla, tendo-se salvado milagrosamente de uma epidemia, converteu-se ao ascetismo. regressado à pátria, entrou no convento cistercense de sambucina e passou depois para o de corazzo, do qual foi abade. em 1191 retirou-se para fazer a vida de

anacoreta e fundou então o convento de s. joão em fiore. teria também de certo modo participado nos agitados acontecimentos históricos do seu tempo, dirigindo-se a nápoles para zd ameaçar, pelas suas crueldades, henrique iv que sitiava a cidade; e teria obrigado a imperatriz constança a prostrar-se a seus pés para obter o perdão das suas culpas. o abade joaquim escreveu três grandes obras que mutuamente se completam: concordia novi et veteris testamenti, expositio in apocalypsim, psalterim decem cordarum. além destas, escreveu também uma obra polémica de teologia contra pedro lombardo de unitate seu essentia trinitatis, que se perdeu: um texto contra os judeus, adversus judeos; uma exposição sumária da fé católica, de articulus fidei. estas últimas obras são inéditas. foram editadas recentemente os tractatus super quattor evangelia, cuja autenticidade levanta algumas dúvidas. o interesse fundamental da obra de joaquim de fiore está na sua mensagem profética. pela sua visão da história chega a prenunciar uma renovação iminente: o advento do reino do espírito santo. mas a sua visão da história é baseada num conceito da trindade cristã; as suas especulações trinitárias vinculam-se à sua mensagem profética. essas especulações apresentam uma certa afinidade com as de gilberto porretano: ainda que não se possa falar de uma dependência, dada também a diversidade de temperamento espiritual entre o teólogo gilberto 143 e o profético abade calabrês. a teologia de j. de fiore está elaborada com vista à sua filosofia da história: insiste sobre a distinção e a autonomia das pessoas divinas, para basear a distinção das três grandes épocas históricas o para dar o necessário relevo à terceira, que é a futura, a do reino do espírito. "uma vez que também o espírito em si mesmo é deus verdadeiro, tal como o pai e o filho, também ele realiza alguma coisa à imagem e semelhança próprias, tal como aconteceu com o pai e com o filho" (concordia, iv, 35). o saltério, título de uma das obras de joaquim de fiore, é precisamente a imagem da trindade, na distinção das pessoas e na unidade que as liga. "um altíssimo lugar ocupa o saltério de dez cordas entre as

obras de deus que sugerem o mistério da trindade. trata-se com efeito de um instrumento musical unitário. pode ser dividido em partes porque é feito de matéria, mas não pode sê-lo sem deixar de ser saltério. como instrumento é uno; mas é triangular e está admiravelmente unido nos três lados. a unidade indivisa vincula os três lados tão estreitamente que parecem um e cada um se reflecte nos três" (psalt., fol. 230). a unidade de deus não deve ser portanto entendida de forma a que se anule a diversidade das pessoas: porque, nesses casos, seria impossível compreender a diversidade das obras e das ,épocas históricas e deixaria de existir qualquer fundamento para a esperança numa época de justiça e de salvação (conc., fol. 8 e segs.). Ás três pessoas da trindade correspondem as três grandes épocas da história. o primeiro dos três estados é o que se desenvolve sob o domínio da lei, quando o povo do senhor, ainda um pouco criança, servia sob os elementos deste mundo, incapaz de alcançar a liberdade do espírito, destinada a brilhar quando tivesse surgido aquele que disse: "quando o filho vos vier libertar, sereis verda144 deiramente livres". o segundo dos três estados é o da iniciação com o evangelho, e que ainda perdura, em liberdade sem dúvida, se o compararmos com o estado precedente, mas não em liberdade se pensarmos no futuro". "por isso disse o apóstolo (s. paulo, 1 cor., xiii, 12) "conhecemos agora apenas parte e apenas em parte profetizamos: mas quando chegar a perfeição, tudo o que é parcial será anulado". o terceiro estado iniciar-se-á para o fim do século, não sob o véu opaco da letra, mas sim em plena liberdade de espírito... como a letra do antigo testamento em virtude de uma certa analogia parece pertencer ao pai, e a letra do novo testamento ao filho, assim a inteligência espiritual, que procede de um e de outro, pertence ao espírito santo. e como a ordem dos cônjuges, em virtude de uma analogia evidente, pertence ao pai e a ordem dos predicadores pertence ao filho, também a ordem dos monges-a que estão destinados os grandes tempos finais, pertence ao espírito santo" ( expositio, fol. 5 e segs.). o terceiro estado que há-de vir será portanto caracterizado por uma inteligência da palavra divina, já não literal, mas espiritual: os homens conhecerão verdadeiramente o seu significado real. há um evangelho eterno que é a própria palavra

de deus, sob a letra das expressões evangélicas. os próprios sacramentos são símbolos provisórios (mas nem por isso menos necessários) dessa realidade com a qual, no terceiro estado, o homem entrará directamente em comunicação (super quattor evang., p. 8, 6). "0 primeiro estado viveu do conhecimento; o segundo desenvolve-se no poder da sapiência; o terceiro difundir-se-á na plenitude da inteligência. no primeiro reinou a servidão; no segundo a servidão filial; o terceiro dará início à liberdade. o primeiro estado decorreu na flagelação; o segundo na acção, o 145 terceiro decorrerá na contemplação. o primeiro viveu na atmosfera do temor; o segundo na da fé; o terceiro viverá na verdade" (conc., v, 84, 112). no terceiro estado, não só as almas, mas também os corpos serão transfigurados; o céu o a terra terão uma nova beleza e a morte e a dor desaparecerão. nota bibliogrÁfica § 215. sobre a escola de chartres: cterval, les écoles de chartres au moyen âge, paris, 1895; grabmann, die geschirhte d. schol. methode, 11, 407476; parent, la doctrine de ia création dans ilécole de chartres, parisotawa, 1938; gregory, anima mundi. la filosofia di guglielmo di conches e ia scuola di chartres, plorenç.a, 1955; garin, studi sul platonisma mediocvale@, florença, 1958. as obrab de constantino africano foram editadas em basileia, 1536 e 1539. o prólogo ao livro pantegni, in p. l., vol. 150.-, 1563-1566. - siebeck, in "archiv fur gesch. der philos.>, 1888, p. 528 e segs.; baeumker, ivi, 1892, p. 557. de abelardo: de eodem et diverso, ed. wiliner, nei "beitrage", iv, 1, 1903; e quaestiones naturales, ed. muller, nei "beitrage", xxx1, 2, 1934. thorndike, a history of magic, 11, 19-49; bliemtz111eder, a. v. b., mõnaco, 1935. bernardo: as fontes nas obras de joão de salisbúria in p. l., 199.--gilson, le platonisme de b. d. -c., in. "revue néo-scol.", 1923, 5-19. teodorico: de sex dierum operibus, in haureau, notices et extraits, 1893, p. 52-68; eomentãrío ao de trinitate de boécio em jansen, der kommentare d.

marembaldus v. aras zu boethius de trinitate, bresuvia, 1926; heptateukon, edição do prólogo ao cuidado de jeauneau, in "medieval studies", 1954, 171175.jeauneau, in "mémoires de ia societé archéol. d'eure et loire", 1954, 110. guilherme de conches: a philosophia foi impressa com as obras de beda in p. l., 90.,, 1127-1178; o dragmaticon foi impresso com o título dialogus de substantis physicis., estrasburgo, 1567; ed. parra, paris, 1943; glosas ao timeu e segunda e terceira filosofia, parcialmente em cousin, ouvrage8 inédits 146 d'abélard; outras partes das glosas a boécio o ao timeu, em jourdain, notices et extraits, ece., xx, 2, paris, 1862, e no escrito de parent noutro lado citado. -flatten, die phil. des w. v. c., coblenza, 1929; ottaviano, um ramo inédito da "philosophia" de g. de c., nápoles, 1935; parent, la doctrine de ia création dans 1'école de chartres, cit.; gregory, op. cit. bernardo silvestre: de mundi universitate, ed. barach-wrobel, 1nnsbruck, 1876. - gilson, la cosmogonie de b. d. s., in "arch. hist. doet. de ia litt. m. a.", 1928; thorndire, a history of magic, 11, 1929. § 216. gilberto de ia porrée: as glosas a boécio, juntamente com os opúsculos teolõgicos de boécio, in p. l., 64.-, 1225-1412; de alguns destes comentários existem edições recentes: de hebdomadibus, in "traditio", 1953; "contra eutychen et nestorium, in "arch. hist. doctr. de ia litt. m. ã.", 1954; vanni-rovighi, la filosofia di g. p., in "misc, dell'università catt. di milano", 1956. § 217. joão de sa.iisbúria: obras in p. l.@ 199.o: policratus, ed. webb, oxford, 1909; metalogicus, ed. webb, oxford, 1929; historia pontificalis, ed. poole, oxford, 1927.-webb, j. of s., londres, 1932; dal pra, g. di salisbury, milão, 1951 (com bibl.); hohenleutner, j. v. s. in der literatur der letzen zehn jahre, in " hist. jahrb.", 1958. § 218. alano de lille: obras in p. l.@ 210.o; trac- tatus de virtutibus, ao cuidado de lottin, in "medieval studies", 1950; suma quoniam homines, ao cuidado de glorieux, in "arch. hist. doctr. de ia litt. m. ã.", 1954; anticlaudianus, nova ed. bossuat, paris, 1955. -baumgartner, em "beitrage", 11, 4, 1896; parent, em "beitrage", supp1. 111, 1935;

vasoli, due studi per alano di lilla, in "riv. crit. di st. della fii.", 1961; le idee filofiche di alano di lilla, nel "de planctu" e nez "anticlaudianus", in "giorn. crit. delila ffios. itali.", 1961. § 219. sobre amairico de bena e david de dinant: haur£au; hist. de ia philos. schol., 11, 1, p. 83-107; duhem, système du monde, v, 244-260; capelle, a. de b., paris, 1932; dal pra, amairico de bena, milão, 1951, com bibliografia. § 220. de joaquim de piore, as seguintes ediç.: concordia veteris et novi testamenti, veneza, 1519: expositio super apocalypsim, veneza, 1527; psalterium 147 de-cem cordarum veneza 1527; super quattor evangelia, roma, 1930 ("fonti,della storia d'italia"). escritos menores: de articulis fidei, ed. buonaiuti, roma, 1936; liber contra lombardum (escola de j. de f.), ed. ottaviano, roma, 1934.-fournier, Êtudes sur j. de f. et ses doctrines, paris, 1909; buonauti, gioacchino da fiore: i tempi-la vita-ii messaggio, roma, 1931; f. russo, bibliografia gioachimita. florença, 1954; blloomfield, j. of p., "traditio", 1957. 148 viii o misticismo § 221. caracteres do misticismo medieval o renascimento filosófico do século xii é também um renascimento do misticismo. mais precisamente, esse renascimento torna possível o reconhecimento da mística como uma via autónoma de elevação para deus, uma via que em qualquer caso é alternativa ou rival da investigação racional. esta via não era ainda conhecida da primeira idade da escolástica: basta pensar nas obras de escoto erígena que punha na deificatio o último termo da investigação racional. mas vendo bem, essa posição não surgia como radicalmente distinta da posição racional e muito menos contraposta a ela. as condições históricas do século xii conduzem, pelo contrário, ao estabelecimento de tal distinção. por um lado o número e a importância das correntes heréticas que florescem neste século, por outro a liberdade crescente de que a razão faz uso no próprio domínio da especulação teológica,

levam a encarar a via mística como correctivo 149 eficaz que permite reconhecer em deus e apenas em deus a iniciativa e o sustentáculo do esforço do homem na direcção da verdade. com efeito, é próprio da mística a tentativa de aproximar-se da verdade pela própria força da verdade; de se unir a deus mediante a ajuda sobrenatural e directa de deus e de deixar a ele apenas a iniciativa da investigação. o esforço do místico é dirigido unicamente para o fim de se tornar digno de sofrer a iniciativa divina; já que é deus que do alto o atrai a si e o ergue até à compreensão dos seus mistérios. por isso a via mística consiste numa transumanizt@ção, vencendo os limites humanos para se abrir à própria vida de deus e à beatifica acção da sua graça. nos confrontos dos movimentos heréticos que concluíam todos por negar qualquer função ao aparelho eclesiástico, o misticismo oferecia a tal aparelho um poderoso instrumento de defesa, porque lhe consentia reivindicar para si a administração dos poderes carismáticos sem os quais a ascese mística não seria possível. e nos confrontos da razão, a que faziam apelo as escolas filosóficas contemporâneas, o misticismo oferecia ao mesmo aparelho eclesiástico o modo de contrapor ao carácter incerto e até então erróneo dos resultados a que a razão conduzia, a certeza e a glória do êxito místico que permitem reunir os poderes sobrenaturais da igreja. não é nada de espantar, portanto, que, na época de que agora nos ocupamos, o misticismo tenha servido em primeiro lugar de arma polémica contra as aberrações das heresias e as divagações da dialéctica; isto é , como arma polémica para afirmar o poder da igreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado. mas não foi esta a única função do misticismo medieval. decorrida a fase polémica ou em concomitância com esta fase, o misticismo coloca-se, 150 com o fundamento de uma mais nítida distinção dos limites entre a razão e a fé, já não como alternativa rival da investigação racional mas como complemento e coroamento dessa mesma investigação. É nesta forma que aparece na escola dos vitorinos e se conserva na escolástica sucessiva, até ao século xiv, em que a mística alemã assume de novo a posição anti-racionalista

mas desta vez fora de qualquer preocupação de defesa da igreja. § 222. bernardo de claraval como arma de combate contra todas as formas de heresia religiosa ou filosófica e como instrumento de reforço do poder eclesiástico assim foi entendido o misticismo por bernardo de garaval, chamado, pela sua eloquência, o doctor melifluus. bernardo nasceu em fontaines, perto de dijon, em 1091. aos 21 anos torna-se monge em citeaux e passados três anos abade do convento de claraval, onde morreu em 1153. durante toda a sua vida foi um defensor encarniçado da ortodoxia religiosa e da autoridade eclesiástica. quando em 1130 foi oposto ao papa inocêncio 11 o antipapa anacleto ii, a obra de bemardo serviu para impedir o cisma e para convencer anacleto a renunciar à sua oposição. no concílio de sens de 1140 pregou contra os erros de abelardo, que foram condenados. a segunda cruzada de 1147 foi obra das suas predicações. as doutrinas de gilberto de ia porrée, encontraram nele um opositor violento. fez igualmente valer, com idêntica força, as armas da sua polémica contra a seita herética dos cátaros. de grande importância histórica são as suas epistolae. contra abelardo dirigiu dois escritos: contra quaedam capitula errorum abelardi e capitula haeresum petri abelardi. numerosos são, pois, 151 os escritos místicos, entre os quais: de gradibus humilitatis et superbiae (composto em 1121); de deligendo deo (em 1126); de gratia el libero arbitrio (1127); sermones in cantica canticorum, de consideratione (1149-1152). a doutrina de s. bernardo, nos seus pontos essenciais, não é mais que o plano estratégico da luta contra as heresias, a favor da autoridade absoluta da igreja. os pontos fundamentais desta doutrina podem ser assim resumidos: 1) a negação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem, 3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. sobre o primeiro ponto, bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra a ciência. o desejo de conhecer surge-lhe como uma <dorpe, curiosidade" (se. in cant., 36, 2). as discussões dos filósofos como "loquacidade cheia de vento" (ib., 58, 7). " a minha filosofia mais sublime -proclama ele-é esta: conhecer

jesus e a sua crucificação" (lb., 43, 4). quanto ao segundo ponto, s. bernardo afirma sem reservas que a única atitude possível ao homem é a da humildade, da virtude "pelas quais o homem, conhecendo-se verdadeiramente, sente vergonha de si próprio" (de gradibus humilitatis, 1, 2). reconhecer-se a si próprio como nada sendo é para o homem a condição indispensável para que possa libertar-se de todos os vínculos corpóreos e identificar inteiramente a sua vida com o amor por deus. o amor de que s. bernardo fala baseia-se no conceito do de amicitia de cícero e a linguagem do cântico dos cânticos é entendida por ele substancialmente como o processo ascético de libertação do corpo e em geral de todos os vínculos naturais e como pura obediência ou abandono à vontade divina. os graus mais altos do amor consistem em amar a deus por si mesmo e no amarse a si próprio por amor de deus: neste grau, o homem abandona a sua 152 alegoria da cabala vontade inteiramente ao querer divino (de diligendo deo, xiii, 36). com este ascetismo do amor teológico coincide o processo da ascese mística, cujos graus são significativamente identificados por s. bernardo com os graus da humildade. o primeiro grau da ascese mística é a consideração (consideratio), que é um intenso pensamento de investigação e uma intenção da alma que investiga a verdade criadora. o segundo grau é a contemplação (contemplatio) que é a intuição corta, uma apreensão indubitável da verdade (de contemplatione, 11, 2). a primeira contemplação é a admiração pela majestade divina que exige um coração purificado do vício e do pecado. o supremo grau da contemplação é o êxtase ou excessus mentis, pelo qual deus desce sobre a alma humana e a alma se une a deus. "tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume o sabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se torna semelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o ar que percorrido pela luz do sol se transforma em claridade luminosa até parece mais que iluminado, transformado na própria luz; assim nos santos todo o afecto humano necessariamente se dissolverá de modo inefável e quase

se transformará na vontade de deus. com efeito, de que forma poderá deus estar em todas as coisas, se algo de humano permanece no homem? É certo que permanecerá a substância, mas com outra forma, com outra glória, com outro poder... isto significa deificar-se" (de dil. deo, 11, 28). o processo de deificação do homem supõe que a alma olvide completamente o corpo. conseguido este estádio, nada mais impede que o homem se afaste cada vez mais de si e se erga para deus tornando-se semelhante a ele, na medida em que é possível tornar-se semelhante a deus. neste estádio, o homem faz uma só coisa com o espírito de deus (lb., 11, 32; 15, 39). 153 o único problema que s. bernardo tratou filosoficamente é o da graça e do livre arbítrio. distingue três aspectos de liberdade: a liberdade da necessidade, a liberdade do pecado, a liberdade da miséria. a liberdade da necessidade é o livre arbítrio, que é próprio da vontade humana; não se perde nem com o pecado nem com a miséria, e não é maior no justo que no pecador, nem no anjo que no homem (de grat., 1, 2). o livre arbítrio constitui a própria essência da liberdade humana. tudo o que é voluntário é livre. a vida, os sentidos, o apetite, a memória, o engenho, e todas as outras actividades humanas estão sujeitas à necessidade, quando não estão inteiramente submetidas à vontade (1b., 2, 5). a vontade é a faculdade de escolha: mas esta escolha não se exerce necessariamente entre o bem e o mal; deus é livre nas suas acções, mas não se determina no mal. contra escoto erígena e com sto. anselmo, s. bernardo nega que a liberdade consiste na escolha entre o bem e o mal. a possibilidade de escolher o mal não e essencial à liberdade, mas é antes uma imperfeição própria da liberdade finita, o essencial da liberdade é a ausência de toda a coacção. ao lado do livre arbítrio está a liberdade do pecado e a liberdade da miséria. mas, apesar do livre arbítrio fazer parte da nossa natureza, a liberdade do pecado é-nos dada pela graça e a liberdade da miséria ser-nos-á reservada in patria, isto é, no céu: por isso o livre arbítrio pode ser chamado liberdade de natureza, a liberdade do pecado liberdade da graça, a liberdade da miséria liberdade de vida ou de glória (lb., 3, 7.) amigo de s. bernardo foi guilherme de s. th,ierry, abade deste mosteiro de

1119 a 1135 e falecido em 1148 ou 1153. participou na luta contra abelardo com um escrito redigido no inverno de 1138-1139, disputatio adversus abelardum e com 154 uma carta na qual pedia a atenção de s. bernardo para os erros de abelardo. É também autor de obras místicas e exegéticas, meditativae orationes, de contemplando deo, de natura et dignitate divini amoris. nos dois livros de natura corporis et animi, trata, no primeiro, da física do corpo humano e no segundo da física da alma. o interesse desta compilação está no facto de guilherme procurar a união da psicologia platónico-agustiniana com a da medicina greco-árabe, que conheceu através de constantino africano. § 223. isaac de stella o inglês isaac foi monge em citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de stella, na diocese de poitiers. a sua obra mais significativa filosoficamente é uma epistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162. lsaac parte de um pressuposto que tira de s. agostinho e que voltaremos a encontrar em descartes: para o homem, o conhecimento mais claro é o de deus. das três realidades, corpo, alma e deus, o corpo é-nos menos conhecido que a alma e a alma menos conhecida que deus. a alma é, de certo modo, a imagem da divindade como disse aristóteles, ela é a similitude de todas as coisas; e assim se transforma em meio entre o corpo e deus. cinco são os graus da actividade cognoscitiva da alma: o sentido corpóreo, a imaginação, a razão, o intelecto e a inteligência. os sentidos percebem os corpos, a imaginação conserva e reproduz as imagens sensíveis, mesmo na ausência dos corpos; a razão percebe as formas incorpóreas das coisas corpóreas. o processo da razão é abstracção; e isaac formula uma teoria da abstracção que será seguida e desenvolvida por s. tomás de aquino. */*l 155 "a razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corpo subsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendo que em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são o próprio corpo. assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a

imaginação conseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, as diferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreas que, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (p. l., 194.o, 1884). acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisas incorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medida em que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, deus na sua pureza e incorporeidade. deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe a luz para os conhecimentos inferiores. aqui isaac: reproduz a doutrina agustiniana da iluminação exprimindo-a com os termos de escoto erígena: as verdades que através da inteligência descem de deus ao homem são teofanias, manifestações de deus (1b., 1888). § 224. hugo de s. victor: razÃo e fÉ s. bernardo contrapõe a via mística à investigaçao racional. aquela é considerada como a via da humanidade e da renúncia a toda a autonomia humana. no entanto, estas duas vias parecem fundir-se harmoniosamente em hugo de s. victor e concorrem para fazer dele uma das personalidades mais notáveis do mundo medieval. nasceu em 1096 em hartingan na saxónia e formou-se no convento de hamersleben, perto de halberstadt. a partir de 1115 foi para o convento de s. victor em paris e de 156 1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor naquele convento. É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com o título eruditionis didascalicae libri vii ou, mais brevemente, didascalion cujos três primeiros livros são dedicados às artes íiberais, os três seguintes à teologia, o último é um texto sobre a meditação. dos quatro livros de de anima apenas o quarto lhe pertence, enquanto o segundo pertence provávelmente a alquério de clairvaux. a sua obra maior é o de sacramentis christianae fidei que parece ter sido escrita entre 1136 e 1141. esta obra é a primeira summa teológica medieval. o obectivo declarado da obra é o de fornecer um fundamento à interpretação alegórica dos mistérios cristãos. com efeito, hugo de s. victor distingue em tais mistérios a alegoria que é o seu significado fundamental e a história que é o seu

significado literal. pretendo assim fornecer um guia para se poder ler as escrituras com critério seguro e conseguir-se uma reconstrução alegórica que se subtraia à disparidade de pareceres. juntamente com estas obras de investigação escolástica, escreveu também numerosos opúsculos místicos: de arca noe mystica, de arca noe moral!, de arrha animae, de vanitate mundi, etc. a atitude de hugo de s. victor perante a ciência é decididamente oposta à de s. bernardo. nada há de inútil no saber: "aprende tudo, afirma, verás que nada é supérfluo" (didasc., vi, 3). a própria ciência profana é útil à ciência sagrada, à qual está subordinada: "todas as artes naturais servem a ciência divina o a sapiência inferior, ordenada com rectidão, conduz à superiom (de sacram., i, prol. 5, 6). em vez de contrapor entre si a ciência profana e a ciência sagrada, a fé mística e a investigação racional, hugo de s. vietor procura estabelecer entre elas um equilíbrio harmónico e de as 157 coordenar num único sistema. desse modo tenta coordenar a via mística com a investigação racional: "há dois modos e duas vias através das quais deus, que permanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido e julgado: a razão humana e a revelação divina. a razão humana empreende de duas formas a investigação de deus; em si e nas coisas que estão fora de si. do mesmo modo a revelação de deus actua de duas formas a fim de dissipar a ignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrina exteriormente transmitida e confirmada pelos mijagres" (1b., 1, 3, 3). os caminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. uma e outra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para o conduzir até deus. e como se se coordenam entre si, tendo em vista o fim único do conhecimento de deus, a investigação racional e a revelação, assim se coordenam também entre si para o mesmo fim os objectos da investigação humana. hugo de s. victor distingue todos os objectos possíveis em quatro categorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. "certas coisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acima da razão, outras ainda estão contra a razão. as coisas que derivam da

razão são necessárias,- as que são conformes à razão, prováveís; as que estão acima da razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. as primeiras e as últimas excluem a fé: as primeiras, derivando da razão, são absolutamente conhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podem ser criadas porque a razão não pode assentar nelas. portanto, podem ser apenas objecto de fé as coisas que são conformes com a razão e as que estão acima da razão. nas primeiras, a fé é sustentada pela razão e é aperfeiçoada pela fé: se a razão não compreende a sua 158 verdade, também não cria obstáculos a que a fé acredite nelas. nas coisas que estão acima da razão, a fé não pode ser ajudada pela razão, que não compreende aquilo em que a fé crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa que exorta a razão a venerar a fé, ainda que não a compreenda" (1b., 1, 3, 30). o domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da fé, como domínio da necessidade lógica absoluta: a fé não tem lugar no que é demonstrável ou evidente. mas, por outro lado, a fé não se opõe à razão porque o seu objecto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o que se aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. o princípio de s. tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aqui pela primeira vez uma clara formulação. a esta classificação dos objectos do conhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posições subjectivas. estas posições são : a negação, a opinião, a fé e a ciência. a negação, a opinião, e a fé dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve, dizer da coisa. apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; a ciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presença própria do seu objecto (1b., i, 10, 2). viu-se já como a ciência é também o único conhecimento necessário; e esta necessidade vem-lhe da lógica que é o seu instrumento indispensável. as ciências experimentais, como a física, pressupõem as ciências puramente lógicas, tal com a própria lógica e a matemática; uma vez que a experiência por si só é falaz e só na pura razão existe e garantia indiscutível da verdade.

hugo de s. victor extrai da obra de abelardo * teoria aristotélica da abstracção. a matemática * a física constituem, graças à abstracção, o seu objecto. a matemática considera distintamente os 159 elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim, ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, a razão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície e do volume. isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não como elas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência a ela própria (didasc., 11, 18). do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros os elementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, a terra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição e da força de tais elementos (1b., 11, 18). como muitos representantes da escola de chartres, hugo de s. victor admite a composição atómica dos elementos (de sacram., 1, 6, 37) e afirma o princípio da conservaçao da matéria, princípio que apoia na autoridade de pérsio (sat., 111, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil posse reverti (didasc., 1, 7). § 225. hugo de s. victor: a teologia vimos já que tanto a investigação racional como a mística apoiada e baseada na graça se distinguem consoante partam do interior ou do exterior do homem. a demonstração racional da existência de deus, como momento necessário da investigação filosófica, divide-se também consoante parta da consideração do homem ou da consideração das coisas exteriores. o espírito humano reconhecese a si próprio como uma realidade existente e com este reconhecimento distingue-se dos corpos e de tudo o que conhece. mas enquanto se percebe existente, reconhece também que nem sempre existiu, que o seu ser teve um princípio e que não é ele pró prio o princípio do seu ser. por isso é levado a reco160 nhecer uma causa criadora que seja o fundamento da sua existência. e como não pode pensar que esta causa criadora tenha s-ido por sua vez criada sem

se integrar num processo ad infitzitum deve admitir que tal causa subsiste em si e que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja eternamente real (de sacram., 1, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração das coisas externas. todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter uma origem e um criador. tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deve ter tido um princípio. deste modo as coisas externas confirmam o que a alma encontra em si; e a natureza revela o seu autor tal como o revela a própria alma (1b., 1, 3, 10). tal como a existência de deus, também a trindade pode ser demonstrada através das duas vias, interna e externa. no homem de palavra interior revelase na palavra exterior; assim em deus a palavra interior, qu,@ é a sua eterna sapiência, reveia-se na palavra externa, que é o mundo criado. no nosso espírito, a razão, a sabedoria que- nasce da razão, e o amor, que procede de ambas são uma única realidade-, assim em deus espírito, sapiência e amor constituem uma única substância. mas, enquanto que no nosso espírito a sabedoria e o amor não têm personalidade porque são puros acidentes ou afeições do espírito, em deus a sapiência, e o amor são o próprio ser de deus, são o que o próprio deus é, por conseguinte, pessoas. assim, em deus há três pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há uma só pessoa, a qual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à trindade divina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (ib., 1, 3, 25). as coisas exteriores reproduzem também a divindade. a grandeza do mundo corresponde ao poder divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua 161 conformidade às necessidades do homem, à bondade (lb., 1, 3, 28). deus criou o mundo não apenas secundum se, mas também propter se. secundum se, ou seja: em conformidade consigo próprio, porque não tomou do extenor ou que foi obra sua; propter se, ou seja: por sua própria causa, porque não recebeu de outro a causa da sua acção criadora (1b., 1, 2, 3). hugo de s. victor distingue, a propósito da criação, as coisas que são apenas causa, das que são apenas efeito, e as que são ao mesmo tempo causa e efeito o que é apenas causa e não é efeito é deus, como causa suprema. no extremo oposto está aquilo que é apenas efeito o não é causa, a matéria, de que são compostas as coisas criadas. entre estes dois extremos estão e movem-se

todas as outras coisas, que estão entro si numa relação de causa e efeito e assim vão desde a causa primordial até à matéria. deus criou em primeiro lugar a matéria informe; mas tal matéria não era informe a ponto de ser absolutamente privada de forma, porque o que é privado de forma é privado de existência, era informe apenas no sentido de que era confusa e mesclada (forma confusionis), privada de ordem e de disposição (forma dispositionis) que em seguida teve de deus (lb., 1, 1, 4). em polémica com abelardo, que tinha afirmado que deus não pode fazer coisa diferente daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor do que fez, hugo de s. victor sustenta que deus teria também podido criar um mundo melhor. com efeito, a razão porque deus não pôde criar um mundo melhor pode ser devida ao facto de ao mundo não faltar qualquer possível perfeição ou ao facto de o mesmo não ser susceptível de urna maior perfeição. más no primeiro caso, o mundo seria semelhante ao criador e assim o criador seria coagido aos limites do finito ou então o mundo 162 elevado para além desses limites; e tanto uma hipótese como a outra são impossíveis. se se pode afirmar a incapacidade do mundo de assumir uma perfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor nem o mais perfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. na verdade, apenas deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. o mundo criado não participa destaperfeição absoluta e por isso deus teria podido criá-lo ainda melhor do que realmente o criou. ele não pode fazer apenas o que é impossível, uma vez que "não poder o impossível não é não podem ub., 1, 2, 22). a criação não é uma acção necessária de deus, mas uma livre manifestação da sua bondade. a decisão e a vontade de criar os homens estão desde a eternidade em deus, mas a própria criação não é eterna. deus quis sempre que o mundo existisse, mas não quis que ele fosse eterno: o querer criador de deus é eterno, e o que é criado não é eterno (1, 2, 10). na criação participaram não só o poder e a bondade de deus, como também a sua sabedoria. a sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação, providência: ciência das coisas existentes, presciência das coisas futuras,

disposições das coisas a fazer, predestinação dos homens para a salvação, providência daqueles que estão sujeitos ao querer divino. desde a eternidade que todas as coisas criadas existiam no conhecimento divino; mas isso não as torna necessárias. as coisas não chegam necessàriamente ao ser porque foram pensadas por deus. podem também não se tornarem reais e neste caso as ideias divinas não são causas das coisas. só a vontade divina pode transformar as ideias divinas em realidade criada (lb., 2, 16-18). À vontade divina se referem todas as determinações de valor. deus não quis certa coisa apenas porque é bom e justo, mas tudo o que é bom e 163 justo é-o porque deus o quis. com efeito, o ser justo é propriedade essencial do querer divino. "quando se pergunta porque é que é justo o que é justo é preciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que é justa. e quando se pergunta porque é que a vontade de deus é justa, é preciso responder: não há causa da primeira causa e ela é por si o que é" (1b., 1, 4, 1). se a vontade de deus é o próprio bem, a presença do mal no mundo deve ser exigida pela bondade conjunta do mundo. deus fez o bem e permitiu que houvesse o mal, apesar de não ser o seu autor. e apesar de o mal ser e continuar a ser como tal, como tal é e continua a ser o bem, e é por bem que existe o bem e o mal. com efeito, o bem deriva não apenas do bem, mas também do mal; através da oposição entre o bem e o mal resulta mais evidente a beleza e a ordem conjunta do mundo. por isso é um bem existir o mal e esse é o motivo pelo qual deus permitiu que o mal existisse (lbid., 1, 4, 5-6). § 226. hugo de s. victor: a antropologia o homem está no cume do mundo sensível. segundo a sagrada escritura, o homem foi criado depois de todas as outras coisas, e isto aconteceu porque ele é o primeiro de todas as criaturas sensíveis e todo o mundo sensível foi criado para ele. deus criou o homem para o servir; e criou o mundo para que este sirva o homem. o homem é um ser finito, precisa da ajuda exterior quer para se conservar tal como é, quer para chegar a ser o que não é ainda. foi

colocado no centro do mundo sensível para que dele se sirva como de uma ajuda necessária à sua conservação. mas está destinado a 164 servir a deus e assim alcançar aquela plemitude e felicidade que não possui ainda. para ele existe um duplo bem, um bem de necessidade e um bem de felicidade: o primeiro é-lhe dado pelas coisas do mundo, o segundo pelo próprio criador. o primeiro suige criado por causa do homem e para se lhe tornar útil; o segundo é o fim para que foi criado o homem (de sacrum, 1, 2, 1). sendo este o lugar do homem no mundo, distinguem-se na própria natureza do homem duas partes, o corpo e a alma. a alma é, em contraposição com o corpo, uma substância simples e espiritual. juntamente com boécio, hugo de s. victor distingue o intelectível e o inteligível: o intelectível é o que não é sensível e não é semelhante ao sensível; o inteligível é que, apesar de não ser sensível, tem relações de semelhança com o sensível. a alma é intelectível porque não é nem sensível nem semelhante ao sensível; mas é ao mesmo tempo inteligível porque é dotada de sensibilidade e de imaginação e pode assim compreender o sensível (didase., 11, 3, 4). como tal, por um lado, está em relação com o sensível e, por outro, em relação com o suprasensível. a sua relação com o sensível é baseada na sua sensibilidade, a relação com o supra-sensível é baseada na inteligência. entre as faculdades sensíveis e a inteligência está a razão, que é a faculdade discursiva (de sacrum., 1, 1, 19). definida com boécio a pessoa como "uma substância individual de natureza racional", hugo atribui a personalidade à alma em si e por si. o corpo não contribui para formar a pessoa, e apenas se une a ela. a própria alma como tal, é pessoa (1b., 11, 1, 11). a característica fundamental da alma como pessoa é a autoconsciência. nas pegadas de s. agostinho, hugo de s. victor insiste na necessidade e no valor da consciência da própria existência. "não existe sábio que não saiba que existe. e no entanto o homem, 165 se começa a considerar verdadeiramente aquilo que é, compreende que não é nenhuma das coisas que percebe ou pode perceber em si mesmo. o que em

nós é capaz de razão, ainda que, por assim dizer, esteja confundido com a carne, distingue-se no entanto da substância da carne e compreende o que é distinto dela (didasc., vii, 17). este pensador reconhece ao homem a liberdade como faculdade de escolha, privada de determinações necessitantes. a liberdade é o fundamento da vida moral do homem que sem ela seria impossível. * princípio objectivo desta vida é a lei de deus. * bem é o que é conforme com esta lei, o mal é a negação daquiilo que a lei prescreve. com o bem, o mal tem o seu fundamento na livre vontade, e não vê positivo nem negativo; é um puro nada (1b., 1, 7, 16). § 227. hugo de s. victor: o misticismo a via mística para alcançar a visão directa de deus tem três momentos principais: o pensamento, a meditação e a contemplação. o pensamento (cogitatio) é determinado pela presença na alma de uma coisa em imagem, que ou provém dos sentidos ou é suscitada pela memória. a meditação (meditatio) é o contínuo e sagaz exame do pensamento, que se esforça por explicar o que é obscuro e de penetrar no que está oculto. a contemplação (contemplatio) é a livre e perspicaz intu-ição da alma que se difunde sobre as coisas examinadas. a contem- ,plação possui aquilo que a meditação procura: a visão manifesta e completa. por seu lado, a contemplação cinde-se na consideração das criaturas e na contemplação do criador, que é o seu grau último e perfeito (de nwd. dicend. et meditand., 8). este último grau é a contemplação mística, na qual a ascese para deus se identifica com a clausura na 166 própria intimidade espiritual: "aquele que entra dentro de si e, penetrando internamente em si próprio, se transcende verdadeiramente sobe até junto de deus" (de vanitate mundi, 2). § 228. ricardo de s. victor: a teologia o terceiro dos grandes místicos desta época é ricardo de s. victor. escocês de nascimento, cedo se dirigiu a paris e entrou para o mosteiro de s. victor. aqui se cultivou guiado por s. hugo e, pela morte deste, sucedeu-lhe no

ensino e no priorado. morreu em 1173. ricardo é, como hugo, escolástico e místico. entre as suas obras escolásticas há um tratado em três livros de trinitate e um texto de verbo incarnato. entre as obras místicas: de preparatione ad contemplationem chamado também beniamin minor; de gratia contemplationis chamada também beniamin maior; de statu interioris hominis; de exterminatione mali. ricardo distingue a verdade fundada na experiência, da verdade fundada na razão e da verdade fundada na fé. o homem conhece as coisas temporais através da experiência; as coisas eternas em parte com a razão, em parte com a fé. do que é eterno, com efeito, nem tudo pode ser conhecido através da razão, há muito que só pode ser revelado por deus e tem, por conseguinte, como pressuposto a fé (de trinit., 1, 1). todavia, ricardo não desiste de prosseguir na sua busca ideal da demonstração apodítica. na sua obra sobre a trindade declara a sua intenção de acrescentar em apoio da fé razões não só prováveis, como necessárias, e exprime a confiança de que tais razões não faltam (1b., 1, 4). 167 estas razões dizem respeito, em primeiro lugar, à existência de deus. tal como hugo, ele também prefere partir da experiência para a demonstração de deus em homenagem ao princípio (sobre o qual insistirá s. tomá s) de que "todo o nosso processo demonstrativo tem início naquilo que conhecemos pela experiência" (ibid., 1, 7). a sua argumentação consiste essencialmente em ascender das coisas finitas, que não têm ser por si, a um princípio que tem o ser por si e é eterno. se este princípio não existisse, as coisas que não têm ser por si não teriam podido recebê-lo do nada e portanto não existiriam. a existência mutável do ser contingente demonstra a eternidade do ser necessário (1b., 1, 6). da experiência, ricardo parte também para demonstrar a trindade de deus. a experiência demonstra que o raio de sol, ainda que procedendo do sol e tendo a sua oriaem nele, é no entanto seu contemporâneo. o sol produz por si o raio e em tempo algum carece dele. ora se a luz corpórea tem um raio que é seu contemporâneo, porque razão não terá também a luz espiritual um raio seu

coeterno? não é admissível que a natureza divina, princípio de toda a fecundidade, tenha ficado estéril em si mesma e não haja gerado nada, ela que deu a todas as coisas a possibilidade de gerar. É portanto provável que na incomutabilidade supraessencial de deus haja algo que não existe por si próprio e seja todavia ab aeterno (1b., 1, 9). esta probabilidade torna-se certeza se se considerar a perfeição do poder, na beatitude e do amor divino. esta perfeição implica a possibilidade de uma comunicação mediante a qual deus possa difundir a abundância infinita da sua vida. uma dualidade de pessoas torna-se necessária para que deus não seja privado dessa comunicação, sem a qual a sua vida seria estéril e solitária (ibid. hi, 11). mas uma dualidade não basta: a comunicação não é perfeita se não 168 se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. a perfeição do amor pressupõe que tal possa estender-se a uma tercelra pessoa que seja igualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. a perfeição do amor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoas divinas, sem a qual não haveria a inte- ,-,ridade da sua plenitude (1b., 111, 11). a trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham os nossos atributos. a perfeição da divindade ,implica a perfeição da potência, a perfeição da sabedoria, a perfeição do bem. assim como é omnipotente uma delas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são as outras: assim como uma delas é deus, assim são deus também as outras. mas existe apenas um só deus, porque assim como as três pessoas são igualmente omnipotentes, assim as três são igualmente deus. o que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância, ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (ibid., 111, 9). enquanto que no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa, em deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana de pessoa, aceite já por hugo como "substância individual de natureza racional", ricardo acrescenta a determinação "dotada de existência incomunicável" (ib., iv, 18). a interpretação trinitária de ricardo constitui na escolástica uma fórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana.

§ 229. ricardo de s. victor: a antropologia mística o pressuposto de ricardo é a unidade e a simplicidade da natureza humana. a alma é uma essência simples e espiritual que comunica ao corpo vida 169 e sensibilidade: a alma e o espírito não são no homem duas substâncias diversas, mas constituem uma única essência; o espírito é a faculdade superior da alma, mas não se distingue substancialmente dela. tal como os objectos se dividem nas três classes do sensível, do -inteligível (mundo espiritual) e do intelectível (deus) assim se dividem em três faculdades os poderes da alma; imaginação, razão, inteligência. a função da imaginação é a de receber e conservar as percepções sensíveis. a razão é a capacidade de pensamento discursivo, que procede demonstrativamente de uma verdade para outra. a inteligência são os olhos espirituais que vêem as coisas invisíveis na sua presença real, como os olhos da carne vêem o que é visível (de contempl., 111, 9). nestas três faculdades se baseia a via mística ao procurar a união com deus. o pensamento (cogitatio) baseia-se na imaginação; a meditação (meditatio) na razão e a contemplação (contemplatio) na inteligência. "0 pensamento vagueia lentamente por aqui e por ali, sem se preocupar com uma meta. a meditação tenta esforçadamente prosseguir através de obstáculos e dificuldades na direcção de um fim. a contemplação circula em voo livre, por onde quer que expanda o seu ímpeto e com uma extraordinária agilidade. a contemplação é o último estádio da via mística. duas são as suas condições fundamentais. em primeiro lugar, a pureza de coração, condicionada pela virtude; em segundo lugar, o conhecimento de si. ricardo compara a razão e a vontade do homem às duas mulheres de jacob, raquel e lia. tal como jacob se uniu primeiro a lia e dela teve sete filhos e sete filhas, e em seguida desposou raquel e gerou dela, assim também a vontade humana é primeiro fecundada pelo espírito de deus, que gera nela as virtudes; em seguida a razão humana, desposando a graça divina, gera o conhe170 cimento mais alto. as virtudes são portanto os filhos de lia, mas a vida mística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. o último filho de jacob e de raquel, benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si,

que é a verdadeira e própria -introdução à união mística com deus (de praep. ad contempl., 67-71). "aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível, antes de conhecer o que há de invisível em deus. se não te podes conhecer a ti próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?" (lb., 7). seis são os graus fundamentais da contemplação. o primeiro, in imaginatione et secundum imaginationem, considera o mundo sensível como tal, relacionando a perfeição e a beleza com a potência, sabedoria e bondade de deus. o segundo, in imaginatione et secundum rationem, considera o mundo sensível nos seus dois princípios e assim nos conduz do mundo sensível ao mundo inteligível. o terceiro grau, in ratione et secundum imaginationem, relaciona o sensível com o supra-sensível e assim tem em consideração as ideias das coisas. o quarto grau in ratione et secundum rationem considera a alma e os espíritos puros, como sejam os anjos. o quinto grau, supra rationem et non praeter rationem, dirige-se a deus na medida em que ele é cognoscível pela nossa razão. o sexto e últrro grau, supra rationem et praeter rationem, considera os atributos da divindade que transcendem em absoluto a razão humana, por exemplo, os que se referem à trindade (de contempl., 1, 6). os graus de ascese progressiva da alma para a verdade suprema podem distinguir-se também pela qualidade subjectiva dos seus actos. alguns deles implicam, com efeito, o dilatar-se (dilatatio) da mente, outros o levantar-se (sublevatio) outros a alienar-se (alienatio) da mente de si mesma. o dilatar da mente consiste em expandir-se e em agudizar 171 as suas capacidades, sem que, no entanto, transcendam os limites humanos. o elevar-se da mente é o estado em que ela permanece iluminada pela luz divina e transcende os limites da capacidade humana. finalmente, o alienar-se da mente é o abandono da memória de todas as coisas presentes e a transfiguração num estado em que já não há nada de humano ub., v, 2). o primeiro destes graus é devido à actividade humana, o terceiro apenas à graça divina, o segundo a uma e a outra. no terceiro grau, está o ponto culminante da contemplação, o êxtase ou excessus mentis. som invólucro e sem sombras, não mais per especulum et in enigmate, o homem contempla então a luz da sabedoria

divina. neste estado não existe já sensibilidade, nem memória das coisas externas e a própria razão humana se cala. a mente é arrebatada lá de si própria e todos os limites da razão são superados. morre raquel e nasce benjamim. a morte de raquel significa o desaparecimento da razão (de praep. ad contemp., 73). a mística de ricardo é a expressão fundamental e típica do misticismo medieval. ricardo viu nitidamente que a via mística conduz à abolição de todos os limites humanos para colocar o homem face a face com deus. nota bibliogrÁftca § 221. gebrart, l'italie mystique, paris, 1890, 8.a ed, 1917; bernhart, die philosophische m-.ystik des mittelalters, berlim, 1922; r. otto, west-õstliche mystik, berlim, 1926; stolz, theologie der mystik, ratisbona, 1936; daniÉlou, platonisme et théologie mystique, paris, 1944. § 222. as obras de s. bernardo em p. l., 182.---185.i.uma edição crítica está em preparação em roma. oeuvre8, escolha e tradução francesa de davy, 2 vols., paris, 1945.-coulton, st. b., cambridge, 1923; mi172 terre, la doctrine de st. b., bruxelas, 1932; gilson, la thélogie mystique de st. b., paris, 1934; baudry, st. b., paris, 1946; antonelli, b. di c., milão, 1953 (com bibli.); delhaye, le problème de ia conscience morale chez st. b., namur, 1957. as obras de guilherme de s. thierry, em p. l., 180.1, 205-726. outros textos foram editados através das obras de s. bernardo, em p. l., 184.o, 365-436. a carta que acompanha a disputatio contra abelardo, em p. l., 182.-, 531-532. edições recentes: meditativae orationes, ed. davy, paris, 1934; epistola ad fratres de monte, dei, ed. davy, paris, 1940; commentario ad cantico dei cantici, ed. davy, 1958; de contemplando deo, ed. hourlier, paris, 1959;-davy, thélogie et mystique de g. de st. t., la connaissance de dieu, paris, 1954. § 223. as obras de isaac, em p. l., 194.o, 1689-1890.-bertola, la dottrina psicologica di isacco di stella, in. "riv. @di fil. neoscoi.", 1953. § 224. as obras de hugo, em p. l., 175.---177.o. dois outros escritos de hugo: epitome in philosophiam e de contemplatione et eius speciebus foram publicados por i-iaureau, hugues de st. victor, paris, 1859,

2.1 @ed. com o titulo les oeuvres de hugues se st. victor, paris, 1886. outras edições: didascalion, ed. buttimer, washington, 1939; la contemplation et ses espèces, ed. baron, paris, 1958. - barkholt, die ontologie h. s. v., bonn, 1930; kleinz, the theory of knowledge of h. of st. v., washington, 1944; baron, science et sagesse chez h. de st. v., paris, 1957. 9 225. sobre as provas da existência de deus: grunwald, em "beitrage", vi, 3, 1907, p. 69-77. § 226. sobre a psicologia: ostler

em "beitrãge", vi, 1, 1906.

§ 228. as obras de ricardo, em p. l., 196. . outras edições: les quatre degrés, ed. dumeige, paris, 1955; de trinitate, ed. ribaillier, paris, 1958; libet exceptionum, ed. chatillon, paris, 1958; sermons et opuscules inédits, trad. frane., paris, 1951.-ottaviano, riceardo di s. vittore, roma, 1933; dumeige, r. de st. v., paris, 1952. 173 ix a sistematizaÇÃo da teologia § 230. sentenÇas e sumas a dificuldade de se encontrar os raros e custosos manuscritos tinha determinado na idade média o uso frequente de compêndios e excertos. o desenvolvimen,to da cultura medieval manifesta-se com a modificação da natureza destas compilações. a princípio eram constituídas por excertos tirados de um só autor ou também de vários autores, mas destituídos de qualquer ordem. por exemplo, o sancti prosperi liber sententiarum ex augustino delibatarum é uma compilação de cerca de quatrocentos excertos quase todos de santo agostinho e reunidos sem nenhuma ordem. os manuscritos medievais contêm um grande número de excertos ou sententiae deste gênero. o mais célebre é o liber pancrisis, que remonta ao século xii e contém sentenças dos santos padres e de mestres contemporâneos, como guilherme de champeaux, anselmo de laon e outros. em seguida, os excertos foram agrupados 175 segundo a ordem das sagradas escrituras. os textos eram algumas vezes de um só doutor, outras vezes de mais. a primeira compilação do gênero é a de patério, secretário de s. gregório, que reúne a explicação dos textos bíblicos contida na obra do santo. de mais autores foram extraídos os textos

recolhidos por beda o venerável e por rabano mauro, que acrescentaram aos próprios textos comentários pessoais. mas havia outras compilações nas quais as sentenças dos padres eram reagrupadas segundo uma ordem mais ou menos lógica. isidoro de sevilha é o autor de uma obra deste gênero que intitulou sententiarum libri tres, e que em seguida foi citada com o titulo de summo bono. estas recolhas de textos que seguiam uma ordem mais ou menos lógica, eram designadas com o nome de sententiae.mas, progressivamente, a parte correspondente à elaboração pessoal na explicação e nos comentários dos excertos era cada vez maior. no entanto, as recolhas continuaram a manter o nome de setaentiae, uma vez que o texto original não era mais que a explicação e o comentário das sentenças transcritas. abelardo reformou profundamente este costume literário. a partir dele as obras que mantiveram o nome de sententiae passaram a ser compêndios sistemáticos, completos e racionais, das verdades fundamentais do cristianismo. para exprimir este novo carácter adoptou-se o termo summa. abelardo serve-se deste termo no prólogo da introdução à teologia: "escrevi uma summa da erudição sacra como introdução às divinas escrituras". e hugo de s. vietor no prólogo do 1 livro do de sacramentis, que é a primeira verdadeira e própria suma de teologia medieval, diz: "reuní numa única cadeia (series), esta breve suma de todas as coisas". no século xii o nome de 176 summa substitui o de sententiae e os livros que continham a exposição sistemática das verdades cristãs chamavam-se sumas de teologia. § 231. pedro lombardo entro os mais notáveis autores de sum~e há a salientar robert pulleyn, um inglês que ensinou em paris e depois em oxford e morreu em 1150; roberto de melun; que foi aluno em paris, de hugo de s. victor e provà velmente também de abolardo, do qual aceitou o principio da dúvida metódica, simão de tournay, que ensinou em paris entre a segunda metade do século xii e o principio do século xiii e defendia a fórmula de anselmo do credo ut intelligum, contraponda-a ao preceito da filosofia personificada por aristóteles: iniellige et credes. mas a obra do gênero mais significativa,

pela importância que teve como texto fundamental da cultura escolástica, é a de pedro lombardo. pedro lombardo nasceu em lumollo, perto de novara; estudou em bolonha o depois na escola de s. victor, em paris. a partir de ll^ ensina na escola catedral de paris; em 1159 torna-se bispo de paris e morre provávelmente em 1160. escreveu um commentario às cartas de s. paulo e um outro aos salmos. os seus livros libri quattor sententiarum foram escritos entre 1150 e 1152. esta obra é um compêndio sistemático das doutrinas cristãs baseado na autoridade da bíblia e dos padres mas no qual a parte pessoal é relevante. o maior peso é constituído pela autoridade de santo agostinho, mas apirecem também citados hilário, ambrósio, jerón-imo, gregório magno, cassiodoro, isidoro, beda e boécio. dos escritores posteriores é utilizado sobretudo o de sacramentis, de hugo de s. victor. pela primeira vez, no ocidente, aparece citado o 177 texto de fide orthodoxa de joão damasceno que é a terceira parte, traduzida do latim em 1151 por borgúridio de pisa, da fonte do conhecimento. mas a obra de pedro lombardo manifesta também com evidência a influência de abelardo e do método por ele criado no sic et non. apesar da sua explícita afirmação de que em matéria de fé "cré-se nos pescadores e não nos dialécticos", pedro lombardo é um dialéctico que procura fazer valer todo o peso da razão em apoio à autoridade dos textos citados. na própria divisão da obra, pedro lombardo segue um critério sistemático. o conteúdo total da bíblia é constituído por coisas e signos. a coisa é o que não pode ser empregado para significar ou simbolizar outra coisa; o signo é, pelo contrário, o que serve essencialmente para esse fim. entre os signos, pedro abelardo inclui os sacramentos, que são símbolos da realidade suprasensível. por sua vez, as coisas distinguem-se, segundo são objecto de gozo (fruitio) ou objecto de uso. objecto de gozo é a trindade divina, objecto de uso são as coisas criadas. as virtudes são conjuntamente objectos de gozo e objectos de uso, porque são meios para atingir o fim da beatitude. das

coisas podemos distinguir os sujeitos que as gozam ou se servem delas. consequentemente, pedro lombardo distingue a sua obra em duas partes, a primeira referente às coisas, a segunda referente aos signos. a primeira parte, diz respeito aos sujeitos e aos objectos da fruição e do uso, isto é; a trindade divina, as coisas criadas em geral, os anjos e os homens em geral e as virtudes. estes argumentos formam o conteúdo dos primeiros três livros das sententiae. o último livro é dedicado aos signos, isto é, aos sacramentos. o homem pode elevar-se ao conhecimento de deus partindo das coisas criadas. tudo o que nós 178 vemos é mutável e tudo o que é mutável deve ter a sua origem numa essência imutável. o corpo e o espírito estão igualmente sujeitos à mudança: o ser de que obtêm a sua origem deve ser, por isso, superior a ambos. e uma vez que todas as coisas corpos e espíritos, têm uma determinada forma e espécie, há que pensar numa forma originária, ou numa primeira espécie da qual, tanto o espírito como o corpo, recebam as suas formas ou espécies. essa primeira espécie é deus (sent. 1, dist 3, n. 3-5). os três caracteres fundamentais das coisas: a unidade, a forma e a ordem, constituem o reflexo da trindade divina e consentem ao homem a sua elevação para ela. na alma humana a memória, a inteligência e a vontade constituem uma única substância e também aqui se reflecte a imagem da trindade divina, que é mente (mens), conhecimento (notitia) e amor (amor) (lbid., 1, dist. 3, n.o 6 sgs.). no entanto, nenhuma coisa criada pode dar-nos um conhecimento adequado da trindade. É preciso distinguir entre as coisas que podemos conhecer antes de crer e aquelas que para serem conhecidas pressupõem a fé. entre os objectos de fé, alguns não podem ser conhecidos e compreendidos, se não acreditarmos primeiramente neles; outros não podem ser cridos se não forem primeiramente, compreendidos, e estes últimos são, por via da fé, compreendidos mais profundamente (1b. 111, dist. 24, 3). o objectivo fundamental das interpretações teológicas de pedro lombardo é a defesa da omnipotência divina. contra abelardo e de acordo com hugo de

s. victor (§ 225), pedro lombardo nega que deus não possa criar nada de melhor do que aquilo que efectivamente criou. na realidade, se o "melhor" se refere à actividade criadora de deus, a afirmação é legítima: mas se se refere ao objecto dessa actividade, isto é, ao mundo criado, a afirmação é fadsa, porque leva a pensar que ao mundo 179 não falta qualquer perfeição, e em tal caso o próprio mundo seria semelhante a deus: ou então deus não poderia dar-lhe maior perfeição e assim o mundo manifestaria uma imperfeição que estaria em contraste com a tese, segundo a qual, é o melhor dos mundos possíveis (1b., 1, dist. 44, 2-3). no que diz respeito ao homem, cujas três faculdades reproduzem, como se disse, a trindade divina, pedro lombardo afirma que a alma é-lhe transmitida d-irectamente por deus. É preciso distinguir no homem a sensibilidade, a razão e a vontade livre. a sensibilidade está ligada a todos os órgãos dos sentidos, e é receptiva e apetitiva. a razão é a mais alta faculdade cognoscitiva da natureza humana: dirige-se por um lado ao que é temporal; por outro ao que é eterno. o livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontade conjuntamente, o por isso o homem ~lhe o bem, se a graça divina o ajuda, ou o mal, se não existe a graça. diz,se livre em razão da vontade, que pode determinar-se por uma coisa ou por outra; diz-se arbítrio em virtude da razão, da qual representa a faculdade ou poder de discernir o bem do mal, escolhendo umas vezes um, outras vezes o outro (lb., 11, dist. 24,5). o livre arbítrio pressupõ e, portanto, a vontade e a razão e não pode pertencer aos animais que são privados de razão. a sua essência não está na capacidade de escolher entre o bem e o mal, mas antes na capacidade de escolher, sem necessidade ou coacção, o que a razão estabelece. para o homem o mal é duplo: o pecado e a pena do pecado. um e outra são negatividade e privação do bem: o pecado é privação num sentido activo, porque corrompe o bem o priva dele o homem; a pena é privação em sentido passivo porque é um efeito do pecado. deus não é de forma alguma causa do mal: prevê infalivelmente o mal, não como obra sua, mas como obra daqueles que o fazem e suportam. a previsão do

180 mal exclui o beneplácito da sua autoridade, enquanto que a previsão do bem, que é tudo aquilo que ele directamente opera no mundo, é sempre acompanhada de tal beneplácito (lb., 1, dist. 38, 4). condição primeira para que o homem escolha o bem é a graça divina, que é sempre gratuitamente concedida (gratis dada), independentemente dos méritos humanos: com efeito, não seria graça se não fosse gratuitamente dada. mas, enquanto que a misericórdia divina é sempre um acto de graça, a reprovação e a severidade de deus perante o homem são actos de justiça, determinados por aquilo que o homem mereceu. a reprovação divina consiste no não querer ser misericordioso, a severidade em não sê-lo e uma e outra pretendem tornar melhor o homem (1b., dis. 41, 1). as setuenças de pedro lombardo tomaram-se, em breve, um dos livros fundamentais da cultura filosófica medieval e foram objecto de numerosos comentários até ao fim do século xvi. nota bibliogrÁfica § 230. sobre o desenvolvimento das complicações de sentenças: robert, les écoles et 1'ense@gnement de ia théol. pendant ia première moitié du xiie sièc@e, paris, 1909, cap. 6; de ghellinck; le mouvement thélogique du xiie 8ièc1e. rruges-bruxelas-paris, 1948 (com bibli.). § 231. as obras de pedro lombardo, em p. l., 191.,-192.,. edição critica das sentenças, a cargo dos padres franciscanos de quaracchi, 1916, 2 v018.-protois, pierre lombard, paris, 1881; grabmann, die gesch. d. 8chol. methole, 11, 350-407; erspenberger, em "beitrãge", 111, 5, 1901. 181 x a filosofia Árabe § 232. filosofia árabe: características e origens entre as causas que mais eficazmente estimularam a actividade cultural do ocidente no século xii, estão as relações com o mundo oriental sobretudo com os Árabes. com efeito, o mundo árabe tinha já assimilado, nos séculos

precedentes, a herança da filosofia e da ciência gregas, que ainda permaneciam em grande parte, ignoradas pela cultura ocidental: esta conhecia delas apenas o que tinha conseguido filtrar-se através da obra dos autores latinos e dos padres da igreja. por outro lado, e sobretudo por isso, a filosofia árabe surgia aos olhos dos pensadores ocidentais como a própria manifestação da razão e, por isso, como uma força de libertação dos entraves postos pela tradição. adelardo de bath não hesitava em contrapor o que tinha aprendido " com os mestres árabes, orientado pela razão", ao "cabresto da autoridade" a que estavam submetidos os que seguiam a tradição (quaest. nat., 6). em terceiro lugar, a filosofia oci183 dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seus problemas. também a filosofia árabe é uma escolástica, isto é, uma tentativa para encontrar uma via de acesso racional à verdade revelada; e a verdade que se pretende alcançar, a que está contida no corão, tem muitas características semelhantes à verdade cristã. em suma, tal como a filosofia cristã, a escolástica árabe vive à custa da filosofia grega, especialmente do neoplatonismo e do aristotelismo. tudo isto explica a influência e a profunda penetração que o pensamento árabe exerceu na escolástica cristã no século xiii e xiv. todavia, em certos pontos, as duas escolásticas deviam revelar-se inconciliáveis. a síntese a que chegaram os maiores representantes da escolástica árabe, al farabi, avicena e averróis, surge-nos de acordo com o principio da necessidade. a necessidade domina o mundo divino e humano; tal é a convicção dos grandes filósofos árabes. e a isso não se furta o mundo das coisas finitas que é necessário não por si, mas pela sua dependência de deus: nem mesmo a vontade humana, dominada por uma cadeia causal que, através dos acontecimentos do mundo sublu. nar e dos movimentos da esfera terrestre, tem como motor o ser necessário. a escolástica latina, ainda que tenha recebido o aristotelismo através dos árabes, deverá no entanto tentar subtrai-lo ao princípio da necessidade e introduzir nele um princípio de contingência quepermitisse salvar, ao mesmo tempo, a liberdade criadora de deus e o livre arbítrio

do homem. a primeira actividade filosófica nasceu entre os Árabes da tentativa de interpretar certas crenças fundamentais do corão. assim a seita dos quadáries, afirmava o livre arbítrio do homem perante a vontade divina, enquanto que a dos jabaries defendia o fatalismo absoluto. no século 11 da fiégira 184 (732-832),. expande-se a seita dos motazeis ou dissidentes, que afirmavam enèrgicamente os direitos da razão na interpretação da verdade xeligiosa. foram eles que divulgaram o kalam. (ciência da palavra), ou seja, a teologia racional. a partir do califado de haroun al-raschid (785-809), os árabes começaram a familiarizar-se com a cultura grega. as traduções árabes das obras de aristóteles e dos outros autores gregos deveram-se, em geral, a sábios cristãos sírios ou caldeus, que viviam, em grande número, como médicos na corte dos califas. as obras de aristóteles foram traduzidas em grande parte das traduções sírias que, desde a época do imperador justiniano, tinham começado a difundir no oriente a cultura grega. entre as obras que exerceram mais profunda influência no pensamento árabe conta-se uma teologia atribuída a aristóteles, que é formada por uma centena de passagens tiradas das eneadis de plotino, e o liber de causis, que é a tradução dos elementos de teologia de próculo. além destes textos e das obras de aristóteles, contribuiram para formar o pensamento árabe, os comentáfios de alexandre de afrodísia, os diálogos de platão, especialmente a república e o timeu, e as obras científicas de euclides, ptolomeu e galeno. uma reacção da ortodoxia religiosa contra as novidades introduzidas pelos filósofos foi desenvolvida pelos mutakallimun (os que discutem). a afirmação fundamental dos mutakallimun é a novidade e discontinuidade do mundo, que toma necessária a existência de um deus criador. adoptam a doutrina atómica de dernócrito, que provàvelmente conhecem através da exposição de aristóteles. segundo eles, os átomos não têm nem quantidade nem extensão, e são criados por deus sempre que ele quer. as coisas resultam da agregação dos átomos e as suas qualidades não poderão durar dois 185

instantes, ou seja, dois átomos de tempo, se deus não interviesse continuamente na sua criação. quando deus deixa de criar, as coisas, as suas qualidades e os próprios átomos, deixam de existir. a discontinuidade toma necessária a acção incessante e criadora de deus o garante a liberdade na criação. a reforçar esta tese, os mutakallium negavam a relação de causalidade entre as coisas. as coisas criadas não têm, entre si, relações de causa e efeito. o fogo tende a afastar-se do centro da terra e a produzir calor; mas a razão não se nega a admitir que o fogo poderá mover-se em direcção ao centro e a produzir frio, ainda que permaneça fogo. os nexos causais não têm qualquer necessidade intxínseca; são estabelecidos únicamente por deus. mais que causa primeira, deus é causa agente e eficiente e produz directamente todos os efeitos do mundo criado. no princípio do século estas doutrinas dos mutakallium foram retomadas por uma outra seita, a dos asharies, assim chamados devido a abul-hassan aiashari (873-935), de bassora. os asharies exageram ainda a doutrina da criação directa por parte de deus, afirmando que todas as qualidades acidentais nascem e desaparecem únicamente por um acto de criação da vontade divina. assim, por exemplo, quando um homem escreve, deus cria quatro acidentes que não estão ligados entre si por nenhum nexo causal: a verdade de mover a pena, a faculdade de a fazer mover, o movimento da mão, o movimento da pena. o movimento filosófico determinado pelas posições destas seitas vem a ser substituído a seguir pela acção de verdadeiras e próprias personallidades filosóficas que, em parte, utilizam e continuam as doutrinas das próprias seitas, e em parte se opõem a elas na tentativa de se manterem ficis à doutrina dos filósofos gregos e especialmente a aristóteles. 186 § 233. al.xindi a,i-,kindi é o primeiro dos filósofos árabes que se relaciona explicitamente com a tradição grega. viveu em bagdad, e devia ter falecido em 873. escreveu um grande número de obras de filosofia, matemática, astronomia, medicina, política e música. foi um dos autores que o califa ai-mamún encarregou de

traduzir as obras de aristóteles e de outros pensadores gregos. os Árabes deram-lhe o título de filósofo por execelência. foi autor de numerosos comentários aristotélicos. gerardo de cremona traduz no século x11 um texto seu com o título verbum jacob al kindi de intentione antiquorum in ratione. um outro texto foi traduzido com o título de intellectu. a parte do comentário aristotélico de ai-kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que diz respeito à doutrina do intelecto. al-kindi teve a pretensão de expor as opiniões de platão e aristóteles, mas, na verdade, segue de perto a interpretação de alexandre de afrodísia (§ 111). enumera quatro intelectos: "0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potência na alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; o quarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, aristóteles assimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e em comunicação com ela". destes quatro intelectos os três primeiros correspondem respectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós de alexandre; o quarto é a alma sensitiva. em ai-kindi surge pela primeira vez, de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribui directamente ao intelecto de deus a iniciativa do processo de conhecer do homem. "a alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a ser inteligente de modo efec187 fivo pela acção do intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este. quando uma forma inteli1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser uma só e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que à conhecido. mas o intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para a converter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não se identifica com o que é conhecido. em relação ao intelecto primeiro, portanto, o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; em relação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são a mesma coisa". está implícita nesta doutrina de ai-kindi a separação entre o intelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios do homem.

§ 234. al farabi ai farabi, assim chamado por ser natural de farab e que foi célebre entre os muçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemático o médico, continua a tradição enciclopédica de ai-kindi. all farabi ensinou em bagdad e morreu em dezembro do ano de 950. escreveu uma obra sobre as ciências, de scientiis, um texto sobre o intelecto, de intelectu, e ainda outras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamento aristotélico. em ai farabi, encontra-se pela primeira vez a distinção entre a essência e a existência e que iria ter uma tão grande importância na filosofia de s. tomás. averróis faz temontar esta distinção aos mutakallimun, que teriam sido os primeiros a distinguir o ser em possível e necessário e teriam afirmado que para se pensar num ser possível há que pressupôr a existência de um agente que o 188 faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que o agente do mundo seja um ser necessário (destr. destruct. algazelis, 1, 4, 5). na realidade, a primeira origem desta distinção está no liber de causis que, como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulação árabe. o liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma, ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro ser pela via da criação; a forma das inteligências subordinadas pela via das impressões. mas no liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, por isso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamento árabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada como matéria ou possib',lidade e a existência como acto. segundo ai farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. ao afirmarse que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncia nenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa de uma causa. uma coisa possível não pode passar ao número das coisas necessárias, senão através da acção de um ser nocessário. pelo contrário, se

afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda, pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. o ser necessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância: escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma. "É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeito pensante. nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente e vivente. tem actividade perfeita e perfeita vontade. goza de uma imensa felicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiro amado". (dieterici, alfarabis philos. abhandiungen, p. 93-96). 189 a distinção entre o ser necessário e o ser possível será fundamental para todo o pensamento árabe e também para a escolástica latina posterior. do ser necessário, e precisamente do acto com que o ser necessário se pensa a si próprio (segundo o esquema de plotino), nascem, afirma ai farabi, os vários intelectos, que se relacionam entre si como a matéria e a forma, a potência e o acto. do ser necessário enquanto se conhece a si próprio, nasce o primeiro intelecto, que por sua vez conhece o ser necessário e a si próprio. e na medida em que conhece o ser necessário, produz um segundo intelecto; no entanto, enquanto se conhece a si próprio, produz o primeiro céu na sua matéria e na sua forma, que é a alma. do segundo intelecto dimana, do mesmo modo, um outro intelecto e um outro céu que se situa abaixo do primeiro. e assim, de cada intelecto nasce sempre um intelecto o um céu, até se chegar a um intelecto privado de matéria e que por si não pode originar a formação de uma nova esfera celeste. este último intelecto é a causa da existência das almas humanas e, em colaboração com as esferas celestes, é a causa dos quatro elementos que compõem o mundo sublunar. trata-se do intelecto agente, do qual dependem os outros três intelectos (própriamente humanos): em potência, em acto e adquirido, cuja distinção ai farabi retoma de ai kindi. o princípio eficiente de todo o conhecimento humano é o intelecto agente. À alma humana pertence o intelecto em potência, que pela acção do intelecto activo, se transforma em intelecto em acto e conhece as formas inteligíveis das coisas, formas que se identificam com ele. a elaboração destas formas

conceptuais, dirigindo-se a noções mais gerais e mais elevadas é obra do intelecto adquirido. deste modo o intelecto adquirido é forma do intelecto em acto, que, por sua vez, é forma do intelecto em potência (lb., p. 71-72). o total meranismo do conhecimento vem assim a ser dependente 190 da acção do intelecto agente. a esta acção ai farabi faz ligar também a qualidade mais elevada que o homem pode alcançar, a sapiência e a profecia. com efeito, quando o intelecto agente consegue transportar o intelecto potencial de um homem ao seu grau mais alto, que é o intelecto adquirido, então o homem torna-se num sábio-filósofo; mas quando o próprio intelecto agente actua, não sobre o intelecto, mas sobre as faculdades representativas de um homem, este homem pode transformar-se num profeta, num iluminado, num vidente e esperar ser chefe na cidade ideal; porque nenhum está em posição de o dirigir mas ele está em posição de dirigir todos (lb., p. 59). de tal modo o intelecto agente é considerado por ai farabi que o considera um dom da iluminação divina, fazendo do homem um profeta ou um chefe; e o mecanismo atribuido ao intelecto é utilizado também para uma explicação racional da revelação religiosa original. mas o intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do ser necessário: e assim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. a necessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que o ser necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própria essência e não separa a necessidade (1b., p. 96). a necessidade reflecte-se portanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surge determinada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial a causa absoluta. o ser necessário. § 235. avicena: a metafísica ibri-sina, que os escolásticos latinos cognominaram de avicena, era persa de origem e nasceu em afshana (perto de bokara) em 980. dotado de inteligência precoce, aos 17 anos era já famoso como 191 médico e teve a sorte de curar o príncipe de bokara, que o colmou de

favores e pôs à sua disposição a imensa biblioteca do seu palácio. mais tarde, avicena foi para sorsan, onde abriu uma escola pública e deu início ao seu célebre cânone de medicina. obrigado a abandonar a cidade em virtude das desordens que surgiram, dirigiu-se para hamadan, onde foi designado visir do príncipe dessa localidade. a sua actívidade como tal quase o levou à morte, porque as tropas descontentes com ele, haviam-no prendido e pedido a sua morte. no entanto, o príncipe salvoulhe a vida e manteve-o junto de si como médico. avicena compõe então várias partes da sua grande obra sobre a cura (ai scifà). depois da morte do seu protector, partiu para ispahan, onde se torna secretário do príncipe, que acompanhou frequentemente nas suas expedições. estas viagens contribuiram para perigar a sua saúde, já de si comprometida por uma vida agitada e laboriosa: avicena amava a vida, e dedicava-se de bom grado ao amor e à bebida. tendo acompanhado o seu príncipe numa expedição contra hamadan, caiu enfermo e morreu naquela cidade em 1307, com a idade de 57 anos. a wa de 1bn-sina, escrita pelo seu discípulo sorsanus foi traduzida para o latim e imprimida no início de diversas edições das suas obras. a actividade de avicena estende-se a todos os campos do saber. o seu cânone de medicina foi a obra clássica da medicina medieval. as obras que interessam à filosofia são o livro da cura (ai scífà) e o livro da libertação (ainajah): o primeiro era uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas em dezoito volumes; o segundo, dividido em três partes, era um resumo do primeiro. as edições latinas das obras de avicena são traduções de uma ou de outra parte das suas obras principais. no fim do século xii gerardo de cremona traduz o cânone de medicina; domingo gundisalvo e o judeu avendeath 192 traduzem a lógica, uma parte da física, a metafisica, o de caelo e muitos dos escritos científicos. rápidamente, entre o fim do século x11 o o princípio do século xiii, o ocidente cristão vem a conhecer, através destas traduções de avicena, quase toda a obra de aristóteles, de que apenas conhecia a lógica. mas com tudo isto, o ocidente latino conhece bem pouco a obra de avicena. com efeito, a sua obra é vastíssima (provàvelmente mais de 250 obras); e o reconhecimento da sua importância, quer pela filosofia oriental, como pela ocidental e ainda pela ciência (e especialmente pela biologia e

medicina), levaram os estudiosos modernos a publicar e a traduzir algumas partes inéditas. entre estas têm importância para a filosofia: tratados místicos; epístola das definições, livro de ciência; livro das directivas e das notas; lógica oriental, que é parte de uma grande obra perdida, juizo imparcial entre os orientais e os ocidentais. o título desta última obra levou a pensar num ramo teosófico ou místico da filosofia de avicena em contraste com as directrizes filosóficas e racionalistas das obras que conhecemos. na realidade não existe qualquer base para uma tal laipótese: que é desmentida, não só pelos fragmentos das suas obras que temos sobre a lógica, como também pelo conteúdo do livro das directivas que pertence aos últimos anos de avicena e que não testemunha qualquer mudança sensível nas conclusões da sua filosofia. as fontes desta filosofia são aristóteles, plotino (que avicena, contudo, não distingue do primeiro e a que atribui a theologia, e uma centena de passagens das eneadis) e ai farabi; mas é sobretudo dos estoicos que se aproxima o seu conceito do mundo como o domínio de uma força racional que o orienta com infalível necessidade. avicena descreve em termos nitidamente escolásticos o objectivo da filosofia: o de demonstrar e esclarecer racionalmente a verdade revelada. os fun193 dadores da fé ensinaram e transmitiram a sua doutrina por virtude da inspiração divina. os filósofos acrescentaram à doutrina transmitida o discurso e as considerações demonstrativas. os fundadores da fé não distinguiram nem esclareceram o conteúdo das suas doutrinas, definiram apenas os princípios e os fundamentos: cabe aos filósofos expôr e elucidar claramente o que está obscuro e oculto (de defin. et quaest., fol. 138, p. 1). mas se a filosofia vem acrescentar à tradição religiosa as considerações demonstrativas, por outro lado a tradição religiosa, representada pelos profetas, estende o domínio da verdade humana para lá dos limites que a demonstração necessária pode alcançar. com efeito, é ela que permite afirmar com certeza a tealídade das coisas que o intelecto não pode demonstrar ou apenas pode reconhecer a possibilidade (de divis scient., fol. 144, p. 2). o princípio da especulação de avícena é, tal como o de ai farabi, a necessidade do ser. todo o ser enquanto tal é necessário. "se uma coisa

não é necessária em irelação a si própria, afirma avicena, necessita que seja possível em relação a si própria e necessária em relação a uma coisa diferente (met., 11, 2, 3). a propriedade essencial do que é possível é precisamente esta: a de exigir necessàriamente uma outra coisa que a faça existir em acto. o que é possível perinanece sempre possível em relação a si próprio, mas pode acontecer sê-lo de modo necessário em virtude de uma coisa diversa (1b., 11, 2, 3). a existência em acto é portanto necessária. o possível mantém-se como tal até ter existência em acto: quando recebe a existência em acto, recebe ao mesmo tempo a necessidade. isto implica, em primeiro lugar, que todo o possível exige e ff-eclama o ser necessário como causa da sua existência actual. e, em segundo lugar, implica que o ser necessário exista por si, em virtude da sua própria essência; 194 sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos, sem deficiências e sem matéria. no livro das directívas, avicena insiste na superioridade desta prova de deus extraída da simples consideração do ser: "quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de si enquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a ter existência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., p. 371-372). se o ser necessário é absolutamente simples, o que é possível e existe apenas em virtude do ser necessário já não é simples e implica em si dois elementos: aquele pelo qual é possível em relação a si mesmo, e aquele pelo qual é necessário em relação a outra coisa. a possibilidade e a necessidade conjugam-se na formação da sua natureza respectivamente como a matéria e a forma. com efeito, avicena interpreta a distinção aristotélica de matéria e forma como distinção entre o possível e o necessário: a matéria é possibilidade, a forma, como existência em acto, é necessidade. o que não é necessário por si, ner-essáriamente é formado por matéria e por acto, por isso não é simples. o ser que é necessário por si é, no entanto, absolutamente simples, mesmo privado de possibilidade ou de matéria (met., 11, 1, 3). este conceito do ser necessário (necesse esse) é o ponto de referência

de toda a especulação de avicena. em primeiro lugar, ele é fundamento da distinção real entre a essência e a existência que viria a tornair-se um dos maiores temas especulativos da escolástica cristã no século xiii e especialmente do tomismo. com efeito, o ser necessário é o ser que existe por essência ou cuja essência implica a existência; em consequência, o ser que não existe em virtude da própria essência existe apenas como efeito do ser necessário. esta distinção será o fundamento do princípio da analogicidade do ser, fundamental para o tomismo. em segundo lugar, o ser 195 necessário introduz em todos os ramos e formas da existência a sua própria necessidade. toda a contingência ou possibilidade real fica excluída uma vez que o possível não pode passar ao ser sem ser através da acção do necessário; mas com esta acção toma-se ele próprio necessário na sua existência (ainda que o não seja na sua essência). esta eliminação radical da contingência do ser (implica, além do mais, a necessidade da própria criação divina) é o ponto fundamental em que a doutrina de avicena surgia contrastante das exigências da escolástica cristã, interessada em manter a liberdade da criação e na criação. convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todo o possível da realidade, avicenaexpõe um conceito do possível bastante mais preciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por aristóteles. avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. no primeiro sentido possível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível é impossível e portanto o próprio necessário é possível. no segundo sentido, que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e, do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem o impossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (livre des directives, p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido o possível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. de aristóteles (§ 85). a absoluta simplicidade do ser necessário consente em avicena que seja entendido como absoluta unidade, e com maior razão com a própria unidade no

sentido neo-platónico. avicena, tal como acontecia já com ai farabi, liga o conceito platónico do uno ao conceito aristotélico do acto puro; e ao mesmo tempo identifica o uno e o intelecto, que os neo-platónicos distinguiam. "como princípio de toda a existência, o uno conhece por si as coisas de que é 196 princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na sua singularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas à geração e à corrupção. estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s das suas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quando conhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectiva mutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê ncia individual" (1b., viii, 6). a derivação de todos os seres do ser necessário não é uma criação intencional. não subsiste uma intenção criadora na causa primeira: esta intenção implicaria uma multiplicidade de elementos na natureza do uno, que ao invés é siraplicíssimo. seria necessário que a ciência e a bondade da causa primeira a coagissem a ter essa intenção ou que a mesma lhe fosse sugerida pela consideração de uma utilidade ou de uma vantagem que lhe poderia advir; e tudo isto é absurdo. não existe em deus nem desejo, nem necessidade, nem intenção: deus é causa em virtude da sua própria essência., e aquilo de que é causa, o mundo, procede necessàriamente da essência divina. o mundo é assim tão eterno como deus. a derivação do mundo provemente de deus verífica-se (como ail farabi havia dito, reproduzindo plotino) através do pensamento isto é, através da ciência que deus tem de si, da autoreflexão divina. "a causa primeira é uma inteligência única, que se conhece a si própria: daí o conhecer necessáriamente tudo o que de si resulta; sabe que a existência de todos os seres surge de si, que ela é principio e que não há nada na sua essência que impeça às coisas de derivarem de si. a sua essência sabe pois que a sua própria perfeição e a sua própria excelência consistem nisto: que o bem deriva dela" (lb., ix, 4). também a providência, ou seja o governo do mundo, se exercita do mesmo modo: deus conhece a ordem,segundo a qual o bem 197

se distribui no mundo e por este simples conhecimento o próprio bem deriva d'ele de tal forma que d'ele deriva a ordem mais perfeita possível (ib., w, 6). avicena é verdadeiramente o filósofo da necessidade absoluta. para ele, nada escapa ao princípio de que todo o ser é necessário: nem mesmo a vontade humana. as decisões da nossa vontade devem ter uma causa, como tudo o que passa da simples possibilidade ao ser. mas a série das causas que o produzem remonta mais além da própria alma, remonta aos acontecimentos terrestres. ora os aconos celeslecimentos terrestres são determinados pel tes; portanto a série de todos os efeitos depende necessàriamente da necessidade da vontade divina. "se fosse possível a um homem conhecer, afirma avicena, todas as coisas que acontecem no céu e na terra na sua natureza, conheceria todos os acontecimentos futuros e também o modo como aconteceriam" (metaf., x, 1). donde se deduz a justificação das predicções astrológicas. É claro que o astrólogo não pode pela simples observação do movimento dos corpos celestes obter predicções infalíveis, mas isso deve-se à multiplicidade das circunstânoias de que depende o acontecimento futuro, muitas das quais se subtraem às suas considerações, não se tratando portanto de falsidade ou insuficiência da ciência astrológica. § 236. avicena: a antropologia o que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados é o poder de conhecer as formas inteligíveis. este poder é a alma racional a que se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto em potência ou intelecto possível. as formas inteligíveis formam a alma de três modos distintos. em primeiro lugar, mediante emanação 198 ou infusão divina, sem qualquer ensinamento ou qualquer aquisição de origem sensível: é deste modo que ao homem é dado o conhecimento dos primeiros princípios. em segundo lugar, por meio do raciocínio discursivo e do pensamento demonstrativo: deste modo a alma conhece as espécies inteligíveis que são objecto da consideração lógica. em terceiro lugar, e através dos sentidos, com a ajuda de uma capacidade natural e inata. mediante as espécies

inteligíveis que assim advêm à alma, o intelecto em potência transforma-se em intelecto em acto, idêntico com as próprias espécies, de tal modo que é ao mesmo tempo sujeito e objecto de conhecimento (intelligens et intellectum). a inteligência em potência, a simples substância intelectual, encontrase apenas nas crianças, que estão ainda privadas de toda a forma ou espécie inteligível. em seguida, sem a ajuda de qualquer ciência ou de qualquer meditação, obtém-se o conhecimento dos primeiros princípios. tais princípios são as verdades imediatamente evidentes, a que se dá o assentimento de forma imediata como, por exemplo "0 todo é maior que a parte" ou "dois contrários não podem simultâneamente pertencer a uma única coisa". não podem derivar esses princípios da experiência sensível: não podendo portanto serem fundamento de um juízo necessário, porque não excluem o juizo contrário àquele que sugerem. estes princípios devem ser portanto o produto de uma imanação divina à qual a alma se encontra unida continuamente ou de forma interrupta. uma vez que, em virtude de tal imanação, a alma adquire o conhecimento dos primeiros princípios, o intelecto está já em acto e a sua actividade pode enriquecer o património inteligível que lhe foi subrainistrado pelo alto. intervém então a actividade discursiva do intelecto, que procede por composição e divisão, isto é, por análise e síntese, e este exercício é determinado pelos primeiros princípios que a alma 199 possui. as outras formas inteligíveis ou conhecimentos racionais são adquiridos pela alma por via de abstracção da experiência sensível. a abstracção e a actividade discursiva que compõem e dividem, são pois os dois meios fundamentais pelos quais a alma humana adquire e enriquece os seus conhecimentos racionais e constituem o intelecto adquirido. existe uma via directa de aquisição, mas é excepcional e reservada a poucos: "em alguns homens a vigília prolongada e uma certa união íntima com o intelecto universal (isto é, o intelecto em acto de deus) conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional destes homens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou do socorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. a esta disposição dá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada. mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aos apóstolos, nos quais se encontra a

salvação" (de an., 8, fol., 24). mas isto é sem dúvida uma excepção: para os outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem é limitada e não constante porque o corpo o impede. desta situação avicena extraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " quando a alma se encontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao ser que a aperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. a união continua com a realidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando a coberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nem mesmo quando se afasta ou separa dessa mesma realidade. por conseguinte a alma permanece depois da morte sempre imortal, na dependência da substância superior que se chama intelecto universal e que os doutores das diferentes religiões designam por sapiência de deus" (de an., 10, fol 34). 200 maimõnidas deste modo, avicena relaciona a imortalidade, tal como a santidade e a sabedoria, com a acção do intelecto divino, isto é, com o ser necessário. mas uma vez que o ser neccssário é também o bem, a felicidade consiste na contemplação do ser necessário, ou seja, na ciencia deste ser, que é proporcionada pela filosofia. através da filosofia o homem aproxima-se do bem supremo que é também a sua origem; e do bem supremo aproximam-se igualmente todas as coisas criadas, cada uma de acordo com o modo ou via que lhe são próprios. o amor de que avicena fala nos tratados místicos é portanto, e de harmonia com as concepções aristotél;cas a tendência das coisas para o bem, para o fim supremo, tendência que garante a ordem e a perfeição de tudo. no homem e sobretudo no sábio, este amor é desejo de contemplação do ser necessário. avicena insiste em sublinhar a superioridade do sábio sobre os outros homens: o sábio actwa desinteressadamente com o único objectivo de se ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espécie de troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois a recompensa na outra (livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485487). a via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se

opõem todas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo avicena, não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524). § 237. al gazali em oposição ao espírito filosófico de avicena surge-nos o espírito xeligioso de ai gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. ai gazali, chainado pelos escolásticos latinos algazel, nasceu em tous do khorasan, em 1059. ensinou, em primeiro 201 lugar no colégio de bagdad, depois em damasco, jerusalém e alexandria. mais tarde retirou-se para tous, sua cidade natal, onde se dedicou a vida contemplativa dos súfi (místicos) e compõe grande número de escritos com o objectivo de estabelecer a superioridade do islamismo sobre todas as outras religiões e sobre a própria filosofia. o mais célebre destes textos teológicos, intitula-se, restauração das ciências religiosas, obra de teologia e de moral dividida em quatro partes que tratavam das cerimónias religiosas, das prescrições relativas às diversas circunstâncias da vida, dos vícios e das virtudes. tendo abandonado o seu retiro, ai gazali retoma a direcção do colégio de bao,,dad, mas nos últimos tempos da sua vida, regressa novamente a tous, onde funda um mosteiro para os súfi e passa o resto dos seus dias na contemplação e nas práticas religiosas. morre em 1111. em meados do século xii, domingo gundisalvo traduz duas obras de ai gazali: as tendências dos filósofos e a destruição dos filósofos. na primeira, ai gazali não faz mais que expor em síntese os resultados da filosofia do seu tempo, principalmente de ai farabi e de avicena. neste livro, evita fazer críticas, de qualquer género, e limita-se a fazer um inventápio das doutrinas destes filósofos. na segunda obra, pelo contrário, propõe-se apresentar certos raciocínios que se opõem à argumentação dos filósofos e que pretendem demonstrar a nulidade destes. no final desta segunda obra, ai gazali mostrase essencialmente negativo. na parte positiva do seu sistema remete para a sua obra sobre a restauração das ciências religiosas. a única filosofia que ai gazali toma em consideração, na sua destruição dos

filósofos, é a de avicena. e compreende-se. a doutrina de avicena é uma filosofia da necessidade: deus é o próprio ser necessário, e também o mundo como 202 realidade em acto é necessário em relação a deus. ai gazali, pelo contrário, ao ligar-se à tradição dos mutalcallimun, dispõe-se a afirmar enérgicamente a liberdade da acção divina, pressuposto de toda a atitude religiosa. as suas críticas devem portanto dirigir-se no sentido de desmantelar as razões dessa ordem necessária, a que avicena tinha reduzido tanto deus como o mundo. com efeito, ai gazali combate, em primeiro lugar, o conceito de necessidade no próprio ser necessário, isto é, em deus. se este ser fosse, como avicena afirma, absoluta necessidade, dele não poderia derivar a multiplicidade das emanações e das coisas criadas. segundo avicena, tudo é produto da causa primei,ra, mediante o simples conhecimento que a mesma tem de si. mas conhecendo-se a si própria, conhece também todas as coisas criadas, o que significa que contém em si essas mesmas coisas e que, portanto, não é assim tão simples e necessária como se afirma. o mundo foi criado por um-a vontade eterna que tinha decretado a existência e que tinha atribuído a tal existência limites definidos no tempo. segundo avicena, isso implicaria uma alteração na vontade divina, alteração que não pode conciliar-se com a sua necessidade eterna. mas, para ai gazali, esta alteração não oferece apoio a qualquer objecção, uma vez que ele não vê em deus o ser necessário. a crítica de ai gazali à necessidade própria da essência divina, à necessidade e também à eternidade do mundo, culmina com a crítica ao próprio conceito de necessidade, expresso no piincípio causal. não parece que seja necessário existir entre as coisas que acontecem, isoladamente, uma relação causal. causa e efeito são perfeitamente distintos uma do outro e não estão ligados entre si quanto às respectivas existências. a relação existente entre o fogo e a combustão de um objecto qualquer, não 203 é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de deus. "0 fogo é algo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. porque razão haveríamos nós de o considerar activo? os fi-lósofos não têm outra

razão para afirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisa do fogo se verifica a combustão. mas esta evidência apenas se refere ao facto de que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha do fogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (destr. destruct., 1, dub. 3). esta outra causa, a única verdadeira causa, é deus. mas a acção de deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. a possibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida. a figura de ai gazali representa a reacção da teologia muçulmana à filosofia da necessidade defendida por ai farabi e por avicena. a parte positiva da doutrina de ai gazali é a que trata da mística: ai gazali atribui o máximo valor à prática da religião. essa a razão porque as suas obras fundamentais são as de moral-para ele "a ciência é a árvore, mas a prática é o fruto". § 238. ibn-badja ibn-badja, que os escolásticos latinos cognominaram avempace é o primeiro filósofo famoso entre os Árabes de espanha. nasceu em saragoça no final do século x1; em 1118 encontrava-se em sevilha. esteve também em granada e mais tarde dirigiu-se a África onde alcançou grande consideração junto da corte dos almorá vidas. morreu relativamente novo em fez, no ano de 1138. alguns autores árabes relatam que ele foi envenenado por médicos que o invejavam. avempace escreveu numerosas obras de ciência e de filosofia. averróis cita 204 dele uma carta sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia parte do seu escrito sobre a alma e uma carta de despedida (epistola expeditionis). a sua obra principal é o regime do sol;tário, hoje perdida mas da qual existe um resumo elaborado por um filósofo do século xiv, moisés de narbona, incluído no seu comentário à obra de ibrt-tofail. no regime do solitário, avempace propunha-se dar a entender o modo como o homem pode chegar a identificar-se com o intelecto em acto, mediante o sucessivo desabrochar das suas faculdades. avompace considerava o homem

isolado da sociedade, ou seja, livre dos seus vícios, mas participando das suas virtudes. o objectivo final do solitário é o de conseguir alcançar as formas inteligíveis isto é, a verdade especulativa; e as acções que correspondem a este objectivo integram-se no domínio do intelecto. esse objectivo é atingi-do, quando o homem consegue ser intelecto adquirido ou imanado. este intelecto consiste na consideração das formas inteligíveis em si, isto é, separadamente da matéria a que estão ligadas nas coisas terrenas. o intelecto adquirido é o único que pode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo mais alto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de deus. na obra de avempace o problema aristotélico do intelecto passa a ser uma via de elevação e de purificação humana e deste modo se transforma de problema de especulação lógica e metafísica em problema religioso. § 239. ibn-tofail ibn-tofail ou abubekr nasceu à volta de 1100 em uadi-ash (guadix), na andaluzia, e foi célebre como médico, matemático, filósofo e poeta. minis205 tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e, entre eles, averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigir uma análise clara exacional de aristóteles. abubekr morreu em 1185, em marrocos. tal como aconteceu com lbn-badja, também ele levantou o problema de encontrar a via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal. mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema um verdadeiro romance filosófico intitulado o vivente, filho do vigilante (hajjjaqzân). lbn-tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilha desabitada do equador. a criança nasce da terra e uma gazela encarregise de alimentá-la. com o seu leite. os diversos períodos da sua -idade são assinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. partindo do conhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta da unidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a

primeira a da espécie. debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na sua fflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, hajj chega ao conhecimento de um ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe em movimento. o regresso a este ser supremo torna-se então o objectivo da sua vida. pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se no pensamento, para poder identificar-se com ele. no grau mais elevado da contemplação descobre o reflexo de deus no universo e a proximidade da esfera celeste. finalmente, no êxtase, vê a deus dele dimanando diversas esferas celestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos, outros impuros e condenados. para demonstrar o acordo entre a sua doutrina e a crença da religião islâmica, ibri-tofail imagina o seu protagonista encontrando-se, aos cinquenta 206 anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente consegue chegar às mesmas conclusões que ele. os dois juntam-se para criar uma comunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade de comunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para o isolamento, para viverem uma vida contemplativa. o romance de ibn-tofail exprime uma posição que é comum a todos os filósofos árabes: a de que a filosofia conduz a um resultado idêntico ao da religião, mas por uma outra via, que é a da busca individual e da demonstração. além disso, a obra de ibri-tofail é também como que um resumo das doutrinas correntes na filosofia árabe sobre o intelecto. o verdadeiro agente do conhecimento humano é o intelecto universal, a última emanação do ser supremo. o @ntelecto humano ou potencial está dominado e dirigido por aquele. § 240. averróis: vida e obra ibn-ruslid ou averróis, o mais célebre dos comentadores árabes de aristóteles, nasceu em córdova em 1126. o avô e o pai eram jurisconsultos e juízes, e à mesma carreira estava destinado averróis, que no entanto se dedicou com grande entusiasmo à medicina, à matemática e à filosofia. sabemos já como ele foi apresentado por ibri-tofail à corte do rei yussuf. este rei confiou-lhe numerosos cargos políticos que o obrigaram a viajar frequentemente pela espanha e por marrocos. o sucessor de yussuf, almansur,

protegeu igualmente averróis. mas quando este foi acusado por suspo*,ta de heresia e, ial como muitos outros sábios árabes da época, de promover o estudo da ciência e da filosofia dos gregos, em detrimento da religião 207 muçulmana, almansur desterrou-o para a cidade de el-isana (lucena), perto de córdova, proíbindo-o dela sair. averróis teve então de suportar os insultos dos fanáticos. ele próprio nos conta que uma vez, indo com o filho à mesquita para assistir à oração da tarde, a turba o expulsou do lugar sagrado. mais tarde, foi enviado para marrocos e não voltou mais a espanha. morreu em 10 de dezembro de 1198, com a idade de 73 anos. por ordem de almansur, as suas obras foram todas destruídas e o ocidente teve delas conhecimento através de versões hebraicas. entre as obras de averróis podemos destacar, em primeiro lugar, os comentários a aristóteles e que se distinguem em grandes comentários, comentários médios e paráfrases ou análises. pelas referências contidas nestas obras podemos supor que averróis tenha redigido os comentários médios primeiro que os grandes e as paráfrases e análises contemporâneamente ou quase com os comentários médios. além destes comentários, averróis escreveu: 1.` a destruição da destruição dos filósofos de algazali e que é uma refutação da obra de algazali; 2. questões ou dissertações sobre diversas passagens do organon de aristóteles; 3. dissertações físicas ou pequenos tratados sobre diversas questões da física de aristóteles; 4. duas dissertações sobre a união do intelecto separado com o homem; 5.o uma dissertação sobre o problema de se saber "se é possível que o intelecto (intelecto material ou hílico) compreenda as formas separadas ou abstractas", 6.o uma refutação do texto de avicena sobre a divisão dos seres; 7.o um tratado sobre o acordo da religião com a filosofia; 8. um tratado sobre o verdadeiro significado dos dogmas da religião, escrito em sevilha em 1179. 208 § 241. averróis: filosofia e religiÃo a intenção declarada de averróis não é a de construir um sistema próprio, mas apenas a de esclarecer o significado autêntico da filosofia de aristóteles, que para ele é a expressão máxima do pensamento humano. "aristóteles, afirma

avicena, é a regra e o exemplo criados pela natureza para demonstrar a máxima perfeição humana. a doutrina de aristóteles é a verdade máxima, porque a sua inteligência reflecte o ponto mais alto do intelecto humano. e bem se pode afirmar que foi criado e oferecido aos homens pela divina providência, para que os homens pudessem saber tudo o que lhes é dado sabem (de an., 111, 14). com tais considerações sobre o valor de aristóteles e sobre a verdade da sua doutrina, averróis evidentemente não pretende ter a presunção de ultrapassar o seu mestre ou de se afastar do caminho por ele traçado. no entanto, na sua obra de ilustração e de wmentários aos textos aristotélicos, perpassam os resultados fundamentais de toda a especulação árabe anterior; ele próprio se move dentro do clima dessa especulação, que é substancialmente uma interpretação neoplatonizante do oristotelismo. não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, averróis não concebe a investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. em primeiro lugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "na verdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar o estudo de tudo o que é, não se poderá render a deus um culto melhor do que aquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento do próprio deus em toda a sua realidade. esta é, aos olhos de deus, a acção mais nobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de 209 acusar de erro e de presunção vã aquele que se consagra a esse culto, que é o mais nobre de todos, o que adora deus com esta religião, que é a melhor de todas" (muiik, mélanges, p. 456). por outro lado, no entanto, a investigação filosófica não pode ser de todos, a religião do filósofo não pode ser a religíão do vulgo. tal como certos alimentos são bons para certos animais e maus para outros, também os processos dos filósofos que são utilíssimos nas suas investigações são, no entanto, funestos para os não-filósofos. se os filósofos viessem demonstrar junto do vulgo as suas dúvidas e as suas demonstrações, isso poderia dar aso aos incompetentes de levantar ainda mais dúvidas e argumentos sofísticos e de caírem em erro. por isso, a religião que

é feita para a maioria, segue e deve seguir outra via, uma via "simples e narrativa" que ilumine e dirija a acção. este é o verdadeiro domínio da razão. À filosofia cabe o mundo da especulação, e à rehgião o mundo da acção. quem nega, ou simplesmente duvida, dos princípios enunciados pela tradição religiosa, tornaria impossível o agir humano, do mesmo modo que tornaria impossível a ciência aquele que negasse ou duvidasse dos princípios básicos em que ela se fundamenta (destr. destruct., disp. 6, fol. 56, 79). averrÓis pretende nos seus livros "falar livremente com os autênticos filósofos" e não opor-se aos ensi-namentos da tradição religiosa. não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que os escolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. para ele não existe uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. a verdade é uma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crente recebe-a da tradição religiosa (a lei do corão) numa forma simples e narrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. mas não existe um contraste entre as duas vias, nem dua210 lismo na verdade. averróis escreveu, como já dissémos, dois tratados que se destinavam a demonstrar o acordo que existe entre a verdade religiosa e a filosófica. todos os que são estranhos à especulação devem aproximar-se da forma que a verdade recebeu por obra da tradição religiosa, para que assim possam ser iluminados e guiados nas suas acções. mas para os filósofos, ao invés, a verdade adquire o aspecto severo da demonstração necessária e passa a ser o termo de uma investigação que é a melhor e mais elevada de todas as acções humanas. § 242. averróis: a doutrina do intelecto a doutrina que os escolásticos latinos recolheram como sendo típica do averroísmo é a do intelecto. com ela, averróis, distingue-se das interpretações que dominam a filosofia árabe de al kindi a ibrí-tofail. para estes filósofos, o intelecto agente é a última emanação divina e é por isso uma

substância separada de toda a matéria e da própria alma humana, pertencendo ao número das substâncias divinas. ointelecto potencial ou material (hílico) é, pelo contrário, para eles, o intelecto prè@prÍamente humano, a parte racional da alma humana. este último, passa a acto por obra do primeiro, tornando-se assim intelecto em acto; por sua vez, o intelecto em acto, aperfeiçoando-se com o exercício do raciocínio discursivo, transformase em intelecto adquirido (adeptus). a esta doutrina que se encontra exposta e defendida, com poucas variantes, nos filósofos tratados atrás, averróis vem trazer uma modificação substancial: o intelecto material ou hílico não é a alma humana. e não é pela mesma razão porque não o é o intelecto activo: uma vez que as formas inteligíveis que são o seu objecto 211 potencial são universais, eternas, indestrutíveis e não o seriam se seguissem a sorte da alma humana, que é diferente nos diferentes indivíduos; que algumas vezes pensa e outras não; e que pensa diferentemente em cada indivíduo. por esses mesmos motivos também o intelecto adquirido ou especulativo (adeptus, speculativus) que resulta da acção do intelecto agente sobre o íntelecto material ou possível é uno em todos os homens e separado da alma humana. mas este último pode ter a participação da alma humana na sua multiplicidade e mutabilidade; e essa participação pode ter a forma de um hábito, de uma disposição, ou de uma preparação (habitus, dispositio, preparatio) e que constituem a perfeição da própria alma: uma preparação que segue os acontecimentos, desde o nascimento à morte, da própria alma, porque pertence à sua capacidade imaginativa (que é dada ao corpo). o intelecto especulativo, no entanto, pode ser considerado por um lado como ú nico, por outro como múltiplo; como eterno ou como gerador corruptível. em si próprio, é único e eterno. como disposição e preparação da alma é múltiplo e submetido ao nascimento e à morte. segundo averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades que a doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seus predecessores. "se o objecto inteligível, afirma avarróis, fosse absolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse, tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. por outro lado, se o objecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos,

aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplo naindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outro por sua vez um outro e assim sucessivamente. seria ainda impossível neste caso que o discípulo aprendesse, 212 o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja uma virtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmo modo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível. mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e em ti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formas da imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente e material, tais questões acabam totalmente por desaparecem (comm. inagiuim de an., 111, 5). portanto, segundo averróis, a virtude cognitiva própria do homem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formas extraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação do intelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a receber a obra do artífice (1b., 111, 20). deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potência ao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que se limita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. o processo integral é posto directamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. a acção deste é comparada por averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do sol enquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado à capacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis (verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores. tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduz ao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar o intelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que esta possa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdades universais. por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além do material das representações; mas é ela que abstrai das referidas representações os conceitos, ao unir-se ao intelecto potencial; e este une-se a ela quando a ele se une o intelecto agente.

desta doutrina resulta toda uma série de consequências paradoxais que desencadearam uma polémica acalorada por parte da escolástica latina. em primeiro lugar, o intelecto material é único em todos os inffivíduos porque é a disposição que o intelecto agente comunicou às respectivas almas. multiplica-se nos diversos indivíduos como a luz do sol se multiplica ao distribuir-se sobre os diversos objectos que ilumina. como s. tomás explica (c. gent., 11, 73), a diversidade dos intelectos humanos é determinada pelo facto de que, actuando o intelecto material sobra as imagens, que não existem todas em todos os indivíduos, nem são igualmente distribuídas por todos, as coisas que um certo homem pensa não são as mesmas que são pensadas por um outro homem. em segundo lugar, não pode acontecer que umas vezes o intelecto material compreenda e outras vezes não, salvo no caso de determinado indivíduo e nunca no que se refere à espécie humana. por exemplo, pode acontecer que sócrates ou platão umas vezes compreendam e outras vezes não o conceito de cavalo; mas, no conjunto da espécie humana, o intelecto compreende sempre este conceito, a menos que a própria espécie venha a desaparecer, o que é impossível. disto resulta que a ciência não pode reproduzir-se nem corromperse, porque é eterna. morre a ciência que existe em sócrates ou em platão com a morte do indivíduo: mas não morre a ciência em si, porque está ligada a uma disposição universal, essencialmente conexa com toda a espécie humana. nesta natureza do intelecto se fundamenta o destino da alma humana. a felicidade do homem consiste em cultivar e ampliar a disposição que constitui o intelecto material, a fim de aperfeiçoar 214 e ampliar a capacidade especulativa e conhecer as substâncias separadas e finalmente o próprio deus. averróis retoma, na sua totalidade, a doutrina aristotélica da superioridade da vida teorética. "0 intelecto prático, segundo ele, é comum a todos os homens, todos o possuem, uns em maior grau que outros; mas o imelecto especulativo é uma faculdade divina, que se encontra apenas nos homens excepcionais" (de an., 111, 10, fol. 494 a). a ciência é a única via da beatitude humana: uma beatitude que se atinge nesta vida, através da pura investigação especulativa, uma vez que a vida humana não continua para além da morte. com efeito, a única parte da alma

humana que não está ligada ao corpo e não se encontra portanto submetida à reprodução e à corrupção é precisamente o intelecto material. mas esse intelecto se como simples disposição faz parte da alma humana, como realidade substancial subsiste separadamente e não é mais que o próprio intelecto agente. na alma humana mantem-se apenas o intelecto aquisitivo ou especulativo; mas este, condicionado como está pela parte sensível que lhe fornece as imagens das quais são abstraídas as formas inteligíveis, está ligado ao corpo, nasce e morre com ele (1b., 111, 1). averróis é levado a negar a imortalidade da alma e a colocar o fim último do homem na bealitude que se pode alcançar nesta vida mediante a investigação especulativa e a contemplação das realidades supremas. § 243. averróis: a eternidade do mundo sobre o problema do intelecto e sobre as questões com ele conexas, entre as quais está a imortalidade humana, averróis entra em contradição com os pensadores anteriores e especialmente com 215 avicena que identificava o intelecto material com o humano e sustentava a imortalidade própria da natureza e do destino da alma humana. mas, no que diz respeito às relações entre deus e o mundo, e em especial à criação, averróis não faz mais que retomar a doutrina dos seus predecessores. a necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida por avicena, é também a pedra angular da metafísica de averróis. É de notar que tal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível em relação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. mas esta criação é apenas, como já notou s. tomás (§ 278), a dependência causal do ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro que é deus. exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, e nada tem a ver com a criação tal como é concebida na bíblia e no corão. esta depende de um acto de vontade do criador, que dá início no tempo ao mundo e

prescreve ao mesmo limites temporais definidos. mas contra este conceito, averróis emita-se a repetir as objecções de avicena. se deus criou o mundo do nada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho à sua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que de certo modo o haja determinado à criação. ora ambas estas alternativas são impossíveis. nada existe fora de deus, excepto o mundo, por isso deus não pôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. por outro lado, nenhuma coisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de deus não pode também sofrer alteracão. além disso, se a criação significa uma escolha áivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifique algum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. mas não podemos falar em obstáculos em relação a deus, nem se pode conceber uma alternativa melhor na 216 criação do mundo. a escolha de deus deve ser por isso eterna e contínua e não se pode falar de um princípio do mundo (dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2). averróis aceita a doutrina de ai farabi e de avicena, de que o mundo dimana necessàriamente da ciência de deus e que esta dimanação não é motivo ou intenção particular, porque procede da natureza de deus, na medida em que este se conhece a si próprio (ib., disp. 3, dub. 2). deve por isso afirmar-se que a acção de deus na formação e na conservação do mundo não é comparável à acção de nenhum agente enito, nem natural nem voluntário, uma vez que deus formou o mundo e mantem-no de um modo que não tem paralelo na acção das coisas o dos homens. o mesmo deve afirmar-se da acção de deus ao governar o mundo. deus dirige o mundo com a sua ciência, mas a ciência de deus nada tem a ver com a humana. deus apenas se conhece a si próprio; mas ao conhecer-se a si próprio, conhece tudo. a sua ciência não diz respeito às coisas particulares porque está para além dos limites das mesmas. mas o facto de não conhecer as coisas individuais deste mundo na sua essência individual, não significa um defeito do conhecimento divino, pois não é um defeito não conhecer de forma

imperfeita aquilo que se conhece de um modo mais completo (epit. metaf., iv, p. 138). a providência divina segue a ciência divina. como deus não conhece as coisas indâviduais também não as d-jrige e governa com a sua acção providencial. a injustiça e o mal que existem no mundo demonstram clara-mente que, nem deus nem as outras substâncias separadas que dimanam dele directamente e regem as órbitas celestes, governam directamente as vissicitudes e o destino dos seres singulares (1b., iv, p. 155). através do movimento dos corpos celestes deus regula também os acontecimentos do mundo 217 sublunar. com efeito, o movimento do sol, ao determinar a sucessão dos dias e das noites e a alterriância das estações, regula a geração das plantas e dos animais. deus rege deste modo todo o mundo segundo uma ordem necessár@a e infalível. mas o que é puramente individual ou casual, o que não se integra na ordem necessária de tudo, escapa à providência, assim como à ciência de deus (ib., iv, p. 152). a própria vontade humana é determinada, na medida em que as suas deliberações estão sujeitas à ordem necessária do mundo. averróis sustenta que as nossas acções dependem,pelo menos em parte, do nosso livre arbítrio, mas afirma que, por outro lado, elas não podem furtar-se ao determinismo da ordem cósmica. a vontade humana é em si um agen!e livre; mas a sua acção manifesta-se no mundo que é regulado pela ordem necessária e eterna de deus. a relação da vontade com as causas externas é determinada pelas leis naturais: por isso o corão fala de uma predestinação infalível do homem (munk, mélanges, p. 457458). a condenação pronunciada em paris nos anos de 1270 e 1277 contra o averroísmo, referia-se às seguintes proposições: o intelecto de todos os homens é numèricamente uno e idêntico; o mundo é eterno; a alma, que é a forma do homem enquanto homem, corrompe-se com a corrupção do corpo-, deus não conhece as coisas singulares; o livre arbítrio é uma potência passiva, não activa, movida necessàriamente pelo objecto apetecido; a vontade do homem escolhe por necessidade (denifle, chart. univers. paris, 1, 486-487). estas proposições incluem aquilo que aos escolásticos latinos surgia como típico do averroísmo e em contraste irremediável com o dogma cristão. mas o significado do averroísmo não reside apenas nestas

proposições. apresenta-se também como a ,grande tentativa de reconquistar, com o regresso a aristóteles - o filósofo por excelência - a liberdade 218 da investigação filosófica; o de dirigi-ia no sentido de esclarecer essa ordem necessária do mundo, cuja contemplação pareceu a averróis ser o mais alto dever e a felicidade perfeita do homem. nota bibliogrÁfica § 232. munk, mélanges de philosophie juive et arabel paris, 1852, 1927; dietereci, die philosophie der arabern in jahrhundert, 4 vol., leipsig, 18651870; carra de vaux, les penseurs de llistam, paris, 1921; m. horten, die philosophie des islams, mónaco, 1924; g. quadri, la filosofia degli arabi nel suo fiore, florença, 1939, 2 vols. da teologia, a tradução ia-tina feita sobre a tradução italiana do texto árabe (descoberto em damasco em 1516, pelo humanista francesco rosso) foi publicada em roma em 1519. o texto do liber de causis, comentado, a partir do século xm por numerosos autores, encontra-se numa recolha de opúsculos de s. tomás, pedro de auvernia e egídio romano, publicada em veneza em 1507. sobre as escolas teológicas: horten, die philosophischen probleine der spekulativen theoloqie in islam, bonn, 1912; macdonald, development of muslim theozogu, jurisprudence and constitutional thenry, new york, 1903; gardetanawaty, introduction à ia thèologie musulmane, paris, 1948. -sobre os mutakal!iimun: s. pines, beitrãge zur islamichen atomenlehre, berlim 1936. § 233. os escritos de ai kindi foram publicados pela primeira vez por albino nagy, die philosophischen abhandiungen des ai-kindi, em (beitrãge" de baeumker, 11, 5, 1897. um escrito de introducão ao estudo de aristóteles foi publicado por guidi e walzer, em "atti aec. dei lincei", 1940, série vi, vol. vi. um escrito moral de walzer e ritter, v01. viii. ai kindi foi também autor de escritos sobre astronomia, medicina e óptica: de astrorum indiciis, veneza, 1507: liber novem indicum, veneza, 1509; de rerum gradibus, argentorati, 1531; de temporum mutationibus 8ive de imbribus, paris, 1540; de aspectibus, ed. bjoernbo-vogl, leipsig, 1912.

sobre a doutrina do intelecto: gilson, les sources gréco-arabes de ilaugustinisme avicénnisant, em "arch. d'hist. doctr. et @it. du m. â.", 1930. 219 § 234. de ai farabi: de scientiis, de intelectu, paris, 1638; ed. com trad. frane. de gilson, em "arch. £i,hist. doetr. et lit. du m. á.", 1929-30; philosophische abhandiungen, texto árabe, ed. dieteríci, leiden, 1890; das buch der ringsteine, cd. horten, em "beitrãge", v, 3, 1906; de ortu scientiarum, ed. bë-er, munster, 1916; ed. com trad. ingl. ed. harmer, glasgow, 1934; de arte poetica, com trad. ing1. ed. arberry, em "fuvista di studi orientali", 1930; de platonis philosophia, ed. rosenthal-walzer, londres, 1943; compendium legum piatonis, texto árabe e trad. lat., ao cuidado de gabrieli, londres, 1952. madicour, la place d'al farabi dans fécolé philosophique musulmane, paris, 1934. § 235. de avicena: a parte do cânone de medicina traduzida na idade mádia, em opera omnia, veneza, 1495, 1508; metafísica, trad. alemã, horten, lcíp@ig, 1913, 1960; compendium metaphysicae, ed. carame, roma, 1926; de anima, ed. rahman, londres, 1959; traités mystiques, trad. frane. mehren, leiden, 18891899; logica oriental (mantigual-masriqiyyah), cairo, 1910; epitre des définitions, trad. frane. goiclwn, bey- rut-paris, 1951; livre de sciences, trad. frane. massé, paris, 1955; poème de ia mèdicine, texto árabe com trad. frane. e lat,, ao cuidado de jahier e novreddine, paris, 1956. -bibliografia: sa'ti) naficy, bib. des principaux travaux européens sur a., teerão, 1953; pur-e sina (a., his life, works, thought and time) teerão, 1954; anawati, chronique avicénnienne, 1951-1960, em "rev. thomiste", 1960. carra de vxux, a., paris, 1900; saliba, mudes sur métaphysique d'avicenna, paris, 1926; goichon, la distinction de vessence et de rexistence d'après ibn sina, paris, 1937; la phil. da. et son influence en europe médiévale, paris, 1944, 1951; gardet, la pemée religieuse d'a., paris, 1951; la connaissance mystique chez ibn-sina, cairo, 1952; rahman, avicenna's psychology, oxford,

1952; afnan, a., his life and works, londres-new york, 1958. § 237. de ai-gazali: as tendências dos filósofos foram publicadas na trad. lat. com o título logica et philosophiae, veneza, 1516. a trad. lat. da destructio philosophorum tem sido sempre editada juntainente com a destructio, destructionum de averróis; tendentiae philosophorum, leiden, 1888; destructio philosopharum, 220 cairo, 1888; metaphysic. a medieval transtation ed. muckl.e, toronto, 1933. asin palacios, algazei: dogmatica, moral, ascética, saragoça, 1901; carra de vaux, gazali, paris, 1902; obermann, der philosophie und religiose subjektivismus ghazalis, vienaleipsig, 1921; watt, the faith and practice of al-gazali, liondres, 1953; farid yabrf, la notion de certitude selon ghazali dans ses origmes psychologiques et historiques, paris, 1958. § 238. de avempace: de plantis, continuatio intellectus cum homine, epistola expeditionis, regime del solitario, textos árabes e= trad. espanhola a cargo de asin palacios em "al-andalus", 1940, 1942, 1943. munk, mélanges, cit. p. 386-410; farrukh, ibn baajja (avem pace) and the philosophy in the modern west, beirute, 1945. § 239. de ibn tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é hajj ibn jaqzân, vem publicado no original e numa tradução latina de e. pococke, oxford, 1671, com o título: philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo ex inferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. o texto árabe com tradução francesa foi publicado por gauthier, argel, 1900, e teve numerosas traduções em outras línguas. gauti-11er, ibn tofail, paris, 1909. § 240. de averróis: a tradução latina dos seus escritos foi editada pela primeira vez em 1472 e depois editada em veneza, várias, dezenas de vezes, juntamente com as obras aristotélicas: a melhor edição é a de 1552 a qual existe, uma reedição, froncoforte do meno, 1962. commentarium magnum in de anima, ed. crawford, cambridge (mass.), 1953; traité dé~f sur l'accord de ia religion et de ia philosophie, texto árabe e

trad. frane. de gauthier, argel, 1942; trad. alem. müller, mónaco, 1875; trad. ing1. jamil-ur-rehman, baroda, 1921; trad. esp. alonzo, madrid 1947; de generatione et corruptione, ed. kurland, cambridge (mass.), 1958; parva naturalia, ed. shieids, cambridge (mass.), 1949. renan, averroes et faverroisme, paris, 1851, 1869; gauthier, ibn roschd, paris, 1948; allard, le rationalisme daverràes d'après une étude sur ia création, paris, 1955. 221 xi a filosofia judaica § 244. a cabala como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres em comum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século xiii, uma das componentes fundamentais da escolástica latina. como acontece com a filosofia árabe e a filosofia cristã da idade média, a filosofia judaica é uma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemas fundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre deus e o mundo, entre o intelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou com dados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. mais próximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamente filosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crenças religiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma da cabala. a cabala (que significa tradição) é uma doutrina secreta que a principio se transmitia oralmente e mais tarde foi recolhida num certo número de trata, 223 dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o livro da cri4ção (sefer yetsirá) e"o livro do esplendor (zohar). trata-se de escritos em cuja composição entram elementos heterogéneos. se bem que alguns destes elementos sejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o zohar, na forma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade do século xiii. tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista, substancialmente semelhante à dos neopitagóricos e dos neoplatónicos dos

primeiros séculos. neles se afirma que deus é ilimitado (en sof.), isto é, inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. como tal, é a negação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o nãoser ou o nada. a criação do mundo surge mediante a aparição de substâncias intermédias chamadas números (sephiroth) que são, no tempo, os atributos fundamentais de deus e as forças através das quais se realiza a criação divina. a mediação dos sephiroth serve para garantir a deus a absoluta unidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, e neste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios do esplendor divino. os sephi roth são dez: i.'- a coroa; 2.'-a sabedoria; 3.'-a inteligência; 4.'-a graça; 5.'-a justiça; 6.'-a beleza; 7.0-o triunfo; 8.o-a glória: 9.---o fundamento; 10.'-a realeza. a acção destas substâncias produz toda a realidade do mundo visível, as três primeiras constituem o mundo inteligível, segundo o esquema da trindade neoplatónica. o munio visível e o inteligível têm a sua proveniência comum no amor e tendem a aproximar-se e a unir-se. o impulso deve provir do mundo inferior que deve tender para o superior; em resposta a este impulso, o próprio mundo superior deseja e ama o mundo inferior. deus não ama senão aqueles que o amam. 224 a alma humana -reproduz as três primeiras substâncias emanadas: em primeiro lugar está o espírito vital, depois o espírito intelectual, e finalmente a alma verdadeira e própria, que domina sobre as duas precedentes e é o orgão da santidade e da virtude superiores. a cabala não tem intentos filosóficos e à expressão ceptual prefere a concepção imaginativa ou alegórica. a posição que pretende suscitar é a do misticismo, a base doutrinal que pretende defender é a ortodoxia judaica tradicional. ainda que tenha extraído os seus conceitos do helenismo e da própria obra dos filósofos judeus da idade média, os defensores ou expositores que teve nos séculos xiii e xiv entendem fazer dela uma alternativa às obras dos filósofos e -polemizam com eles. todavia, no renascimento os próprios filósofos iriam buscar à cabala parte da sua inspiração e utilizaram-na frequentemente como instrumento de interpretação dos livros sagrados. § 245. isaque israeli

como já se disse, a filosofia judaica consiste substancialmente num encontro da tradição judaica com o helenismo; e sob este prima o mais antigo filósofo judeu da idade média é isaque ibri salomão israeli, que viveu no egipto entre 845 e 940. as suas obras de medicina foram traduzidas para o latim por constantino africano; os seus escritos filosóficos, livros das definições e livro de elementos, foram traduzidos do árabe para o latim, por gerardo de cremona. isaque não é um filósofo original, mas apenas um compilador que se serve sobretudo de fontes neoplatónicas, especialmente do livro de causas. muitos latinos do século x111, 225 entre os quais s. tomás, foram buscar a isaque a definição de verdade como "adequação entre o intelecto e a coisa". § 246. saadja o verdadeiro fundador da escolástica hebra-ica é saadja, que foi célebre corno filósofo e teólogo, mas também como poeta. nasceu em fajjoum, no egipto, em 892 e em 928 foi designado dirigente da academia de sora (perto de bagdad) que era então a sede principal do rabinismo. morreu em sora em 942. a mais notável das suas obras é o livro da fé e da ciência que escreveu em árabe, e em verso, em 932. ao lado da autoridade da escritura e da tradição, saadja reconhece a da razão e afirma não apenas o direito, mas também, o dever, de compreendermos a verdade religiosa para assim a consolidarmos e defendermos dos ataques que lhe são dirigidos. a razão ensina-nos as mesmas verdades que a revelação, mas esta é necessária para que o homem possa atingir de modo mais rápido a verdade que a razão, abandonada a si própria, só teria podido alcançar depois de um longo trabalho. os pontos sobre que se debruça a especulação de saadja são: a unidade de deus, os seus atributos, a criação, a revelação da lei, a natureza da alma humana, ete. a propósito de deus, saadja afirma que as categorias aristotélicas lhe são aplicáveis. defende a criação do nada, refutando os sistemas contrários a este dogma. defende também a liberdade

criadora de deus e reconhece ao homem o livre arbítrio. verificamos, no entanto, que no seu pensamento ainda não se faz sentir a influência do aristoteliismo: isso só vem a acontecer nos filósofos judeus de espanha e, em primeiro lugar, em ibri- -gebirol. 226 § 247. ibn-gebirol: matéria e forma salomão ibn-gebirol, foi reconhecido por munk como o autor da fons vitae, aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de avicebron como sendo árabe. nasceu em málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em saragoça e viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. foi célebre como poeta e, segundo uma tradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio. a figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordinários que atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado a corifessar o crime. a sua obra, a fonte da vida, escrita em árabe, foi traduzida para o iatim por joão hispano e domingos gundisalvo. está composta em forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros. a especulação de ibn-gebirol é dominada pelos conceitos aristotélicos de matéria e forma. o princípio de que parte é o da composição hilomórfica universal; tudo o que existe, é necessàriamente composto de matéria e forma. começa por reduzir a uma matéria única as díversas matérias e a uma única forma as diversas formas existentes. com este objectivo, começa por reduzir à unidade a matéria e a forma das coisas sensíveis. nestas, as várias espécies de matéria, quer as artificiais, por exemplo, o bronze, quer as naturais (os quatro elementos), quer as celestes, têm todas a mesma natureza, que é a de substracto da forma. por outro lado, todas as formas sensíveis têm em comum a característica de serem formas corpóreas. nas coisas sensíveis, portanto, existe uma só matéria, o corpo, e uma só forma, a forma corpórea ou corporeitas. mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a ela se junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro 227 lado, a forma não é apenas corporeidade porque esta é apenas a determinação

de uma forma mais universal. uma matéria que seja maas universal que a matéria corpórca deve ser comum não só aos corpos como também aos espíritos: é uma matéria que entra na composição quer das substâncias espirituais quer das corpóreas. as substâncias espirituais não são simples, são também compostas de matéria e forma. nos escolásticos latinos, a doutrina de ibrigebirol aparece tipificada neste princípio da composiçao hilomórfica das substâncias espirituais. se se trata de uma matéria universal, comum também às substâncias espirituais, então tratar-se-á de uma forma universal comum a todos os seres. esta forma universal é o conjunto das nove categorias de aristóteles, que constituem precisamente as determinações mais gerais do ser. a matéria universal é a primeira das categorias aristotélicas, a substância, que sustenta (sustinet) as outras nove categorias (fons vitae, 11, 6). assim unificadas e universalizadas, a matéria e a forma não subsistem em si, mas na mente do criador. na sabedoria de deus, matéria e forma subsistem na sua distinção. a criação comiste na união, determinada pela vontade divina, entre a matéria e a forma. mediante ela, a forma une-se à matéria e determina-a, comunicando-lhe, pouco a pouco, as suas sucessivas determinações: as qualidades primárias, a forma mineral, a forma vegetativa, a forma sensitiva, a forma racional, a forma inteligível. mas o pressuposto desta união entre a matéria e a forma, e em que consiste a criação, é a vontade de deus. § 248. ibn-gebirol: a vontade a matéria e a forma têm em comum entre si o desejo de se unirem uma à outra. a matéria 228 anu a forma e deseja gozar a alegria que experimenta ao unir-se a ela; a forma deseja realizar-se na matéria para nela produzir a sua acção, segundo o impulso que lhe é transmitido pelo próprio criador (fons vitae, 111, 13). o amor e a tendência recíproca, que existem entre a matéria e a forma, devem derivar de uma substância superior de que ambas participam. esta :substância espiritual, e más que espiritual, é o verbo agenie (verbum agens) ou vontade de deus. "no ser, afirma ibn gebirol, apenas existern três coisas: a matéria e a forma, por um lado, a essência primeira, por outro; e a vontade que

é o meio entre os dois extreinos". a vontade cria a matéria e a forma universais e por conseguinte, todos os seres que resultam da união da matéria e da forina. a vontade está ligada à matéria e à forma tal como a alma está ligada ao corpo: funde-se nelas, penetrando-as completamente (1b., v, 36). essa é a virtude da essência primelira, de deus, e por conseguinte, a intermediária entre essa mesma essência o a matéria e a forma. no entanto, entre a essência primeira ou verbo agente, e a matéria, ibngebirol admite uma série de formas ou substâncias separadas, inspirando-se evidentemente no neo-platonismo do liber de causais. estas substâncias, de acordo com a ordem que vai do menos perfeito e menos simples ao mais perfeito e mais simples, são as seguintes: a natureza, as três almas (vegetativa, sensitiva e racional), a inteligência. a inteligência compreende todas as formas e conhece-as. a alma racional compreende as formas inteligíveis e conhece-as mediante um movimento discursivo que a faz passar sucessivamente de uma para outra. a alma sensitiva percebe as formas corpóreas e conhece-as. a alma vegetatíva apodera-se do corpo e faz com que este se mova. a natureza une as partes do corpo, gera entre elas 229 a atracção ou a repulsa e alterna-as entre si. estas substâncias intermédias são menos perfeitas à medida que se afastam da sua forma comum, a vontade criadora de deus. a sua crescente imperfeição explica-se com a diminuição do poder da vontade criadora, que, sendo infinita em si, é finita na sua acção e por isso vai enfraquecendo (como um ra;o luminoso que se afasta do centro que o produz) à medida que vai avançando (lb., iv, 19). a filosofia de lbn-gebirol apresenta, no seu conjunto, uma originalidade e uma força que lhe asseguraram grande influência nos séculos seguintes. a parte históricamente mais importante da mesma é a afirmação da matéria universal. combatida por s. tomás, esta afirmação virá a ser retomada por giordano bruno que fará dela o pressuposto do seu panteísmo. § 249. filosofia judaica: reacÇÃo contra a filosofia a reacção da ortodoxia judaica contra a elosofia é representada por algumas

figuras que têm escasso relevo especulativo. no final do século xi, baclija lbn-pakudia, num texto seu, deveres dos corações, coloca a moral prática acima da especulação e representa na tradição hebraica o que algazel representa no mundo árabe. em 1140 o poeta yehuda halevi num livro intitulado kuzari parte de uni facto histórico: a conversão ao judaísmo de um rei dos jazares (séc. viii), para fazer a apologia do judaísmo e uma condenação da investigação filosófica. abraão ben david, de toledo, escreveu em 1161, em árabe, um livro chamado a fé sublime para demonstrar o acordo entre a teologia liebraica e a filosofia aristotélica. mas esta tentativa teve pouca fortuna; e o único que consegue entre os judeus alcançar um lugar importante na investigação filosófica é maimónidas. 230 § 250. maimónidas: a teologia moshé lbn maymon, chamado maimónidas, nasceu em córdova a 30 de março de 1135. por causa da intolerância dos almohades, a sua família foi obrigada a abandonar a espanha e a fixar-se, primeiro em fez, marrocos, e depois na palestina. daqui, moisés passou para o egipto, instalando-se na velha cairo. ao mesmo tempo que se dedicava ao comércio de pedras preciosas, dava cursos públicos que lhe granjearam fama como filó sofo e teólogo, mas sobretudo como médico. o rm,nistro do célebre sultão saladino, que naquele tempo tinha estendido o seu -poder ao egipto, assegurou-lhe os meios necessários pararenunciar ao comércio e dedicar-so apenas à ciência, nomeando-se médico da corte. ma-imónidas consegue então obter grande celebridade e fortuna, e pôde, com a ajuda do seu protector, furtar-se às acusações que lhe foram feitas de haver regressado ao judaísmo depois de ter aceitado, durante a sua estadia em espanha quando jovem, a fé muçulmana. morreu em 13 de dezembro de 1204. maimónidas é autor de numerosos textos médicos e teológicos. entre estes últimos tem importância fluosófica um chamado oito capítulos. um seu vocabulário da lógica foi traduzido para latim por sebastião munster. mas a sua obra fundamental é o guia dos perplexos, na qual procurou levar a cabo a conciliação entre a bíblia e a filosofia, a revelação e a razão. a obra está dirigida àqueles que rejeitam tanto a irreligiosidade como a fé cega e

que, ao encontrarem nos livros sagrados coisas contraditórias ou na aparência impossíveis, não ousam admiti-ias para não irem contra a razão, nem rejeitálas para não menosprezarem a fé; ficando por isso dominados por uma perplexidade dolorosa. a estes perplexos se dirige maimónidas, com o 231 propósito de utilizar todas as armas dialécticas, proporcionadas pela filosofia árabe e judaica na defesa da fé tradicional. vimos já que o resultado substancial da filosofia árabe desde ai kindi a averróis foi a elaboração do princípio da necessidade do ser, princípio que tem como imediata consequência a eternidade do mundo. É certo que contra esse mesmo princípio se fez sentir a reacção dos mutalcalli-mun, dos asharias e de algazel; mas esta reacção, que partia da ortodoxia -religiosa, era estranha à filosofia e por isso contrária a todas as filosofias. parecia que a defesa da novádade do mundo e da criação não podia ser feita a não ser em nome da fé e com a renúncia de todas as vantagens que a investigação filosófica tinha trazido à própria compreensão da verdade revelada. a originalidade de maimónidas que, no entanto, se apresenta de início como defensor do mundo e da criação, reside no facto de ele não renunciar ao processo demonstrativo e aos resultados da filosofia da necessidade. uma vez que a existência de deus e as outras verdades fundamentais não permitem ser demonstradas rigorosamente a não ser através dos processos dessa mesma filosofia e na base do princípio que a mesma defende, parece ser de utilizar este princípio para se estabelecer as verdades fundamentais, para em seguida submeter a uma análise o referido princípio. "creio, diz maimónidas (guia, 1, 71), que o verdadeiro modo, o método demonstrativo que elimina a dúvida, consiste em estabelecer a exigência de deus, a sua unidade e a sua corporeidade de acordo com o procedimento dos filósofos, procedimento esse que se baseia na eternidade do mundo. não ,porque eu creia na eternidade do mundo ou faça a este propósito qualquer concessão; mas porque só com este método a demonstração se torna segura e se obtém uma certeza perfeita sobre estes pontos: 232 que deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o

que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. uma vez resolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves e importantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo e para isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". noutros termos, maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidade do ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando para depois, num segundo momento, a discussão do corolário fundamental daquele princípio, a eternidade do mundo. sob esta base, maimónidas procede à demonstração da existência, de deus e dos seus atributos fundamentais, a unidade e a corporcidade: e as suas demonstrações não fazem mais que seguir de perto o que disse avicena. supondo que alguma coisa existia (e para que qualquer coisa exista. bastam os nossos sentidos para o demonstrar), existe necessàriamente um ser necessário. já que aquilo que existe, ainda que seja apenas como possível, é necessário em relação à sua causa; e esta causa é precisamente o ser necessário (1b., 11, 1). deus conhece todas as coisas, mesmo as particulares; mas conhece-as com um único e imutável acto de ciência. a multiplicidade das coisas conhecidas não implàca a multiplicidade do saber divino, que permanece único porque não depende das coisas, que por seu lado dependem dele (1b., 111, 20-21). estabelecida a existência de deus, maimónidas passa a considerar o problema do mundo. o argumento mais forte adoptado por avicena a favor da eternidade do mundo era o seguinte: o mundo, antes de ser criado, era possível; mas toda a possibilidade implica um substrato material; por conse- ,guinte, antes da criação subsistia a matéria do mundo. mas nenhuma matéria existe privada de 233 forma; por conseguinte, antes da criação, subsistiam a matéria e a forma do mundo, ou seja, o próprio mundo na sua totalidade. a este argumento e a todos os outros da mesma espécie, maimónidas opõe que é impossível raciocinar sobre

as condições em que se encontrava quando começava a nascer, uma coisa que agora está acabada e perfeita. não podemos recuar do estado em acto de uma coisa para o seu estado potencial; por conseguinte, todos os argumentos que se servem desta forma de agir são viciosos e não têm qualquer força demonstrativa. se a tese da eternidade do mundo não pode ser demonstrada, a tese oposta, da criação é, pelo menos, possível. mas maimónidas sustenta que, mais que possível, é certa e dá-nos disso a razão. essa razão consiste substancialmente no reconhecimento da liberdade do acto criador, liberdade que rompe com a necessidade do mundo, da qual derivaria a sua eternidade. pela negação da necessidade do ser, maimónidas pretende chegar à negação da eternidade do mundo; e consegue chegar à negação da sua necessidade ao reconhecer em determinado momento do processo criativo uma liberdade de escolha por parte de deus, uma decisão contingente, não rigorosamente determinada pela exigência de garantir a ordem necessária do todo. de qualquer modo, o mundo teria podido ser diferente do que é; no entanto ele é aquilo que é devido a uma livre escolha de deus que exclui a necessidade absoluta e, por conseguiinte, a eternidade. "se debaixo da esfera celeste existe uma tal disparidade de coisas, não obstante a matéria ser uma só, poderás dizer que essa disparidade se deve à influência das esferas celestes e às diferentes posições que a matéria assume perante elas, como ensinou aristóteles. mas a diversidade que, existe entre as esferas celestes, quem poderá determiná4a senão deus? 234 se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nada explicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posição relativamente à esfora. porque razão o desejo que atrai cada uma das esferas para a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outra para oeste? por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta e outra mais rápida?" (-1b., 11, 19). a única resposta possível a estas perguntas é, segundo maimónidas, a contingência do mundo. "deus determinou como quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nós ignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". e deste

modo, maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a deus mediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese e inutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era o resultado fundamental da especulação árabe. § 251. maimónidas: a antropologia tal como a metafísica de maimónidas é dorninada pela exigência de ressalvar a liberdade criadora de deus, ainda que nela não se negue a ordem do mundo nem se faça da realidade um milagre contínuo, também a antropologia é dominada pela exigência de ressalvar a liberdade humana, quer no domínio do conhecimento quer no domínio moral. vim-os já como a filosofia árabe tinha constantemente atribuído ao intelecto agente, separado e divino, a total iniciativa do conhecer humano. ma,imónidas, ainda que reproduzindo nos seus traços fundamentais a doutrina de avicena sobre o intelecto, modifica-a no sentido de reservar ao homem e ao seu esforço de aperfeiçoamento a verdadeira e própria iniciativa do conhecer. a alma racional do homem 235 é o intelecto hilico, material e potencial, que se encontra no corpo, tal como as almas das esferas celestes se encontram nos corpos das próprias esferas. este intelecto passa a acto e eleva a alma ao conhecimento verdadeiro e próprio das formas inteligíveis, por acção do intelecto agente que não é múltiplo, nem se encontra nos corpos diversos, como a inteligência hílica, mas único e separado de todos os corpos (1b., 1, 50-52). até aqui nada de novo: trata-se da reprodução da doutrina de avicena. mas maimónidas acrescenta que para o intelecto poder fazer passar a acto o intelecto hílico, precisa de encontrar uma matéria preparada para receber a sua expansão. conforme a alma racional esteja ou não convenientemente disposta, assim receberá ou não a influência do intelecto agente, passará ou não a acto, e o realizar-se numa ou noutra das alternati,vas não depende do intelecto agente, que permanece sempre idêntico, mas apenas no homem, maimónidas retira assim ao intelecto agente a iniciativa de conhecer e restitui-a ao homem. consoante o grau de preparação da sua alma racional, assim recebe o homem mais ou menos a acção do intelecto agente e se ergue mais ou menos para a perfeição; já que para ele a perfeição consiste em tornar-se inteligência em acto e em conhecer, de tudo o que existe, aquilo que lhe é dado conhecer (1b., 111, 27). a maior parte dos homens recebe

do intelecto agente apenas a luz que chega para alcançar a perfeição individual; outros recebem uma acção mais abundante, que os estimula a criar obras e a comunicar aos outros homens a sua própria iluminação. quem recebe a imanação do intelecto agente na alma racional é um sábio que se dedica à especulação. quem a recebe não só na alma racional, mas também na capacidade imaginativa, é um profeta. a profecla representa (como já acontecia em ai farabi e em avicena) a mais elevada 236 perfeição do homem, porque só na alma melhor disposta a influência do intelecto agente se expande para lá da razão, na faculdade imaginativa (1b., 11, 36-37). maimónidas, assim como defende a actividade humana no domínio do conheoimento, também defende a liberdade humana no domínio da acção. É certo que a providência divina se estende a todo o futuro e por conseguinte determina também as acções humanas que irão acontecer. mas não se pode renunciar a admitir a liberdade que é o princípio da acção e a condição da responsabilidade humana. É preciso portanto afirmar que a predeterminação divina e a liberdade humana são conciliávèis; só a forma como o são é que nos escapa. a própria providência exerce-se tendo em conta a liberdade, a razão e os méritos do homem, e não se deve impor ao homem o peso de uma ordem préconstituída que lhe tolha a liberdade (1b., 111, 17-18). da sua doutrina do intelecto, maimónidas deriva a da imortalidade. a imortalidade não é para todos os homens, está reservada aos eleitos, àqueles a que a bíblia chama as "almas dos justos" (1b., h, 27; 1, 70). mas não se trata de uma imortalidade singular. maimónidas admite o princípio aristotélico de que a diversidade entre os ind,ivíduos de uma mesma espécie é devida à matéria. para as inteligências separadas, este princípio não vale: estas são distintas únicamente pela razão causal, pela qual uma é causa e outra efeito. mas as almas dos homens são distintas entre si apenas pelos corpos: e uma vez corrompido o corpo, a distinção entre os indivíduos desaparece, pois apenas fica o puro intelecto (1b., 1, 74). a imortalidade do

homem não é mais que a sua participação na eternidade do inteler-to separado. o homem não é verdadeiramente, segundo maimónidas, imortal como homem, mas 237 apenas, como parte do intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade é devida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida da sua elevação espiritual. nota bibliogrÃfica § 244. sobre a filosofia judaica: munk, méianges, cit., p. 461-511; stockl, geschichte der phil. des mittelalters, ii, p. 227-305; neumark, geschichte der judischen phil. des mittelalters, berlim, 1907-1928; husik, a history of medieval jewish philosophy, new york, 1918; guttmann, die philosophie, des judentums, munique, 1933; bertola, la filosofia ebraica, milão, 1947; adler, philosophy of judaism, new york, 1960. o livro da criação foi imprimido em basileia em 1567, numa recolha com o título de artis cabbalisticae scriptores; outra ed. amesterdão, 1642, reeditada por goidschmidt, francor-f do meno, 1894. o livro do esviendor, impresso pela primeira vez em mântua, 1558-1560, teve depois várias edições com a tradução latina de amesterdão, de 1670 em diante. traduções francesas de de pauly, paris, 6 vols. 19051911.frank, système de ia eabbale, paris, 1842; pick, the cabala, londres, 1914; bosker, from the world of the cabbalah, new york, 1954; serouya; la kabbale, paris, 1957. § 245. as obras de isaque com o titulo opera omnia, editadas em lyon em 1515; esta edição compreende a tradução latina do livro das definições e do livro dos elementos; ed. muckle, in "archiv. d'hist. doctr. et litt. du m. â." 1937-38; trad. ing. de stern, londres, 1958. guttmann, 1911.

die philosophischen lehren des isaac, em "beitrage",

x, 4,

§ 246. de saadja: ouvres complètes, ed. derenbourg, 6 vols., paris, 18931896. grvnfeld,

em "beitrage", vii, 6, 1909; malter, saadia gaon,

filadelfia, 1921; ventura, la phil. de s. g., paris, 1934; freimann; saadia's bibuography, new york, 1943. 238 § 247. o fons vitae de ibn-gebirol foi editado nas partes fundamentais em árabe e traduzido para francês por munk, mélanges, cit. a tradução latina de joão hispano e domingo gundisalvo, por ba,eumker, nos seus "beitrage", 1, 24, 1892-1895. munk, mélanges, cit., p. 151 e sgs.; guttmann, die philosophie des salomon von gebirol, cottingen, 1889; bertola, salomon ibn gebirol (avicebron), pádua, 1953. § 249. o livro de bachja sobre os deveres dos corações teve idêntica edição na tradução hebraica; nápoles, 1490; leipsig, 1846; viena, 1854. com tradução alemã de stern, viena, 1856; tradução alemã de furrstenthal, 1836. o livro alcharari de gluda halevi foi publicado com a tradução latina em basilei-a em 1660; com tradução alemã em leipsig, 1841-1853, 2.1 ed., leipsig, 1869. o livro de ben david a fé sublime, na tradução hebraica acompanhada da tradução alemã, foi publicado por weij, franefort do meno, 1852. § 250. a tradução latina do guia dos perplexos de l@faimõnidas com o título dux seu doctor dubitantium seu perplexorum, foi editada em paris em 1520. o texto árabe foi publicado com tradução francesa por s. munk com o titulo le guide des égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols. paris, 1856, 1861, 1866; trad. ing. edlãnder, londres, 1881, 1885; 2.1 ed. new york, 1925. levy, maimónide, paris, 1911, reedição em 1931, com bibl.; sÉrouya, maimónide, paris, 1951; zeitling, maimónides,. new york, 1955. 239 xii a polÉmica contra o aristotelismo § 252. aristotelismo: as traduÇões latinas de aristóteles

o século xiii assinala o florescimento da escolástica. a tentativa de levar a razão humana à compreensão das verdades reveladas é o seu maior sucesso até dar lugar à grande síntese feita por s. tomás. esse sucesso apresenta-se condicionado pelo enriquecimento da razão nas suas forças e no seu conteúdo problemático mediante a obra de aristóteles que, por intermédio dos árabes, foi redescoberta pela filosofia ocidental. já na primeira metade do século xii, raimundo, arcebispo de toledo de 1126 a 1151, havia dirigido uma escola de tradutoires, à qual muito ficou a dever a escolástica, do século seguinte. joão hispano traduz a lógica de avicena; domingos gundlisalvo, arquidiácono de segóvia, com a ajuda daquele, traduz a física, o de coelo et mundo e os primeiros dez livros da metafisica de aristóteles; e, além disso, a metafísica de avicena, a filosofia de ai gazali, 241 o escrito sobre as ciências de ai farabi e a fons vitae de algebirol. um outro membro da escola de toledo, gerardo de cremona, falecido em 1187; traduz a física. o de coelo, o de generatione, e os primeiros livros dos meteorológicos, de ar@stóteles; além do cânone de avicena, o liber de causis e outros textos. miguel scoto (1180-1235), nascido na escócia, ou, segundo outros, em salermo ou toledo, famoso como mago ("veramente delle magiche frode seppe il giuo-co" afirma dele dante, inf., xx, 116), e autor de obras de astronornia, e de alquimia, foi encarre- ,gado pelo imperador frederico il de traduzir aristóteles. traduziu a história animalium; e além disso, o comentário de averróis ao de coelo e ao de anima e provávelmente a de generatione, meteore e parva naturalia. na metade do século xiii, hermann, o alemão, bispo de astorga, traduziu o comentário médio de averróis à É tica a nicómaco e depois à retórica e à poética. em 1120 existia em paris uma tradução da metafísica de aristóteles; e em pádua descobriu-se uma tradução latina da mesma obra que remonta aos fins do século xii. em 1125, alfredo anglico traduz do grego o

de anima, o de somnio e o de respiratione. entre 1240 e 1250, roberto grossatesta (§ 255) traduzia ou mandava traduzir a grande Ética e outros opúsculos de aristóteles. guilherme de moerbeke, nascido em 1215, forneceu a s. tomás a tradução do grego de vários textos. traduziu a política e a economia de aristóteles; os comentários de simplício às categorias e ao de coelo; os elementos de teologia e outros opúsculos de proclo. a tradução dos elmentos permito a s. tomás reconhecer neles o original do 242 liber de causis, já traduzido por gerardo de cremona. todo este trabalho de tradução revela um interesse profundo pela doutrina de aristóteles, na qual * escolástica do século xiii acabou por descobrir * expressão mais perfeita da razão humana e, por conseguinte, o melhor caminho para alcançar a verdade revelada. mas precisamente pelo facto da obra de aristóteles ser a expressão perfeita da razzão com plena autonomia e independência de qualquer pressuposto da fé, a mesma devia suscitar, e suscitou com efeito, oposições e desconfiança e à primeira vista i)areceu inconciliável com o dogma católico. o século xiii apresenta-nos as primeiras tentativas de aproximação do aristotelismo bem como as reacções contrárias; virá mais tarde o equilíbrio conseguido com a síntese toraista. § 253 polémica comtra o aristotelismo: guilherme d'auvergne o primeiro contacto da escolástica latina com a doutrina de aristóteles verificou-se através do aristotelismo, arabe. o conhecimento directo dos textos aristotélicos é ainda demasiado escasso e inseguro para que se possa discernir o aristotelismo original dos acréscimos interpretativos dos Árabes; por outro lado, estes mesmos acréscimos aproximavam o aristotelismo da mentalidade dos escolásticos e do problema que os preocupava, uma vez que são, em parte, fruto da tentativa de procurar no aristotelismo uma resposta para os problemas da fé muçulmana que, em certos pontos essenciais (existência e espiritualismo de deus, criação, imortalidade da alma) coincide com a cristã. o primeiro entre os escolásticos a tomar posição perante o aristotelismo é guilherme d'auvergne. nascido em aurillac, provàvelmente antes de 1180, 243

foi mestre de teologia na universidade de paris; e de 1228 até morrer (1249), bispo de paris. a sua obra principal é o magisterium divinale, em sete partes, sendo de maior importância filosófica o de tritiitate (escrito entre 1223 e 1228), de utúverso e o de aninw (escrito entre 1231 e 1236). o objectivo de guilherme é polémico: pretende combater "os erros de aristóteles e dos filósofos que o seguem"; mas efectivamente pretende visar sobretudo avicena, do qual depende directa e polèmicamente. depende directamente na medida em que faz sua a distinção fundamental de avicena entre o ser necessário e o ser possível, depende polèmicamente na medida em que transforma essa distinção numa oposição, que lhe permite defender a nãonecessidade do mundo, e por conseguinte, da criação. nesta polémica, guilherme foi levado naturalmente a utilizar a obra de maimónidas, que era dominada pela mesma preocupação fundamental. guilherme começa por distinguir uma dupla predicação: uma predicação secundum essentiam e uma predicação secundum partecipationem. todo o predicado que se aplica a uma coisa ou pertence à própria essência da coisa ou permanece exterior à essência da coisa em que participa. a predicação por participação supõe a predicação por essência. se se afirma, por exemplo, que uma coisa é boa porque participa de uma outra coisa, e que essa outra coisa é boa também por participação, dá-se início a um processo infinito, que apenas se evi,tará quando se chegar a um ser que seja bom por essência (de trin., 1). ora, quando se atribui o ser às coisas finitas faz-se uma predicação por participação, que pressupõe uma predicação por essência: ou seja, supomos um -ser que é ser por essência e, portanto, impensável como não existente. a estes dois modos de predicação correspondem assim dois modos fundamentais do ser: o ser por 244 essência, que inclui a existência na sua quididade ou substância; e o ser não por essência cuja quididade ou substância não inclui a existência. o ser por essência não tem causa e é simples, porque privado de composição. o ser não por essência recebe a existência do exterior e precisamente do ser por essência e é, por conseguinte, composto sempre pela sua qualidade ou substância e pela existência que lhe é atribuída do exterior. estes conceitos, derivados de avicena, são esclarecidos por guilherme com os

próprios termos de avicena: o ser por essência é o ser necessário, o ser por participação é o ser possível ou potencial (de tric., 7). mas neste ponto, guilherme afasta-se de avicena para se aproximar de maimón@idas. para avicena não existe oposição entre o ser necessário e o ser possível; o ser possível é, na realidade necessário por outrem; não pode conseguir a existência em acto a não ser ao converter-se ipso facto em necessário. pelo contrário, gulilherme contrapõe nitidamente o ser necessário ao ser possível. "procederei por outra via e dir-te-ei a razão por que o ser necessário e o ser possível são contrários entre si. do mesmo modo são contrários a necessidade em si e a possibilidade em si, tal como a antiguidade e a novidade. com efeito, como a necessidade em si é causa da eternidade ou antiguidade, assim necessàriamente a possibilidade em si será causa da novidade ou temporalidade; e uma vez que a necessidade em si não se encontra no criador, nele se encontra apenas a eternidade ou antiguidade. e mais: como a necessidade em si não suporta a novidade ou temporalidade no ser em que se encontra, assim é necessário que a possibilidade em si não suporte a eternidade no seu próprio sujeito. por isso é impossível que nenhuma das coisas criadas seja eterna" (de univ. 1. 2). o primeiro resul245 tado desta contraposição entre o ser necessário e o ser possível é, portanto, a negação da eternidade do mundo e a afirmação da necessidade da criação. poss,ibilidade no ser -participado, signifea temporalidade, novidade; por conseguinte, criação. guilherme introduz assim pela primeira vez na escolástica latina, a distinção real entre a essência e a existência das coisas criadas, que iria tornar-se o cerne da metafísica de s. tomás. "uma vez que o ente possível não é o ente por essência, ele e o seu ser, que não lhe pertence por essência, são duas realidades distíntas e uma (o ser) surge da outra (a essência), ainda que não se integre na sua razão ou quididade" (de trin., 1). as coisas criadas são, portanto, formadas pela essência e pela existênc;a e essa existência deriva de deus por participação. o ser das coisas criadas e o ser de deus não são idênticos nem diferentes, são análogos: de certo modo, assemelham-se e correspondem-se entre si, sem que tenham o mesmo significado (1b., 7). este princíp;o da analogicidade do ser,

irá ter também uma aplicação sistemática na metafisica de s. tomás. a criação supõe que deus contenha em si os modelos ou exemplares das coisas criadas: esses modelos não constituem um mundo à parte, como queria platão; são a própria sabedoria ou verbo, gerado por deus desde a eternidade (de univ., 1, 36-37). deste modo, o platonismo aparece ligado à especulação do aristotelismo árabe e serve para conciliar este último com a fé cristã. o verbo divino confere directamente ao homem os conhecimentos fundamentais ou primeiros princípios a que guilherme chama prima intelligibil,;a, primae impressiones, dignitates et communes animarum conceptiones, etc. esses primeiros princípios oferecem-se à alma humana como se fossem inatos ou inculcados nela de forma natural (de an., v, 15); com 246 efeito, surgem i-ião do exterior mas do interior, e constituem não só as regras fundamentais da verdade, como também as do recto agir, ou seja, da honestidade (1b., vii, 6). através desta fluminação interior, que é um outro enxerto do agustinismo, guilherme sustenta que é inúti,1 a acção do intelecto agente. se os primeiros princípios são ffirectamente inculcados no homem pela sabedoria divina, os outros conhecimentos inteligíveis derivam directamente da realidade inteligível, sem qualquer força ou potência intermédias. "entre os sentidos e as coisas naturais não é necessária nenhuma virtude intermédia que actue sobre os sentidos de modo tal que faça com que os conhecimentos sensíveis, que existem em potência nos órgãos dos sentidos, se transformem em acto. ]para este efeito bastam os objectos sensíveis que são exteriores à alma. para. quê, na verdade, uma potência intermédia e necessária ao conhecimento intelectual, como se não bastasse ao intelecto, para apreender a realidade inteligível, a acção dessa mesma realidade? (1b., vii, 4). o intelecto agente é portanto uma ficção inútil. o iintelecto material, pelo contrário, é a verdadeira e própria essência da alma; mas não é apenas potência receptiva mas também activa e, por meio dela e dos objectos inteligíveis, podemos explicar todo o conhecimento intelectual humano. (1b., v, 6). entre os escritos de guilherme figura uma reelaboração de um tratado sobre a imortalidade da alma de domingos gundisalvo, arcebispo de segóvia,

conhecido sobretudo como tradutor (§ 252). o escrito é inteiramente dependente das fontes árabes, das quais é extraída a prova da imortalidade da alma: independência da actividade intelectual em relação ao corpo; natureza da alma como forma, imaterial o aspiração à felicidade pela alma intelectiva; posição intermédia da alma entre os puros espíritos e a alma das plantas e dos animais; inde247 pendência da alma em relação a qualquer factor destruidor; ausência de um órgão corpórco da alma intelectiva; relação da alma com a origem da vida. o escrito, muito pouco original, teve dentro da escolástica uma certa importância histórica; entre outros, inspiraram-se nele s. boaventura e alberto magno. § 254. alexandre de hales a entrada do aristotelismo na escolástica latina está de certo modo ligada com os acontecimentos da universidade de paris. em fevereiro de 1229, depois de vários tumultos que tiveram início num dia de carnaval, a universidade ficara deserta e mestre e alunos abandonaram paris. em 1231, o papa gregório ix reconstitui a universidade, mas proíbe os professores de utilizarem os livros de física de arístóteles (que haviam sido proibidos por um concílio provincial em 1210) até que fossem expurgados de qualquer suspeita de erro. da comissão para tal constituída fazia parte um mestre da própria universidade, guilherme d'auxerre, autor de um comentário às sentenças de pedro lombardo e que tinha o título de summa aurea. neste comentário, são poucas e imprecisas as referências a aristóteles; nele se encontra, todavia, defendida a distinção entre um duplo ser das coisas criadas: o ser que existe na criatura e o ser divino, do qual depende a criatura; distinção que parece reconduzir à que avicena fazia entre o possível e o necessário. mas é com alexandre de hales que a escolástica assume uma nítida posição relativamente ao aristotelismo. alexandre nasceu em hales, no condado de gloucester, em inglaterra, entre 1170 e 1180. estudou em paris e foi professor de teologia na faculdade das

artes desta cidade. em 1231, ingressou na ordem franciscana que, através dele, teve -pela primeira 248 s.boaventura vez um representante na escola parisiense. conta-se que o papa inocêncio iv, acabando por conhecer a fama que tinham as suas lições, o encarregou de compor uma summa que servisse de regra aos doutores no seu ensino. a obra apresentada por alexanúre ao papa foi em seguida submetida ao juizo de 70 teólogos. estes aprovaram-na e recomendaram-na como livro perfeito para tojos os mestres de teologia. rogério bacon, ao escrever alguns anos mais tarde a sua opus minus (1267) negava que fosse alexandre de hales o autor da summa totiu theologiae: "a partir do momento em que alexandre entrou para a ordem dos franciscanos, os frades colocaram-no nas nuvens, conferiram-lhe a máxima autoridade em todo o gênero de estudos e atribuiram-lhe esta grande summa que é carga demasiada para um só cavalo". o que é certo é que a ordem franciscana, a partir daí, se manteve fiel aos pontos fundamentais do neopla,tonismo agustiniano exposto na summa de alexandre e defendeu-os enèrgicamente contra o aristotelismo. no entanto, ela ainda apresenta vasta ressonancia do aristotelismo árabe e juda@ico e, em primeiro lugar, de lbn gabirol. deste, alexandre aceita o princípio da composição hilomórfica universal. todos os seres criados são formados por matéria e forma; o mesmo acontece com os seres espirituais. a alma é precisamente a forma do corpo; mas além de ser forma, isto é actividade, é também passividade ou capacidade de suportar a acção dos outros seres e esta passividade, que é igualmente pertença da alma separada do corpo, constitui a matéria da mesma (sum. 11, q. 61, 1). as coisas criadas têm, por um lado, a composição de matéria e forma, por outro, a composição de essência e de existência (quo est e quod est); esta última pertence também à alma como tal (lb., q. 20, 2). 249 mas se existe uma matéria das criaturas espirituais, ela não é, como queria ibn gabirol, idêntica à das coisas corpórcas. não ex@ste uma matéria comum a ambas; nem sequer existe uma matéria comum entre os corpos celestes e os sublunares, ainda que a matéria de uns e de outros pertença ao mesmo gênero

(1b., 11, q. 44, 2). a doutrina aristotélica das quatro causas é adoptada por alexandre para delerminar as relações entre deus e o mundo. deus é causa formal, é causa eficiente e causa final das coisas. É causa formal, na mej,@da em que contém as ideias, que são os exemplares das coisas do mundo: estas ideias formam um todo com a essência. É causa eficiente, na medida em que o mundo depende da sua omnipotência que pode levar a cabo tudo o que não contradiga a sua essencia e os seus atributos fundamentais. É a@nda causa final na medida em que é o bem supremo para o qual tendem as coisas, cada uma a seu modo. (ib., q. 21, 1; 11, q. 3, 2; 11, q. 42). tal como guilherme d'auvergne, alexandre não admite senão um único modelo do mundo, o próprio deus. as i@eias estão reunidades na essência de deus e só surgem na sua diversidade quando relacionadas com as coisas múltiplas que dela provêm. a propósito da questão do intelecto, alexandre sustenta que não só o intelecto material, mas também o próprio intelecto agente faz parte da alma humana. "0 intelecto agente e o intelecto potencial são duas distinções da alma racional. o àntelecto a-ente é a forma pela qual. a alma é espírito; o intelecto possível é a matéria da alma, matéria pela qual a alma existe em potência relativamente às coisas congrioscíveis que contém. tais coisas existem na sua parte inferior e surgem sobretudo da alma sensível ub., 11, q. 69, 3). também o inte250 lecto agente faz parte da alma; mas, apesar de ser a-ente, não conhece em acto to-das as formas. recebe do primeiro agente uma iluminação relativa a um certo número de forma inteligív&s; mas uma vez iluminado, aperfeiçoa por sua vez o intelecto em potência (lb., 11, q. 69, 3). deste modo, a alma humana apresenta uma tripla distinção: o intelecto material, que é o acto do homem no seu corpo; o intelecto em potência, que pertence à alma enquanto separável do corpo; o intelecto em acto, que lhe pertence porque, de certo modo, está já separada do corpo (lbid., ii, q. 69, 4). tais são os pontos sobre os quais a summa de alexandre assume uma posição,

frente ao aristotelismo árabe e judaico. estes pontos implicam a aceitação de poucos conceitos fundamentais: a distinção real entre essência e existência; a composição hilomórfica de todas as criaturas; a distinção entre os intelectos. mas a summa é uma obra vastíssima que tem a pretensão de reunir toda a tradição integral da escolástica latina para assim formar um dique contra a invasão das novas correntes aristotélicas. como tal é obra de escassa ou nenhuma originalidade. de destacar, contudo, a recapitulação que faz das provas da existência de deus, que se encontram expostas no primeiro livro da obra. aí podemos descobrir a prova de ricardo de s. victor que, da existência de coisas que dependem de outras, deduz a existência do ser que apenas depende de si próprio; a prova causal extraída do de fide orthodoxa (1, 3) de joão damasceno; a prova agustíniana deduzida da verdade que existe no homem, e que alexandre vai buscar a hu_ao de s. victor; a prova ontológica de santo anselmo; e a prova deduzida da necessidade da essência divina, tirada do monologion do próprio santo anselmo. 251 § 255. roberto grossetête: a teologia a summa de alexandre de hales, além de ser uma assimilação parcial das teses do aristotelismo, é também uma tentativa de reacção polémica-o que representa um regresso à posição platónico-agustiniana, tradicional na escolástica. o regresso ao agustinismo como método para conservar e reformar a tradição origináda da escolástica é levado a efeito, com o maior vigor, pelo franciscano roberto grossetête. já rogério bacon se havia apercebido deste aspecto da obra de roberto. "monsenhor roberto, bispo de lincoin, de santa memoria, pos completamente de parte os livros de aristóteles e as vias que ele -indicou, e tratou os temas aristotélicos valendo-se da sua própria experiência, de outros autores e de outras ciências. deste modo conseguiu escrever sobre os problemas de que se ocupava o estagirita coisas mil vezes melhores do que aquelas que se podem aprender nas más traduções daquele filósofo" (comp. stud. phil., 8, opera, ed. brewer, p. 469). a observação de bacon não significa que roberto ignorasse os livros de aristóteles. pelo contrário conhecia-os e citava-os: mas pretendia no entanto regressar à pura inspiração agustiniana.

roberto grossetête (greathead, grossum caput) nasceu em 1175 em stradbrok no condado de suffolk, em inglaterra. estudou em oxford e em paris, e em seguida tornou-se professor e chanceler da universidade de oxford. em 1235 é nomeado bispo de lincoin e morre em 12,53, excomungado pelo papa inocêncio iv, a quem nos seus sermões havia acusado de avarento, tirano e vaidoso. escreveu alguns comentarii aos segundos analíticos, às refutações sofísticas e à física de aristóteles; e traduziu do grego para latim a Ética daquele filósofo. 252 rogério bacon. tinha-o entre aqueles "que souberam explicar as causas de tudo com o auxílio da matemática" (op. maius, ed. bridges, 1, 108); e, na verdade, a sua actividade abrange todos os ramos do saber: astronomia, meteorologia, óptica, física e disciplinas liberais. os seus escritos respeitantes à filosofia são: de unica forma omnium, de statu causarum, de poteidia et actu, de veritate propositionis, de sciência dei, de ordine emanandi causatorum a deo, de libero arbitrio. desde o princípio, isto é, desde o próprio conceito de deus, que roberto se baseia na autoridade de santo agostinho. "eis como a autoridade de santo agostinho afirma abertamente: deus é forma e é forma das criaturas". da própria definição de forma se conclui que deus é forma: uma forma é aquilo pelo qual uma coisa é o que é. por exemplo, a humanidade que é a forma do homem, é aquilo pelo qual o homem é homem. ora deus é por si aquilo que é, porque a divindade, pela qual é deus, é o próprio deus. por conseguinte, deus é forma (de forma omtdum, edição baur, 108). mas a afirmação de que deus é forma das criaturas é típica da filosofia de escoto erígena (§ 180) e deste obteve amalfico de bene (§ 219) o seu panteísmo, considerando deus como a própria forma das coisas. pelo contrário, roberto dá ao seu princípio um significado que exclui uma @nterpretação panteísta. "deus não é forma das criaturas no sentido de ser parte da sua substância completa e precisamente aquela que ao unir-se com a matéria gera a coisa singular. chama-se forma ao modelo que o artesão tem presente para formar uma obra que imite e se assemelhe ao modelo. chama-se forma também, àquilo que se aplica à matéria que se pretende formar, como o selo é

forma da cera e o molde de barro é forma da estátua que nele toma corpo. finalmente, forma é 253 também o modelo que o artesão têm no seu espírito, quando apenas considera o que no seu espírito existe para produzir uma obra que a isso se assemelhe". (lb., 109). estes três significados da palavra forma como modelo interior, modelo exterior e molde da coisa a produzir não são diversos uns dos outros; a forma é em qualquer caso o exemplar ou modelo: e, tratando-se de deus, o exemplar ou modelo da sua obra não pode ser exterior a eleele próprio, e precisamente a sua sabedoria ou o ,seu verbo, é o exemplar, a causa eficiente, o agente que confere a forma, e conserva as criaturas na forma que lhes deu (m., 110). roberto ilustra a função formadora do verbo com a doutrina de santo agostinho do verbo como verdade. as coisas foram criadas para toda a eternidade pelo verbo ou discurso divino; a sua verdade consiste na sua conformidade com o discurso que as pronunciou. a conformidade das coisas com o que foi eternamento enunciado é a rectitudo das próprias coisas, a norma da sua constituição. a verdade das coisas consiste em serem como devem ser, em possuirem a plenitude de ser (plenitudo essendi) que é conforrnidade com o verbo criador (de verit., ed. baur, 134-5). se o verbo divino é a própria verdade, o homem não pode atingir a verdade senão em virtude do próprio verbo divino. no entanto, roberto não admite uma iluminação directa por parte de deus. o empirismo aristotélico ganha aqui vantagem sobre o apriorismo agustiniano. "tal como os olhos do corpo não podem ver as cores se não receberem a ilum,@nação da luz do sol, assim também os débeis olhos da alma nada vêem, a não ser através da luz da suma verdade. no entanto, não podem ver a suma verdade em si próprio, mas só na medida em que ela se une, ou de qualquer forma se funde, com as -próprias coisas verdadeiras" (de verit., ed. 254 baur, 137-138). condição para conhecer a verdade é, da parte do homem, a perfeição moral: só os puros podem ver a luz divina. mas também os ámpuros têm, de qualquer forma,

conhecimento da verdade, uma vez que, sem o saberem, vêem as coisas à luz divina, tal como um homem vê as cores à luz do sol, sem necessidade de olhar para o sol qb., 138). roberto dedicou um tratado ao problema da liberdade humana, o de libero arbítrio. nesta obra examina a relação entre a liberdade humana e a presciência d,ivinq e exclui a doutrina de averróis, segundo a qual a previsão divina apenas diria respeito à ordem universal do contràriamente à definição arbítrio é a faculdade de conservar roberto afirma a exigência

mundo; não aos acontecimentos singulares. de santo anselmo, que afirma que o "livre a rectidão da vontade pela própria rectidão", de incluir na definição de liberdade, a

capacidade de a vontade se inclinar ou dirigir para uma coisa ou para outra, indiferentemente (flexibilitas vel vertibilitas ad utrantque). com ele, a liberdade aparece definida como "a própria e natural capacidade da vontade de se inclinar a querer uma ou outra de duas coisas opostas quando consideradas em si" (de lib. arb., ed. baur, 225). deste niodo definida, a liberdade é o verdadeiro e próprio arbítrio da indiferença: já não é um conceito moral mas metafísico: pertence à natureza do homem e é por isso designada, por roberto, como capacidade natural e espontânea. este conceito deveria permanecer tradicional e típico na corrente platónicoagustiniana tal como permanecerá típico, na própria corrente, o primado da vontade afirmado claramente por roberto (opera, ed. baur, 23.1).- "0 ser da natureza racional é duplo: o querer e o aprender. mas o ser primeiro e máximo é o querer, uma vez 255 que é nele e não no apreender que consiste orig;nàriamente e por si a felicidade." 256. roberto grossetÊte: a física a especulação sobre o mundo natural tem na obra de roberto um importante lugar. a sua originalidade consiste em ter afirmado um principio que será defendido por rogério bacon e se tomará mais tarde o fundamento da ciência moderna: o estudo da natureza deve ser baseado na matemática. "a utilidade, afirma (de luce, ed. baur, 59), do estudo das linhas, dos ângulos, das

figuras é enorme, uma vez que sem ele é impossível conhecer seja o que for da filosofia natural. e isto vale de formi absoluta para todo o universo ou para qualquer das suas partes". por outro lado, roberto exprime exactamente a lei de economia que regula os fenômenos naturais e que será mais tarde corroborada por francis bacon e por galileu, todas as operações da natureza se verificam da forma mais determinada, mais ordenada e mais breve que é possível (lb., 75). entre as doutrinas físicas que lhe são próprias, merecem especial relevo as que dizem respeito aos motores do céu e à luz. os céus têm dois motores, segundo ele: a alma que existe em cada céu e o motor que existe separadamente. este motor é único * move-se infinitamente com movimento uniforme * contínuo: é o próprio deus. pelo contrário, as almas são múltiplas, uma para cada céu, e cada uma se move no seu céu de forma diversa (de motu supercelestium, ed. baur, 100). esta doutrina, que roberto apresenta como exposição da que se encontra no x11 livro da metafisica de aristóteles, na realidade nada tem a ver com esta, uma vez que aristóteles não falava de almas ligadas à maté256 ria dos céus, mas de motores separados, em tudo semelhantes ao primeiro (§ 78). no que diz respeito ao universo corpóreo, a física de robeito é substancialmente uma teoria da luz. tal como ibri gebirol, e ao contrário de alexandre de hales, roberto admite que todos os corpos tenham uma forma comum, que se liga à matéria primeira antes de receber as formas particulares dos vários elementos. esta pÊrneira forma ou corporeidade é a luz. "a luz, afirma ele, (de inchoactione formarum, ed. baur, 51-52), difunde-se em todas as direcções, de forma que de um ponte, luminoso pode @,er gerada uma esfera de luz do tamanho que se quiser, a menos que se forme algum obstáculo com corpos opacos. por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem por consequência necessária a extensão da matéria nas três dimensões". roberto identifica a difusão instantânea da luz nas três dimensões com a tridimensionalidade do espaço; e por conseguinte, a luz com o espaço. através do processo de extensão, de agregação e de desagregação detern-iinado pela luz, são formadas as treze esferas do mundo, ou seja, as nove esferas

celestes e as quatro esferas terrestres do fogo, do ar, da água e da terra (ib., 54). a luz, segundo roberto, explica todos os fenómenos da natureza. ela é o instrumento mediante o qual a alma actua sobre o corpo e é a causa da beleza do mundo visível. roberto grossetête pode ser considerado o iniciador do movimento que, contra a influência do aristotelismo, se torna partidário de um decidido regresso ao platonismo agostiniano. este movimento será continuado pelos representantes da ordem franciscana e terá como característica constante, o interesse pelo mundo natural; o que se torna objecto de uma investigação que não se contenta com os 257 textos aristotélicos, procedendo também com o raciocínio e com a experiência. § 257. joÃo de la rochelle foi discípulo de alexandre de hales e sucessor deste na cátedra ocupada pedos franciscanos na universidade de paris. joão de ia rochelle nascido à volta de 1200 e falecido em 1245, é autor de uma summa de anima que apresenta uma interpretação, no sentido agost@iniano, da teoria de avicena sobre o intelecto. joão de ]a rochelle identifica o intelecto agente com deus. "segundo avicena, afirma (de an., 11, 37), a função do intelecto agente é a de iluminar e difundir o fogo da inteligência nas formas sensíveis existentes na imaginação e, iluminando-as, abstrair as referidas formas de todas as suas condições materiais, para em seguida uni-ias e ordená-las no intelecto possível". identifica a ac@ão do intelecto activo, de que fala avicena, com a acção iluminadora de deus, de que fala santo agostinho. deste modo pode afirmar que "a alma humana nada compreende se não for iluminada pelo princípio de toda a iluminação, deus nosso pai" (m., 1, 3). a capacidade que a alma humana possui de abstrair a forma sensível das imageris do corpo deriva da acção iluminadora de deus. este autor utiliza também a teoria aristotélica da abstracção (que conhece de avicena) e agrup3. elementos díspares, ao tentar reconduzir aos princípios tradicionais do

agostinianismo as doutrinas do aristotelismo árabe. § 258. vicente de reauvais puras compilações, privadas de qualquer elaboração original, são os escritos do dominicano 258 vicente de beauvais, falecido em 1264. continuador da tradição dos enciclopedistas medievais, a sua obra apenas se destaca pelo facto de incluir passagens de autores árabes e judeus, contribuindo assim para a sua difusão no mundo latino. o seu speculum maius compreende quatro partes (speculum doctrinale, speculum historiale, speculum naturale, speculum morale), das quais apenas as três primeiras são autênticas. foi perceptor do filho de s. luís, rei de frança, e deixou-nos um texto pedagógico intitulado, acerca da educação dos filhos dos reis ou dos nobres. nota bibliogrÁfica § 252. sobre as traduções aristotélicas: a. e c. jourdain, recherches critiques sur 1'áge et 1'origine des traductions daristote, 2.a ed., paris, 1843; duhem, systême du monde, iii, paris, 1915, p. 179 e segs.; grabmann, forschungen über die lat. aristoteles-ubersetzungen d. xiii jahrh., em "beitrage", xvii, 5-6, 1916; muckle, greek works translated directly into latin before 1350, in "medieval studies", 1943. § 253. de guilherme d'auvergne, as opere foram editadas: nürnberg, 1946; venetiis, 1591; e em edição mais completa; aureliae, 1674. valols, guillaume dauvergne, paris, 1880; murÉau, histoire de ia phil. scal., 11, 1, paris, 1880, p. 142-170, duhem, système du monde, ii, p. 249260, v. p. 261-283; masnovo, da guglielmo d'-4uvergne a s. tommaso d'aquino, 2 vols., milão, 1930; gilson,m la notion d'existence chez g. d'a., in "arch. d'hist. doetri. et lit. du m. â.", 1946. § 254. de guilherme de auxerre, a summa aurea foi editada em paris, 1500 e 1518, e em veneza, 1951, grunwald, em "beitrage", vi, 3, 1907, 87-911; minges, in "theolog. quartaschrift", 1915, 508-529; ottaviano, g. d'auxerre, roma, 1929 (com bibl.).

da summa de alexandre de hales fizeram-se as seguintes edições: venetiis, 1475; norimbergae, 1482; papiae, 1489; norimbergae, 1502; lugduni, 1515; vene259 tiis, 1576; coloniae, 16622; edição critica ao cuidado dos franciscanos de quaracchi, quaracchi, 1924-1948. ha~au, histoire de ia phil. médiév., 11, 1, 130-141; gutmann, die scholastik des 13 jahrhundert in ihrer beziehungen zum judentum, 1902, p. 32-46; wittmann; die stewng des m. thomar von aquin zu avenceprol, 1900, p. 20 e segs.; herscher, a bibliography of a. of hales, in. "fran. stud."., 1945-6. § 255. de roberto, grossetête: os seus escritos tiveram uma primeira edição em veneza, 1514; e uma nova edição critica ao cuidado de buar em "beitrage" de baeumker, vol. ix, 1912. para a indicação dos textos não compreendidos nesta recolha, ver o volume de baur e ueberweg-geyer, p. 358-359. prantl, gesch. der logik, iu, p. 85-89; stevenson, robert grossatesta, londres, 1899; baur, intr. à citada edição; duhem, système du monde, v, p. 341358; alessio, studi e richerche di lincoin (grossatesta), in "rivista crit. di stor. detia fil.", 1957; storia e teoria nel pensiero scientifico di roberto grossatesta, na mesma revista, 1957. § 257. de joão de ia rochelle, a summa de anima, foi editada em prato, 1882. haurÉau, hist. de ia phil. scol., 11, 1, 192-213; manser, in "jahrb. für philos. und spek. theol.", 1912, 290-324; in. "r-evue thomiste", 1911, 89-92; minges, in "archivum franciscanum historicum", 1913, 597-622; in "philos. jahrb.@>, 1914, 461-77; in "franzisk. studien", 1916, 365-378; fabro, in. "divus thomas", 1938. § 258. de vicente venetils, 1484, 1494, 1591; segs.; duhem, Êtudes sur 318 e segs.; id.,

de beauvais o speculum maius teve várias edições: duaci, 1624; grunwald, em "beitrage", vi, 3, 112 e léonard de vinci; 11, paris, 1909, système du monde, m, 346-348.

260 xiii s. boaventura § 259. s. boaventura: o regresso a santo agostinho o regresso a santo agostinho, que na summa de alexandre de hales e principalmente na obra de roberto grossetête se apresenta como a reacção da escolástica latina contra o progresso do aristotelismo, encontra em s. boaventura a sua máxiima expressão teológica e mística. contra o assalto de uma filosofia que à primeira vista parece -impossibilitar a resolução do problema escolástico, dado que conduz a investigação filosófica a conclusões inconciliáveis com a fé, a escolástica concentra-se sobre si própria, retorna às origens e procura alcançar uma nova vitalidade a partir da doutrina agostiniana, a qual, apesar de ter permanecido sempre como a sua principal fonte de inspiração, havia perdido a sua autenticidade e força original ao longo de vários séculos de laboriosas e incertas elaborações. santo agostinho regressa. a primeira consequência paradoxal do aparecimento de aristóteles no horizonte filosófico do século xiii consistiu na revivescência das teses fundamentais do bispo de 261 hipona, como que redescobertas na sua enorme capacidade de persuação. frente a estas teorias, o aristotelismo aparece à escolástica latina como uma força estranha, possível de ser utilizada dentro de certos limites, mas à qual devemos fazer o menor número possível de concessões. os doutores escolásticos vão adquirindo uma maior familiaridade com essa mesma força, à medida que o seu conh,.cimento da obra de aristóteles se vai tornando mais amplo e mais prociso; mas aquela estranheza permanecerá até ao aparecimento das obras de alberto magno e de s. tomás, e tudo o que os doutores aproveitarão da obra aristotélica não passará de simples sugestões ou doutr3nas particulares, que procurarão integrar o melhor possível no corpo das doutrinas tradicionais. esta é a atitude de s. boaventura frente ao aristotelismo. a sua palavra de ordem, tal como a de alexandre de hales e roberto grossetête, é o regresso a

santo agostinho. o conhecimento da obra de aristótoles permite-lhe aproveitar elementos e sugestões a inserir no tronco de uma filosofia que elo explicitamente reconhece e deseja como tradicional. "não pretendo, diz ele (in sent., 11, pról.), combater as novas opiniões, mas conservar aquelas que são comuns e aprovadas. e ninguém pense que eu queira ser o fundador de um novo sistema". nenhum novo sistema: s. boaventura só quer voltar a percorrer os caminhos já desvendados, voltar a tecer a trama ininterrupta do pensamento cristão, que vai de santo agostinho ao seu mestre alexandre. as novas doutrinas, tal como as aristotélicas, parecem-lhe estar tão afastadas daqueles caminhos batidos e seguros que nem sequer se propõe combatêlas. para ele, aristóteles é um filósofo, não o filósofo: é um autor cujas afirmações podem ser ocasionalmente utilizadas, não é a própria encarnação darazão humana. 262 § 260. s. boaventura: vida e obra giovanni fidanza, chamado boaventura na ordem franciscana, nasceu em bagnoregio (viterbo), em 1221. conta uma lenda que, tendo-o s. francisco curado ainda em criança de uma doença mortal, desde logo a mãe fizera o voto de o consagrar à ordem franciscana. ao certo, sabemos que desde novo ingressou nessa ordem, aos 17 (ou 23) anos. não é contudo verdade que tenha sido aluno, em paris, de alexandre de hales. nos fins de 1253 ou princípios de 1254 foi nomeado mestre regente da universidade de paris. no ano seguinte, devido à luta travada pelos mestres seculares dessa universidade, dirigidos por guilherme de santo amor, foram excluídos do ensino parisiense todos os representantes das ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos). s. boaventura, assim como o seu am,igo s. tomás, continuou a luta através das suas obras, e um ano mais tarde o papa alexandre iv decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes. s. boaventura foi reintegrado na universidade, provàvelmente ainda em 1256; a sua nomeação oficial em outubbro de 1257 coincide com a de s. tomás, o qual foi então nomeado mestre pela primeira vez. mas já desde fevereiro de 1257 que desempenhava o cargo de geral da ordem franciscana, a qual foi por ele completamente reorganizada. em 1273 foi nomeado arcebispo de albano e cardeal. faleceu durante o

concílio de lião, em 1274. as obras de s. boaventura ocupam dez volumes na edição dos padres franciscanos de quaracchi. a sua obra fundamental é o comentário às sentenças de pedro lombardo, em quatro livros, escrito a partir de 1248, durante o seu ensino em paris. a sua obra mística mais -importante é o 1t1nerarium mentis in deuni escrito no outono de 1259. outras obras importantes são: de scientia christi, qitaes263 tiones disputatae, breviloquiuni, collationes in hexaênzeron. escreveu ainda mu,itos comentários exegéticos a livros da bíblia, numerosos opúsculos místicos, sermões e escritos relativos à sua actividade na ordem franciscana. nos opúsculos místicos, s. boaventura inspira-se em s. bernardo, hugo de s. vítor e ricardo de s. vítor. quer dizer, enquanto que na sua obra teológica procurava, remontando a santo agostinho, retomar toda a tradição escolástica, na sua obra mística recolhia paralelamente a tradição mística medieval. § 261. s. boaventura: fÉ e ciÊncia s. boaventura declara prèviamente a superioridade da fé sobre a ciência. tratando do problema de se ser maior a certeza da fé do que a da ciência, distingue uma certeza relativa às verdades da fé e uma outra relativa à s verdades da razão. no que respeita às verdades da fé, é mais certa a fé do que a ciência. mesmo que um filósofo chegue a demonstrar uma verdade de fé, por exemplo, que deus é criador, nunca poderá alcançar mediante a sua ciência a certeza que o verdadeiro fiel recebe da verdadeira fé. no que se refere às outras verdades, a fé possui uma certeza de adesão maior do que a da ciência uma certeza do, especulação maior do que a da fé. a adesão relaciona-se com o afecto, a especulação com o puro intelecto. a ciência elimina a dúvida, como se nota claramente no conhecimento dos axiomas e dos primeiros princípios mas a fé faz com que o crente adira à verdade de tal forma que nem os argumentos, nem os tormentos, nem as lisonjas o conseguirão afastar dela. seria louco o geórnetra que enfrentasse a morte pela sua certeza dum dado teorema;

mas o crente enfrenta e deve enfrentar a morte pela sua fé (in 264 sent., 111, dist. 23, a. 1, q. 4). a certeza científica é assim reduzida a um puro facto intelectual, simples indubitabilidade teorética, que não exige um compromisso pessoal; enquanto que a certeza da fé é exaltada como acto de afecto e adesão, isto é, como um compromisso efectivo da pessoa. fé e ciência, fé e opinião, podem todavia coexistir em relação à mesma verdade. se por opinião se não entende o consentimento dado a uma alternativa por temor da outra, mas sim o consentimento sugerido por razões prováveis, desde logo verificamos que muitos fiéis têm, para apoiar aquilo que crêem, muitas razões prováveis: pelo que, neste caso, a opinião não só não exclui a fé, como ainda a ajuda e a serve. por outro lado, a fé não exclui a ciência em relação à mesma verdade e não a exclui porque tem uma certeza superior. pode demonstrar-se com razões necessárias que deus existe e que é uno; porém, dilucidar essa mesma essência d-ivina e essa mesma unidade de deus e ver como essa unidade não exclui a pluralidade das pessoas, isso só poderá conseguir-se através da fé. por conseguinte, a ciência não torna inútil a iluminação da fé, antes a exige e a torna necessária. os filósofos que conseguiram conhecer muitas verdades acerca de deus, acabaram, por falta de fé, por incorrer em erro ou por desconhecer muitas outras un sent., 111, dist. 24, a. q. 3). portanto, nunca a ciência poderá deixar de valer-se da f4 a fé é a adesão integral do homem à verdade, pela qual o homem vive da verdade e a verdade vive no homem. § 262. s. boaventura: o conhecimento na teoria do conhecimento, apresenta s. boaventura a primeira e a mais notável concessão ao aristotelismo. À pergunta de se todo o conheci265 mento deriva dos sentidos, ele responde que não: tem de adraitir que a alma conhece deus, se conhece a si mesma e a tudo o que há em si sem o auxílio dos sentidos externos (in sent., 11, dist. 39, a. 1, q. 2). mas por outro

lado tem também de admitir que alma não pode fornecer por si só todo o conhecimento. o material desse conhecimento deve provir necessàriamente do exterior, através dos sentidos, já que é constituído por semelhanças das coisas, abstraídas das imagens sensoriais (de scientia christi, q. 4). diz s. boaventura: "as espécies e as semelhanças das coisas adquirem-se mediante os sentidos, como diz explicitamente o filósofo (isto é, aristóteles) em muitas passagens; e também o ensina * experiência. com efeito ninguém poderia conhecer * que é o todo ou a parte, ou o pai ou a mãe, se não recebe a espécie de um dos sentidos externos" (lt-i sent., 11, dist. 39, a. 1, q. s). se entendemos por espécie as semelhanças das coisas, que são como que retratos das próprias coisas, teremos de dizer que a alma foi criada vazia de toda a esp&e, e que aristóteles tinha razão ao afirmar que ela é uma tábula rasa (in sent., 1, dist. 17, a. q. 4). porém, a alina recebe sómente dos sentidos o material do conhecimento: a espécie, isto é, os conceitos, os termos objectivos de que parte o conhecimento. mas o conhecimento está condic@onado na sua constituicão, no seu funcionamento, e portanto no scli valor de verdade, por princípios que são independentes dos sentidos e, portanto, inatos, porque são infundidos directamente por deus. s. boaventura regressa aqui completamente à tese clássica do a-ustinianismo. É dada à alma humana um lumen directivum, uma directio naturalis, da qual ela obtém a certeza do conhecimento. e esta luz directiva, esta direcção que é impressa naturalmente nela e a dirige, vem-lhe directamente de deus. uma linfluên266 cia indirecta da razão eterna não bastaria para garantir a verdade ao conhecimento. s. boaventura refere-se expressamente às palavras de s. agostinho "o qual, com toda a clareza e razão, demonstra que a mente, para conhecer com certeza, tem de ser regulada por normas imutáve@s e eternas, não através da sua própria disposição (habitus), mas directamente por essas normas, que estão acima dela, na verdade eterna" (de scientia christi, q. 4). o nosso intelecto está pois unido com a própria verdade eterna. "para que haja conhecimento certo requere-se necessàriamente uma razão eterna reguladora e motriz, uma razão que não permaneça isolada na sua clareza, mas se una com a razão criada e seja intuída pelo homem segundo as possibilidades

da sua condição terrena" (de scientia christi, q. 4). o itinerário oferece-nos a análise das condições a priori do conhecimento humano. o mundo externo, ou macrocosmos, penetra na alma, ou microscosmos, através dos sentidos, produzindo no homem a apreensão, o prazer e o juizo. as coisas externas entram na alma não em si, isto é, na sua substância, mas sómente na sua senzelhança. a semelhança, ou espécie não é po,i@s a substância da coisa, mas únicamente uma sua imagem: s. boaventura está aqui afastado do princípio aristotélico segundo o qual a alma aprende a própria forina substancial da coisa. a proporção entre o objecto percebido e o sentido perceptor determina o prazer. À apreensão e ao prazer segue-se o juízo que explicita um e outro e, portanto, purifica e abstrai a espécie sensível, levando-a dos sentidos até ao intelecto. o juizo é a faculdade intermédia da razão, através da qual a espécie se purifica das condições materiais de tempo e lugar e é elaborada conforme as exigências do intelecto (itín., 2). mas o acto do juízo supõe já a iluminação divina. o juizo é um 267 acto da razão que abstrai do está fora do tempo, do lugar ou um elemento divino. no juizo, a que é o próprio deus como verdade, (ib., 2).

lugar, do tempo e do movimento; mas o que e do movimento é eterno, é portanto deus razão vale-se pois de uma regra infalível, segundo as palavras de santo agostinho

a espécie, abstraída das coisas sensíveis pelo juízo, constitui o ponto de partida e o objecto da actividade intelectual. esta actividade desdobra-se em três momentos: a percepção dos termos, das proposições e das ilacções. o intelecto compreende o significado dos termos quando compreende, por intermédio da definição, aquilo que é cada um deles. mas a definição dum termo faz-se recorrendo a um termo superior ou mais extenso; e remontando assim a termos cada vez mais extensos, chega-se a termos supremos o generalíssimos, ignorando os quais se não podern entender nem definir os termos inferiores. o termo mais extenso, condição de qualquer outra definição, é o de ser. o ser pode ser parcial ou total; imperfeito ou perfeito, em potência ou em acto; mas dado que, tal como afirma averróis (de an., 111, 25), a negação ou privação só pode conceber-se relativamente à afirmação, o nosso intelecto não poderá entender o ser reduzido, imperfeito ou potencial das coisas criadas se não for em referência ao ser puríssimo, actualíssimo e

completíssimo, no qual residem na sua maior pureza as razões de todas as coisas. tal como a apreensão dos -termos também os outros dois actos do intelecto pressupõem a revelação directa de deus ao ,intelecto do homem. com efeito, a nossa mente, que é mutável, não poderia compreender a verdade imutável das proposições, se não fosse iluminada por uma luz imutável; nem poderia, sem essa luz, formular ilacções, nas quais a conclusão se segue 268 necessàriamente das premissas. "a necessidade de tal ilacção, diz s. boaventura, não deriva da existência material da coisa, dado que ela é contingente, nem da existência da coisa na alma, porque seria uma ficção se não se encontrasse também na realidade. deriva pois do modelo que existe na arte eterna de deus (ab exemplaritate in arte aeterna) porque as coisas têm entre si as relações que a arte criadora divina estabelece entre os seus modelos". daqui conclui s. boaventura, uma vez mais com santo agostinho, que "o nosso intelecto está unido à própria verdade eterna e nada de verdadeiro pode compreender com certeza senão mediante o ensinamento daquela". e chega às mesmas conclusões ao considerar a actividade do intelecto prático: o conselho, que consiste em procurar o que seja melhor e que, portanto, supõe a noção do óptimo, ou seja, o sumo bem, que é deus; o juízo, que versa sobre os objectos do conselho e supõe um critério ou lei que é o próprio deus; o desejo, que tende para a felicidade, a qual consiste na posição do fim último, isto é , do sumo bem, e que portanto depende dele (itin., 3). a doutrina do conhecimento de s. boaventura mostra da forma mais clara os traços característicos do seu procedimento. permanecendo fiel aos pontos essenciais do apriorismo teológico de santo agostinho, aceita a tese empirista de aristóteles, limitando-a ao material do conhecimento; prescinde, porém, completamente das posições que o problema do conhecimento havia recebido de aristóteles e dos seus intérpretes muçulmanos. um ponto isolado do sistema aristotélico, ponto julgado carente de consequências, é tudo quanto ele utiliza da obra de aristóteles. este procedimento encontra-se ainda noutros aspectos da sua doutrina. 269 § 263. s. boaventura: metafísica e teologia

a relação intrínseca que o intelecto humano tem com deus não implica que lhe seja dado conhecer deus directamente e em si. "É preciso dizer que, tal como cada causa brilha no seu efeito e a sabedoria do artífice se manuesta na sua obra, assim também deus, que é artífice e causa da criatura, se conhece através da criatura. e para isso existe uma dupla razão: uma de conveniência e outra de indigência. de conveniência: porque não podendo deus, como luz supremamente espiritual, ser conhecido pelo intelecto na sua espiritualidade, a alma, para o poder conhecer, necessita como que de uma luz material, isto é, da criatura" (in sent., 1, dist. 3, a. 1, q. 2). dever-se-ia esperar, dada esta nova concessão ao empirismo, que s. boaventura seguisse, na demonstração da existência de deus, a via a posteriori, escolhida e seguida por s. tomás, e que por isso recusasse o argumento de santo anselmo. na realidade não foi assim: s. boaventura reproduz e defende o argumento ontológico: "a verdade do ser divino, diz ele, é tal que não pode pensar-se com consentimento [isto é, crer efectivamente] que ele não exista, a não ser por ignorância daquilo que significa o nome de deus" (1b., 1, dist. 8, a. 1, q. 2). o argumento de santo anselmo movese no âmbito da especulação agustiniana e dificilmente pode ser negado por quem, como s. boaventura, considera que a mente humana, para entender e julgar, deve estar unida a deus. não se pode pôr deus como pressuposto e condição do conhecimento de todas as coisas particulares, sem admitir que a sua realidade é certa e demonstrável independentemente dessas coisas, portanto a priori. se o conhecimento das coisas é condicionado pelo conhecimento de deus, e não inversamente, só através da relação directa com deus é que o intelecto pode 270 entender e julgar as coisas. que o homem se eleve das coisas até deus é uma possibilidade condicionada pela relação do homem com deus: não pode, pois, condicioná-lo. o argumento ontológico reentra na lógica da posição agustiniana da relação entre o homem e deus: tal como s. boaventura, considerá-lo-ão válido todos os que se novam no âmbito do pensamento agustiniano.

deus, como causa criadora das coisas, é também o seu modelo. a ideia ou o modelo das coisas na mente divina identifica-se com a essência divina, e multiplica-se só em referência às coisas criadas, mas não no próprio deus (lb., 1, dist. 35, a. 1, q. 2-3). na sua omnipotência infin-ita, deus é a causa de todas as coisas, que ele criou do nada. a criação não implica nenhum problema insolúvel, é um ponto sobre o qual coincidem plenamente a fé a a razão, quer no que se refere à dependência causal do mundo em relação a deus, quer no que se refere ao início do mundo no tempo. que o mundo tenha sido criado do nada resulta evidente de que sendo deus, pela sua omnipotência, o agente mais nobre e mais perfeito, a sua acção é portanto radical, e determina todo o ser da coisa produzida, não sendo condicionada por nada de estranho (1b., 11, dist. 1, a. q. 1). mas é impossível, segundo s. boaventura, afirmar ao mesmo tempo que o mundo foi criado e é eterno. É impossível que seja eterno aquilo que chegue a ser depois de não-ser; e é este o caso do mundo, enquanto criado a partir do nada. além disso, a duração infinita do mundo implicaria infinitas revoluções celestes. mas aquilo que é infinito não pode ser ordenado; no infinito não existe um primeiro, portanto, não existe ordem. mas é impossível que haja revoluções celestes que não sejam ordenadas. além disso a eternidade do inundo suporia a existência simultânea de infinitas almas humanas, o que é impossível. poder-se-ia 271 negar este último argumento admitindo uma palingenesia, uma real unidade das almas dos homens: mas isto não só é contrário à fé cristã como também é declarado falso pela filosofia (1b., 11, dist. 1, a. 1, q. 2). a criação como início do mundo no tempo é pois uma verdade necessária. s. boaventura assume aqui, como dotadas de valor demonstrativo as razões aduzidas por maÀmónidas (§ 250) e procede sem a mínima hesitação. a sua atitude está neste ponto em franco contraste com a prudente cautela com que o próprio maimónidas (e mais tarde s. tomás) considera a questão, declarando impossível a sua solução demonstrativa. s. boaventura aceita do aristotelismo hebraic-,) (avicebrão) o

princípio da composição hilomórfica universal. matéria, diz ele, deve ser atribuída não só aos seres corporais, mas também aos espirituais. com efeito, o ser espiritual, enquanto criado, não é absolutamente simples; mas sim composto por potênc@a e acto. ora potência e acto são convertíveis com matéria e forma: deve pois ser também atribuído aos seres espirituais o conjunto de matéria e forma. a matéria espiritual não está sujeitta, como a das coisas corpóreas, à privação e à corrupção; está privada de todas as determinações corporais (lb., 11, dist. 3, a. 1, q. 1; dist. 17, a. 1, q. 2). É pura potência e constitui, com a matéria corpórea, uma única matéria homogénea, como único é o ouro de que são feitos diversos objectos (lb., 11, dist. 3, 1, a. 1, q. 3). esta doutrina, que já alexandre de hales tinha defendido, torna-se com s. boaventura, num dos pontos básicos do agustinianismo franciscano. todos os seres são pois compostos por matéria e forma. a forma é a essência que restringue e define a matéria a um determinado ser. mas esta essência é sempre universal, porque tem em si a capacidade de se realizar numa multiplicidade de 272 indivíduos. qual é pois o princípio de individuação que determina e individualiza a forma universal? É evidente que tal princípio não pode ser externo à constituição do indivíduo, mas deve coincidir com os seus princí pios constitutivos. e como tais princípios são precisamente a matéria e a forma, a individuação derivará da união e da acção recíproca (cominunicalio) entre a matéria e a forma. e é, com efeito, pela unidade de matéria e forma que o injivíduo, é constituído, o qual é um hoc aliquid no qual o hoc é constituído pela matéria, o aliquid pela forma (1b., 111, dist. 10, a. 1, q. 3). esta solução contrasta com a tradição aristotélica que põe na matéria o princípio da individuação, e também ela se tornará uma doutrina comum do novo agustinianismo. este novo agustinianismo tomará também de s. boaventura o conceito de matéria como potência. quer passiva quer activa, capaz de determinar por si mesma a emergência das formas. a potência activa da matéria é a razão seminal. a noção de razão seminal (logos spermatikós) que passara dos estóicos aos

neoplatónicos, foi retomada nestes últimos por santo agostinho, do qual a retomou s. boaventura. "a razão seminal é.a potência activa radicada na matéria; e esta potência activa é a essência da forma, porque dela se gera a forma mediante o procedimento da natureza, que nada produz do nada" (lb., 11, dist. 18, a. 1, q. 3). § 264. s. boaventura: a física da luz tal como roberto grossetête, s. boaventura elabora uma doutrina física, que é uma teoria da luz. a luz não é um corpo, mas a forma de todos os 273 corpos. se fosse um corpo, dado que é próprio dela multiplicar-se por si mesma, seria necessário admitir que fosse possível a um corpo multiplicar-se sem adjunção de matéria, o que é impossível. a luz é a forma substancial de qualquer corpo natural. todos os corpos dela participam em maior ou menor quantidade, e conforme a sua participação, assim é maior ou menor a sua dignidade ou valor na hierarquia dos seres. a luz é o princípio da formação geral dos próprios corpos; a sua especial é devida à adição de outras formas, elementares ou mixtas (in sent., 11, dist. 13, a. 2, q. 1-2). isto implica que na constituição dum corpo podem entrar várias formas, que coexistem no próprio corpo. a forma comum da luz, efectivamente, coexiste em cada com a forma própria desse mesmo corpo (1b., 11, dist. 13, a. 2, q. 2). o princípio da pluralidade das formas substanciais constituirá um outro ponto básico da metafísica do agustinjanismo. § 265. s. boaventura: a antropologia "deus criou o homem de duas naturezas màximamente d-istintas entre si, conjugando-as numa única pessoa" (brevil., 11, 10). a alma e o corpo entram pois, ao mesmo nível e na mesma mejida, na constituição da unidade na natureza e da pessoa humana, embora estando tão distantes uma da outra. no que se refere à alma, s. boaventura prefere a definição platónica que faz dela o motor do próprio corpo, à aristotélica, que a considera como enteléquia ou forma perfeita do corpo (1b., 11, 9). mas dado que a alma é não só uma forma natural, mas também uma substância, e uma substância espiritual é separável do corpo, segue-se que ela é, por natureza, incorruptível e

imortal. o seu nascimento não é devido à acção duma forma natural, mas à criação 274 directa de deus. o seu destino é alcançar a beatitude em deus, pelo que pode ser definida como uma "forma beatificável" (ib., 11, 9). s. boaventura preocupa-se com o garantir ao homem, no campo do conhecimento, a capacidade de iniciativa, e, no campo prático, a liberdade. contra a identificação do intelecto agente com deus, sustentada por alexandre de hales e joão de ia rochelle, afirma a oportunidade de reconhecer o poder activo que deus concedeu à alma humana. "se bem que esta solução, diz ele (opera, ed. quaracchi, 11, 568 b) afirme a verdade e esteja de acordo com a fé católica, não é, todavia, oportuna (a,d propositum): já que à nossa alma foi dada a possibilidade de outros actos; e deus, embora sendo o agente principal nas acções de qualquer criatura, deu, todavia, a alguns dos seres uma força activa, que os conduz às acções que lhe são próprias". ainda que falando como aristóteles do intelecto possível e do intelecto agente, s. boaventura considera-os como duas partes da alma, dois aspectos do intelecto humano. no domínio prático o homem é livre, porque deve merecer a beatitude e não há mérito sem liberdade. a liberdade pertence à natureza da vontade e de nenhum modo lhe pode ser arrebatada, ainda que se torne miserável pela culpa e escrava do pecado. a liberdade não é um instinto natural, mas supõe a deliberação e o arbítrio. a sua essência consiste na possibilidade da escolha, a qual é sempre escolha de indiferença, pois supõe que a vontade possa, em cada caso, decidir-se por uma ou por outra de duas alternativas opostas. mas dado que esta indiferença pressupõe uma deliberação preliminar, à qual se junta a decisão da vontade, o livre arbítrio é simultâncamente uma faculdade da razão e da vontade (brevil., 11, 9). 275 a livro escolha do homem é guiada e iluminada pela sindérese 1. s. boaventura aceita de aristóteles a distinção entre, intelecto especulativo e intelecto prático; mas, ainda com aristóteles, nega que se trate de dois intelectos diferentes. "0 intelecto especulativo torna-se prático quando se une à

vontade e à acção, determinando-as e dirigindo-as" (in sent., ii, dist. 24, p. 1, a. 2, q. 1). na realidade o intelecto prático e o intelecto especulativo são a mesma faculdade: o primeiro é sómente a extensão do segundo ao domínio da acção (1b., ii, dist. 39, a. 1, q. 1). aquilo que a ciência é para o intelecto especulativo, é a consciência para o intelecto prático. "a ciência é a perfeição do nosso intelecto enquanto especulativo, a consciência é a disposição (habitus) que aperfeiçoa o nosso intelecto enquanto prático". mas como a actividade do intelecto especulativo pressupõe, segundo v-imos, a iluminação directa pela parte de deus, assim também é pressuposta a mesma iluminação pela actividade do intelecto prático. "no momento da criação da alma, o intelecto recebe uma luz que é para ele um critério natural de juízo (naturale iudicatorium) que dirige o próprio intelecto no conhecer: também da mesma forma o afecto tem em si um peso (pondus) natural que o dirige no desejam (lb., 11, dist., 39, a. 2, q. 2). este peso natural que faz mover o intelecto prático em direcção ao bem é 1 o conceito de si~rese aparece pela primeira vez em s. jerónimo (comm. in ezechiele, in p. l., 25.o, cãi. 22) como a "faísca da consciência, que não se extinguiu ne peito de adão depois de ter sido expulso do paraiso". encontrase noutros padres (basílio, gregório o grande) e nos vitorinos. porém só em s. boaventura e em alberto o magno (§ 271) se torna urna faculdade natural do juizo, que atrai o homem para o bem e lhe dá o remorso do mal. 276 a disposição nele determina pela acção iluminadora de deus; a sindérese. "a sindérese, diz s. boaventura (ib., 11, dist. 39, a. 2, q. 1) é a faísca da consciência: a consciência não pode mover, incitar, estimular, senão mediante a síndérese, que é como que o seu estímulo e o seu fogo animador. tal como a razão não pode mover senão mediante a vontade, assim também a consciência não pode mover senão mediante a sindérese". o remorso não é produzido pela consciência, mas sim pela disposição que regula a consciência, por aquela faísca que é a sindérese (1b., 11, dist. 39, a. 1, q. 1). no itinerário, a sindérese é denominada "o ápice da mente" e consiste no último grau da elevação até deus, aquele que imediatamente precede o rapto final. § 266. s. boaventura: a ascese mística

o misticismo de s. boaventura inspira--se no dos vitorinos, entroncando também na corrente agustiniana chefiada por aqueles. o solilóquio, diálogo entre o homem e a sua alma, insipra-se em hugo de s. vítor; o itinerário da mente para deus, que é a obra-prima mística de s. boaventura, inspirase em ricardo de s. vítor. tal como hugo de s. vítor, distingue s. boaventura três olhos ou faculdades da mente humana: o que esitá voltado para as coisas exteriores e que é a sensibilidade; o que está voltado para si próprio e que é o espírito, o que está voltado para cima de si próprio e que é a mente. cada uma destas faculdades pode ver deus per speculum, isto é, através da imagem de deus reflectida nos entes criados, ou in speculo, isto é, na marca ou traço que o ser e a bondade de deus deixam nas próprias coisas. cada faculdade se desdobra deste modo e ficam assim determ-inadas sds potências da alma pelas quais se -passa 277 das coisas ínfimas às supremas, das exteriores às interiores, das temporais às eternas. estas seis potências, em cuja enumeração s. boaventura segue isaac de stella (§ 223), são as seguintes: o sentido, * imaginação a razão, o intelecto, a inteligência, * o ápice da mente ou faísca da sindérese. a estas seis potências da alma correspondem seis graus da ascese para deus. o primeiro consiste na consideração das coisas na sua ordem e na sua beleza e em todos os atributos que permitem remontar à sua origem divina. o segundo consiste na consideração das coisas não em si próprias, mas na alma humana que delas apreende as espécies que purifica, abstraindo-as das condições, sensíveis, com * faculdade do juízo. no terceiro grau contempla-se * imagem de deus reflectida nos poderes naturais da alma: a memória, o intelecto e a vontade. no quarto grau contempla-se deus na alma iluminada e aperfeiçoada pelas três virtudes teologais. no quinto grau contempla-se deus directamente no seu primeiro atributo que é o ser. no sexto grau contempla-se deus na sua máxima potência que é o bem, pelo qual deus se difunde e se articula na trindade. com este sexto grau termina a investigação mística, mas não a ascese mística. À alma que já percorreu os seis graus da investigação "

resta únicamente transcender e superar não só o mundo sensível, mas também a si própria". neste ponto, necessita abandonar todas as operações intelectuais e projectar em deus todo o afecto. "pois que aqui nada pode a natureza, e bem pouco a actividade humana, pouca importância se deve dar-se à investigação, à eloquência, às palavras, ao estudo, à criatura, e muito à piedade, à alegria interior, ao dom divino, ao espírito santo, isto é, à essência criadora, pai, filho e espírito santo" (itin., 7). esta condição de êxtase (excessus mentis) é descrita por s. boaventura com as palavras do pseudo-dio278 nísio (de myst. theol., 1, 1) e é definida como um estado de douta ignorância, na qual a escuridão dos poderes cognosciltivos humanos se transfornia em luz sobrenatural. "0 nosso espírito é arrebatado acima de si mesmo, na escuridão e no êxtase, por uma espécie de dou-ta ignorância" (brevil., v, 6). o êxtase não é portanto um estado intelectual, mas sim um estado vital: é a união viva do homem com o criador, união pela qual o homem pode participar na vida de deus e conhecer a essência. nota bibliogrÃfica § 260. os dados biográficos do texto estão conforme as investigações de pelster, literargeschichtlíche problem im anschluss an die bonaventuraausgabe, in "zeitschrift für kotholische theologie", innsbruck, 1924, vol. 48, p. 500-532, das obras de s. botaventura há a edição feita pelos padres de quaracchi, 10 volumes e um de indices, quaracchi, 18821902. outras edições: breviloquium, itinerarium mentis in deum, de reductio,n,e artium ad theologiam, quaracchi, 1911; collationes in hexaêmeron, ed. delorme, quaracchi, 1934; opera teologica selecta, quaracchi, 1934-1949; questions dispputées, de caritate, de novisimis, ed. glorieux, paris, 1950. gilson, la phil. de st. b., paris, 1924, 1953 3 (com bibl.); stefanini, il problema religioso in ptatone e s. bonaventura, turim, 1934; breton, st. b., paris, 1943; lazzarini, s. bonaventura, filosofo e mistico del cristianesimo, milão, 1946 (com bibl.). § 261. acerca das relações entre fé e ciência: ziesche, die h1. b. lehre von der logisch-psychologischen analys-, des glaubensaktes, breslau, 1908.

§ 262. sobre a doutrina do conhecimento: luyckx, in "beitrãge", xxm, 34, 1922; dady, the theory of knowiedge of st. b., washington, 1939. § 263. sobr-@ -a teologia e a metafisica: daniels, in "beitrãge", vii, 1-2, 1909, p. 38-40, 132-156; rosenmollee, in "beitrãge", xxv, 3-4, 1925; bissen, llexemplarisme divin seion st. b., paris, 1931; robert, hy@-morphisme et devenir chez st. b., montreal, 1936; 279 tavard, transi~ and permanence. the nature of theology according to st. b., saint bonaventure (new york), 1954. § 2644. sobre a filosofia da luz: baeumker, wítelo, in "beitrãgc", 111, 2, 1908, p. 394-407. § 265. sobre a antr~ogia: lutz, in "beitráge", vi, 4-5, 1909; 0donnfl, the psychology of st. b. and st. thom" aquinas, washingtm, 1937. § 266. sobre o misticism<>: gronewald, fra"iskanische mystik, mónaco, 1931; prentice, the psychology of love according to st. b., saint bonaventura (new york), 1951, 19572 280 í n d 1 c e terceira parte filosofia escolÃstica i-as origens da es0oi@Ãst1ca

...

9

§ 173. carácter da escolástica ... ... 9 § 174. o renascimento carolíngio ... ... 17 § 175. henrique e remigio de auxerre 21 nota bibliográfica ... ... ... ... ii - joÃo

escoto erigena

23 ... ...

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27

§ 176. a personalidade histórica ... ... 27 § 177. vida e obra ... ... ... ... ... 28 § 178. fé e razão ... ... ... ... ... 3!p § 179. as quatro naturezas ... ... ... 32 § 180. a primeira natureza: deus ... 34 § 181. a

segunda natureza: o verbo ... 36 § 182. a terceira natureza: o mundo ... 37 § 183. o conhecimento humano ... ... 40 § 184. divindade do homem ... ... ... 41 § 185. o mal e a liberdade humana ... 44 § 186. a lógica ... ... ... ... ... ... 46 nota bibliográfica

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48

281 dialr@, § 187. § 188. ansei, § 189. § 190. § 191. § 192. § 193. § 194. § 195. § 196. § 197. § 198. § 199. cticos e antidial1,=icos gerberto ... ... ... ... ... ... 49 49 51 55 57 57 58 60 61 65 67 68 70 73 74 76 78 v_a dis sais § 200.

§ 201. § 202. § 203. vi - abe §204. §205. §206. §207. §208. §209. §210. §211. cussÃo sobre os univer- ... ... ... ... ... 81 o problema e o seu significado @@ 4.f_; dialécticos e antidialécticos

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81

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nota bibliográfica ... ... ... ... mo de aosta ... ... ... ... a figura histórica ... ... s ... 85

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... vida e obra ... ... ... ...

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... r-?-scelino

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guilherme de champe-aux ... ... 88 o tratado "de generibus et speelebus" ... ... ... ... ... ... 89 nota bibliográfica lrdo

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r e e razão

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90

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a existência de deus

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a essência de deus

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a criação

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a figura histõrica ... ... ... ... 92 ... ... a trindade

... ...

91 -ida e escritos

95 ... ...

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o o ... ... ... razão e autoridade o universal como discurso ... ... 98 o acordo entre a filosofia e a 1. x a liberdade

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... 100 ... ...

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presciência e predestinação

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ai

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a alma

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r~ aç o ... ... ... ... a trindade divina a unidade divina ... ... ... 105 283 not- biblio ráfica ... ...

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282 § 212. §213. §214. vii-a esc §215. §216. §217. §218. §219. §220. viu -o mis § 221. § 222. deus e o mundo

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106 108 110 112 115 115 123 129 135 138 142 146 149 149 151 § 223. § 224. § 225. § 226. § 227. § 228. § 229. ix - a sis

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102

§ 230. § 231. x-a

fil

§ 232. § 233. isaac de stella

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155 156 160 164 166 167 169 172 175 175 177 181 183 183 187 o homem

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hugo de s. victor* razão e fé hugo de s. victor: a teologia hugo de s. victor: a antropoloma ... ... ... a Êtica

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nota bibiiolyráfica ola de chartres

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o naturalismo chartrense t-5- a. salisbúria

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... ... gilberto de ia porrêe, ... ... ...

hugo de s. victor: o misticismo ricardo de s. victúr: a teologia ricardo de s. victor- a antroolo-ia mistica k nota bibliogrãfica

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... ... alano de lille

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tematizaÇÃo da teologia sentenças e sumas

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t->.a,- t-1-1o panteismo: amairico de bena e davi-d de dinant de flore ... ... ... ... nota biblio--%fica ticis o ... ...

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nota biblio@ráfica osofia Árabe

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caracteres do misticismo medieval caracíceristicas e origens ... bernardo de cjáraval

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... ... al-kindi

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284 285 §234. ai farabi ... ... ... ... ... 188 §235. avicena: a metafisica ... ... 191 §236. avicena: a antropologia ... ... 198 §237. ai gazali. ... ... ... ... ... 201 §238. ibn-badja ... ... ... ... ... 204 §239. ibn-tofail ... ... ... ... ... 205 §240. averróis: vida e obra ... ... 207 §241. averróis: fiiosofia e religião ... 209 §242. averróis: a doutrina do intelecto 211 §243. averróis: a eternidade do mundo 215 nota bibliográfica

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xi -a filosofia judaica

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219 ... ...

§244. a cabala ... ... ... ... ... ... israeli ... ... ... ... 225 §246. saadja ... ... 226 §247. ibn-gebiroil: matéria e forma

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223

223 §24,5. ... ... ...

isaque ... ... 227 §248.

ibngebirol: a vontade ... ... 228 §249. filosofia ... 230 §250. maimónidas: a teologia 231 §251. maimõnidas: a antropologia ... nota bibliográfica

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reacção contra a ... ... 235

238

286 xh --a poli=ca contra o aristotelismo ... ... 2@ § 252.

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as traduções latinas de aristó-

teles ... ... ... ... ... ... ... 24 § 253. guilherme d'auvergne ... ... ... 2@ § 254. alexandre de hales ... ... ... 2@ § 255. roberto grossetê te: a teologia 2,1 § 256. roberto grossetête: a física ... 2,1 § 257. joão de ia rochelle ... ... ... 2,1 258.

vicente de beauvaís

nota bibliográfica xiiii

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s. boaventura

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2!

2!

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§ 259. o regresso a santo agostinho ... 21 § 260. vida e obra ... ... ... ... ... 21 § 261. fé e ciéncia ... ... ... ... ... 21 § 262. o conhecimento ... ... ... ... 2 § 263. metafisica e teologia ... ... ... 2 § 264. a física da luz ... ... ... ... 2 § 265. a antropologia ... ... ... ... 2 § 266. a ascese mística ... ... ... ... 2 nota bibliográfica 287

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