Gramatica Da Multidao

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  • Words: 51,812
  • Pages: 113
GRAMÁTICA DA MULTIDÃO Para uma Análise das Formas de Vida Contemporâneas http://geocities.yahoo.com.br/autoconvocad/gramatica_da_multidao.html

por Paolo VIRNO http://es.wikipedia.org/wiki/Paolo_Virno

GRAMMATICA DELLA MOLTITUDINE Per un’analisi delle forme di vita contemporanee per Paolo VIRNO

GRAMMAIRE DE LA MULTITUDE Pour une analyse des formes de vie contemporaines Par Paolo VIRNO

GRAMATICA DE LA MULTITUD Para una Análisis de las Formas de Vida Contemporáneas

por Paolo VIRNO

Maruchicyûdo no Bunpou: Gendaitekina Seikatsu-keishiki wo Bunsekisuru tameni by Paolo VIRNO

A Grammar of the Multitude For an Analysis of Contemporary Forms of Life

by Paolo VIRNO

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Pubblicazione italiana: Rubbettino Editore Catanzaro, Italia. 2001. Pubblicazione italiana: DeriveApprodi Roma, Italia. 2002. Traduction française: Véronique Dassas Editions de l’éclat, N”mes & Conjonctures Montéal, Québec,Canada. 2002, Traducción al español: Eduardo Sadier Buenos Aires, Argentina. Abil de 2002. Tradução para o português: Leonardo Retamoso Palma Santa Maria, RS, Brasil. Setembro de 2003. Traducción al español: Adriana Gómez Edición: Traficantes de Sueños Madrid, España. Diciembre de 2003 Translated from Italian into Japanese by Jun Fujita Hirose The Japanese edition belongs to Getsuyosha Limited Tokyo, Japan. 2004 January

Translated from the Italian: Isabella Bertoletti, James Cascaito & Andrea Casson Semiotext(e)

Distributed by The MIT Press, Cambridge, Mass and London, England Printed in the United States of America, 2004

DA APRESENTAÇÃO ITALIANA, 1º edição (Rubettino) “Na crise do conceito moderno de “povo”, crise ligada inevitavelmente àquela do conceito hobbesiano de Estado, a “multidão” re-emerge como categoria mais adequada para traçar uma “gramática” das inquietudes do homem pós-moderno. O volume de Paolo Virno tenta, portanto, uma análise das formas de vida contemporâneas, através da “lente” privilegiada de tal categoria filosófica redescoberta, a qual devém, desse modo, um eficaz princípio sociológico.” •

O presente volume reúne as lições levadas a cabo por Paolo Virno no Doutorado de Investigação em “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, desenvolvido no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade da Calábria, cofinanciado pelo Fundo Social Europeu.

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Paolo Virno é docente de Ética da Comunicação na Universidade da Calábria. A transcrição das lições foi preparada pela Drª Giuseppina Pellegrino. O texto foi revisado pelo autor e serviu de base para as traduções para o espanhol, o francês e para o português.

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ÍNDICE PRÓLOGO (PREMISSAS) .................................................................. 1. Povo versus Multidão: Hobbes e Espinosa ...................................... 2. A pluralidade exorcizada: o “privado” e o “individual”....................... 3. Três aproximações aos Muitos.......................................................

04 04 06 07

1. PIMEIRA JORNADA: TEMORES E PROTEÇÕES ................................ Ante a dupla medo/angústia ............................................................ Lugares comuns e “intelecto geral”.................................................... Publicidade sem esfera pública ........................................................ Qual Um para os Muitos?..................................................................

09 09 12 16 18

2. SEGUNDA JORNADA: TRABALHO, AÇÃO, INTELECTO ....................... Justaposição de poiesis e práxis ....................................................... Do virtuosismo. De Aristóteles a Glenn Gould ..................................... O falante como artista executor......................................................... Indústria cultural: antecipação e paradigma ....................................... A linguagem em cena ...................................................................... Virtuosismo do trabalho.................................................................. O intelecto como partitura ............................................................... Razão de Estado e Êxodo..................................................................

22 23 24 27 28 31 33 35 38

3. TERCEIRA JORNADA: A MULTIDÃO COMO SUBJETIVIDADE ................ 43 O princípio de individuação .............................................................. 43 Um conceito equívoco: a biopolítica ................................................... 48 As tonalidades emotivas da multidão ................................................. 51 A tagarelice e a curiosidade .............................................................. 55 4. DEZ TESES SOBRE A MULTIDÃO E O CAPITALISMO PÓS-FORDISTA ... Tese 1............................................................................................ Tese 2............................................................................................ Tese 3............................................................................................ Tese 4............................................................................................ Tese 5............................................................................................ Tese 6............................................................................................ Tese 7............................................................................................ Tese 8............................................................................................ Tese 9............................................................................................ Tese 10..........................................................................................

61 62 63 64 66 67 68 69 71 72 73

Bibliografia .................................................................................... 76 A.................................................................................................. 76 B.................................................................................................. 78 Apêndice Multidão e princípio de individuação .................................................. 80

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PRÓLOGO (PREMISSAS) 1. Povo versus Multidão: Hobbes e Espinosa Considero que o conceito de “multidão”, por contrapor àquele, mais familiar, de “povo”, seja uma ferramenta decisiva para toda reflexão sobre a esfera pública contemporânea. É preciso ter presente que a alternativa entre “povo” e “multidão” esteve no centro das controvérsias práticas (fundação do Estado centralizado moderno, guerras religiosas, etc.) e teórico-filosóficas do Século XVII. Esses dois conceitos em luta, forjados no fogo de agudos contrastes, jogaram um papel de enorme importância na definição das categorias sócio-políticas da modernidade. A noção de “povo” foi a prevalecente. “Multidão” foi o termo derrotado, o conceito que perdeu. Ao descrever a forma de vida associada e o espírito público dos grandes Estados recém constituídos, já não mais se falou de multidão, senão que de povo. Resta hoje perguntar, se ao final de um prolongado ciclo, não se reabriu aquela antiga disputa; se hoje, quando a teoria política da modernidade padece de uma crise radical, aquela noção derrotada, então, não mostra uma extraordinária vitalidade, assumindo assim uma clamorosa revanche? Ambas as polaridades, povo e multidão, reconhecem como pais putativos a Hobbes e Espinosa. Para Espinosa, a multidão representa uma pluralidade que persiste como tal na cena pública, na ação coletiva, na atenção dos assuntos comuns, sem convergir no Uno, sem evaporar-se em um movimento centrípeto. A multidão é a forma de existência política e social dos muitos enquanto muitos: forma permanente, não episódica nem intersticial. Para Espinosa, a multitudo (multidão) é a arquitrave das liberdades civis (Espinosa, 1677). Hobbes detesta — uso intencionalmente um vocábulo passional, pouco científico — a multidão e investe contra ela. Na existência social e política dos muitos enquanto muitos, na pluralidade que não converge em uma unidade sintética, ele percebe o maior perigo para o “supremo império”, isto é, para aquele monopólio das decisões políticas que é o Estado. O melhor modo de compreender o alcance de um conceito — a multidão em nosso caso — é examiná-lo com os olhos daqueles que o combateram com tenacidade. Descobrir todas as suas implicações e matizes é algo próprio daquele que deseja expulsá-lo do horizonte teórico e prático. Antes de expor concisamente de que modo Hobbes descreve a detestada multidão, é útil precisar o objetivo que aqui se persegue. Desejo mostrar que a categoria de multidão (tal como é considerada por seu jurado inimigo Hobbes) ajuda-nos a explicar certo número de comportamentos sociais contemporâneos. Após séculos de “povo” e, por conseqüência, de Estado (Estado-Nação, Estado centralizado,

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etc.), abolida nos albores da modernidade, a polaridade contraposta finalmente volta a se manifestar. A multidão como último grito da teoria social, política e filosófica? Talvez. Uma ampla e notável gama de fenômenos — jogos lingüísticos, formas de vida, tendências éticas, características fundamentais do modo atual de produção material — resulta pouco ou nada compreensível se não é a partir do modo de ser dos muitos. Para analisar este modo de ser é preciso recorrer a um arranjo conceitual sumamente variado: antropologia, filosofia da linguagem, crítica da economia política, reflexão ética. É preciso cercar o continente-multidão, mudando muitas vezes o ângulo da abordagem. Como dissemos, vejamos brevemente como Hobbes, adversário perspicaz, delineia o modo de ser dos “muitos”. Para Hobbes, o antagonismo político decisivo é aquele entre a multidão e o povo. A esfera pública moderna pôde ter como centro de gravidade a um ou outro. A guerra civil, sempre uma ameaça, teve sua forma lógica nessa alternativa. O conceito de povo, segundo Hobbes, está estreitamente associado à existência do Estado; não é um reflexo, uma reverberação: se for Estado, é povo. Se faltar o Estado, não pode haver povo. Em De Cive, onde expôs longamente seu horror pela multidão, lê-se: “O povo é um Uno, porque tem uma única vontade e, a quem se lhe pode atribuir uma vontade única” (Hobbes, 1642: XII, 8; e também VI, 1, Nota)∗. A multidão é, para Hobbes, inerente ao “estado de natureza”; portanto, aquilo que precede à instituição do “corpo político”. Mas esse distante antecedente pode reaparecer, como uma “restauração” que pretende fazer-se valer, nas crises que sabem sacudir a soberania estatal. Antes do Estado eram os muitos, depois da instauração do Estado foi o povo — Uno, dotado de uma única vontade. A multidão, segundo Hobbes, afasta-se da unidade política, opõe-se à obediência, não aceita pactos duradouros, não alcança jamais o status de pessoa jurídica, pois nunca transfere seus direitos naturais ao soberano. A multidão está impossibilitada de efetuar esta “transferência”, por seu modo de ser (por seu caráter plural) e de atuar. Hobbes, que era um grande escritor, sublinhou com uma precisão lapidar como a multidão era antiestatal, e, por isso, antipopular: “Os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, são a multidão contra o povo” (ibid.). A contraposição entre os dois conceitos é levada aqui ao extremo: se povo, nada de multidão; se multidão, nada de povo. Para Hobbes e os apologistas da soberania estatal do Século XVI, a multidão é um conceito limite, puramente negativo: coincide com os riscos que ameaçam o estatismo, o obstáculo que pode chegar a atolar a “grande máquina”. Um conceito negativo, a multidão: aquilo que não aceitou fazer-se povo, enquanto que contradiz virtualmente ao monopólio estatal da decisão política, isto é, uma reaparição do “estado de natureza” na sociedade civil.

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2. A pluralidade exorcizada: o “privado” e o “individual” Como sobreviveu a multidão à criação dos Estados centrais? Em que dissimuladas e raquíticas formas deu sinais de si, depois da plena afirmação do moderno conceito de soberania? Onde se escuta seus ecos? Estilizando ao extremo a questão, intentemos identificar o modo em que foram concebidos os muitos enquanto muitos no pensamento liberal e no pensamento social-democrata (isto é, na tradição política que se desenvolveu a partir da unidade do povo como ponto de referência indiscutível). No pensamento liberal, a inquietude despertada pelos “muitos” foi aquietada mediante o recurso à dupla público-privado. A multidão, antípoda do povo, cobra a semelhança, algo fantasmagórica e mortificante, do denominado privado. Tenha-se em conta: também a dupla público-privado, antes de se tornar óbvia, forjou-se entre sangue e lágrimas em mil contendas teóricas e práticas; e derivou, portanto, em um resultado complexo. O que, para nós, pode ser mais normal do que falar de experiência pública e de experiência privada? Mas essa bifurcação não foi sempre tão óbvia. E é interessante esta falida obviedade, pois hoje estamos, talvez, em um novo Seiscentos; em uma época na qual explodem as antigas categorias e se devem cunhar outras novas. Muitos conceitos que ainda parecem extravagantes e não usuais — por exemplo, a noção de democracia não representativa — tendem a tecer um novo sentido comum, aspirando, por sua vez, a fazerem-se “óbvias”. Mas voltemos ao tema. “Privado” não significa somente algo pessoal, atinente à interioridade de tal ou qual; privado significa, antes de tudo, privo: privado de voz, privado de presença pública. No pensamento liberal a multidão sobrevive como dimensão privada. Os muitos estão despojados e afastados da esfera dos assuntos comuns. Onde achar, no pensamento social-democrata, algum eco da arcaica multidão? Talvez no par coletivo-individual. Ou, melhor ainda, no segundo termo, o da dimensão individual. O povo é o coletivo, a multidão é a sombra da impotência, da desordem inquieta, do indivíduo singular. O indivíduo é o resto sem importância, de divisões e multiplicações que se efetuam longe dele. Naquilo que tem de singular, o indivíduo resulta inefável. Como inefável é a multidão na tradição social-democrata. É conveniente antecipar uma convicção que emergirá prontamente de meu discurso. Creio que na atual forma de vida, como do mesmo modo na produção contemporânea (contanto que não se abandone a produção — carregada como está de ethos, de cultura, de interação lingüística — à análise econométrica, mas que se a entenda como a enorme experiência do mundo), percebe-se diretamente o fato de que tanto a dupla público-privado como a dupla coletivo-individual não se sustentam mais, caducaram. Aquilo que

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estava rigidamente subdividido confunde-se e se superpõe. É difícil dizer onde finaliza a experiência coletiva e começa a experiência individual. É difícil separar a experiência pública da considerada privada. Nessa diluição das linhas delimitadoras, deixam de ser confiáveis, também, as duas categorias do cidadão e do produtor, tão importantes em Rousseau, Smith, Hegel, e depois, como alvo polêmico, no próprio Marx. A multidão contemporânea não está composta nem de “cidadãos” nem de “produtores”; ocupa uma região intermediária entre “individual” e “coletivo”; e por isso já não é válida, de modo algum, a distinção entre “público” e “privado”. É por causa da dissolução destas duplas, dadas por óbvias durante tanto tempo, que já não é possível falar mais de um povo convergente na unidade estatal. Para não proclamar estribilhos de tipo pós-moderno (“a multiplicidade é boa, a unidade é a desgraça a evitar”), é preciso reconhecer que a multidão não se contrapõe ao Uno, mas que o redetermina. Também os muitos necessitam de uma forma de unidade, um Uno: mas, ali está o ponto, essa unidade já não é o Estado, senão que a linguagem, o intelecto, as faculdades comuns do gênero humano. O Uno não é mais uma promessa, mas uma premissa. A unidade não é algo mais (o Estado, o soberano) para onde convergir, como era no caso do povo, mas algo que se deixa às costas, como um fundo ou um pressuposto. Os muitos devem ser pensados como individuações do universal, do genérico, do indiviso. E assim, simetricamente, pode-se conceber um Uno que, longe de ser um porquê concludente, seja a base que autoriza a diferenciação, que consente a existência político-social dos muitos enquanto muitos. Digo isto para assinalar que uma reflexão atual sobre a categoria de multidão não tolera simplificações apressadas, abreviações arbitrárias, mas que deverá enfrentar problemas ríspidos: em primeiro lugar o problema lógico (para reformular, não para eliminar) da relação Uno-Muitos. 3. Três aproximações aos Muitos As determinações concretas da multidão contemporânea podem ser abordadas desenvolvendo três blocos temáticos. O primeiro é muito hobbesiano: a dialética entre medo e busca de segurança. É evidente que também o conceito de “povo” (em sua articulação dos Seiscentos, liberal ou social-democrata) identifica-se com certa estratégia tendente a afastar o perigo e obter proteção. Sustentarei (na presente exposição), que se acha debilitada, tanto no plano empírico como no conceitual, a forma de medo e seu correspondente tipo de resguardo, que se associou com a noção de “povo”. Em seu lugar prevalece uma dialética temor-proteção [timore-riparo] muito distinta: ela define alguns traços característicos da multidão atual. Medo-segurança: eis aqui uma tira ou papel de tornassol filosófica e

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sociologicamente relevante para mostrar como a figura da multidão não é só “rosas e flores”; para individualizar que venenos específicos contém nela. A multidão é um modo de ser, o modo de ser prevalecente hoje em dia: mas como todo modo de ser é ambivalente, já contém, em si mesmo, perda e salvação, aquiescência e conflito, servilismo e liberdade. O ponto crucial, no entanto, é que essa possibilidade alternativa possui uma fisionomia peculiar, distinta daquela com a qual a comparamos na constelação povo/vontade geral/Estado. O segundo tema, que abordaremos nas sucessivas jornadas do seminário, é a relação entre o conceito de multidão e a crise da antiga tripartição da experiência humana em Trabalho, Política e Pensamento. Trata-se de uma subdivisão proposta por Aristóteles, retomada no Novecentos, em especial por Hannah Arendt, gravada até ontem no senso comum. Subdivisão que hoje cai em pedaços. O terceiro bloco temático consiste em analisar algumas categorias a fim de avançar sobre a subjetividade da multidão. Examinaremos em especial três: o princípio de individuação, a tagarelice [Gerede, chiacchiera, conversa fiada, bate-papo, conversação recreativa, de passa-tempo; N. do T.] e a curiosidade. A primeira é uma austera e injustamente descuidada questão metafísica: o que faz singular a uma singularidade? As outras duas, em troca, concernem à vida cotidiana. Foi Heidegger quem conferiu à tagarelice e à curiosidade a dignidade de conceitos filosóficos. Seu modo de falar, como o provam algumas páginas de Ser e Tempo, é substancialmente não-heideggeriano ou anti-heideggeriano.

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1 PRIMEIRA JORNADA: TEMORES E PROTEÇÕES Ante a dupla medo-angústia A dialética do temor e da proteção encontra-se no centro da “Analítica do sublime”, uma seção da Crítica da Razão (Kant, 1790: Parte I, Livro II). Segundo Kant, quando observamos uma aterradora avalanche, encontrando-nos protegidos, sentimo-nos tomados de uma prazerosa sensação de segurança que, no entanto, mescla-se com a percepção da própria falta de defesa. O sublime — pelo que anteriormente foi dito — este sentimento dual, parcialmente contraditório. A partir do princípio da proteção empírica que usufruímos casualmente, perguntamo-nos o que pode nos garantir uma proteção absoluta e sistemática para nossa existência. Perguntome que coisa pode salvaguardar-me, não de um ou outro perigo determinado, mas, da insegurança inerente ao estar no mundo. Onde encontrar uma proteção incondicional? Kant responde: no Eu moral, já que ali está o não-contingente, e até o supramundano. A lei moral transcendente protege de modo absoluto a minha pessoa, já que coloca aos valores que lhe competem, acima da existência finita e seus múltiplos perigos. O sentimento do sublime (ou, ao menos, um de dita espécie) consiste em transformar o alívio por ter encontrado um refúgio ocasional na busca da segurança incondicional que só o Eu moral pode garantir. Mencionei Kant por um único motivo: ele oferece um modelo muito nítido do modo no qual foi concebida a dialética temor-proteção nos dois últimos séculos. Há uma rude bifurcação: por uma parte, um perigo particular (a avalanche, a má vontade evidente na atenção do Ministério do Interior, a perda do posto de trabalho, etc.); e por outra, em troca, o perigo absoluto associado a nosso estar no mundo. A essas duas formas de risco (e de temor) correspondem duas formas de proteção (e de segurança). Frente a um fato desagradável temos remédios concretos (por exemplo, o refúgio de montanha quando cai a avalanche). Mas o perigo absoluto requer uma proteção... do mundo como tal. Diz-se: o “mundo” do animal humano não se pode equiparar ao ambiente do animal não-humano, isto é, o habitat circunscrito, no qual este último orienta-se perfeitamente em função de instintos especializados. O mundo sempre tem algo de indeterminado; está carregado de surpresas e imprevistos, é um contexto vital nunca dominável: por isso é fonte de permanente insegurança. Enquanto o perigo relativo tem “nome e sobrenome”, a insegurança absoluta não possui um rosto preciso nem conteúdo unívoco.

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A distinção kantiana entre dois tipos de risco e de segurança prolonga-se na discriminação, traçada por Heidegger, entre medo e angústia. O medo refere-se a um fato preciso, a avalanche ou o desemprego; a angústia não possui, por sua parte, uma causa desencadeadora precisa. Nas páginas de Ser e Tempo de Heidegger (Heidegger, 1927: 40), a angústia é provocada pela pura e simples exposição ao mundo, pela incerteza e pela indecisão com que se manifesta nossa relação com ele. O medo é sempre circunscrito e nominal; a angústia é multilateral, não se associa a nenhuma ocasião privilegiada, pode sobrevir em qualquer momento ou lugar de perigo. Essas duas formas de temor (medo e angústia, segundo explicamos) e seu correspondente antídoto, prestam-se a uma análise históricosocial. A distinção entre temor circunscrito e temor indeterminado é possível ali onde há uma comunidade substancial que constitui um leito capaz de canalizar as práticas e experiências coletivas. Um leito constituído por usos e costumes repetitivos e, por isso, confortáveis, de um ethos consolidado. O medo situa-se no interior da comunidade, de sua forma de vida e comunicação. A angústia faz sua aparição, por outra parte, ao afastar-se da comunidade de pertencimento, dos costumes compartilhados, dos “jogos lingüísticos” já conhecidos, adentrando-se no vasto mundo. Fora da comunidade o perigo é ubíquo, imprevisível, constante: em suma, angustiante. A contrapartida do medo é uma segurança que a comunidade pode, em princípio, garantir; a contrapartida da angústia (isto é, da exposição ao mundo como tal) é o refúgio provido pela experiência religiosa. Pois bem, a linha divisória entre medo e angústia, temor relativo e temor absoluto, é precisamente aquilo que está deteriorando-se. O conceito de “povo”, se bem que com múltiplas variações históricas, está ligado à separação clara entre um “dentro” habitual e um “fora” obscuro e hostil. O conceito de “multidão”, ao contrário, está unido ao fim de dita separação. A distinção entre medo e angústia, e entre resguardo relativo e resguardo absoluto, ficam privadas de fundamento, ao menos, por três motivos. O primeiro é que já não se pode falar mais, razoavelmente, de comunidade substancial. Hoje, cada impetuosa inovação não transtorna a forma de vida tradicional e repetitiva, mas intervém sobre os indivíduos, agora habituados a já não ter costumes sólidos, adaptados às mudanças repentinas, expostos ao insólito e ao imprevisto. Há que se mover numa realidade sempre e de todos os modos renovada múltiplas vezes. Já não é mais possível uma distinção efetiva entre um “dentro” estável e um “fora” incerto e telúrico. A transformação permanente da forma de vida e o treinamento para afrontar uma aleatoriedade ilimitada, comportam uma relação contínua e direta com o mundo enquanto tal, com o contexto indeterminado de nossa existência.

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Existe, portanto, uma completa superposição de temor e angústia. Quando perco o trabalho devo afrontar um perigo bem definido, que suscita um temor específico; mas este perigo, de fato, tinge-se imediatamente de uma angústia indeterminada, confunde-se com uma desorientação mais geral frente à presença no mundo, unese à insegurança absoluta do animal humano, devido a sua carência de instintos especializados. Poder-se-ia dizer: o medo é sempre angustiante, o perigo circunscrito inclui sempre o risco geral de estar no mundo. Se a comunidade substancial ocultava ou amortecia a relação com o mundo, sua atual dissolução expõe esta última à plena luz: a perda do posto de trabalho, as inovações que modificam as conotações das tarefas de trabalho, a solidão metropolitana que carrega em si muito do que antes correspondia ao terror sentido fora dos muros da comunidade. Necessitaríamos poder contar com um termo distinto de “medo” e “angústia”, um termo que desse conta da sua fusão. E me vem à mente perturbação. Mas seria muito extensa a justificação desta escolha, nessa ocasião (ver: Virno, 1994: 65-7). Passemos à segunda aproximação crítica. Segundo a representação tradicional, o medo é como um sentimento público, enquanto que a angústia associa-se ao indivíduo isolado de seu próximo. Distintamente do medo, provocado por um perigo que corresponde virtualmente a muitos membros da comunidade e que pode ser neutralizado com a ajuda alheia, a desorientação angustiosa descarta a esfera pública e concerne unicamente à denominada interioridade do indivíduo. Essa representação torna-se totalmente não fidedigna. E por isso deve ser eliminada. Hoje, toda forma de vida experimenta aquele “não se sentir em sua própria casa” que, segundo Heidegger, é a origem da angústia. De modo que não há nada mais compartilhado e comum, em certo sentido, mais público, que o sentimento de “não se sentir em sua própria casa”. Ninguém se acha menos isolado que aquele que suporta a espantosa pressão do mundo indeterminado. Dito de outro modo: o sentimento em que confluem medo e angústia é imediatamente assunto de muitos. Poder-se-ia dizer, talvez, que o “não se sentir na própria casa” é nada mais que um traço distintivo do conceito de multidão, enquanto que a separação entre o “dentro” e o “fora”, entre o medo e a angústia, marca a idéia hobbesiana (e não só hobbesiana) do povo. O povo é uno porque a comunidade substancial coopera para acalmar os medos que emanam dos perigos circunscritos. A multidão, por outra parte, está unida pelo perigo de “não se sentir na própria casa”, da exposição multilateral ao mundo. Terceiro e último aspecto crítico, talvez o mais radical. Concerne ao conjunto temor-proteção. É errônea a idéia segundo a qual primeiro experimentamos um temor e, só depois, buscaremos encontrar uma proteção. Está totalmente fora de lugar um esquema estímulo-resposta ou causa-efeito. Bem mais, é de supor que a experiência inicial é a de se procurar proteção. Antes de tudo,

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protegemo-nos; logo, enquanto intentamos proteger-nos, analisamos quais são os perigos que devemos enfrentar. Arnold Gehlen dizia que o transcorrer, para o animal humano, é uma tarefa incômoda; que para enfrentá-la, deve-se, sobretudo, minimizar a desorientação provocada por não dispor de um “ambiente” pré-estabelecido (Gehlen 1940: 60 e seg.). É algo básico isto de se engenhar, com cuidado, no próprio contexto vital. Enquanto procuramos orientar-nos e salvaguardar-nos, prevenimo-nos, com freqüência retrospectivamente, das diversas formas de perigo. Há mais. Não só o perigo define-se a partir da busca originária de proteção, mas que — e este é o ponto verdadeiramente crucial — manifesta-se para a maioria como forma especifica de proteção. O perigo consiste, bem visto, em uma estratégia horripilante de salvação (pensemos no culto de uma “pequena pátria” étnica). A dialética entre perigo e proteção resolve-se, finalmente, na dialética entre formas alternativas de proteção. À redobrada proteção se lhe opõe uma proteção de segundo grau, capaz de ser o antídoto para os venenos da primeira. Desde um ponto de vista histórico e sociológico não é difícil dar-se conta que o mal se expressa precisamente como horrível réplica à periculosidade do mundo, como perigosa busca de proteção: basta pensar na tendência a confiar em um soberano (robusto ou de opereta, pouco importa), na convulsiva obsessão pela carreira profissional, na xenofobia. Também poderíamos dizer: verdadeiramente angustiante é só um certo modo de enfrentar a angústia. Repito: é decisiva a alternativa entre diversas estratégias de segurança, a contraposição entre formas antípodas de proteção. Por isso, digamos de passagem, é tão estúpido descuidar o tema da segurança como (sobre tudo) brandi-lo sem qualificações ulteriores (não detectando com isso o autêntico perigo em suas declinações). É nessas modificações da dialética temor-proteção onde radica, em primeiro lugar, a experiência da multidão contemporânea (ou, se se prefere, pós-fordista). Os muitos enquanto muitos são aqueles que compartilham o “não se sentir na própria casa” e, assim, instalam essa experiência no centro da própria prática social e política. Além disso, no modo de ser da multidão, pode-se observar, a olho nu, uma contínua oscilação entre diversas — às vezes diametralmente opostas — estratégias de segurança (oscilações que o “povo”, fazendo corpo com o Estado soberano, desconhece). Lugares comuns e “intelecto geral” A fim de compreender melhor a noção contemporânea de multidão, é oportuno refletir com mais profundidade acerca de quais são os recursos essenciais com os quais ela pode contar para proteger-se da periculosidade do mundo. Proponho identificar esses recursos mediante um conceito aristotélico, um conceito lingüístico

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(ou, melhor ainda, atinente à arte da retórica): os “lugares comuns”, os topoi koinoi. Quando hoje falamos de “lugares comuns”, referimo-nos a locuções estereotipadas, privadas de todo significado, banalidades, metáfora apagada, convenções lingüísticas conhecidas. No entanto, esse não era o significado original da expressão “lugares comuns”. Para Aristóteles (Retórica, I, 2, 1358ª), os topoi koinoi são a forma lógica e lingüística de valor mais geral, também, a estrutura óssea de todo nosso discurso, aquilo que possibilita e ordena qualquer locução particular. São comuns, ditos lugares, porque ninguém (tanto o orador refinado como o embriagado que, a duras penas, emite palavras entrecortadas; o comerciante como o político) pode deixálos de lado. Aristóteles indica-nos três: a relação entre mais e menos; a oposição dos contrários e a categoria da reciprocidade (“se eu sou seu irmão, ela é minha irmã”). Essa categoria, como toda estrutura óssea efetiva, nunca aparece como tal. É a trama da “vida da mente”, mas uma trama nãoaparente. Mas o que é que se deixa ver em nosso discurso? Os “lugares especiais”, como os denomina Aristóteles (topoi idioi). Eles são os modos de dizer — metáforas, sutilezas, alocuções, etc. — que somente se desenvolvem junto a um ou outro âmbito da vida associada. “Lugares especiais” são os modos de dizer/pensar que resultam apropriados numa sede partidária, ou na igreja, ou em uma aula universitária, ou entre os aficionados de um time de futebol, etc. A vida da cidade, como o ethos (hábitos compartilhados), articula-se mediante “lugares especiais”, diversos e com freqüência inconciliáveis. Uma certa expressão funciona aqui, mas não ali, um tipo de argumentação serve para convencer a este interlocutor, mas não àquele, etc. As transformações que enfrentamos podem ser resumidas assim: hoje, os “lugares especiais” do discurso e da argumentação se decompõem e se dissolvem, enquanto adquirem uma visibilidade imediata os “lugares comuns”, quer dizer, a forma lógico-lingüística que alinhava todos os discursos. Isto significa que para nos orientarmos no mundo e proteger-nos de seus perigos já não podemos contar com as formas de pensamento, de raciocínio, de discurso que se assentavam em um ou outro contexto particular. O clã dos fanáticos, a comunidade religiosa, a seção do partido, o posto de trabalho: todos estes “lugares”, obviamente, continuam subsistindo, mas nenhum deles, caracterizado e caracterizador de tal modo, é capaz de oferecer uma “rosa dos ventos”, isto é, um critério de orientação, uma busca confiável, um conjunto de hábitos específicos, de modos específicos de dizer/pensar. Em todas as partes e em toda ocasião falamos/pensamos de um mesmo modo, sobre a base de construções lógico-lingüísticas, tanto fundamentais como gerais. Desaparece uma topografia ético-retórica. Aparecem em primeiro plano os “lugares comuns”, esses descarnados princípios da

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“vida da mente”: a relação entre mais e menos, a oposição dos contrários, a relação de reciprocidade, etc. Eles, e somente eles, podem oferecer um critério de orientação, e portanto, alguma proteção ao curso do mundo. Não mais invisíveis, mas elevados ao primeiro plano, os “lugares comuns” são o recurso apotropêico∗ da multidão contemporânea. Emergem à superfície como caixas de ferramentas de utilidade imediata. Que outra coisa são os “lugares comuns” senão o núcleo fundamental da “vida da mente”, o epicentro desse animal lingüístico que é o ser humano? Assim, se poderia dizer que a “vida da mente” transforma-se em pública. Recorre-se a categorias gerais para se desempenhar nas mais diversas situações determinadas, já não dispondo mais de códigos ético-comunicativos “especiais”, setoriais. Não-se-sentir-naprópria-casa indica a preeminência dos “lugares comuns”. O intelecto como tal, o intelecto puro se faz a bússola concreta ali onde se debilita a comunidade substancial, ficando expostos ao mundo em seu conjunto. O intelecto, ainda em suas mais estranhas funções, apresenta-se como algo comum e aparente. Os “lugares comuns” já não são mais um fundo inadvertido, âmbito do pulular dos “lugares especiais”. São um recurso compartilhado ao qual recorrem os “muitos”, em qualquer situação. A “vida da mente” é o Um que subjaz sob o modo de ser da multidão. Repito e insisto: a chegada ao primeiro plano do intelecto como tal; o fato de que a estrutura lingüística mais geral e abstrata se faça instrumento para orientar a própria conduta é, em meu entender, uma das condições que definem a multidão contemporânea. Há pouco se falou de “intelecto público”. Mas a expressão “intelecto público” contradiz uma longa tradição, segundo a qual o pensamento era uma atividade solitária e apartada, que separa do próximo uma atividade interior, privada de manifestações visíveis, estranha ao tratamento dos assuntos comuns. A essa longa tradição, segundo a qual a “vida da mente” é refratária à publicidade, somente se lhe excetuam, segundo meu parecer, algumas páginas de Marx, quem coloca o intelecto como algo exterior e coletivo, como um bem público. No “Fragmento sobre as máquinas” dos Grundrisse (Marx, 1939-1941: II, 389-411), Marx fala de um intelecto geral, de um general intellect: utiliza o idioma inglês para dar força à expressão, como se desejasse sublinhá-la. A noção de “intelecto geral” pode ter diversas origens: talvez seja uma réplica polêmica à “vontade geral” de Rousseau (segundo Marx, não é a vontade, mas o intelecto o que os produtores acumulam); ou talvez, o “intelecto geral” seja continuação materialista do conceito aristotélico de nous poietikos (o intelecto produtivo, poiético). Mas aqui, não importa a filologia. Importa o caráter exterior, social, coletivo que compete à atividade intelectual, enquanto que dali provém, segundo Marx, o verdadeiro motor da produção de riqueza.

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À exceção destas páginas de Marx, repito, ao intelecto se lhe atribuiu sempre a característica da reserva e do estranho à esfera pública. Em um escrito juvenil de Aristóteles (Protreptico, B43) a vida do pensador é comparada à vida do estrangeiro. O pensador deve estranhar-se de sua comunidade, alijar-se do rumor da multidão, colocar surdina aos sons da agorá. A respeito da vida pública, da comunidade político-social, tanto o pensador como o estrangeiro, em sentido estrito, não se sentem em sua própria casa. Este é um bom ponto de partida para analisar as condições da multidão contemporânea. Bom ponto de partida, sob a condição de extrair outras conclusões da analogia entre o estrangeiro e o pensador. Ser estrangeiro, isto é, não se sentir em sua própria casa, é hoje condição comum dos muitos, condição incontornável e compartilhada. Bem, e aqueles que não se sentem em sua própria casa, deverão , a fim de se orientarem e se protegerem, recorrer aos “lugares comuns”, isto é, às categorias gerais do intelecto lingüístico; em tal sentido, os estrangeiros são sempre pensadores. Como vêem, inverto a direção da comparação: não é o pensador que se torna estrangeiro na confrontação com sua comunidade de pertencimento, mas que o estrangeiro, a multidão dos “sem casa”, os que adquirem necessariamente o status de pensadores. Os “sem casa”, não podem mais que, comportar-se como pensadores: não porque saibam de biologia ou de matemática superior, mas porque devem recorrer às categorias mais essenciais do intelecto abstrato a fim de resistir aos golpes aleatórios, para se proteger das contingências e dos imprevistos. Para Aristóteles, o pensador é estrangeiro, sim, mas provisoriamente: quando terminou de escrever a Metafísica pôde ocupar-se novamente dos assuntos comuns. De igual modo, os estrangeiros próximos, os espartanos chegados a Atenas, são estrangeiros por um tempo determinado: antes ou depois poderão retornar à pátria. Mas para a multidão contemporânea a condição de “não se sentir em casa” é permanente e irreversível. A ausência de uma comunidade substancial e de seus “lugares especiais” associados, fazem à vida dos estrangeiros — ao não-se-sentir-emsua-casa — que o bios xenikós seja uma experiência inelutável e duradoura. A multidão dos “sem casa” confia no intelecto, nos “lugares comuns”: a seu modo, é uma multidão de pensadores (ainda que tenham somente educação elementar e não leiam um livro nem sob tortura). Uma observação à margem: fala-se às vezes da puerilidade do comportamento metropolitano. E, faz-se isso em tom depreciativo. Indubitavelmente essa depreciação é absurda, mas vale a pena perguntar-se se há algo de consistente, um indício de verdade, nessa associação entre vida metropolitana e infância. Talvez a infância seja a matriz ontogenética de toda busca ulterior de proteção contra os golpes do mundo circundante; exemplifica a necessidade de vencer

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uma indecisão constitutiva, uma insegurança originária (indecisão e insegurança que logo originam a vergonha, sentimento desconhecido para o cachorro não humano, que sabe sempre como se comportar). A criança protege-se mediante a repetição (outra vez o mesmo conto, o mesmo jogo, o mesmo gesto). A repetição resulta uma estratégia de proteção para confrontar os chocs provocados pelo novo e pelo imprevisto. Agora bem, o problema parece ser este: a experiência da criança não se transfere à do adulto e ao comportamento prevalecente dentro dos grandes conglomerados urbanos (comportamentos descritos por Simmel, Benjamin e tantos outros)? A Experiência infantil da repetição prolonga-se na vida adulta, já que constitui a principal forma de proteção ali onde faltam os costumes sólidos, comunidade substancial, um ethos completo. Na sociedade tradicional (na experiência do “povo”) a repetição, cara à criança, deixava seu lugar a formas de proteção mais completas e articuladas: o ethos, os usos e costumes, os hábitos que constituíam a ordem da comunidade substancial. Agora, no tempo da multidão, esta substituição não tem mais lugar. A repetição, longe de ser substituída, perdura. Foi Walter Benjamin quem compreendeu bem esse ponto. Prestou uma grande atenção à infância, ao jogo infantil, ao amor da criança pela repetição; e ao mesmo tempo, ao culto da reprodutibilidade técnica da obra de arte como âmbito no qual se forja novas formas de percepção (Benjamin, 1936). Bem, é de supor que há um nexo entre esses dois aspectos. Na reprodutibilidade técnica revive potencializada a instância infantil da “outra vez mais”, o general intellect manifesta-se também como repetição reafirmadora. É certo: a multidão tem algo de infantil; mas esse algo, mais do que tudo, é o mais sério. Publicidade sem esfera pública Dissemos que a multidão define-se pelo não-se-sentir-em-suacasa, e pela conseqüente familiaridade com os “lugares comuns”, com o intelecto abstrato. Falta agregar agora que a dialética medoproteção radica nessa familiaridade com o intelecto abstrato. O caráter público e compartilhado da “vida da mente” está carregado de ambivalências: hospeda em si, inclusive, possibilidades negativas, figuras temíveis. O intelecto público é o tronco unitário do qual podem brotar tanto horrendas formas de proteção como formas de proteção capazes de buscar um bem estar real (na medida em que possam salvar da primeira). O intelecto público que a multidão logra, é o ponto de partida para desenvolvimentos contrapostos. A chegada a um primeiro plano, das atitudes fundamentais do ser humano (pensamento, linguagem, auto-reflexão, capacidade de aprendizagem), pode derivar em aspectos inquietantes e opressivos, ou originar uma esfera pública inédita, uma esfera pública nãoEstatal, longe dos mitos e dos ritos da soberania.

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Para resumir ao extremo, minha tese, em ajustada síntese, é esta: se a publicidade do intelecto não se inscreve em uma esfera pública, em um espaço político no qual os muitos possam se ocupar dos assuntos comuns, produzir-se-ão efeitos aterradores. Uma publicidade sem esfera pública: eis ali a vertente negativa — o mal, se assim se quer — da experiência da multidão. Freud, no ensaio “O estranho” [Das Unheimliche] (Freud, 1919: 292-3), mostra como a potência extrínseca do pensamento pode tomar aspectos angustiantes. Diz que os males para os quais o pensamento tem um poder exterior, prático, imediatamente operativo, devem ser condicionados e dominados pelos outros. É a mesma situação, por outro lado, que se determina em uma sessão espírita, na qual os participantes estão estreitamente unidos numa relação de fusão que parece anular todo traço individual. Pois bem, a crença na “onipotência do pensamento” estudada por Freud, ou a situaçãolimite da sessão espírita, exemplificam adequadamente o que pode ser uma publicidade sem esfera pública; o que pode ser um “intelecto geral”, um general intellect, que não se articule em um espaço público. O general intellect, ou intelecto público, se não se faz república, esfera pública, comunidade política, multiplica demencialmente as formas de submissão. Para aclarar o ponto, pensemos na produção contemporânea. O compartilhar as atitudes lingüísticas e cognitivas é o elemento constitutivo do processo de trabalho pós-fordista. Todos os trabalhadores participam na produção enquanto pensantesfalantes. Nenhuma relação, vemos, com a “profissionalidade”, ou com o antigo “ofício”: falar/pensar são atitudes genéricas do animal humano, o contrário de qualquer especialização. Esse compartilhar preliminar, por um lado, caracteriza aos “muitos” enquanto “muitos”, a multidão; por outro, é a mesma base da produção atual. O compartilhar, enquanto pré-requisito técnico, opõe-se à divisão do trabalho, a contradiz, a faz desmoronar. Isto não significa, naturalmente, que o trabalho já não esteja subdividido, parcializado, etc.; significa que a segmentação do âmbito do trabalho já não responde a critérios objetivos, “técnicos”, mas, que é explicitamente arbitrária, reversível, cambiante. Para o capital, o que conta verdadeiramente é a unificação originária do dote lingüísticocognitivo, já que é isso o que garante a velocidade da reação frente às inovações, a adaptabilidade, etc. Mas é evidente que essa unificação dos dotes genéricos cognitivos e lingüísticos no interior do processo de produção real, não se faz esfera pública, não se faz comunidade política, princípio constitucional. Pois, que coisa sucede? A publicidade do intelecto, sua situação de compartilhada, se por um lado dinamiza a rígida área da divisão de trabalho, por outro, fomenta a dependência pessoal. General intellect, fim da divisão de trabalho, dependência pessoal: os três aspectos estão correlacionados. A publicidade do intelecto, ali onde não se articula

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em uma esfera pública se traduz em uma proliferação descontrolada das hierarquias, tão infundada como poderosa. A dependência é pessoal em duplo sentido: no trabalho se depende da pessoa para isso ou aquilo, não desde regras dotadas de poder coercitivo anônimo; além disso, intenta-se fazer submissa à totalidade da pessoa, a suas atitudes comunicativas e cognitivas básicas. Hierarquias proliferantes, minuciosas, personalizadas: eis ali a contrapartida negativa da publicidade/unificação do intelecto. A multidão, repetimos, é um modo de ser ambivalente. Qual Um para os Muitos? O ponto de partida da presente análise foi a contraposição entre “povo” e “multidão”. De toda a argumentação resulta evidente que a multidão não se desvencilha do Uno, quer dizer, do universal, o comum/conjunto, senão que o re-determina. O Uno da multidão não tem nada em comum com o Uno constituído pelo Estado, com o Uno para onde converge o povo. O povo é o resultado de um movimento centrípeto: dos indivíduos atomizados à unidade do “corpo político”, à soberania. O Uno é o maior resultado desse movimento centrípeto. A multidão, ao contrário, é o resultado de um movimento centrífugo: do Uno ao Muitos. Mas qual é o Uno a partir do qual os muitos se diferenciam e persistem como tais? Não pode ser o Estado, deve tratar-se de outra forma de unidade/universalidade. Podemos retomar agora um ponto que assinalávamos no começo. A unidade que a multidão tem às suas costas está constituída por “lugares comuns” da mente, das faculdades lingüístico-cognitivas comuns à espécie, do general intellect. Trata-se de uma unidade/universalidade visivelmente heterogênea com respeito à estatal. Sejamos claros: as atitudes cognitivo-linguísticas da espécie não sobem a um primeiro plano porque alguém o decida, mas por necessidade, porque constitui uma forma de proteção numa sociedade privada de comunidade substancial (quer dizer, de “lugares especiais”). O Uno da multidão não é, por isso, o Uno do povo. A multidão não converge numa vontade geral, por um motivo simples: porque já dispõe de um general intellect. O intelecto público que no pósfordismo aparece como mero recurso produtivo, pode constituir um diferente “princípio constituinte”, pode buscar uma esfera pública não-estatal. Os muitos enquanto muitos têm como base o pedestal da publicidade do intelecto: para o bem e para o mal. Há certamente, uma diferença substancial entre a multidão contemporânea e a estudada pelos filósofos políticos do Mil e Seiscentos. No alvorecer da modernidade, os “muitos” coincidiam com os cidadãos das repúblicas comunais, anteriores ao nascimento do grande Estado nacional. Aqueles “muitos” asseguravam o “direito

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à resistência”, a jus resistentiae. Dito direito, não significa banalmente legítima defesa, mas algo mais sutil e complexo. O “direito à defesa” consiste em fazer valer a prerrogativa de um indivíduo, ou de uma comunidade local, ou de uma corporação, contra o poder central, salvaguardando formas de vida já instaladas. Trata-se, portanto, de defender algo positivo: é uma violência conservadora (no bom sentido do termo). Talvez o jus resistentiae, o direito a defender qualquer coisa que esteja e seja digna de perdurar, seja o que mais aproxima a multidão do Seiscentos à multidão pósfordista. Não se trata, porém, de “alcançar o poder”, de construir um novo Estado, um novo monopólio da decisão política, mas de defender as experiências plurais, as formas de democracia nãorepresentativa, usos e costumes, não-estatais. Quanto ao resto, não é difícil ver as diferenças: a multidão atual tem como pressuposto um Uno não menos, senão que mais universal que o Estado: o intelecto público, a linguagem, os “lugares comuns” (pensar na web...). Além disso, a multidão contemporânea leva em si a história do capitalismo, acha-se ligada duplamente às vicissitudes da classe trabalhadora. É conveniente vigiar o demônio da analogia, do curto-circuito entre antigo e moderno; é preciso sublinhar os traços historicamente originais da multidão contemporânea, evitando considerá-la uma simples reedição de algo que já foi. Um exemplo: é típico da multidão pós-fordista fomentar o colapso da representação política, não como gesto anárquico, mas como busca realista e tranqüila de novas formas políticas. É verdade que Hobbes já advertia sobre a tendência da multidão a prover-se de organismos políticos irregulares: “não outra coisa mais que reuniões e assembléias de gente privada de uma finalidade ou projeto particular, ou determinada por obrigações de uns para com outros” (Hobbes, 1651: 197). Mas é óbvio que a democracia não-representativa baseada no general intellect possui outro alcance: nada intersticial, marginal ou residual; bem mais, a concreta apropriação e rearticulação do saber/poder, hoje congelado no aparato administrativo do Estado. Falando de “multidão”, encontramo-nos perante um problema complexo: procuramos um conceito sem história, sem léxico, enquanto que o conceito de “povo” está completamente codificado, com palavras concretas e matizes de todo tipo. É óbvio que é assim. Já dissemos que, nas reflexões político-filosóficas do Seiscentos, prevaleceu o “povo” sobre a “multidão”: por isso, o povo usufruiu um léxico adequado. A propósito da multidão descontamos, em troca, a absoluta ausência de codificação, a ausência de um vocabulário conceitual perspicaz. E esse é um belo desafio para filósofos e sociólogos, em especial pela riqueza do tema. Trata-se de trabalhar sobre materiais concretos, examinando-os em detalhe e, ao mesmo tempo, obtendo deles categorias teóricas. Um duplo movimento, da coisa à palavra, da palavra à coisa: isso é o que demanda a multidão pós-fordista. É, repito, uma tarefa atrativa.

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É certo que “povo” e “multidão” são duas categorias mais atinentes ao pensamento político (indicando que são alternativas de existência política) que à sociologia. Mas, em minha opinião, a noção de multidão é extraordinariamente fértil para compreender e recensear o modo de ser do trabalho dependente pós-fordista, cujos comportamentos resultam tão enigmáticos à primeira vista. Como desenvolverei melhor na segunda jornada, é uma categoria do pensamento político — derrotada, em seu momento, no debate teórico — que hoje representa um precioso instrumento de análise do trabalho vivo do pós-fordismo. Dissemos que a multidão é uma categoria anfíbia: por um lado, falamos da produção social baseada no saber e na linguagem, por outro, da crise da forma Estado. Talvez, atrás de ambos, exista um forte nexo. Carl Schmitt, alguém que fez um culto ao Estado e um dos maiores teóricos políticos do século transcorrido, nos anos sessenta, já velho, escreveu uma frase amarga (para ele) cujo sentido é a reaparição da multidão e o ocaso do povo: “A era do estatismo está chegando ao seu fim (...) O Estado como modelo na unidade política, o Estado como titular do mais extraordinário de todos os monopólios, o monopólio das decisões políticas, está por ser destronado” (Schmitt, 1963: 90). Com um acréscimo importante: esse monopólio das decisões tem sido verdadeiramente subtraído do Estado, somente cessará de uma vez por todas de ser um monopólio quando a multidão fizer valer seu caráter centrífugo. Desejo concluir dissipando, na medida do possível, um equívoco no qual é fácil cair. Pode parecer que a multidão marca o fim da classe trabalhadora. No universo dos “muitos” já não há lugar para os rebanhos de ovelhas, todos iguais, um atrás do outro, pouco sensíveis ao caleidoscópio das “diferenças”. Essa é uma bobagem de alguém que desejaria simplificar a questão e emitir frases de efeito (aplicar eletro-choque em um babuíno, diria um amigo). A classe trabalhadora não coincide, nem em Marx, nem na opinião de nenhuma pessoa séria, com determinados hábitos, usos e costumes, etc. Classe trabalhadora é um conceito teórico, não um cartão postal: indica o sujeito que produz mais-valia absoluta e relativa. Pois bem, a classe trabalhadora contemporânea, o trabalho vivo subordinado, sua cooperação cognitivo-lingüística, possui os traços da multidão, antes que do povo. Já não tem a vocação “popular” pelo estatismo. A noção de “multidão” não invalida o conceito de classe trabalhadora, já que este último não se ligava, por definição, ao de “povo”. Ser multidão não impede, em absoluto, de produzir mais-valia. É certo que, desde que a classe trabalhadora não possui mais o modo de ser do povo, mas o da multidão, mudaram muitas coisas: mentalidade, formas da organização e dos conflitos. Tudo se complica. Seria muito mais simples dizer que agora a multidão não é mais a classe trabalhadora...mas se se deseja simplicidade a todo custo, basta tomar uma garrafa de vinho tinto.

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Por outro lado, também em Marx a classe trabalhadora perde a semelhança a “povo” e adquire a de “multidão”. Somente um exemplo: pensemos nas páginas do último capítulo do primeiro livro de O capital, onde Marx analisa as condições da classe trabalhadora nos Estados Unidos (Marx, 1867: cap. XXV, “A teoria moderna da colonização”). São longas páginas sobre o oeste americano, sobre o êxodo, sobre as iniciativas individuais dos “muitos”. Os trabalhadores europeus expulsos de seu país pelas epidemias, a carestia, as crises econômicas, chegam para trabalhar na costa leste dos Estados Unidos. Mas atenção, ficam alguns anos, somente alguns anos. Logo desertam das fábricas, dirigindo-se para o oeste, para a terra livre. O trabalho assalariado, antes que uma prisão, apresenta-se como um transitório episódio. Durante uns vinte anos os assalariados tiveram a possibilidade de semear a desordem nas férreas leis do mercado de trabalho: abandonando as próprias condições iniciais, determinaram a relativa escassez da mão-de-obra e, com isso, a elevação dos salários. Marx, descrevendo essa situação, oferece um retrato muito vívido de uma classe trabalhadora que é também multidão.

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2 SEGUNDA JORNADA: TRABALHO, AÇÃO, INTELECTO Da última vez, intentei ilustrar o modo de ser da multidão, a partir da dialética temor-proteção. Hoje, desejo discutir a clássica divisão da experiência humana em três âmbitos fundamentais: Trabalho (ou poiesis), Ação política (ou práxis), Intelecto (ou vida da mente). O objetivo é sempre o mesmo: articular e aprofundar a noção de multidão. Como se recordará aqui, “multidão” é uma categoria central do pensamento político: a utilizamos para desenvolver alguns traços sobressalentes do modo de produção pós-fordista. Sob a condição de entender por “modo de produção” não somente uma configuração econômica particular, mas também um conjunto composto por formas de vida, uma constelação social, antropológica, ética (“ética”, atenção, não “moral”: o tema são os hábitos, os usos e costumes, não o dever-ser). Pois bem, desejo sustentar que a multidão contemporânea tem por pano de fundo a crise da subdivisão da experiência humana em Trabalho, Ação (política) e Intelecto. A multidão afirma-se como modo de ser, em alto grau, ali onde há justaposição ou ao menos hibridação entre âmbitos que, desde não muito tempo atrás, ainda na época fordista, pareciam claramente distintos e separados. Trabalho, Ação e Intelecto: de acordo com uma tradição que inicia com Aristóteles e foi retomada com particular paixão e eficácia por Hannah Arendt (Arendt, 1958), esta tripartição pareceu perspicaz, realista, quase inquestionável. Enraizou-se no senso comum: não se trata, por isso, de uma questão somente filosófica, mas de um esquema amplamente compartilhado. Exemplo autobiográfico: quando comecei a ocupar-me de política, nos anos 60, essa subdivisão me parecia óbvia; resultava-me irrefutável, como uma percepção visual ou tátil. Não era preciso ter lido a Ética Nicomaqueia de Aristóteles para saber que trabalho, ação política e reflexão intelectual constituíam três esferas de princípios e critérios radicalmente heterogêneos. Obviamente, a heterogeneidade não excluía as intersecções: a reflexão intelectual podia aplicar-se à política; por sua vez, a ação política nutria-se, com freqüência e de boa vontade, de termos atinentes ao âmbito da produção, etc. Mas, por numerosas que fossem as intersecções, Trabalho, Intelecto, Política eram essencialmente distintos. Por motivos estruturais. O trabalho é troca orgânica com a natureza, produção de novos objetos, processo repetitivo e previsível. O Intelecto puro possui uma índole solitária e não-aparente: a meditação do pensador escapa do olhar dos outros; a reflexão teórica silencia o mundo das aparências. Diferentemente do Trabalho, a Ação política intervém nas relações sociais, não sobre os materiais naturais; tem a ver com o possível e o 22

imprevisto; não preenche de objetos ulteriores o contexto onde opera, mas, modifica esse contexto mesmo. Diferentemente do Intelecto, a Ação política é pública, entregue à exterioridade, à contingência, ao rumor dos “muitos”; implica, para utilizar palavras de Hannah Arendt, “a exposição ante os olhos dos demais” (ibid: cap. V, “A ação”). O conceito de Ação política pode ser produzido por oposição com respeito aos outros dois âmbitos. Pois bem, essa antiga tripartição, todavia, gravada no senso comum da geração que debutou na cena pública nos anos 60, é precisamente a que entrou em decadência. Dissolveram-se os confins entre a pura atividade intelectual, a ação política e o trabalho. Em especial, o trabalho denominado pós-fordista absorveu em si muitas das características típicas da ação política. E esta fusão entre Política e Trabalho constitui um traço fisionômico decisivo da multidão contemporânea. Justaposição de poiesis e práxis O trabalho contemporâneo introjetou muitas características que antes distinguiam a experiência política. A poiesis incluiu em si numerosos aspectos da práxis. Esse é o primeiro aspecto da hibridação geral que desejo tratar. Vejamos: mesmo Hannah Arendt denuncia insistentemente o fim dos limites entre trabalho e política (sempre que por “política” não se entenda a vida em uma seção do partido, mas a experiência genericamente humana de começar de novo qualquer coisa, uma relação íntima com a contingência e o imprevisto, a exposição à vista dos outros). A política, segundo Arendt, passou a imitar o trabalho. A política do Novecentos, a seu juízo, derivou em uma espécie de construção de novos objetos: o Estado, o partido, a história, etc. Pois bem, afirmo que foi tudo o oposto do que acredita Hannah Arendt: não é a política que se conformou como o trabalho, mas o trabalho é que adquiriu as conotações tradicionais da ação política. A minha, é uma argumentação oposta e simétrica à de Hannah Arendt. Sustento que no trabalho contemporâneo descobre-se a “exposição à vista dos demais”, a relação com a presença dos outros, o início de processos inéditos, a familiaridade constitutiva com a contingência, o imprevisto e o possível. Sustento que o trabalho pós-fordista, o trabalho produtivo de mais-valia, o trabalho subordinado, introduz na cena dotes e requisitos que, segundo uma tradição secular, pertenciam à ação política. Para guardar. Isso explica, segundo o meu parecer, a crise da política, o desprezo que circunda hoje a práxis política, o descrédito no qual caiu a ação. Com efeito, a ação política aparece fatalmente como uma duplicação supérflua da experiência do trabalho, já que esta última, também de modo deformado e despótico, subsumiu em si certos traços estruturais da primeira. O âmbito da política copia

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estreitamente procedimentos e estilos que distinguem o âmbito do trabalho, mas dita cópia, resulta uma versão empobrecida, pálida, simplificada. A política oferece uma rede comunicativa e um conteúdo cognitivo mais pobre que o derivado do atual processo produtivo. Menos complexa que a do trabalho e, no entanto, muito similar a ela, a ação política aparece como algo pouco desejável. A inclusão na produção contemporânea de certos traços da práxis política, ajuda a compreender porque a multidão pós-fordista, é hoje uma multidão politizada. Já existe muita política no trabalho assalariado (enquanto trabalho assalariado), porque a política como tal, pode também gozar de uma autônoma dignidade. Do virtuosismo. De Aristóteles a Glenn Gould A subsunção no processo de trabalho, daquilo que anteriormente outorgava à Ação pública sua fisionomia inconfundível, pode ser aclarada mediante uma categoria vetusta, mas eficaz: o virtuosismo. Seguindo, por ora, a acepção ordinária, por “virtuosismo” entendo a capacidade peculiar de um artista executante. Virtuoso é, por exemplo, o pianista que oferece uma execução memorável de Schubert; ou o bailarino experimentado, ou o orador persuasivo, ou o docente não enfadonho, ou o sacerdote de sermão sugestivo. Consideremos atentamente o que é que distingue a atividade do virtuoso, isto é, do artista executante. Em primeiro lugar, a sua é uma atividade que encontra seu próprio cumprimento (seu próprio fim) em si mesma, sem se objetivar em uma obra duradoura, sem se depositar em um “produto acabado”, vale dizer, em um objeto que sobreviva à execução. Em segundo lugar, é uma atividade que exige a presença de outros, que existe somente na presença de um público. Atividade sem obra: a execução de um pianista ou de um bailarino não deixa atrás de si um objeto determinado, separável da própria execução, em condições de persistir quando aquela já finalizou. Atividade que exige a presença de outros: a performance tem sentido somente quando é vista ou escutada. Intui-se que essas duas características estão correlacionadas: o virtuoso necessita da presença de um público, pelo fato de não produzir uma obra, um objeto que fique girando no mundo depois de haver cessado sua atividade. Na falta de um produto extrínseco específico, o virtuoso deve dar conta de seu testemunho. A categoria do virtuosismo é discutida na Ética Nicomaquéia; aflora aqui e lá no pensamento político moderno, também do Novecentos; possui um pequeno lugar na crítica da economia política de Marx. Na Ética Nicomaquéia, Aristóteles distingue o trabalho, ou poiesis, da ação política, ou práxis, utilizando para isso a noção de virtuosismo: há trabalho quando se produz um objeto, uma obra

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separada do ato; há práxis quando o ato tem em si mesmo seu próprio fim. Aristóteles escreve: “o fim da produção é distinto da própria produção, enquanto que não pode sê-lo, aquele da ação: porque a ação (compreendida tanto como conduta ética ou como ação política) é um fim em si mesma” (Et. Nic., VI, 1139 b). Retomando implicitamente Aristóteles, Hannah Arendt compara os artistas executantes, os virtuosos, com aqueles que estão impregnados da ação política. Escreve: “A arte que não produz nenhuma ‘obra’ possui grande afinidade com a política. Os artistas que a produzem — bailarinos, atores, músicos e similares — têm necessidade de um público para o qual mostrar seu virtuosismo, como aqueles homens que atuam [politicamente] necessitam de outros ante cuja presença poder aparecer: uns e outros, para poder ‘trabalhar’, requerem um espaço de estrutura pública, e em ambos, sua ‘execução’ depende da presença alheia”. (Arendt, 1961: 206). Poderia-se dizer que toda ação política é virtuosa. Com o virtuosismo compartilha, com efeito, a contingência, a ausência de um “produto acabado”, a imediata e inevitável relação com a presença alheia. Opostamente, todo virtuosismo é intrinsecamente político. Pensemos no caso de Glenn Gould (Gould, 1984: 15-24; Schneider, 1989). Esse grande artista odiava, paradoxalmente, o traço distintivo de sua atividade de artista executante; dito de outro modo: detestava a exibição pública. Por toda a vida, combateu a “politicidade” inerente à sua atividade. Em certo momento Gould declarou querer “abandonar a vita activa”, isto é, a exposição ao olhar alheio (note-se que “vita activa” é a denominação tradicional da política). Por tornar não-político o próprio virtuosismo, intentou aproximar, o mais possível, a atividade do artista executante ao trabalho propriamente dito, que acaba dentro de seu produto extrínseco. Isso significou encerrar-se em um estúdio de gravação, contrabandeando a produção de discos (por outro lado, excelentes), por uma “obra”. Para evadir-se da dimensão público-política própria do virtuosismo, teve de fingir que suas execuções magistrais produziam um objeto definido (independente da execução mesma). Assim, eram uma obra, um produto autônomo, eram trabalho, já não mais virtuosismo nem, tampouco, política. Também Marx fala de pianistas, oradores, bailarinos, etc. Fala deles em alguns dos seus textos mais significativos: no Capítulo VI inédito (Marx, 1933: 83) e depois, em termos quase idênticos, em Teorias da mais-valia (Marx, 1905: I, 357-8). Marx analisa o trabalho intelectual distinguindo nele duas espécies principais. Por um lado, a atividade imaterial ou mental, que “tem por resultado mercadorias com uma existência independente do produtor (...) livros, quadros, objetos de arte em geral, enquanto distintos das prestações artísticas daqueles que os escrevem, pintam ou criam” (Marx, 1933: 83). Essa é a primeira espécie de trabalho intelectual. Por outro lado — escreve Marx — consideremos toda aquela atividade na qual “o produto é

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inseparável do ato de produzir” (Ibid.), aquela atividade que encontra em si mesma o próprio cumprimento, sem objetivar-se em uma obra que a exceda. É a mesma discriminação entre produção material e ação política já ilustrada por Aristóteles. Salvo que aqui, Marx não se ocupa da ação política, mas sim, analisa duas figuras do trabalho. Ele explica a distinção entre atividade-com-obra e atividade-sem-obra, em determinados tipos de poiesis. A segunda espécie de trabalho intelectual (a atividade na qual “o produto é inseparável do ato de produzir”) compreende, segundo Marx, todas aquelas nas quais o trabalho resolve-se numa execução virtuosa: pianistas, mordomos, bailarinos, docentes, oradores, médicos, sacerdotes, etc. Agora, se o trabalho intelectual que produz uma obra não apresenta problemas particulares, o trabalho sem obra (virtuoso, pelo indicado) resulta embaraçoso para Marx. O primeiro tipo de trabalho intelectual acomoda-se mais à definição de “trabalho produtivo”. Mas, e o segundo tipo? Recordo a passagem na qual, para Marx, trabalho produtivo não é trabalho subordinado, fatigante ou humilde, mas justa e tão-somente, trabalho que produz mais-valia. É certo que também as prestações [de algum serviço, p.ex.; N. do T.] virtuosas podem, em princípio, produzir mais-valia: se a atividade do bailarino, do pianista, etc. se organizam de modo capitalista, podem ser fonte de mais-valia. Contudo, Marx está perturbado pela forte semelhança entre a atividade do artista executante e a tarefa servil, a qual, ainda que ingrata e frustrante, não produz mais-valia, e por isso, pertence ao âmbito do trabalho improdutivo. Trabalho servil é aquele pelo qual não se investe capital, mas se gasta uma renda (por exemplo, o serviço pessoal de um mordomo). O trabalhador “virtuoso”, segundo Marx, se por um lado representa uma exceção pouco significativa, desde o ponto de vista quantitativo, por outro — e isto é o que mais importa — converge quase sempre no trabalho servil/improdutivo. Tal convergência está sancionada pelo fato de que sua atividade não dá lugar a uma obra independente: onde falta um produto acabado autônomo, geralmente não se achará um trabalho produtivo (de mais-valor). Marx aceita, de fato, a equação trabalho-semobra=serviço pessoal. Em conclusão, o virtuosismo é, para Marx, “trabalho assalariado que não é ao mesmo tempo trabalho produtivo” (Marx, 1905: I, 358). Tiremos as conclusões. O virtuosismo está aberto a duas alternativas: ou esboça o caráter estrutural da atividade política (falta de uma obra, exposição ante os demais, contingência, etc.), como sugerem Aristóteles e Hannah Arendt; ou bem, em Marx, toma a semelhança do “trabalho assalariado que não é, todavia, trabalho produtivo”. Essa bifurcação decai e se faz em pedaços quando o trabalho produtivo, em sua totalidade, faz suas as características peculiares do artista executante. No pós-fordismo, aquele que produz mais-valia, comporta-se — desde um ponto de vista estrutural, certamente — como um pianista, bailarino, etc. e, portanto, como um

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homem político. Com referência à produção contemporânea, resulta perspicaz a observação de Hannah Arendt sobre a atividade dos artistas executantes e dos homens políticos: para trabalhar necessitam de um “espaço de estrutura pública”. No pós-fordismo, o Trabalho requer um “espaço de estrutura pública” e se assemelha a uma execução virtuosa (sem obra). A este espaço de estrutura pública, Marx chama “cooperação”. Poder-se-ia dizer: a um certo grau de desenvolvimento das forças sociais produtivas, a cooperação do trabalho introjeta em si a comunicação verbal, assemelhando-se, assim, a uma execução virtuosa ou, precisamente, a um complexo de ações políticas. Recordam o celebre texto de Max Weber sobre a política como profissão (Weber, 1919: 133-5)? Weber enumera uma série de qualidades que distinguem o homem político: saber pôr em perigo a saúde da própria alma, um justo equilíbrio entre a ética das convicções e a da responsabilidade, dedicação aos objetivos, etc. Devemos reler esse texto em referência ao toyotismo [pós-fordismo], ao trabalho baseado na linguagem, à mobilização produtiva das faculdades cognitivas. O ensaio de Weber fala das qualidades hoje requeridas pela produção material. O falante como artista executor Todos nós somos, desde sempre, virtuosos, artistas executantes. Talvez medíocres ou torpes, mas, para todos os efeitos, virtuosos. Com efeito, o modelo básico do virtuosismo, a experiência em que se funda o conceito, é a atividade do falante. Não a atividade de um locutor sábio, mas a de qualquer locutor. A linguagem verbal humana, não sendo um simples utensílio ou apenas um complexo de sinais instrumentais (característica essa que assemelha, no pior dos casos, à linguagem dos animais não humanos: pensemos nas abelhas, nos sinais mediante os quais coordenam a provisão de comida), possui em si mesma sua própria realização, não produz (ao menos não necessariamente, não regularmente) um “objeto” independente da própria execução enunciativa. A linguagem é “sem obra”. Toda enunciação é uma prestação virtuosa. E o é, obviamente, porque está conectada (direta ou indiretamente) à presença alheia. A linguagem pressupõe e ao mesmo tempo institui sempre de novo, o “espaço de estrutura pública” do qual fala Arendt. Devemos reler a passagem da Ética Nicomaquéia sobre a diferença entre poiesis (produção) e práxis (política) em estreita referência à noção de palavra em Saussure (Saussure, 1922: 28-30) e sobretudo, a análise de Emile Benveniste (Benveniste, 1970) sobre a enunciação (onde por enunciação entende-se não o conteúdo do enunciado, o “que se diz”, mas a tomada da palavra como tal, o fato mesmo de falar). De tal modo constata-se que os traços diferenciais da práxis com relação à

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poiesis, coincidem em tudo e por tudo com os traços diferenciais da linguagem verbal em relação com a motilidade ou também à comunicação não-verbal. E mais ainda. Só o falante — diferente do pianista, do bailarino, do ator — pode atuar sem uma cópia [“cola”] ou uma partitura. O seu é um virtuosismo dual: não somente não produz uma obra que seja distinguível na execução, mas ainda, nem sequer tem à suas costas uma obra para atualizar mediante a execução. Com efeito, o ato de palavra serve-se somente da potencialidade da língua, ou melhor, da faculdade genérica da linguagem: não de um texto pré-fixado, ao pormenor. O virtuosismo do falante é protótipo e culminação de todo outro virtuosismo, exatamente porque inclui em si a relação potência/ato, ali onde o virtuosismo ordinário ou derivado pressupõe um ato determinado (as Variações Goldberg de Bach, por exemplo), para ser revivido, sempre, de novo. Voltaremos sobre este ponto. Basta dizer, por ora, que a produção contemporânea torna-se “virtuosística” (e portanto, política) porque inclui em si a experiência lingüística como tal. Se isto é assim, a matriz do pós-fordismo se encontrará no setor industrial em que exista “produção de comunicação por meio de comunicação”. Portanto, na indústria cultural. Indústria cultural: antecipação e paradigma O virtuosismo torna-se trabalho massificado com o nascimento da indústria cultural. É aqui onde o virtuoso começa a imprimir sua marca. Na indústria cultural, com efeito, a atividade sem obra, isto é, a atividade comunicativa que tem em si mesma sua própria missão, é o elemento caracterizador, central, necessário. E é por esse motivo que, sobretudo na indústria cultural, a estrutura do trabalho assalariado coincidiu com a ação política. No setor em que se produz comunicação com meios de comunicação, a tarefa e a função são, conjuntamente, “virtuosísticas” e “políticas”. Um grande escritor italiano, Luciano Bianciardi, em seu romance mais importante, La vita agra, conta misérias e esplendores da indústria cultural em Milão nos anos cinqüenta. Uma página admirável desse livro ilustra eficazmente aquilo que distingue a indústria cultural da indústria tradicional e da agricultura. O protagonista de La vita agra, chegando a Milão, de Grosseto, com a intenção de vingar a recente morte do trabalho em sua região, termina empregando-se na nascente indústria cultural. Mas, após um breve período, é licenciado [suspenso]. Eis aqui o fragmento que hoje possui um indubitável valor teórico: “...E me licenciaram, pelo único fato de arrastar os pés, de mover-me lentamente; fico de um lado olhando em volta, mesmo quando não seja indispensável. Em nossa ocupação, pelo contrário, é preciso separar bem a terra, os pés, e golpear sonoramente, é necessário mover-se, sapatear, saltar, fazer

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poeira, uma nuvem de pó e depois se esconder dentro dela. Não é como fazem o camponês ou o operário. O camponês se move lento, porque, como seu trabalho segue as estações, ele não pode semear em julho e colher em fevereiro. O operário se move rapidamente, mas está na cadeia, porque lhe contam em tempo de produção, e se não caminha nesse ritmo, está em apuros (...). Mas o fato é que o camponês pertence à atividade primária, e o operário à secundária. Um produz do nada, o outro transforma uma coisa em outra. A medida de valorização para o operário e o camponês é fácil, quantitativa: quantas peças a fábrica retira do forno, quanto rende a propriedade rural. Em nossa tarefa é diferente, não somos mensuráveis quantitativamente. Como se mede a destreza de um sacerdote, de um publicitário, de um RP? Eles não produzem do nada nem transformam. Não são nem primários nem secundários. São aparentemente terciários, e até podemos dizer, diretamente quaternários. Não são instrumentos de produção, e nem sequer correia de transmissão. São lubrificantes ao máximo, são vaselina pura. Como se pode valorar a um sacerdote, a um publicitário, a um RP? Como se calcula a quantidade de fé, de desejo de compra, de simpatia, que aqueles lograram obter? Não, não temos outro método que não seja a capacidade de cada um de se manter flutuando, de emergir por si mesmo, em suma, de chegar a bispo. Em outras palavras, aquele que escolha uma profissão terciária ou quaternária, necessita de qualidades e aptidões de tipo político. A política, como todos sabemos, deixou faz tempo de ser a ciência do bom governo, tornando-se, em seu lugar, a arte da conquista e da conservação do poder. Desse modo, a bondade de um homem político não se mede segundo o bem que faça aos demais, mas pela rapidez com que alcance o cume e o tempo que possa manter-se ali. (...) Do mesmo modo, nas profissões terciárias e quaternárias, não existindo nenhuma produção visível de bens que sirvam de medida, o critério será o mesmo” (Bianciardi, 1962: 129-32). Em muitos sentidos a análise de Bianciardi está visivelmente desatualizada, já que nele as tarefas da indústria cultural aparecem como uma exceção marginal e extravagante. E mais ainda: é, quando menos, superficial a redução da política a simples e pura transgressão. Contudo, no fragmento que lemos, brota ante os olhos uma formidável intuição, que mescla e retoma, a seu modo, a tese de Arendt sobre a semelhança entre virtuosismo e política, e as anotações de Marx acerca do trabalho que não tem por resultado uma “obra” independente. Bianciardi sublinha a crescente “politicidade” do trabalho na indústria cultural. Mas, e isto é o importante, associa essa politicidade ao fato de que em tal indústria não se produzem obras separadas do próprio ato. Ali onde falta uma “obra” extrínseca , há ação política. Sejamos claros: na indústria cultural (como depois, hoje, na época pós-fordista, na indústria em geral) não faltam alguns produtos acabados para a venda ao final do

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processo produtivo. O ponto crucial é que, enquanto que a produção material de objetos é demandada ao sistema de máquinas automatizadas, as prestações do trabalho vivo assemelham-se cada vez mais às prestações lingüístico-virtuosisticas. É de se perguntar que papel jogou a indústria cultural na superação do fordismo-taylorismo. Acredito que ela havia colocado oportunamente o paradigma da produção pós-fordista em seu conjunto. Creio, em conseqüência, que os procedimentos da indústria fizeram-se, a partir de em certo momento, exemplares e invasivos. Na indústria cultural, inclusive naquela arcaica examinada por Benjamin e Adorno, é possível encontrar o prenúncio de um modo de produzir que logo, com o pós-fordismo, generalizar-se-á, alcançando a categoria de cânon. Para entender melhor isso, retornemos momentaneamente à crítica da indústria da comunicação por parte dos pensadores da Escola de Frankfurt. Em Dialética do esclarecimento (Adorno e Horkheimer, 1947: 130-80), os autores sustentavam, de forma geral, que também as “fábricas de alma” (editoriais, cinema, rádio, televisão, etc.), conformavam-se segundo os critérios fordistas da serialidade e da parcelarização. Nelas, parecia afirmar-se a cadeia de montagem, símbolo ilustre das fábricas de automóveis. O capitalismo — esta é a tese — mostra poder mecanizar e especializar inclusive a produção espiritual, tal como fez com a agricultura e a elaboração dos metais. Serialidade, insignificância da tarefa única, econometria das emoções e dos sentimentos: são os estribilhos permanentes. Essa aproximação crítica admitia, bem entendido, que no caso peculiar da indústria cultural, permaneceram alguns aspectos refratários a uma assimilação completa à organização fordista do processo de trabalho. Na indústria cultural, por isso, era necessário manter aberto um determinado espaço para a informalidade, para o não programado, a fuga imprevista, a improvisação comunicativa e ideativa: não para favorecer a criatividade humana, mas, a fim de obter uma produtividade empresarial satisfatória. Mas para a Escola de Frankfurt, esses aspectos eram nada mais que resíduos sem importância, escória do passado, detritos. Só importava a fordização geral da indústria cultural. Agora, parece-me que observando tudo isso desde a perspectiva do nosso presente, não é difícil reconhecer que aqueles pretendidos resíduos (um certo espaço concedido ao informal, ao imprevisto, ao “fora do programa”), eram na verdade, avanços do futuro. Não se tratava de resíduos, mas de presságios antecipatórios. A informalidade do acionar comunicativo, a interação competitiva típica de uma reunião, as bruscas variações que podem animar um programa televisivo, em geral, tudo aquilo que está disfuncionalmente rígido e regulamentado até um certo limite, é visto hoje, na época pós-fordista, como um traço típico da totalidade da produção social. E não só da atual indústria cultural, mas até da Fiat

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de Melfi. Se Bianciardi falava do trabalho, no qual regia um nexo entre atividade-sem-obra (virtuosa) e aptidões políticas, como se fosse uma extravagância marginal, hoje se trata da regra. A trama entre virtuosismo, política e trabalho, está hoje propagada por todas as partes. Resta perguntar-se, no mais alto grau, que função específica assume hoje a indústria das comunicações, quando todos os setores industriais inspiram-se em seu modelo? Aquela que em seu tempo antecipou a virada pós-fordista, que função cumpre agora que o pós-fordismo está plenamente estendido? Para responder, convém deter-se, por um momento, nos conceitos de “espetáculo” e “sociedade do espetáculo”. A linguagem em cena Creio que a noção de “espetáculo”, não pouco equívoca de per si, constitui ainda um instrumento útil para decifrar alguns aspectos da multidão pós-fordista (que é, se quisermos, uma multidão de virtuosos, de trabalhadores que, para trabalhar, recorrem a qualidades genericamente “políticas”). O conceito de “espetáculo”, cunhado durante os anos sessenta pelos situacionistas, é um conceito propriamente teórico, não estranho à trama de argumentações marxianas. Para Guy Debord (Debord, 1967), o “espetáculo” é a comunicação humana tornada mercadoria. Aquilo que se dá no espetáculo é, precisamente, a faculdade humana de se comunicar, a linguagem verbal enquanto tal. Como se pode ver, não se trata de uma acusação rancorosa contra a sociedade de consumo (sempre um pouco desconfiada, porque se corre o risco, como sucede a Pasolini, de ter saudade da boa convivência em meio ao baixo consumo e à miséria). A comunicação humana, enquanto espetáculo, é uma mercadoria entre as demais, desprovida de prerrogativas ou qualidades especiais. Mas, por outro lado, é uma mercadoria que concerne, a partir de um certo ponto, a todos os setores industriais. Aqui está o problema. Por um lado, o espetáculo é o produto particular de uma indústria particular, a indústria chamada cultural, pelo indicado. Por outro lado, no pós-fordismo, a comunicação humana é também um ingrediente essencial da cooperação produtiva em geral; portanto, é a rainha das forças produtivas, algo que ultrapassa o próprio âmbito setorial, amparando, bem mais, a indústria em seu conjunto, à poiesis em sua totalidade... No espetáculo são exibidas, na forma separada e fetichizada, as forças produtivas mais relevantes da sociedade, aquelas forças produtivas que devem alcançar qualquer processo laboral contemporâneo: competência lingüística, saber, imaginação, etc. O espetáculo possui, portanto, uma dupla natureza: produto específico de uma indústria particular, mas também, ao mesmo tempo, quintessência do modo de produção em seu conjunto. Debord escreve que o espetáculo é “a exposição geral da

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racionalidade do sistema” (ibd. 28). Dão espetáculo, por assim dizer, as próprias forças produtivas da sociedade enquanto coincidem, em medida crescente, com a competência lingüíistico-comunicativa e com o general intellect. A dupla natureza do espetáculo, trás à mente, por certo, a dupla natureza do dinheiro. Como é sabido, o dinheiro é uma mercadoria entre as demais, fabricada na ceca∗ [Casa da moeda ou Banco Central, para nós; N. do T] do Estado, em Roma, dotada de um corpo metálico ou de papel. Mas também tem uma segunda natureza: é o equivalente, a unidade de medida de todas as demais mercadorias. Particular e universal ao mesmo tempo, o dinheiro; particular e universal ao mesmo tempo, o espetáculo. A comparação, sem dúvida atrativa, é, no entanto, errônea. Diferentemente do dinheiro, que mede o resultado de um processo produtivo concluído, o espetáculo concerne bem mais ao processo produtivo em si, em si mesmo, em sua potencialidade. O espetáculo, segundo Debord, mostra o que homens e mulheres podem fazer. Enquanto que o dinheiro reflete em si o valor das mercadorias, portanto, aquilo que a sociedade já fez, o espetáculo exibe, de forma separada, aquilo que o conjunto da sociedade pode ser ou fazer. Se o dinheiro é a “abstração real” (para usar uma clássica expressão marxiana) que se refere às obras concluídas, ao passado do trabalho, o espetáculo, ao contrário, segundo Debord, é a “abstração real” que representa ao trabalhar mesmo, ao presente do trabalho. Se o dinheiro sinaliza para as trocas, o espetáculo — comunicação humana tornada mercadoria — sinaliza a cooperação produtiva. Deve-se concluir, portanto, que o espetáculo, a capacidade comunicativa humana tornada mercadoria, possui uma dupla natureza, mas distinta daquela do dinheiro. Qual? Minha hipótese é que a indústria da comunicação (ou ainda melhor, do espetáculo, ou também, da indústria cultural) é uma indústria dentro das outras, com suas técnicas específicas, seus procedimentos particulares, suas peculiares utilidades, etc., mas , que por outra parte, leva também a cabo o papel de indústria dos meios de produção. Tradicionalmente a indústria dos meios de produção é a indústria que produz máquinas e demais instrumentos para serem empregados, depois, nos mais diversos setores produtivos. No entanto, em uma situação na qual os instrumentos de produção não se reduzem a máquinas, mas consistem em competência lingüístico-cognitiva indissociável do trabalho vivo, é lícito pensar que uma parte notável dos denominados “meios de produção” consista em técnicas e procedimentos comunicativos. Pois bem, onde são forjadas essas técnicas e esses procedimentos, senão na indústria cultural? A indústria cultural produz (inova, experimenta) os procedimentos comunicativos que são depois destinados a fazer a vez de meios de produção até nos setores mais tradicionais da economia contemporânea. Eis aí o papel da indústria da

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comunicação, uma vez que o pós-fordismo afirmou-se plenamente: indústria dos meios de comunicação. Virtuosismo do trabalho O virtuosismo, com sua intrínseca politicidade, caracteriza não só à indústria cultural, mas ao conjunto da produção social contemporânea. Poder-se-ia dizer que na organização do trabalho pós-fordista, a atividade sem obra, caso especial e problemático (recordemos as dúvidas de Marx a respeito), faz-se o protótipo geral do trabalho assalariado. Repito um ponto já dito: isso não significa, naturalmente, que não se produzam mais produtos máquinofaturados, mas, que para uma parte crescente das tarefas do trabalho, o cumprimento das ações é interno à ação mesma (não consiste em dar lugar a um semitrabalho independente). Uma situação desse tipo é esboçada pelo próprio Marx, nos Grundrisse, quando escreve que com a grande indústria automatizada e a aplicação intensiva e sistemática das ciências da natureza ao processo produtivo, a atividade do trabalho “coloca-se ‘junto’ ao processo de produção imediato como o agente principal” (Marx, 1939-1941: II, 401). Este se colocar “junto” ao processo de produção imediato significa, diz agora Marx, que o trabalho coincide sempre mais com uma “atividade de vigilância e de coordenação”. Dito de outro modo: a tarefa do trabalhador ou do empregado já não consiste na obtenção de um único fim determinado, senão, em variar e intensificar a cooperação social. Permitam-me agregar algo. O conceito de cooperação social, que em Marx é tão complexo e delicado, pode ser pensado de dois modos distintos. É, antes de tudo, uma acepção “objetiva”: cada indivíduo faz coisas diversas, específicas, que são recolhidas pelo engenheiro ou o dono da fábrica: a cooperação, nesse caso, transcende a atividade do indivíduo, não é relevante no próprio fato do trabalho. Em segundo lugar, no entanto, é preciso considerar também uma noção “subjetiva” de cooperação: ela toma corpo quando uma parte consistente do trabalho individual, consiste em desenvolver, afinar, intensificar a cooperação mesma. No pós-fordismo prevalece a segunda acepção de cooperação. Tratarei de explicar melhor com uma comparação. Desde sempre, um recurso da empresa capitalista, foi o denominado “roubo da informação operária”. Vale dizer: quando os trabalhadores buscavam o modo de cumprir o trabalho com menos fadiga, fazendo uma pausa, etc., a hierarquia empresarial explorava esta mínima conquista, inclusive cognitiva, para modificar a organização do trabalho. Segundo pareceme, há sim mudanças relevantes quanto às tarefas do trabalhador ou do empregado, essa consiste, em boa medida, em achar recursos, “truques”, soluções que melhorem a organização do trabalho. Neste último caso, a informação operária não é utilizada às escondidas, mas sim que é explicitamente requerida, e inclusive constitui um dos

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deveres do trabalho. Assiste-se ao mesmo tipo de mudanças, certamente, a propósito da cooperação: não é a mesma coisa que os trabalhadores sejam coordenados de fato pelo engenheiro ou, que se disponham a inventar e produzir novos procedimentos cooperativos. Antes que ficar ao fundo, o comportamento concertado, a interação lingüística, coloca-se em primeiro plano. Quando a cooperação “subjetiva” torna-se a principal força produtiva, as ações do trabalho mostram uma pronunciada índole lingüístico-comunicativa, implicando a exposição perante os demais. Diminui o caráter monológico do trabalho: a relação com os outros é um elemento originário, básico, de modo algum acessório. Ali onde o trabalho aparece junto ao processo produtivo imediato, antes que um componente, a cooperação produtiva é um “espaço de estrutura pública”. Este “espaço de estrutura pública” — configurado no processo de trabalho — mobiliza aptidões tradicionalmente políticas. A política (em sentido amplo) faz-se força produtiva, função, “cofre de ferramentas”. Poder-se-ia dizer que o lema heráldico do pósfordismo é, sarcasticamente, “política antes de tudo”. De resto, que outra coisa significa o discurso sobre a “qualidade total” se não a solicitação de por à disposição da produção o gosto pela ação, a atitude para afrontar o possível e o imprevisto, a capacidade de começar qualquer coisa de novo? Quando o trabalho, sob a autoridade do patrão, assume o gosto pela ação, pela capacidade relacional, pela exposição ante os demais — todas aquelas coisas que as gerações precedentes experimentavam nas sessões do partido —, poderíamos dizer que alguns traços distintivos do animal humano, em especial seu terlinguagem, estão subsumidos dentro da produção capitalista. A inclusão da antropogênese mesma no modo de produção vigente é um evento extremo. Outra coisa que a tagarelice heideggeriana sobre a “época da técnica”... Esse evento não atenua, senão que radicaliza a antinomia da formação sócio-econômica capitalista. Ninguém é tão pobre como aqueles que vêem a própria relação com a presença dos outros, isto é, a própria faculdade comunicativa, o próprio terlinguagem, reduzido a trabalho assalariado. O intelecto como partitura Se o conjunto do trabalho pós-fordista é trabalho produtivo (de mais-valia) porque se desenrola de modo político-virtuosístico, a pergunta é, qual é a partitura que os trabalhadores-virtuosos executam? Qual é o libreto das apresentações lingüísticocomunicativas? O pianista executa uma valsa de Chopin, o ator mantém-se mais ou menos fiel a um roteiro preliminar, o orador possui ao menos alguma anotação à qual se referir: todos os artistas executantes contam com alguma partitura. Mas quando o virtuosismo implica à

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totalidade do trabalho social, qual é a partitura? Por minha parte, afirmo sem duvidar que a partitura seguida pela multidão pós-fordista é o Intelecto, o intelecto enquanto faculdade humana genérica. Nos termos de Marx, a partitura dos virtuosos modernos é o general intellect, o intelecto geral da sociedade, o pensamento abstrato tornado coluna vertebral da produção social. Voltemos assim a um tema (general intellect, intelecto público, “lugares comuns”, etc.) tratado na primeira jornada. Por general intellect Marx entende à ciência, o conhecimento em geral, o saber do qual hoje depende a produtividade social. O virtuosismo consiste em modular, articular, variar o general intellect. A politização do trabalho (isto é, a subsunção no âmbito do trabalho de tudo aquilo que antes era atinente à ação política) inicia-se quando o pensamento torna-se mola principal da produção de riqueza. O pensamento deixa de ser uma atividade não-aparente e se faz algo exterior ou “público”, quando irrompe no processo produtivo. Poder-se-ia dizer: só agora, somente quando tem como o próprio centro de gravidade o intelecto lingüístico, a atividade do trabalho pode absorver em si muitas das características que antes pertenciam à ação política. Até agora tenho discutido a justaposição do Trabalho e da Política. Mas agora aparece o terceiro âmbito da experiência humana, o Intelecto. Essa é a “partitura” sempre de novo seguida pelos trabalhadores-virtuosos. Penso que a hibridação entre estas diversas esferas (pensamento puro, vida política e trabalho) começam precisamente quando o Intelecto, enquanto principal força produtiva, faz-se público. Só agora o trabalho toma uma semelhança virtuosística (ou comunicativa) e, por isso, colore-se de tonalidade “política”. Marx atribui ao pensamento um caráter exterior, uma índole pública, em duas distintas ocasiões. Primeiro, quando utiliza a expressão, também muito bela, desde o ponto de vista filosófico, de “abstração real”; depois, quando fala de “general intellect”. Uma abstração real é, por exemplo, o dinheiro. No dinheiro, de fato, um dos princípios guia do pensamento humano se encarna, se faz real: a idéia de equivalência. Essa idéia, de per si muito abstrata, apenas tilinta na carteira e adquire uma existência concreta. O fazer-se coisa de um pensamento: isso o que uma abstração real é. Bem visto, o conceito de general intellect não faz mais que desenvolver desmesuradamente a noção de abstração real. Com general intellect, Marx indica a fase na qual já não são mais certos fatos (guardávamos a moeda) os que assinam o valor e o estatuto de pensamento, mas na qual são nossos pensamentos , como tais, os que imediatamente assinam valor aos fatos materiais. Se no caso da abstração real é um fato empírico (por exemplo, a troca de equivalentes) o que mostra a sofisticada estrutura de um pensamento puro, no caso do general intellect a relação se inverte: agora são nossos pensamentos que se

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apresentam com o peso e a incidência típica dos fatos. O general intellect é o estágio no qual as abstrações mentais são imediatamente, de per si, abstrações reais. Aqui, no entanto, surgem os problemas. Ou, se preferirmos, aflora uma certa insatisfação com respeito às formulações de Marx. A dificuldade nasce do fato de que Marx concebe ao “intelecto geral” como capacidade científica objetivada, como sistema de máquinas. Obviamente este aspecto conta, mas não é tudo. Deve-se considerar o aspecto no qual o intelecto geral, antes que se encarnar (ou melhor, se aferrar) no sistema de máquinas, existe enquanto atributo do trabalho vivo. O general intellect apresenta-se hoje, antes de tudo, como comunicação, abstração, auto-reflexão dos sujeitos viventes. Parece lícito afirmar que pela própria lógica do desenvolvimento econômico, é necessário que uma parte do general intellect não se coagule em capital fixo, mas que se desenvolva na interação comunicativa, na forma de paradigmas epidêmicos, representações dialógicas, jogos lingüísticos. Dito em outros termos: o intelecto público é um só com a cooperação, com o comportamento concertado do trabalho vivo, com a competência comunicativa dos indivíduos. No capítulo quinto do primeiro livro de O capital, Marx escreve: “O processo de trabalho, em seus movimentos simples e abstratos, assim como temos exposto, é atividade final para a produção de valores de uso (...) por isso não quiséramos apresentar o trabalhador em relação com outros trabalhadores. Foi suficiente, por uma parte, o homem e seu trabalho, por outra, a natureza e seus materiais.” (Marx, 1867: 218). Nesse capítulo, Marx descreve o processo de trabalho como processo natural de transformação orgânica entre o homem e a natureza, por isso, em termos gerais e abstratos, sem considerar a relação histórico-social. E ainda podemos perguntar-nos se, ficando nesse plano tão geral (quase antropológico), é lícito separar do conceito de trabalho os aspectos interativos, isto é, a relação com os demais trabalhadores? Certamente não é lícito quando a atividade de trabalho tem seu ponto nodal nas prestações comunicativas. É impossível, agora, esboçar o processo de trabalho sem apresentar, desde o começo, o trabalhador em relação com outros trabalhadores; ou sem utilizar agora à categoria do virtuosismo, em ralação com seu “público”. O conceito de cooperação implica em si, inteiramente, à atitude comunicativa dos seres humanos. Isso vale sobretudo ali aonde a cooperação vai para um “produto” específico da atividade de trabalho, para qualquer coisa promovida, elaborada, afinada pelos cooperantes mesmos. O general inellect requer um trabalhar virtuosístico (isto é, um trabalhar político), porque uma importante parte sua não se verte no sistema de máquinas, mas se manifesta na atividade direta do trabalho vivo, em sua cooperação lingüística. O intelecto, a pura faculdade de pensamento, o simples terlinguagem: eis aqui, repitamo-lo, a partitura seguida sempre de novo

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pelos virtuosos pós-fordistas. (Nota-se a diferença de enfoque entre a exposição de hoje e a da jornada prévia do seminário: aquilo que hoje é “partitura” do virtuoso, o intelecto, no dia anterior aparecia como recurso apotropêico fundamental, como proteção da periculosidade indeterminada do contexto mundano. É conveniente considerar conjuntamente ambos os aspectos: a multidão contemporânea, com sua forma de vida e seus jogos lingüísticos, coloca-se na interseção dessas duas acepções do “intelecto público”). Vou retomar e sublinhar aqui um ponto importante, já aludido antes. Enquanto que o virtuoso propriamente dito (o pianista ou o bailarino, por exemplo), faz uso de uma partitura bem definida, isto é, de uma obra em sentido estrito, o virtuoso pós-fordista, “executando” sua própria faculdade lingüística, não tem pressuposta uma obra determinada. Por general intellect não se deve entender o conjunto dos conhecimentos adquiridos pela espécie, mas a faculdade de pensar; a potência como tal, não suas inumeráveis realizações particulares. O “intelecto geral” não é outra coisa que o intelecto em geral. Serve aqui o exemplo, já dado, do falante. Tendo como única “partitura” a infinita potencialidade da própria faculdade de linguagem, um locutor (qualquer locutor), articula seus atos de palavra determinados: pois bem, a faculdade da linguagem é o oposto a um determinado roteiro, a uma obra com estas ou aquelas características inconfundíveis. O virtuosismo da multidão pós-fordista equivale ao virtuosismo do falante: virtuosismo sem apontamentos, dotado de um roteiro coincidente com a pura e simples dynamis, com a pura e simples potência. É oportuno agregar que a relação entre “partitura” e execução virtuosa se acha regulada pelas normas da empresa capitalista. O pôr a trabalhar (e a lucrar) as faculdades comunicativas e cognitivas mais genéricas do animal humano, possui um índice histórico, uma forma historicamente determinada. O general intellect manifesta-se, hoje, como perpetuação do trabalho assalariado, do sistema de hierarquias, eixo importante da produção de mais-valor. Razão de Estado e Êxodo Pode-se delinear neste ponto algumas conseqüências da hibridação entre Trabalho, Ação (política) e Intelecto. Conseqüências tanto no plano da produção como na da esfera pública (Estado, aparatos administrativos). O intelecto faz-se público quando se entrelaça ao trabalho; no entanto, observemos que é um enlace aparentado com o trabalho assalariado, com sua típica publicidade, inibida e distorcida inclusive. Sempre evocado de novo enquanto força produtiva, é também sempre reprimido enquanto esfera pública propriamente dita, eventual raiz da ação política, diferente princípio constituinte.

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O general intellect é o fundamento de uma cooperação social mais ampla que aquela especificamente do trabalho. Mais ampla e, por sua vez, de todo heterogênea. Reaparece aqui um tema já tratado na primeira jornada do seminário. Enquanto as conexões do processo produtivo baseiam-se nas divisões técnicas e hierárquicas das tarefas, a ação concertada empreendida sob o general intellct move-se desde a participação comum à “vida da mente”, vale dizer, ao original compartilhar de aptidões comunicativas e cognitivas. No entanto, a cooperação excedente do Intelecto, antes de descartar a coação da produção capitalista, aparece como o recurso mais importante desta. Sua heterogeneidade não é visível nem audível. Pelo contrário, já que a aparição do Intelecto volta-se o pré-requisito técnico do Trabalho, o comportamento do conjunto extra-trabalho que ela provoca é, por sua vez, submetido aos critérios e hierarquias que caracterizam o regime de fábrica. São duas as principais conseqüências dessa situação paradoxal. A primeira referida à forma e à natureza do poder político. A publicidade peculiar do Intelecto, privada de uma expressão própria daquele trabalho que também a reclama como força produtiva, manifesta-se indiretamente no âmbito do Estado, mediante o crescimento hipertrófico dos aparatos administrativos. A administração, já não mais o sistema político-parlamentar, é o coração da estatalidade: mas o é precisamente porque representa uma concreção autoritária do general intellect, o ponto de fusão entre saber e comando, a imagem invertida da cooperação excedente. É certo que durante decênios advertiu-se do peso crescente e determinante da burocracia no “corpo político”, a premência dos decretos sobre as leis: mas aqui pretendo marcar um umbral inédito. Em resumo, não nos achamos mais perante os tão conhecidos processos de racionalização do Estado, mas, pelo contrário, constatamos hoje a chegada da estatização do Intelecto. A antiga expressão “razão de Estado” adquire pela primeira vez um significado não metafórico. Se Hobbes vislumbrava o princípio de legitimação do poder absoluto na transferência do direito natural de cada indivíduo à pessoa do soberano, hoje, contrariamente, podemos falar da transferência do Intelecto, ou, melhor dizendo, de sua publicidade imediata e irredutível, à administração estatal. A segunda conseqüência está referida à natureza efetiva do regime pós-fordista. Já que o “espaço de estrutura pública” aberto pelo Intelecto se reduz totalmente à cooperação do trabalho, isto é, a uma densa rede de relações hierárquicas, as funções concludentes que a “presença alheia” cumpre em todas as operações produtivas concretas tomam a forma de dependência pessoal. Dito de outro modo: a atividade virtuosística mostra-se como trabalho servil universal. A afinidade entre o pianista e o camareiro, que Marx havia suspeitado, encontra uma inesperada confirmação na época na qual todo o trabalho assalariado tem algo do “artista executante”. Só que,

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pese a semelhança com o trabalho servil, é o mesmo trabalho produtivo de mais-valor. Quando “o produto é inseparável do ato mesmo de produção”, esse ato refere-se à pessoa que o executa, e ,sobretudo, à relação entre ela e aqueles que a organizaram ou a quem está dirigido. A ação de pôr a trabalhar aquilo que é comum, vale dizer, do intelecto e da linguagem, se por uma parte torna fictícia a divisão técnica impessoal das tarefas, por outra, não se traduzindo, aquele comunitário, em uma esfera pública (isto é, em uma comunidade política), induz uma viscosa personalização do submetimento. A pergunta crucial é esta: é possível cindir aquilo que está unido, isto é, o Intelecto (o general intellect) e o Trabalho (assalariado), e unir aquilo que hoje está cindido, o Intelecto e a Ação política? É possível passar da “antiga aliança” Intelecto/Trabalho a uma “nova aliança” Intelecto/Ação política? Subtrair a ação política da atual paralisia não é diferente de desenvolver a publicidade do Intelecto por fora do Trabalho assalariado, em oposição a ele. O assunto apresenta dois aspectos distintos, atrás dos quais, no entanto, subsiste a mais estreita complementaridade. Por uma parte, o general intellect afirma-se como esfera pública autônoma tão só na medida em que se vão cortando os laços que o unem à produção de mercadorias e ao trabalho assalariado. Por outra parte, a subversão das relações capitalistas de produção já pode se manifestar somente mediante a instituição de uma esfera pública não-estatal, de uma comunidade política que possua como fundamento próprio o general intellect. Os traços salientes da experiência pós-fordista (virtuosismo servil, valorização da faculdade de linguagem mesma, indefectível relação com a “presença alheia”, etc.) postulam, como contrapartida conflitiva nada menos que uma forma radicalmente nova de democracia. A esfera pública não-estatal é a esfera pública que se conforma segundo o modo de ser da multidão. Ela se serve da “publicidade” da linguagem/pensamento, de caráter extrínseco, aparente, conjunto, do Intelecto enquanto partitura dos virtuosos. Trata-se de uma “publicidade — como já observamos na primeira jornada do seminário — de toda heterogênea com respeito àquela instituída pela soberania estatal, ou para dizer como Hobbes, pela ‘unidade do corpo político’”. Essa “publicidade” que se manifesta hoje como um recurso produtivo privilegiado, pode fazer-se princípio constituinte, uma esfera pública como o assinalamos. Como é possível um virtuosismo não-servil? Como se passa, hipoteticamente, do virtuosismo servil a um virtuosismo “republicano” (entendendo por “república da multidão” a um âmbito não-estatal dos assuntos comuns)? Como conceber, em princípio, a ação política baseada no general intellect? Sobre este terreno convém se mover com cautela. Tudo o que podemos fazer hoje é indicar a forma lógica de todas aquelas coisas de que hoje carecemos de uma sólida

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experiência empírica∗. Proponho duas palavras-chave: desobediência civil e êxodo. A “desobediência civil” representa talvez, a forma básica da ação política da multidão. Sob a condição de emancipá-la da tradição liberal, na qual está encapsulada. Não se trata de desatender uma lei específica, porque é incoerente ou contraditória com outras normas fundamentais, a constituição, por exemplo: em dito caso, a resistência estaria testemunhando só uma profunda lealdade ao comando estatal. De forma inversa, a desobediência radical que nos interessa questiona a faculdade mesma de comando do Estado. Uma pequena digressão para compreender melhor. Segundo Hobbes, com a instituição do “corpo político”, obrigamo-nos a obedecer antes de saber que coisas nos será ordenada: “A obrigação de obediência, por cuja força são válidas as leis civis, precede a toda lei civil” (Hobbes, 1642: XIV, 21). É por isso que não acharemos alguma lei especial que intime a não se rebelar. Se a aceitação incondicional do comando não fosse já pressuposta, as disposições legislativas concretas (incluindo aquelas que indiquem “não se rebelar”) careceriam de toda validez. Hobbes sustenta que o vínculo original de obediência deriva das “leis naturais”, isto é, do interesse comum pela segurança e pela conservação. Então, apressase a acrescentar, aquelas “naturais”, a saber, as Super-leis que impõem respeitar todas as ordens do soberano, voltam-se efetivamente uma lei “só quando se tenha saído do estado de natureza, isto é, quando o Estado está já instituído”. Delineia-se assim um autêntico paradoxo: a obrigação de obediência é, ao mesmo tempo, causa e efeito da existência do Estado, é sustentáculo daquilo que também constitui seu fundamento, precede e segue ao mesmo tempo à formação do “império supremo”. Pois bem, a multidão toma como objetivo próprio a obediência preliminar e sem conteúdo, sobre cuja base somente pode desenvolver-se depois a melancólica dialética entre aquiescência e “transgressão”. Transgredindo uma prescrição particular sobre o desmantelamento da saúde pública ou sobre o bloqueio da imigração, a multidão levanta-se ante o pressuposto oculto de toda prescrição imperativa e rechaça sua vigência. Também a desobediência radical “precede às leis civis”, já que não se limita a violá-las, mas que coloca em causa o fundamento mesmo de sua própria validade. E assim chagamos à segunda palavra-chave: êxodo. Terreno de cultivo da desobediência são os conflitos sociais que se manifestam não só como protesto, mas sobretudo, como defecção (para falar como Albert O. Hirschman [Hirschman, 1970], não como voice [voz], mas como exit [saída; em inglês no original]). Nada é menos passivo que uma fuga, que um êxodo. A defecção modifica as condições nas quais teve lugar a contenda, antes pressupostas como horizonte inamovível; muda o contexto no qual está inserido um problema, em lugar de afrontar a este último

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elegendo uma ou outra das alternativas previstas. Em suma, o exit (saída), consiste em uma invenção desrespeitosa que altera as regras do jogo e enlouquece a bússola do adversário. Basta pensar — recordemos tudo que foi dito a respeito na primeira jornada — na fuga massiva do regime de fábrica, colocada em exercício pelos trabalhadores americano em meados do Oitocentos: entrando na “fronteira” para colonizar terras a baixo custo, tiveram oportunidade de tornar reversível sua própria condição de partida. Algo similar produziu-se na Itália em fins dos anos 70, quando a força de trabalho juvenil, contradizendo todas as expectativas, preferiu a precariedade e o part-time [em inglês no original] ao posto fixo na grande em presa. Ainda que por um breve período, a mobilidade ocupacional funcionou como recurso político, provocando o eclipse da disciplina industrial e consistindo em um certo grau de autodeterminação. O êxodo, isto é, a defesa, está na antípoda do desesperado “não ter para perder mais que as próprias correntes”: sustenta-se , ao contrário, sobre uma riqueza latente, sobre exuberantes possibilidades, em suma, sobre o princípio do tertium datur. Mas qual é, para a multidão contemporânea, a abundância virtual que impele para a opção-fuga a despeito da opção-resistência? Não está em jogo, obviamente, uma “fronteira” espacial, mas a soma de saberes, comunicações, atuações virtuosísticas de conjunto implicadas na publicidade do general intellect. A defecção outorga uma expressão autônoma, afirmativa em alto nível, a esta soma, impedindo deste modo sua “transferência” ao poder da administração estatal, ou sua configuração como recurso produtivo da empresa capitalista. Desobediência, êxodo. Fica claro que se trata só de alusões àquilo que pode ser o virtuosismo político, isto é, não-servil, da multidão.

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3 TERCEIRA JORNADA: A MULTIDÃO COMO SUBJETIVIDADE O conceito de multidão merece, talvez, o mesmo tratamento que o grande epistemólogo francês Gaston Bachelard propunha reservar para o problema e os paradoxos suscitados pela mecânica quântica. Bachelard afirmava (Bachelard, 1940: 19-20) que a mecânica quântica corresponde a um sujeito gramatical que, para ser pensado adequadamente, deve poder servir-se de múltiplos “predicados” filosóficos dentro de suas heterogeneidades: uma vez serve um conceito kantiano, outra resulta adequada uma noção extraída da psicologia da Gestalt, ou, por que não, alguma sutileza da lógica escolástica. O mesmo vale para nosso caso. Também a multidão deve ser indagada mediante conceitos solicitados de âmbitos e autores diversos. E é o que temos feito desde a primeira jornada do seminário. Naquela primeira jornada nos aproximamos ao modo de ser dos “muitos”, desde a dialética temor-proteção. Como recordarão, utilizamos palavras-chaves de Hobbes, Kant, Heidegger, Aristóteles (os topoi koinoi, isto é, os “lugares comuns”), Marx, Freud. Na segunda jornada, o reconhecimento da multidão contemporânea foi procurado discutindo a justaposição de poiesis e práxis, Trabalho e Ação política. Os “predicados” utilizados em referência a isto foram encontrados entre Hannah Arendt, Glenn Gould, o novelista Luciano Bianciardi, Saussure, Guy Debord, também Marx, Hirschman e outros. Hoje examinaremos outro grupo de conceitos, a fim, espero, de trazer luz, desde uma perspectiva diferente, sobre a multidão. Essa perspectiva diferente está constituída pela forma da subjetividade. Os predicados atribuíveis ao sujeito gramatical “multidão” são: a) o princípio de individuação, isto é, a antiga questão filosófica que trata sobre que coisa faz singular a uma singularidade, individual a um indivíduo; b) a noção foucaultiana de “biopolítica”; c) a tonalidade emotiva ou Stimmungen, que qualifica hoje a forma de vida dos “muitos”: oportunismo e cinismo (atenção: por tonalidade emotiva não entendo um traço psicológico passageiro, mas uma relação característica com seu próprio estar no mundo); d) e por fim, dois fenômenos que, também analisados por Agostinho e Pascal, ascenderam à dignidade de termos filosóficos em Ser e Tempo de Heidegger: a tagarelice [Gerede] e a curiosidade. O princípio de individuação Multidão significa: a pluralidade — literalmente: o ser-muitos — como forma duradoura de existência social e política, contraposta à

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unidade coesiva do povo. Pois bem, a multidão consiste em uma rede de indivíduos; os muitos são numerosas singularidades. O ponto decisivo é considerar estas singularidades como um ponto de chegada, não como um dado desde o qual partir; como o resultado final de um processo de individuação, não como átomos solipsistas. Porque são o resultado complexo de uma diferenciação progressiva, os “muitos” não postulam uma síntese ulterior. O indivíduo da multidão é o termo final de um processo, depois do qual não há outro, porque todo o resto (a passagem do Uno ao Muitos) já se deu. Quando se fala de um processo, ou de um princípio de individuação, convém ter em conta aquilo que precede à individuação mesma. Trata-se, antes de tudo, de uma realidade pré-individual, isto é, de algo comum, universal, indiferenciado. O processo que produz a singularidade tem um incipit não individual, pré-individual. A singularidade mergulha suas raízes em seu oposto, provém daquilo que se encontra em suas antípodas. A noção de multidão parece ter algum parentesco com o pensamento liberal, posto que valoriza a individualidade, mas, ao mesmo tempo, diferencia-se radicalmente porque dita individualidade é o fruto final de uma individuação que provém do universal, do genérico, do pré-individual. A aparente vizinhança se destrói na maior distância. Digamos: em que consiste a realidade pré-individual que está na base da individuação? Muitas, e todas legítimas, são as respostas possíveis. Em primeiro lugar, pré-individual é o fundo biológico da espécie, como os órgãos sensoriais, o aparato motor, as prestações perceptivas. É muito interessante o que afirma Merleau-Ponty (Merleau-Ponty, 1945: 293): “Eu não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minhas sensações que de meu nascimento e de minha morte”. E logo: “a visão, a audição, o tato, com seus campos, são anteriores e permanecem estranhos à minha vida pessoal.” (Ibid.: 451). A percepção não é descritível mediante a primeira pessoa do singular. Não é um “eu” individual o que sente, vê, toca, mas a espécie como tal. Às sensações se lhes associou muitas vezes o pronome anônimo e impessoal “se”: vê-se, toca-se, sente-se. O pré-individual incluído nas sensações é dotação biológica genérica, não suscetível de individuação. Em segundo lugar, pré-individual é a língua, a língua históricocultural conjunta de todos os locutores de uma certa comunidade. A língua é de todos e de ninguém. Também neste caso não há um “eu” individualizado, mas um “se”: fala-se. O uso da palavra é, primeiramente, interpsíquico, social e público. Não existe — em nenhum caso, muito menos no do neonatal — uma “linguagem privada”. É a tal propósito que se compreende todo o alcance do conceito de “intelecto público” ou general intellect. Todavia a língua, diferente das percepções sensoriais, é um âmbito pré-individual em

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cujo interior enraíza-se o processo de individuação. A ontogênese, isto é, a fase de desenvolvimento do ser vivente individual, consiste pelo indicado, na passagem da linguagem como experiência pública ou interpsíquica à linguagem como experiência singularizante e intrapsíquica. Esse processo, em minha opinião, cumpre-se quando a criança se dá conta de que seu ato de palavra não depende somente de uma língua determinada (que em muitos aspectos assemelha-se ao líquido amniótico ou a um ambiente zoológico anônimo), mas que está relacionado a uma faculdade genérica de palavra, com uma indeterminada potência de dizer (que não se resolve jamais em uma ou outra língua histórico-natural). A explicação progressiva da relação entre a faculdade (ou potência) de falar e o ato particular da palavra: eis aqui o que possibilita superar o caráter pré-individual da língua histórico-natural, provocando a individuação do locutor. Com afeito, enquanto a língua é de todos e de ninguém, a passagem do simples e puro poder-dizer uma enunciação particular e contingente determina o espaço do “propriamente meu”. Mas este é um assunto complicado, ao qual só lhe dedico aqui uma alusão. Para concluir, tenha-se presente que, enquanto o pré-individual perceptivo fica como tal, sem dar lugar a uma individuação, o pré-individual lingüístico é contrariamente, a base ou o âmbito no qual toma forma a singularidade individuada. Em terceiro lugar, pré-individual é a relação de produção dominante. Tem a ver, por isso, com uma realidade pré-individual extraordinariamente histórica. No capitalismo desenvolvido, o processo de trabalho mobiliza os requisitos mais universais da espécie: percepção, linguagem, memória, afetos. Funções e tarefas, em épocas pós-fordistas, coincidem grandemente com o gattungswesen, ou “existência genérica”, da qual falava Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (Marx, 1932: 227-8). Préindividual é o conjunto das forças produtivas. É a cooperação social como tarefa concertada, conjunto de relações poiéticas, cognitivas, emotivas. É o general intellect, o intelecto geral, objetivo, extrínseco. A multidão contemporânea está composta de indivíduos individuados, que levam à suas costas também esta realidade pré-individual (além de, naturalmente, a percepção sensorial anônima e a língua, de todos e de ninguém). Um Sujeito anfíbio. Está para ser publicado na Itália (pela editora Derive Approdi) um texto importante de Gilbert Simondon, filósofo francês muito caro a Gilles Deleuze, até agora bastante desconhecido (também na França, segundo creio). O livro intitula-se A individuação psíquica e coletiva (Simondon, 1989). As reflexões de Simondon acerca do princípio de individuação, nos oferecem outros “predicados” conceituais para aplicar ao sujeito gramatical que está no centro, a multidão.

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Duas teses de Simondon são particularmente relevantes para qualquer discurso sobre a subjetividade na época da multidão. A primeira tese afirma que a individuação nunca é completa, que o préindividual nunca se traduz de todo em singularidade. Em conseqüência, segundo Simondon, o sujeito consiste na trama permanente de elementos pré-individuais e aspectos individuados; isto é: é esta trama. Seria um grande erro, segundo Simondon, identificar o sujeito com uma de suas partes, aquela singularizada. É, ao contrário, um composto: “eu”, mas também “se”, unicidade irrepetível, mas também universalidade anônima. Se o “eu” individuado convive com o fundo biológico da espécie (as percepções sensoriais, etc.), com os caracteres públicos ou interpsíquicos da língua materna, com a cooperação produtiva e o general intellect, convém acrescentar que esta convivência não é sempre pacífica. Ao contrário, dá lugar a crises de diversos gêneros. O sujeito é um campo de batalha. Não é estranho que os aspectos préindividuais pareçam questionar a individuação: que esta última mostre-se como um resultado precário, sempre reversível. Por outro lado, contrariamente, é o “eu” pontual o que parece querer reduzir a si, com paradoxal voracidade, todos os aspectos pré-individuais de nossa experiência. Em ambos os casos não estão ausentes certos fenômenos de temor, pânico, angústia, patologias de diversos gêneros. Ou um Eu sem mundo ou um mundo sem Eu: esses são os dois extremos de uma oscilação que, de forma contida, nunca está de todo ausente. Desta oscilação são testemunhas perspícuas, segundo Simondon, os afetos e as paixões. A relação entre pré-individuais e individuados é, de fato, mediada pelos afetos. Algo mais: a trama nem sempre harmônica entre aqueles aspectos pré-individuais e aqueles singularizados do sujeito concernem estreitamente à relação entre cada um dos “muitos” e o general intellect. Na primeira jornada do seminário insistiu-se bastante sobre a fisionomia aterrorizante que pode assumir o “intelecto geral” quando não se traduz em uma esfera pública, pressionando como um poder impessoal e despótico. Em tal caso, o pré-individual faz-se ameaçador e absorvente. O pensamento crítico do Novecentos — pensemos na Escola de Frankfurt — sustentou que a infelicidade deriva da separação do indivíduo das forças produtivas universais. Assim se representa um indivíduo confinado em um nicho frio e obscuro, enquanto distante de si resplandece a potência anônima da sociedade (e da espécie). É essa uma idéia totalmente errônea. A infelicidade é a insegurança derivada não da separação entre existência individual e potência pré-individual, mas de sua férrea trama quando esta última manifesta-se como desarmonia, oscilação patológica, crise. Chegamos agora à segunda tese de Simondon. Nela afirma que o coletivo, a experiência coletiva, a vida de grupo, não é, como se pode acreditar, o âmbito no qual se moderam e diminuem os traços

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sobressalentes do indivíduo singular, mas ao contrário, é o terreno de uma nova individuação, ainda mais radical. Na participação em um coletivo, o sujeito, longe de renunciar aos seus traços mais peculiares, tem a ocasião de individuar, ao menos em parte, a cota de realidade pré-individual que leva sempre consigo. Segundo Simondon, no coletivo busca-se afinar a própria singularidade, ajustá-la segundo o diapasão. Só no coletivo, não no indivíduo isolado, a percepção, a língua, as forças produtivas podem se configurar como uma experiência individuada. Esta tese permite compreender melhor a oposição entre “povo” e “multidão”. Para a multidão o coletivo não é centrípeto, fusionante. Não é o lugar no qual se forma a “vontade geral” e se prefigura a unidade estatal. Já que a experiência coletiva da multidão não entorpece, mas que radicaliza o processo de individuação, exclui-se por princípio que de dita experiência se possa extrapolar um traço homogêneo; exclui-se que se possa “delegar” ou “transferir” algo ao soberano. O coletivo da multidão, enquanto individuação ulterior ou de segundo grau, funda a possibilidade de uma democracia nãorepresentativa. Reciprocamente, pode-se definir à “democracia nãorepresentativa” como uma individuação do pré-individual históricosocial: ciência, saberes, cooperação produtiva, general intellect. Os “muitos” persistem como “muitos”, sem aspirar à unidade estatal, porque: 1) quanto à singularidade individuada carregam já sobre suas costas a unidade/universalidade inerente às diversas espécies de pré-individuais; 2) em suas ações coletivas acentuam e perseguem o processo de individuação. O indivíduo social. No “Fragmento sobre as máquinas” dos Grundrisse (Marx, 1939-1941: II, 401), Marx cunha um conceito que, em meu parecer, é central para compreender a subjetividade da multidão contemporânea. Um conceito, digo-o rapidamente, objetivamente correlacionado com as teses de Simondon sobre a trama entre realidade pré-individual e singularidade. É o conceito de “indivíduo social”. Não é casual, parece-me, que Marx utilize esta expressão nas mesmas páginas nas quais discute sobre o general intellect, o intelecto público. O indivíduo é social porque nele está presente o general intellect. Ou também, recordando de novo o Marx dos Manuscritos, porque nele manifesta-se abertamente, junto ao singular, o gattungswesen, a “existência genérica”, o conjunto de requisitos e faculdades da espécie Homo sapiens sapiens. “Indivíduo social” é um oxímoro, uma unidade dos opostos: poderia parecer uma paquera hegeliana, sugestiva e inconsistente, de não poder contar com Simondon para decifrar seu sentido. “Social” se traduz por pré-individual, “individuo” pelo resultado último do processo de individuação. Já que por “pré-individual” queremos entender as percepções sensoriais, a língua, as forças produtivas, poderia se dizer, então, que o “indivíduo social” é o indivíduo que

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exibe abertamente a própria ontogênese, a própria formação (com seus diversos estados ou elementos constituintes). Eis aí uma espécie de cadeia lexicológica que une conjuntamente o ser-muitos à antiga questão do princípio de individuação, à noção marxiana de “indivíduo social”, às teses de Simondon sobre a convivência de elementos pré-individuais (língua, cooperação social, etc.) e elementos individuados, em cada sujeito. Proponho chamar multidão ao conjunto de “indivíduos sociais”. Poderse-ia dizer — junto com Marx, mas contra grande parte do marxismo — que as transformações radicais do presente estado de coisas consiste em conferir o maior valor e ressaltar a existência de cada membro singular da espécie. Poderá parecer paradoxal, mas creio que a teoria de Marx, poderia (e mais, deveria), hoje, considerar-se como uma teoria realista e complexa do indivíduo. Como um individualismo rigoroso: portanto, como uma teoria da individuação. Um conceito equívoco: a biopolítica O termo “biopolítica” foi introduzido por Foucault em alguns de seus cursos dos anos 70 no Collège de France (Foucault, 1989: 7183), dedicados às mudanças do conceito de “população” entre fins do século XVIII e princípios do XIX. Para Foucault, é naquela época, quando a vida, a vida como tal, a vida como mero processo biológico, começa a ser governada, administrada politicamente. Nos últimos anos, o conceito de “biopolítica” pôs-se em moda: recorre-se a ele com freqüência e de boa vontade para todo tipo de propósito. Devemos evitar esse uso automático e irreflexivo. Perguntemo-nos, portanto, como e por que a vida irrompe no centro da cena pública, como e por que o Estado a regula e governa. Parece-me que para compreender o nó racional do termo “biopolítica”, pode-se partir de um conceito distinto, muito mais complicado sob o ângulo filosófico: o de força de trabalho. Dessa noção fala-se onde quer que seja nas ciências sociais, descuidando de seu caráter áspero e paradoxal. Se os filósofos profissionais ocupamse de algo seriamente, deveriam dedicar-lhe muito esforço e atenção. Que significa “força de trabalho”? Significa potência de produzir. Potência, isto é, faculdade, capacidade, dynamis. Potência genérica, indeterminada: nela não está prescrita uma ou outra espécie particular de ato de trabalho, mas toda espécie, tanto a fabricação de uma porta como a colheita de pêras, tanto o falatório de um telefonista das chat-lines (em inglês no original, N. do T.) como a correção de texto. Força de trabalho é “a soma de todas as aptidões físicas e intelectuais existentes na corporeidade” (Marx, 1867: I, 195). Note-se: todas. Falando da força de trabalho nos referimos, implicitamente, a toda classe de faculdade: competência lingüística, memória, mobilidade, etc. Só hoje, na época pós-fordista, a realidade da força de trabalho está plenamente à altura de seu conceito. Só

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hoje, isto é, a noção de força de trabalho não é redutível (como na época de Gramsci) a um conjunto de qualidades físicas, mecânicas, mas inclui em si, plenamente, a “vida da mente”. Vamos ao ponto. A relação capitalista de produção se baseia na diferença entre força de trabalho e trabalho efetivo. A força de trabalho, repito, é pura potência, muito diferente dos atos correspondentes. Marx escreve: “Quem diz capacidade de trabalho não diz trabalho, como quem diz capacidade de digerir não diz digestão” (ibid.: 203). Trata-se pois de uma potência que se vangloria da prerrogativa concreta da mercadoria. A potência é algo não presente, não real; mas no caso da força de trabalho, este algo não presente está, no entanto, sujeito à demanda e oferta (ver Virno, 1999: 121-3). O capitalista adquire a faculdade de produzir enquanto tal (“a soma de todas as aptidões físicas e intelectuais existentes na corporeidade”), já não uma ou mais prestações determinadas. Depois que se efetuou a compra e venda, ele utiliza segundo seu parecer a mercadoria que agora possui: “O adquirente da força de trabalho a consome fazendo o seu vendedor trabalhar. É assim que este último transforma em actu aquilo que antes era potentia.” (Marx, 1867: I, 209). O trabalho realmente efetivado não se limita a ressarcir ao capitalista o dinheiro desembolsado antes, com a finalidade de assegurar-se a potência do trabalhar alheio, mas que prossegue por um lapso de tempo suplementar: aqui está a gênese da mais-valia, o arcano da acumulação capitalista. A força de trabalho encarna (literalmente) uma categoria fundamental do pensamento filosófico: a potência, a dynamis. E “potência”, como acabo de dizer, significa que não é atual, que não é presente. Pois bem, algo que não é presente (ou real) torna-se, no capitalismo, uma mercadoria de importância excepcional. A potência, a dynamis, a não-presença, antes que ficar como conceito abstrato assume semelhança pragmática, empírica, socioeconômica. A faculdade como tal, agora desaplicada, está no centro das trocas entre o capitalista e o trabalhador. Objeto de compra e venda, não é uma entidade real (prestações de trabalho efetivamente executadas), mas algo que, em si, não possui uma existência espaço-temporal autônoma (a capacidade genérica de trabalhar). As características paradoxais da força de trabalho (algo de irreal, que, entretanto, é vendida e comprada como qualquer mercadoria) são as premissas da biopolítica. Para nos darmos conta é conveniente agora uma inclusão argumentativa. Nos Grundrisse Marx escreve que “o valor de uso que o trabalhador há de oferecer [no intercâmbio com o capitalista] não se materializa em um produto, não existe fora dele, não existe realmente mais que caminho possível, isto é, como sua capacidade” (Marx, 1939-1941: I, 244-5; itálico do autor). Vê-se o ponto decisivo: ali onde se vende algo que existe só como possibilidade, este algo não é separável da pessoa vivente do vendedor. O corpo vivo do trabalhador é o substrato

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daquela força de trabalho que, em si, não tem existência independente. A “vida”, o puro e simples bios, adquire uma importância específica enquanto tabernáculo da dynamis, da simples potência. Ao capitalista interessa a vida do trabalhador, seu corpo, só por um motivo indireto: esse corpo, essa vida, são eles que contêm a faculdade, a potência, a dynamis. O corpo vivente faz-se objeto de governar, não por seu valor intrínseco, mas porque é o substrato da única coisa que verdadeiramente importa: a força de trabalho como soma das mais diversas faculdades humanas (potência de falar, de pensar, de recordar, de atuar, etc.). A vida se coloca no centro da política quando o que é colocado em jogo é a imaterial (e, em si, nãopresente) força de trabalho. Por isso, e só por isso, é lícito falar de “biopolítica”. O corpo vivente, do qual se ocupam os aparatos administrativos do Estado, é o signo tangível de uma potência ainda irrealizada, o simulacro do trabalho ainda não objetivado, ou como disse Marx numa expressão muito bela, do “trabalho como subjetividade”. Poderia se dizer que enquanto o dinheiro é o representante universal dos valores de troca, ou da trocabilidade mesma dos produtos, a vida faz as vezes, bem mais, da potência de produzir, da invisível dynamis. A origem não mitológica daquele dispositivo de saberes e poderes que Foucault chama biopolítica acha-se, sem dúvida, no modo de ser da força de trabalho. A importância prática assumida pela potência enquanto potência (o fato que ela é vendida e comprada como tal), e sua inseparabilidade da existência corpórea imediata do trabalhador: esse é o fundamento efetivo da biopolítica. Foucault zomba dos teóricos libertários como Wilhelm Reich (os psicanalistas heterodoxos), segundo os quais uma atenção espasmódica à vida seria fruto de um propósito repressivo: disciplinar os corpos para realçar a produtividade do trabalho. E Foucault tem razão de sobra, mas contra um alvo fácil. É certo: o governo da vida é muito variado e articulado, movendo-se desde a contenção dos impulsos até a licença mais desenfreada, da interdição minuciosa ao alarde de tolerância, do gueto para os pobres aos altos salários keynesianos, das prisões de segurança máxima ao Estado de Bemestar. Dito isto, fica a pergunta crucial: por que a vida como tal é tomada como encargo e governada? A resposta é unívoca: porque serve de substrato de uma mera faculdade, a força de trabalho, a qual adquiriu a consistência de uma mercadoria. Não é questão, aqui, da produtividade do trabalho em ato, mas a trocabilidade da potência de trabalhar. Só pelo fato de ser comprada e vendida, esta potência inclui também o receptáculo do qual ela é inseparável, isto é, o corpo vivente; além do mais, o coloca à vista como objeto de inumeráveis e diferenciadas estratégias governativas. Não é conveniente acreditar, portanto, que a biopolítica compreende em si, como articulação particular, a gestão da força de

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trabalho. O assunto é o inverso: a biopolítica é só um efeito, um reflexo, ou precisamente uma articulação daquele fato primário — histórico e filosófico ao mesmo tempo — que consiste na compra e venda da potência enquanto potência. Há biopolítica ali onde alcança o primeiro plano, na experiência imediata, o atinente às dimensões potenciais da existência humana: não a palavra dita, mas a faculdade de falar como tal; não o trabalho cumprido, mas a capacidade genérica de produzir. A dimensão potencial da existência torna-se proeminente precisamente e tão só com a aparência da força de trabalho. É nesta última onde se compendiam todas as diversas faculdades ou potências de animal humano. Olhando-o bem, “força de trabalho” não designa uma faculdade específica, mas o conjunto das faculdades humanas enquanto elas são incorporadas à práxis produtiva. “Força de trabalho” não é um nome próprio, mas um nome comum. As tonalidades emotivas da multidão Desejo agora falar brevemente da situação emotiva da multidão contemporânea. Com a expressão “situação emotiva” não me refiro, que fique claro, a uma mescla de propensões psicológicas, mas a modos de ser e de sentir tão estendidos que resultam comuns aos mais diversos contextos da experiência (trabalho, ócio, afetos, política, etc.). A situação emotiva, além de ubíqua, é sempre ambivalente. Ela pode manifestar-se, além disso, tanto como aquiescência ou como conflito, seja com a semelhança da resignação como com a da inquietude crítica. Dito de outro modo: a situação emotiva tem um núcleo neutro, sujeito a declinações diversas e, inclusive, opostas. Este núcleo neutro indica um modo de ser fundamental. Agora, é incontestável que a situação emotiva da multidão, hoje, se manifesta com “maus sentimentos”: oportunismo, cinismo, integração social, abjuração incansável, alegre resignação. Todavia, necessita-se remontar desde estes “maus sentimentos” até o núcleo neutro, isto é, ao modo de ser fundamental que, em princípio, poderia dar origem a desenvolvimentos muito diferentes aos que prevalecem hoje. O difícil de entender é que o antídoto, por assim dizer, pode ser encontrado naquilo que hoje se mostra como veneno. A situação emotiva da multidão pós-fordista caracteriza-se pela coincidência imediata entre produção e ética, “estrutura” e “superestrutura”, revolução do processo de trabalho e sentimentos, tecnologia e tonalidades emotivas, desenvolvimento material e cultural. Detenhamo-nos um momento nessas coincidências. Quais são hoje os principais requisitos exigidos aos trabalhadores dependentes? O acostumar-se à mobilidade, capacidade de se adaptar às reconversões mais bruscas, adaptabilidade associada com algumas iniciativas, flexibilidade no transcorrer entre um ou outro grupo de regras, disposição a uma interação lingüística tão banalizada

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quanto multilateral, capacidade de engenhar-se mais além de possibilidades alternativas limitadas. Pois bem, esses requisitos não são o fruto do disciplinamento industrial, são bem mais o resultado de uma socialização que tem seu epicentro fora do trabalho. A “profissionalidade” efetivamente requerida e oferecida consiste nas qualidades adquiridas durante uma prolongada permanência em um estágio pré-laboral ou precário. Diria: na espera de um emprego, viuse desenvolvendo aqueles talentos genericamente sociais e aquele hábito de não contrair hábitos perduráveis, que funcionam, depois, uma vez que se encontrou trabalho, como verdadeiros “ossos do ofício”. A empresa pós-fordista usufrui estes hábitos de não ter hábitos, este adestramento para a precariedade e a variabilidade. Mas o fato decisivo é uma socialização (com esse termo designo à relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo) que provem essencialmente de fora do trabalho, uma socialização essencialmente extratrabalho. São os chocs metropolitanos dos quais falava Benjamin, a proliferação de jogos lingüísticos, as variações ininterruptas das regras e das técnicas que constituirão a escola onde se forjarão as aptidões e requisitos que, na continuação, voltar-se-ão qualidades e requisitos “profissionais”. Entendamos bem: a socialização extratrabalho (que depois conflui no “âmbito do trabalho” pósfordista) consiste em experiências e sentimentos nos quais a principal filosofia e sociologia do último século — desde Heidegger e Simmel em diante — reconheceu os traços distintivos do niilismo. Niilista é uma práxis que já não goza de um fundamento sólido, de estrutura recursiva da qual dar conta, de hábitos protetores. Durante o Novecentos o niilismo pareceu um contraponto colateral aos processos de racionalização da produção e do Estado. Diria: por uma parte, o trabalho, por outra a precariedade e a variabilidade da vida metropolitana. Agora, em troca, o niilismo (habituar-se a não ter hábitos, etc.) entra em produção, faz-se requisito profissional, é posto a trabalhar. Só aquele que é especialista na aleatória variabilidade da forma de vida metropolitana sabe como se comportar na fábrica do just in time (em inglês no original. N. do T.). Quase é inútil agregar que, deste modo, faz-se em pedaços o esquema mediante o qual a maior parte da tradição sociológica e filosófica representou os processos de “modernização”. De acordo com tais esquemas, as inovações (tecnológicas, emotivas, éticas) desconcertam às sociedades tradicionais, onde prevalecem costumes repetitivos. Filemón e Bauci, os pacíficos camponeses que Goethe em Fausto, souberam separar-se do empresário moderno. Hoje, nada mais disso tudo. Não se pode mais falar de “modernização” ali onde intervêm as inovações, quanto ao mais, com periodicidade cada vez mais breve, sobre um cenário completamente caracterizado pelo desenraizamento, pela aleatoriedade, pelo anonimato, etc. O ponto crucial é que o atual movimento produtivo serve-se, como seu mais

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precioso recurso, de tudo aquilo que o esquema da modernização considerava dentro de seus efeitos: incerteza de expectativas, contingência das colocações, identidades frágeis, valores sempre cambiantes. A tecnologia avançada não provoca uma “desorientação” para dissipar uma progressiva “familiaridade”, mas sim que reduz a perfil profissional a experiência mesma da desorientação mais radical. O niilismo, em princípio à sombra da potência técnico-produtiva, fazse logo um ingrediente fundamental, qualidade muito estimada no mercado de trabalho. Esse é o pano de fundo oculto sobre o qual se destacam sobretudo duas tonalidades emotivas não exatamente edificantes: o oportunismo e o cinismo. Tratemos de peneirar estes “maus sentimentos”, identificando neles um modo de ser que, de per si, pode ser expresso de modo não desdenhoso. Oportunismo. O oportunismo mergulha suas raízes em uma socialização extra laboral indicada por manobras repentinas, chocs perceptivos, inovações permanentes, instabilidade crônica. Oportunista é aquele que afronta um fluxo de possibilidades sempre intercambiáveis, estando disponível para o maior número delas, submetendo-se à mais próxima e depois desviando-se com agilidade de uma a outra. Essa é uma definição estrutural, sóbria, nãomoralista do oportunismo. Em questão está uma sensibilidade aguçada pelas mutáveis oportunidades, uma familiaridade com o caleidoscópio das oportunidades, uma íntima relação com o possível enquanto tal. No modo pós-fordista de produção o oportunismo adquire um indubitável relevo técnico. É a relação cognitiva e de comportamento da multidão contemporânea ao fato de que a práxis já não está ordenada segundo diretrizes uniformes, mas sim que apresenta um alto grau de indeterminação. Agora, a mesma capacidade de se engenhar entre oportunidades abstratas e intercambiáveis constitui uma qualidade profissional em certos setores da produção pós-fordista, ali onde o processo de trabalho não está regulado por uma finalidade particular única, mas por uma classe de possibilidades equivalentes, a especificar cada vez. A máquina informática, antes que meio para um fim unívoco, é premissa de elaborações sucessivas e “oportunistas”. O oportunismo, faz-se valer como recurso indispensável, cada vez que o processo de trabalho concreto está invadido de um difuso “agir comunicativo”, sem se identificar mais com o “agir instrumental” mudo. Ou também, retomando um tema tratado na segunda jornada do seminário, toda vez que o Trabalho inclui em si os traços salientes da Ação política. No fundo, que outra coisa é o oportunismo se não uma qualidade do homem político? Cinismo. Também o cinismo é conexo à instabilidade crônica da forma de vida e dos jogos lingüísticos. Esta instabilidade crônica

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expõe à vista, tanto no trabalho como no tempo livre, as regras nuas que estruturam artificialmente os âmbitos de ação. A situação emotiva da multidão está caracterizada, pelo indicado, pela extrema vizinhança dos “muitos” às regras que dão nervura aos contextos singulares. Na base do cinismo contemporâneo está o fato de que os homens e as mulheres experimentam sobretudo as regras mais do que os “fatos”, antes que o experimento com eventos concretos. Mas ter uma experiência direta das regras significa, também, reconhecer seu convencionalismo e falta de fundamentos. De modo que não se está imerso em um “jogo” pré-definido, participando com verdadeira adesão, mas sim que se vislumbra um “jogo” singular, despojado de toda obviedade e seriedade, agora só o lugar da imediata afirmação de si. Afirmação de si tanto mais brutal e arrogante, em suma, cínica, quanto mais se serve, sem ilusão mas com perfeita adesão momentânea, daquelas mesmas regras das quais havia se apercebido o convencionalismo e a mutabilidade. Penso que há uma relação muito forte entre o general intellect e o cinismo contemporâneo. Ou melhor: penso que o cinismo é um dos modos possíveis de reagir ao general intellect (não o único, certo: retorna aqui o tema da ambivalência das situações emotivas). Vejamos melhor esse nexo. O general intellect é o saber social tornado principal força produtiva; é o conjunto de paradigmas epistêmicos, de linguagens artificiais, de constelações conceituais que dão nervura à comunicação social e à forma de vida. O general intellect distingue-se das “abstrações reais” típicas da modernidade, todas ancoradas ao princípio de equivalência. “Abstração real” é, sobretudo, o dinheiro, que representa a comensurabilidade dos trabalhos, dos produtos, dos sujeitos. Pois bem, o general intellect nada tem a ver com o princípio de equivalência. Os modelos do saber social não são unidade de medida, mas sim que constituem o pressuposto para possibilidades operativas heterogêneas. Os códigos e paradigmas técnico-científicos se apresentam como “força produtiva imediata”, isto é, como princípios construtivos. Não se equiparam a nada, mas fazem às vezes de premissas para todo gênero de ações. O fato de que o ordenamento das relações sociais provenha do saber abstrato antes que do intercâmbio de equivalentes, reflete-se na figura contemporânea do cínico. Por que? Porque o princípio de equivalência constituía a base, ainda contraditória, para as ideologias igualitárias que defendiam o ideal de um reconhecimento recíproco sem restrições, aquele de uma comunicação lingüística universal e transparente. De forma inversa, o general intellect, enquanto premissa apodíctica [demonstrativa. N. do T.] da práxis social, não oferece nenhuma unidade de medida para uma equiparação. O cínico reconhece, no contexto particular no qual atua, o papel preeminente de certas premissas epistêmicas e da simultânea ausência de equivalências reais. Comprime preventivamente a aspiração a uma comunicação dialógica paritária. Renuncia desde o princípio à busca

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de um fundamento intersubjetivo para sua práxis, como também à reivindicação de um critério unificado de valoração moral. A queda do princípio de equivalência, intimamente correlacionada com as trocas de mercadorias, é vestida, no comportamento do cínico, como insuportável abandono da instância de igualdade. Ao ponto que ele confia a afirmação de si à multiplicação (e fluidificação) de hierarquias e desigualdades, que a manifesta centralidade do saber na produção parece comportar. Oportunismo e cinismo: “maus sentimentos”, sem dúvida. Todavia, é lícito fazer a hipótese que cada conflito ou protesto da multidão arraigará no próprio modo de ser (o “núcleo neutro” ao qual aludíamos antes) que, por ora, manifesta-se com essa modalidade algo repugnante. O núcleo neutro da situação emotiva contemporânea, suscetível de manifestações opostas, consiste na familiaridade com o possível enquanto possível e em uma extrema aproximação às regras convencionais que estruturam os diversos contextos de ação. Aquela familiaridade e esta proximidade, das quais derivam agora o oportunismo e o cinismo, constituem, de todo modo, um signo distintivo indelével da multidão. A tagarelice e a curiosidade Por último, quero me deter em dois fenômenos muito conhecidos, e mal vistos, da vida cotidiana, aos quais Heidegger conferiu a dignidade de temas filosóficos. Em primeiro lugar a tagarelice [Gerede, a conversa fiada, o bate-papo; N. do T.], isto é, um discurso sem estrutura óssea, indiferente ao conteúdo que cada tanto aflora, contagioso e extensivo. Depois, a curiosidade, isto é, a insaciável voracidade pelo novo enquanto novo. Parece-me que esses são outros dois predicados inerentes ao sujeito gramatical “multidão”. Sob a condição de utilizar, como se verá, a palavra de Heidegger contra ele mesmo. Discutindo sobre a “tagarelice” quero avançar sobre uma faceta ulterior da relação multidão/linguagem verbal; a “curiosidade”, em troca tem a ver com certa virtude epistemológica da multidão (fique claro que estamos discutindo nada mais que uma epistemologia espontânea e não-reflexiva). A tagarelice e a curiosidade são estados analisados por Heidegger em Ser e tempo (Heidegger, 1927: 35 e 36). Ambos são considerados como típicas manifestações da “vida inautêntica”. Esta última está caracterizada pelo nivelamento conformista de todo sentir e compreender. Nela, é incontestavelmente o pronome impessoal “se” que domina: diz-se, faz-se, acredita-se em uma ou outra coisa. Em termos de Simondon, é o pré-individual o que domina a cena, impedindo qualquer individuação. O “se” é anônimo e extensivo. Alimenta seguranças tranqüilizantes, difunde opiniões sempre compartilhadas. É o sujeito sem rosto da comunicação midiática. O “se” alimenta a tagarelice e desencadeia uma curiosidade sem recato.

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Este “se” mexeriqueiro e intrometido oculta o traço sobressalente da existência humana: o ser no mundo. Cuidado: pertencer ao mundo não significa contemplá-lo desinteressadamente. Esse pertencimento representa antes de tudo uma implicação pragmática. A relação com meu contexto vital não consiste primeiramente em conhecimentos e representações, mas em uma práxis adaptativa, na busca de proteção, em uma orientação prática, na intervenção manipuladora dos objetos circundantes. A vida autêntica, para Heidegger, parece encontrar uma expressão adequada no trabalho. O mundo é, em primeiro lugar um mundo-canteiro-deobra, um conjunto de meios e finalidades produtivas, o teatro de um vigor geral. Segundo Heidegger, esta relação fundamental com o mundo acha-se desvirtuada pela tagarelice e pela curiosidade. Aquele que se põe a tagarelar e se deixa levar à curiosidade não trabalha, distrai-se da execução de uma tarefa determinada, suspende o “fazer-se responsável”. O “se”, além de anônimo, é também ocioso. O mundo-canteiro-de-obra é transformado em um mundo-espetáculo. Perguntamo-nos: é certo, então, que a tagarelice e a curiosidade estão confinadas ao exterior do trabalho, no tempo do ócio e da distração? Sobre a base do que se argumentou neste seminário, não devemos supor, bem mais, que essas atitudes fizeram-se o eixo da produção contemporânea, na qual domina o atuar comunicativo e é valorizada ao máximo grau a capacidade de “se virar” frente ao ambiente de inovações contínuas? Comecemos pela tagarelice. Ela testemunha o papel preeminente da comunicação social, sua independência de todo vínculo ou pressuposto, sua plena autonomia. Autonomia de objetivos pré-definidos, de empregos circunscritos, da obrigação de reproduzir fielmente a realidade. Na tagarelice diminui teatralmente a correspondência denotativa entre palavras e coisas. O discurso não mais requer uma legitimação externa, buscada desde os eventos sobre os quais versa. Ele mesmo constitui agora um evento em si, consistente, que se justifica só pelo fato de ocorrer. Heidegger escreve: “Em virtude da compreensão média que a linguagem expressa possui em si, o discurso comunicante (...) pode ser compreendido inclusive sem que aquele que escuta coloque-se na compreensão originária daquilo sobre o que discorre o discurso” (Heidegger, 1927: 212). E depois: “a tagarelice é a possibilidade de compreender tudo sem nenhuma apropriação da coisa a compreender” (Ibid. 213). A tagarelice rechaça o paradigma referencialista. A crise desse paradigma encontra-se na origem dos mass media (em inglês no original. N. do T.). Uma vez emancipados do peso de corresponder ponto a ponto ao mundo não lingüístico, os enunciados podem multiplicar-se indefinidamente, gerando-se uns aos outros. A tagarelice é infundada. Essa falta de fundamento explica seu caráter lábil, e às vezes vago, das interações cotidianas. Todavia, a mesma

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falta de fundamento autoriza a todo o momento a invenção e experimentação de novos discursos. A comunicação, antes que refletir e transmitir aquilo que é, produz esses estados de coisa mesmos, experiências inéditas, fatos novos [aquilo que pode ser; N. do T.]. Estamos tentados a dizer que a tagarelice se parece a um rumor de fundo: de per si insignificante (diferentemente dos rumores ligados a fenômenos particulares, por exemplo, uma moto em movimento ou uma broca), mas que oferece a trama da qual se extraem variantes significativas, modulações insólitas, articulações imprevistas. Parece-me que a tagarelice constitui a matéria-prima do virtuosismo pós-fordista do qual falamos na segunda jornada do seminário. O virtuoso, como recordarão, é aquele que produz algo não distinguível nem separável do ato mesmo de produzir. Virtuoso por excelência é o simples locutor. Mas, agreguemos agora, o locutor não-referencialista; o locutor que, falando, não reflete um ou outro estado de coisas, mas que o determina de novo mediante sua palavra mesma. Aquele que, segundo Heidegger, põe-se a tagarelar. A tagarelice é performativa: nela, as palavras determinam fatos, eventos, estados das coisas (ref. Austin, 1962). Ou, querendo-se, na tagarelice se pode reconhecer o performativo básico: não “Eu aposto” ou “Eu juro” ou “Eu tomo esta mulher como esposa”, mas, em primeiro lugar, “Eu falo”. Na afirmação “Eu falo”, faço algo o dizendo, e, além disso, declaro aquilo que faço enquanto o faço. Contrariamente ao que supõe Heidegger, a tagarelice não só não é uma experiência pobre e depreciável, mas que concerne diretamente ao trabalho, à produção social. Trinta anos atrás, em muitas fábricas, havia cartazes que intimavam: “Silêncio, trabalhase!”. Quem trabalhava calava. Começava-se a tagarelar só à saída da fábrica ou do trabalho. A principal novidade do pós-fordismo consiste em ter colocado a linguagem a trabalhar. Hoje, em algumas fábricas, podemos fixar dignamente cartazes invertidos aos de outros tempos: “Aqui se trabalha. Fale!”. Ao trabalhador não se pede um certo número de frases por média, mas um atuar comunicativo informal, flexível, em condições de enfrentar as mais diversas eventualidades (com uma boa dose de oportunismo, diríamos). Em termos de filosofia da linguagem, diria que o que se mobilizou não foi a palavra, mas a língua; a faculdade mesma, isto é, a potência genérica de articular todo tipo de enunciações, adquire um relevo empírico próprio na tagarelice informática. Ali, com efeito, não conta tanto “que coisa diz”, mas o puro e simples “poder dizer”. E passemos à curiosidade. Também ela tem por sujeito o anônimo “se”, protagonista indiscutível da “vida inautêntica”. E também ela situa-se, para Heidegger, por fora do processo de trabalho. O “ver”, que no trabalho finaliza com o cumprimento de uma tarefa particular, no tempo livre faz-se intranqüilo, móvel,

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volúvel. Escreve Heidegger: “o ocupar-se se detém em dois casos: ou para tomar força ou porque a obra finalizou. Esse aquietamento não suprime a ocupação, senão que deixa livre a visão, liberando-a do mundo da obra” (ibid.: 217). A liberação do mundo da obra faz com que a “visão” nutra-se de qualquer coisa, fatos, eventos, reduzidos, todavia, a outros tantos espetáculos. Heidegger cita Agostinho, que da curiosidade havia efetuado uma análise admirável no livro décimo das Confissões. O curioso, para Agostinho, é aquele que se deixa levar à concupiscentia oculorum, à concupiscência da vista, cobiçando assistir a espetáculos insólitos e inclusive horríveis: “o prazer corre atrás daquilo que é belo, gostoso, harmonioso, suave, mórbido; a curiosidade deseja experimentar também o contrário (...) por afã de provar, de conhecer. E na verdade, que prazer se pode provar à horrível visão de um cadáver feito em pedaços? Todavia, se aparece um em qualquer parte, todos acodem ali” (Confissões: X, 35). Tanto Agostinho quanto Heidegger consideravam a curiosidade como uma forma degradada e perversa de amor pelo saber. Uma paixão epistêmica, em suma. A paródia plebéia do bios theoretikos, da vida contemplativa dedicada ao conhecimento puro. Nem o filósofo nem o curioso têm interesses práticos, ambos aspiram a uma aprendizagem como fim em si mesmo, a uma visão sem finalidade extrínseca. Mas na curiosidade os sentidos usurpam as prerrogativas do pensamento: são os olhos do corpo, não aquela metáfora da mente, os que observarão, remexerão, valorarão todos os fenômenos. A ascética theoria transforma-se no “afã de provar, de conhecer” do voyeur. O juízo de Heidegger é sem apelação: na curiosidade aninha-se um estranhamento radical; o curioso “está interessado só pelo aspecto do mundo; deste modo intenta se libertar de si mesmo enquanto ser-no-mundo” (Heidegger, 1927: 217). Desejo confrontar este juízo de Heidegger com a postura de Walter Benjamin. Em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin propôs, por sua vez, um diagnóstico do “se”, do modo de ser da sociedade de massas, em suma, da “vida inautêntica”. Com outra terminologia, desde logo. E alcançando conclusões muito distintas das de Heidegger. Benjamin entende como uma promessa, ou ao menos como uma ocasião importante, aquilo que, contrariamente, Heidegger considera uma ameaça. A reprodutibilidade técnica da arte e de toda classe de experiências, realizada pelos mass media, não é outra coisa mais que o instrumento mais adequado para satisfazer uma curiosidade universal e onívora. Benjamin elogia aquele “afã de conhecer” por meio dos sentidos, aquela “concupiscência da vista”, que Heidegger, por sua parte, difama. Vejamos isso mais detalhadamente. Tanto a curiosidade (para Heidegger), como a reprodutibilidade técnica (para Benjamin), esforçam-se para abolir a distância, para colocar todas as coisas ao alcance da mão (ou melhor, do olhar). Esta

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vocação para a proximidade possui, no entanto, significados opostos em ambos os autores. Para Heidegger, na ausência de um trabalhoso “pôr mãos à obra”, a aproximação ao que é distante e estranho dá por resultado a anulação desastrosa da perspectiva: o olhar não distingue entre “primeiro plano” e “fundo”. Quando todas as coisas convergem numa proximidade indiferenciada (como, segundo Heidegger, ocorre ao curioso), desaparece o centro estável que permite poder observá-las. A curiosidade assemelha-se a um tapete voador que, iludindo a lei da gravidade, voa a baixa altura sobre os fenômenos (sem arraigar neles). Em troca, Benjamin, a propósito da curiosidade mass-mediática, escreve: “restituir as coisas espacialmente, humanamente mais próximas, é para as massas atuais uma exigência primordial como a tendência à superação da unicidade de todo o dado mediante a recepção de sua reprodução” (Benjamin, 1936: 25). Para Benjamin, a curiosidade enquanto aproximação ao mundo, amplia e enriquece a capacidade perceptiva humana. O olhar móvel do curioso, realizado mediante os mass media, não se limita a receber passivamente um espetáculo dado, mas, ao contrário, decide todas as vezes que coisa ver, que coisa merece colocar-se em primeiro plano e que coisa deve permanecer ao fundo. Os meios exercitam os sentidos à considerar o conhecido como se fosse ignorado, isto é, a vislumbrar uma “margem de liberdade enorme e imprevista” inclusive naqueles aspectos mais trilhados e repetitivos da experiência cotidiana. Mas, ao mesmo tempo, exercitam os sentidos também para a tarefa oposta: considerar o ignoto como se fosse conhecido, adquirir familiaridade com o insólito e surpreendente, habituar-se à carência de costumes sólidos. Outra analogia significativa. Tanto para Heidegger como para Benjamin, o curioso está permanentemente distraído. Ele olha, aprende, experimenta todas as coisas, mas sem prestar atenção. Também neste tema o juízo de ambos os autores é divergente. Para Heidegger a distração, correlacionada com a curiosidade, é a prova evidente de um desenraizamento total e ausência de autenticidade. Distraído é quem sempre persegue possibilidades distintas mas equivalentes e intercambiáveis (o oportunista na acepção proposta anteriormente). Pelo contrário, Benjamin elogia explicitamente à distração, percebendo nela o modo mais eficaz de receber uma experiência artificial, construída tecnicamente. Escreve: “Mediante a distração (...) pode-se controlar de antemão em que medida a percepção encontra-se em condições de absorver novas tarefas (...). O cinema desvaloriza os valores de culto [tal o culto da obra de arte considerada algo único] não só induzindo o público a uma atitude valorativa [ele decide que coisa é fundo e qual é primeiro plano, como falávamos antes], mas também pelo fato de que no cinema a atitude valorativa não implica atenção: o público [podemos dizer: a multidão

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enquanto público] é um examinador, mas um examinador distraído”. (Ibid.: 46) De per si, a distração é um obstáculo para a aprendizagem intelectual. O fato muda radicalmente, todavia, se o que está em jogo é uma aprendizagem sensorial: esta última é favorecida e potencializada pela distração; reclama um certo grau de dispersão e inconstância. Pois bem, a curiosidade midiática é aprendizagem sensorial de artifícios tecnicamente reproduzíveis, percepção imediata de produtos intelectuais, visões corporais de paradigmas científicos. Os sentidos — ou melhor, a “concupiscência do olhar” — apropriamse de uma realidade abstrata, isto é, de conceitos materializados em técnica, não se mostrando com atenção, mas fazendo alardes de distração. A curiosidade (distraída), assim como a tagarelice (não referencialista), são atributos da multidão contemporânea. Atributos carregados de ambivalência, naturalmente. Mas iniludíveis.

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4 DEZ TESES SOBRE A MULTIDÃO E O CAPITALISMO PÓSFORDISTA Intentei descrever o modo de produção contemporâneo, o denominado pós-fordismo, sobre a base de categorias extraídas da filosofia política, da ética, da epistemologia, da filosofia da linguagem. Não por costume profissional, mas porque estou convencido de que o modo de produção contemporâneo exige, para ser descrito de modo adequado, este instrumental, esta amplitude de abordagem. Não se compreende o pós-fordismo sem recorrer a uma constelação conceitual ético-lingüística. Como é obvio, de resto, ali o matter of fact [em inglês no original; N. do T.] deve consistir na identificação progressiva entre poiesis e linguagem, produção e comunicação. Para denominar com um termo unitário a forma de vida e os jogos lingüísticos que caracterizam nossa época, utilizei a noção de “multidão”. Esta noção, antípoda daquela de “povo”, define-se pelo conjunto de quebras, desmoronamentos, inovações que intentei indicar. Citando desordenadamente: a vida dos estrangeiros (bios xenikos) como condição ordinária; a prevalência dos “lugares comuns”, do discurso, sobre aqueles “especiais”; a publicidade do intelecto, tanto como recurso apotropêico ou como base da produção social; a atividade sem obra (isto é, o virtuosismo); a centralidade do princípio de individuação; a relação com o possível enquanto tal (oportunismo); o desenvolvimento hipertrófico dos aspectos não referenciais da linguagem (tagarelice). Na multidão se dá a plena exibição histórica, fenomênica, empírica da condição ontológica do animal humano: carências biológicas, caráter indefinido ou potencial de sua existência, ausência de um ambiente determinado, intelecto lingüístico como “ressarcimento” pela escassez de instintos especializados. É como se as raízes houvessem saído para a superfície, ficando expostas à vista. Aquilo que sempre foi verdade, vê-se agora sem velamentos. A multidão é isto: configuração biológica fundamental que se faz modo de ser historicamente determinado, ontologia que se revela fenomenicamente. Pode-se dizer também que a multidão pós-fordista ressalta sobre o plano histórico-empírico a antropogênese como tal, isto é, a gênese mesma do animal humano, seus caracteres diferenciais. A recorre em compêndio, recapitula-a. Temos pensado nessas considerações bem mais abstratas como outra forma para dizer que o capitalismo contemporâneo tem seu principal recurso produtivo nas atitudes lingüístico-relacionais do ser humano, no conjunto de faculdades (dynameis, potência) comunicativas e cognitivas que o distinguem. O seminário foi concluído. O que podia dizer já está (bem ou mal) dito. Agora, ao término de nossa circunavegação do continente “multidão”, só cabe insistir sobre alguns aspectos importantes por 60

dirimir. Com tal finalidade, proponho dez asserções sobre a multidão e o capitalismo pós-fordista. Asserções que só por comodidade chamo teses. Elas não pretendem ser exaustivas, nem querem se contrapor a outras possíveis análises ou definições do pós-fordismo. De teses autênticas só têm o aspecto apodítico e (espero) a concisão. Algumas dessas asserções poderiam, talvez, convergir entre si, fundindo-se em uma única “tese”. Além disso, a seqüência é arbitrária: aquela que aparece como “tese x” não perderia nada figurando como “tese y” (e vice-versa). Devo aclarar, enfim, que muitas vezes afirmo ou nego com mais clareza, ou menos matizes, do que seria justo (ou prudente). Em alguns casos, quase diria, mais do que penso. Tese 1 O pós-fordismo (e com ele a multidão) fizeram sua aparição na Itália com as lutas sociais que por convenção são recordadas como o “movimento de 1977”. O pós-fordismo foi inaugurado na Itália pelos tumultos de uma força de trabalho escolarizada, precária, móvel, que odiava a ética do trabalho e opunha-se, por vezes frontalmente, às tradições e à cultura da esquerda histórica, marcando uma clara descontinuidade com o operário da linha de montagem, seus usos e costumes, sua forma de vida. O pós-fordismo foi inaugurado por conflitos centrados em figuras sociais que, apesar de sua aparente marginalidade, estavam se convertendo no autêntico fulcro do novo ciclo de desenvolvimento capitalista. Por outro lado, já sucedeu que uma mudança radical do modo de produção seja acompanhada pela precoce conflitividade daqueles estratos da força de trabalho que pouco a pouco foram se constituindo no eixo de sustentação da produção de mais-valor. Basta pensar na periculosidade atribuída, no Setecentos, aos vagabundos ingleses, já expulsos do campo, e a ponto de submergirem nas primeiras manufaturas. Ou nas lutas dos trabalhadores não qualificados, estadunidenses, nos anos 10 de nosso século, lutas que precederam às mudanças fordistas e tayloristas baseadas na desqualificação sistemática do trabalho. Toda metamorfose drástica da organização produtiva está destinada, num princípio, a evocar aos afãs da “acumulação originária”, devendo transformar desde o início uma relação entre coisas (nova tecnologia, distintos destinos dos investimentos, etc.) em uma relação social. É nesse intermédio delicado onde se manifesta, às vezes, o aspecto subjetivo daquilo que, mais tarde, faz-se irrefutável decurso factual. A obra mestra do capitalismo italiano foi transformar em recurso produtivo precisamente os comportamentos que, num primeiro momento, manifestavam-se com a semelhança do conflito radical. A conversão das propensões coletivas do movimento do 77 — êxodo da fábrica, rechaço ao emprego estável, familiaridade com os saberes e

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as redes comunicativas — em um conceito inovado de profissionalidade (oportunismo, tagarelice, virtuosismo, etc.): esse é o resultado mais precioso da contra-revolução italiana (entendendo por “contra-revolução” não a simples restauração do precedente estado de coisas, mas, literalmente, uma revolução ao contrário, isto é, uma inovação drástica da economia e das instituições com a finalidade de lançar de novo a produtividade e o domínio político). O movimento do 77 teve a desdita de ser tratado como um movimento de marginais e de parasitas. De fato, marginal e parasita era o ponto de vista adotado por aqueles que emitiam essas acusações. Com afeito, esses se identificavam de todo com o paradigma fordista, considerando “central” e “produtivo” só o trabalho estável na fábrica de bens de consumo duráveis. Identificavam-se, portanto, com o ciclo de desenvolvimento em declínio. Vejamos bem, o movimento do 77 antecipou alguns traços da multidão pós-fordista. Pálido e tosco, quanto se queira, o seu foi nada menos que um virtuosismo não servil. Tese 2 O pós-fordismo é a realização empírica do “Fragmento sobre as máquinas” de Marx. Escreve Marx: “O roubo do tempo de trabalho alheio sobre o qual se apóia a atual riqueza se apresenta como uma base miserável com respeito a esta nova base [o sistema de máquinas automatizadas] que se desenvolveu, entretanto, sendo criada pela grande indústria mesma. Apenas o trabalho na forma imediata cessou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho cessa e deve cessar de ser sua medida, e por conseguinte, o valor de troca deve cessar de ser a medida do valor de uso” (Marx, 1939-1941: II, 401). No “Fragmento sobre as máquinas” dos Grundrisse, de onde extraí a citação, Marx sustenta uma tese muito pouco marxista: o saber abstrato — aquele científico, em primeiro lugar, mas não só ele — encaminha-se para se converter em nada menos que a principal força produtiva, relegando ao trabalho parcializado e repetitivo uma posição residual. Sabemos que Marx recorre a uma imagem tão sugestiva para indicar o conjunto de conhecimentos que constituem o epicentro da produção social e, ao mesmo tempo, pré-ordenam todos os âmbitos vitais: general intellect, intelecto geral. A preeminência tendencial do saber faz do tempo de trabalho uma “base miserável”. A denominada “lei do valor” (segundo a qual o valor de uma mercadoria está determinado pelo tempo de trabalho incorporado nela), que Marx considera a arquitrave das atuais relações sociais, é, todavia, refutada e rechaçada pelo próprio desenvolvimento capitalista.

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É neste ponto onde Marx coloca uma hipótese de superação da relação de produção dominante muito distinta daquela, e das expostas em outros textos. No “Fragmento” a crise do capitalismo já não está mais imputada às desproporções internas de um modo de produção realmente baseado no tempo de trabalho consagrado pelos indivíduos (não está mais imputada, pois, aos desequilíbrios conexos à plena vigência das leis, como por exemplo, à queda da taxa de lucro). Chegam ao primeiro plano, bem mais, as contradições dilacerantes entre um processo produtivo, que hoje gira direta e exclusivamente sobre a ciência, e uma unidade de medida da riqueza todavia concernente à quantidade de trabalho incorporada aos produtos. A progressiva ampliação desta contradição conduz, segundo Marx, à “derrubada da produção baseada sobre o valor de troca” e, portanto, ao comunismo. Isto que salta à vista, na época pós-fordista, é a plena realização factual da tendência descrita por Marx, mas sem algum aspecto emancipador. Antes que foco da crise, a desproporção entre o papel absoluto do saber e a importância decrescente do tempo de trabalho deu lugar a uma nova e estável forma de domínio. As metamorfoses radicais do conceito mesmo de produção estão inscritas para sempre no âmbito do trabalho sob patrão. Mais que aludir a uma superação do existente, o “Fragmento” é uma caixa de ferramentas para o Sociólogo. Descreve uma realidade empírica ante o olhar de todos: a realidade empírica do ordenamento pós-fordista. Tese 3 A multidão reflete em si a crise da sociedade do trabalho A crise da sociedade do trabalho, certamente, não coincide com uma contração linear do tempo de trabalho. Este último, pelo contrário, mostra hoje uma inaudita persistência. As posições de Gorz e Rifkin sobre o “fim do trabalho” (Gorz, 1997; Rifkin, 1995) estão equivocadas; semeadas de erros de todas as classes; e o que é pior, impedem de analisar a questão que evocam. A crise da sociedade do trabalho consiste antes de tudo no fato (tese 2) de que a riqueza social é produzida pela ciência, pelo general intellect, antes que pelo trabalho devotado pelo indivíduo. Parece que o trabalho dependente pode ser reduzido a uma porção quase desprezível da vida. A ciência, a informação, o saber em geral, a cooperação, apresentam-se como as pilastras da produção. Eles, já não mais o tempo de trabalho. Todavia, este tempo continua valendo como parâmetro do desenvolvimento e da riqueza social. A saída da sociedade do trabalho constitui, por isso, um processo contraditório, teatro de furiosas antinomias e de desconcertantes paradoxos. O tempo de trabalho é a unidade de medida vigente, mas já não mais verdadeira. Ignorar um dos lados — sublinhar só a vigência ou só a

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não-verdade — não nos leva longe: no primeiro caso, nem sequer nos damos conta da crise da sociedade do trabalho, no segundo, terminase na avalizada representação pacífica a lá Gorz ou a lá Rifkin. A superação da sociedade do trabalho sobrevém na forma prescrita do sistema social baseado no trabalho assalariado. O tempo excedente, isto é, riqueza potencial, manifesta-se como miséria: dependência, desemprego estrutural (provocado pelos investimentos, não por sua falta), flexibilização ilimitada no emprego da força de trabalho, proliferação de hierarquias, restabelecimento de arcaísmos disciplinares para controlar o indivíduo, já não submetido aos preceitos do sistema fabril. Essa é a tempestade magnética com a qual se desdobra, no plano fenomênico, uma “superação”, tão paradoxal de cumprir, sobre a mesma base daquilo que quer superar. Repito a frase chave: a superação da sociedade do trabalho cumpre-se segundo regras do trabalho assalariado. Esta frase não faz mais que aplicar à situação pós-fordista o que Marx observou a propósito da primeira sociedade por ações. Segundo Marx, com a sociedade por ações se “superou a propriedade privada sobre a base mesma da sociedade privada”. Vale dizer: a sociedade por ações testemunha a possibilidade de saída do regime da propriedade privada, mas esta afirmação conduz para sempre ao interior da propriedade privada, dizendo melhor, potencializa esta última desmesuradamente. Toda a dificuldade, no caso do pós-fordismo como no daquela sociedade por ações, está em poder considerar simultaneamente os dois perfis contraditórios, a subsistência e o final, a vigência e a superação. A crise da sociedade do trabalho (acordemos) implica que toda a força de trabalho pós-fordista pode ser descrita mediante a categoria com a qual Marx analisou ao “exército industrial de reserva”, isto é, o desemprego. Marx acreditava que o “exército industrial de reserva” era subdivisível em três espécies de figuras: fluído (hoje falamos de turn-over [em inglês no original; N. do T.], aposentadoria antecipada, etc.), latente (ali onde a qualquer momento pode chegar uma inovação tecnológica a ceifar a ocupação), estagnado (em termos atuais: o trabalho in nero [no mercado negro, informal; N. do T.], precário, atípico). Fluída, latente, ou estagnada é, segundo Marx, a massa de desempregados, não a classe trabalhadora empregada; um setor marginal da força de trabalho, não sua seção central. Pois bem, a crise da sociedade do trabalho (com as características complexas que intentamos esboçar) faz com que essas três determinações sejam aplicáveis, efetivamente, à totalidade da força de trabalho. Fluída ou latente ou estagnada é a classe trabalhadora ocupada enquanto tal. Qualquer prestação de trabalho assalariado deixa transparecer sua nãonecessidade, seu caráter de custo social excessivo. Mas esta nãonecessidade manifesta-se sempre como perpetuação do trabalho assalariado precário ou “flexibilizado”.

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Tese 4 Para a multidão pós-fordista cada vez há menos diferença qualitativa entre tempo de trabalho e de nãotrabalho. Hoje o tempo social parece saído de suas dobradiças, pois já não há nada que distinga ao tempo de trabalho do resto das atividades humanas. Portanto, como o trabalho deixa de constituir uma práxis especial e separada, em cujo interior regem critérios e procedimentos peculiares, tudo é distinto dos critérios e procedimentos que regulam o tempo de não-trabalho. Não há mais um limite claro que separe o tempo de trabalho do de não-trabalho. No fordismo, segundo Gramsci, o intelecto fica fora da produção; só ao finalizar o trabalho o operário fordista lê o diário, acode à sessão do partido, dialoga. Pelo contrário, no pós-fordismo já que a “vida da mente” está plenamente incluída no espaço-tempo da produção, prevalece uma homogeneidade essencial. Trabalho e não-trabalho desenvolvem idêntica produtividade, baseada sobre o exercício de faculdades humanas genéricas: linguagem, memória, sociabilidade, inclinações éticas e estéticas, capacidade de abstração e de aprendizagem. Desde o ponto de vista de “que coisa” se faz e do “como” se faz não há nenhuma diferença substancial entre emprego e desemprego. Podemos dizer: o desemprego é trabalho não remunerado; o trabalho, por sua parte, é desemprego remunerado. Pode-se afirmar, com bons motivos, tanto que nunca se deixe de trabalhar como que se trabalha cada vez menos. Essa formulação paradoxal, e também contraditória, testemunha, em seu conjunto, a saída do tempo social de suas dobradiças, seu descarrilar. A antiga distinção entre “trabalho” e “não-trabalho” resolve-se entre vida retribuída e vida não-retribuída. O limite entre uma e outra é arbitrário, cambiante, sujeito a decisões políticas. A cooperação produtiva da qual participa a força de trabalho é cada vez mais ampla e mais rica que a colocada em ação no processo de trabalho. Compreende também ao não-trabalho, as experiências e conhecimentos maturados fora da fábrica e do ofício. A força de trabalho valoriza ao capital somente porque não perde mais sua qualidade de não-trabalho (isto é, sua inerência a uma cooperação produtiva mais rica que aquela integrada ao processo de trabalho estreitamente acordado). Já que a cooperação do trabalho precede e excede ao processo de trabalho, o trabalho pós-fordista é sempre, além disso, trabalho invisível. Com esta expressão não se entende aqui um emprego nãocontratualizado, “in nero” [“ilegal”; N.do T.]. Trabalho invisível é, antes de tudo, a vida não paga, isto é, a parte da atividade humana

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que, homogênea em todo àquela vida trabalhadora, não é todavia computada como força produtiva. O ponto decisivo é reconhecer que, no trabalho, tem um peso preponderante a experiência maturada por fora dele, sabendo todavia que esta esfera de experiência mais geral, uma vez incluída no processo produtivo, submete-se às regras do modo de produção capitalista. Também aqui há um duplo risco: ou negar a dimensão de quanto vem incluído no modo de produção, ou bem, em nome de dita dimensão, negar a existência de um modo específico de produção. Tese 5 No pós-fordismo, existe um afastamento permanente entre “tempo de trabalho” e um mais amplo “tempo de produção”. Marx distingue entre “tempo de trabalho” e “tempo de produção” no capítulo XII e XIII do livro segundo de O capital. Pensemos no ciclo semear-colher. O bóia-fria fatiga-se durante um mês (tempo de trabalho); depois vem o longo intervalo de maturação do grão (agora, tempo de produção, mas não de trabalho); finalmente chega a época da colheita (outra vez tempo de trabalho). Na agricultura e em outros setores a produção é mais extensa que a atividade de trabalho mesma; pelo que esta última constitui apenas uma fração do ciclo total. Pois bem, a dupla “tempo de trabalho” / “tempo de produção” é uma ferramenta conceitual extraordinariamente pertinente para compreender a realidade pósfordista, as articulações atuais da jornada social de trabalho. Daqueles exemplos bucólicos de Marx, a separação entre “produção” e “trabalho” adapta-se muito bem à situação descrita por Marx no “Fragmento sobre as máquinas”, uma situação na qual o tempo de trabalho apresenta-se como um “resíduo miserável”. A desproporção toma duas formas distintas. Em primeiro lugar, acha-se dentro de cada jornada de trabalho de cada trabalhador dependente individual. O operário vigia e coordena (tempo de trabalho) o sistema automático de máquinas (cujo funcionamento define o tempo de produção); a atividade do trabalhador torna-se muitas vezes uma espécie de manutenção. Poder-se ia dizer que, no âmbito pós-fordista o tempo de produção só se interrompe a expensas do tempo de trabalho. Enquanto a semeadura é condição necessária para a posterior fase de crescimento do grão, a atual atividade de vigilância e coordenação é colocada, desde o princípio até a final, ao lado do processo automatizado. Temos depois um segundo e mais radical modo de conceber a desproporção. No pós-fordismo o “tempo de produção” compreende ao tempo de não-trabalho, à cooperação social que se enraíza nele (tese 4). Denomino por isso “tempo de produção” à unidade

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indissolúvel de vida paga e vida não-paga, trabalho e não-trabalho, cooperação social visível e cooperação social invisível. O “tempo de trabalho” é só um componente, e não necessariamente o mais relevante, do “tempo de produção” assim acordado. Essa constatação nos força a reformular, em parte ou de todo, a teoria do mais-valor. Segundo Marx, o mais-valor emana do mais-trabalho, isto é, da diferença entre trabalho necessário (que reembolsa o capitalista da compra efetuada para adquirir a força de trabalho) e o conjunto da jornada de trabalho. Pois bem, devemos dizer que o mais-valor, na época pós-fordista, está determinado, sobretudo, pelo hiato entre um tempo de produção não computado como tempo de trabalho, e o tempo de trabalho propriamente dito. Não conta só o afastamento, interno ao tempo de trabalho, entre trabalho necessário e mais-valor, mas também (ou talvez mais) o afastamento entre tempo de produção (que inclui em si ao não-trabalho, a sua peculiar produtividade) e tempo de trabalho. Tese 6 O pós-fordismo caracteriza-se pela convivência dos mais diversos modelos produtivos e, por outro lado, por uma socialização extra-trabalho essencialmente homogênea. Contrariamente à organização fordista do trabalho, a organização pós-fordista do trabalho é sempre e de toda maneira comparável às manchas do leopardo. As inovações tecnológicas não são universais: mais que determinar um modelo produtivo único e condutor, elas mantêm com vida uma miríade de modelos diferenciados, ressuscitado-os de seus anacronismos e superações. O pós-fordismo reedita todo o passado da história do trabalho∗, desde ilhas de trabalhadores-massa a enclaves de trabalhadores profissionais, desde o inflado trabalho autônomo a restabelecidas formas de domínio pessoal. Os modelos de produção que foram se sucedendo através de um longo período se apresentam sincronicamente, quase do mesmo modo que em uma Exposição Universal. O fundo é a suposição que essa proliferação de diferenças, essa fratura de formas organizativas, está construída pelo general intellect, pela tecnologia informático-telemática, por uma cooperação produtiva que inclui em si o tempo de não-trabalho. Paradoxalmente, quando o saber e a linguagem tornam-se a principal força produtiva, dá-se uma desenfreada multiplicação de modelos de organização do trabalho, ainda que em eclética convivência. Há que se perguntar que coisa tem em comum o técnico de software, o operário da Fiat ou o trabalhador precário? E devemos ter a coragem de responder: bem pouco, quanto ao plano do salário, das tarefas, da competência profissional, das características do processo de trabalho. Mas também: tudo, quanto aos modos e conteúdos da

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socialização extra-trabalho de qualquer indivíduo particular. São comuns, por exemplo, as tonalidades emotivas, as inclinações, a mentalidade, as expectativas. Só que esse ethos homogêneo (oportunismo, tagarelice, etc.), enquanto nos setores avançados está incluído na produção e delineia perfis profissionais, para aqueles que estão destinados a setores tradicionais, como para o diarista sazonal que oscila entre trabalho e desocupação, incorpora-se antes de tudo ao “mundo da vida”. Para dizê-lo de outro modo: o ponto de sutura encontra-se entre o oportunismo posto a trabalhar e o oportunismo universalmente solicitado da experiência metropolitana. À fragmentação dos modelos produtivos, a sua convivência na forma de Exposição Universal, se lhe contrapõe o caráter substancialmente unitário da socialização desconectado do processo de trabalho. Tese 7 No pós-fordismo, o general intellect não coincide com o capital fixo, mas manifesta-se sobretudo como interação lingüística do trabalho vivo. Como já se falou na segunda jornada do seminário, Marx identificou, sem dúvidas, ao general intellect (o saber enquanto principal força produtiva) com o capital fixo, com a “capacidade científica objetivada” no sistema de máquinas. Assim, descuidou o lado, hoje absolutamente preeminente, pelo qual o general intellect se apresenta como trabalho vivo. Esta crítica obriga a análise da produção pós-fordista. No denominado “trabalho autônomo de segunda geração”, e também nos procedimentos operativos de uma fábrica radicalmente inovada como a Fiat de Melfi, não é difícil reconhecer que a conexão entre saber e produção não se esgota em absoluto no sistema de máquinas, mas que se articula na cooperação lingüística de homens e mulheres, em seu concreto atuar conjunto. No âmbito pós-fordista jogam um papel decisivo constelações conceituais e esquemas lógicos que não podem já coagular em capital fixo, sendo inseparável da interação de uma pluralidade de sujeitos viventes. O “intelecto geral” compreende, portanto, conhecimentos formais e informais, imaginação, inclinações estéticas, mentalidade, “jogos lingüísticos”. Nos processos de trabalho contemporâneos, é o pensamento e o discurso que funcionam por eles mesmos, como “máquinas” de produção, sem que deva adotar um corpo mecânico nem tampouco uma alma eletrônica. O general intellect torna-se um atributo do trabalho vivo quando a atividade desse último consiste, em crescente medida, em prestações lingüísticas. É palpável aqui a falta de fundamento da posição de Jürgen Habermas. Ele, baseando-se nas lições de Hegel em Jena (Habermas, 1968), opõe o trabalho à interação, o “agir instrumental” (ou estratégico) ao “agir comunicativo”. A seu juízo, os

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dois âmbitos respondem a critérios incomensuráveis: o trabalho segue a lógica meios/fins, a interação lingüística apóia-se nas trocas, no reconhecimento mútuo, no compartilhar um idêntico ethos. Hoje, todavia, o trabalho (dependente, assalariado, produtivo de maisvalor) é interação. O processo de trabalho já não é mais taciturno, ele é loquaz. O “agir comunicativo” não pertence mais a um terreno privilegiado, ou a fortiori exclusivo, nas relações ético-culturais e na política, estendendo-se, em troca, ao âmbito da reprodução material da vida. Ao contrário, a palavra dialógica instala-se no coração mesmo da produção capitalista. Para empregar uma fórmula: para compreender verdadeiramente a práxis trabalhadora pós-frodista devemos nos dirigir cada vez mais a Saussure e Wittgenstein. É certo que estes autores se desinteressaram das relações sociais de produção: todavia refletiram profundamente sobre a experiência lingüística, com eles podemos aprender muito mais acerca da “fábrica loquaz” do que poderíamos com os economistas profissionais. Já falamos que uma parte do tempo de trabalho do indivíduo está destinada a enriquecer e potencializar a própria cooperação produtiva, isto é, o mosaico do qual é um fragmento. Mais claramente: é tarefa do trabalhador melhorar e variar a conexão entre seu próprio trabalho e as prestações dos demais. É este caráter reflexivo da atividade de trabalho o que assume uma importância crescente nos aspectos lingüístico-relacionais, e o oportunismo e a tagarelice se convertem em utensílios de grande relevo. Hegel havia falado de uma “astúcia do trabalhar”, entendendo com isso a capacidade de secundarizar a causalidade natural a fim de utilizar a potência com uma finalidade determinada. Pois bem, no pós-fordismo a “astúcia” hegeliana foi suplantada pela “tagarelice” heideggeriana. Tese 8 O conjunto da força de trabalho pós-fordista, mesmo a mais desqualificada, é força de trabalho intelectual, “intelectualidade de massas”∗ . Denomino “intelectualidade de massas” ao conjunto do trabalho vivo pós-fordista (atenção, já não só àqueles setores particularmente qualificados do terciário) enquanto é depositário de competência cognitiva e comunicativa não objetivável no sistema de máquinas. A intelectualidade de massas é a forma privilegiada com a qual se mostra hoje o general intellect (tese 7). É inútil aclarar que não me refiro de nenhum modo a uma erudição fantasmagórica do trabalho dependente; não penso que os trabalhadores atuais sejam especialistas em temas de biologia molecular ou de filologia clássica. Como disse nas jornadas precedentes, o que vem sobressaindo é o intelecto em geral, isto é, as atitudes mais genéricas da mente: a faculdade da linguagem, a disposição à aprendizagem, a memória, a

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capacidade de abstração e correlação, a inclinação para a autoreflexão. A intelectualidade de massas não tem nada a ver com a obra do pensador (livros, fórmulas algébricas, etc.), mas com a simples faculdade de pensar e de falar. A língua (como o intelecto ou a memória) é o mais difusa e menos “especializada” que se pode conceber. Não o cientista, mas o simples falante é um bom exemplo da intelectualidade de massas. E esta última não tem nada a compartilhar com uma nova “aristocracia operária”; ao contrário, está localizada em suas antípodas. Vejamos mais de perto, a intelectualidade de massas não faz mais que tornar verdadeira, pela primeira vez, a já citada definição marxiana de força de trabalho: “a soma de todas as aptidões físicas e intelectuais existentes na corporeidade”. Em relação à intelectualidade de massas, é preciso evitar aquela mortífera simplificação na qual caíam os que buscavam sempre confortáveis repetições de experiências transcorridas. Um modo de ser que tem seu fulcro no saber e na linguagem não pode ser definido segundo categorias econômico-produtivas. Não se trata, em suma, do elo seguinte daquela cadeia cujos precedentes são o trabalhador de ofício e o operário da linha de montagem. Os aspectos característicos da intelectualidade de massas, digamos, sua identidade, não podem ser encontrados na relação com o trabalho, senão, antes de tudo, sobre o plano da forma de vida, do consumo cultural, dos usos lingüísticos. Ainda, e esta é a outra cara da moeda, quando a produção não é mais, de modo algum, o lugar específico da formação da identidade, agora mesmo ela se projeta sobre os aspectos da experiência, subsumindo dentro de si a competência lingüística, as inclinações éticas, os matizes da subjetividade. A intelectualidade de massas encontra-se no coração desta dialética. Dificilmente descritível em termos econômico-produtivos, justamente por isso (não: apesar disso) é um componente fundamental da atual acumulação capitalista. A intelectualidade de massas (outro nome da multidão) está no centro da economia pósfordista exatamente porque seu modo de ser escapa totalmente aos conceitos da economia política. Tese 9 A multidão põe fora do jogo a “teoria da proletarização”. Nas discussões teóricas marxistas a confrontação entre trabalho “complexo” (intelectual) e trabalho “simples” (sem qualidade) provocou não poucas dores de cabeça. Que unidade de medida permite esta confrontação? Resposta habitual: a unidade de medida coincide com o trabalho “simples”, com o puro dispêndio de energia psicofísica; O trabalho “complexo” é tão só um múltiplo do “simples”. A proporção entre um e outro pode ser determinada considerando os

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distintos custos de formação (escola, especializações várias, etc.) da força de trabalho intelectual com respeito à desqualificada. Dessa antiga e controvertida questão pouco me importa aqui; desejo, todavia, aproveitar-me instrumentalmente da terminologia empregada para este propósito. Afirmo que a intelectualidade de massas (tese 8), em sua totalidade, é trabalho “complexo”, mas trabalho “complexo” irredutível a trabalho “simples”. A complexidade, e também a irredutibilidade, derivam do fato de que esta força de trabalho mobiliza, no cumprimento de suas tarefas, competências lingüístico-cognitivas genericamente humanas. Estas competências, ou faculdades, fazem com que as prestações do indivíduo estejam sempre assinaladas por uma elevada taxa de sociabilidade e inteligência, ainda não sendo assuntos especializados (aqui não falamos de engenheiros ou de filósofos, mas de trabalhadores ordinários). O que não é redutível a trabalho “simples” é, se quiserem, a qualidade cooperativa das operações concretas executadas pela intelectualidade de massas. Dizer que todo o trabalho pós-fordista é trabalho complexo, não redutível a trabalho simples, significa, também que a “teoria da proletarização” resulta, na atualidade, totalmente fora de foco, fora do jogo. Essa teoria centrava-se em afirmar a tendência à equiparação do trabalho intelectual com o manual. Por isso, resulta inadequada para explicar a intelectualidade de massas, ou, o que é o mesmo, o trabalho vivo enquanto general intellect. A teoria da proletarização fracassa também enquanto o trabalho intelectual (ou complexo) não é identificável com uma rede de saberes especializados, mas que se identifica com o uso de faculdades genéricas lingüístico-cognitivas do animal humano. Esta é a passagem conceitual (e prática) que modifica todos os termos da questão. A falida proletarização não significa que os trabalhadores qualificados conservem nichos privilegiados. Significa antes de tudo que toda a força de trabalho pós-fordista, enquanto complexa ou intelectual, não se caracteriza por aquela sorte de homogeneidade por subtração que implica por si o conceito de “proletariado”. Dito de outro modo: significa que o trabalho pós-fordista é multidão, e não povo. Tese 10 O pós-fordismo é o “comunismo do capital”. A metamorfose dos sistemas sociais do Ocidente durante os anos 30 foram, às vezes, designadas com uma expressão tão perspícua como aparentemente paradoxal: socialismo do capital. Com ela alude-se ao papel determinante assumido pelo Estado no ciclo econômico, ao finalizar o laissez-faire liberal, aos processos de

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centralização e de planificação dirigida da indústria pública, à política de pleno emprego, ao princípio do Welfare. A resposta capitalista à Revolução de Outubro e a crise de 29 foi uma gigantesca socialização (ou melhor, estatização) das relações de produção. Para dizê-lo com a frase de Marx que citávamos faz pouco: “uma superação da propriedade privada sobre o terreno mesmo da propriedade privada”. As metamorfoses dos sistemas sociais do Ocidente durante os anos 80 e 90 podem ser sintetizadas de modo mais ou menos pertinente com a expressão: comunismo do capital. Isso significa que a iniciativa capitalista orquestra em seu próprio benefício precisamente àquelas condições materiais e culturais que asseguravam um calmo realismo à perspectiva comunista. Se pensarmos nos objetivos que constituíam o eixo daquela perspectiva: abolição desse escândalo intolerável que é o trabalho assalariado; extinção do Estado enquanto indústria da coerção e “monopólio das decisões políticas”; valorização de tudo aquilo que torna irrepetível a vida do indivíduo. Pois bem, no curso dos últimos vinte anos pôs-se em cena uma interpretação capciosa e terrível desses mesmos objetivos. Em primeiro lugar: a irreversível contração do tempo de trabalho socialmente necessário sucedeu-se com o aumento do horário para os que estão “dentro” e a marginalização para os que estão “fora”. Inclusive quando se está ante uma escassez extraordinária, o conjunto dos trabalhadores dependentes é apresentado como “superpopulação” ou “exército industrial de reserva”. Em segundo lugar, a crise radical ou até a desagregação dos Estados nacionais se explica como reprodução em miniatura, à moda de caixinha chinesa, da forma-Estado. Em terceiro lugar, à continuação da queda de um “equivalente universal” capaz de ter vigência efetiva, assistimos a um culto fetichista das diferenças: só que estas últimas, reivindicando um sub-reptício fundamento substancial, derivam em toda classe de hierarquias vexatórias e discriminantes. Se o fordismo havia incorporado, e transcrito ao seu modo, alguns aspectos da experiência socialista, o pós-fordismo destituiu de fundamentos tanto ao keynesianismo como ao socialismo. O pósfordismo, baseado no general intellect e na multidão, declina a seu modo instâncias típicas do comunismo (abolição do trabalho, dissolução do Estado, etc.). O pós-fordismo é o comunismo do capital. Às costas do fordismo esteve a revolução socialista na Rússia (e, ainda que derrotado, um intento de revolução na Europa ocidental). É lícito perguntar qual tumulto social fez o prelúdio do pós-fordismo. Pois bem, creio que nos anos 60 e 70 deu-se no Ocidente uma revolução derrotada. A primeira revolução não insurrecional contra a pobreza e o atraso, mais especificamente, contra o modo de produção capitalista portanto, contra o trabalho assalariado. Se eu falo de revolução derrotada não é porque muitos

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falassem de revolução. Não me refiro ao carnaval da subjetividade, mas a um dado de fato mais sóbrio: por um longo período de tempo, tanto nas fábricas como nos bairros populares, nas escolas como em certas delicadas instituições estatais, enfrentaram-se dois poderes contrapostos, com a conseguinte paralisação das decisões políticas. Desde este ponto de vista — objetivo, sóbrio — pode-se sustentar que na Itália e outros países ocidentais, houve uma revolução derrotada. O pós-fordismo, isto é, o “comunismo do capital”, é a resposta àquela revolução derrotada, tão distinta da dos anos 20. A qualidade da “resposta” é igual e contrária à qualidade da “demanda”. Creio que as lutas sociais dos 60 e 70 possuíam expressas instâncias não socialistas, e mais, anti-socialistas: crítica radical do trabalho; um acentuado gosto pelas diferenças ou, caso se prefira, um refinamento do “princípio de individuação”; já não mais a aspiração a apoderar-se do Estado, mas a atitude (às vezes muito violenta) de defender-se do Estado, de dissolver o vínculo estatal como tal. Não é difícil reconhecer princípios e orientações comunistas na falida revolução dos anos 60 e 70. Por isso o pós-fordismo, que constitui uma resposta a dita revolução, deu vida a uma paradoxal forma de “comunismo do capital”.

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[“...um erro que contraria o governo civil, ..., é não distinguir suficientemente entre povo e multidão.

Povo é um corpo, um ser com uma vontade, e a quem se pode atribuir uma ação.” (HOBBES; 1993: p. 161); “1. Há que considerar, antes de tudo, o que é esta multidão de homens que se reúne por sua livre vontade para formar a Cidade, a saber: não é um ajuntamento qualquer, mas são muitos homens, cada um dos quais tem seu próprio modo de julgar todas as propostas.” (HOBBES; 1993: p.102), conforme a tradução de Ingeborg Soler para a edição brasileira de DE CIVE: elementos filosóficos a respeito do cidadão, publicada pela Editora Vozes em 1993] ∗

Qualquer ritual, fórmula, sinal, símbolo ou amuleto reputado capaz de afastar influências malignas, másorte e trazer proteção, do grego απο−τροπη´ : ação de apartar, de prevenir, de conjurar um mal. ∗ Antigamente, casa na qual se cunhavam moedas. Na Espanha medieval eram célebres as cecas dos muçulmanos. Presente na expressão popular: “da Ceca à Meca”; de uma parte à outra ou daqui para lá. (N. do T) ∗ Chamamos a atenção para o fato de que quando o presente estudo de Paolo Virno foi levado a efeito, ainda não havia ganho evidência o experimento multitudinário argentino, que desde os dias 19 e 20 de dezembro de 2001 vem materializando muitas das hipóteses sugeridas neste ponto, do presente texto. Podemos recorrer aos experimentos em questão a partir dos seguintes endereços na rede mundial de computadores: http://nuevproyhist.tripod.com.ar/, http://www.lafogata.org/recopilacion/listadomattini.htm, http://www.situaciones.org/, http://www.rebelion.org/argentina.htm, http://argentina.indymedia.org/, http://usuarios.lycos.es/pete_baumann/diálogo.pdf. [N. do T.] ∗ Também nesse sentido podemos compreender a “compressão dos tempos” de que fala Milton Santos e a “compressão do tempo-espaço” de que fala David Harvey, ainda que aspectos distintos de uma mesma realidade. No sentido de evento, podemos experimentar o sentimento de “compressão” subversiva quando, por exemplo, no ato coletivo de uma ocupação urbana ou rural afirma-se o valor de uso, da vida e do desejo sobre a construção histórica da soberania do valor de troca sobre a vida, o desejo (o pensar com o corpo todo) e o valor de uso. Questão importante também para a compreensão da passagem da subsunção formal à subsunção real ao capital.[N. do T.] ∗ Talvez uma expressão mais em sintonia com a própria argumentação do autor fosse “intelectualidade multitudinária”. [N. do T.]

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MULTIDÃO E PRINCÍPIO DE INDIVIDUAÇÃO * http://www.generation-online.org/p/fpvirno3.htm http://geocities.yahoo.com.br/autoconvocad/multitud_individuacao.htm

Paolo VIRNO ** As formas de vida contemporâneas testemunham a dissolução do conceito de “povo” e da renovada pertinência do conceito de “multidão”. Estrelas fixas do grande debate do século XVII, e encontrando-se na origem de uma boa parte do nosso léxico éticopolítico, esses dois conceitos situam-se nas antípodas um do outro. O “povo” é de natureza centrípeta, converge numa vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado; a “multidão” é plural, foge da unidade política, não firma pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, mas porque é reativa à obediência, porque tem inclinação para certas formas de democracia não-representativa. Na multidão, Hobbes verá o maior perigo para o aparato do Estado (“Os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, representam a multidão contra o povo.” [Hobbes, 1652: XI, I e XII, 8]). Espinosa descobrirá precisamente aí, na multidão, a raiz da liberdade. Desde o século XVII, e quase sem exceções, é o “povo” quem a obtém e gestiona. A existência política d@s múltipl@s *** , enquanto múltipl@s, foi afastada do horizonte da modernidade: não somente pelos teóricos do Estado absolutista, mas também por Rousseau, pela tradição liberal e pelo próprio movimento socialista. No entanto, hoje, a multidão desforra-se, ao caracterizar todos os aspectos da vida social: os hábitos e a mentalidade do trabalho pós-fordista, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva. Quando constatamos essa revanche, é necessário evitar ao menos duas ou três tolices. Não é que a classe trabalhadora tenha se dissipado com entusiasmo para deixar lugar aos “múltiplos”, mas bem mais – e a coisa resulta muito mais complicada e muito mais interessante – que os trabalhadores de hoje em dia, permanecendo trabalhadores, não têm a fisionomia do povo, mas são o exemplo perfeito do modo de ser da multidão. Além do mais, afirmar que @s “múltipl@s” caracterizam as formas de vida contemporâneas não tem nada de idílico: caracterizam-na tanto para o bem como para o mal, tanto no servilismo como no conflito. Trata-se de um modo de ser, diferente do modo de ser “popular”, é certo, mas, em si, não desprovido de ambivalência, com uma dose de venenos específicos. A multidão não afasta com gesto brincalhão a questão do universal, do que é comum, compartilhado: a questão do Uno; bem mais, a redefine por completo. Temos, para começar, uma inversão da ordem dos fatores: o povo tende para o Uno, @s “múltipl@s” derivam-se do Uno. Para o povo, a universalidade é uma promessa; para @s “múltipl@s”, é uma premissa. Muda também a própria definição do que é comum, do que se compartilha. O Uno ao redor do qual gravita o povo é o Estado, o soberano, a vontade geral; o Uno que a multidão tem atrás de si é a linguagem, o intelecto como recurso público e interpsíquico, as faculdades genéricas da espécie. Se a multidão foge da unidade do Estado, é somente porque comunica com um Uno diferente, preliminar antes que concluído. E é sobre essa correlação que há que se perguntar mais profundamente. A contribuição de Gilbert Simondon, filósofo muito querido por Deleuze, sobre esta questão é muito importante. Sua reflexão trata dos processos de individuação. A individuação, isto é, o passo da bagagem psicossomática genérica do animal humano à configuração de uma singularidade única é, quem sabe, a categoria que, mais que qualquer outra, é inerente à

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multidão. Se prestarmos atenção à categoria de povo, veremos que se refere a uma miríade de indivíduos não individualizados, quer dizer, compreendidos como substâncias simples ou átomos solipsistas. Justo porque constituem um ponto de partida imediato, antes que o resultado último de um processo cheio de imprevistos, tais indivíduos têm a necessidade da unidade/universalidade que a estrutura do Estado proporciona. Ao contrário, se falamos da multidão, colocamos o acento precisamente na individuação, ou na derivação de cada um(a) d@s “múltipl@s” a partir de algo de unitário/universal. Simondon, tal como, por outras razões, o psicólogo soviético Lev Semenovitch Vigotski e o antropólogo italiano Ernesto de Martino, chamaram a atenção sobre semelhante desvio. Para esses autores, a ontogênese, quer dizer, as fases de desenvolvimento do “eu” [“yo”; “je”] singular, é consciente de si mesma, é a philosophia prima, única análise clara em tudo e para tudo com o “princípio de individuação”. A individuação permite modelar uma relação Uno/múltipl@s diferente da que se esboça um pouco antes (diferente da que identifica o Uno com o Estado). Trata-se, assim, de uma categoria que contribui para fundar a noção ético-política de multidão. Gaston Bachelard, epistemólogo entre os maiores do século XX, escreveu que a Física Quântica é um “sujeito gramatical” em relação ao qual parece oportuno empregar os mais heterogêneos predicados filosóficos: se a um problema singular adapta-se bem um conceito filosófico, em outro pode convir, por que não, um plano da lógica hegeliana ou uma noção extraída da psicologia gestaltista. Da mesma maneira, o modo de ser da multidão há de qualificar-se com atributos que se encontram em contextos muito diferentes, por vezes inclusive excludentes entre eles: reparemos por exemplo na Antropologia Filosófica de Gehlen (indigência biológica do animal humano, falta de um “meio” [“medio”; “milieu”] definido, pobreza dos instintos especializados); nas páginas de Ser e tempo consagradas à vida cotidiana (falatórios, curiosidade, equívoco etc.); na discussão dos diversos jogos de linguagem efetuados por Wittgenstein nas Investigações filosóficas. Exemplos todos discutíveis. Ao contrário, incontestavelmente, duas teses de Simondon são absolutamente importantes enquanto “predicados” do conceito de multidão: 1) o sujeito é uma individuação sempre parcial e incompleta, consistente bem mais nos traços cambiantes de aspectos pré-individuais e de aspectos efetivamente singulares; 2) a experiência coletiva, longe de assinalar sua desintegração ou eclipse, persegue e afina a individuação. Se esquecermos muitas outras considerações (incluída a questão, evidentemente central, de como se realiza a individuação, segundo Simondon) vale a pena aqui se concentrar nestas teses, enquanto contrárias à intuição e inclusive escabrosas.

PRÉ-INDIVIDUAL

Voltemos ao começo. A multidão é uma rede de indivíduos. O termo “multidão” indica um conjunto de singularidades contingentes. Essas singularidades não são, no entanto, uma circunstância sem nome, mas, ao contrário, o resultado complexo de um processo de individuação. Resulta evidente que o ponto de partida de toda verdadeira individuação é algo ainda não individual. O que é único, não reprodutível, passageiro, provém, de fato, do que é mais indiferenciado e genérico. As características particulares da individualidade enraízam-se em um conjunto de paradigmas universais. Já falar de principium individuationis significa postular uma inerência extremamente sólida entre o

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singular e uma forma ou outra de potência anônima. O individual é tal, não porque se sustenta no limite do que é potente, como um zumbi débil e rancoroso, mas porque é potência individuada; e é potência individuada porque é tão somente uma das individuações possíveis da potência. Para estabelecer o que precedeu à individuação, Simondon em-prega a expressão, bem pouco crítica, de realidade pré-individual. A cada um(a) d@s “múltipl@s”, lhe é familiar esse plano antitético. Mas o que é exatamente o pré-individual? Simondon escreve: “Poder-se-ia chamar natureza a esta realidade préindividual que o indivíduo leva consigo, tratando de encontrar na palavra natureza o significado que lhe davam os filósofos pré-socráticos: os Fisiólogos [Físicos, na tradição tradutória e filosófica brasileira] jônicos encontravam aí a origem de todas as espécies de ser, anterior à individuação: a natureza é realidade do possível que, sob as espécies do ápeiron de que fala Anaximandro, faz surgir toda forma individuada; a Natureza não é o contrário do Homem, mas a primeira fase do ser, sendo a segunda a oposição entre o individuo e o entorno [milieu]”. Natureza, ápeiron (indeterminado), realidade do possível, ser ainda desprovido de fases; poderíamos continuar com diferentes variações sobre o tema. No entanto, aqui parece oportuno propor uma definição autônoma do “pré-individual”, não contraditória a respeito da de Simondon, mas independente dela. Não é difícil reconhecer que, sob a mesma etiqueta, existem contextos e níveis muito diferentes. O pré-individual é, em primeiro lugar, a percepção sensorial, a motricidade, o fundo biológico da espécie. É Merleau-Ponty, em seu Phénoménologie de la perception, quem observa que “eu não tenho mais consciência de ser o verdadeiro sujeito de minha sensação que [a que tenho] de meu nascimento ou de minha morte”. (Merleau-Ponty, 1945: 249). E também: “A visão, a audição, tocar, com seus campos que são anteriores e permanecem estranhos à minha vida pessoal” (Merleau-Ponty, 1945: 399). A sensação escapa à descrição em primeira pessoa: quando percebo, não é um indivíduo singular que percebe, mas a espécie como tal. À motricidade e à sensibilidade se lhe acrescenta tão somente o pronome anônimo “se”: vê-se, ouve-se, experimenta-se prazer ou dor. É certo que a percepção tem às vezes uma tonalidade auto-reflexiva: basta pensar em tocar, nesse tocar que é também sempre ser tocad@ pelo objeto que se manipula. Quem percebe, percebe-se a si mesm@ avançando para a coisa. Mas trata-se de uma auto-referência sem individuação. É a espécie quem autopercebe-se da conduta e não uma singularidade autoconsciente. Equivocamo-nos e identificamos, se vemos relação entre dois conceitos independentes, se mantemos que aí onde há auto-reflexão podemos também constatar uma individuação; ou, inversamente, que se não há individuação já não podemos falar de auto-reflexão. O pré-individual, no nível mais determinado, é a língua histórico-natural de sua própria comunidade de pertencimento. A língua é inerente a todos os locutores da comunidade dada, como o é um “meio” [milieu] zoológico ou um líquido amniótico, há um tempo envolvente e indiferenciado. A comunicação lingüística é intersubjetiva e existe muito antes que se formem verdadeiros “sujeitos” propriamente ditos: está em tod@s e em ninguém, também para ela reina o anônimo “se”: fala-se. Foi sobretudo Vigotski quem assinalou o caráter pré-individual, imediatamente social, da locução humana: o uso da palavra, primeiramente, é interpsíquico, quer dizer, público, compartilhado, impessoal. Contrariamente ao que pensava Piaget, não se trata de evadir-se de uma condição original autista (quer dizer, hiper-individual) tomando a via de uma socialização progressiva; ao contrário, o essencial da ontogênese consiste, para Vigotski, no passo de uma sociabilidade completa à individuação do ser falante: “o movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento da criança não se realiza do individual ao social, mas

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do social ao individual” (Vigotski, 1985 1 ). O reconhecimento do caráter pré-individual (“interpsíquico”) da língua possibilita que, de algum modo, Vigotski antecipe-se a Wittgenstein na refutação de “uma linguagem privada”, do tipo que seja. Por outro lado, e é o que mais importa, isso lhe permite inscrever-se na curta lista de pensadores que trataram a questão do principium individuationis. Tanto para Vigotski como para Simondon, a “individuação” (quer dizer, a construção do Eu [“Yo”; Moi] consciente) sobrevém no terreno lingüístico, e não no da percepção. Em outros termos: enquanto o pré-individual inerente à sensação parece destinado a permanecer para sempre qual é, o pré-individual que corresponde à língua é suscetível de uma diferenciação interna que desemboca na individualidade. Não se trata, aqui, de examinar de maneira crítica o modo como, para Vigotski e para Simondon, realiza-se a singularização d@ falante; e menos ainda de acrescentar hipótese suplementar alguma. O importante é unicamente estabelecer a diferença entre o domínio perceptivo (bagagem biológica sem individuação) e o domínio lingüístico (bagagem biológica como base da individuação). Finalmente, o pré-individual é a relação de produção dominante. No capitalismo desenvolvido, o processo de trabalho requer as qualidades de trabalho mais universais: a percepção, a linguagem, a memória, os afetos. Papéis e funções, no marco do pósfordismo, coincidem profundamente com a “existência genérica”, com o Gattungswesen de que falam Feuerbach e o Marx dos Manuscritos econômicos e filosóficos, a propósito das faculdades mais elementares do gênero humano. O conjunto das forças produtivas é, certamente, pré-individual. No entanto, o pensamento tem uma importância particular entre essas forças; atenção: o pensamento objetivo, sem relação com tal ou tal “eu” [“yo”; moi] psicológico, o pensamento no qual a verdade não depende do assentimento dos seres singulares. Com respeito a isso, Gottlob Frege utilizou uma fórmula quem sabe pouco hábil, mas que não carece de eficácia: “pensamento sem suporte” (cf. Frege, 1918). Ao contrário, Marx forjou a célebre e controvertida expressão do General Intellect, intelecto geral: o General Intellect (quer dizer, o saber abstrato, a ciência, o conhecimento impessoal) é também o “pilar principal da produção de riqueza”, aí onde por riqueza devemos entender, aqui e agora, mais-valia absoluta e relativa. O pensamento sem suporte ou General Intellect deixa sua marca no “processo vital da própria sociedade” (Marx, 1857-1858), ao instaurar hierarquias e relações de poder. Resumindo: é uma realidade pré-individual historicamente qualificada. Sobre este ponto não vale a pena insistir mais. Tão somente reter que ao pré-individual perceptivo e ao pré-individual lingüístico é necessário acrescentar um pré-individual histórico.

SUJEITO ANFÍBIO

O sujeito não coincide com o indivíduo individuado, porém, contém em si, sempre, uma certa proporção irredutível de realidade pré-individual; é um precipitado instável, algo composto. É esta a primeira das duas teses de Simondon sobre a qual gostaria de chamar a atenção. “Existe nos seres individuados uma certa carga de indeterminado, isto é, de realidade pré-individual, que passou através da operação de individuação sem ser efetivamente individuada. Podemos chamar natureza

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a esta ‘carga de indeterminado’.” (Simondon, 1989: 210). É completamente falso reduzir o sujeito ao que é, nele, singular: “o nome de indivíduo é abusivamente dado a uma realidade muito mais complexa, a do sujeito completo, que comporta nele, além da realidade individuada, um aspecto inindividuado, pré-individual, natural” (Simondon, 1989: 204). O pré-individual é percebido antes de tudo como uma espécie de passado não resolvido: a realidade do possível, de onde surge a singularidade bem definida, persiste ainda nos limites desta última: a diacronia não exclui a concomitância. Por outro lado, o pré-individual, que é o tecido íntimo do sujeito, constitui o meio [milieu] do indivíduo. O contexto (perceptivo, lingüístico ou histórico) no qual inscreve-se a experiência do indivíduo singular é, com efeito, um componente intrínseco (se se quiser, interior) do sujeito. O sujeito não é um entorno [milieu]. De Locke a Fodor, os filósofos que desconsideram a realidade pré-individual do sujeito, ignorando assim o que nele é meio [milieu], estão condenados a não encontrar via de acesso entre “interior” e “exterior”, entre o Eu [“Yo”; Moi] e o mundo. Desse modo entregam-se ao erro que Simondon denuncia: assimilar o sujeito ao indivíduo individuado. A noção de subjetividade é anfíbia: o “Eu falo” co-habita com o “fala-se”, o que não podemos reproduzir está estreitamente mesclado com o recursivo e com o serial. Mais precisamente: no tecido do sujeito encontram-se, como partes integrantes, a tonalidade anônima do que é percebido (a sensação enquanto sensação da espécie) e o caráter imediatamente interpsíquico ou “público” da língua materna, a participação no General Intellect impessoal. A co-existência do pré-individual e do individuado no seio do sujeito está mediada pelos afetos; emoções e paixões assinalam a integração provisória dos dois aspectos, mas também seu eventual desapego: não faltam crises nem recessões nem catástrofes. Há medo, pânico ou angústia quando não se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua própria experiência com os aspectos individuados: “Na angústia, o sujeito sente-se existir como problema gasto por ele mesmo e sente sua divisão em natureza pré-individual e em ser individuado. O ser individuado é aqui e agora, e este aqui e este agora impedem a uma infinidade de outros aqui e agora virem à luz; o sujeito toma consciência dele mesmo como natureza, como indeterminado (ápeiron) que nunca poderá atualizar-se hic et nunc, que não poderá jamais viver” (Simondon, 1989: 111). Há que constar aqui uma extraordinária coincidência objetiva entre a análise de Simondon e o diagnóstico sobre os “apocalipses culturais” propostos por Ernesto de Martino. O ponto crucial, tanto para de Martino como para Simondon, reside no fato de que a ontogênese, quer dizer, a individuação, não está garantida de uma vez por todas: pode regressar sobre seus passos, fragilizar-se, explodir. O “Eu penso”, além do fato de que possua uma gênese imprevisível, é parcialmente retráctil, está transbordado pelo que o supera. Para de Martino, o pré-individual parece, às vezes, inundar a singularidade: esta última é como que aspirada no anonimato do “se”. Outras vezes, de maneira oposta e simétrica, força-nos em vão a reduzir todos os aspectos pré-individuais de nossa experiência à singularidade pontual. As duas patologias – “catástrofes da fronteira eu-mundo nas duas modalidades da irrupção do mundo dentro do ser-aí e do refluxo do ser-aí no mundo” (E. de Martino, 1977) – são os extremos de uma oscilação que, sob formas mais contidas é, no entanto, constante e não suprimível. Com demasiada freqüência o pensamento crítico do século XX (pensamos em particular na Escola de Frankfurt) entoou uma cantilena melancólica acerca do suposto afastamento do indivíduo com respeito às forças produtivas e sociais, assim como com respeito à potência inerente às faculdades universais da espécie (linguagem, pensamento etc.). A desgraça do ser singular foi atribuída precisamente a esse afastamento ou a essa separação. Uma idéia sugestiva, mas falsa. As “paixões tristes”, para dizê-lo com Espinosa, surgem bem mais da máxima proximidade, e inclusive simbiose, entre o

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indivíduo individuado e o pré-individual, aí onde essa simbiose apresenta-se como desequilíbrio e desgarramento. Para o bem e para o mal, a multidão mostra a mescla inextricável de “eu” [“yo”; je] e de “se”, singularidade não reprodutível e anônima da espécie, individuação e realidade pré-individual. Para o bem: ao ter, cada um(a) d@s “múltipl@s”, atrás de si o universal, a modo de premissa ou de antecedente, não tem a necessidade desta universalidade postiça que constitui o Estado. Para o mal: cada um(a) d@s múltipl@s, enquanto sujeito anfíbio, pode sempre distinguir uma ameaça em sua própria realidade pré-individual, ou ao menos uma causa de insegurança. O conceito ético-político de multidão funda-se tanto sobre o princípio de individuação como sobre sua incompletude constitutiva.

MARX, SIMONDON, VIGOTSKI: O CONCEITO DE “INDIVÍDUO SOCIAL”

Em uma passagem célebre dos Grundrisse (que intitula-se “Fragmento sobre as máquinas”), Marx designa o “indivíduo social” como o verdadeiro protagonista de qualquer transformação radical do estado de coisas presente (cf. Marx, 1857-1858). Em um primeiro momento, o “indivíduo social” parece-se a um oxímoro rebuscado [coqueto], à unidade desalinhada dos contrários; em suma, a um maneirismo hegeliano. É possível, ao contrário, tomar esse conceito ao pé da letra até convertê-lo em um instrumento de precisão, para fazer com que ressurjam formas de ser, as inclinações e as formas de vida contemporâneas. Mas isso é possível, em boa medida, justamente graças à reflexão de Simondon e de Vigotski sobre o princípio de individuação. No adjetivo “social” há que reconhecer os traços desta realidade pré-individual que, segundo Simondon, pertence a todos os sujeitos. Como no substantivo “indivíduo”, reconhecemos a singularização advinda de cada componente da multidão atual. Quando Marx fala de “indivíduo social”, refere-se ao emaranhado entre “existência genérica” (Gattungswesen) e experiência não reprodutível, que é a marca da subjetividade. Não é por acaso que o “indivíduo social” aparece nas mesmas páginas dos Grundrisse nas quais introduz-se a noção de General Intellect, de um “intelecto geral” que constitui a premissa universal (ou pré-individual), assim como a partitura comum universal para os trabalhos e os dias d@s “múltipl@s”. A parte social do “indivíduo social” é, sem nenhuma dúvida, o General Intellect, ou bem, com Frege, o “pensamento sem suporte”. No entanto, não só: consiste também no caráter de conjunto interpsíquico, quer dizer, público, da comunicação humana, posto em relevo muito claramente por Vigotski. Além do mais, se traduzirmos corretamente “social” por “pré-individual”, teremos de reconhecer que o indivíduo individuado de que fala Marx perfila-se também sobre um fundo de percepção sensorial anônimo. Em sentido forte, são sociais tanto o conjunto das forças produtivas historicamente definidas como a bagagem biológica da espécie. Não se trata de uma conjunção extrínseca, ou de uma simples superposição: o capitalismo plenamente desenvolvido implica a plena coincidência entre as forças produtivas e os dois outros tipos de realidade pré-individual (o “se percebe” e o “se fala”). O conceito de força de trabalho permite ver esta fusão perfeita: enquanto capacidade física genérica e capacidade intelectual-lingüística de

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produzir, a força de trabalho é, decididamente, uma determinação histórica, mas contém em si mesma, completamente, esse ápeiron, essa natureza não individuada da qual fala, assim como o caráter impessoal da língua, que Vigotski ilustra em vários lugares. O “indivíduo social” marca a época na qual a co-habitação entre singular e pré-individual deixa de ser uma hipótese heurística, ou um pressuposto oculto, para devir fenômeno empírico, verdade lançada à superfície, estado de fato pragmático. Poder-se-ia dizer: a antropogênese, isto é, a constituição mesma do animal humano, chega a manifestar-se no plano histórico-social, devém finalmente visível, a descoberto, conhece uma sorte de revelação materialista. O que se chama “as condições transcendentais da experiência”, em lugar de permanecerem ocultas atrás da tela, apresenta-se em primeiro plano e, o que é mais importante, devêm, também elas, objetos de experiência imediata. Uma última observação, aparentemente marginal. O “indivíduo social” incorpora as forças produtivas universais, não obstante decliná-las segundo modalidades diferenciadas e contingentes; ao contrário, está efetivamente individuado justo porque lhes dá uma configuração singular ao convertê-las em uma constelação muito especial de conhecimentos e de afetos. É por isso que toda tentativa de circunscrever o indivíduo pela negativa fracassa: não é a amplitude do que nele exclui-se o que chega a caracterizá-lo, mas a intensidade do que converge. E não se trata de uma positividade acidental, desajustada e, finalmente, inefável (seja dito de passagem, nada é mais monótono e menos individual que o inefável). A individuação acompanha-se de especificação progressiva, assim como pela especificação excêntrica de regras e paradigmas gerais: não é o agulheiro da rede, mas o ponto em que as malhas estão mais apertadas. A propósito da singularidade não reprodutível, poder-se-ia falar de um sobrevalor de legislação. Para dizê-lo com a fraseologia da epistemologia, as leis que qualificam o individual não são nem “asserções universais” (quer dizer, válidas para todos os casos de um conjunto homogêneo de fenômenos) nem “asserções existenciais” (relações de dados empíricos fora de qualquer realidade ou de um esquema conectivo); trata-se bem mais de verdadeiras leis singulares. Leis porque, dotadas de uma estrutura formal, compreendem virtualmente uma “espécie” inteira: singulares, enquanto regras de um só caso, não generalizáveis. As leis singulares representam o individual com a precisão e a transparência em princípio reservadas a uma classe “lógica”; mas atenção, uma classe de um só indivíduo. Chamamos multidão ao conjunto dos “indivíduos sociais”. Há uma sorte de encadeamento semântico preciso entre existência política d@s múltipl@s enquanto múltipl@s, a velha obsessão filosófica em torno do principium individuationis e a noção marxiana de “indivíduo social” (decifrada, com a ajuda de Simondon, como a mescla inextricável de singularidade contingente e de realidade préindividual). Esse encadeamento semântico permite redefinir, desde sua base, a natureza e as funções da esfera pública e da ação coletiva. Uma redefinição que põe abaixo o cânon ético-político baseado no “povo” e na soberania estática. Poder-se-ia dizer – com Marx, mas longe e em oposição a uma boa parte do marxismo – que a “substância das coisas esperadas” encontra-se no fato de conceder o máximo de relevância e de valor à existência não reprodutível de cada membro singular da espécie. Por paradoxal que isso possa parecer, a teoria de Marx deveria, hoje em dia, compreender-se como uma teoria rigorosa, quer dizer, realista e complexa, do indivíduo. Assim como uma teoria da individuação.

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O COLETIVO DA MULTIDÃO

Examinemos agora a segunda tese de Simondon. Não tem precedente. Vai contra a intuição, viola as convicções mais arraigadas do sentido comum (como, quanto ao mais, é o caso de muitos outros “predicados” conceituais da multidão). Habitualmente, considera-se que o indivíduo, desde o momento em que participa de um coletivo, deve desfazer-se de algumas de suas características individuais, renunciando a certos signos distintivos que nele entremesclam-se e que são impenetráveis. Parece que no coletivo a singularidade se dilui, que é desvantagem, regressão. Pois bem, segundo Simondon, isso é uma superstição: obtusa, desde o ponto de vista epistemológico, e equívoca, desde o ponto de vista da ética. Uma superstição alimentada por quem, tratando com desenvoltura o processus de individuação, supõe que o indivíduo é um ponto de partida imediato. Se, ao contrário, admitimos que o indivíduo provém do seu oposto, quer dizer, do universal indiferenciado, o problema coletivo toma outro aspecto. Para Simondon, contrariamente ao que afirma um sentido comum disforme, a vida de grupo é o momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Longe de ser regressiva, a singularidade burila-se e alcança seu apogeu no atuar conjuntamente, na pluralidade de vozes; em uma palavra, na esfera pública. O coletivo não prejudica, não atenua a individuação, mas a persegue, aumentando desmesuradamente sua potência. Essa continuação concerne à parte da realidade pré-individual que o primeiro processo de individuação não havia logrado resolver. Simondon escreve: “Não devemos falar de tendências do indivíduo que o levam para o grupo, já que falar dessas tendências não é falar propriamente de tendências do indivíduo enquanto indivíduo: elas são a nãoresolução dos potenciais que precederam a gênese do indivíduo. O ser que precede ao indivíduo não foi individuado sem mais, não foi totalmente resolvido em indivíduo e meio [milieu]; o indivíduo conservou com ele o pré-individual, e todo o conjunto de indivíduos tem também uma espécie de fundo não estruturado a partir do qual uma nova individuação pode produzir-se” (Simondon, 1989: 193). E mais adiante: “Não é certo que, enquanto indivíduos, os seres estejam atados uns aos outros no coletivo, mas enquanto sujeitos, quer dizer, enquanto seres que contêm o pré-individual” (Simondon, 1989: 205). O fundamento do grupo é o elemento pré-individual (se percebe, se fala etc.) presente em cada sujeito. Mas, no grupo, a realidade pré-individual, intrincada na singularidade, individualiza-se, mostrando, por sua vez, uma particular fisionomia. A instância do coletivo é ainda uma instância de individuação: o que está em jogo é dar uma forma contingente e impossível de confundir com o ápeiron (o indeterminado), quer dizer, com a “realidade do possível” que precede à singularidade; dar forma ao universo anônimo da percepção sensorial, ao “pensamento sem suporte” ou General Intellect. O pré-individual, inamovível no interior do sujeito isolado, pode adquirir um aspecto singularizado nas ações e nas emoções d@s múltipl@s: como um violoncelista que, interatuando dentro de um quarteto com o restante dos intérpretes, encontra algo de sua partitura que justo aí lhe havia escapado. Cada um(a) d@s múltipl@s personaliza (parcial e provisoriamente) sua própria componente impessoal através das vicissitudes características da experiência pública. Expor-se à consideração dos outros, à ação política sem garantias, à familiaridade com o possível e com o imprevisto, à amizade e à inimizade, tudo isso alerta ao indivíduo e lhe permite, em certa medida, apropriar-se deste anônimo “on” do qual provém, para transformar o Gattungswesen, a “existência genérica da espécie”, em uma biografia absolutamente particular. Ao contrário do que sustentava Heidegger, é somente na esfera pública que podemos passar do “se” ao “si

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mesmo”. A individuação de segundo grau, que Simondon chama também a “individuação coletiva” (um oxímoro próximo àquele que contém a locução “indivíduo social”), é uma peça importante para pensar de maneira adequada a democracia não representativa. Posto que o coletivo é o teatro de uma singularização acentuada da experiência, constitui o lugar no qual pode finalmente explicar-se o que, em uma vida humana, resulta incomensurável e impossível de reproduzir; nada disso presta-se para ser explorado e, menos ainda, “delegado”. Mas cuidado: o coletivo da multidão, enquanto individuação do General Intellect e do fundo biológico da espécie, é exatamente o contrário de qualquer anarquismo ingênuo. Frente a ele, é bem mais o modelo da representação política, com sua vontade geral e sua “soberania popular”, que se converte em intolerável (e às vezes feroz) simplificação. O coletivo da multidão não delega direitos ao soberano, embora possa estabelecer pactos com ele, porque se trata de um coletivo de singularidades individuadas: para ele, repitamo-lo, o universal é uma premissa e não uma promessa.

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resumo, para o qual escreveu o prefácio. Do principal livro de Piaget abordado por Vigotski, A linguagem e o pensamento da criança, no Brasil só possuímos a tradução do primeiro volume (nota de L.R.Palma).

*Tradução para o português de Leonardo Retamoso Palma (Santa Maria-RS; [email protected]), com

base na tradução para o espanhol, realizada por Beñat Baltza ([email protected]; http://www.sindominio.net/arkitzean/multitudes/virno_multitud.html), do texto de Paolo Virno ([email protected]) escrito originalmente em francês: Multitude et principe d’individuation. Enviado por Beñat para a lista multitudesinfos ([email protected]; da revista http://www.samizdat.net/multitudes), em 4 de fevereiro de 2002, segunda-feira, 12:33 PM.

Filósofo e militante en primeira pessoa do movimento autônomo italiano desde os anos 70. Nasceu em Nápoles, em 1952, e, junto con Toni Negri, Sergio Bologna e Christian Marazzi, formou um pensamento e uma práxis novos sobre o movimento, a revolução e a utopia social. **

Optamos por manter a forma gráfica @ em “múltiplos” e “todos” utilizada pelo tradutor, que não só procura desfazer a supremacia do gênero masculino na designação da forma-homem em nossa língua, como indica a potência conectiva dos múltiplos nas redes informáticas (N. do E.). ***

Multitude et principe d’individuation par Paolo Virno Mise en ligne décembre 2001 Le concept de "multitude" s’oppose depuis toujours à celui de "peuple". Le peuple est une unité homogène, tandis que la multitude est un réseau de singularités. Les individus qui composent la multitude ne sont pourtant pas des atomes d’ un donné mais le résultat d’un processus d’individuation. En quoi consiste cette individuation qui produit l’individu à partir de conditions universelles ? On peut tenter une réponse en utilisant les réflexions de Gilbert Simondon et de du psychologue russe L. Vygotskij. Par le truchement de ces auteurs on aboutira peutêtre à une comprehension plus pertinente du concept marxien d’"individu social". Les formes de vie contemporaines attestent de la dissolution du concept de " peuple " et de la pertinence renouvelée du concept de " multitude ". Étoiles fixes du grand débat du dix septième siècle qui est à l’origine d’une bonne partie de notre lexique éthicopolitique, ces deux concepts se situent aux antipodes l’un de l’autre. Le " peuple " est de nature centripète, il converge en une volonté générale [1], il est l’interface ou le reflet de l’État ; la multitude est plurielle, elle fuit l’unité politique, elle ne signe pas de pactes avec le souverain, pas plus qu’elle ne lui délègue des droits, elle est récalcitrante à l’obéissance, elle a un penchant pour certaines formes de démocratie non représentative.

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Dans la multitude, Hobbes repéra le plus grand piège pour l’appareil de l’État ( les citoyens, quand ils se rebellent contre l’État, représentent " la multitude contre le peuple " : Hobbes, 1652 : voir VI,1 et XII, 8), Spinoza y décela la racine de la liberté. Depuis le dix septième siècle, presque sans exceptions, c’est le " peuple " qui l’a emporté, inconditionnellement. L’existence politique des multiples en tant que multiples a été rayée de l’horizon de la modernité : non seulement par les théoriciens de l’État absolutiste, mais aussi par Rousseau, par la tradition libérale et par le mouvement socialiste même. Aujourd’hui cependant la multitude prend sa revanche en caractérisant tous les aspects de la vie sociale : les habitudes et la mentalité du travail post-fordiste, les jeux linguistiques, les passions et les affects, les façons de concevoir l’action collective. Quand on constate cette revanche, il faut éviter au moins deux ou trois sottises. Ce n’est pas que la classe ouvrière se soit béatement éteinte pour faire place aux " multiples " : c’est plutôt, et la chose est de très loin plus compliquée et plus intéressante, que les ouvriers d’aujourd’hui, en restant des ouvriers, n’ont plus la physionomie du peuple, mais ils sont l’exemple parfait du mode d’être de la multitude. De plus, affirmer que les " multiples " caractérisent les formes de vie contemporaines n’a rien d’idyllique : ils la caractérisent tantôt en bien, tantôt en mal, dans la servilité aussi bien que dans le conflit. Il s’agit d’un mode d’être : différent du mode d’être " populaire ", certes, mais, en soi, non dépourvu d’ambivalence, avec une dose de poisons spécifiques. La multitude ne met pas de côté d’un geste espiègle la question de l’universel, de ce qui est commun/partagé, bref la question de l’Un, mais elle la redéfinit de fond en comble. On a, d’abord, un renversement de l’ordre des facteurs : le peuple tend vers l’Un, les " multiples " dérivent de l’Un. Pour le peuple, l’universalité est une promesse, pour les " multiples ", c’est une prémisse. Change aussi la définition même de ce qui est commun/partagé. L’Un autour duquel gravite le peuple, c’est l’État, le souverain, la volonté générale ; l’Un que la multitude a derrière elle, c’est le langage, l’intellect comme ressource publique et inter-psychique, les facultés génériques de l’espèce. Si la multitude fuit l’unité de l’État, c’est seulement parce que celle-ci est reliée à un Un tout autre, préliminaire plutôt que conclusif. C’est sur cette corrélation qu’il faut s’interroger un peu plus en profondeur. L’apport de Gilbert Simondon, philosophe assez cher à Deleuze, est très important sur cette question. Sa réflexion porte sur les processus d’individuation. L’individuation, c’est-à-dire le passage du bagage psychosomatique générique de l’animal humain à la configuration d’une singularité unique, est peut-être la catégorie qui, plus que tout autre, est inhérente à la multitude. À regarder de près, la catégorie de peuple se rattache à une myriade d’individus non individués, c’est-à-dire compris comme des substances simples ou des atomes solipsistes. Justement parce qu’ils constituent un point de départ immédiat plutôt que l’issue ultime d’un processus plein d’imprévus, de tels individus ont besoin de l’unité/universalité fournie par la structure de l’État. En revanche, si on parle de la multitude, on met précisément l’accent sur l’individuation ou sur la dérivation de chacun des " multiples " à partir de quelque chose d’unitaire/universel. Simondon, comme, pour d’autres raisons, le psychologue soviétique Lev Semenovitch Vygotski et l’anthropologue italien Ernesto de Martino, ont justement attiré l’attention sur semblable dérivation. Pour ces auteurs, l’ontogenèse, c’est-à-dire les phases de développement du " je " singulier et conscient de lui-même, est la philosophia prima, seule analyse claire de l’être et du devenir. Et l’ontogenèse est philosophia prima précisément parce qu’elle coïncide en tout et pour tout avec le " principe d’individuation

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". L’individuation permet de dessiner un rapport Un/multiples différent de celui qui s’ébauchait peu de temps avant (différent, entendons-nous, de celui qui identifie l’Un avec l’État). Il s’agit donc d’une catégorie qui contribue à fonder la notion éthicopolitique de multitude. Gaston Bachelard, épistémologue parmi les plus grands du vingtième siècle, a écrit que la physique quantique est un " sujet grammatical " par rapport auquel il semble opportun d’employer les prédicats philosophiques les plus hétérogènes : si à un problème singulier s’adapte bien un concept humien, à un autre peut convenir, pourquoi pas, un pan de la logique hégélienne ou une notion tirée de la psychologie gestaltiste. De la même façon, le mode d’être de la multitude doit être qualifié avec des attributs que l’on trouve dans des contextes très différents, parfois même mutuellement exclusifs. Repérés par exemple dans l’anthropologie philosophique de Gehlen (dénuement biologique de l’animal humain, manque d’un " milieu " défini, pauvreté des instincts spécialisés), dans les pages d’ Être et Temps consacrées à la vie quotidienne (bavardage, curiosité, équivoque, etc.), dans la description de divers jeux linguistiques effectuée par Wittgenstein dans Investigations philosophiques. Exemples tous discutables que ceuxlà. En revanche, incontestablement, deux thèses de Simondon sont très importantes en tant que " prédicats " du concept de multitude : 1) le sujet est une individuation toujours partiale et incomplète, consistant plutôt en l’entrelacs changeant d’aspects préindividuels et d’aspects effectivement singuliers ; 2) l’expérience collective, loin d’en signaler la désintégration ou l’éclipse, poursuit et affine l’individuation. Si on oublie bien d’autres considérations (y compris la question, centrale de toute évidence, de comment se réalise l’individuation, selon Simondon) il vaut la peine, ici, de se concentrer sur ces thèses en tant qu’elles sont contraires à l’intuition et même scabreuses.

Pré-individuel Revenons au commencement. La multitude est un réseau d’individus. Le terme " multiples " indique un ensemble de singularités contingentes. Ces singularités ne sont pas, cependant, une donnée de fait, sans appel, mais au contraire le résultat complexe d’un processus d’individuation. Il va de soi que le point de départ de toute véritable individuation est quelque chose de pas encore individuel. Ce qui est unique, non reproductible, passager, vient en fait de ce qui est d’autant plus indifférencié et générique. Les caractéristiques particulières de l’individualité prennent racine dans un ensemble de paradigmes universels. Mais parler de principium individuationis, cela signifie déjà postuler une inhérence extrêmement solide entre le singulier et une forme ou une autre de puissance anonyme. L’individuel est effectivement tel non pas parce qu’il se tient à la limite de ce qui est puissant, comme un zombie exsangue et rancunier, mais parce qu’il est puissance individuée ; et il est puissance individuée parce qu’il est seulement une des individuations possibles de la puissance. Pour établir ce qui a précédé l’individuation, Simondon emploie l’expression, bien peu cryptique, de réalité pré-individuelle. Chacun des " multiples " est familier avec ce pôle antithétique. Mais qu’est-ce exactement que le pré-individuel ? Simondon écrit : " On pourrait nommer nature cette réalité pré-individuelle que l’individu porte avec lui, en cherchant à retrouver dans le mot de nature la signification que les philosophes présocratiques y mettaient : les Physiologues ioniens y trouvaient l’origine de toutes les

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espèces d’être, antérieure à l’individuation : la nature est réalité du possible, sous les espèces de cet apeiron dont Anaximandre fait sortir toute forme individuée : la Nature n’est pas le contraire de l’Homme, mais la première phase de l’être, la seconde étant l’opposition de l’individu et du milieu ". Nature, apeiron (indéterminé), réalité du possible, être encore dépourvu de phases : on pourrait continuer avec différentes variations sur le thème. Ici, cependant, il semble opportun de proposer une définition autonome du " pré-individuel " : pas contradictoire par rapport à celle de Simondon, bien entendu, mais indépendante de celle-ci. Il n’est pas difficile de reconnaître que, sous la même étiquette, existent des contextes et des niveaux assez différents. Le pré-individuel, c’est en premier lieu la perception sensorielle, la motricité, le fond biologique de l’espèce. C’est Merleau-Ponty, dans sa Phénoménologie de la perception, qui observe que " Je n’ai pas plus conscience d’être le vrai sujet de ma sensation que de ma naissance ou de ma mort " (Merleau Ponty, 1945, p. 249). Et encore : " la vision, l’ouïe, le toucher, avec leurs champs qui sont antérieurs et demeurent étrangers à ma vie personnelle " (Merleau Ponty, 1945, p. 399). La sensation échappe à la description à la première personne : quand je perçois, ce n’est pas un individu singulier qui perçoit, mais l’espèce comme telle. À la motricité et à la sensibilité s’ajoute seulement le pronom anonyme " on " : on voit, on entend, on éprouve du plaisir ou de la douleur. Il est bien vrai que la perception a parfois une tonalité autoréflexive : il suffit de penser au toucher, à ce toucher qui est toujours, aussi, l’être touché par l’objet que l’on manipule. Celui qui perçoit s’avertit lui-même en s’avançant vers la chose. Mais il s’agit d’une autoréférence sans individuation. C’est l’espèce qui s’auto-avertit du manège, et pas une singularité autoconsciente. On se trompe si on identifie l’un à l’autre deux concepts indépendants, si on soutient que là où il y a auto-réflexion, on peut constater aussi une individuation ; ou inversement, que s’il n’y a pas d’individuation, on ne peut pas non plus parler d’autoréflexion. Le pré-individuel, à un niveau plus déterminé, c’est la langue historico-naturelle de sa propre communauté d’appartenance. La langue est inhérente à tous les locuteurs de la communauté donnée, comme l’est un " milieu " zoologique, ou un liquide amniotique, à la fois enveloppant et indifférencié. La communication linguistique est intersubjective bien avant que ne se forment de véritables " sujets " proprement dits. Elle est à tous et à personne, pour elle aussi règne l’anonyme " on " : on parle. C’est Vygotski surtout qui a souligné le caractère pré-individuel, ou immédiatement social, de la locution humaine : l’usage de la parole, d’abord, est inter-psychique, c’est-à-dire public, partagé, impersonnel. Contrairement à ce que pensait Piaget, il ne s’agit pas de s’évader d’une condition originaire autistique (c’est-à-dire hyper-individuelle) en prenant la voie d’une socialisation progressive ; au contraire, l’essentiel de l’ontogenèse consiste pour Vygotski dans le passage d’une socialité complète à l’individuation de l’être parlant : " le mouvement réel du processus de développement de la pensée de l’enfant ne s’accomplit pas de l’individuel au socialisé, mais du social à l’"individuel" " (Vygotski, 1985). La reconnaissance du caractère pré-individuel (" inter-psychique ") de la langue fait en sorte que Vygotski anticipe Wittgenstein dans la réfutation d’un " langage privé " quel qu’il soit ; par ailleurs, et c’est ce qui importe le plus, cela permet de l’inscrire à bon droit sur la courte liste des penseurs qui ont mis à l’avant-scène la question du principium individuationis. Tant pour Vygotski que pour Simondon, l’" individuation psychique " (c’est-à-dire la constitution du Moi conscient) survient sur le terrain linguistique, et pas sur celui de la perception. En d’autres termes : tandis que le préindividuel inhérent à la sensation semble destiné à demeurer tel pour toujours, le pré-

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individuel qui correspond à la langue est en revanche susceptible d’une différenciation interne qui débouche sur l’individualité. Il ne s’agira pas ici d’examiner de façon critique la manière dont s’accomplit la singularisation de l’être parlant pour Vygotski et pour Simondon ; et encore moins d’ajouter quelque hypothèse supplémentaire. Ce qui est important, c’est seulement d’établir l’écart entre le domaine perceptif (bagage biologique sans individuation) et le domaine linguistique (bagage biologique comme base de l’individuation). Le pré-individuel, enfin, c’est le rapport de production dominant. Dans le capitalisme développé, le procès de travail requiert les qualités les plus universelles de l’espèce : la perception, le langage, la mémoire, les affects. Rôles et fonctions, dans le cadre du postfordisme, coïncident largement avec l’" existence générique ", avec le Gattungswesen dont parlent Feuerbach et le Marx des Manuscrits économico-philosophiques à propos des facultés les plus élémentaires du genre humain. L’ensemble des forces productives est certainement pré-individuel. Cependant parmi elles, la pensée a une importance particulière. Attention : la pensée objective sans rapport avec tel ou tel " moi " psychologique, la pensée dont la vérité ne dépend pas de l’assentiment des êtres singuliers. À cet égard, Gottlob Frege a utilisé une formule maladroite peut-être mais non sans efficace : " pensée sans porteur " (cf. Frege 1918). Marx en revanche a forgé l’expression, célèbre et controversée, de general intellect, intellect général : à ceci près que pour lui, le general intellect (c’est-à-dire le savoir abstrait, la science, la connaissance impersonnelle) est aussi le " pilier principal de la production de la richesse ", là où par richesse on doit entendre, ici et maintenant, plus-value absolue et relative. La pensée sans porteur, ou le general intellect, fait sa marque sur le " processus vital même de la société " (Marx 1857-1858), en instaurant des hiérarchies et des relations de pouvoir. Pour résumer : c’est une réalité pré-individuelle historiquement qualifiée. Sur ce point, pas la peine d’insister beaucoup plus. Il suffit de retenir qu’au pré-individuel perceptif et au pré-individuel linguistique, il faut ajouter un pré-individuel historique.

Sujet amphibie Le sujet ne coïncide pas avec l’individu individué, mais contient en soi, toujours, une certaine proportion irréductible de réalité pré-individuelle. C’est un composé instable, quelque chose de composite. C’est là la première des deux thèses de Simondon sur laquelle on aimerait attirer l’attention. " Il existe dans les êtres individués une certaine charge d’indéterminé, c’est-à-dire de réalité pré-individuelle qui a passé à travers l’opération d’individuation sans être effectivement individuée. On peut nommer nature cette charge d’indéterminé " (Simondon, 1989, p. 210). Il est complètement faux de réduire le sujet à ce qui est, en lui, singulier : " le nom d’individu est abusivement donné à une réalité plus complexe, celle du sujet complet, qui comporte en lui, en plus de la réalité individuée, un aspect inindividué, pré-individuel, ou encore naturel. "(Simondon, 1989. p. 204). Le pré-individuel est perçu avant tout comme une sorte de passé non résolu : la réalité du possible, d’où jaillit la singularité bien définie, persiste encore aux côtés de cette dernière ; la diachronie n’exclut pas la concomitance. Par ailleurs, le préindividuel, qui est le tissu intime du sujet, constitue le milieu de l’individu individué. Le contexte ambiant (perceptif ou linguistique, ou historique), dans lequel s’inscrit l’expérience de l’individu singulier est en effet une composante intrinsèque (si on veut : intérieure) du sujet. Le sujet n’a pas un milieu, mais il est, pour une certaine part de luimême (celle qui n’est pas individuée) son milieu. De Locke à Fodor, les philosophies

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qui négligent la réalité pré-individuelle du sujet, ignorant donc ce qui en lui est milieu, sont vouées à ne pas trouver de voie de transit entre " intérieur " et " extérieur ", entre Moi et le monde. Ils se livrent donc à la méprise que dénonce Simondon : assimiler le sujet à l’individu individué. La notion de subjectivité est amphibie. Le " Je parle " cohabite avec le " on parle " ; ce que l’on ne peut reproduire est étroitement mêlé au récursif et au sériel. Plus précisément : dans le tissu du sujet se trouvent, comme parties intégrantes, la tonalité anonyme de ce qui est perçu (la sensation en tant que sensation de l’espèce), le caractère immédiatement inter-psychique ou " public " de la langue maternelle, la participation au general intellect impersonnel. La coexistence de pré-individuel et d’individué au sein du sujet est médiatisée par les affects. Émotions et passions signalent l’intégration provisoire des deux aspects. Mais aussi leur décollement éventuel : ce ne sont pas les crises, les récessions, les catastrophes qui manquent. Il y a peur panique ou angoisse quand on ne sait pas composer les aspects pré-individuels de sa propre expérience avec les aspects qui sont individués : " dans l’angoisse, le sujet se sent exister comme problème posé à lui-même et il sent sa division en nature pré-individuelle et en être individué ; l’être individué est ici et maintenant, et cet ici et ce maintenant empêchent une infinité d’autres ici et maintenant de venir au jour ; le sujet prend conscience de lui comme nature, comme indéterminé (apeiron) qu’il ne pourra jamais actualiser en hic et nunc, qu’il ne pourra jamais vivre " (Simondon, 1989, p. 111). Il faut constater ici une extraordinaire coïncidence objective entre l’analyse de Simondon et le diagnostic sur les " apocalypses culturelles " proposé par Ernesto de Martino. Le point crucial, pour de Martino comme pour Simondon, réside dans le fait que l’ontogenèse, c’est-à-dire l’individuation, n’est jamais garantie une fois pour toutes : elle peut revenir sur ses pas, se fragiliser, éclater. Le " Je pense ", outre le fait qu’il ait une genèse hasardeuse, est partiellement rétractile, débordé par ce qui le dépasse. Selon de Martino, le préindividuel semble parfois submerger le je singularisé : ce dernier est comme aspiré dans l’anonymat du " on ". D’autres fois, de façon opposée et symétrique, on nous force en vain à réduire tous les aspects pré-individuels de notre expérience à la singularité ponctuelle. Les deux pathologies - " catastrophes de la frontière moi-monde dans les deux modalités de l’irruption du monde dans l’être humain et du reflux de l’être humain dans le monde " (E. de Martino 1977) - sont seulement les extrêmes d’une oscillation qui, sous formes plus contenues, est cependant constante et non supprimable. Trop souvent la pensée critique du vingtième siècle (on pense en particulier à l’" école de Francfort ") a entonné une cantilène mélancolique sur l’éloignement supposé de l’individu par rapport aux forces productives et sociales, ainsi que sur la séparation de la puissance inhérente aux facultés universelles de l’espèce (langage, pensée, etc.). Le malheur de l’être singulier a été attribué précisément à cet éloignement ou à cette séparation. Une idée suggestive, mais fausse. Les " passions tristes ", pour le dire avec Spinoza, ressortent plutôt de la proximité maximum, et même de la symbiose, entre l’individu individué et le pré-individuel, là où cette symbiose se présente comme déséquilibre et déchirement. En bien comme en mal, la multitude montre le mélange inextricable de " je " et de " on ", singularité non reproductible et anonymat de l’espèce, individuation et réalité pré-individuelle. En bien : chacun des " multiples " ayant l’universel derrière lui, en guise de prémisse ou d’antécédent, n’a pas besoin de cette universalité postiche que constitue l’État. En mal : chacun des " multiples ", en tant que sujet amphibie, peut toujours distinguer une menace dans sa propre réalité préindividuelle, ou au moins une source d’insécurité. Le concept éthico-politique de

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multitude est fondé tant sur le principe d’individuation que sur son incomplétude constitutive.

Marx, Simondon, Vygotski : le concept d’"individu social " Dans un passage célèbre des Grundrisse (que l’on appelle " Fragment sur les machines "), Marx désigne comme " individu social " le seul protagoniste vraisemblable d’une quelconque transformation radicale de l’état des choses présentes (cf. Marx, 18571858). De prime abord, l’" individu social " ressemble à un oxymore coquet, à l’unité ébouriffée des contraires, en somme, à un maniérisme hégélien. Il est possible en revanche de prendre ce concept à la lettre, jusqu’à en faire un instrument de précision pour faire ressortir certaines façons d’être, les inclinations et les formes de vies contemporaines. Mais cela est possible, dans une bonne mesure, justement grâce à la réflexion de Simondon et de Vygotski sur le principe d’individuation. Dans l’adjectif " social ", il faut reconnaître les traits de cette réalité pré-individuelle qui, selon Simondon, appartient à tous les sujets. Comme, dans le substantif " individu ", on reconnaît la singularisation advenue de chaque composant de la multitude d’aujourd’hui. Quand il parle d’" individu social ", Marx se réfère à l’intrication entre " existence générique " (Gattungswesen) et expérience non reproductible, qui est le sceau de la subjectivité. Ce n’est pas un hasard si l’" individu social " fait son apparition dans les pages mêmes des Grundrisse où est introduite la notion de general intellect, d’un " intellect général ", qui constitue la prémisse universelle (ou pré-individuelle), ainsi que la partition commune, pour les travaux et les jours des " multiples ". Le côté social de l’" individu social " c’est, sans aucun doute, le general intellect, ou bien, avec Frege, la " pensée sans porteur ". Pas seulement, cependant : il consiste aussi dans le caractère d’emblée inter-psychique, c’est-à-dire public, de la communication humaine, mis en lumière très efficacement par Vygotski. De plus, si on traduit correctement " social " par " pré-individuel ", il faudra encore reconnaître que l’individu individué dont parle Marx se profile aussi sur fond de perception sensorielle anonyme. Au sens fort, sont sociaux tant l’ensemble des forces productives historiquement définies, que le bagage biologique de l’espèce. Il ne s’agit pas d’une conjonction extrinsèque, ou d’une simple superposition. Il y a plus. Le capitalisme pleinement développé implique la pleine coïncidence entre les forces productives et les deux autres types de réalité pré-individuelle (le " on perçoit " et le " on parle "). Le concept de force de travail donne à voir cette fusion parfaite : en tant que capacité physique générique et capacité intellectualo-linguistique de produire, la force de travail est décidément une détermination historique, mais elle contient en elle-même complètement cet apeiron, cette nature non individuée, dont parle Simondon ainsi que le caractère impersonnel de la langue, que Vygotski illustre de long en large. L’" individu social " marque l’époque dans laquelle la cohabitation entre singulier et pré-individuel cesse d’être une hypothèse heuristique, ou un présupposé caché, mais devient un phénomène empirique, vérité jetée à la surface, état de fait pragmatique. On pourrait dire ceci : l’anthropogenèse, c’est-àdire la constitution même de l’animal humain arrive à se manifester sur le plan historico-social, devient enfin visible à l’œil nu, connaît une sorte de révélation matérialiste. Ce que l’on appelle les " conditions transcendantales de l’expérience ", au lieu de rester en arrière-fond, arrivent en tout premier plan et, ce qui est plus important, deviennent elles aussi objets d’expérience immédiate.

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Une dernière observation, marginale en apparence. L’" individu social " incorpore les forces productives universelles, en les déclinant cependant selon des modalités différenciées et contingentes ; il est au contraire effectivement individué, justement parce qu’il leur donne une configuration singulière en les traduisant en une constellation très particulière de cognitions et d’affects. C’est pour cela que toute tentative de circonscrire l’individu par la négative échoue : ce n’est pas l’ampleur de ce qui en est exclu qui parvient à le caractériser, mais l’intensité de ce qui y converge. Il ne s’agit pas non plus d’une positivité accidentelle, déréglée et, ultimement, ineffable (soit dit en passant : rien n’est plus monotone, et moins individuel, que l’ineffable). L’individuation est scandée par la spécification progressive, ainsi que par la combinaison excentrique de règles et de paradigmes généraux : ce n’est pas le trou du filet, mais l’endroit où les mailles sont les plus serrées. À propos de la singularité non reproductible, on pourrait parler d’un surplus de législation. Pour le dire selon la phraséologie de l’épistémologue, les lois qui qualifient l’individuel ne sont ni des " assertions universelles " (c’est-à-dire valides pour tous les cas d’un ensemble homogène de phénomènes), ni des " assertions existentielles " (révélations de données empiriques en dehors d’une quelconque régularité ou d’un schéma connectif) : il s’agit plutôt de véritables lois singulières. Lois, parce que dotées d’une structure formelle comprenant virtuellement une " espèce " entière. Singulières, parce que règles d’un seul cas, non généralisables. Les lois singulières représentent l’individuel avec la précision et la transparence réservées en principe à une " classe " logique : mais attention, une classe d’un seul individu. Appelons multitude l’ensemble des " individus sociaux ". Il y a une sorte d’enchaînement sémantique précieuse entre l’existence politique des multiples en tant que multiples, la vieille obsession philosophique tournant autour du principium individuationis et la notion marxienne d’" individu social " (déchiffrée, avec le concours de Simondon, comme le mélange inextricable de singularité contingente et de réalité pré-individuelle). Cet enchaînement sémantique permet de redéfinir à la base la nature et les fonctions de la sphère publique et de l’action collective. Une redéfinition qui, cela va de soi, déboulonne le canon éthico-politique fondé sur le " peuple " et la souveraineté étatique. On pourrait dire avec Marx, mais en dehors et en opposition avec une bonne partie du marxisme - que la " substance des choses espérées " se trouve dans le fait de conférer le maximum de relief et de valeur à l’existence non reproductible de chaque membre singulier de l’espèce. Aussi paradoxal que cela puisse paraître, la théorie de Marx devrait être comprise aujourd’hui comme une théorie rigoureuse, c’est-à-dire réaliste et complexe, de l’individu. Donc comme une théorie de l’individuation.

Le collectif de la multitude Examinons maintenant la deuxième thèse de Simondon. Elle est sans précédent d’aucune sorte. Elle va à l’encontre de l’intuition, c’est-à-dire qu’elle viole les convictions enracinées du sens commun(commec’estlecas,du reste, de beaucoup d’autres " prédicats " conceptuels de la multitude). D’habitude, on considère que l’individu, du moment qu’il participe à un collectif, doit se défaire au moins de quelques-unes de ses caractéristiques proprement individuelles, renonçant à certains signes distinctifs bariolés et impénétrables. Dans le collectif, semble-t-il, la singularité se délaye, elle est handicapée, elle régresse. Eh bien, selon Simondon, il s’agit là d’une superstition : obtuse du point de vue de l’épistémologie et suspecte du point de vue de l’éthique. Une superstition alimentée par ceux qui, traitant avec désinvolture du

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processus de l’individuation, présument que l’individu est un point de départ immédiat. Si au contraire on admet que l’individu provient de son opposé, c’est-à-dire de l’universel indifférencié, le problème du collectif prend une tout autre allure. Pour Simondon, contrairement à ce qu’affirme un sens commun difforme, la vie de groupe est l’occasion d’une ultérieure et plus complexe individuation. Loin de régresser, la singularité s’affine et atteint son acmé dans l’agir ensemble, dans la pluralité des voix, bref, dans la sphère publique. Le collectif ne lèse pas, n’atténue pas l’individuation, mais il la poursuit, en augmentant sa puissance, démesurément. Cette suite concerne la part de réalité pré-individuelle que le premier processus d’individuation avait laissée irrésolue. Simondon écrit : " On ne doit pas parler des tendances de l’individu qui le portent vers le groupe ; car ces tendances ne sont pas à proprement parler des tendances de l’individu en tant qu’individu ; elles sont la non-résolution des potentiels qui ont précédé la genèse de l’individu. L’être précédant l’individu n’a pas été individué sans reste ; il n’a pas été totalement résolu en individu et milieu ; l’individu a conservé avec lui du préindividuel, et tous les individus ensemble ont ainsi une sorte de fond non structuré à partir duquel une nouvelle individuation peut se produire." (Simondon, 1989, p. 193) Et plus loin : " Ce n’est pas véritablement en tant qu’individus que les êtres sont rattachés les uns aux autres dans le collectif, mais en tant que sujets c’est-à-dire en tant qu’êtres qui contiennent du pré-individuel " (Simondon, 1989, p. 205). Le fondement du groupe, c’est l’élément pré-individuel (on perçoit, on parle, etc.) présent dans chaque sujet. Mais, dans le groupe, la réalité pré-individuelle, intriquée à la singularité, s’individualise à son tour, arborant une physionomie particulière. L’instance du collectif est encore une instance d’individuation : la mise qui est en jeu, c’est de donner une forme contingente et impossible à confondre à l’apeiron (l’indéterminé), c’est-à-dire à la " réalité du possible " qui précède la singularité ; donner forme à l’univers anonyme de la perception sensorielle ; donner forme à la " pensée sans porteur " ou general intellect. Le pré-individuel, inamovible à l’intérieur du sujet, isolé, peut revêtir un aspect singularisé dans les actions et dans les émotions des multiples. Comme un violoncelliste qui, en interagissant dans un quatuor avec les autres interprètes, trouve quelque chose de sa partition qui jusque-là lui avait échappé. Chacun des multiples personnalise (partiellement et provisoirement) sa propre composante impersonnelle à travers les vicissitudes caractéristiques de l’expérience publique. L’exposition aux regards des autres, l’action politique sans garanties, la familiarité avec le possible et l’imprévu, l’amitié et l’inimitié, tout cela donne à l’individu l’éveil qui lui permet, dans une certaine mesure, de s’approprier cet anonyme " on " d’où il vient, pour transformer le Gattungswesen, l’" existence générique de l’espèce " en une biographie tout à fait particulière. Contrairement à ce que soutenait Heidegger, c’est seulement dans la sphère publique que l’on peut passer du " on " au " soi-même ". L’individuation de second degré, que Simondon appelle aussi l’" individuation collective " (un oxymore proche de celui que contient la locution " individu social "), est une pièce importante pour penser de façon adéquate la démocratie non représentative. Puisque le collectif est le théâtre d’une singularisation accentuée de l’expérience, ou constitue le lieu dans lequel peut finalement s’expliquer ce qui dans une vie humaine est incommensurable et impossible à reproduire, rien de cela ne se prête à être extrapolé ou, moins que jamais, " délégué ". Mais attention : le collectif de la multitude, en tant qu’individuation du general intellect et du fond biologique de l’espèce, c’est

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exactement le contraire d’un quelconque anarchisme ingénu. En face de lui, c’est plutôt le modèle de la représentation politique, avec tant de volonté générale et de " souveraineté populaire ", qui fait figure d’intolérable (et parfois féroce) simplification. Le collectif de la multitude ne délègue pas de droits au souverain, pas plus qu’il ne pactise avec lui, parce qu’il s’agit d’un collectif de singularités individuées : pour lui, répétons-le encore, l’universel est une prémisse et pas déjà une promesse. février 2001 Traduit de l’italien par Véronique Dassas BIBLIOGRAPHIE DE MARTINO E. (1977), La fine del mondo. Contributo all’analisi delle apocalissi culturali, Turin, Einaudi. FREGE G. (1918), Der Gedanke. Eine Logische Untersuchung ; trad. française. " La pensée " in Écrits Logiques et Philosophiques, Paris, Le Seuil, 1971. HOBBES Th. (1642), De Cive, trad. française Le Citoyen, Paris, Garnier-Flammarion, 1982. MARX K. (1857-1858), Grundrisse del Kritik del politischen Oekonomie ; trad. française Fondements de la critique de l’économie politique, Paris, Anthropos , 1968. MERLEAU-PONTY M. (1945), Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard. SIMONDON G. (1989), L’individuation psychique et collective, Paris, Aubier. VYGOTSKI L. S. (1934), Myslenie i rec ; trad. française Pensée et langage, Paris, Scandéditions, 1997. [1] En français tout au long du texte. http://multitudes.samizdat.net/article.php3?id_article=65

Moltitudine et principio di individuazione par Paolo Virno Mise en ligne décembre 2001 Version originale italienne de Multitude et principe d’individuation, Multitudes 7 : décembre 2001, Majeure : Après Gênes, après New York Le forme di vita contemporanee attestano la dissoluzione del concetto di "popolo" e la rinnovata pertinenza del concetto di "moltitudine". Stelle fisse del grande dibattito seicentesco da cui discende buona parte del nostro lessico etico-politico, questi due concetti si collocano agli antipodi. Il "popolo" ha una indole centripeta, converge in una volonté générale, è l’interfaccia o il riverbero dello Stato ; la moltitudine è plurale,

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rifugge dall’unità politica, non stipula patti né trasferisce diritti al sovrano, recalcitra all’obbedienza, inclina a forme di democrazia non rappresentativa. Nella moltitudine, Hobbes ravvisò la massima insidia per l’apparato statale ("I cittadini, allorché si ribellano allo Stato, sono la moltitudine contro il popolo" [Hobbes, 1652 : XII, 8]), Spinoza la radice della libertà. Dal Seicento in poi, quasi senza eccezioni, ha prevalso incondizionatamente il "popolo". L’esistenza politica dei molti in quanto molti è stata espunta dall’orizzonte della modernità : non solo dai teorici dello Stato assoluto, ma anche da Rousseau, dalla tradizione liberale, dallo stesso movimento socialista. Oggi, però, la moltitudine prende la sua rivincita, caratterizzando tutti gli aspetti della vita associata : costumi e mentalità del lavoro postfordista, giochi linguistici, passioni e affetti, modi di intendere l’azione collettiva. Quando si constata questa rivincita bisogna scansare almeno un paio di sciocchezze. Non è che la classe operaia si sia beatamente estinta per far posto ai "molti" : piuttosto, e la faccenda è di gran lunga più complicata e interessante, gli operai odierni, tali restando, non hanno più la fisionomia del popolo, ma esemplificano a perfezione il modo di essere della moltitudine. Inoltre, affermare che i "molti" caratterizzano le forme di vita contemporanee non ha nulla di idillico : le caratterizzano tanto nel male quanto nel bene, nel servilismo non meno che nel conflitto. Di un modo di essere si tratta : diverso da quello "popolare", certo, ma, in sé, non poco ambivalente, essendo provvisto anche di suoi specifici veleni. La moltitudine non accantona con gesto sbarazzino la questione dell’universale, del comune/condiviso, insomma dell’Uno, ma la riqualifica da cima a fondo. Anzitutto, si ha un rovesciamento nell’ordine dei fattori : il popolo tende all’Uno, i "molti" derivano dall’Uno. Per il popolo l’universalità è una promessa, per i "molti" una premessa. Muta, inoltre, la stessa definizione di ciò che è comune/condiviso. L’Uno verso cui il popolo gravita, è lo Stato, il sovrano, la volonté générale ; l’Uno che la moltitudine ha alle proprie spalle consiste, invece, nel linguaggio, nell’intelletto come risorsa pubblica o interpsichica, nelle generiche facoltà della specie. Se la moltitudine rifugge dall’unità statale, è soltanto perché essa è correlata a tutt’altro Uno, preliminare anziché conclusivo. Su questa correlazione, già segnalata altre volte in passato, occorre interrogarsi più a fondo. Un contributo di gran conto è quello offerto da Gilbert Simondon, filosofo assai caro a Deleuze, finora quasi sconosciuto in Italia. La sua riflessione verte sui processi di individuazione. L’individuazione, ossia il passaggio dalla generica dotazione psicosomatica dell’animale umano alla configurazione di una singolarità irripetibile, è forse la categoria che, più di ogni altra, inerisce alla moltitudine. A guardar bene, la categoria di popolo si attaglia a una miriade di individui non individuati, intesi cioè come sostanze semplici o atomi solipsistici. Proprio perché costituiscono un immediato punto di partenza, anziché l’esito estremo di un processo accidentato, tali individui abbisognano dell’unità/universalità procacciata dalla compagine statale. Viceversa, parlando di moltitudine, si mette l’accento precisamente sull’individuazione, ovvero sulla derivazione di ciascuno dei "molti" da un che di unitario/universale. Simondon, come per altri versi lo psicologo sovietico Lev S. Vygotskij e l’antropologo italiano Ernesto de Martino, hanno posto al centro dell’attenzione proprio siffatta derivazione. Per questi autori, l’ontogenesi, cioè le fasi di sviluppo del singolo "io" autocosciente, è philosophia prima, unica analisi perspicua dell’essere e del divenire. Ed è philosophia prima, l’ontogenesi, proprio perché coincide in tutto e per tutto con il "principio di individuazione". L’individuazione consente di delineare il diverso rapporto Uno/molti cui si accennava poc’anzi (diverso, per intendersi da quello che identifica l’Uno con lo Stato). Essa, pertanto, è una categoria che concorre a fondare la nozione etico-politica di moltitudine.

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Gaston Bachelard, epistemologo tra i maggiori del XX secolo, ha scritto che la fisica quantistica è un "soggetto grammaticale" al cui riguardo sembra opportuno impiegare i più eterogenei "predicati" filosofici : se a un singolo problema ben si adatta un concetto humeano, a un altro può convenire, perché no, un brano della logica hegeliana o una nozione tratta dalla psicologia della Gestalt. Parimenti, il modo di essere della moltitudine deve venir qualificato con attributi reperiti in ambiti diversissimi, talvolta persino alternativi tra loro. Reperiti, per esempio, nell’antropologia filosofica di Gehlen (sprovvedutezza biologica dell’animale umana, mancanza di un "ambiente" definito, povertà di istinti specializzati), nelle pagine di Essere e tempo dedicate alla vita quotidiana (chiacchiera, curiosità, equivoco ecc.), nella descrizione dei diversi giochi linguistici eseguita da Wittgenstein nelle Ricerche filosofiche. Esempi tutti opinabili, questi. Incontrovertibile, invece, è l’importanza che assumono, come "predicati" del concetto di moltitudine, due tesi di Gilbert Simondon : 1) il soggetto è una individuazione sempre parziale e incompleta, consistendo piuttosto nell’intreccio mutevole di aspetti preindividuali e aspetti effettivamente singolari ; 2) l’esperienza collettiva, lungi dal segnarne il decadimento o l’eclissi, prosegue e affina l’individuazione. Trascurando molto altro (compresa la questione, ovviamente centrale, di come si realizzi, secondo Simondon, l’individuazione), vale la pena, qui, concentrarsi su queste tesi alquanto controintuitive e perfino scabrose.

Preindividuale Ricominciamo da principio. La moltitudine è una rete di individui. Il termine "molti" indica un insieme di singolarità contingenti. Queste singolarità non sono, però, un dato di fatto inappellabile, bensì il risultato complesso di un processo di individuazione. Va da sé che il punto di avvio di ogni autentica individuazione è qualcosa di non ancora individuale. Ciò che è unico, irripetibile, labile, proviene da quanto invece è indifferenziato e generico. I caratteri peculiari dell’individualità affondano radici in un complesso di paradigmi universali. Già solo parlare di principium individuationis significa postulare una inerenza saldissima tra il singolare e l’una o l’altra forma di potenza anonima. L’individuale è effettivamente tale non perché si mantiene ai margini di ciò che è potente, come uno zombie esangue e rancoroso, ma perché è potenza individuata ; ed è potenza individuata perché è solo una delle possibili individuazioni della potenza. Per fissare l’antefatto dell’individuazione, Simondon impiega l’espressione, niente affatto criptica, di realtà preindividuale. Ciascuno dei "molti" ha dimestichezza con questo polo antitetico. Ma che cos’è, propriamente, il "preindividuale" ? Simondon scrive : "Si potrebbe chiamare natura questa realtà preindividuale che l’individuo porta con sé, sforzandosi di ritrovare nella parola ’natura’ il significato che le attribuivano i filosofi presocratici : i Fisiologi ionici vi coglievano l’origine di tutte le specie di essere, anteriore all’individuazione ; la natura è realtà del possibile, con le fattezze di quell’apeiron da cui Anassimandro fa scaturire ogni forma individuata. La Natura non è il contrario dell’Uomo, ma la prima fase dell’essere, là dove la seconda è l’opposizione tra individuo e ambiente" (Simondon 1989:196). Natura, apeiron (indeterminato), realtà del possibile, un essere ancora privo di fasi : e si potrebbe continuare con le variazioni sul tema. Qui, però, sembra opportuno proporre una definizione autonoma di "preindividuale" : non contraddittoria con quella di Simondon, beninteso, ma da essa indipendente. Non è difficile riconoscere che, sotto la medesima etichetta, coesistono ambiti e livelli assai diversi. Preindividuale è, in primo luogo, la percezione sensoriale, la motilità, il fondo biologico

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della specie. E’ stato Merleau-Ponty, nella sua Fenomenologia della percezione, a osservare che "io non ho coscienza di essere il vero soggetto della mia sensazione più di quanto abbia coscienza di essere il vero soggetto della mia nascita e della mia morte" (Merleau-Ponty 1945 : 293). E ancora : "la vista, l’udito il tatto, con i loro campi, sono anteriori e rimangono estranei alla mia vita personale" (ivi : 451). La sensazione rifugge da una descrizione in prima persona : quando percepisco, non è un individuo individuato a percepire, ma la specie come tale. Alla motilità e alla sensibilità si addice solo l’anonimo pronome "si" : si vede, si ode, si prova dolore o piacere. E’ ben vero che la percezione ha talvolta una tonalità autoriflessiva : basti pensare al tatto, a quel toccare che è sempre, anche, un venir toccati dall’oggetto che si sta maneggiando. Colui che percepisce, avverte sé medesimo allorché si protende verso la cosa. Ma si tratta di un autoriferimento senza individuazione. E’ la specie che si autoavverte nel maneggio, non una singolarità autocosciente. Sbaglia chi, identificando due concetti indipendenti, sostiene che, dove vi è autoriflessione, lì si può constatare anche un’individuazione ; o, viceversa, che, non essendovi individuazione, neanche è lecito parlare di autoriflessione. Preindividuale, a un livello più determinato, è la lingua storico-naturale della propria comunità di appartenenza. La lingua inerisce a tutti i locutori della comunità data, non diversamente da un "ambiente" zoologico, o da un liquido amniotico tanto avvolgente quanto indifferenziato. La comunicazione linguistica è intersoggettiva ben prima che si formino dei veri e propri "soggetti". Essendo di tutti e di nessuno, anche al suo riguardo primeggia l’anonimo "si" : si parla. E’ stato soprattutto Vygotskij a sottolineare il carattere preindividuale, o immediatamente sociale, della locuzione umana : l’uso della parola, da principio, è interpsichico, cioè pubblico, condiviso, impersonale. Contrariamente a quanto riteneva Piaget, non si tratta di evadere da una originaria condizione autistica (cioè iperindividuale), imboccando la via di una progressiva socializzazione ; al contrario, il fulcro dell’ontogenesi consiste, per Vygotskij, nel passaggio da una socialità a tutto tondo all’individuazione del parlante : "il movimento reale del processo di sviluppo del pensiero infantile si compie non dall’individuale al socializzato, ma dal sociale all’individuale" (Vygotskij 1934 : 350). Il riconoscimento del carattere preindividuale ("interpsichico") della lingua fa sì che Vygotskij anticipi Wittgenstein nella confutazione di qualsivoglia "linguaggio privato" ; inoltre, ed è ciò che più conta, permette di includerlo a buon diritto nella scarna lista dei pensatori che hanno messo al centro della scena la questione del principium individuationis. Tanto per Vygotskij che per Simondon, l’"individuazione psichica" (ossia la costituzione dell’Io autocosciente) avviene sul terreno linguistico, non su quello percettivo. Detto altrimenti : mentre il preindividuale insito nella sensazione sembra destinato a rimanere perennemente tale, il preindividuale coincidente con la lingua è invece suscettibile di una differenziazione interna che ha per esito l’individualità. Non è il caso, qui, di vagliare criticamente i modi con cui, per Simondon e per Vygotskij, si compie la singolarizzazione del parlante ; né, tanto meno, di accludere qualche ipotesi supplementare. Ciò che importa è solo fissare lo scarto tra ambito percettivo (dotazione biologica senza individuazione) e ambito linguistico (dotazione biologica come base dell’individuazione). Preindividuale, infine, è il rapporto di produzione dominante. Nel capitalismo sviluppato, il processo lavorativo mobilita i requisiti più universali della specie : percezione, linguaggio, memoria, affetti. Ruoli e mansioni, in ambito postfordista, coincidono largamente con l’"esistenza generica", con il Gattungswesen di cui parlano Feuerbach e il Marx dei Manoscritti economico-filosofici a proposito delle più basilari facoltà del genere umano. Preindividuale è certamente l’insieme delle forze produttive.

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Tra esse, però, ha un rilievo eminente il pensiero. Si badi : il pensiero oggettivo, non correlabile a questo o a quell’"io" psicologico, la cui verità non dipende dall’assenso dei singoli. Al suo riguardo, Gottlob Frege ha utilizzato una formula forse goffa, ma non poco efficace : "pensiero senza portatore" (cfr. Frege 1918) . Marx ha coniato invece l’espressione, famosa e controversa, di general intellect, intelletto generale : solo che, per lui, il general intellect (cioè il sapere astratto, la scienza, la conoscenza impersonale) è anche il "pilastro centrale nella produzione della ricchezza", là dove per "ricchezza" deve intendersi, qui e ora, plusvalore assoluto e relativo. Il pensiero senza portatore, ossia il general intellect, imprime la sua forma al "processo vitale stesso della società" (Marx 1857-1858 : 403), istituendo gerarchie e relazioni di potere. In breve : è una realtà preindividuale storicamente qualificata. Su questo punto, non mette conto insistere più di tanto. Basti tenere presente che, al preindividuale percettivo e a quello linguistico, occorre aggiungere un preindividuale storico.

Soggetto anfibio Il soggetto non coincide con l’individuo individuato, ma comprende in sé, sempre, una certa quota ineliminabile di realtà preindividuale. E’ un composto instabile, un che di spurio. Ecco la prima delle due tesi di Simondon su cui si vorrebbe richiamare l’attenzione. "Esiste negli esseri individuati una certa carica di indeterminato, cioè di realtà preindividuale, che è passata attraverso l’operazione di individuazione senza essere effettivamente individuata. Si può chiamare natura questa carica di indeterminato" (Simondon 1989 : 210). E’ del tutto errato ridurre il soggetto a quel che, in esso, vi è di singolare : "Si attribuisce abusivamente il nome di individuo a una realtà più complessa, quella del soggetto completo, che porta in sé, oltre alla realtà individuata, un aspetto non individuato, preindividuale, ovvero naturale" (ivi : 204). Il preindividuale è avvertito anzitutto come una sorta di passato irrisolto : la "realtà del possibile", da cui scaturì la singolarità ben definita, persiste ancora a fianco di quest’ultima ; la diacronia non esclude la concomitanza. Per altri versi, il preindividuale di cui è intimamente intessuto il soggetto si manifesta come ambiente dell’individuo individuato. Il contesto ambientale (percettivo, o linguistico, o storico), in cui si inscrive l’esperienza del singolo, è, in effetti, una componente intrinseca (se si vuole : interiore) del soggetto. Il soggetto non ha un ambiente, ma è, in una certa sua parte (quella non individuata), ambiente. Da Locke a Fodor, le filosofie che trascurano la realtà preindividuale del soggetto, ignorando dunque quel che in esso è ambiente, sono destinate a non trovare più una via di transito tra "interno" ed "esterno, tra Io e mondo. Cadono dunque nel fraintendimento denunciato da Simondon : equiparare il soggetto all’individuo individuato. La nozione di soggettività è anfibia. L’"io parlo"convive con il "si parla" ; l’irripetibile è intrecciato al ricorsivo e al seriale. Più precisamente, nell’ordito del soggetto figurano, come parti integranti, la tonalità anonima del percepito (la sensazione come sensazione della specie), il carattere immediatamente interpsichico o "pubblico" della lingua materna, la partecipazione all’impersonale general intellect. La coesistenza di preindividuale e individuato in seno al soggetto è mediata, secondo Simondon, dagli affetti. Emozioni e passioni segnalano la provvisoria integrazione dei due lati. Ma anche l’eventuale loro scollamento : non mancano crisi, recessioni, catastrofi. Vi è timor panico, o angoscia, allorché non si sappia comporre gli aspetti preindividuali della propria esperienza con quelli individuati : "nell’angoscia il soggetto si sente esistere come problema per sé medesimo, sente la sua divisione in natura preindividuale ed essere individuato ; l’essere individuato è qui e ora, e questo qui e questo ora

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impediscono a una infinità di altri qui e di altri ora di manifestarsi : il soggetto prende coscienza di sé come natura, come indeterminato (apeiron) che non potrà mai attualizzare in un hic et nunc, che non potrà mai vivere" (ivi : 111). E’ dato constatare, qui, una straordinaria convergenza obiettiva tra l’analisi di Simondon e la diagnosi delle "apocalissi culturali" proposta da Ernesto de Martino. Il punto cruciale, per de Martino come per Simondon, sta nel fatto che l’ontogenesi, cioè l’individuazione, non è mai garantita una volta per tutte : può tornare sui propri passi, infragilirsi, conflagrare. L’"Io penso", oltre ad avere una genesi accidentata, è parzialmente retrattile, soverchiato da quanto lo eccede. Secondo de Martino, talvolta il preindividuale sembra sommergere l’io singolarizzato : quest’ultimo è come risucchiato nell’anonimia del "si". Talaltra, in modo opposto e simmetrico, ci si sforza vanamente di ridurre tutti gli aspetti preindividuali della nostra esperienza alla singolarità puntuale. Le due patologie "catastrofe del confine io-mondo nelle due modalità della irruzione del mondo nell’esserci e del deflusso dell’esserci nel mondo" (E. de Martino 1977 : 76) - sono solo gli estremi di una oscillazione che, in forme più contenute, è però costante e insopprimibile. Troppe volte il pensiero critico del Novecento (si pensi in particolare alla "scuola di Francoforte") ha intonato una nenia malinconica sulla presunta lontananza dell’individuo dalle forze produttive sociali, nonché sulla sua separazione dalla potenza insita nelle facoltà universali della specie (linguaggio, pensiero ecc.). L’infelicità del singolo è stata imputata, per l’appunto, a questa lontananza o separazione. Un’idea suggestiva, ma sbagliata. Le "passioni tristi", per dirla con Spinoza, insorgono piuttosto dalla massima vicinanza, anzi dalla simbiosi, tra individuo individuato e preindividuale, laddove questa simbiosi si presenti come squilibrio e lacerazione. Nel bene come nel male, la moltitudine mostra la commistione indistricabile di "io" e "si", singolarità irripetibile e anonimia della specie, individuazione e realtà preindividuale. Nel bene : ciascuno dei "molti", avendo l’universale alle proprie spalle, a mo’ di premessa o antefatto, non abbisogna di quell’universalità posticcia che lo è Stato. Nel male : ciascuno dei "molti", in quanto soggetto anfibio, può sempre scorgere nella sua propria realtà preindividuale una minaccia, o almeno una fonte di insicurezza. Il concetto eticopolitico di moltitudine è incardinato sia al principio di individuazione che alla sua costitutiva incompletezza.

Marx, Simondon, Vygotskij : il concetto di "individuo sociale" In un celebre brano dei Grundrisse (il cosiddetto "Frammento sulle macchine"), Marx indica con l’epiteto di "individuo sociale" il solo protagonista verosimile di qualsivoglia trasformazione radicale dello stato di cose presente (cfr. Marx 1857-1858 : 389-403). A tutta prima, l’"individuo sociale" sembra un ossimoro civettuolo, una arruffata unità dei contrari, insomma un manierismo hegeliano. E’ possibile, invece, prendere questo concetto alla lettera, fino a farne uno strumento di precisione per rilevare modi di essere, inclinazioni e forme di vita contemporanei. Ma ciò è possibile, in buona misura, proprio grazie alla riflessione di Simondon e di Vygotskij sul principio di individuazione. Nell’aggettivo "sociale" occorre ravvisare le fattezze di quella realtà preindividuale, che, secondo Simondon, pertiene a ogni soggetto. Così come nel sostantivo "individuo" va riconosciuta l’avvenuta singolarizzazione di ciascun componente dell’odierna moltitudine. Quando parla di "individuo sociale", Marx si riferisce all’intreccio tra "esistenza generica" (Gattungswesen) ed esperienza irripetibile, che della soggettività è il sigillo. Non è un caso se l’"individuo sociale" fa la sua comparsa nelle medesime

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pagine dei Grundrisse in cui viene introdotta la nozione di general intellect, di un "intelletto generale" che costituisce la premessa universale (o preindividuale), nonché il comune spartito, per le opere e i giorni dei "molti". Il lato sociale dell’"individuo sociale" è, senza dubbio, il general intellect, ovvero, con Frege, il "pensiero senza portatore". Non solo, però : esso consiste anche nel carattere fin da subito interpsichico, cioè pubblico, della comunicazione umana, messo a fuoco con grande efficacia da Vygotskij. Inoltre, se si traduce correttamente ’sociale’ con ’preindividuale’, bisognerà riconoscere che l’individuo individuato di cui parla Marx si staglia pure sullo sfondo dell’anonima percezione sensoriale. Sociale in senso forte è tanto l’insieme delle forze produttive storicamente definite, quanto la dotazione biologica della specie. Non si tratta di una congiunzione estrinseca, o di una mera sovrapposizione. C’è di più. Il capitalismo pienamente sviluppato implica la piena coincidenza tra le forze produttive e gli altri due tipi di realtà preindividuale (il "si percepisce" e il "si parla"). Il concetto di forza-lavoro dà a vedere questa perfetta fusione : in quanto generica potenza fisica e linguistico-intellettiva di produrre, la forzalavoro è, sì, una determinazione storica, ma include in sé per intero quell’apeiron, o natura non individuata, di cui discute Simondon, nonché il carattere impersonale della lingua, che Vygotskij illustra in lungo e in largo. L’"individuo sociale" segna l’epoca in cui la convivenza di singolare e preindividuale cessa di essere un’ipotesi euristica, o un celato presupposto, ma diventa fenomeno empirico, verità sbalzata in superficie, pragmatico dato di fatto. Si potrebbe dire : l’antropogenesi, ossia la stessa costituzione dell’animale umano, giunge a manifestarsi sul piano storico-sociale, si fa infine visibile a occhio nudo, conosce una sorta di materialistica rivelazione. Le cosiddette "condizioni trascendentali dell’esperienza", anziché restare sullo sfondo, vengono in primissimo piano e, quel che più conta, diventano, esse pure, oggetto di esperienza immediata. Un’ultima osservazione, marginale ma non troppo. L’"individuo sociale" incorpora le forze produttive universali, declinandole però secondo modalità differenziate e contingenti ; è effettivamente individuato, anzi, proprio perché dà loro una configurazione singolare, traducendole in una specialissima costellazione di cognizioni e affetti. Per questo, fallisce ogni tentativo di circoscrivere l’individuo per via negativa : non l’ampiezza di ciò che vi è escluso, ma l’intensità di ciò che vi converge provvede a connotarlo. Né si tratta di una positività accidentale e sregolata, infine ineffabile (per inciso : nulla è più monotono, e meno individuale, dell’ineffabile). L’individuazione è scandita dalla progressiva specificazione, nonché dalla combinazione eccentrica, di regole e paradigmi generali : non è il buco nella rete, ma il luogo in cui le maglie sono più fitte. A proposito della singolarità irripetibile, si potrebbe parlare di un surplus di legislazione. Per dirla con la fraseologia dell’epistemologo, le leggi che qualificano l’individuale non sono né "asserzioni universali" (valide cioè per tutti casi di un complesso omogeneo di fenomeni), né "asserzioni esistenziali" (rilevazioni di dati empirici al di fuori di qualsiasi regolarità o schema connettivo) : sono invece vere e proprie leggi singolari. Leggi, perché dotate di una struttura formale virtualmente comprensiva di una "specie" intera. Singolari, perché regole di un unico caso, non generalizzabile. Le leggi singolari raffigurano l’individuale con la precisione e la trasparenza riservate di norma a una "classe" logica : ma, si badi, una classe di un individuo solo. Chiamiamo moltitudine l’insieme di "individui sociali". Vi è una sorta di preziosa concatenazione semantica tra l’esistenza politica dei molti in quanto molti, l’antico rovello filosofico circa il principium individuationis, lo nozione marxiana di "individuo sociale" (decifrata, con l’ausilio di Simondon, come inestricabile impasto di contingente singolarità e realtà preindividuale). Questa concatenazione semantica permette di

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ridefinire alla radice natura e funzioni della sfera pubblica e dell’azione collettiva. Una ridefinizione che, va da sé, scardina il canone etico-politico basato sul "popolo" e la sovranità statale. Si potrebbe dire - con Marx, ma fuori e contro buona parte del marxismo - che la "sostanza di cose sperate" sta nel conferire il massimo risalto e il massimo valore all’esistenza irripetibile di ogni singolo membro della specie. Per paradossale che possa sembrare, quella di Marx dovrebbe venire intesa, oggi, come una teoria rigorosa, cioè realistica e complessa, dell’individuo. Dunque, come una teoria dell’individuazione.

Il collettivo della moltitudine Esaminiamo ora la seconda tesi di Simondon. Essa non ha precedenti di sorta. E’ controintuitiva, ossia viola radicati convincimenti del senso comune (come accade, del resto, a molti altri "predicati" concettuali della moltitudine). Di solito si reputa che l’individuo, non appena partecipi a un collettivo, debba dimettere almeno alcune delle sue caratteristiche propriamente individuali, rinunciando a certi variopinti e imperscrutabili segni distintivi. Nel collettivo, così sembra, la singolarità si stempera, è menomata, regredisce. Ebbene, a giudizio di Simondon, questa è una superstizione : epistemologicamente ottusa, eticamente sospetta. Una superstizione alimentata da coloro che, trascurando con disinvoltura la questione del processo di individuazione, presumono che il singolo sia un immediato punto di partenza. Se invece si ammette che l’individuo proviene dal suo opposto, cioè dall’universale indifferenziato, il problema del collettivo prende tutt’altro aspetto. Per Simondon, contrariamente a quanto asserisce un senso comune deforme, la vita di gruppo è l’occasione di una ulteriore e più complessa individuazione. Lungi dal regredire, la singolarità si affina e tocca il suo acme nell’agire di concerto, nella pluralità delle voci, insomma nella sfera pubblica. Il collettivo non lede, né attenua l’individuazione, ma la prosegue, potenziandola a dismisura. Questa prosecuzione riguarda la quota di realtà preindividuale che il primo processo di individuazione aveva lasciato irrisolta. Scrive Simondon : "Non si deve parlare di tendenze dell’individuo al gruppo ; perché queste tendenze non sono, a parlare propriamente, tendenze dell’individuo in quanto individuo ; esse sono la nonrisoluzione dei potenziali che hanno preceduto la genesi dell’individuo. L’essere che precede l’individuo non è stato individuato senza resto ; non è stato totalmente risolto in individuo e ambiente ; l’individuo ha conservato in sé un che di preindividuale, sicché tutti gli individui insieme hanno una sorta di sfondo non strutturato a partire dal quale una nuova individuazione può prodursi" (Simondon 1989 : 195, corsivo mio). E ancora : "Non già in quanto individui gli esseri sono correlati gli uni agli altri nel collettivo, ma in quanto soggetti, cioè in quanto esseri che hanno in sé un che di preindividuale" (ivi : 205). Il gruppo ha il suo fondamento nell’elemento preindividuale (si percepisce, si parla ecc.) presente in ogni soggetto. Ma, nel gruppo, la realtà preindividuale intrecciata alla singolarità si individua a sua volta, assumendo una fisionomia peculiare. L’istanza del collettivo è ancora un’istanza di individuazione : la posta in gioco consiste nell’imprimere una forma contingente e inconfondibile all’apeiron (indeterminato), ossia alla "realtà del possibile" che precede la singolarità ; all’universo anonimo della percezione sensoriale ; al "pensiero senza portatore" o general intellect. Il preindividuale, inamovibile in seno al soggetto isolato, può assumere però un aspetto singolarizzato nelle azioni e nelle emozioni dei molti. Così come in un quartetto il violoncellista, interagendo con gli altri artisti esecutori, coglie qualcosa del suo stesso spartito che fino ad allora gli era sfuggito. Ciascuno dei molti personalizza

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(parzialmente e provvisoriamente) la propria componente impersonale tramite le vicissitudini tipiche dell’esperienza pubblica. L’esposizione agli occhi degli altri, l’azione politica priva di garanzie, la dimestichezza con il possibile e l’imprevisto, l’amicizia e l’inimicizia, tutto ciò offre all’individuo il destro per appropriarsi in qualche misura dell’anonimo "si" da cui proviene, per trasformare in biografia inconfondibile il Gattungswesen, l’"esistenza generica" della specie. Contrariamente a quanto riteneva Heidegger, è solo nella sfera pubblica che si può passare dal "si" al "se stesso". L’individuazione di secondo grado, che Simondon chiama anche "individuazione collettiva" (un ossimoro affine a quello contenuto nella locuzione "individuo sociale"), è un tassello importante per pensare in modo adeguato la democrazia non rappresentativa. Poiché il collettivo è teatro di una accentuata singolarizzazione dell’esperienza, ovvero costituisce il luogo in cui può finalmente esplicarsi ciò che in ogni vita umana è incommensurabile e irripetibile, nulla di esso si presta a essere estrapolato o, peggio che mai, "delegato". Ma si badi : il collettivo della moltitudine, in quanto individuazione del general intellect e del fondo biologico della specie, è l’esatto contrario di qualsivoglia anarchismo ingenuo. Al suo confronto, è piuttosto il modello della rappresentanza politica, con tanto di volonté générale e "sovranità popolare", a figurare come una intollerabile (e talvolta feroce) semplificazione. Il collettivo della moltitudine non stringe patti, né trasferisce diritti al sovrano, perché è un collettivo di singolarità individuate : per esso, ripetiamolo ancora una volta, l’universale è una premessa, non già una promessa.

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Multitud y principio de individuación par Paolo Virno Mise en ligne décembre 2001 Traduction espagnole de Multitude et principe d’individuation, Multitudes 7 : décembre 2001, Majeure : Après Gênes, après New York Las formas de vida contemporáneas atestiguan la disolución del concepto de "pueblo" y de la renovada pertinencia del concepto de "multitud". Estrellas fijas del gran debate del siglo XVII, y, hallándose en el origen de una buena parte de nuestro léxico éticopolítico, estos dos conceptos se sitúan en las antípodas el uno del otro. El "pueblo" es de naturaleza centrípeta, converge en una voluntad general, es el interfaz o el reflejo del Estado ; la "multitud" es plural, huye de la unidad política, no firma pactos con el soberano, no porque no le relegue derechos, sino porque es reacia a la obediencia, porque tiene inclinación a ciertas formas de democracia no representativa. En la multitud, Hobbes verá el mayor peligro para el aparato del Estado ("Los ciudadanos, cuando se rebelan contra el estado, representan a la multitud contra el pueblo." Hobbes, 1652 : XI, I y XII, 8). Spinoza descubrirá precisamente ahí, en la multitud, la raíz de la libertad. Desde el siglo XVII, y casi sin excepciones, es el "pueblo" quien la obtiene y gestiona. La existencia política de las múltiples, en tanto que múltiples, fue apartada del horizonte de la modernidad : no sólo por los teóricos del Estado absolutista, sino también por Rousseau, por la tradición liberal y por el propio movimiento socialista. Sin embargo, hoy la multitud se desquita al caracterizar todos los aspectos de la vida social : los hábitos y la mentalidad del trabajo posfordista, los juegos de lenguaje, las pasiones y los afectos, las formas de concebir la acción colectiva. Cuando constatamos este desquite, es necesario evitar al menos dos o tres necedades. No es que la clase obrera se haya disipado con arrobo para dejar sitio a las "múltiples", sino más bien, y la cosa resulta mucho más complicada y mucho más interesante, que los obreros de hoy en día, permaneciendo obreros, no tienen la fisonomía del pueblo, pero son el ejemplo perfecto del modo de ser de la multitud. Además, afirmar que las "múltiples" caracterizan las formas de vida contemporánea, no tiene nada de idílico : la caracterizan tanto para bien como para mal, tanto en el servilismo como en el conflicto. Se trata de un modo de ser, diferente del modo de ser "popular", es cierto, pero, en sí, no desprovisto de ambivalencia, con una dosis de venenos específicos. La multitud no aparta con gesto de travieso la cuestión del universal, de lo que es común, compartido : la cuestión del Uno ; más bien la redefine por completo. Tenemos, para empezar, una inversión del orden de los factores : el pueblo tiende hacia el Uno, las "múltiples" se derivan del Uno. Para el pueblo, la universalidad es una promesa ; para las "múltiples", es una premisa. Cambia también la propia definición de lo que es común, de lo que se comparte. El Uno alrededor del cual gravita el pueblo es el Estado, el soberano, la voluntad general ; el Uno que la multitud tiene tras de sí es el lenguaje, el intelecto como recurso público e interpsíquico, las facultades genéricas de la especie. Si la multitud huye de la unidad del Estado, es solamente porque comunica con un Uno diferente, preliminar antes que concluso. Y es sobre esta correlación que hay que preguntarse más en profundidad. La aportación de Gilbert Simondon, filósofo muy querido por Deleuze, sobre esta cuestión es muy importante. Su reflexión trata de los procesos de individuación. La individuación, esto es, el paso del bagaje psicosomático genérico del animal humano a

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la configuración de una singularidad única es, quizá, la categoría que, más que ninguna otra, le es inherente a la multitud. Si prestamos atención a la categoría de pueblo, veremos que se refiere a una miríada de individuos no individualizados, es decir, comprendidos como sustancias simples o átomos solipsistas. Justo porque constituyen un punto de partida inmediato, antes que el resultado último de un proceso lleno de imprevistos, tales individuos tienen la necesidad de la unidad/universalidad que proporciona la estructura del Estado. Por el contrario, si hablamos de la multitud, ponemos precisamente el acento en la individuación, o en la derivación de cada una de las "múltiples" a partir de algo de unitario/universal. Simondon, al igual que, por otras razones, el psicólogo soviético Lev Semenovitch Vygotski y el antropólogo italiano Ernesto de Martino, han llamado la atención sobre parecida desviación. Para estos autores, la ontogénesis, es decir, las fases del desarrollo del "yo" [je] singular, es consciente de sí misma, es la philosophia prima, único análisis claro del ser y del devenir. Y la ontogénesis es philosofia prima precisamente porque coincide en todo y para todo con el "principio de individuación". La individuación permite modelar una relación Uno/múltiples diferente de la que se esbozaba un poco antes (diferente de la que identifica el Uno con el Estado). Se trata, así, de una categoría que contribuye a fundar la noción ético-política de multitud. Gaston Bachelard, epistemólogo entre los más grandes del siglo veinte, ha escrito que la física cuántica es un "sujeto gramatical" en relación al cual parece oportuno emplear los más heterogéneos predicados filosóficos : si a un problema singular se adapta bien un concepto filosófico, en otro puede convenir, por qué no, un plano de la lógica hegeliana o una noción extraída de la psicología gestaltista. Del mismo modo, la manera de ser de la multitud ha de calificarse con atributos que se encuentran en contextos muy diferentes, a veces incluso exclusivos entre ellos : Reparemos, por ejemplo, en la antropología filosófica de Gehlen (indigencia biológica del animal humano, falta de un "medio" [milieu] definido, pobreza de los instintos especializados ; en las páginas de Ser y Tiempo consagradas a la vida cotidiana (habladurías, curiosidad, equívoco, etc.) ; en la descripción de los diversos juegos de lenguaje efectuados por Wittgenstein en las Investigaciones filosóficas. Ejemplos todos discutibles. Por el contrario, incontestablemente, dos tesis de Simondon son absolutamente importantes en tanto que "predicados" del concepto de multitud : 1) el sujeto es una individuación siempre parcial e incompleta, consistente más bien en los rasgos cambiantes de aspectos pre-individuales y de aspectos efectivamente singulares ; 2) la experiencia colectiva, lejos de señalar su desintegración o eclipse, persigue y afina la individuación. Si olvidamos otras muchas consideraciones (incluida la cuestión, evidentemente central, de cómo se realiza la individuación, según Simondon) vale aquí la pena concentrarse en estas tesis, en tanto que contrarias a la intuición, e incluso escabrosas.

Pre-individual Volvamos al comienzo. La multitud es una red de individuos. El término "múltiples" indica un conjunto de singularidades contingentes. Estas singularidades no son, sin embargo, una circunstancia sin nombre, sino, por el contrario, son el resultado complejo de un proceso de individuación. Resulta evidente que el punto de partida de toda verdadera individuación es algo aún no individual. Lo que es único, no reproducible, pasajero, proviene, de hecho, de lo que es más indiferenciado y genérico. Las características particulares de la individualidad arraigan en un conjunto de paradigmas universales. Ya hablar de principium individuationis significa postular una inherencia extremadamente sólida entre lo singular, y una forma u otra de potencia anónima. Lo

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individual es tal, no porque se sostenga en el límite de lo que es potente, como un zombie exangüe y rencoroso, sino porque es potencia individuada ; y es potencia individuada porque es tan sólo una de las individuaciones posibles de la potencia. Para establecer lo que ha precedido a la individuación, Simondon emplea la expresión, bien poco críptica, de realidad pre-individual. A cada una de las "múltiples" le es familiar este polo antitético. Pero, ¿qué es exactamente lo pre-individual ? Simondon escribe : « Se podría llamar naturaleza a esta realidad pre-individual que el individuo lleva consigo, tratando de encontrar en la palabra naturaleza el significado que le daban los filósofos presocráticos : los Fisiólogos jónicos encontraban ahí el origen de todas las especies de ser, anterior a la individuación : la naturaleza es realidad de lo posible que, bajo las especies de este apeirón del que habla Anaximandro, hace surgir toda forma individuada ; la Naturaleza no es lo contrario del Hombre, sino la primera fase del ser, siendo la segunda la oposición entre el individuo y el entorno [milieu] ». Naturaleza, apeirón (indeterminado), realidad de lo posible, ser aún desprovisto de fases ; podríamos continuar con diferentes variaciones sobre el tema. Sin embargo, aquí parece oportuno proponer una definición autónoma de lo "pre-individual", no contradictoria respecto de la de Simondon, sino independiente de ella. No es difícil reconocer que, bajo la misma etiqueta, existen contextos y niveles muy diferentes. Lo pre-individual es, en primer lugar, la percepción sensorial, la motricidad, el fondo biológico de la especie. Es Merleau-Ponty, en su Phénoménologie de la perception, quien observa que « Yo no tengo más consciencia de ser el verdadero sujeto de mi sensación que [la que tengo] de mi nacimiento o de mi muerte » (Merleau-Ponty, 1945, p.249). Y también : « La visión, el oído, tocar, con sus campos que son anteriores y permanecen extraños a mi vida personal » (Merleau-Ponty, 1945, p. 399). La sensación escapa a la descripción en primera persona : cuando percibo, no es un individuo singular quien percibe, sino la especie como tal. A la motricidad y a la sensibilidad se le añaden tan solo el pronombre anónimo "se" : se ve, se oye, se experimenta placer o dolor. Es cierto que la percepción tiene a veces una tonalidad autorreflexiva : basta con pensar en tocar, en ese tocar que es también siempre ser tocado por el objeto que se manipula. Quien percibe se percibe a sí mismo avanzando hacia la cosa. Pero se trata de una autorreferencia sin individuación. Es la especie quien se auto-percibe de la conducta, y no una singularidad autoconsciente. Nos equivocamos si identificamos, si vemos relación entre dos conceptos independientes, si mantenemos que ahí en donde hay auto-reflexión podemos también constatar una individuación ; o, inversamente, que si no hay individuación ya no podemos hablar de autorreflexión. Lo pre-individual, en un nivel más determinado, es la lengua histórico-natural de su propia comunidad de pertenencia. La lengua es inherente a todos los locutores de la comunidad dada, como lo es un "medio" [milieu] zoológico o un líquido amniótico, a un tiempo envolvente e indiferenciado. La comunicación lingüística es intersubjetiva y existe mucho antes de que se formen verdaderos "sujetos" propiamente dichos : está en todos y en nadie, para ella también reina lo anónimo "se" : se habla. Es sobre todo Vygotski quien ha señalado el carácter pre-individual, o inmediatamente social, de la locución humana : el uso de la palabra, primeramente es inter-psíquico, es decir, público, compartido, impersonal. Contrariamente a lo que pensaba Piaget, no se trata de evadirse de una condición original autista (es decir, hiperindividual, tomando la vía de una socialización progresiva ; al contrario, lo esencial de la ontogénesis consiste, para Vygotski, en el paso de una socialidad completa a la individuación del ser hablante : « el movimiento real del proceso de desarrollo del pensamiento del niño no se realiza de lo individual a lo socializado, sino de lo social a lo individual » (Vygotski, 1985). El reconocimiento del carácter pre-individual ("inter-psíquico") de la lengua posibilita que de algún modo

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Vigotski se anticipe a Wittgenstein en la refutación de "un lenguaje privado", del tipo que sea. Por otro lado, y es lo que aquí más importa, eso le permite inscribirse en la corta lista de pensadores que han tratado la cuestión del principium individuationis. Tanto para Vygotski como para Simondon, la "individuación psíquica" (es decir, la construcción del Yo [Moi] consciente) sobreviene en el terreno lingüístico, y no en el de la percepción. En otros términos : en tanto que lo pre-individual inherente a la sensación parece destinado a permanecer por siempre tal cual es, lo pre-individual que corresponde a la lengua es susceptible de una diferenciación interna que desemboca en la individualidad. No se tratará, aquí, de examinar de manera crítica el modo en que para Vygoski y para Simondon se realiza la singularización del ser hablante ; y menos aún de añadir hipótesis suplementaria alguna. Lo importante es únicamente establecer la diferencia entre el dominio perceptivo (bagaje biológico sin individuación) y el dominio lingüístico (bagaje biológico como base de la individuación). Finalmente, lo preindividual es la relación de producción dominante. En el capitalismo desarrollado, el proceso de trabajo requiere las cualidades de trabajo más universales : la percepción, el lenguaje, la memoria, los afectos. Roles y funciones, en el marco del posfordismo, coinciden profundamente con la "existencia genérica", con el Gattungswesen del que hablan Feuerbach y el Marx de los Manuscritos económico-filosóficos a propósito de las facultades más elementales del género humano. El conjunto de las fuerzas productivas es, ciertamente, pre-individual. No obstante, el pensamiento tiene una importancia particular entre esas fuerzas ; atención : el pensamiento objetivo, sin relación con tal o tal "yo" [moi] psicológico, el pensamiento del cual la verdad no depende del asentimiento de los seres singulares. Respecto a esto, Gottlob Frege ha utilizado una fórmula quizá poco hábil, pero que no carece de eficacia : "pensamiento sin soporte" (cf. Frege, 1918). Por el contrario, Marx ha forjado la célebre y controvertida expresión de General intellect, intelecto general : el General intellect (es decir, el saber abstracto, la ciencia, el conocimiento impersonal) es también el "principal pilar de la producción de riqueza", ahí en donde por riqueza debemos entender aquí y ahora, plusvalía absoluta y relativa. El pensamiento sin soporte o General intellect deja su huella en el "proceso vital de la propia sociedad" (Marx, 1857-1858), al instaurar jerarquías y relaciones de poder. Resumiendo : es una realidad pre-individual históricamente cualificada. Sobre este punto no vale la pena insistir más ; únicamente retener que a lo pre-individual perceptivo y a lo pre-individual lingüístico es necesario añadirle un pre-individual histórico.

Sujeto anfibio El sujeto no coincide con el individuo individuado sino contiene en sí, siempre, una cierta proporción irreductible de realidad pre-individual ; es un precipitado inestable, algo compuesto. Es ésta la primera de las dos tesis de Simondon sobre la cual quisiera llamar la atención. "Existe en los seres individuados una cierta carga de indeterminado, esto es, de realidad pre-individual, que ha pasado a través de la operación de individuación sin ser efectivamente individuada. Podemos llamar naturaleza a esta "carga de indeterminado" (Simondon, 1989, p. 210). Es completamente falso reducir el sujeto a lo que es, en él, singular : "el nombre de individuo es abusivamente dado a una realidad mucho más compleja, la del sujeto completo, que comporta en él, además de la realidad individuada, un aspecto inindividuado, pre-individual, natural. " (Simondon, 1989, p. 204). Lo pre-individual es percibido ante todo como una suerte de pasado no resuelto : la realidad de lo posible, de donde surge la singularidad bien definida, persiste aún en los límites de esta última : la diacronía no excluye la concomitancia. Por otro

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lado, lo pre-individual, que es el tejido íntimo del sujeto, constituye el medio [milieu] del individuo individuado. El contexto (perceptivo, lingüístico o histórico) en el cual se inscribe la experiencia del individuo singular es, en efecto, una componente intrínseca (si se quiere, interior) del sujeto. El sujeto no es un entorno [milieu], sino que es, para una cierta parte de él mismo (la no individuada) su entorno [milieu]. De Locke a Fodor, los filósofos que desatienden la realidad pre-individual del sujeto, ignorando, así, lo que en él es medio [milieu], están avocados a no encontrar vía de tránsito entre "interior" y "exterior", entre el Yo [Moi] y el mundo. De ese modo se entregan al error que denuncia Simondon : asimilar el sujeto al individuo individuado. La noción de subjetividad es anfibia : el "Yo hablo" cohabita con el "se habla", lo que no podemos reproducir está estrechamente mezclado con lo recursivo y con lo serial. Más precisamente : en el tejido del sujeto se encuentran, como partes integrantes, la tonalidad anónima de lo que es percibido (la sensación en tanto que sensación de la especie), el carácter inmediatamente inter-psíquico o "público" de la lengua materna, la participación en el General intellect impersonal. La coexistencia de lo pre-individual y de lo individuado en el seno del sujeto está mediado por los afectos ; emociones y pasiones señalan la integración provisional de los dos aspectos, pero también su eventual desapego : no faltan crisis, ni recesiones ni catástrofes. Hay miedo, pánico o angustia cuando no se sabe componer los aspectos pre-individuales de su propia experiencia con los aspectos individuados : "En la angustia, el sujeto se siente existir como problema traído por él mismo, y siente su división en naturaleza pre-individual y en ser individuado. El ser individuado es aquí y ahora, y este aquí y este ahora impiden a una infinidad de otros aquí y ahora venir a la luz ; el sujeto toma consciencia de él mismo como naturaleza, como indeterminado (apeirón) que nunca podrá actualizarse hic et nunc, que no podrá jamás vivir" (Simondon, 1989, p. 111). Hay que constatar aquí una extraordinaria coincidencia objetiva entre el análisis de Simondon y el diagnóstico sobre los "apocalipsis culturales" propuesto por Ernesto de Martino. El punto crucial, tanto para de Martino como para Simondon, reside en el hecho de que la ontogénesis, es decir, la individuación, no está garantizada de una vez por todas : puede regresar sobre sus pasos, fragilizarse, estallar. El "Yo pienso", además del hecho de que posea una génesis azarosa, es parcialmente retráctil, está desbordado por lo que le supera. Para de Martino, lo pre-individual parece, a veces, inundar la singularidad : esta última es como aspirada en el anonimato del "se". Otras veces, de manera opuesta y simétrica, nos fuerza en vano a reducir todos los aspectos pre-individuales de nuestra experiencia a la singularidad puntual. Las dos patologías -"catástrofes de la frontera yo-mundo en las dos modalidades de la irrupción del mundo dentro del ser-ahí y del reflujo del ser-ahí en el mundo" (E. de Martino, 1977) -son solamente los extremos de una oscilación que, bajo formas más contenidas es, sin embargo, constante y no suprimible. Con demasiada frecuencia el pensamiento crítico del siglo veinte (pensamos en particular en la escuela de Francfort) ha entonado una cantinela melancólica acerca del supuesto alejamiento del individuo con respecto a las fuerzas productivas y sociales, así como con respecto a la potencia inherente a las facultades universales de la especie (lenguaje, pensamiento, etc.). La desgracia del ser singular ha sido atribuida precisamente a este alejamiento o a esta separación. Una idea sugestiva, pero falsa. Las "pasiones tristes", por decirlo con Spinoza, surgen más bien de la proximidad máxima, e incluso de la simbiosis, entre el individuo individuado y lo pre-individual, ahí en donde esta simbiosis se presenta como desequilibrio y desgarro. Para bien y para mal, la multitud muestra la mezcla inextricable de "yo" [je] y de "se", singularidad no reproducible y anónima de la especie, individuación y realidad pre-individual. Para bien : al tener cada una de las "múltiples" tras de sí el universal, a modo de premisa o de antecedente, no tiene la

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necesidad de esta universalidad postiza que constituye el Estado. Para mal : cada una de las "múltiples", en tanto que sujeto anfibio, puede siempre distinguir una amenaza en su propia realidad pre-individual, o al menos una causa de inseguridad. El concepto éticopolítico de multitud se funda tanto sobre el principio de individuación como sobre su incomplitud constitutiva. Marx, Simondon, Vygotski : el concepto de "individuo social". En un pasaje célebre de losGrundrisse (que se titula "Fragmento sobre las máquinas"), Marx designa al "individuo social" como al verdadero protagonista de cualquier transformación radical del estado de las cosas presentes (cf. Marx, 1857-1858). En un primer momento, el "individuo social" se parece a un oximoro coqueto, a la unidad desaliñada de los contrarios ; en suma, a un manierismo hegeliano. Es posible, por el contrario, tomar este concepto al pie de la letra, hasta convertirlo en un instrumento de precisión, para hacer que resurgan formas de ser, las inclinaciones y las formas de vida contemporáneas. Pero ello es posible, en buena medida, justamente gracias a la reflexión de Simondon y de Vytgoski sobre el principio de individuación. En el adjetivo "social" hay que reconocer los trazos de esta realidad pre-individual que, según Simondon, pertenece a todos los sujetos. Como en el sustantivo "individuo", reconocemos la singularización advenida de cada componente de la multitud actual. Cuando Marx habla de "individuo social", se refiere a la intrincación entre "existencia genérica" ( Gattungswesen) y experiencia no reproducible, que es la marca de la subjetividad. No es por azar que el "individuo social" aparece en las mismas páginas de los Grundrisse en las que se introduce la noción de Generall intellect, de un "intelecto general" que constituye la premisa universal (o pre-individual), así como la partitura común para los trabajos y los días de las "múltiples". La parte social del "individuo social" es, sin ninguna duda, el general intellect , o bien, con Frege, el " pensamiento sin soporte ". Sin embargo, no sólo : consiste también en el carácter de conjunto inter-psíquico, es decir, público, de la comunicación humana, puesto de relieve muy claramente por Vygotski. Además, si traducimos correctamente "social" por "pre-individual", tendremos que reconocer que el individuo individuado del que habla Marx se perfila también sobre un fondo de percepción sensorial anónimo. En sentido fuerte son sociales tanto el conjunto de las fuerzas productivas históricamente definidas como el bagaje biológico de la especie. No se trata de una conjunción extrínseca, o de una simple superposición : el capitalismo plenamente desarrollado implica la plena coincidencia entre las fuerzas productivas y los dos otros tipos de realidad pre-individual (el "se percibe" y el "se habla"). El concepto de fuerza de trabajo permite ver esta fusión perfecta : en tanto que capacidad física genérica y capacidad intelectual-lingüística de producir, la fuerza de trabajo es, decididamente, una determinación histórica, pero contiene en sí misma, completamente, ese apeirón, esa naturaleza no individuada de la que habla, así como el carácter impersonal de la lengua, que Vygotski ilustra en varios lugares.El "individuosocial" marca la época en la cual la cohabitación entre singular y pre-individual deja de ser una hipótesis eurística, o un presupuesto oculto, para devenir fenómeno empírico, verdad arrojada a la superficie, estado de hecho pragmático. Se podría decir : la antropogénesis, esto es, la constitución misma del animal humano, llega a manifestarse en el plano histórico-social, deviene finalmente visible, al descubierto, conoce una suerte de revelación materialista. Lo que se llama "las condiciones trascendentales de la experiencia", en lugar de permanecer ocultas tras el telón, se presentan en primer plano, y, lo que es más importante, devienen ellas también objetos de experiencia inmediata. Una última observación, aparentemente marginal. El "individuo social" incorpora las fuerzas productivas universales, no obstante declinarlas según modalidades

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diferenciadas y contingentes ; al contrario, está efectivamente individuado justo porque les da una configuración singular al convertirlas en una constelación muy especial de conocimientos y de afectos. Es por esto que, toda tentativa de circunscribir al individuo por la negativa, fracasa : no es la amplitudde lo que en él se excluye lo que llega a caracterizarlo, sino la intensidad de lo que converge. Y no se trata de un positividad accidental, desajustada y, finalmente, inefable (dicho sea de paso, nada es más monótono y menos individual que lo inefable). La individuación se acompaña de la especificación progresiva, así como por la especificación excéntrica de reglas y de paradigmas generales : no es el agujero de la red, sino el punto en que las mallas están más apretadas. A propósito de la singularidad no reproducible, podría hablarse de un plusvalor de legislación. Para decirlo con la fraseología de la epistemología, las leyes que cualifican lo individual no son ni "aserciones universales" (es decir, válidas para todos los casos de un conjunto homogéneo de fenómenos) ni "aserciones existenciales" (revelaciones de datos empíricos fuera de cualquier realidad o de un esquema conectivo) ; se trata más bien de verdaderas leyes singulares. Leyes, porque dotadas de una estructura formal comprenden virtualmente una "especie" entera ; singulares, en tanto reglas de un solo caso, no generalizables. Las leyes singulares representan lo individual con la precisión y la transparencia en principio reservadas a una clase "lógica" ; pero, atención, una clase de un solo individuo. Llamamos multitud al conjunto de los "individuos sociales". Hay una suerte de encadenamiento semántico precioso entre la existencia política de las múltiples en tanto que múltiples, la vieja obsesión filosófica en torno alprincipium individuationis y la noción marxiana de "individuo social" (descifrada, con ayuda de Simondon, como la mezcla inextricable de singularidad contingente y de realidad pre-individual.) Este encadenamiento semántico permite redefinir, desde su base, la naturaleza y las funciones de la esfera pública y de la acción colectiva. Una redefinición que echa abajo el canon ético-político basado en el "pueblo" y en la soberanía estática. Podría decirse -con Marx, pero lejos, y en oposición a una buena parte del marxismo- que la "sustancia de las cosas esperadas" se encuentra en el hecho de conceder el máximo de relieve y de valor a la existencia no reproducible de cada miembro singular de la especie. Por paradójico que eso pueda parecer, la teoría de Marx debería hoy día comprenderse como una teoría rigurosa, es decir, realista y compleja, del individuo. Así, como una teoría de laindividuación .

Lo colectivo de la multitud Examinemos ahora la segunda tesis de Simondon. No tiene precedentes. Va al encuentro de la intuición, viola las convicciones arraigadas del sentido común (como, por lo demás, es el caso de muchos otros "predicados" conceptuales de la multitud). Habitualmente se considera que el individuo, desde el momento en que participa en un colectivo, debe de zafarse de algunas de sus características individuales, renunciando a ciertos signos distintivos que en él se entremezclan, y que son impenetrables. Parece que en lo colectivo la singularidad se diluye, que es hándicap, regresión. Pues bien, según Simondon, eso es una superstición : obtusa desde el punto de vista de la epistemología, y equívoca desde el punto de vista de la ética. Una superstición alimentada por quienes, tratando con desenvoltura elprocessus de individuación, suponen que el individuo es un punto de partida inmediato. Si, al contrario, admitimos que el individuo proviene de su opuesto, es decir, del universal indiferenciado, el problema de lo colectivo toma otro aspecto. Para Simondon, contrariamente a lo que afirma un sentido común disforme, la vida de grupo es el momento de una ulterior y más compleja individuación. Lejos de ser regresiva, la singularidad se pule y alcanza su

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apogeo en el actuar conjuntamente, en la pluralidad de voces ; en una palabra, en la esfera pública. Lo colectivo no perjudica, no atenúa la individuación, sino que la persigue, aumentando desmesuradamente su potencia. Esta continuación concierne a la parte de realidad pre-individual que el primer proceso de individuación no había logrado resolver. Simondon escribe : "No debemos hablar de tendencias del individuo que le llevan hacia el grupo, ya que hablar de estas tendencias no es hablar propiamente de tendencias del individuo en tanto que individuo : ellas son la no-resolución de los potenciales que han precedido a la génesis del individuo. El ser que precede al individuo no ha sido individuado sin más, no ha sido totalmente resuelto en individuo y medio [ milieu] ; el individuo ha conservado con él lo pre-individual, y todo el conjunto de individuos tiene también una especie de fondo no estructurado a partir del cual una nueva individuación puede producirse" (Simondon, 1989, p.193). Y más adelante : "No es cierto que, en tanto individuos, los seres estén atados los unos a los otros en lo colectivo, sino en tanto que sujetos, es decir, en tanto que seres que contienen lo preindividual" (Simondon, 1989, p. 205). El fundamento de grupo es el elemento preindividual (se percibe,se habla, etc.) presente en cada sujeto. Pero en el grupo, la realidad pre-individual, intrincada en la singularidad, se individualiza, mostrando, a su vez, una particular fisionomía. La instancia de lo colectivo es aún una instancia de individuación : lo que está en juego es dar una forma contingente e imposible de confundir con el apeirón (lo indeterminado), es decir, con la "realidad de lo posible" que precede a la singularidad ; dar forma al universo anónimo de la percepción sensorial, al "pensamiento sin soporte " o general intellect. Lo pre-individual, inamovible en el interior del sujeto aislado, puede adquirir un aspecto singularizado en las acciones y en las emociones de las múltiples : Como un violoncelista que, interactuando dentro de un cuarteto con el resto de intérpretes, encuentra algo de su partitura que justo ahí se le había escapado. Cada una de las múltiples personaliza (parcial y provisoriamente) su propia componente impersonal a través de las vicisitudes características de la experiencia pública. Exponerse a la mirada de los otros, la acción política sin garantías, la familiaridad con lo posible y con lo imprevisto, la amistad y la enemistad, todo eso alerta al individuo y le permite, en cierta medida, apropiarse de este anónimo "on" del que proviene, para transformar el Gattungswesen, la "existencia genérica de la especie", en una biografía absolutamente particular. Al contrario de lo que sostenía Heidegger, es solamente en la esfera pública que podemos pasar del "se" al "sí-mismo". La individuación de segundo grado, que Simondon llama también la "individuación colectiva" (un oximoro próximo a aquél que contiene la locución "individuo social"), es una pieza importante para pensar de manera adecuada la democracia no representativa. Puesto que lo colectivo es el teatro de una singularización acentuada de la experiencia, o constituye el lugar en el cual puede finalmente explicarse lo que en una vida humana resulta inconmensurable e imposible de reproducir, nada de eso se presta a ser extrapolado, y, menos que nunca, "delegado". Pero cuidado : lo colectivo de la multitud, en tanto que individuación del General intellect y del fondo biológico de la especie, es exactamente lo contrario de cualquier anarquismo ingenuo. Frente a él, es más bien el modelo de la representación política, con su voluntad general y su "soberanía popular", el que se convierte en intolerable (y a veces feroz) simplificación. Lo colectivo de la multitud no delega derechos al soberano, no ya que no pacte porque se trata de un colectivo de singularidades individuadas : para él, repitámoslo, lo universal es una premisa , y no una promesa . BIBLIOGRAFIA

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