Gilles Deleuze Fala Da Filosofia

  • November 2019
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GILLES DELEUZE FALA DA FILOSOFIA Entrevista feita por Jeannette Colombel

La Quinzaine littéraire, nº 68, 1-5 de março de 1969, p. 18-19.

- O senhor acaba de publicar dois livros, Diferença e repetição e Espinosa e o problema da expressão. Um livro mais recente ainda: Lógica do sentido deve aparecer muito em breve. Quem fala nesses livros?

G.D. – Toda vez que se escreve, a gente faz com que algum outro fale. E em primeiro lugar, a gente faz com que fale uma certa forma. No mundo clássico, por exemplo, quem fala são indivíduos. O mundo clássico está inteiramente fundado na forma de individualidade; o indivíduo é aí coextensivo ao ser (vê-se bem isso na posição de Deus como ser soberanamente individuado). No mundo romântico, são personagens que falam, e isso é muito diferente: a pessoa é aí definida como coextensiva à representação. Expõem-se novos valores de linguagem e de vida. A espontaneidade de hoje talvez escape ao indivíduo, assim como à pessoa; não simplesmente por causa de potências anônimas. Mantiveram-nos

durante muito tempo na alternativa: ou sereis indivíduos e pessoas, ou vos reunireis a um fundo anônimo indiferenciado. Nós descobrimos, todavia, um mundo de singularidades pré-individuais, impessoais. Elas não se reduzem aos indivíduos e nem às pessoas, e nem a um fundo sem diferença. São singularidades móveis, ladras e voadoras, que passam de um a outro, que arrombam, que formam anarquias coroadas, que habitam um espaço nômade. Há uma grande diferença entre repartir um espaço fixo entre indivíduos sedentários, segundo demarcações e cercados, e repartir singularidades num espaço aberto sem cercados e nem propriedade. O poeta Ferlinghetti fala da quarta pessoa do singular: é ela que se pode tentar fazer com que fale. - É assim que o senhor considera os filósofos que interpreta, como singularidades em um espaço aberto? Até há pouco, estive quase sempre propensa a aproximar seus esclarecimentos à iluminação que um diretor artístico contemporâneo dá de um texto escrito. Contudo, em Diferença e repetição a relação é deslocada: o senhor não é mais intérprete, mas criador. A comparação é válida sempre? Ou o papel da história da filosofia é diferente? Ela é essa “colagem”, que o senhor deseja e que renova a paisagem, ou ela é ainda a “citação” integrada ao texto?

G.D. – Sim, os filósofos têm quase sempre um difícil problema com a história da filosofia. Isso é terrível, não se sai facilmente da história da filosofia. Substituí-la, como a senhora diz, por uma espécie de encenação, talvez seja uma boa maneira de resolver o problema. Uma encenação, isso quer dizer que o texto escrito será aclarado por valores totalmente distintos, valores não textuais (pelo menos no sentido ordinário): substituir a história da filosofia por um teatro da filosofia, é possível. Em relação ao livro sobre a diferença, a senhora diz que procurei uma outra técnica, mais próxima da colagem que do teatro. Uma espécie de técnica de colagem, ou mesmo de

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seriegêneseNT (com repetição implicando pequenas variantes), como se vê na Pop’Art. Mas, a esse respeito, a senhora diz que não fui completamente bem sucedido. Creio que vou um pouco mais longe no meu livro sobre a lógica do sentido. - Mais especialmente, toca-me a amizade com que o senhor trata os autores que o senhor nos leva a encontrar. Às vezes, esse acolhimento pareceu-me até mesmo excessivamente favorável: quando o senhor silencia os aspectos conservadores do pensamento de Bergson, por exemplo. Em contraposição, o senhor é impiedoso com Hegel. Por que essa recusa?

G.D. – Se não se admira alguma coisa, se não se ama alguma coisa, não há razão alguma para se escrever sobre ela. Espinosa ou Nietzsche são filósofos cuja potência crítica e destruidora é inigualável, mas essa potência brota sempre de uma afirmação, de uma alegria, de um culto da afirmação e da alegria, de uma exigência da vida contra aqueles que a mutilam e a mortificam. Para mim, é a própria filosofia. A senhora me interroga sobre dois outros filósofos. Justamente em virtude dos critérios precedentes de encenação ou de colagem, parece-me permitido destacar de uma filosofia em seu conjunto conservadora certas singularidades que não o são: é este o caso do bergsonismo e sua imagem da vida, da liberdade ou da doença mental. Mas por que não faço isso no caso de Hegel? É necessário que alguém desempenhe o papel de traidor. A empreitada de “carregar” a vida, de sobrecarregá-la com todos os fardos, de reconcilia-la com o Estado e com a religião, de nela inscrever a morte, a empreitada monstruosa de submete-la ao negativo, a empreitada do ressentimento e da má consciência se encarnam filosoficamente em Hegel. Com a dialética do negativo e da

NT [“sérigénie” : seriegênese, no sentido de geração de séries. Evitei serigênese,

mais curto, porque o antepositivo seri- remete diretamente à idéia de seriedade, não à de série].

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contradição, ele inspirou naturalmente todas as linguagens da traição, tanto à direita quanto à esquerda (teologia, espiritualismo, tecnocracia, burocracia etc.). - Esse ódio ao negativo o leva a mostrar a diferença e a contradição como antagonistas. Sem dúvida, a oposição simétrica dos contrários na dialética hegeliana lhe dá razão, mas essa relação é a mesma para Marx? Por que o senhor fala sempre de maneira tão-somente alusiva? Não se poderia, a propósito de Marx, fazer uma análise equivalente àquela, tão enriquecedora, que o senhor faz a propósito da relação conflito-diferenças em Freud, desmascarando as falsas simetrias: sadismo-masoquismo, instintos de morte e pulsão?

G.D. – Tem razão, mas essa liberação de Marx em face de Hegel, essa reapropriação de Marx, essa descoberta dos mecanismos diferençais e afirmativos em Marx, não é o que Althusser opera admiravelmente? Em todo caso, sob as falsas opiniões, sob as falsas oposições, são descobertos sistemas muito mais explosivos, conjuntos dissimétricos em desequilíbrio (por exemplo, fetiches econômicos ou psicanalíticos). - Uma última questão (em relação ao “não-dito” sobre Marx): vejo, evidentemente, o liame entre sua filosofia e o jogo. Concebo sua relação com a contestação. Mas pode ter ela uma dimensão política e contribuir para uma prática revolucionária?

G.D. – Não sei, é uma questão embaraçosa. Em primeiro lugar, há relações de amizade ou de amor que não esperam a revolução, que não a prefiguram, embora sejam revolucionárias a seu modo: elas têm em si uma força de contestação própria à vida, como os beatniks. Neste caso, há mais budismo zen do que marxismo, mas há muitas coisas eficazes e explosivas no zen. Quanto às relações sociais, supomos que a filosofia, em tal ou qual época, tenha por tarefa fazer com que fale uma tal instância: o indivíduo no mundo clássico, a pessoa no mundo romântico, ou então as singularidades no mundo moderno. A filosofia não faz com que essas instâncias existam, 4

ela faz com que elas falem. Mas elas existem e são produzidas em uma história, elas próprias dependem de relações sociais. Então, vamos lá! A revolução seria a transformação dessas relações, correspondendo ao desenvolvimento de tal ou qual instância (como a do indivíduo burguês na revolução “clássica” de 1789). O problema atual da revolução, de uma revolução sem burocracia, seria o das novas relações sociais em que entram as singularidades, minorias ativas, no espaço nômade sem propriedade e nem cercados.

Tradução de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi

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