Gerson Trombetta Upf

  • October 2019
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ENTRE FOTOGRAMAS, SONS E CONCEITOS: AMOSTRAS DE FILOSOFIA NO CINEMA E NA MÚSICA Gerson Luís Trombetta* [email protected]

Introdução

O que nos motiva neste artigo é a possibilidade de apresentar um recorte dentro das relações entre arte (especificamente o cinema e a música), ciência e filosofia. Ainda que existam especificidades claras em cada uma dessas expressões do pensamento humano, interessa-nos enfocar mais os momentos de “partilha”, os momentos em que as fronteiras se tornam mais flexíveis e nos vemos diante de uma riqueza de conteúdo que atinge não somente a nossa capacidade de articular conceitos, fatos e experiências, mas também nossa capacidade de perceber e sentir. Neste particular, compartilhamos com a posição de Nelson Goodman que dilui qualquer hierarquia entre as diversas formas de conhecimento. Os traços gerais de sua epistemologia servirão de parâmetro tanto para sustentar o valor cognitivo comportado pela arte como para ver nela a exemplificação e a compreensão de conceitos e perspectivas filosóficas. Para realizar esse propósito, organizamos o trabalho em cinco momentos. Inicialmente (1) apresentamos os aspectos centrais da epistemologia de Goodman, dando destaque à visão construtivista e à idéia de que, no território do conhecimento, o que podemos dispor são versões simbólicas do mundo que adotamos conforme seu potencial explicativo. Em seguida (2), descrevemos rapidamente como a arte e o discurso científico (e por que não a própria filosofia) são sistemas simbólicos que realizam a mesma função, o que exigirá (3) um detalhamento de como a arte realiza sua função simbólica, *

Doutor em Filosofia; professor do Curso de Filosofia e do Programa de PósGraduação em História da Universidade de Passo Fundo

2

destacando especialmente o conceito de exemplificação. No quarto momento (4), pontuamos brevemente as características mais cruciais dos sistemas simbólicos estéticos que garantem o valor da arte no mesmo patamar dos demais discursos. (científico e filosófico) Por fim, a título de “experimentar” a teoria delineada, apresentamos uma breve análise do filme Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, enfatizando sua trilha sonora e como os efeitos conseguidos na relação entre fotogramas e sons exemplificam conceitos filosóficos, de modo especial os de racionalidade e irracionalidade. A idéia aqui não é, evidentemente, esgotar uma interpretação do filme, mas tão somente ressaltar como fotogramas e sons deixam ver e ouvir propriedades dos conceitos filosóficos.

1. Compreender é construir mundos simbólicos

Nelson Goodman é um dos pensadores mais originais e importantes para compreender as experiências que fazemos com a arte. Nascido em 1906, no estado americano de Massachussetts e falecido em 1998, Goodman acumulou uma rica biografia ligada às artes que incluiu desde uma intensa produção teórica sobre o assunto até a direção de uma galeria (Walker-Goodman Art Gallery) onde se revelou um bem sucedido negociante. Em Harvard fundou o Project Zero voltado à compreensão do pensamento criativo nas artes, nas humanidades e nas ciências, tanto no campo individual quanto institucional1.

É

um

projeto

alimentado

pela

idéia

de

que

o

conhecimento das artes é uma importante atividade cognitiva. Em Harvard também fundou e dirigiu o Harvard Dance Center, voltado à criação de peças de dança. No campo da produção teórica destacamse as seguintes obras: The structure of appearance (1951), Fact, Fiction and Forecast (1954), Languages of art (1968), Problems and 1

Detalhes sobre o Project Zero //www.pz.harvard.edu/index.htm.

podem

ser

encontrados

no

site

http:

3

projects (1972), Ways of worldmaking (1978) e Of mind and other matters (1984). Somam-se a esses livros inúmeros artigos que abarcam vasta gama de temáticas filosóficas. A compreensão da especificidade da arte, do seu valor ou mérito estético, segundo Goodman, depende de uma complexa epistemologia, cuja tese mais geral é a do construtivismo. O construtivismo sustenta que tudo o que conhecemos do mundo são versões, o que inviabiliza radicalmente a possibilidade de garantir a existência e a descrição de um mundo fora de nós2. Se existe, esse mundo fora de nós é tão somente inacessível. Portanto, nem o modo como o mundo é dado, nem nenhum modo de ver ou figurar ou descrever nos conduz ao modo como o mundo é. (GOODMAN, 1972) O que existe são mundos construídos, versões-de-mundo que nos permitem viver de forma significante. O que resulta disso é que nós não podemos chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando sobre o modo mais realístico de representá-lo, pois, os modos de ver e figurar são muitos e variados; alguns são fortes, efetivos, úteis, intrigantes ou sensíveis; outros são fracos, cômicos, desanimados, banais ou confusos. (GOODMAN, 1972) Uma versãode-mundo ou construção-de-mundo é um sistema que dá forma e significatividade ao que julgamos ser nossa visão de um mundo separado de nós. Para Goodman, se o que temos são versões, não vale a pena falar de um mundo em si. O que importa é por em discussão as versões, suas vantagens e desvantagens e seus critérios de validade. Não

podemos

encontrar

propriedades

puramente

objetivas,

independentes dessas construções. Nesse particular, a posição de Goodman compartilha a noção kantiana que não encontramos no 2

Goodman propõe uma crítica radical à teoria pictórica da linguagem do primeiro Wittgenstein. Segundo ele, nenhuma teoria defendida em anos recentes por filósofos do primeiro time parece mais obviamente errada do que a teoria pictórica da linguagem (GOODMAN, 1972). O problema de tal teoria residiria exatamente no postulado de um mundo cujo acesso seria garantido pela estrutura lógica da linguagem.

4

mundo senão aquilo que antes lá tivemos posto. Há uma diferença, porém: Goodman não postula a existência de uma coisa em si, uma realidade, um mundo inacessível ao nosso conhecimento. Pensar ou descrever um mundo só tem sentido quando tal gesto é relativizado a uma forma de tal descrição. O resultado disso é que não podemos chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando sobre o mais fiel ou realístico modo de vê-lo. As versões são construídas de acordo com nossas necessidades, ou seja, de acordo com a dinâmica dos problemas, demandas e convenções que vão aparecendo num setor da vida, seja na ciência, na arte ou na filosofia. Mesmo no nível mais elementar da sensação já estamos nos colocando na direção de um sistema simbólico. Quando

percebemos

algo,

nosso

olhar

não

é

neutro

e/ou

desinteressado; percebemos o que o sistema simbólico com o qual estamos operando permite perceber. Esse é o motivo pelo qual a epistemologia de Goodman, além de construtivista, é pluralista e relativista. Pluralista porque sustenta que há uma riqueza de versõesde-mundo as quais, sob o ponto de vista de sua validade, são igualmente importantes. Tanto as teorias científicas, as teorias filosóficas, os poemas, as composições musicais, os filmes, as demais artes e mesmo a relação mais direta e sensível que temos com as coisas, compõem essa gama de versões. A distinção entre elas se dá pelas características internas e não pela sua função. Uma vez que existe uma diversidade muito grande de símbolos também se pode construir uma diversidade muito grande de sistemas simbólicos aptos para gerarem versões diversas e até mesmo incompatíveis3. Quanto ao relativismo, podemos dizer que aparece aqui de forma moderada. Para Goodman, (1972) nenhuma versão é mais correta que a outra. Nenhuma delas pode nos dizer como o mundo é, mas cada uma delas nos diz um modo como o mundo é. Isso não significa que não possam 3

Veja-se, por exemplo, o caso das diferenças na idéia de mundo na física newtoniana e na física da relatividade.

5

existir sistemas simbólicos incorretos, mas sim que, entre os sistemas simbólicos corretos, nenhum é melhor que o outro: “Todas as versões verdadeiras que se encontram em conflito são verdadeiras em mundos diferentes. Estes, por sua vez, devem ser entendidos como mundos reais e não como mundos possíveis”. (D’OREY, 1995, p. 10. Grifos do autor.) Os sistemas simbólicos são corretos na medida em que desenvolvem programas de correção interna. Tal correção depende de três fatores: consistência, constância e sucesso continuado das suas categorias.

2. Os sistemas simbólicos da arte e da ciência

Um sistema simbólico consiste num esquema (conjunto de símbolos)

aplicado

a

um

campo

de

referência.

(conjunto

de

referentes) Ser um símbolo é assumir uma função dentro de um sistema; não é, portanto, uma propriedade intrínseca de um objeto. Tal função é de referir, estar por algo. Os símbolos não podem ser tomados isoladamente. Só existem símbolos enquanto existem sistemas simbólicos. A rigor, tudo pode funcionar como símbolo, embora existam certos objetos como as palavras, os sons (de uma escala musical, por exemplo) e as imagens, que, com mais freqüência, desempenham essa função. Uma nota musical ou uma palavra funcionam bem mais frequentemente como símbolos do que montanhas ou rios que, por sua vez, funcionam mais frequentemente como referentes. Entretanto, para um alpinista, uma montanha também pode simbolizar um desafio ou uma conquista. Não existem símbolos em si mesmos. Um símbolo é, por assim dizer, uma capacidade, cujos limites e propriedades são inteiramente determinados pelo sistema no qual se encontra funcionando4. Simbolização e referência se constituem nos termos básicos a partir 4

Assim como nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein o significado de uma palavra só podia ser compreendido num jogo de linguagem específico, aqui também o símbolo só pode ser compreendido num contexto bem determinado.

6

dos quais Goodman apresenta a sua noção de mundo. Tais termos são usados com um sentido bastante amplo, abrangendo a relação entre um símbolo e aquilo pelo qual está. (seja de qual forma for) A referência de um símbolo pode aparecer de duas maneiras: por denotação ou por exemplificação5. A denotação ocorre quando o símbolo se aplica a algo diretamente, quando se refere diretamente a um objeto. O objeto, aqui, é a sua extensão, e o símbolo poderia levar o nome de etiqueta. Um exemplo de denotação ocorre no uso dos nomes próprios: quando afirmamos que o nome “Arthur” refere o Arthur, fica estabelecida uma relação de denotação entre uma etiqueta, a palavra “Arthur”, e um referente, o Arthur propriamente dito. A exemplificação, por sua vez, ocorre quando o símbolo é uma amostra da etiqueta, um caso de alguma coisa. Fica evidente que, para haver uma exemplificação, tem de ter ocorrido uma denotação anterior. Uma palavra como “filho” pode denotar um filho específico, o meu filho, por exemplo; por isso, posso apresentar o meu filho como uma amostra de “filho”. Outra distinção importante no pensamento de Goodman é a que existe entre esquema e domínio. Tal distinção é particularmente importante

para

delinear

as

diferenças/semelhanças

entre

os

sistemas simbólicos da arte e da ciência. O esquema é o conjunto dos símbolos, enquanto o domínio é o conjunto dos referentes. Um sistema denotativo usa um esquema formado por etiquetas cujo domínio é um conjunto de objetos. Num sistema exemplificativo o esquema é composto por um conjunto de objetos que funcionam como símbolos e o domínio por um conjunto de etiquetas. Quando se admite a idéia que a compreensão designa um processo cognitivo através do qual construímos mundo de qualquer

5

Outras relações de simbolização, tais como a representação, a descrição e a citação são formas de denotação; já a expressão é uma forma de exemplificação. Em outros casos, como na alusão, intervêm tanto a denotação como a exemplificação. Essa tipologia das relações de simbolização é detalhada em Linguagens da arte, principalmente nos capítulos II e IV.

7

espécie – bem como os resultados obtidos dessas construções -, fica sem fundamento a concepção que opõe arte e ciência6. Construir mundos através de sistemas simbólicos é uma tarefa comum entre esses dois territórios da compreensão humana: “Ambas podem ser corretas ou incorretas de diferentes maneiras; ambas podem ter um domínio de aplicação universal: para ambas existem critérios de aceitabilidade, e testes e experiências a que podem ser submetidas; em nenhum caso há garantias definitivas.” (D’OREY, 1995, p. 17) Das semelhanças apontadas não se pode depreender que arte e ciência sejam a mesma coisa, apenas se está dizendo que a dicotomia tradicional que põe, do lado da arte, a beleza, a intuição e a emoção e, do lado da ciência, a verdade, a racionalidade e a lógica, não pode mais ser sustentada. Onde reside a diferença, então? Tratase de uma diferença que pode ser localizada nos processos símbolos que constituem cada um dos sistemas. Os sistemas da ciência são, geralmente, construídos por processos denotativos, lingüísticos e literais, onde os símbolos possuem um referente direto e único. Na arte, os sistemas são mais ricos, através de meios não literais e de processos exemplificativos. No caso da pintura, da arquitetura, da música e da dança os sistemas são construídos através de símbolos não-verbais, que são densos e saturados e onde o referente é indireto e múltiplo. No entender de Goodman, todas as outras diferenças entre arte e ciência decorrer destas. A ciência só aceita sistemas que permitem segurança na determinação dos resultados experimentais e a busca de consenso na comunidade científica, daí decorre sua preferência por sistemas denotativos e verbais. Já a arte tende a tomar a sério a ambigüidade e

as

diferenças

das

sensibilidades

como

características

que

enriquecem sua interpretação. A arte privilegia a densidade, a saturação, a exemplificação e a referência múltipla e complexa, 6

Poderíamos acrescentar também a própria filosofia como outro discurso que, seguidamente, é definido a partir de critérios opostos aos da arte.

8

características que são denominadas por Goodman como “sintomas do estético”7. Tais características opõem-se à articulação, atenuação, denotação e referência simples e direta, que são “sintomas do nãoestético”, ou seja, da linguagem científica.

3. Arte e exemplificação

A exemplificação talvez seja o traço mais fundamental dos mundos construídos pela arte. A exemplificação é um tipo de relação simbólica em que o objeto refere algumas das propriedades que possui. Ela permite compreender, segundo Goodman, a função referencial presente em todas as obras de arte, inclusive as mais minimalistas

e

abstratas.

Quando

observamos

um

quadro

de

Kandinsky – como, por exemplo, o Amarelo, vermelho, azul, de 1925 -, mesmo na falta de uma referência denotativa, podemos encontrar exemplificações de cores e de formações geométricas. A função exemplificativa da arte permitiria assegurar que todas as obras são símbolos e referem algo, mesmo quando não denotam nada. No capítulo IV de Modos de fazer mundo, sob o título de “Quando há arte?”, Goodman expõe mais detalhes sobre a dinâmica da função simbólica da arte. A construção do argumento segue um itinerário tipicamente socrático. Primeiro concede a palavra aos seus “inimigos

teóricos”,

os

formalistas

ou

puristas,

para

depois

demonstrar seu ponto de vista. Segundo os formalistas, o que importa numa obra de arte são suas propriedades em si mesmas e, exatamente por isso, a arte pura deveria evitar a simbolização. A simbolização desviaria a atenção de suas propriedades intrínsecas. O que Goodman propõe, na seqüência do argumento, é que a posição purista está errada ao julgar que a simbolização significa sempre uma referência a algo exterior às obras de arte. Considerando o exemplo 7

Uma explicação mais detalhada dos “sintomas do estético” pode ser encontrada em Linguagens da Arte, no capítulo VI, seção 5 e, de maneira breve, em Modos de fazer mundos, capítulo IV.

9

de uma pintura “verdadeiramente pura”, Goodman demonstra que, por

mais

que

procuremos,

não

vamos

encontrar

nela

uma

propriedade interna totalmente específica. Propriedades como cores e formas não são exclusivas da obra de arte supostamente “pura”; elas põem a obra sempre em contato com o exterior e com outras obras. Para ilustrar seu argumento, Goodman propõe uma análise do que acontece quando nos vemos diante de uma amostra de tecido: Considere-se de novo uma vulgar amostra de tecido no catálogo de amostras de um alfaiate ou de um estofador. É improvável que seja uma obra de arte, que represente pictoricamente ou exprima alguma coisa. É simplesmente uma amostra – uma simples amostra. Mas de que ela é uma amostra? Da textura, da cor, da tecedura, da grossura, das fibras de que é feita...; tudo o que importa nesta amostra, somos tentados a dizer, é que ela foi cortada de uma peça de tecido e tem as mesmas propriedades do resto do material. Mas isso seria demasiado precipitado. (GOODMAN, 1995, p. 109)

O exemplo serve para visualizar que uma amostra de tecido é amostra (ou exemplo) de apenas algumas propriedades e não de outras. Amostras de tecido exemplificam cores, textura e padrão, mas não exemplificam forma e tamanho. Ou seja, exemplificam apenas aquelas propriedades que possuem e referem naquela circunstância específica. Se expandirmos as conclusões para o domínio das artes, verificamos que algumas obras de arte – de modo especial

as

mais

abstratas

-

também

exibem

suas

próprias

propriedades, selecionando algumas para despertar nossa atenção. Porém, não há, ao contrário das amostras de tecido, critérios e procedimentos seguros para determinar o que uma obra de arte exatamente exemplifica ou representa. É ao trabalho reflexivo e crítico que compete tal tarefa, que, como conditio sine qua non, precisa conhecer o sistema a que ela pertence. O próprio Goodman (1995, p. 110) conta uma anedota sobre o que pode ocasionar o desconhecimento de um sistema simbólico mesmo na ocasião banal de escolher tecidos por intermédio de uma amostra:

10

A Sra. Mary Tricias analisou um catálogo de amostras, fez a sua seleção e encomendou da sua loja de tecidos favorita material suficiente para o seu sofá e cadeira estofados – insistindo que esse material deveria ser exatamente igual à amostra. Quando a encomenda chegou ela abriu-a avidamente e ficou consternada quando várias centenas de peças com 6 cm x 10 cm, com lados cortados em ziguezague exatamente como a mostra, esvoaçaram pelo chão. Quando telefonou para a loja, protestando ruidosamente, o proprietário replicou, magoado e aborrecido: “Mas, Sra, Tricias, a senhora disse que o material devia ser exatamente como a amostra. Quando ele chegou ontem da fábrica, mantive aqui os meus empregados metade da noite a cortá-lo para ficar exatamente como a amostra”.

Como a exemplificação é uma forma de simbolização, fica assegurado que mesmo no caso de uma pintura “pura” ainda existe uma função simbólica. Uma função simbólica, de qualquer forma que seja – como representação, exemplificação, expressão ou outra –, é algo que se encontra em todas as obras de arte e é a condição necessária para que algo funcione como arte.

4. O valor cognitivo da arte

Uma vez delineados os traços mais gerais da epistemologia de Goodman, cuja conseqüência mais importante – para o interesse desse trabalho – é que as obras de arte são sistemas simbólicos específicos, a questão do valor da arte fica mais simples de ser demonstrada. A questão do valor da arte é tratada de forma breve na seção 6 do capítulo “A arte e a compreensão”, de Linguagens da arte. A primeira possibilidade sugerida por Goodman para explicar o valor da arte é a satisfação. Tal possibilidade, porém, se mostra inútil, já que não esclarece nada: a idéia que a arte é boa porque é satisfatória é simplesmente redundante. No caso da arte, ser boa e ser satisfatória são sinônimos. Afirmar que uma obra de arte é satisfatória ou boa é também admitir nela certa capacidade de realizar uma função: “[...] ser satisfatório é, em geral, relativo a uma

11

função de propósito.” (GOODMAN, 2006, p. 269) Mas qual seria, então, este propósito? Como já mencionamos anteriormente, as obras de arte são sistemas simbólicos e, como tais, sua função é a mesma de todos os sistemas simbólicos, ou seja, “[...] as obras de arte ou os seus exemplares desempenham uma ou mais de entre um conjunto de certas funções referenciais: representação, descrição, exemplificação, expressão”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A questão é saber a que propósito serve tal simbolização. Para apresentar uma resposta precisa à questão da função da simbolização, Goodman analisa três possibilidades. A primeira é que a simbolização exercita e desenvolve competências para enfrentar futuras contingências, tornando-nos mais aptos para sobreviver, conquistar e ganhar. A experiência estética “[...] torna-se um exercício de ginásio, sendo as imagens e sinfonias os halteres e sacos de

boxe

que

usamos

para

fortalecer

os

músculos

intelectuais”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A arte teria, por decorrência, o reconfortante poder de canalizar a energia em excesso afastandonos do que é destrutivo. A segunda possibilidade é quase oposta e bem mais simplista: a simbolização é uma propensão natural, tal como é o jogo. Jogar e simbolizar são empreendimentos divertidos e isso atrai naturalmente o homem. Uma terceira possibilidade, para além da oposição entre o prático e o divertido, seria a comunicação. Simbolizamos através da arte para comunicar fatos, pensamentos, e sentimentos. No entender de Goodman, cada uma destas explicações – seja exercício (ginástica), brincadeira (jogo) ou comunicação (conversa) -, embora estejam ligadas à atividade simbólica, são apenas verdades parciais. O que as três ignoram é que a motivação maior da atividade simbólica é a curiosidade e o objetivo é a compreensão e o esclarecimento. Em outras palavras, a função última da simbolização é o conhecimento:

12

O uso de símbolos para além da necessidade imediata faz-se em nome da compreensão e não da prática; o que compele é a ânsia de conhecer, o que delicia é a descoberta e a comunicação é secundária relativamente à apreensão e formulação do que comunica. O objetivo principal é a cognição em si e para si; o caráter prático, o prazer, a compulsão e a utilidade comunicativa dependem todas deste objetivo (GOODMAN, 2006, p. 271).

As obras de arte, do mesmo modo que as teorias científicas, possibilitam

fazer

associações,

distinções

e

categorizações,

contribuindo para a organização da nossa experiência com as coisas, conosco mesmos e com os outros. Se for por causa de sua função cognitiva que a arte adquire valor, não é nem mais nem menos valiosa que a ciência ou qualquer outra forma de criar mundos. O que a epistemologia de Goodman propõe é que a arte, apesar de ter especificidades internas, não tem um valor específico. Qual seria, então, a especificidade (ou excelência) dos objetos estéticos? Para responder tal questão, em primeiro lugar é preciso registrar que a subsunção do estético sob a função cognitiva não implica

em descartar o sensorial e o emotivo: “[...] o que

conhecemos através da arte tanto se sente nos ossos, nervos e músculos como é apreendido pela mente, que toda a sensibilidade e resposta do organismo participa na invenção e interpretação de símbolos”.(GOODMAN, 2006, p. 272) Em segundo lugar, é preciso recordar que os sistemas simbólicos têm modos específicos de organizar o mundo e que as características internas que nos fazem preferir um sistema são denominadas de critérios de correção. De fato, ainda no capítulo “Sobre a correção da apresentação”, de Modos de fazer mundos, Goodman examina detalhadamente o tema da verdade propondo que tal conceito é uma questão de ajustamento entre versões, numa referência facilmente aplicável às teorias científicas. Tal idéia de verdade, no entanto, pode ser prescindida quando se avalia os sistemas da arte, onde o critério de qualidade

13

passa a ser a correção da amostra (ou do exemplo)8. Assim, procurando agora formalizar a resposta à questão formulada no início do parágrafo, se levarmos em conta que um dos sintomas do estético é a exemplificação, relação em que o símbolo funciona como amostra, (exemplo) podemos concluir que símbolos estéticos são tão mais

corretos

quanto

mais

projetáveis

ou

representativos.

(GOODMAN, 1995) A projetabilidade ou representatividade é a capacidade de exemplificar predicados (etiquetas) que podem aplicarse a novos casos. Uma amostra é correta, prossegue Goodman (1995, p. 190) quando pode ser “[...] projetada para o padrão, mistura, ou outra característica relevante do todo ou de amostras posteriores”. Um

aspecto

representatividade

importante

a

destacar,

aqui,

é

ou projetabilidade requer a boa prática

que de

interpretação de amostras, que, por sua vez, depende do hábito, da revisão contínua, da atenção ao contexto e da convivência com a invenção e a frustração. Quando há densidade – um dos sintomas do estético – num sistema de símbolos, “[...] a familiaridade nunca é completa e final; outro olhar pode sempre desvelar novas sutilezas significativas. Além disso, o que lemos num símbolo e através dele varia com o que trazemos conosco”. (GOODMAN, 2006, p. 272) Através dos símbolos em geral e talvez mais acentuadamente com os símbolos estéticos, não só compreendemos melhor o mundo como compreendemos e reavaliamos os símbolos que trazemos conosco. Quando isso acontece, novas associações são possíveis e novas separações ficam claras alargando o nosso potencial cognitivo.

5. E, para finalizar, uma amostra de conceitos em som e imagem

8

Além dos critérios de ajustamento entre sistemas e correção de amostras, podem aparecer outros quando se avalia um sistema simbólico. No caso de sistemas lingüísticos podemos destacar a validade dedutiva e indutiva como um dos critérios mais importantes.

14

Partimos

agora

para

o

momento

um

momento

de

“experimentação” das idéias postas até aqui. A análise esboçada a seguir não pretende, de forma nenhuma, esgotar a riqueza semântica do filme ou de sua trilha sonora. Quer apenas demonstrar como conceitos

filosóficos

podem

ser

“exemplificados”

em

imagens

(fotogramas, no caso) e sons, como forma de enriquecer o mundo simbólico em que participam. Ampara-nos a convicção que tais expressões

humanas,

quando

compreendidas

também

como

referentes dos sistemas simbólicos filosóficos, podem nutrir e revigorar alternativas didáticas para o ensino de filosofia. Passemos ao experimento, então. O filme Laranja Mecânica9 é uma daquelas obras capazes de articular e congregar uma série de elementos estéticos (fotografia, trilha sonora, performances dos atores, diálogos, cenários, figurinos, etc.)

levando

o

espectador

a

inserir-se

numa

atmosfera

aparentemente distante e surreal. A rigor, o roteiro é bastante simples, sem nada de extraordinário ou impressionante. É a saga de um jovem (Alex, vivido por Malcolm McDowel) e seus seguidores (drugues), empenhados em desfrutar prazer às custas de sexo e ultra-violência. Preso e submetido a um tratamento experimental (técnica Ludovico) o jovem é dado como tecnicamente curado. (institucionalizado) Após a cura, o jovem se torna o pivô de um briga política que envolve altos quadros do governo. Dada a repercussão negativa do tratamento, Alex acaba sendo submetido a um novo tratamento, visando recuperar sua personalidade original. Nesse ponto o círculo se fecha. Como já disse, em termos de roteiro, nada muito impressionante; já vimos isso em muitas outras películas. O que faz de Laranja Mecânica, então, um filme que marcou época? É claro que as seqüências de fotogramas podem exemplificar um sem número de conceitos filosóficos. Questões sobre o limite da 9

Filme de 1971, dirigido por Stanley Kubrick. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Anthony Burgess (1962).

15

liberdade, sobre a relação entre indivíduo e sociedade, sobre a relação entre prazer e violência, sobre a relação entre desejo e alteridade podem, muito bem, ser enriquecidas pelas cenas e diálogos. Gostaríamos, entretanto, de provocar um olhar um pouco diferente; um olhar na direção do tema sonoro que atravessa o filme e que se constitui, ao mesmo tempo, naquilo que parece ser o último reduto de sensibilidade de Alex: a música de Beethoven. Gostaríamos de explorar, de modo especial, a cena em que, ao som do quarto movimento da Nona Sinfonia, irrompem na tela imagens da Segunda Guerra Mundial nas quais se vê, além de soldados nazistas perfilados e em marcha, maravilhas da tecnologia, como aviões e bombas, em ação. Uma

pergunta, então, poderia

ser

formalizada: por que

Beethoven? O que Beethoven tem a ver com cenas tão dramáticas e tão aparentemente distantes dos sentimentos e idéias que suas composições suscitam? Existe alguma raiz comum desconhecida entre a música organizada de acordo com as regras do sistema tonal e os acontecimentos mais drásticos do século XX? Para desenhar uma possível resposta a tais questões, é preciso esclarecer alguns elementos filosóficos que subjazem ao som da Nona Sinfonia. Beethoven representa, ao menos em parte, o auge de um movimento musical que teve início no Renascimento. partir

de

então,

passou a

ser

um espaço

de

A música, a expressão

da

subjetividade. A relação dessa subjetividade com o material sonoro se dá tendo como protagonista à vontade racional do sujeito; ou seja, é o sujeito que, como base em um tema, estrutura o material sonoro para compor a música. O modo como o material sonoro é organizado se ampara no seguimento de regras fornecidas pelo sistema musical conhecido como tonalismo. O sujeito, nesse contexto, estabelece com o material uma relação de domínio quase absoluto; cada nota se encaixa perfeitamente no plano de expectativas definido pelo sujeito. O funcionamento da composição musical, apesar dos importantes

16

acréscimos de genialidade e sensibilidade do sujeito-compositor, fica bastante próximo do ato científico. Assim como na ciência o objetivo é criar um mundo que elimine o mistério a partir do domínio total do suposto objeto, na composição tonal, o objetivo é estruturar o som aos temas conforme as regras do sistema. Uma das provas desse elemento científico estruturante que marca a composição é que a Nona Sinfonia não foi ouvida, não foi experimentada esteticamente por Beethoven. Como se sabe, nessa época, Beethoven encontravase num estado de surdez bastante avançado. Beethoven não precisa experimentar esteticamente aquilo que já está dominado e conhecido na experiência mental. A música de Beethoven é, por decorrência, mais que simples som. É também uma exemplificação do estado geral da racionalidade gestada pela modernidade. (artística e científica) Tal razão parece ter simplesmente perdido a medida de si mesma. Mergulhada na tentativa

de

objetificar

e

dominar o que se encontra ao seu

redor

e

marcando

sua

posição apenas num movimento auto-referente, tal razão perdeu o conteúdo, perdeu a noção do seu próprio limite, entregou-se a exercícios formais de esquadrinhamento dos espaços. (sejam eles estéticos ou científicos) A decorrência disso é que suas “maravilhas” passaram a gerar o perigo do aniquilamento. Expliquemos melhor: nas cenas destacadas no filme, o que se vê, não obstante os efeitos catastróficos da Segunda Guerra, são exemplares do que a razão é capaz:

soldados

enfileirados

e

bombas

são

produtos

do

desenvolvimento de uma razão que não se deu conta dos absurdos irracionais que se escondem por trás de sua forma de proceder baseada na dominação. A razão moderna produziu Beethoven, mas, paradoxalmente, o mesmo princípio produziu a bomba atômica. A

17

“Ode à alegria” ("Ode an die Freude", poema de Schiller cantado na Nona

Sinfonia

e

que

valorizava

valores

humanistas

como

fraternidade, liberdade e igualdade) poderia ser substituída por “Ode à razão”. A mesma razão que se sente bem ouvindo Beethoven já não consegue mais se orgulhar por inteiro dos seus atos. Alex não compreendeu a dimensão disso ao dizer: “É um pecado, é um pecado!!! [...] Usar Ludwig Van assim!! Ele nunca fez mal a ninguém!”. Sim, Beethoven tem algo a ver com isso, sim.

Bibliografia D’OREY, Carmo. Introdução. In: GOODMAN, Nelso. Modos de fazer mundos. Porto: ASA, 1995. p. 5-29. GOODMAN, Nelson. Languages of art: an approach to a theory of symbols. Indianápolis: Hackett, 1997. _____. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006. _____. Modos de fazer mundos. Porto: ASA, 1995. _____. Problems and projects. Indianápolis/New York: The BobbsMerril Company, 1972. LARANJA mecânica. Direção e produção: Stanley Kubrick. Los Angeles: Warner Brothers, 1971. 1 DVD. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 5.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. _____. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1993.

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